Nota da Editora É com alegria que a Una alarga seus horizontes ao abrigar sob seu timbre, a partir deste livro, um elenco de títulos de significativa importância para se discutir a saúde pública no Brasil. Nomeamos essa seleção de títulos de Seminare. À luz desse termo – a sugerir gestação, semeadura, maturação –, a Una, representada pelo pavão, essa ave que em algumas cul- turas é símbolo de renovação e mudanças favoráveis, dá as boas-vindas a todos os autores que por aqui aportarem com seus valiosos textos a analisar, informar e questionar, contri- buindo, assim, para a evolução da saúde coletiva neste país. As trilhas e os desafios da gestão do trabalho e da educação na saúde Conselho editorial: Janete Lima de Castro; Rosana Lúcia Alves de Vilar; Lenina Lopes Soares Silva; José Paranaguá de Santana; Cristiane Scolari Gosch. Supervisão editorial e planejamento visual: Una Editoração eletrônica: Ivana Lima Revisão de originais: Maria da Penha Casado Alves Normalização de originais: Margareth Régia de Lára Menezes Revisão tipográfica: Letícia Torres Foto da capa: Carlos Roberto de Castro (Chão da passarela do Forte dos Reis Magos, Natal/RN, Brasil) As trilhas e os desafios da gestão do trabalho e da educação na saúde Janete Lima de Castro Rosana Lúcia Alves de Vilar Nathalia Hanany Silva de Oliveira (Organização) As trilhas e os desafios da gestão do trabalho e da educação na saúde [recurso eletrônico]/organização, Janete Lima de Castro, Rosana Lúcia Alves de Vilar, Nathalia Hanany Silva de Oliveira. – Natal, RN: Una, 2016. 233 p. : il. (Seminare ; n.1) Modo de acesso: Editado originalmente em formato impresso” ISBN 978-85-60036-32-5 1. Saúde pública. 2. Gestão em saúde. 3. Educação. 4. Trabalho. I. Castro, Janete Lima de. II. Vilar, Rosana Lúcia Alves de. III. Oliveira, Nathalia Hanany Silva de. IV. Série. RN/UF/BCZM CDD 610 CDU 614 Catalogação da publicação na fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede. Catalogador: Margareth Régia de Lára Menezes - CRB15/337 O espaço entre os homens que é o mundo, com certeza não pode existir sem eles e um mundo sem homens, ao contrário de um universo sem homens ou uma natureza sem homens, seria uma contradição em si. Hannah Arendt Sumário Prefácio 12 A incorporação das dimensões de gênero e de raça nos processos de negociação do Sistema Único de Saúde: notas, reflexões e tendências 15 Negociação do Trabalho em Saúde na gestão pública municipal 38 Negociação coletiva: um estudo sobre as mesas de negociação do trabalho nos serviços de saúde no Brasil 57 Condições de trabalho dos auxiliares de serviços gerais na perspectiva do Trabalho Decente 71 Avanços e desafios da saúde do trabalhador no Brasil 96 Estudo acerca do perfil: uma contribuição para as políticas de valorização profissional 117 Formação e Educação Permanente em Saúde: desafios pedagógicos para um modelo de atenção integral no Brasil 136 Educação permanente: o trabalho em saúde e os seus pressupostos 164 A tutoria e os desafios da formação de pessoal na área de gestão do trabalho e educação na saúde: a face pedagógica do Sistema Único de Saúde 178 Formação, perfil, atuação e o mundo do trabalho do bacharel em Saúde Coletiva: uma nova profissão 198 O desafio de formar profissionais para o Sistema Único de Saúde do Brasil 215 Sobre os autores 228 | 12 | Prefácio Diz Hannah Arendt1 na epígrafe deste livro que “o espaço entre os homens que é o mundo, com certeza não pode existir sem eles e um mundo sem homens, ao contrário de um universo sem homens ou uma natureza sem homens, seria uma contra- dição em si”. Esse livro trata dos homens no seu mundo, ou um dos seus mundos, o mundo do trabalho. É um livro constituído de muitos capítulos elaborados por muitos autores, todos eles profissionais de reconhecido compromisso como o Sistema Único de Saúde, com a Saúde Coletiva e com o campo da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. É um livro para os trabalhadores que insistem em trabalhar e produzir no espaço da gestão em saúde. No caso específico, no espaço responsável pela gestão de um conjunto de atividades complexas voltadas para a qualificação e valori- zação da força de trabalho. O trabalho e a educação no contexto da saúde são a temática central em torno da qual giram os textos desse livro. O interes- se dos autores consiste em colocar em evidência situações que retratam suas experiências e resultados de seus estudos, espe- rando contribuir para a capacitação dos profissionais de saúde. Os capítulos estão organizados de forma que os leitores irão trilhar pelos caminhos da negociação permanente do trabalho em saúde; seguirão pela trilha das discussões sobre saúde do trabalhador e suas condições de trabalho; discutirão o perfil do atual gestor da atenção básica e irão refletir sobre a 1 No livro O que é política (Bertrand Brasil, 2006, p. 36). | 13 | educação permanente e sobre a formação de gestores, no nível de graduação, para o campo da saúde. No primeiro texto, que trata da negociação do trabalho, inti- tulado A incorporação das dimensões de gênero e de raça nos processos de negociação do Sistema Único de Saúde: notas, reflexões e tendências, as autoras discutem a incorporação das dimensões de gênero e de raça nos processos de negociação do Sistema Único de Saúde, elegendo como cenário de inves- tigação a Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS. Os textos seguintes, Negociação do trabalho em saúde na gestão pública municipal e A Negociação coletiva: um estu- do sobre as mesas de negociação do trabalho nos serviços de saúde no Brasil, fazem uma análise sobre a atuação das Mesas de Negociação do Trabalho nos âmbitos municipal e nacional. No texto 4, Condições de trabalho dos auxiliares de ser- viços gerais na perspectiva do Trabalho Decente, as autoras investigam, à luz da Agenda Nacional de Trabalho Decente, as condições do trabalho dos Auxiliares de Serviços Gerais de um Hospital Regional do SUS. No texto 5, Avanços e desafios da saúde do trabalhador no Brasil, a autora traz para o debate os conceitos básicos da área de Saúde do Trabalhador e sua aplicabilidade nos serviços de saúde, ressaltando a relação entre condições de trabalho e a saú- de do trabalhador da saúde. O texto 6, Estudo acerca do perfil: uma contribuição para as políticas de valorização profissional, trata de conhecer quem é o gestor da atenção básica, quais são as suas dificuldades e quais são, segundo sua percepção, as competências e habilida- des exigidas para o desempenho de suas funções. No texto 7, Formação e educação permanente em saúde: desafios pedagógicos para um modelo de atenção integral no Brasil, a autora lança seu olhar sobre as práticas educativas das | 14 | instituições de ensino no campo da saúde, enfocando o descom- passo existente entre a formação que temos e a formação que necessitamos para o SUS. No texto 8, Educação permanente: o trabalho em saúde e os seus pressupostos, as autoras discutem a importância da educação permanente para o trabalho em saúde, destacando o conceito de educação permanente em saúde, seu objetivo e eixos norteadores e enfatizam a mudança na formação acadê- mica dos profissionais de saúde em prol de uma aprendizagem significativa como elemento fundamental para a melhoria da qualidade dos serviços de saúde. O texto 9, A tutoria e os desafios da formação de pessoal na área de gestão do trabalho e educação na saúde: a face peda- gógica do SUS traz para o cenário do livro, a discussão sobre a educação a distância, modalidade de ensino que está sendo adotada pela gestão do SUS como uma estratégia para ampliar o acesso dos trabalhadores aos processos de capacitação. Finalmente, os textos 10 e 11, Formação, perfil, atuação e o mundo do trabalho do bacharel em Saúde Coletiva: uma nova profissão e O desafio de formar profissionais para o Sistema Único de Saúde do Brasil, abordam o tema da graduação em saúde coletiva. Conforme foi ressaltado antes, esse é um livro de muitos autores, todos com atuação no campo da gestão do trabalho e da educação na saúde, seja na academia, seja no âmbito do SUS. A esses autores, nossos agradecimentos por terem aceitado o desafio de trazer para nossos leitores textos que tratam da área de gestão do trabalho e da educação na saúde, na perspectiva de contribuir para uma visão crítica e construtiva dessa área. Janete Lima de Castro Coordenadora do ObservatórioRH-UFRN A incorporação das dimensões de gênero e de raça nos processos de negociação do Sistema Único de Saúde: notas, reflexões e tendências Maraisa de Fátima Almeida Rosana Lúcia Alves de Vilar Este artigo é parte do Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (UFRN), elaborado por Maraisa de Fátima Almeida, sob a orientação da professora Rosana Lúcia Alves de Vilar. | 17 | Introdução As análises sobre gênero e raça compõem, de forma crescente, a pauta da gestão do trabalho em saúde, tanto no campo dos serviços como no meio acadêmico, na busca de uma melhor compreensão sobre contexto e elaboração e implementação de proposições, visando a garantia de direitos conquistados. Santos (2003) discute um conjunto de estudos nos quais, em diferentes países, grupos sociais se organizam para resistir à exclusão social, para ele agravada pela globalização neolibe- ral, em nome da aspiração por um mundo melhor, que julgam possível e ao qual sentem ter direito. Neste texto, discutimos a incorporação das dimensões de gênero e de raça nos processos de negociação do Sistema Único de Saúde, elegendo como ponto de partida a Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS a qual, enquanto um instrumento de democratização das relações de trabalho, pode dar uma importante contribuição para a redução de desigualdades entre mulheres e homens, brancos e negros no SUS, em particular. Ao seguir nesse caminho, precisamos compreender e tra- tar os processos de negociação imbricados com a construção da identidade nacional, a conexão entre as dimensões de gê- nero, de raça e de classe onde esta, muitas vezes, mascara as desigualdades baseadas em gênero e em raça e as implicações dessas questões para as instituições no mundo do trabalho. Para uma melhor compreensão da problemática, o texto está estruturado em três partes, a saber: a primeira apresenta um breve histórico da negociação permanente no Sistema Único de Saúde, visando a sua contextualização no passado e no presente; | 18 | a segunda, discute a dimensão gênero e raça, refletindo sobre suas implicações relacionadas às formações social, econômica e política; a terceira, traz informações e reflexões sobre a in- corporação das dimensões de gênero e de raça na agenda de negociação do SUS e, finalizando, as considerações finais que destacam argumentos conclusivos e propositivos. A Negociação Permanente no Sistema Único de Saúde: breve histórico Ao contrário do setor privado – onde a negociação coletiva é obrigatória e está prevista na CLT, na Constituição Federal de 1988 – no setor público, o reconhecimento do direito de negociação foi conquistado, recentemente, com a promulgação da Convenção nº 151, de 1978, sobre Relações de Trabalho na Administração Pública1 por meio do Decreto 7.944 de 06 de março de 2013. O Decreto promulga, também, a Recomendação nº 159 sobre Procedimentos para a Definição das Condições de Emprego no Serviço Público. (Cf. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2013a; 2013b). A internalização dessa Convenção ao ordenamento jurí- dico brasileiro reúne o tripé necessário ao desenvolvimento de relações de trabalho democráticas no setor público – livre associação sindical, o direito à negociação coletiva e o direito à greve. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, incisos VI e VII (BRASIL, 2012), garantiu aos servidores(as) civis2 o 1 Convenção relativa à Proteção do Direito de Sindicalização e Procedimentos para a Determinação das Condições de Emprego no Serviço Público. 2 Emenda Constitucional 18/1998, que dispõe sobre o regime constitucional dos militares, altera artigo 142 da CF e proíbe aos militares a sindicalização e a greve. | 19 | direito à livre associação sindical e o direito à greve, exercido nos termos e limites definidos em lei específica, porém não ex- plicitou o direito à negociação coletiva. Os sindicatos ficaram sem espaços estruturados para tratar os conflitos da relação de trabalho. O direito à greve foi instituído, porém não foi re- gulamentado até o momento. O julgamento de greves do setor público é realizado com base na Lei 7.783/1989, (BRASIL, 1989) que regula o exercício do direito de greve no setor privado. Há diferenças ainda quanto à instância responsável por julgar as controvérsias. O Superior Tribunal de Justiça é o órgão judicial competente para julgar as controvérsias entre os sindicatos de trabalhadores federais e o governo federal e os Tribunais de Justiça dos Estados, quando se tratar de traba- lhadores estaduais. Contudo, a negociação coletiva e a organização de sistemas de negociação permanente vêm sendo praticadas no setor pú- blico e tendem a se fortalecer, pressionadas por especificidades de um setor que, segundo Mendonça (2013), emprega aproxi- madamente 11 milhões de servidores(as) públicos no Brasil e abarca cerca de 10% da População Economicamente Ativa (PEA). Na resolução de conflitos, decorrentes das relações de tra- balho, gestores e trabalhadores(as) precisam conjugar os prin- cípios da legalidade e da eficiência o que implica considerar as demandas de trabalhadores(as), dos cidadãos(ãs) bem como os limites de recursos físicos e orçamentários. Para as organizações sindicais do setor é maior a dificulda- de em alterar as condições de trabalho, pois essas dependem das instâncias política e administrativa. Demandas que impli- cam a ampliação de despesas com pessoal estão limitadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (BRASIL, 2000) e necessitam de aprovação de lei no Poder Legislativo, tornando a solução dependente da correlação de força política. Além disso, cada | 20 | esfera é responsável por disciplinar as relações de trabalho, resultando numa multiplicidade de regimes e de vínculos. Tais fatores tornam inevitável a criação de espaços locais de negociação. As primeiras experiências de negociação, no setor pú- blico, datam dos anos oitenta, como também no Sistema Único de Saúde (SUS). Conforme Teixeira (2007), no período de 1983 a 1990, quando o SUS ainda era Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), em São Paulo, o então Instituto de Assistência Médica do Servidor Público Estadual (IAMSPE) instituiu um Sistema Permanente de Negociação Coletiva de Trabalho, responsável por firmar o primeiro Acordo Coletivo no setor público, em 1989. Em 1993 foi criada a Mesa Nacional de Negociação Permanente do Sistema Único de Saúde (MNNP-SUS), pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), por intermédio das Resoluções CNS nº 52/1993, 229/1997 e 331/2003. (BRASIL, 2003). Com a finalidade de tratar de temas pertinentes às relações de trabalho em saúde, visando a qualidade dos ser- viços prestados à população, a MNNP-SUS foi composta de forma paritária entre gestores (11 públicos e 2 privados) e 13 entidades representativas dos trabalhadores(as) do SUS. Dos seus vinte anos de existência, a primeira década foi marca- da pela descontinuidade das ações. Em 2003, foi reativada e comemorou em 2013 uma década de trabalho ininterrupto. Vem se concretizando como um instrumento de gestão e de democratização das relações do trabalho no SUS. Assim, foram pactuados Protocolos que apontam diretri- zes para a constituição de Mesas de Negociação Permanente no SUS, Processo Educativo em Negociação do Trabalho no SUS, Cessão de pessoal, Planos de Carreira, Cargos e Salários | 21 | no âmbito do Sistema Único de Saúde (PCCS-SUS), Saúde do Trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir da MNNP-SUS, vem sendo articulado o Sistema Nacional de Negociação Permanente do Sistema Único de Saúde (SiNNP-SUS), considerado, ainda, um sistema em cons- trução. Funciona, assim, como um Fórum Nacional que arti- cula as várias Mesas de Negociação do SUS. Em 2003, o processo de negociação permanente foi expan- dido em nível federal, com a criação da Mesa de Negociação Permanente vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), composta por representantes dos Ministérios e das Entidades Sindicais. São objetos de ne- gociação questões relativas às condições de trabalho dos tra- balhadores(as), incluindo as de remuneração e a prestação de serviços públicos. Funciona articulada a Mesas Setoriais formadas nos Ministérios ou órgão específico e configuram o Sistema Nacional de Negociação Permanente (SiNNP) no Governo Federal. As Mesas Setoriais não estão autorizadas a negociar questões econômicas. No Ministério da Saúde, a Mesa Setorial de Negociação está vinculada à Coordenação Geral de Gestão de Pessoas na Secretaria de Assuntos Administrativos da Secretaria Executiva. Entre os principais resultados, no período 2003-2012, Mendonça (2013) aponta a reestruturação de todas as carreiras e planos de cargos; o fortalecimento das estruturas remunerató- rias (incorporação de gratificações e vantagens pessoais, valo- rização do vencimento básico, instituição de remuneração por subsídio); a recuperação da capacidade do Estado de contratar e manter servidores(as). Foram assinados 32 Termos de Acordo e 4 Projetos de Lei encaminhados ao Congresso Nacional. Em que pese a importância da negociação coletiva para a gestão do trabalho e o investimento feito nos últimos anos para | 22 | fortalecer esse processo, em especial no SUS, alguns desafios precisam ser enfrentados. O avanço da instalação de Mesas é moroso e caracterizado pelo baixo grau de institucionalidade, de descontinuidade e de baixa efetividade jurídica de suas de- cisões. Conforme dados da MNNP-SUS, no 1º semestre de 2013, existiam 58 Mesas de Negociação Permanente do SUS em todo o Brasil. Dessas, 12 estão paralisadas, 9 estão em processo de instalação e sobre 10 delas não há informação. Contribuem, ainda, para esse quadro: a dimensão continen- tal do território brasileiro, onde convivem diferentes Brasis e a relação interfederativa nem sempre é baseada na coopera- ção; a ausência de uma legislação nacional que comprometa as partes de qualquer uma das esferas da federação (governo e trabalhadores(as) a instituir instâncias de negociação e vin- cule o que for pactuado à obrigatoriedade da execução. Em parte, a regulamentação da Convenção 151 e da Recomendação 159 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratifica- da e promulgada pelo Brasil, abre perspectivas para que tais questões sejam tratadas. Em pesquisa realizada, recentemente, sobre “Avaliação do Funcionamento das Mesas de Negociação do Trabalho das Secretarias de Saúde das Regiões Nordeste e Sul”, Castro et al. (2013) revelam que muitas mesas instaladas não estão ativas, contudo, os achados demonstraram que, mesmo enfrentando grandes dificuldades, como a ainda insuficiente cultura de ne- gociação nas instituições de saúde, pode-se dizer que, nesses últimos anos, obteve-se avanço significativo, na perspectiva de garantir que espaços de negociação sejam discutidos e ins- talados na administração pública. Há, ainda, a necessidade de fortalecer as representa- ções tanto governamentais quanto sindicais nas Mesas de Negociação. Observamos dificuldades no exercício dessa | 23 | representação. Membros do governo são indicados para com- pô-las sem poder e sem legitimidade para encaminhar e para construir, internamente ao órgão que representam, uma posi- ção coletiva diante das pautas a serem negociadas. Com o tem- po, essas representações tendem a desaparecer das reuniões, pois não conseguem contribuir, efetivamente, para o debate das questões. Não há espaços de articulação e, muitas vezes, as reuniões ocorrem sem as representações governamentais. O mesmo ocorre, em proporções diferentes, do lado das representações sindicais. Estas não conseguem dar retorno as suas bases, e também não conseguem obter retorno delas, quanto às questões discutidas, o que termina por esvaziá-las de conteúdo e de legitimidade. Configuram-se, assim, em re- presentações sem correspondência com o que pensam e com o que reivindicam seus pares. Uma das possibilidades para amenizar essa situação, tanto do lado das representações governamentais quanto das sindi- cais, seria a conjugação de ações presenciais com ações virtuais. É preciso introduzir o uso de novas tecnologias de comunica- ção, como videoconferências, consultas, enquetes, fóruns de discussão em redes sociais e/ou disponibilizadas nos sites das instituições que compõem as Mesas, com transmissão em tempo real das reuniões, dos debates, dos encontros, dentre outros. Os processos de diálogo social, em particular os de negociação, ainda são pensados de forma presencial e com representação indireta. Em um território continental como o Brasil, as novas tecnologias de comunicação se apresentam como um caminho para ampliar o debate e conferir maior legitimidade aos proces- sos de negociação e às respectivas representações. Outro desafio para o nível federal de governo, em particu- lar, é a pulverização de negociações com representações sindi- cais distintas por setor. Isso pode criar distorções, privilegiar | 24 | categorias com maior poder de negociação em detrimento de outras, comprometer o princípio da isonomia, dentre outras questões. Promover espaços mais amplos de planejamento, de monitoramento e de avaliação dos processos de negociação co- letiva, alinhados aos processos de Planejamento do Governo como o Plano Plurianual e aos demais espaços de diálogo social como Conselhos, Conferências, é inevitável. Para incorporar as dimensões de gênero e de raça nos processos de negociação do Sistema Único de Saúde há que se considerar e ter estratégias para lidar com essas dificuldades. Implicações da formação social, econômica e política Os desafios enfrentados para a consolidação dos processos de negociação estão permeados por outros advindos da forma- ção social, econômica e política do Brasil. Dos seus 514 anos, ao menos 350 foram vividos sob regime escravocrata. Confor- me Guimarães (2000), no pós-abolição e com a Proclamação da República, é estruturada uma identidade nacional baseada na recusa do passado colonial por meio da propagação do mito da democracia racial e da ideologia do embranquecimento. O mito da democracia racial, por muito tempo, escondeu as disparida- des no acesso à educação, aos bens de produção, ao trabalho etc., vividas por grupos étnicos, raciais, no país. Impediu, também, que as práticas de discriminação fossem criminalizadas; deso- brigou o Estado de tomar medidas que integrassem negros(as) e índios(as) à sociedade brasileira; contribuiu para desmobilizar populações discriminadas. O referido mito apoia-se na gene- ralização de casos de ascensão dos mestiços, em contraponto | 25 | à depreciação dos negros, e na crença de que a escravidão aqui teria sido mais humana do que em outros países. Ao lado do mito da democracia racial é propagado o ideal do branqueamento, com a promoção da imigração europeia que vi- sava suprir a escassez de mão-de-obra resultante da abolição e modernizar o país. Esse ideal promoveu uma evidente diminui- ção da população negra em relação à população branca devido, dentre outros fatores, a uma taxa de natalidade e de expectativa de vida mais baixas e, por outro lado, devido ao fato de a misci- genação produzir uma população gradualmente mais branca. (BERNARDINO, 2012). O objetivo era eliminar, gradualmente, a população negra. Por um lado, a mestiçagem era apenas um estágio do processo de embranquecimento que melhoraria o país. Por outro lado, o ideal do embranquecimento levou parte da população negra à autonegação. Assim, é imposta a cultura eurocêntrica com repercussões na vida social, nas políticas de saúde, na educação, na segurança pública e na imigração. O desejo de “europeização”, expresso pela elite branca, evi- dencia que não só os negros se sentem desconfortáveis com a sua condição racial, mas o próprio branco brasileiro desejava, e deseja ainda hoje, (vide os meios de comunicação de mas- sa) perder-se no Outro: o europeu ou o norte-americano. O problema do branqueamento é uma questão que atinge toda população brasileira. (BENTO, 2002). As consequências são muitas. Interessa-nos focalizar aqui o modo como a formação da identidade brasileira – calcada na ideologia do embranquecimento e no mito da democracia racial – conformou a estruturação e o funcionamento das instituições sejam elas públicas, sejam elas privadas, dando contornos e es- pecificidades aos padrões de desigualdades vigentes no país, as quais devem ser consideradas no processo de formulação e de | 26 | implementação das políticas públicas, na perspectiva da equi- dade e não da reprodução da referida ideologia. Há o predomínio, nas instituições brasileiras, da discri- minação indireta, derivada de disposições e de práticas, apa- rentemente imparciais, mas que resultam em prejuízos e em desvantagens para determinados grupos. Nem sempre está relacionada a preconceitos e a estereótipos. É produzida sem que haja, necessariamente, a intenção de discriminar. É um tipo de discriminação que perpetua e legitima relações de poder assimétricas. Aqueles(as) que detêm uma situação de poder, de dominação e que têm interesse em manter o status quo justificam as ações e os procedimentos discriminatórios como o único procedimento racional possível, alegando aten- der ao interesse coletivo de todos os grupos. Essa é uma das características da discriminação institucional, decorrente do racismo (e também do sexismo) institucional, definido por integrantes do grupo Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton em 1967 como uma “[...] falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”. (GELEDÉS, 2013, p. 11). As instituições de saúde, de educação e do mundo do trabalho não possuem normas que discriminam a população feminina e a população negra. Entretanto, quando verificamos os dados de atendimento, de contratação, de emprego, de desemprego, de saúde, dentre outros, é como se houvesse uma norma ordenan- do a discriminação, impondo barreiras, criando estereótipos, naturalizando e hierarquizando as relações, colocando, assim, em desvantagem, as referidas populações. Outra questão a ser considerada é a conexão entre gênero, raça e classe para entendermos os processos de discrimina- ção e de desigualdades nos quais se encontra grande parte da | 27 | população brasileira a fim de contribuir para a sua superação. As desigualdades construídas, socialmente, a partir do sexo e da raça/cor das pessoas, juntamente com a de classe, estrutu- ram as desigualdades sociais no Brasil. Cada uma com elemen- tos e significados próprios, são problemas que dizem respeito à maioria da população e são formas de discriminação que se somam, entrecruzam-se e se potencializam, manifestando-se, claramente, na situação das mulheres negras. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2005). Pautada na crença da democracia racial, parte da sociedade brasileira desconsidera o papel do racismo nos padrões de de- sigualdades, por exemplo. Atribui e justifica a situação de de- sigualdade vividas pela população negra (e, muitas vezes, das mulheres não negras) como sendo consequência da sua con- dição de classe, ou seja, explica-se pelo fato de serem pobres e, em sendo assim, acredita que as ações para a melhoria das condições de vida dessas pessoas já resolveriam o problema. Esse é um grande entrave para o estabelecimento das políticas de ações afirmativas, por exemplo. As consequências do racismo/sexismo institucional, e das imbricações das dimensões de gênero, de raça e de classe, mar- cam o mundo do trabalho com um alto grau de informalidade e de precariedade das relações de trabalho, de discriminação racial e de gênero, de baixa proteção social, de baixo nível de escolaridade da força de trabalho. Mulheres e negros são os mais atingidos. Há uma hierarquia que se repete sempre. No topo, estão os homens brancos com os melhores salários, com as melhores posições, com as menores taxas de desem- prego e de participação no mercado informal. Em seguida, vêm as mulheres brancas que, quando desempenham as mes- mas funções, recebem salários que vão de 70% a 75% dos sa- lários dos homens brancos. Os homens negros ganham 60% | 28 | do que ganham os brancos. As mulheres negras são as que mais ocupam vagas no mercado informal, principalmente, em empregos domésticos, e ganham 30% ou 40% dos salários dos brancos. Quando o assunto é desemprego, a população negra apresenta as maiores taxas: as mulheres negras apresentam taxas de 12,5%, homens negros 6,6%, mulheres brancas 9,2% e homens brancos 5,3%. (BRASIL, 2011). Não é por acaso que, no setor saúde, as mulheres repre- sentam mais de 70% da força de trabalho e estão concentradas em postos de menor qualificação como setores administrati- vos, serviços gerais, atendentes e auxiliares de enfermagem. Consideram que as mulheres estão naturalmente mais aptas a essas funções e os homens mais aptos para as funções de de- cisão e de poder. Quanto maior o posto hierárquico, menor a presença das mulheres, mesmo que tenham mais anos de estudos do que os homens. Vale ressaltar, ainda, que entre as mulheres há diferenças salariais, no acesso e na mobilidade a certos postos profissionais, principalmente, em relação às mulheres negras. A população negra, por sua vez, tem maior presença em ocupações precárias, caracterizadas pela ausência de proteção social e jornadas de trabalho mais extensas e, por consequên- cia, menores remunerações. Embora não haja estudos nesse sentido, podemos inferir que, no SUS, a força de trabalho pre- carizada é composta, em sua maioria, por negros(as). | 29 | A incorporação das dimensões de gênero e de raça nos processos de negociação do SUS Inserir as dimensões de gênero e de raça nos processos de negociação permanente do SUS pressupõe considerarmos os desafios enfrentados pelos processos de negociação imbrica- dos aos desafios advindos do processo de formação social, eco- nômica e política do país, dentre outros. Obriga-nos a traçar estratégias junto à MNNP-SUS, pois não é por acaso que há um silêncio e uma dificuldade para avançarmos com essa pauta nos espaços de negociação, em especial no setor público. Muitas vezes, quando pautadas na negociação, as questões de gênero e de raça são sintetizadas em cláusulas que repro- duzem, naturalizam e/ou fortalecem os papéis marcados pela discriminação, desconsiderando que as mulheres e os homens podem, devem e assumem múltiplos papéis, diferentes daqueles tradicionalmente difundidos na sociedade. Tais cláusulas não visam, portanto, equilibrar relações de poder entre mulheres e homens, homens e homens, mulheres e mulheres. A categoria gênero rompe com a prática de explicar ou justificar as desigualdades vividas por homens e mulheres a partir de suas diferenças biológicas. Essas desigualdades são construídas socialmente. O gênero é estabelecido por con- venções sociais, por instituições, pela subjetividade e varia segundo a época e os padrões culturais. Para Scott (1995), gênero é um elemento constitutivo de re- lações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e uma forma primeira de significar as relações de poder. Essas relações sociais dizem respeito a relações entre homens e mu- lheres, mulheres e mulheres, homens e homens. Portanto, as políticas de gênero devem atuar a fim de reconstruir relações. | 30 | Quanto à raça, temos maior dificuldade em tratá-la nos espaços de negociação. A justificativa é que “aqui não discri- minamos, todos são tratados iguais”. É comum, também, atri- buírem-se as desigualdades vividas pela população negra ao fato de serem pobres e, portanto, não necessitarem de polí- ticas específicas. É dado como natural que toda a população negra seja pobre. Desconsidera-se o histórico do processo de formação nacional racial brasileira e o papel da raça enquan- to um elemento eficaz para produzir, para reproduzir e para justificar desigualdades, discriminações, privilégios e hierar- quizar grupos. O mito da democracia racial estabeleceu uma falsa consciência sobre as relações raciais, operando como um agente naturalizador, que transforma a discriminação racial em algo “normal”. (RAMOS, 2012). Diante disso é preciso ter estratégias. Uma delas é criar espaços para a troca de experiências, para debates e para formulação de ações conjuntas com e entre Instituições da MNNP- SUS, a fim de mobilizar seus membros para reconhecer as formas de discriminação baseadas em gênero e em raça pre- sentes nas categorias e nos locais de trabalho. Na MNNP– SUS, identificamos 11 Instituições (representativas de trabalhado- res(as) e do governo) que já possuem, na sua estrutura, or- ganismos e pessoas que se dedicam às questões de gênero e raça, portanto, já possuem experiência, expertise nos temas. Também o Dieese, as universidades parceiras, os especialistas e as organizações do Movimento Feminista, Negro e Sindical podem e devem contribuir. Agregar essas expertises será de grande valia para a produção de estudos sobre o tema no setor saúde, para formular cláusulas de gênero e de raça, bem como para estruturar metodologias de implementação de ações. Alguns debates são essenciais para serem feitos: a articu- lação gênero/raça/classe, as ações afirmativas, o papel dos | 31 | sistemas de mensuração de mérito na manutenção das desi- gualdades, as políticas de gênero e políticas para as mulheres, as políticas de combate à pobreza, políticas de promoção da igualdade racial, o racismo/sexismo institucional, dentre ou- tras temáticas. Outra ação estratégica é priorizar alguns dos Protocolos já pactuados e revisá-los, incluindo cláusulas relativas a gênero e à raça. É uma forma de, em médio prazo, disponibilizar diretri- zes que induzam ações para a redução de desigualdades entre mulheres e homens, brancos e negros no acesso à formação profissional e a diferentes funções e ocupações, na promoção, na progressão, na permanência no trabalho, na remuneração e nos próprios espaços e processos de negociação do SUS. Essas ações, juntamente com outros estudos a serem reali- zados, contribuirão para respondermos a questões como: § Mulheres e homens têm as mesmas oportunidades de aces- so, de permanência, de promoção, de progressão e de for- mação profissional no SUS? § Quem ocupa os postos de decisão? Há barreiras que impe- dem o acesso de mulheres e de negros a esses postos? § A precarização das relações de trabalho, no SUS, atinge mais as mulheres e os negros? § Há segregação ocupacional entre esses segmentos? § Como adoecem os trabalhadores(as)? Encontramos dife- renças para mulheres e negros? É diferente o adoecimento entre as mulheres? Portanto, o tema é amplo e a heterogeneidade de interesses e de segmentos envolvidos são desafiadores. Contudo, encon- tramos apoio em várias iniciativas em andamento nas diversas áreas do Governo Federal, em algumas organizações da socie- dade civil e num extenso arcabouço legal – em âmbito nacional | 32 | e internacional – que fundamenta a promoção da igualdade de oportunidade, de tratamento e a eliminação de práticas discri- minatórias no mundo do trabalho, composto de convenções, de leis, de decretos, de portarias, de resoluções de comissões e de comitês intergovernamentais e tripartites. Considerações finais A incorporação das dimensões de gênero e de raça nos proces- sos de negociação do SUS, a partir da MNNP-SUS, em médio prazo, disponibilizará diretrizes a todos os entes federados, às entidades sindicais e aos trabalhadores(as) que induzirão ações para a redução de desigualdades concernentes às mu- lheres e aos negros no ambiente de trabalho do SUS, a exemplo das ações afirmativas. Estas têm se mostrado um mecanismo eficiente para enfrentar desigualdades, entretanto, ainda é pouco utilizado no Brasil. Tais ações são definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compul- sório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao com- bate da discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. (GOMES, 2001). São, assim, medidas especiais de caráter temporário, sem significar ações de curto prazo necessariamente. O princípio da isonomia, de Aristóteles – baseado na ideia de que devemos tratar de forma igual os iguais e de forma de- sigual os desiguais na medida da sua desigualdade – é central na adoção de ações afirmativas. Tal princípio aponta para a necessidade de articular a igualdade formal (todos são iguais | 33 | perante a lei), material (orientada pelo critério socioeconômi- co) e a igualdade substantiva (reconhecimento de identidades orientadas pelo gênero, pela orientação sexual, pela idade, pela raça/cor, etnia). (SANTOS, 2007). Implementar ação afirmativa exige que o Estado abandone sua suposta neutralidade, que vá além da proibição/punição de atos discriminatórios e que atue, ativamente, na promoção/in- dução de mecanismos que levem à superação das desigualdades calcadas na raça/cor, na etnia e no gênero, na origem nacional, no desempenho de suas atribuições de gestão, de formulação, de fiscalização, de controle, de regulação e de contratação. As ações afirmativas são eficazes para efetivar a igualdade de oportunidades e de tratamento; para induzir transforma- ções de ordem cultural, pedagógica e psicológica que retirem do imaginário coletivo a ideia de supremacia e de subordina- ção de uma raça em relação à outra e do homem em relação à mulher, por exemplo; para coibir a discriminação do pre- sente, mas, sobretudo, para eliminar os efeitos psicológicos, culturais e comportamentais da discriminação do passado que tendem a se perpetuar; para implantar a diversidade e a maior representatividade dos grupos minoritários, nos mais diversos domínios de atividade pública e privada, eliminando barreiras invisíveis; para beneficiar os próprios países que se definem como multirraciais e que assistem, a cada dia, ao incremento do fenômeno do multiculturalismo; para criar as chamadas personalidades emblemáticas. (GOMES, 2001). Acreditamos que é possível desenvolver uma agenda de ne- gociação permanente no SUS sobre igualdade de gênero e de raça que, no médio e longo prazo, subsidie a instituição de ações afirmativas nos processos seletivos, de formação, de avaliação e de progressão profissional e que resulte em um maior equilíbrio na ocupação dos postos de decisão para mulheres e negros; na | 34 | promoção da participação desses segmentos em ocupações nas quais, tradicionalmente, não tinham acesso; na correção de dis- torções na remuneração e na jornada de trabalho; no direciona- mento de investimentos na melhoria das condições de trabalho; no tratamento adequado dos casos de discriminação no local de trabalho; no fortalecimento da participação das mulheres e dos negros nos espaços de negociação permanente do SUS. | 35 | Referências BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: BENTO, Maria Aparecida Silva; CARONE, Iray (Org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. p. 25-58. BERNARDINO, Joaze. Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial no Brasil. Estudos afro-asiáticos, ano 24, n. 2, p. 247-273, 2012. BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS: democratização nas relações de trabalho no Sistema Único de Saúde SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. (Série D. Reuniões e conferências). Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2015. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nos 1/1992 a 68/2011, pelo Decreto Legislativo nº 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão – n.1 a n.6 /1994. – 35. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012. BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades. 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Negociação do Trabalho em Saúde na gestão pública municipal Andriério Lopes Pereira Sobrinho Nathalia Hanany Silva de Oliveira Lenina Lopes Soares Silva Janete Lima de Castro Este artigo é parte do Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação de Gestão em Sistemas e Serviços de Saúde (UFRN), elaborado por Andriério Lopes Pereira Sobrinho e Nathalia Hanany Silva de Oliveira, com a participação da professora Lenina Lopes e sob a orientação da professora Janete Lima de Castro. | 40 | Introdução A Conferência Geral da Organização Internacional do Tra- balho (2011, p. 160), convocada em Genebra pelo Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho, em sua 67ª Reunião, realizada em 3 de junho de 1981, reafirmou a Declaração da Filadélfia1 onde se reconhece [...] a obrigação solene de a Organização Internacional do Traba- lho estimular, entre todas as nações do mundo, programas que permitam [...] alcançar o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, e levando em consideração que tal princípio é plenamente aplicável a todos os povos. Mas o que é Negociação Coletiva? Para os efeitos da Convenção 154 – Convenção sobre incentivo à Negociação Coletiva, adotada em 19 de junho de 1981, em Genebra – o termo “negociação coletiva” compreende todas as negociações que acontecem entre um empregador, um grupo de empregadores ou uma ou mais organizações de empregadores, de um lado; e uma ou mais organizações de trabalhadores, de outro, visando a: definir condições de trabalho e termos de emprego; regular as relações entre empregadores e trabalhadores; regular as relações entre empregadores ou suas organizações e uma or- ganização de trabalhadores ou organizações de trabalhadores. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011). 1 A Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, reunida em Filadélfia na sua 26ª Sessão, em 10 de maio de 1944. | 41 | Segundo Braga Júnior e Braga (1998), o propósito fundamen- tal da negociação coletiva é o desenvolvimento das relações de trabalho e o tratamento dos seus conflitos, utilizando como re- ferência o objetivo comum de prestar e atender com qualidade, eficácia e democracia, os serviços e demandas da cidadania em seu benefício e em prol da dignidade da pessoa humana. Observa-se, na literatura, que conflito é uma categoria imprescindível nos estudos sobre negociação, como também se faz necessário entendê-lo como um elemento inerente ao contexto da gestão. Nessa perspectiva, Braga Júnior e Braga (1998) compreendem o conflito como forma de interação entre indivíduos, grupos, organizações e coletividades, podendo ser entendido como uma condição de oposição, no qual os inte- resses de um lado afetam o outro lado. Todavia, o conflito não deve ser eliminado de forma arbitrária, pois, apesar da sua conotação negativa, ele pode ser usado para a construção de mudanças e de melhorias dos processos produtivos. Portanto, nesse panorama, ressalta-se a negociação coletiva como uma ferramenta de ação para intervir no campo da resolução de conflitos de interesse. Silva (1988) enfatiza a negociação coletiva como mediadora de conflitos, no entanto, “[...] a negociação coletiva enseja o de- bate de uma grande variedade de assuntos que não se restrin- gem aos reajustamentos salariais [...]”. (ROMITA, 2011, p. 137). No Brasil, nas instituições públicas de saúde – cenário deste artigo – a prática da negociação coletiva tem adquirido expressão nos espaços das Mesas de Negociação Permanente. Considerando a importância desse espaço de negociação, Lopes, Castro e Castro (2008) ressaltam que a democratização das relações de trabalho pressupõe o estabelecimento de espa- ços de diálogos e de negociação como um dos seus instrumen- tos para a busca da resolução de conflitos. | 42 | Seguindo essa trilha, no ano de 1993, o plenário do Conselho Nacional de Saúde, por meio da Resolução nº 52 (cf. BRA SIL, 2003) instaura, em sua 24ª reunião, a Mesa Nacional de Negociação do Sistema Único de Saúde (MNN/SUS). Dois anos depois, mudanças na gestão do Governo Federal contribuíram para a desativação da Mesa. Somente em 2003, com o gover- no recém-eleito, é que o Ministério da Saúde volta a investir nesses espaços de diálogo, promovendo a sua reinstalação, agora com a denominação de Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS (MNNP-SUS). Nesses últimos dez anos, a MNNP-SUS vem funcionando de forma ininterrupta. A MNNP-SUS é um fórum paritário e permanente de nego- ciação, onde estão reunidos gestores públicos, prestadores de serviços privados e entidades sindicais nacionais que repre- sentam os trabalhadores. Na Mesa, são debatidas e pactuadas questões referentes às relações e às condições de trabalho no SUS, com o objetivo de democratizar as relações entre gestores e trabalhadores e a valorização dos trabalhadores, na perspec- tiva de melhorar a qualidade do serviço prestado pelo Sistema Único de Saúde. (BRASIL, 2013). A MNNP-SUS tem como diretriz estimular a instalação de Mesa de Negociação nos estados e municípios. Nesse sentido, a Agenda Positiva do Departamento de Gestão e da Regulação do Trabalho em Saúde (DGTES) formalizou a instalação de Mesas nas três esferas de governo como fundamental para o sucesso da política de gestão do trabalho em saúde. (MACHADO et al.,2008). Nesse contexto, a Secretaria Municipal de Saúde de Natal (SMS-NATAL), mediante a Resolução do Conselho Municipal de Saúde (CMS) n° 08/2003, de 21 de maio de 2003, publicada no Diário Oficial do Município (DOM) no dia 30 de maio de 2003 e homologada pela Portaria do Gabinete do Prefeito | 43 | n° 066/2004 de 22 de junho de 2004, instituiu a Mesa Municipal de Negociação Permanente do SUS em Natal, objeto de estudo deste artigo. (NATAL, 2003). Instalada em 2004, a Mesa de Negociação da SMS-Natal so- mente iniciou seus trabalhos no ano seguinte, sendo desativa- da quatro anos depois. Alguns dos motivos para a paralisação de suas atividades foram: a falta de estrutura para seu funcio- namento; a falta de vontade dos representantes da gestão e dos trabalhadores para a atuação nesse espaço; a realização de negociação “fora” dos espaços da Mesa; o desconhecimento dos participantes sobre a finalidade da Mesa. (CASTRO et al., 2013). Anos depois, o Plano Municipal de Saúde (Gestão SMS 2009- 2012) destaca, no seu Eixo 2, diretriz 2.1 – Gestão do Trabalho e Educação Permanente em Saúde – a reativação imediata da MMNP-SUS/Natal, como uma das suas metas. Todavia, essa reinstalação só veio a acontecer em 2013, com a gestão empos- sada nesse ano. Diferentemente da Mesa Nacional, a Mesa da SMS-Natal foi reinstalada com o mesmo nome da anterior, ou seja, Mesa Municipal de Negociação Permanente do SUS em Natal (MMNP -SUS/Natal). O ato de reinstalação ocorreu no dia 26 de abril de 2013, com base na Portaria nº 142/2013, de 25 de junho de 2013, publicada no DOM no dia 27 de junho de 2013. (NATAL, 2013a). Qual é a concepção de Mesa de Negociação do Trabalho da nova gestão municipal? Qual o interesse e propósito da nova gestão ao apostar na negociação enquanto estratégia de gestão? Seria a negociação compreendida pela nova gestão enquanto uma estratégia de gestão? O que pensam os gesto- res e os trabalhadores sobre a decisão de reinstalar a Mesa de Negociação do Trabalho da SMS-Natal? Essas são algumas das questões que sustentam o interesse dos autores neste tema. | 44 | Tendo em vista esses questionamentos, este trabalho pro- cura contextualizar a reinstalação da Mesa de Negociação Permanente do SUS em Natal, observando os desafios e as possibilidades dimensionados nesse espaço, bem como a concepção dos atuais gestores da saúde de Natal/RN e dos trabalhadores participantes da Mesa acerca do seu papel e da sua finalidade. A pertinência deste estudo é justificada pela própria de- cisão da SMS-Natal em reinstalar a Mesa de Negociação, em um contexto de crises e turbulências, e pelo investimento que o Ministério da Saúde vem fazendo, visando fortalecer esses espaços. A motivação dos autores é resultante da compreensão que eles têm de que a negociação coletiva pode ser um instrumento que possibilita o envolvimento do servidor como agentes dos processos de decisão, e, em ato contínuo, da certeza de que quan- do as pessoas se sentem sujeitos, seus potenciais se evidenciam. Procedimentos metodológicos Trata-se de estudo descritivo, com abordagem qualitativa. Optou-se pelo estudo de caso uma vez que esse é caracteri- zado como uma inquirição empírica que investiga um fenô- meno contemporâneo dentro de um contexto da vida real, “[...] quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é claramente evidente e as múltiplas fontes de evidência são utilizadas”. (YIN, 1989, p. 23). O instrumento de coleta de dados utilizado foi a entrevista com perguntas abertas na qual, segundo Yin (1989, apud CAMPOMAR, 1991), o investigador pode solicitar aos | 45 | respondentes-chave a apresentação de fatos e de suas opiniões a eles relacionados. De acordo com Minayo (1992), a entrevista aberta é utiliza- da quando o pesquisador deseja obter o maior número possível de informações sobre determinado tema, segundo a visão do entrevistado, e também para obter um maior detalhamento do assunto em questão. A população da pesquisa foi constituída pelos participantes da Mesa de Negociação da SMS/Natal e gestores que ainda es- tão na instituição e participaram da Mesa anterior, na gestão da SMS/2002 a 2008. Os entrevistados foram considerados in- formantes privilegiados com informações úteis para desven- dar as questões levantadas pelos pesquisadores. Para a sistematização e a análise das entrevistas, foi utili- zada a cartografia simbólica. (SANTOS, 2001). A cartografia simbólica é definida por esse autor como uma estratégia que permite sistematizar os dados para interpretá-los, tendo a visibilidade do conjunto das informações colhidas. Esse pro- cedimento possibilitou a compreensão das categorias selecio- nadas para a análise e dos assuntos discutidos nas entrevistas ou registrados nos documentos. Resultados e discussões A negociação se estabelece na discussão entre pessoas, gru- pos ou instituições, em que se busca o acordo entre as partes por meio da exposição de novas ideias, de pontos de vistas, de razões, relacionados com os objetivos de cada parte, e está presente na maioria dos ambientes em que ocorrem relações humanas. (GARCIA; FERREIRA, 2008). É nessa perspectiva que este artigo apresenta e discute a concepção dos atuais gesto- | 46 | res da saúde de Natal/RN e dos trabalhadores participantes da Mesa sobre o papel e a finalidade da Mesa de Negociação Permanente da Secretaria Municipal de Saúde de Natal, assim como as expectativas dos participantes em torno das possibi- lidades da Mesa. De acordo com o Regimento Interno, a MMNP-SUS em Natal foi reinstalada no ano de 2013 com a finalidade de dar tratamento às questões pertinentes às relações de trabalho empregadas no âmbito da gestão pública municipal do SUS em Natal. (NATAL, 2013b). Ainda segundo o Regimento Interno, a MMNP-SUS em Natal é constituída de forma paritária formada por duas ban- cadas de igual número de efetivos e suplentes, sendo uma bancada composta por representantes da gestão municipal de Natal e outra constituída por representantes do conjunto dos servidores no âmbito do SUS. As secretarias de governo que participam da MMNP-SUS em Natal são: Secretaria de Saúde; Secretaria de Planejamento e Secretaria de Administração e Gestão Estratégica. Já as entidades sindicais são: Sindicato dos Médicos, Sindicato dos Servidores da Saúde, Sindicato dos Servidores do Município, Sindicato dos Odontologistas e Sindicatos dos Agentes de Saúde. Os resultados do estudo, que deram origem a este artigo, mostram que, para o conjunto dos gestores entrevistados, a Mesa de Negociação é um espaço para a discussão das ques- tões trabalhistas entre os gestores e trabalhadores, tendo em vista a democratização das relações de trabalho. Segundo os gestores, a Mesa deve ser compreendida como uma importante estratégia de gestão do trabalho. As respostas da representação dos trabalhadores na Mesa de Negociação não se distanciam das respostas dos gestores no que diz respeito à concepção sobre a Mesa de Negociação. Segundo os trabalhadores, a Mesa é uma estratégia de gestão | 47 | em que gestores e trabalhadores irão tratar de questões con- cernentes às relações de trabalho, por meio do diálogo. Os depoimentos dos entrevistados revelaram que a com- preensão dos participantes acerca do papel da Mesa de Negociação, em uma instituição pública, está coerente com o que versa o Protocolo n° 002/20032 da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS (2003). De acordo com esse documento, a Mesa é um espaço formal de negociação cole- tiva, no qual são debatidas e pactuadas questões referentes às relações e às condições de trabalho no SUS. A compreensão dos gestores e trabalhadores da SMS-Natal acerca do papel da Mesa de Negociação também vai ao encontro das concepções existentes na literatura que destacam ser esse espaço uma estratégia de gestão inovadora capaz de democrati- zar e promover o desenvolvimento das relações de trabalho na saúde. (LOPES; CASTRO; CASTRO, 2008). Para esses autores, a Mesa tem potencial para se tornar um espaço de comunicação direta entre os diferentes segmentos de trabalhadores e gesto- res. Dizendo de outra forma, a Mesa deve ser compreendida enquanto “[...] uma estratégia de gestão do trabalho na saúde [...] que viabiliza a comunicação entre os trabalhadores e ges- tores [...] a fim de tratar dos conflitos inerentes às relações de trabalho”. (CASTRO et al., 2012, p.122). Perguntados sobre os motivos que levaram a gestão da SMS-Natal a reinstalar a Mesa de Negociação, os dirigentes responderam que a reinstalação da Mesa é uma diretriz estabe- lecida no início da gestão. Segundo eles, a atual gestão acredita no modelo de gestão participativa em que os trabalhadores possam compartilhar as decisões. Nessa perspectiva, faz-se a 2 Protocolos são documentos que formalizam as decisões pactuadas nas Mesas de Negociação do SUS, registrando tudo aquilo que as partes acordaram. (BRASIL,  2013). | 48 | aposta no diálogo com os trabalhadores como uma estratégia para a sua valorização. De acordo com os representantes da bancada sindical, os motivos que os levaram a participar da proposta de reinstala- ção da Mesa Municipal de Negociação foram: a necessidade da existência de um espaço de diálogo entre a gestão e os traba- lhadores e a oportunidade de participação em uma instância que possibilitasse a discussão das interfaces e das diferenças existentes entre o trabalhador e a gestão. Nas respostas dos trabalhadores e dos gestores, duas ca- tegorias aparecem com frequência: o diálogo e a participa- ção. Essas categorias trazem à tona a discussão dos modelos de gestão existentes nas instituições de saúde, modelos bu- rocráticos e centralizadores que não deixam espaço para a participação. Em contraponto a esses modelos, destaca-se a Gestão Participativa. De acordo com Vilar (2014), a gestão par- ticipativa é um modelo marcado pelo trabalho em equipe e pela construção coletiva, considerando os sujeitos protagonistas e corresponsáveis pela produção de ser e do mundo onde vi- vem. Nesse contexto, a Mesa de Negociação é um instrumento que possibilita avanços no sentido de uma gestão democráti- ca uma vez que permite que as partes explicitem, democra- ticamente, sua pauta de interesses; pratiquem, por meio do diálogo e da negociação, a busca de consensos entre diversos dissensos existentes; sistematizem e troquem informações. Ademais, possibilita a institucionalização da participação e da negociação como práxis da gestão do Estado; além de apontar elementos para a integração dos interesses corporativos com as preocupações e objetivos mais universais das políticas pú- blicas. (DAU, 2005). | 49 | Questionados sobre os benefícios que a reinstalação da Mesa poderia acarretar às duas representações, eles respon- deram que os benefícios seriam mútuos. Os representantes dos trabalhadores apontam, como be- nefícios, a oportunidade de dialogar com a gestão sobre as reivindicações salariais e as condições de trabalho e, ainda, ressaltam o potencial da Mesa em estimular a instituição da gestão participativa. Nessa perspectiva, Castro, Castro e Lopes (2012) salientam que a Mesa é um instrumento inovador de gestão capaz de pro- piciar a democratização das relações de trabalho na saúde, uma vez que oportuniza um espaço de comunicação direta entre os diferentes segmentos: trabalhadores, gestores e usuários. Segundo os entrevistados – representantes da gestão – esta- belecer elos de confiança entre gestores e trabalhadores seria um dos benefícios esperados. Acredita-se que um pacto, nesse sentido, poderá ser útil para a administração dos conflitos. De acordo com Braga Júnior e Braga (1998), a Mesa de Negociação deve ser entendida como processo de realização de reuniões conjuntas, sistemáticas e regradas, com o objetivo de apreciação, de análise e de tratamento de conflitos e para a discussão de assuntos de interesse comum, relacionados ao de- senvolvimento das relações de emprego e de trabalho no setor, em benefício da qualidade e da eficácia dos serviços. Respondendo ao questionamento sobre os resultados al- mejados, os gestores destacaram que esperam que as bancadas (gestão e sindical) cheguem a um acordo e que os frutos desse acordo se transformem em protocolos. Ademais, os gestores apontam como resultados positivos: a abertura da negociação da MMNP-SUS, no gabinete do pre- feito; a discussão da melhoria do sistema de saúde municipal; a valorização do trabalhador; a discussão da pauta de reajuste | 50 | salarial; a produção do termo de acordo entre a gestão e os trabalhadores e a regularização dos passivos trabalhistas (sa- lário família, abono permanência, adicional noturno, dentre outros) que estavam atrasados. Os gestores apontaram, ainda, alguns produtos resultantes das negociações e pactos estabelecidos na Mesa da SMS: rea- lização de cinco reuniões ordinárias com a produção de dois protocolos – o Protocolo nº 001/2013 e o Protocolo n° 002/2013. O primeiro trata do Regimento Interno da Mesa; o segundo, aprovou a correção salarial dos assistentes em saúde nos pata- mares iguais aos de técnicos em saúde, para aqueles servidores que atendem aos dispositivos legais. O protocolo n° 002/2013 foi transformado na Lei de n° 134/2013 e beneficiou 341 assistentes em saúde com o reajuste salarial de, aproximadamente, 30%. Para os trabalhadores, a atuação da Mesa de Negociação pode resultar nos seguintes benefícios: redução do risco de greve e resolução amigável de conflitos existentes entre eles e a gestão. Nunca é demais recordar que as interações das re- lações de trabalho se dão entre atores com interesses distintos e, geralmente, são conflituosas. Enfim, acredita-se que a Mesa é um instrumento que tem a possibilidade de produzir resultados positivos tanto para a gestão como para os trabalhadores e para os usuários. Nesse | 51 | sentido, necessita ser fortalecida, na perspectiva de garantir relações democráticas entre a gestão e o trabalhador e que essa relação deve ter reflexo na atenção do serviço que é oferecido ao usuário do SUS. Considerações finais Face ao exposto, pode-se concluir que os entrevistados com- preenderam a Mesa de Negociação como um espaço de aber- tura, visando possibilitar o diálogo e buscar resolução de conflitos em relação às demandas trabalhistas entre gestores e representações sindicais. O propósito da gestão em reinstalar a Mesa foi o de investir em espaços de diálogos com os trabalhadores, fazendo com que eles sejam valorizados e por acreditarem na gestão participa- tiva como fundamental para a gestão. O propósito dos trabalhadores em apoiar a reinstalação da MMNP-SUS não foi diferente dos gestores, pois a bancada sin- dical acredita nesse espaço de comunicação direta entre ambos. Também ficou evidente que os gestores e os trabalhadores reconhecem a Mesa de Negociação do Trabalho como estraté- gia de gestão porque veem a participação dos trabalhadores como fundamental. Portanto, a reinstalação e o funcionamen- to da Mesa mostram o interesse dos gestores e dos trabalhado- res na democratização das relações de trabalho. Por fim, acredita-se que a reinstalação da MMNP-SUS/ Natal tem potencial para produzir resultados que beneficiem a gestão da SMS e os trabalhadores. Nesse sentido, espera- -se que os acordos e as pactuações obtidos na MMNP-SUS em Natal se traduzam em ações concretas que beneficiem ambos os lados, inclusive, os usuários que não devem ser | 52 | esquecidos nesse diálogo; pelo contrário, devem ser consi- derados como sujeitos centrais. Espera-se que a gestão municipal garanta a participação de integrantes da MMNP-SUS/Natal em processos de educa- ção permanente, tendo em vista aprimorar a arte de negociar e a compreensão do papel desses espaços no SUS municipal. Espera-se, também, que os integrantes da MMNP-SUS/Natal tenham sabedoria para superar quaisquer conflitos que, por- ventura, coloquem em risco a permanência desse espaço de diálogo, de negociação, de pactuação e de gestão das relações de trabalho. | 53 | Referências BRAGA JÚNIOR, David; BRAGA, Douglas Gerson. Metodologia de negociação coletiva do trabalho em saúde. In: CASTRO, Janete Lima de; SANTANA, José Paranaguá de. (Org.). Negociação coletiva do trabalho em saúde. Brasília: OPAS/OMS; Natal: UFRN/NESC, 1998. p. 91- 124. BRASIL. Ministério da Saúde. Panfleto da MNNP-SUS. [Brasília], 2013. ______. Resolução nº 52, 06 de maio de 1993. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS: democratização nas relações de trabalho no Sistema Único de Saúde SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. (Série D. Reuniões e conferências). p. 35-36. Disponível em: . 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Negociação coletiva: um estudo sobre as mesas de negociação do trabalho nos serviços de saúde no Brasil Janete Lima de Castro Lenina Lopes Soares Jorge Luiz de Castro | 58 | Introdução Neste artigo, discute-se a negociação coletiva do trabalho, ten- do como objetivo identificar a situação de funcionamento das Mesas de Negociação do Trabalho das Secretarias de Saúde das Regiões Nordeste e Sul do Brasil, observando-se os temas mais debatidos durante as reuniões de negociação coletiva nessas Mesas, visando apresentar propostas, sugestões e/ou recomendações para melhoria do seu funcionamento. A negociação coletiva é uma das formas de diálogo entre partes nas relações de trabalho. Visa, comumente, o ajuste de interesses por meio de entendimentos capazes de solucionar problemas e conflitos de posições assumidos pelas partes envolvidas no processo de trabalho. Sendo assim, tem como finalidade superar divergências e buscar encaminhamentos voltados para a condução normativa, obrigacional, política e social, e até econômica, dos protagonistas e/ou representantes e representados pelas partes. A relevância da negociação coletiva se fez notar, de forma mais contundente em âmbito mundial, no ano de 1981, quando a Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aprovou a Convenção nº 154, prevendo que a negociação coletiva deve se aplicar a todos os ramos da atividade econô- mica, sendo ampla e “aplicável a todas as regiões e formas de organização, em qualquer nível sindical, profissional ou em- presarial”, definindo-a como: [...] todas as negociações que tenham lugar entre, de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com o fim de fixar as | 59 | condições de trabalho e emprego, regular relações entre empre- gadores e trabalhadores ou regular as relações entre os emprega- dores ou suas organizações e uma ou várias organizações de tra- balhadores, ou alcançar todos estes objetivos de uma vez (Art. 2º). (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2013). A Constituição Federal de 1988, promulgada no Brasil, após a 154ª Convenção da OIT adotou as recomendações des- ta, por reconhecer o papel dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho. Assim, já se pode observar que a prática da negociação co- letiva vem sendo objeto de discussão nos espaços internacio- nais e nacionais nas últimas décadas. Baraldi (2010) lembra que vários autores têm introduzido o termo negociação coletiva compreendendo-o como um processo de colaboração e ou de cooperação entre os diferentes atores socioeconômicos (capi- tal e trabalho) ou como mecanismo de harmonização ou geren- ciamento de conflitos. Sobre essa compreensão, Zajdsznajder (1988) polemiza dizendo que a negociação não é coletiva, consi- derando que ela se dá entre grupos pequenos. Porém, Baraldi (2010) problematiza se a ideia de coletividade é abolidora da representatividade. Nós corroboramos o questionamento de Baraldi ao levan- tarmos a questão: poderíamos no mundo do trabalho e no mer- cado de trabalho capitalista do século XXI, já no terceiro milê- nio, fazermos negociação coletiva sem utilizarmos o critério democrático da representatividade por categoria profissional? No campo da saúde, a negociação coletiva conquistou um espaço “privilegiado” que são as Mesas Permanentes de Negociação, objeto deste estudo, consideradas como uma ação política do Estado brasileiro. Desde o final da década de 1990, com maior ênfase a partir de 2004, o Ministério da Saúde (MS) vem estimulando a instalação de Mesas de Negociação do Trabalho como uma estratégia de gestão do trabalho, nas | 60 | instituições de saúde estaduais, municipais e federais. Vê-se, assim, que o MS aposta na representatividade como forma de materializar a negociação coletiva, instituindo um espaço de atendimento às demandas do coletivo de trabalhadores em saú- de, quando reinstalou em 2003, a Mesa Nacional de Negociação Permanente do Sistema Único de Saúde (MNNP-SUS) que foi constituída como fórum permanente de negociação entre tra- balhadores e gestores públicos e privados do SUS sobre todos os pontos pertinentes às relações de trabalho em saúde. Nessa perspectiva, observa-se que a instalação e a consolida- ção de mesas estaduais e municipais de negociação do trabalho na saúde, como previsto na Resolução nº 111, de 09 de junho de 1994, do Conselho Nacional de Saúde, tornou-se realidade em diversos estados brasileiros. Todavia, ainda se faz necessário caminhar outros passos em direção à consolidação de um Sistema Nacional de Negociação Permanente do Trabalho no SUS. Para tanto, faz-se necessá- rio fortalecer o trabalho das Mesas instaladas, e em funciona- mento, e apoiar a instalação de novas Mesas, entendendo-as como espaços legítimos de reflexões e discussões na busca de consenso entre os gestores e trabalhadores em conflito, sem deixar, no entanto, de contemplar os interesses da sociedade nos processos de negociação. Com base nas dimensões conceituais e nos marcos legais apontados, compreende-se a negociação coletiva como um ato político destinado a gerar viabilidade, mediante acordos duradouros e respeitados entre atores sociais que têm inte- resses, poder e recursos para enfrentar situações que os afe- tam, mutuamente, por meio de participação corresponsável e equânime. (SANTANA, 1997). Partindo dessa compreensão, o Observatório de Recursos Humanos em Saúde da UFRN procurou investigar o funcio- namento das Mesas de Negociação do Trabalho nas Regiões | 61 | Nordeste e Sul, atendendo a demanda do Departamento de Gestão e de Regulação do Trabalho (DEGERTS/MS), concreti- zando dessa forma, o convênio assinado entre a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/Brasil) e a FUNPEC da UFRN, por meio de Carta Acordo BR-LOA 1100088.00. Algumas ques- tões foram destacadas para a compreensão do objeto em estu- do, dentre as quais citam-se: Qual tem sido a repercussão do estímulo à reinstalação das Mesas de Negociação? Como ele tem se concretizado? As Mesas que foram instaladas estão em funcionamento? Quais são as dificuldades enfrentadas para garantir seu funcionamento? Quais foram as discussões mais presentes nas reuniões das Mesas? Essas são algumas das perguntas que orientaram a realização da pesquisa mais ampla da qual deriva este artigo, cujo objeti- vo consistia em realizar um diagnóstico do funcionamento das mesas de negociação do trabalho nas secretarias de saúde das Regiões Nordeste e Sul, tendo em vista apoiar o propósito do DEGERTS/MS, de fortalecer esses espaços de negociação do SUS. Reconhece-se, de antemão, que a instalação das Mesas de Negociação do Trabalho em Saúde pode ser vista como expe- riência que, de certa forma, mostra o amadurecimento das lutas por melhores condições de trabalho em saúde. Por essa razão, assume-se, na análise dos resultados da pesquisa, um posicionamento propositivo no sentido de que, como Estanque (2000,  p. 3), visualiza-se: As experiências de luta, mesmo quando os objetivos materiais não foram alcançados, não deixam por isso de ser experiências vividas, cujos efeitos, ao incidirem no plano da reconfiguração reflexiva das identificações, individuais e coletivas, incidem tam- bém nas condições de ação futura. | 62 | Caracterização metodológica da pesquisa Trata-se de uma pesquisa de natureza quantitativa e qualita- tiva, com dados coletados por meio de pesquisa documental e de entrevistas semi-estruturadas. A leitura dos documentos teve como propósito identifi- car e analisar o funcionamento das Mesas de Negociação do Trabalho, destacando seus principais problemas e avanços, ressaltando os temas mais frequentes ali discutidos. Os do- cumentos constituídos como privilegiados para este estudo foram as atas e as pautas das reuniões realizadas pelas Mesas nas duas regiões em análise. Foram também utilizadas como fontes de informações: portarias e ou resoluções de criação e de instalação das Mesas e as resoluções, protocolos e outros produtos referidos pelos informantes como resultado dos de- bates promovidos pelas Mesas. Para a realização das entrevistas, foi utilizado um roteiro em forma de questionário com questões fechadas e abertas, posto que se buscava identificar o maior número de infor- mações que os participantes das Mesas de Negociação do Trabalho pudessem oferecer. Foram entrevistados dois inte- grantes de cada Mesa, sendo um representante do segmento dos trabalhadores; e outro, um representante da gestão. Isso tentava garantir a fala dos dois atores que constituem as Mesas de Negociação do Trabalho: o trabalhador e a gestão. A análise dos dados da pesquisa documental foi feita, par- tindo-se das informações contidas nas atas e nas pautas das reuniões das Mesas de Negociação Permanente do Trabalho, tendo como caminho metodológico a cartografia simbólica dos temas e desafios constantes desses documentos – regis- tros tanto de reuniões ordinárias, quanto de extraordinárias das Mesas. Isso possibilitou a visualização contextual dos | 63 | conteúdos ali registrados, bem como, a leitura localizada das reuniões, conforme metodologia denominada de cartografia simbólica, desenvolvida por Santos (2001) e recriada pelos pes- quisadores para esta pesquisa. Resultados e discussão No período da coleta de dados da pesquisa, existia um maior número de Mesas inativas do que o quantitativo de Mesas ativas. A situação identificada pode ser vista como resultado da falta de apoio político à proposta de instalação das Mesas enquanto espaço para a negociação das relações de traba- lho (CASTRO et al., 2013). Considere-se que, em 2003, o XIX Congresso do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) determinou como uma de suas prioridades de ação: reconhecer a gestão de pessoas e as relações de traba- lho como eixo central e prioritário da atuação das três instân- cias gestoras. Nessa mesma perspectiva, o Conselho Nacional de Saúde (Conass) reafirmou como prioridade o debate sobre as questões referentes às políticas de recursos humanos para a saúde e apoiou a constituição das Mesas de Negociação como fóruns privilegiados para debater as questões relacionadas a essa política em todas as esferas de gestão do SUS (Protocolo 002/2003-MNNP-SUS). Todavia, apesar desses pronuncia- mentos oficiais de apoio à estratégia de instalação de Mesas de Negociação como espaços privilegiados para a discussão e pactuação das questões referentes às relações de trabalho, os dados encontrados revelam que a intenção não vem se trans- formando em ação e que a materialidade desses espaços re- quer maior atenção do MS. | 64 | Quanto à vinculação administrativa das Mesas investiga- das, foi observada maior concentração (66,6%) das Mesas de Negociação ativas na esfera da gestão municipal. Já em relação às Mesas de Negociação inativas, foi constado que 70% delas estão concentradas na esfera estadual. Esse dado merece re- flexão, considerando-se o papel das Secretarias Estaduais de Saúde de induzirem, de estimularem e de apoiarem os muni- cípios na implantação de políticas de valorização dos traba- lhadores e de modernização da gestão. A cartografia das atas revelou, também, que são vários os temas discutidos nas reuniões das Mesas, contudo, a grande maioria está inserida no contexto da gestão do trabalho. Entre os temas mais abordados, destacam-se: Elaboração e implan- tação do PCCS; segurança do trabalhador; excesso de jornada de trabalho; falta de médicos; saúde do trabalhador; precárias condições de trabalho; sistemas pouco inteligentes de produ- tividade; direito à insalubridade; necessidade de concursos públicos; situação do agente comunitário; trabalho precário; desobediência à legislação do trabalho; relação de poder entre as categorias profissionais. Os membros das Mesas também avaliaram que há baixa participação dos gestores e dos trabalhadores nas reuniões das Mesas, dificultando os processos de discussão. Também apontaram outros pontos que dificultam o trabalho das Mesas, tais como: § a gestão permanece negociando em outros espaços, fragili- zando a papel da Mesa enquanto espaço legítimo de negocia- ção, mesmo com a existência de tal Mesa; § a inexistência de espaço físico e de apoio administrativo para o funcionamento das Mesas; | 65 | § o pouco apoio do Ministério da Saúde e das secretarias de  saúde; § a instabilidade em relação à periodicidade das reuniões; § a pouca divulgação sobre o papel das Mesas e seu funcionamento; § o descumprimento do que foi pactuado e encaminhado pela  Mesa. Tendo em vista contribuir para a superação das dificulda- des apresentadas, relacionadas ao funcionamento das Mesas de Negociação do Trabalho, apresentam-se algumas suges- tões a seguir: § instalar Ações de Apoio ao trabalho das Mesas de Negociação do Trabalho em âmbito estadual e municipal; § realizar Oficina de Trabalho, promovida pelo Ministério da Saúde/Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS, com a presença dos coordenadores ou representações das Mesas estaduais e municipais, tendo em vista traçar um programa de apoio aos trabalhos delas; § definir espaço físico para o funcionamento da Secretaria da Mesa e para as reuniões. Essa proposta visa, além do adequa- do funcionamento da Mesa, a construção de uma identidade para esses espaços de negociação; § promover eventos periódicos de avaliação dos trabalhos das Mesas, por região, com o propósito de criar ambientes propícios ou de familiaridade com as questões ligadas à ne- gociação coletiva; § criar mecanismos que promovam o intercâmbio de experi- ências entre as Mesas; § construir espaço virtual que permita a publicação dos do- cumentos das diversas Mesas; | 66 | § apoiar-se em fundamentos legais, teóricos e práticos para implantação das deliberações das Mesas; § construir uma metodologia de avaliação permanente dos trabalhos das Mesas; § fomentar a relevância da transparência das ações das Mesas e a consequente divulgação de suas ações; § qualificar política e tecnicamente os participantes, de forma que possam conhecer os princípios que embasam os traba- lhos da Mesa, assim como os limites a que a Mesa está sujeita; § selecionar secretários executivos com suficiente preparo técnico para garantir o desenvolvimento dos trabalhos; § garantir a qualificação do pessoal de apoio administrativo; § garantir apoio técnico às Mesas, utilizando expertises externas, mas, também, utilizar as próprias experiências construídas; § fortalecer as Mesas de Negociação como espaços legítimos para a gestão dos conflitos relacionados ao campo da gestão do trabalho e da educação na saúde; § garantir o adequado registro das atas, pautas, protocolos e outros documentos que registram a atuação das Mesas; § estimular pesquisas que monitorem o funcionamento das Mesas estaduais, municipais e nacional; § garantir a presença de gestores com poder de decisão nas negociações da Mesa; § promover encontros com gestores de saúde, tendo em vista discutir princípios políticos da Mesa de Negociação e a ne- gociação enquanto modalidade de gestão, destacando quais podem ser os resultados positivos para a gestão; § garantir as articulações com as instâncias de controle social; § financiamento de projetos elaborados pelas equipes das Mesas de Negociação, tendo em vista a sua reinstalação ou apoio a alguma ação específica que apresente metas claras e objetivas. | 67 | É possível que o acolhimento das sugestões aqui apresen- tadas fortaleça o papel das Mesas de Negociação do Trabalho e iniba a possibilidade de elas se tornarem uma prática mera- mente cerimonial ou uma estratégia de governo para obter legitimidade nas suas decisões. Considerações finais Este estudo revelou a situação atual dos espaços de negocia- ção coletiva denominados Mesas de Negociação do Trabalho em Saúde. Os seus achados mostram que, mesmo enfrentan- do grandes dificuldades, como a ainda insuficiente cultura de negociação nas instituições de saúde, vem se obtendo avanço significativo na perspectiva de garantir espaços de negociação na administração pública. Todavia, alguns passos ainda precisam ser dados para aperfeiçoar a prática de negociação e para obter melhores resultados nas Mesas de Negociação do Trabalho no SUS. Dentre eles, destacam-se: buscar garantir o desenvolvimento de processos de capacitação e de qualificação em negociação coletiva, destinados aos gestores e trabalhadores participan- tes da Mesa e incentivar a pesquisa sobre negociação no setor público como forma de tentar constituir uma metodologia de ação com permanência e continuidade – criando, assim, um ambiente propício ou de familiaridade com as questões ligadas à negociação coletiva Os resultados dessa pesquisa deixam claro que a Mesa de Negociação do Trabalho deve ser compreendida como um espaço aberto para a prática de negociação coletiva. A gran- deza dessa iniciativa visa superar a cultura não democrática, | 68 | historicamente existente nas instituições e essa superação se constitui como o seu desafio primordial. Concluindo, faz-se pertinente destacar que não existem meios ou estratégias para garantir desempenhos positivos para todas as Mesas de Negociação instaladas, como foi possí- vel perceber nessa pesquisa. Todavia, é preciso ter claro que a prática da negociação exige a presença de diversos atores institucionais, reflexões sobre nossa cultura autoritária e, aci- ma de tudo, o reconhecimento de que a negociação coletiva é, fundamentalmente, um processo de troca de informações e de produção de relações trabalhistas voltadas para o bem co- mum da sociedade, nela incluídos gestores e trabalhadores. Esses pontos dão a dimensão da complexidade do que significa gerenciar processos de negociação coletiva em um país ainda em processo de consolidação democrática. | 69 | Referências BARALDI, Solange. Negociação coletiva em saúde: uma visão geral sobre o tema e suas características na administração pública no Brasil e em outros países. In: NOGUEIRA, Roberto Passos; BARALDI, Solange; RODRIGUES, Valdemar de Almeida. Tendências na evolução do emprego e nas relações de trabalho em saúde: situação internacional e no Brasil. Brasília: UnB, 2010. (Série Observação, 7). CASTRO, Janete Lima de et al. 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Condições de trabalho dos auxiliares de serviços gerais na perspectiva do Trabalho Decente Anicélia Cristina de Oliveira Daiany Oliveira Pitombeira Janete Lima de Castro Este artigo é parte do Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação de Gestão em Sistemas e Serviços de Saúde (UFRN), elaborado por Anicélia Cristina de Oliveira e Daiany Oliveira Pitombeira, sob a orientação da professora Janete Lima de Castro. | 73 | Introdução É pelo trabalho humano que o sujeito se contrapõe como su- jeito, num movimento realizado para dominar a realidade ob- jetiva: modifica o mundo e se modifica a si mesmo. (KONDER, 1992). “E o que é fundamental – faz sua própria história”. (KONDER, 1992, apud FRIGOTTO, 1995, p. 113). Para Marx (1984), o trabalho é um processo que se estabe- lece entre o homem e a natureza. É por meio do trabalho que o homem põe suas energias física e mental com o intuito de transformar a natureza e dela se apropriar numa forma útil para a sua própria existência e, ao atuar desse modo sobre a natureza com o propósito de modificá-la, ele modifica a sua própria natureza. Frigotto (2002 apud CASTRO; VILAR; LIBERALINO, 2012, p. 54) ressalta que “o trabalho é uma atividade vital ao homem, pois sem ela o ser humano não subsistiria”. De Masi (2000) diz que a sociedade industrial permitiu que milhões de pessoas agissem somente com o corpo, mas não lhes deixou liberdade para se expressar com a mente. Lembrando a linha de montagem, o citado autor destaca que os trabalhadores usavam as mãos e os pés, mas não usavam a cabeça. A sociedade pós-industrial, segundo De Masi (2000), ofereceria a liberdade do corpo e da alma. Na atualidade, a sociedade da Era da Informação, conforme a designa Castells (1999), caracterizada por mudanças e ino- vações da terceira revolução industrial, oferece a liberdade | 74 | de corpo e da alma, como preconiza De Masi? Quais foram as transformações ocorridas no mundo do trabalho? Segundo Castro (2006), essa é uma era de paradoxos, na me- dida em que avança para e com o desenvolvimento da socieda- de, mas, ao mesmo tempo, trouxe, também, graves prejuízos ao mundo do trabalho formal. Nesse mesmo sentido, Germano (2004 apud CASTRO, 2006) alerta para o fato de que o desempre- go massivo, a vulnerabilidade e a insegurança, em decorrência dos ataques desferidos às garantias e aos direitos sociais, sinali- zam para o desaparecimento do emprego formal. Por outro lado, Nogueira (2010, p. 18), informa que “as evidências apontam para a retomada do crescimento do estoque de servidores do Estado em diversos países, incluindo o Brasil”. Considerando a perti- nência das observações feitas pelos autores citados, é preciso reconhecer que o contexto apresenta singularidades e todo esse processo sinaliza no sentido de alterações estruturais vividas no cotidiano dos trabalhadores. (CASTRO et al., 2007). De meados da década de 1990 até os dias atuais, resultado de um cenário de instabilidade e de transformações nas relações de trabalho e no sistema ocupacional, a precarização do trabalho surge como um tema preocupante. A precarização das condições do trabalho tem aparecido com destaque nos estudos sobre mercados de trabalho no Brasil, independentemente de suas configurações regionais. Segundo Castro et al. (2007), a precarização pode ser identifi- cada de diversas formas, seja nos vínculos temporários, nas contratações terceirizadas; seja nas contratações de trabalho informal e outras. Os autores citados também destacam que trabalho precá- rio não é sinônimo de trabalho informal. Assim, precárias | 75 | condições de trabalho também podem ser encontradas no emprego de vínculo formal, regido pelas leis do trabalho. Estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudo Socioeconômicos (2003) aponta que as condições de trabalho, em geral, são desfavoráveis no que se refere aos serviços terceirizados. De acordo com os resultados eviden- ciados pelo citado estudo, os trabalhadores terceirizados recebem salários menores do que os trabalhadores concursa- dos, mesmo desenvolvendo as mesmas atividades e atuando no mesmo local de trabalho. Repullo Júnior (1997) menciona que o contrato de terceiros tem sido uma estratégia de reduzir custos por meio da explora- ção de relações precárias do trabalho ao invés de uma prática de redução de custos baseada no aumento da eficiência e da produtividade. O fato é que mesmo identificando evidências que apontam para a retomada do crescimento do estoque de servidores do Estado, conforme afirma Nogueira (2010), a contratação de prestadoras de serviços tem sido uma constante no setor público, principalmente, no que se refere ao pessoal da hi- gienização, comumente chamados de Auxiliares de Serviços Gerais (ASG). Esses trabalhadores, em sua maioria, desconhe- cem os seus direitos trabalhistas, têm baixa escolaridade e convivem com condições precárias para o desenvolvimento do seu trabalho. (CHILLIDA; COCCO, 2004). Segundo Silva et al. (2010), o trabalho de limpeza em am- biente hospitalar é uma das atribuições que mais refletem na segurança e na saúde dos trabalhadores desse ambiente. De acordo com a Comissão de Controle e Infecção Hospitalar (CCIH) do Ministério da Saúde (BRASIL,1994), o setor de hi- giene e limpeza hospitalar é o responsável por toda a retirada | 76 | de sujeiras, de resíduos indesejáveis e de microorganismos presentes no ambiente hospitalar, mediante a utilização de processo mecânico e químico. A principal condição do proce- dimento de limpeza hospitalar é a segurança dos pacientes e dos trabalhadores contra infecções e possíveis acidentes. Mas, quem são esses profissionais responsáveis pela higie- nização, chamados ASG? Como eles são contratados? A modali- dade de contrato interfere no trabalho desenvolvido por esses profissionais? Quais são os fatores que motivam e estimulam o bom desempenho desses profissionais? Eles reconhecem a importância do seu trabalho para o funcionamento de uma unidade hospitalar? Eles recebem algum tipo de capacitação sobre a importância da higienização na unidade hospitalar? Eles percebem as especificidades de uma unidade hospita- lar? Sabem qual é a diferença entre realizar o seu trabalho em um estabelecimento de saúde e a de realizar esse mesmo trabalho em estabelecimentos com outras características? Sob quais condições eles realizam seu trabalho no hospital? É possível inserir o trabalho desenvolvido pelos ASG nas di- mensões do Trabalho Decente preconizada pela Organização Internacional do Trabalho? Esses questionamentos motivaram o estudo sobre as condições do trabalho dos Auxiliares de Serviços Gerais de um Hospital Regional, no estado do Rio Grande do Norte, tendo como referência a proposta de Trabalho Decente da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Assim, considerando a importância do hospital na rede de serviços; considerando que sem a presença de trabalhadores atuando na higienização se torna impossível o funcionamento de qualquer unidade de saúde, defende-se a pertinência e se justifica a realização dessa pesquisa. | 77 | Procedimentos metodológicos Trata-se de um estudo, do tipo descritivo e exploratório, com abordagens quantitativa e qualitativa, realizado em três eta- pas: levantamento bibliográfico, realização de entrevistas e aplicação da técnica de grupo focal. A primeira etapa consistiu no levantamento bibliográfico sobre o tema, na qual foram utilizadas como fontes de dados secundários: artigos, livros, revistas e sites especializados, com o intuito de se obter maior domínio sobre o tema e, por conseguinte, utilizá-los como base para elaboração da análi- se. Segundo Mattar (2001), essa etapa do estudo permite aos pesquisadores um conhecimento sobre o tema, ajudando-os na construção dos objetivos, por isso é apropriado para as primei- ras etapas da pesquisa. Nas palavras de Minayo (1992, p. 97), esse momento projeta luz e permite “uma ordenação ainda imprecisa da realidade empírica”. Na segunda etapa, foram desenvolvidas as entrevistas indi- viduais seguindo um roteiro, previamente elaborado, contendo questões abertas e fechadas, com a finalidade de caracterizar o perfil dos ASG do Hospital Regional. Segundo Minayo (1992), o roteiro de entrevista difere no sentido tradicional do questionário porque este último pres- supõe hipóteses e questões bastante fechadas; já o roteiro é um instrumento para orientar a conversa com finalidade. Ele deve ser, portanto, um facilitador. Na terceira etapa, foi aplicada a técnica do Grupo Focal (GF). De acordo com Morgan (1997), o GF é um método de pesquisa qualitativa, com origem na técnica de entrevista em grupo. Caplan (1990 apud DIAS, 2000, p. 33) coloca que os GF são | 78 | “pequenos grupos de pessoas reunidas para avaliar concei- tos ou identificar problemas”. O GF se caracteriza por ser um procedimento de coleta de dados no qual o pesquisador tem a possibilidade de ouvir vários sujeitos ao mesmo tempo, por ser rápida e de baixo custo e por ser capaz de obter uma varie- dade de informações e de experiências, assim como estimular nos participantes a troca de sentimentos muitas vezes ador- mecidos nos relacionamentos interpessoais. Para a condução do GF foi utilizado um roteiro com pergun- tas abertas. É interessante destacar que a técnica do grupo focal permitiu aprofundar as questões abordadas nas entrevistas in- dividuais, revelar os significados que expressam o ponto de vista de quem foi pesquisado e fez emergir profundas diferenças nas experiências, nos sentimentos e nas expressões vivenciadas no fazer dos ASG. Para a análise das entrevistas foi utilizado o método da cartografia. Essa técnica consiste em mapear as informações em quadros (cartografia de significados) e subsidia leituras sistemáticas e analíticas. (SILVA, 2006). Santos (2001) considera a cartografia como um território de passagem entre as experiências humanas no espaço e a busca de produção de sentidos. Segundo esse autor, “os mapas são um campo estruturado de intencionalidades, uma língua franca que permite a conversa sempre inacabada entre a representação do que somos e a orientação que buscamos”. (SANTOS, 2001, p. 224). A cartografia também é utilizada por Nobre (2003, p. 69), que a considera como um procedimento de pesquisa capaz de “[...] apresentar e organizar os resultados obtidos em atividades de campo [...]”, permitindo que o pesquisador mapeie os dados e possa visualizá-los em conjunto. | 79 | Resultados e discussões Algumas características do perfil dos auxiliares de serviços gerais do Hospital Regional A pesquisa revelou que 62,5% dos Auxiliares de Serviços Gerais do hospital investigados são do sexo feminino e ape- nas 37,50% do sexo masculino. Esse percentual não difere do encontrado em relação à força de trabalho em saúde. Segundo Machado (2006), o processo de feminilização da força de tra- balho em saúde pode ser visualizado mesmo nas profissões historicamente masculinas, notadamente, entre os médicos, os cirurgiões-dentistas e os veterinários. Por outro lado, Vargas (1994), ressalta a segmentação por sexo do mercado de traba- lho e revela a maior inserção de mulheres nos empregos mais precários, sem condições de progressão profissional e com baixos salários. Também foi identificada que existe uma maior concentração de ASG nas faixas etárias entre 20-29 anos e 40-49 anos. Na fai- xa etária com mais de 60 anos, encontra-se o menor número de ASG. Situação possivelmente justificada pelas características do trabalho que exige esforço físico. A baixa qualificação profissional dos trabalhadores do ser- viço de higiene e de limpeza pôde ser observada durante a rea- lização da pesquisa. Foi verificado que 62,5% dos entrevistados têm o nível fundamental e 37,5% têm o ensino médio. Todos os ASG do hospital investigado foram contratados pela via da terceirização, com direitos trabalhistas assegu- rados. Foi identificado que a maioria desses trabalhadores está no hospital há, no mínimo, oito anos. Dos entrevistados, | 80 | apenas um tem o hospital como o primeiro local de trabalho. Os demais tiveram experiências como babá, ASG de empresa privada e na sede da prefeitura do município, garçom, costu- reira e empregada doméstica. Todos relataram que essa foi a primeira experiência no âmbito hospitalar. Dos ASG entrevistados, 93,75% revelaram estar satisfeitos com o trabalho. Segundo os ASG, eles estão satisfeitos porque gostam do que fazem; o trabalho é um meio de garantir o sus- tento do lar; eles saíram da situação de desempregados. Apenas 6,25% dos ASG revelaram insatisfação, justificaram suas res- postas salientando as limitadas condições para desenvolver o trabalho como, por exemplo, a falta de materiais e a inexistência de capacitações. Os entrevistados que referiram satisfação regular, ressal- taram as diferenças de tratamento dos demais profissionais com eles. Acham que o ASG não é respeitado por desenvol- ver atividades simples no hospital e pela ocupação não ter projeção social. A pesquisa evidenciou que os ASG têm clareza da importân- cia do seu trabalho no hospital e que a execução inadequada de suas atividades poderá colocar os usuários em risco. | 81 | Condições do trabalho x Trabalho Decente De acordo com Abramo, Bolzón e Ramos (2008), no contex- to de crise global do emprego e deterioração na condição de vida dos indivíduos, a OIT propôs em 2003, como estratégia de enfrentamento da precarização do trabalho, uma Agenda de “Trabalho Decente”. Tal agenda visa à parceria com países de todos os continentes para desenvolver programas e políticas que promovam condições dignas de trabalho no meio urbano e no meio rural. O Trabalho Decente é conceituado pela Organização Internacional do Trabalho (2013) como um trabalho produti- vo, adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, de equidade e de segurança, capaz de garantir uma vida digna, incluindo condições essenciais para a aniquilação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. Para a Organização Internacional do Trabalho (2013), o Trabalho Decente trata-se de um conceito amplo, que busca abranger todas as dimensões do trabalho e tem como objetivo o combate à precarização e à deterioração dos instrumentos de proteção e de inclusão social que busca fortalecer a noção de emprego de qualidade com garantia de direitos, ou seja, todas as pessoas que vivem do seu trabalho são sujeitos de direitos, de proteção social, de voz e de representação. O Trabalho Decente não é apenas um tema de justiça social, mas também de desenvolvimento socioeconômico. Adequar as condições de trabalho contribui não só para melhorar as con- dições de vida dos trabalhadores e aumentar o bem-estar, mas também para elevar à produtividade a mão de obra empregada. | 82 | Um dos aspectos centrais do conceito de Trabalho Decente consiste numa remuneração adequada condizente com o tra- balho realizado, que assegure aos trabalhadores, de ambos os sexos, o sustento próprio e da família, e que seja livre de quaisquer formas de diferenciação que tenham por base a discriminação. A Agenda Nacional de Trabalho Decente propõe gerar, para homens e mulheres, acesso a um emprego produtivo lastreado na igualdade de oportunidade e nos direitos ao trabalho, na proteção social e na promoção do diálogo social. No contexto dessa proposta, a OIT apresenta 10 dimensões que podem ser consideradas diretrizes para as discussões do Trabalho Decente. São elas: § oportunidade de emprego; § rendimentos adequados e trabalho produtivo; § jornada de Trabalho Decente; § combinação entre trabalho, vida pessoal e vida familiar; § trabalho a ser abolido; § estabilidade e segurança no trabalho; § igualdade de oportunidades e de tratamento no emprego; § ambiente de trabalho seguro; § seguridade social; § diálogo social e representação de trabalhadores e empregadores. A cartografia simbólica de Santos (2001), constituída para a análise das transcrições do grupo focal, permitiu a siste- matização dos dados para interpretá-los, tendo a visibilida- de do conjunto das informações colhidas nas entrevistas. Isso possibilitou a análise dos dados à luz das dimensões | 83 | apresentadas pela OIT para a melhor compreensão da pro- posta de Trabalho Decente. A análise dos depoimentos do grupo focal revela alguns problemas que interferem no desenvolvimento do trabalho no hospital investigado. Os problemas e dificuldades mais destacados foram: condições inadequadas de trabalho; insu- ficiência de material de limpeza; instalações hidrossanitárias danificadas e a inexistência de protocolos de higienização e de segurança no trabalho, dentre outros. Em relação à satisfação no emprego e aos rendimentos, os entrevistados assim se posicionam: Estou (satisfeita), porque sustento meus filhos com meu salário. Eu era faxineira e hoje sou ASG com uma carteira assinada e o meu salário vem todo mês, só que no contracheque de um vêm 800 reais e uns pontinhos e no meu e de outras vem 700 e uns pontinhos. (Informação verbal, entrevistado n. 8). [...] os meus salários anteriores eram um verdadeiro salário mí- nimo. Com este de hoje estou satisfeita sim, graças a Deus estou. (Informação verbal, entrevistado n. 16). Por outro lado, alguns depoimentos expressam a insatis- fação dos trabalhadores com os baixos salários, muitas vezes, insuficientes para eles e para seus familiares, além de expor a indignação pela diferenciação salarial existente, pois alguns recebem mais do que outros. Para a Organização Internacional do Trabalho (2010), a re- muneração adequada proporciona aos trabalhadores uma vida | 84 | digna, com garantia de sustento próprio e de seus familiares, com igualdade salarial para homens e mulheres e férias anuais. A pesquisa revelou, conforme já informado no item que apresenta o perfil dos ASG, que a terceirização é a modalida- de de contrato que emprega todos os ASG entrevistados. Para efeitos desse trabalho, entende-se terceirização como a prática de ceder a outrem a responsabilidade de um serviço de uma empresa a outra, possibilitando que a empresa se centre na realização de algum serviço, havendo diminuição dos gastos e aumento na produção. (CHILLIDA; COCCO, 2004). Segundo Repullo Júnior (1997), a terceirização tem sido mais uma tática de redução de custos, pela exploração de re- lações precárias do trabalho, do que uma redução dos custos baseada no aumento da eficiência e da produtividade. Ao discutirem a sua condição de terceirizados, os parti- cipantes expressaram aceitação da forma de contrato, não havendo questionamento sobre isso. O que importa, segundo eles, é ter a carteira assinada e garantir o sustento de seus fa- miliares. Destaca-se que em nenhum momento foi cogitada a expressão “estabilidade no emprego”. Para os ASG, o contrato, mesmo terceirizado, assegura o direito aos seguros-desem- prego, aposentadorias, licenças e férias. Apenas não assegura a estabilidade. Paradoxalmente, “a estabilidade e segurança no trabalho” é uma das dimensões que caracteriza o Trabalho Decente da OIT. As informações prestadas pelos entrevistados demonstra- ram que, a despeito de a proposta de aumento e da criação de postos de trabalho para geração de empregos formais para ho- mens e mulheres, sem diferenciação, está contemplada entre | 85 | as dimensões desenhadas para o Trabalho Decente da OIT, as “oportunidades de emprego” não são muitas. No que diz respeito à jornada de trabalho, apesar de não te- rem sido identificados descontentamentos sobre esse item, os entrevistados relataram ter dificuldades de conciliar o traba- lho com a vida familiar, por passarem muito tempo no hospital e trabalharem por escala. Normalmente, o tempo disponível é utilizado para descansar para o outro dia de trabalho e/ou para resolver assuntos pessoais. Nesse sentido, parece ser possível afirmar que a dimensão “combinação entre trabalho, vida pes- soal e vida familiar” vai de encontro às condições de trabalho dos ASG entrevistados. Se a jornada de trabalho não foi apresentada como um mo- tivo de descontentamento, o mesmo não pode ser dito para a ausência de local de repouso para os ASG. Segundo eles, exis- tem momentos em que precisam descansar e não encontram espaços específicos. De acordo com um dos entrevistados: Já chegou dia de passar mal e ter que pedir arrego nas camas das enfermeiras que eu fico até com vergonha, mas minha pressão estava altíssima. (Informação verbal, entrevistado n. 7). Sobre oportunidades para participar de processos educa- tivos, tendo em vista a qualificação para o desempenho das atividades sem riscos, as entrevistas revelaram que as opor- tunidades não existem com frequência, conforme se relata no depoimento a seguir: | 86 | Nós dois que somos novatos, que estamos aqui há cinco meses, nunca tivemos treinamentos, aprendemos com os mais antigos. (Informação verbal, entrevistado n.16). Segundo a Norma Regulamentadora N° 32, que trata da Segurança e Saúde no trabalho em serviços de saúde, o empre- gador deve assegurar capacitação aos trabalhadores, antes do início das atividades e de forma continuada, devendo ser mi- nistrada: a) sempre que ocorram mudanças das condições de exposição dos trabalhadores aos riscos biológicos; b) durante a jornada de trabalho; c) por profissionais de saúde familiarizados com os riscos inerentes aos agentes biológicos. (BRASIL, 2005). A educação nos serviços de saúde deve visar o desenvol- vimento de todos os trabalhadores, na perspectiva de atuali- zá-los, constantemente, para que realizem seu trabalho sem colocar o usuário ou a si próprio em risco. A inserção dos trabalhadores nos processos educacionais deve ser democrá- tica, contemplando a todos sem exceção. Caso não se contem- ple essa premissa, coloca-se em situação de vulnerabilidade a dimensão de igualdade de oportunidades e de tratamento no emprego, preconizada pela OIT. No que concerne às relações interpessoais, no ambiente de trabalho, os entrevistados relataram falta de respeito e alguns alegaram ter sofrido agressões verbais e discriminação pela maioria dos profissionais ou, até mesmo, pelos próprios cole- gas que desenvolvem a mesma função. Conforme depoimento: | 87 | Eu mesma já fui humilhada por [...] e por [...]. Ela me mandou pegar uma agulha do chão, eu não peguei, aí [...] começou a gritar comigo. Muita gente não respeita a gente. (Informação verbal, entrevistado n. 10). Ainda sobre as relações interpessoais, os entrevistados destacaram que os outros profissionais os tratam com indi- ferença e não respeitam o trabalho executado por eles. Esse desconforto foi discutido durante os dois grupos focais. Todos os ASG compartilham da mesma indignação e expuseram que já foram obrigados a tomar banho para poderem entrar no refeitório, como relata um dos entrevistados: [...] a gente já foi barrada no refeitório, agora não, mas antes para a gente entrar tinha que tomar banho, tinha que até mudar a rou- pa. Só que a gente não é tão contaminada como eles que pegam em doença, trocam curativo e vão almoçar do jeito que estão, [...] com a mesma roupa. Já chegaram a nos chamar de lambe chão. (Informação verbal, entrevistado n. 1). A discriminação no ambiente de trabalho, segundo Silva et al. (2010), pode ocasionar aos trabalhadores doenças mentais como a depressão. De acordo com a OIT é necessário o respeito a todos os empregos e ocupações para manter um bom relacionamento profissional, devendo se abolir qualquer tipo de discrimina- ção. Além do respeito à equidade, promover a igualdade de direitos e o diálogo social. | 88 | Outra dimensão da OIT, para contextualizar o Trabalho Decente, diz respeito ao ambiente de trabalho seguro que sig- nifica garantia da proteção do trabalhador contra as doenças, sejam ou não profissionais, e contra os acidentes de trabalho (GUIMARÃES, 2012). A realização dessa pesquisa evidenciou vários pontos que sugerem ambientes inadequados, tornando o trabalho inseguro. De acordo com os entrevistados, alguns Equipamentos de Proteção Individual (EPI) não se enquadram nos serviços que eles realizam como, por exemplo, as luvas de procedimentos que substituem as luvas grossas de borracha. Ademais, o hospital não oferece EPI suficientes para todos os auxiliares. Quando oferece, muitos deles não os utilizam por descuido. Alerta-se que, muitas vezes, os objetos perfu- rocortantes são negligenciados por vários profissionais que os deixam em lugares inadequados, conforme esclarece o de- poimento seguinte: [...] tem um lugar específico para guardar o material, mas acha mais fácil colocar no cesto. Imagina se um técnico de enfermagem coloca uma coisa dessa no chão, chega uma criança inocente e pega para brincar. [...] Não custa nada colocar na caixinha. (Informação ver- bal, entrevistado n. 5). Para os ASG, o uso de EPI é muito importante, considerando que eles são diariamente expostos aos riscos biológicos, ao con- tato com secreções, com sangue, com vômitos e com materiais perfurocortantes contaminados. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (2010), fazem-se necessárias inspeções do trabalho e do ambiente de trabalho, para garantir que esse esteja propício para o | 89 | trabalhador executar suas atividades, sem oferecer riscos. A instituição estará sujeita a multas quando encontradas falhas, além de ser obrigada a assegurar o trabalhador, caso ocorra acidente de trabalho. Ademais, a Norma Regulamentadora n° 32 relata que as medidas de proteção devem atingir a todos os trabalhadores dos serviços de saúde, mesmo aqueles que não trabalhem di- retamente na assistência como, por exemplo, as equipes de manutenção, de higiene, de limpeza e de lavanderia, etc. Um dos pontos importantes dessa norma é a exigência do uso de materiais perfurocortantes com dispositivos de segurança para minimizar os acidentes com risco biológico. Concluindo, ressalta-se que para a OIT abordar o tema de Trabalho Decente significa falar de respeito para todos os empregos e ocupações; de bom relacionamento profissional, abolindo qualquer tipo de discriminação; de promoção da igual- dade de direitos ao diálogo social e da remuneração para profis- sionais que exercem a mesma função, respeitando a equidade. | 90 | Considerações finais A realização dessa pesquisa permitiu a descrição do perfil e a análise das condições de trabalho dos ASG. Foi possível identificar as formas de contratação, suas responsabilidades, capacitações, motivações, grau de satisfação com os profis- sionais, locais onde desenvolvem suas atribuições e a impor- tância do seu trabalho. Ademais, destacam-se as precárias condições de trabalho as quais os ASG estão sujeitos, por exemplo: a ausência de proces- sos educacionais voltados para esses trabalhadores; a ausência de incentivos financeiros, além de ambientes de trabalho des- confortáveis; salários diferenciados; exposição a riscos por contaminação; dificuldades em executar suas atividades por falta de materiais, dentre outras. Nesse contexto, não se pode afirmar que existem condições de trabalho que se enquadrem nas dimensões de Trabalho Decente, preconizadas pela OIT. Para a OIT, abordar o tema de Trabalho Decente significa falar de respeito para todos os empregos e ocupações e a neces- sidade de uma articulação de políticas públicas e de atitudes dos diversos atores sociais, sendo um processo complexo, mas de realização plenamente possível. O objetivo é enfatizar que, para reduzir a pobreza e construir sociedades mais equitati- vas, não é suficiente apenas gerar postos de trabalho, porém é necessário que esses postos de trabalho sejam produtivos, adequadamente remunerados, exercidos em condições de li- berdade, de equidade e de segurança. | 91 | Ao concluir esse trabalho, as autoras têm a clareza da ne- cessidade dos ASG de serem ouvidos e vistos como parte do processo de trabalho. Como também a perceptibilidade que políticas públicas, na perspectiva de criação de empregos e trabalhos decentes, devem ser implantadas. | 92 | Referências ABRAMO, Laís; BOLZÓN, Andrea; RAMOS, Christian. Agenda do trabalho decente. In: BUAINAIN, Antônio Márcio; DEDECCA, Claudio S. Emprego e trabalho na agricultura brasileira. Brasília: IICA, 2008. p. 487-490. BRASIL. Ministério da Saúde. Coordenação de controle de infecção hospitalar: processamento de artigos e superfícies em estabelecimentos de saúde. 2. ed. Brasília,1994. BRASIL. 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Dissertação (Mestrado Ciências Humanas) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1994. Avanços e desafios da saúde do trabalhador no Brasil Tatiana de Medeiros Carvalho Mendes | 97 | Introdução O campo da Saúde do Trabalhador busca compreender as re- lações entre o trabalho e o processo saúde/doença por meio da realização de estudos, de ações de prevenção, de assis- tência e de vigilância aos agravos à saúde relacionados ao trabalho, com o objetivo de reduzir as doenças ocupacionais e acidentes de trabalho e proporcionar melhor qualidade de vida aos trabalhadores. Esse campo incorpora os pressupostos da concepção da saúde como direito de cidadania garantido pelo Estado, con- forme explicitado na Constituição Federal e regulamentado na Lei Orgânica de Saúde. Considera a saúde e a doença como processos dinâmicos que mantêm forte relação com os modos de desenvolvimento produtivo da humanidade em determina- do momento histórico. A Saúde do Trabalhador adota a premissa de que a forma de inserção dos trabalhadores nos espaços de trabalho contribui de forma decisiva para formas específicas de adoecer e de mor- rer, devido aos diversos riscos ambientais e organizacionais aos quais os trabalhadores estão expostos em função de sua inserção nos processos de trabalho, sendo esse um ponto fundamental que deve ser contemplado na atenção integral à saúde. Para esse campo temático, trabalhador é toda pessoa que exerça uma atividade de trabalho, independentemente de sua forma de inserção no mercado, inclusive na forma de traba- lho familiar e/ou doméstico. Nessa perspectiva, esse campo inclui trabalhadores autônomos, informais e desempregados, | 98 | servidores públicos, empregados domésticos, trabalhadores avulsos, trabalhadores agrícolas, bem como contempla ações de combate ao trabalho infantil e a proteção ao trabalho do adolescente-aprendiz. As práticas de Saúde do Trabalhador são consideradas atri- buições do Sistema Único de Saúde (SUS) desde a promulgação da Constituição de 1988. Elas articulam conhecimentos de di- versos campos disciplinares, das ciências humanas, da saúde, das ciências exatas, bem como dos saberes e experiências dos trabalhadores. O fundamento de suas ações é a articulação multiprofissional, interdisciplinar e intersetorial. Este artigo abordará conceitos básicos na área de Saúde do Trabalhador, como se organiza a Política de Saúde do Trabalhador no Brasil, com destaque para o trabalho em saúde, para as relações entre condições de trabalho e saúde do tra- balhador da saúde, bem como para as políticas desenvolvidas para os profissionais de saúde no Brasil nessa área temática. Breve histórico da saúde do trabalhador A organização de uma atenção diferenciada à Saúde do Trabalhador surge, no mundo, no século XVIII, com a Revolução Industrial na Inglaterra, onde as condições insa- lubres nas fábricas foram percebidas como determinantes na saúde e associadas à morte e ao adoecimento dos traba- lhadores. Pressionados pelos prejuízos econômicos e pelas reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de trabalho, industriais passaram a contratar médicos, surgindo, assim, a Medicina do Trabalho voltada, essencialmente, para | 99 | selecionar e manter a higidez da força de trabalho, sendo o trabalhador apenas objeto de ações que eram centradas no ambiente de trabalho. (BRASIL, 2006). Os serviços de medicina do trabalho eram realizados por pessoas de inteira confiança do empregador e que estavam dispostos a defendê-lo, sendo que a prevenção e a responsa- bilidade pela ocorrência dos problemas de saúde, resultantes dos riscos do trabalho, deveriam ser tarefas eminentemente médica. Esse modelo mostrou-se insuficiente pelo reducionis- mo científico e conceitual, visto que desconsiderava aspectos psíquicos e sociais do trabalhador. No século XX, as duas grandes guerras mundiais e os es- forços de reconstrução econômica e social pós-guerra acarre- taram mudanças nos processos produtivos, as quais fizeram surgir novos problemas e necessidades de saúde relacionadas ao trabalho. A necessidade de proteger os trabalhadores dos efeitos adversos do trabalho levou à incorporação de novos profissionais à equipe, caracterizando a prática da Saúde Ocupacional, que passou a ter uma abordagem multidisci- plinar, incorporando saberes e práticas de outras discipli- nas como Toxicologia, Higiene, Ergonomia e Engenharia de Segurança no Trabalho. No entanto, apesar da abordagem multidisciplinar, o trabalhador continuava sendo objeto das ações de saúde, que tinham como foco o controle dos riscos nos ambientes de trabalho, objetivando garantir a produção e a produtividade. (PAIM; ALMEIDA-FILHO, 2014). Nos anos 1950, a melhoria das condições de vida das pessoas, sob a égide de políticas públicas voltadas para o estado de bem -estar social e a reorganização dos movimen- tos sociais, particularmente na Europa, permitiu emergir | 100 | questionamentos sobre as condições de trabalho e as reivindi- cações por melhores condições de trabalho e qualidade de vida. O movimento de reorganização social e política ocorrido no Brasil, nos anos 1970-1980, exerceu forte influência na cons- trução do campo da Saúde do Trabalhador no país, trazendo a discussão da contribuição do trabalho enquanto determinante das condições de vida e de saúde da população. Dessa forma, os serviços públicos passaram a ser responsáveis pelo cuida- do dos trabalhadores, os quais passaram a ser considerados partícipes e sujeitos das ações de saúde, rompendo-se, assim, com as práticas tradicionais da Saúde Ocupacional, que já não conseguiam responder a todos os problemas de saúde relacio- nados ao trabalho. (MENDES; DIAS, 1991). O campo da Saúde do trabalhador surgiu como uma alterna- tiva à prática da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional. Dentre outros aspectos, esse campo considera o trabalha- dor polo central e sujeito ativo no processo saúde-doença. (LACAZ, 2007). Também inclui aspectos sociais, econômicos, políticos, ambientais e biológicos, aumentando, assim, o escopo dos determinantes da saúde. Convém destacar que os modelos Saúde Ocupacional e Saúde do Trabalhador coexistem, em âm- bito nacional e mundial, possuindo níveis de atuação distintos de acordo com o entendimento de cada modelo em relação ao processo saúde-doença relacionado ao trabalho. A regulamentação e o controle das condições e dos ambien- tes de trabalho foram atribuições exclusivas do Ministério do Trabalho entre as décadas de 1930 e 1980. Essa realidade modi- ficou-se a partir de meados dos anos 1980, com o processo de redemocratização do país, culminando com a promulgação da nova Constituição Federal. | 101 | A Constituição Federal de 1988 incorporou o trabalho como um dos determinantes do conceito ampliado de saúde e atri- buiu ao Sistema Único de Saúde (SUS) a responsabilidade de executar ações de saúde do trabalhador no país. (BRASIL, 1988). A Lei Orgânica de Saúde nº 8.080/90 regulamentou os dispo- sitivos constitucionais, reafirmando a Saúde do Trabalhador como responsabilidade do SUS e a definindo como um conjun- to de atividades, realizadas por meio de ações de Vigilância Epidemiológica e de Vigilância Sanitária, voltadas para promo- ção e proteção da saúde dos trabalhadores, bem como à recupe- ração e à reabilitação dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho. (BRASIL, 2004a). Política de saúde do trabalhador no Brasil As políticas públicas de proteção social à saúde dos trabalha- dores constituem intervenções do Estado, com ações voltadas para garantir que o trabalho contribua para a qualidade de vida e a realização pessoal e social, sem causar danos à saúde do trabalhador. Essas ações são responsabilidade de diferentes áreas do governo, que devem trabalhar de forma integrada, no entanto, observa-se, na prática, a realização de ações de forma desarticulada e fragmentada. A Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PNSST), instituída pelo Decreto nº 7.602 de 7 de novembro de 2011, tem por objetivos a [...] promoção da saúde e a melhoria da qualidade de vida do tra- balhador e a prevenção de acidentes e de danos à saúde advindos, relacionados ao trabalho ou que ocorram no curso dele, por meio da eliminação ou redução dos riscos nos ambientes de trabalho”. (BRASIL, 2011, p. 9). | 102 | A PNSST tem como princípios norteadores: a universali- dade; a prevenção; a precedência das ações de promoção, de proteção e de prevenção sobre as de assistência, de reabilitação e de reparação; o diálogo social e a integralidade. Essa política é de responsabilidade dos Ministérios do Trabalho e Emprego, da Saúde e da Previdência Social, sem prejuízo da participação de outros órgãos e instituições que atuem na área. Ela define as competências de cada um desses ministérios, os quais são responsáveis pela implementação e execução dessa política, e busca, portanto, superar a fragmentação e a desarticulação en- tre as diversas áreas envolvidas com a Saúde do Trabalhador, enfatizando a necessidade de abordagens transversais e inter- setoriais na busca da promoção da melhoria da qualidade de vida e saúde do trabalhador. (BRASIL, 2011). Na área da saúde, o documento orientador para aten- ção integral à saúde do trabalhador é a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), a qual foi instituída pela Portaria nº 1.823, de 23 de agosto de 2012. São considerados sujeitos dessa política todos os trabalhadores, independentemente de sua localização, forma de inserção no mercado de trabalho, vínculo empregatício, sendo incluídos, inclusive, aposentados e desempregados, devendo ser prio- rizados, entretanto, pessoas e grupos em situação de maior vulnerabilidade. (BRASIL, 2012). A PNSTT segue os seguintes princípios e diretrizes: uni- versalidade, integralidade, participação da comunidade, dos trabalhadores e do controle social, descentralização, hierar- quização, equidade e precaução, considerando a transversali- dade das ações de saúde do trabalhador e o trabalho como um dos determinantes do processo saúde-doença. (BRASIL, 2011). | 103 | Considerando a complexidade do campo de saúde do traba- lhador e a necessidade de garantir a integralidade na atenção, a PNSTT destaca a necessidade do fortalecimento da Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT) e da realização de ações e serviços voltados à saúde do trabalhador em todas as instân- cias e pontos da rede de atenção à saúde do SUS, estruturando a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), no contexto da Rede de Atenção à Saúde (RAS). A RENAST foi instituída no final de 2002, por meio da Portaria nº 1.679/GM, devido à necessidade de articular, no âmbito do SUS, ações de prevenção, de promoção e de recu- peração da saúde dos trabalhadores em todos os níveis de complexidade do sistema. Foi desenvolvida de forma articu- lada entre o Ministério da Saúde, as Secretarias Estaduais de Saúde, Distrito Federal e Municípios, na busca da garantia de atenção integral à saúde dos trabalhadores, buscando, tam- bém, parcerias com órgãos que têm interface com a saúde do trabalhador. (BRASIL, 2002). Como estratégia, a RENAST propõe a integração e a articu- lação das linhas de cuidado da atenção básica, da média e alta complexidade nos três níveis de gestão – nacional, estadual e municipal, tendo como eixo os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), a rede de serviços sentinelas e os mu- nicípios sentinelas em saúde do trabalhador. (BRASIL, 2009). Os CEREST constituem polos irradiadores da cultura espe- cializada, subentendida na relação processo de trabalho x pro- cesso saúde-doença, e assumem a função de suporte técnico e científico desse campo do conhecimento. Desenvolvem ações articuladas aos demais serviços da rede SUS e tem como fun- ção dar subsídio técnico para o SUS, nas ações de promoção, | 104 | de prevenção, de vigilância, de diagnóstico, de tratamento e de reabilitação em saúde dos trabalhadores. A organização da rede sentinela e dos municípios senti- nelas visa desenvolver metodologias e organizar o fluxo de atendimento aos trabalhadores adoecidos e acidentados do trabalho em todos os níveis de atenção do SUS, sendo os ser- viços sentinelas serviços assistenciais de média e alta comple- xidade, responsáveis pelo diagnóstico, pelo tratamento e pela notificação de agravos relacionados ao trabalho; e municípios sentinelas, àqueles responsáveis por garantir o acesso do tra- balhador às ações integradas de vigilância e de assistência, em todos os níveis de atenção do SUS. (BRASIL, 2009). A RENAST é composta por 208 Centros Estaduais e Regionais de Referência em Saúde do Trabalhador e por uma rede sentinela de mais de 1.000 serviços médicos e ambula- toriais de média e alta complexidade, responsáveis por diag- nóstico e por notificação de agravos relacionados ao trabalho no Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN-NET). A notificação é um direito assegurado ao trabalhador nas legislações trabalhista, previdenciária e sanitária. A notifi- cação de agravos relacionados ao trabalho no SINAN-NET é compulsória, ou seja, obrigatória para profissionais e serviços de saúde. (BRASIL, 2014a; 2014b). Ela garante os dados necessá- rios para pesquisas sobre as doenças ocupacionais e acidentes ocorridos com os trabalhadores, subsidiando o planejamento de políticas públicas que visem à diminuição de agravos rela- cionados ao trabalho. Apesar da notificação compulsória dos agravos relaciona- dos ao trabalho, na área de saúde do trabalhador as informa- ções são escassas, com evidente sub-dimensionamento das | 105 | estimativas epidemiológicas. São bastante utilizados dados provenientes da Previdência Social, por meio da comunica- ção de acidente de trabalho (CAT), no entanto, esses são pouco abrangentes, visto que se referem, unicamente, aos trabalha- dores vinculados formalmente ao mercado de trabalho. Merece destaque o estímulo ao controle social, à parti- cipação da comunidade e dos trabalhadores presente na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora. O Controle Social da Saúde do Trabalhador é exercido pela Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador (CIST), na condição de Câmara Técnica responsável pelo assessoramento dos Conselhos de Saúde. As CIST, de caráter consultivo e de as- sessoramento, estão previstas na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 e foram criadas com a finalidade de articular políticas e programas de interesse para a saúde, cuja execução envolva áreas não compreendidas no âmbito do SUS. Além das CIST, o controle social é exercido, também, nas Conferências de Saúde e Conferências de Saúde do Trabalhador. (BRASIL, 2004a). Apesar dos avanços, ainda há muitos desafios a serem su- perados na área de Saúde do Trabalhador no Brasil. Apesar de compulsória, fica evidente a subnotificação dos agravos re- lacionados ao trabalho, a fragmentação das ações, bem como a concentração da realização de ações de vigilância, de pro- moção, de proteção e de recuperação no âmbito dos CEREST. É fundamental que o controle social seja mais efetivo e regu- lar, que profissionais, em todas as instâncias do SUS, passem a olhar os trabalhadores como sujeitos a um adoecimento es- pecífico, e que haja fortalecimento e ampliação da articulação intersetorial na busca de condições de trabalho dignas. | 106 | Trabalho em saúde e suas implicações na saúde do trabalhador Para melhor compreensão das especificidades do processo de trabalho em saúde, faz-se necessário, inicialmente, compre- ender como o trabalho é encarado enquanto conceito teórico. O trabalho é um processo no qual o homem transforma a na- tureza. É o conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim. Sempre foi muito valorizado em todas as sociedades, pois gera conhe- cimentos, riquezas materiais, satisfação pessoal e desenvol- vimento econômico. Marx (1984), ao escrever sobre o trabalho e sua inserção conformadora da lógica capitalista, definiu força de traba- lho como sendo a capacidade que o homem tem de executar o trabalho. Essa capacidade o diferencia dos outros animais, que modificam os elementos da natureza com o único objetivo de sobreviver. O homem é capaz de concebê-lo, previamente, antes de executá-lo, imagina e prevê seus resultados e fina- lidades. Essa capacidade adquiriu valor econômico e social para a produção de bens necessários à sobrevivência humana. Segundo o autor, é no processo de trabalho concreto e imediato que os homens, ao mesmo tempo, atuam sobre a natureza e se apropriam dela, modificando-a e se modificando a si próprios. O trabalho exerce papel significativo na estruturação psí- quica e nos processos de formação da identidade dos indiví- duos, ele vai além da força de trabalho por uma remuneração, podendo ser causa de sofrimento quando o trabalhador não consegue transformá-lo em prazer. (SZNELWAR; UCHIDA; LANCMAN, 2011). | 107 | Atualmente, a realidade do trabalho evidencia uma trans- formação significativa, caracterizada por uma transição entre o modelo taylorista/fordista – que vigorou entre os anos 1950 e 1970 –, cuja organização do trabalho se caracterizava pela dominância do trabalho prescrito, com pouca autonomia dos trabalhadores, para um modelo tecnológico, baseado na inte- lectualização do trabalho, com destaque para o conhecimento técnico e a qualificação profissional. (BRASIL, 2007). O trabalho em saúde é parte do setor de serviços, possui características comuns ao processo de produção no setor ter- ciário da economia, ao mesmo tempo em que tem caracterís- ticas especificas. É um trabalho essencial para a vida humana, sendo o produto indissociável do processo que o produz, é a própria realização da atividade. É majoritariamente um tra- balho coletivo, realizado por diversos profissionais de saúde. Tem características do trabalho assalariado, tipo artesanal, compartimentalizado/fragmentado, com divisão parcelar do trabalho. (PIRES, 2000). Schraiber (1999) destaca a divisão de trabalho nas equipes de saúde onde, muitas vezes, os profissionais estão realizan- do ações isoladas e justapostas, sem articulação e conheci- mento do trabalho do outro. Essa divisão de trabalho levou à complementaridade e à interdependência entre os trabalhos especializados, o que pode gerar tensão quando o trabalho é multiprofissional e os agentes possuem autoridades desiguais. O processo de trabalho em saúde tem acarretado sofrimen- to, estresse e ansiedade nos trabalhadores da saúde, sendo bastante significativo o número de agravos psíquicos entre esses trabalhadores. (CASTRO et al., 2014). Vários fatores têm | 108 | causado o adoecimento do trabalhador: falta de infraestrutu- ra, que acarreta estresse, problemas ergonômicos, acidentes e contaminações; excesso de burocratização nos serviços; verti- calização das relações interpessoais; contato com o sofrimento do usuário, dentre outros. No setor saúde no Brasil há um grande número de profis- sões e especialidades, além das profissões não regulamentadas. Grande parte desses profissionais trabalha no SUS. São regis- tradas, atualmente, 14 ocupações na área pelo Ministério do Trabalho, por meio da Classificação Brasileira de Ocupações. Devido às precárias condições de trabalho, muitos profissio- nais de saúde, cuja função é cuidar dos usuários, têm adoecido devido às condições de trabalho a que são submetidos. A presença do trabalho precário é uma realidade na área da saúde no Brasil. São desrespeitados direitos trabalhistas e sociais em situações de emprego mantidas pela administra- ção pública. Três principais conceituações de precariedade e de informalidade do trabalho são encontradas: na primeira, déficit ou ausência de direitos de proteção social, comumente assegurados pela legislação trabalhista e de seguridade social; na segunda, instabilidades de vínculos (contratos de curta du- ração ou bem delimitados no tempo); e, na última, condições de trabalho de determinados setores da economia que criam vulnerabilidade social para os trabalhadores aí inseridos, sen- do esse o conceito adotado pela Organização Internacional do Trabalho. (NOGUEIRA; BARALDI; RODRIGUES, 2004). O documento do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (BRASIL, 2004), que trata da gestão de pessoas, destaca o fato de que, nessa área, o principal problema identificado é a au- sência de Planos de Cargos Carreira e Salários, somado a uma | 109 | indefinição de uma política para o campo, e a ausência de ações de planejamento e de programação, acarretando remuneração insuficiente dos trabalhadores, diversidade de contratos e pre- carização das relações de trabalho. A ausência de concursos na área gera rotatividade e desmotivação. Em pesquisa realizada com gestores municipais, sobre o processo de adoecimento de seus trabalhadores, Broto e Dalbello-Araújo (2012) inferiram que, na concepção dos gesto- res pesquisados, há, por vezes, uma naturalização do próprio processo de adoecimento dos trabalhadores do setor da saúde, visto que consideram como fatores que adoecem o trabalha- dor: contato com o usuário em momentos críticos, caráter de urgência dentro de ambientes de trabalho em saúde, desco- nhecimento da dinâmica e da proporção do adoecimento dos trabalhadores, a sobrecarga de trabalho, devido a vários vín- culos, e o fato dos trabalhadores lidarem com questões socio- políticas, econômicas e estruturais para as quais nem sempre podem dar soluções definitivas, apenas paliativas. O adoecimento do trabalhador, provocado pelo trabalho, é algo preocupante e não deve ser visto como um fenômeno naturalizado, visto que restringe as possibilidades de se tra- balhar estratégias de enfrentamento dessa situação. Os ges- tores devem identificar e intervir em processos de trabalho que estão causando adoecimento dos trabalhadores da saúde. | 110 | Políticas de saúde do trabalhador do SUS A Organização Mundial de Saúde (OMS) elegeu o decênio 2006-2016 como a década de valorização do trabalho e dos trabalhadores da saúde, motivados, entre outras razões, pelo fato desses estarem adoecendo sistematicamente e em um processo crescente. Considerando que o processo de trabalho pode ser tam- bém um determinante no processo saúde-doença dos traba- lhadores da saúde, podendo gerar saúde ou doença, acidente e morte do trabalhador, é imprescindível evitar que o traba- lhador, cujas atividades visam à promoção e à recuperação de outrem, adoeça devido às condições e/ou processos de trabalho a que é submetido. Publicada em 2003, a Política Nacional de Humanização (PNH), que é uma política transversal em toda a rede SUS, aposta na inclusão de trabalhadores, usuários e gestores na produção e na gestão do cuidado e dos processos de trabalho. Reconhece a importância do trabalhador diante das dificuldades no contexto do trabalho, que vêm causando desmotivação, desumanização e comprometimento da saúde. (BRASIL, 2004b). A PNH lança mão de várias diretrizes como a valorização do trabalho e do trabalhador em saúde, por meio da promoção de ações que assegurem a participação dos trabalhadores nos processos de discussão e decisão; ações de incentivo e valo- rização da jornada integral ao SUS, do trabalho em equipe, e da participação em processos de educação permanente que qualifiquem a ação e a inserção dos trabalhadores na rede SUS. Visando a promover melhorias nas condições de trabalho do trabalhador do SUS e o cumprimento dos requisitos da | 111 | legislação em vigor no país, a Mesa de Negociação Permanente do Sistema Único de Saúde instituiu as diretrizes da Política Nacional de Promoção da Saúde do Trabalhador do Sistema Único de Saúde (PNPST-SUS). Essa política vincula-se às áreas de Saúde do Trabalhador e da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde e estabelece uma articulação estratégica para o desenvol- vimento do SUS e o compromisso dos gestores, trabalhadores e empregadores com a qualidade do trabalho e com a valorização dos trabalhadores. (BRASIL, 2011a) A PNPST-SUS é regida pelos seguintes princípios: univer- salidade, abrangendo todos os trabalhadores do SUS; democra- tização das relações de trabalho, para garantir a participação dos trabalhadores nas tomadas de decisões; integralidade da atenção à saúde do trabalhador do SUS; intersetorialidade; qualidade do trabalho; humanização do trabalho em saúde; ne- gociação do trabalho em saúde e negociação dos trabalhadores. É uma política bastante ampla que aborda aspectos quanto à melhoria de ambientes, organizações do trabalho, promoção e assistência ao trabalhador, necessidade de educação per- manente, adoção de Planos de Carreiras, Cargos e Salários, visando à valorização, à melhoria da qualidade de vida e à redução da vulnerabilidade e dos riscos relacionados à saúde do trabalhador do SUS. É necessário que se implementem as políticas que visam a melhorias das condições de trabalho e à desprecarização do trabalho no SUS, visto que os direitos consagrados na Constituição devem ser garantidos a todos os trabalhadores, sejam eles do setor público, sejam eles do setor privado. O Estado como empregador tem o dever de garantir a seus em- pregados todos os direitos relacionados ao trabalho. | 112 | Considerações finais Apesar de todos os avanços, as ações na área de Saúde do traba- lhador ainda apresentam limitações e impasses. São vários os desafios para que o SUS incorpore, de forma efetiva, em suas concepções, paradigmas e ações, o trabalho como um dos de- terminantes do processo saúde-doença, como também para que as ações de Saúde do trabalhador sejam realizadas de for- ma intra e intersetorial, cumprindo-se o preceito constitucio- nal e as prescrições das Leis Orgânicas de Saúde. Nesse contexto, o tema saúde do trabalhador da área da saú- de é de grande relevância, visto que as exigências no mundo do trabalho têm refletido na qualidade de vida, na saúde dos trabalhadores da saúde, nas suas relações com os profissio- nais da equipe, bem como nas suas relações com os usuários. É preciso estar atento para que o processo de trabalho não ve- nha causar o adoecimento dos trabalhadores cujas atividades visam à promoção e à recuperação da saúde de outrem, sendo essencial um modelo de organização dos serviços de saúde ali- cerçado em condições sociopolíticas, materiais e humanas, que proporcione um trabalho de qualidade para quem o exerce e para quem recebe a assistência. É necessária uma aproximação efetiva entre todos os ór- gãos que tratam dessa temática, a fim de que se possa intervir nos processos de trabalho objetivando a eliminação ou contro- le dos fatores de risco presentes nos ambientes ou resultantes dos processos/organizações de trabalho, de forma a garantir ações que busquem a ampliação da qualidade de vida e da aten- ção integral à saúde de todos os trabalhadores. | 113 | Referências BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Estruturação da área de recursos humanos nas secretarias de saúde dos Estados e do Distrito Federal. Brasília: CONASS, 2004. 220 p. (CONASS documento, v.1) ______. Gestão do trabalho na saúde. Brasília: CONASS, 2007. 116 p. (Coleção Progestores – para entender a gestão do SUS, 5). BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, n. 191-A, 5 out. 1988. BRASIL. 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Estudo acerca do perfil: uma contribuição para as políticas de valorização profissional Rafael Rodolfo Tomaz de Lima Janete Lima de Castro Este artigo é parte do Trabalho de Conclusão do Curso de graduação de Gestão em Sistemas e de Serviços de Saúde (UFRN), elaborado por Rafael Rodolfo Tomaz de Lima, sob a orientação da professora Janete Lima de Castro. | 119 | Introdução Tendo como premissa os princípios da promoção e da proteção à saúde, e da prevenção de agravos, seja no âmbito individual, seja no âmbito coletivo, o Programa Saúde da Família (PSF) foi legitimamente criado no ano de 1994 e se tornou eixo estrutu- rante dos sistemas municipais de saúde no ano de 2006, pas- sando a se chamar Estratégia Saúde da Família (ESF). Macedo et al. (2010) ressalta que, com a criação da ESF, o Ministério da Saúde tomou a iniciativa de reorientar a assistência do Sistema Único de Saúde (SUS), na tentativa de inverter o mo- delo biomédico e hospitalocêntrico para um modelo regido pelas ações da atenção básica. De acordo com a Portaria n.º 2.488 GM/MS, de 21 de outubro de 2011, a ESF é a principal porta de entrada e meio de comuni- cação do usuário com a rede de atenção à saúde. (BRASIL, 2011). O cuidado integral, realizado pela equipe multiprofissional (médico, enfermeiro, odontólogo, técnico/auxiliar de enferma- gem e agente comunitário de saúde) em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) com ESF, ou no domicílio dos usuários, é capaz de valorizar a singularidade e a inserção sociocultural de cada sujeito, produzindo um vínculo entre o serviço e o usuário. Em Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte (RN), a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), desde a sua criação, por meio da Lei n.º 3.394, de 21 de janeiro de 1986, optou por garantir uma assistência à saúde voltada para as ações da aten- ção básica, sendo estas desenvolvidas por equipes de caráter multiprofissional. (MASSUD, 2001). | 120 | Nos primeiros anos da SMS, a rede de atenção básica era composta por sete UBS: UBS Bela Vista, UBS Igapó, UBS Nazaré, UBS Aparecida, UBS Mirassol, UBS Pajuçara e UBS Frigonat (atualmente, conhecida como UBS Monte Líbano), construídas com recursos próprios do município e que atua- vam sob a lógica de definição de uma área de abrangência, an- terior ao que foi preconizado pelo Ministério da Saúde para a ESF. Com o avanço do processo de municipalização no início dos anos 1990, ocorreu o repasse de 27 UBS da Secretaria de Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte (SESAP) para a SMS. (MASSUD, 2001). As ações da ESF, como afirma Rocha (2000), foram implan- tadas em Natal no ano de 1997. Ainda segundo a autora, as pri- meiras UBS com ESF foram instaladas no Distrito Sanitário Oeste devido às más condições sócio-sanitárias encontradas, como também a pouca existência de serviços de saúde nesse Distrito. Para organizar a atenção básica, foi criada em 06 de outubro de 2005 a Lei Complementar n.º 62, que garantiu a ESF como eixo estruturante do SUS em Natal, definindo as atribui- ções dos profissionais das equipes e da coordenação municipal da ESF. (NATAL, 2005). Entretanto, um estudo realizado por Rocha et al. (2006) revelou que a ESF no município não tem funcionado de ma- neira eficaz no que diz respeito aos princípios e às diretrizes preconizados pelo Ministério da Saúde, principalmente, no que se refere ao acesso do usuário à UBS com ESF, que vem se tornando cada vez mais difícil. De acordo com os dados divulgados pela coordenação mu- nicipal, no ano de 2012, o nível de cobertura da ESF, em Natal, era inferior a 40%. Ao todo, existiam 116 equipes de Saúde da | 121 | Família distribuídas em 37 UBS com ESF. Desse total de equi- pes, 54 estavam incompletas, mais especificamente, sem o pro- fissional médico, comprometendo a resolutividade de alguns problemas e ocasionando insatisfação em outros profissionais da equipe e de usuários. Apesar dos importantes avanços da atenção básica em saúde, alguns impasses e problemas ainda persistem e precisam ser discutidos para que soluções sejam encontradas. Dentre esses principais problemas, destacam-se a formação inadequada dos profissionais para atuarem na ESF e a frágil definição de crité- rios técnicos e de compromissos sociais para a escolha e a atua- ção dos gerentes dos serviços básicos de saúde. (BRASIL, 2010). Para que a ESF alcance o máximo de eficiência, de eficácia e de efetividade possível é preciso que as UBS possuam, den- tre outras coisas, gerências profissionais qualificadas e que procurem, acima de tudo, garantir uma excelente prestação de serviço à saúde da população. Com o incremento do processo de municipalização e de des- centralização do SUS, a capacidade gerencial de unidades de saúde entrou em questão e passou a ser definida como um dos fatores limitantes para a melhoria da produtividade e da quali- dade da prestação de serviços na atenção básica. (BRASIL, 1995). Portanto, faz-se necessário que as UBS sejam gerencia- das por profissionais capacitados, na perspectiva de que o trabalho seja realizado de forma reflexiva – ação e reflexão, diferentemente do trabalho de tomar conta, fundamentado somente no cumprimento de atividades administrativas e burocráticas. (BRASIL, 1995). De acordo com Castro e Castro (2001), um bom gerente, de qualquer serviço de saúde, é aquele comprometido com os | 122 | objetivos finais da organização em que atua, sendo capaz de desenvolver de maneira pertinente as suas habilidades e seus conhecimentos gerenciais. Na ESF, o gerente qualificado é aquele que, além de possuir conhecimento técnico, deve estar atento para a dinâmica socio- cultural do território em que o serviço de saúde está inserido. Ademais, deve atuar na perspectiva de desenvolver uma ges- tão democrática e participativa, abordando e resolvendo pro- blemas inerentes à comunidade. (FERNANDES; MACHADO; ANSCHAU, 2009). Todavia, em todo o país, a capacidade gerencial de unidades de saúde da rede de atenção básica, que façam parte da ESF, ou não, é cada vez mais insatisfatória, sendo atrelada ao sucate- amento de equipamentos e a pouca qualificação dos recursos humanos. (RAMIRES; LOURENÇÃO; SANTOS, 2004). Ferreira (2004) ressalta que essa situação se torna ainda mais grave de- vido à inexistência de autonomia gerencial que, na maioria das vezes, ocasiona a improvisação na tomada de decisões. A importância da ESF para a política de saúde nacional jus- tifica a realização do presente estudo, que tem o propósito de conhecer quem são os profissionais que estão gerenciando as UBS com ESF no município de Natal. O seu objetivo consiste em identificar o perfil desses gerentes, identificar a qualifi- cação profissional, identificar as competências e habilidades exigidas para o desempenho de suas funções, de acordo com a percepção dos atores entrevistados, bem como quais são as dificuldades para desempenhá-las. | 123 | Percurso metodológico Esta pesquisa é de natureza quali-quantitativa e foi realizada na Secretaria Municipal de Saúde de Natal. O público alvo foi composto pelos gerentes das unidades da rede de atenção bási- ca, que possuem ESF, nos Distritos Sanitários Norte I e Norte II. Neste texto, o termo gerente é referente ao cargo de diretor. A escolha das UBS com ESF, nesses dois Distritos Sanitários, é justificada por três motivos: por terem sido pioneiros na for- mulação de critérios para a ocupação dos diretores nas unida- des de atenção básica; por concentrarem o maior número de UBS com ESF em Natal; por parte dessas unidades de saúde funcionar como campo de estágio para o curso de graduação em Gestão em Sistemas e Serviços de Saúde. Para a atividade de campo, foram viabilizados contatos pré- vios com os gerentes das UBS com ESF, na tentativa de discutir a importância do estudo, bem como para definir a data e o local de aplicação do instrumento a ser utilizado. A operacionaliza- ção ocorreu entre os meses de julho e agosto de 2012, por meio da aplicação de questionários semiestruturados, combinando perguntas abertas e fechadas. Do total de 21 UBS com ESF, que compõem os Distritos Sanitários Norte I e Norte II, foram visitadas 13 unidades e, por conseguinte, entrevistados 13 gerentes. Quatro unidades não possuíam gerentes, somente administradores; em outras quatro, não foi possível manter contato prévio, pois nelas não havia linha telefônica no período de operacionalização da ati- vidade de campo. | 124 | A análise dos dados coletados ocorreu de duas maneiras. Na análise dos dados qualitativos, os significados das respostas fo- ram interpretados com base no referencial teórico da Análise de Conteúdo proposto por Bardin (1977), por meio do qual se bus- cou conhecer o conteúdo que está por trás das palavras, bem como conhecer outras realidades por intermédio das mensa- gens. Quanto aos dados quantitativos, a análise se deu por meio da construção de um banco de dados no Statistical Package for Social Science for Windows (SPSS), um software para análise esta- tística dos dados. Esse banco permitiu caracterizar o perfil dos gerentes que compõem o público alvo dessa pesquisa. Resultados e discussão A partir da análise feita com os dados encontrados na pesqui- sa, percebe-se que boa parte das UBS com ESF investigada no município de Natal é gerenciada por profissionais do sexo fe- minino (69%) com faixa etária entre 50 e 59 anos (46%). Nas duas últimas décadas, o mercado de trabalho e, por con- seguinte, o SUS, passou por diversas transformações. Dentre essas, destaca-se o aumento da inserção da mulher no merca- do de trabalho, representando uma significativa expansão e contribuição para melhor entendimento das especificidades do setor saúde. (WERMELINGER et al., 2010). De acordo com Machado, Oliveira e Moyses (2011), 70% da força de trabalho em saúde no nosso país é composta por mulheres. Ainda segundo a autora, estudos revelam que no Brasil essa mudança é de forte impacto, principalmente, nas | 125 | profissões mais tradicionais, como a Medicina e a Odontologia. Na Medicina, por exemplo, na década de 1970, as mulheres re- presentavam 11% da categoria; nos anos 1990, já eram 33% e se estima que, nos próximos vinte anos, as mulheres possam representar 50% da profissão médica. Não diferentemente das profissões que estão diretamente ligadas com a assistência prestada aos usuários, os cargos ad- ministrativos e gerenciais do setor também são predominante- mente ocupados por profissionais do sexo feminino. Segundo Moreno et al. (2011), as mulheres representam cerca de 79%, contrapondo-se a 21% de representação masculina. Quanto ao nível de escolaridade dos gerentes, todos os entrevistados (100%) possuem nível superior de ensino, sen- do que, desse total, 31% possuem apenas graduação e 69%, pós -gra duação do tipo Lato Sensu. Entre os graduados, 39% possuem formação em cursos do campo das Ciências Sociais; enquanto que 23%, formação no campo das Ciências da Saúde. Dentre os pós-graduados, 45% possuem pós-graduação no cam- po das Ciências Sociais e 33%, no campo das Ciências da Saúde. Apesar de uma pequena representatividade quanto à gra- duação e à pós-graduação desses gerentes na área da saúde, é importante ressaltar que todos possuem nível superior. Sendo assim, essa parcela de trabalhadores acompanha a tendência nacional do mercado de trabalho da saúde que, com o passar do tempo, está elevando, cada vez mais, o nível de escolarida- de dos seus profissionais. De acordo com Machado, Oliveira e Moyses (2011), estima-se que, no Brasil, cerca de 45% do setor saúde é composto por trabalhadores com nível superior. | 126 | Ademais, o fato desses gerentes já possuírem nível supe- rior, torna-se um facilitador e, ao mesmo tempo, incentiva- dor para a implantação de políticas de educação permanente. Sabe-se que, hoje em dia, uma das exigências do mercado de trabalho é a mão de obra qualificada, principalmente, para a gerência dos serviços de saúde, sejam de caráter público, sejam de caráter privado. A inserção de novas tecnologias, dentre outros fatores, no processo de trabalho desenvolvido no interior dos serviços de saúde, desencadeia a busca por um novo perfil profissional. Os trabalhadores devem estar adaptados às mudanças do setor, bem como conscientes de que terão as suas atribuições espe- cíficas ampliadas, sendo exigidos cada vez mais. (MACHADO; OLIVEIRA; MOYSES, 2011). Dessa forma, o processo de trabalho desenvolvido pela Equipe de Saúde da Família, no nível de atenção que é caracte- rizado como porta de entrada do SUS, estaria sendo coordena- do por um profissional preparado para garantir a organização do serviço, bem como, preparado para garantir de maneira eficiente a assistência à saúde da população. Em Natal, a qualificação profissional para os gerentes de UBS com ESF é uma necessidade referida por eles mesmos, como afirma o entrevistado n. 21: A SMS deveria ter a sensibilidade de capacitar os gerentes, para que sejamos facilitadores entre a macrogestão (nível central) e a gestão local (atenção básica). (Informação verbal). Na maioria dos relatos (84%), o critério utilizado para a ocupação do cargo foi a indicação do gerente distrital. Do total, 69% estão assumindo o cargo pela primeira vez. | 127 | Desse quantitativo, 31% estão assumindo o cargo há mais de cinco anos e 46% têm o tempo de exercício equivalente entre menos de um ano e dois anos. De acordo com eles, a SMS não ofertou nenhum processo de capacitação para que assumissem o cargo de gerente nas UBS com ESF. Ao serem questionados sobre as suas atribuições, perce- beu-se que os gerentes não possuem muita clareza quanto as suas definições. Primeiro, porque não há um documento orga- nizado pela SMS que defina as atribuições específicas desses profissionais e, segundo, porque de acordo com os entrevista- dos, eles desempenham diversas funções no dia a dia. O número insuficiente de pessoal nas UBS com ESF faz com que os gerentes se desdobrem na tentativa de garantir a organização do serviço. De acordo com esses profissionais, há um acúmulo de atividades pela falta de um auxiliar admi- nistrativo; em alguns casos, também não há administrador e, pela falta de profissionais para desempenhar funções es- pecíficas, como um arquivista e um regulador para exames e consultas especializadas. Na falta desses profissionais, os gerentes acabam desempe- nhando, também, essas funções, como podemos ver no relato dos entrevistados n. 3 e n. 17: Eu aqui na unidade faço de tudo um pouco. Eu faço o gerencia- mento de pessoal, organizo os relatórios com as informações que devem ser entregues para o nível central da SMS e coordeno e participo das reuniões das equipes. Além de ser reguladora, ad- ministradora, farmacêutica, telefonista, digitadora, motorista, faço manutenção na infraestrutura da UBS, atuo como assistente social e ainda faço a entrega do leite. (Informação verbal). | 128 | Segundo os entrevistados, dentre as suas atribuições, des- taca-se o gerenciamento de materiais e insumos, a organização de reuniões para a avaliação contínua do processo de trabalho e o gerenciamento de pessoal. André e Ciampone (2007), afir- mam que essas atribuições são inerentes ao modelo tradicional de administração e de assistência à saúde, onde os cargos ge- renciais atuam sob a lógica do exercício de atividades exclusi- vamente burocráticas. Com isso, os gerentes desenvolvem um papel controlador e centralizador, tendo as suas visões limita- das e totalmente voltadas para dentro dos serviços de saúde. O gerenciamento de pessoal, definido como uma atribuição, também é destacado nesta pesquisa como uma das principais dificuldades encontradas pelos gerentes para desempenharem as suas funções. Eles alegam que há uma dificuldade para ar- ticular e para negociar com os profissionais, principalmente, com os que possuem dupla jornada de trabalho. Há, também, a falta de compromisso dos profissionais perante os usuários, pois alguns possuem resistência e não conseguem se adaptar às mudanças do serviço, bem como não querem exercer as suas reais atribuições. Sabe-se, conforme Santana (1999), que o sucesso de qual- quer organização de saúde depende do desempenho individual e da dedicação de cada profissional. Se situações semelhantes a essas, de desinteresse profissional e de desinteresse com a coletividade, ocorrem, cabe ao gerente exercer o seu papel de líder, articulando, orientando e estimulando os trabalhadores para que se sintam valorizados e desempenhem um bom tra- balho. (ANDRÉ; CIAMPONE, 2007). Além disso, há a escassez de recursos humanos, tanto na área administrativa, como foi mencionado anteriormente, | 129 | como na área assistencial, principalmente, de profissionais médicos. Vilar, Germano e Germano (2011) ressaltam que a au- sência do médico nas Equipes de Saúde da Família em Natal, como de outros profissionais, faz com que o processo de tra- balho desenvolvido na ESF não se torne eficaz. Outras dificuldades, enfrentadas pelos gerentes, referem-se à falta de apoio institucional da SMS, sobretudo da coordenação municipal da ESF e da gerência distrital, e à falta de autonomia devido à centralização da tomada de decisões e ao excesso de burocracia existente na SMS. O atual modelo de gestão, alta- mente rígido e verticalizado, encontrado no nível central dessa instituição de saúde, bem como nos seus estabelecimentos, é decorrente da administração pública implantada em meados do século XIX, cujos princípios norteadores foram a impesso- alidade, o formalismo, o controle rígido dos processos adminis- trativos, dentre outros. (CASTRO, 1999). Ainda segundo Castro (1999), a máquina pública não vem acompanhando as transformações e inovações que ocorrem no mundo, tornando-se cada vez mais lenta e ineficiente. Em decorrência disso, as organizações públicas perderam a noção do seu principal objetivo, que é dar respaldo às necessi- dades da sociedade. Na área da saúde, isso implica, diretamen- te, na qualidade da assistência ofertada à população. As más condições de trabalho, devido à falta de manutenção da estrutura física das UBS com ESF, como também dos equipa- mentos; a falta de informatização (computadores e internet) para a operacionalização das ações em saúde, também foram dificuldades destacadas pelos gerentes. Apesar disso, a maio- ria (77%) afirma estar plenamente satisfeita com o trabalho que desenvolve na sua função de gerente. | 130 | Quando questionados sobre as habilidades e competências que um gerente de uma UBS deve ter, os entrevistados afirma- ram o seguinte: O gerente deve estar capacitado e, principalmente, ter bastante experiência acumulada no exercício da função para lidar com as dificuldades e responsabilidades da UBS. (Informação verbal). O gerente deve ter um conhecimento básico sobre Saúde Pública, deve ter “jogo de cintura” para negociar e resolver problemas dos profissionais e usuários. (Informação verbal). O gerente deve desempenhar o seu papel de líder: ser articulador, flexível, coordenar e ter autonomia. (Informação verbal). Diante desses depoimentos, percebe-se que o perfil do gerente idealizado pelos entrevistados está em discordância com o perfil do gerente encontrado nesse estudo. Os atuais gerentes, como já foi dito, em sua maioria, não possuem uma capacitação específica para gerenciar um serviço de saúde. Ademais, atuam com dificuldades de líder de equipe, con- forme o entendimento dos entrevistados, considerando que não conseguem articular e negociar com os profissionais das Equipes de Saúde da Família, sendo essa uma das principais dificuldades identificada. Além disso, não possuem autonomia suficiente para gerenciar as unidades como um todo, devido ao modelo de gestão existente na SMS. | 131 | Considerações finais À guisa das considerações finais, considera-se que estudos so- bre perfis profissionais, assim como esse, são capazes de aju- dar na formulação de critérios para a ocupação dos cargos e para a criação de políticas de valorização profissional ou de educação permanente. No ano de 1993, o projeto de Desenvolvimento Gerencial de Unidades de Saúde do SUS (GERUS), proposto pelo Ministério da Saúde, foi criado para a qualificação técnica e administrativa dos gerentes das UBS, aumentando a capacidade gerencial para conseguir mudanças nas práticas sanitárias e de atenção à saúde. A partir disso, experiências exitosas foram alcançadas, in- clusive no município de Natal. Na atual conjuntura política do SUS, onde a atenção básica e a ESF são o eixo estruturante das formas de cuidado, inclusive sendo base para a organização da Rede de Atenção à Saúde (RAS), tais como a Rede Cegonha e a Rede de Atenção Psicossocial, processos de capacitação se- melhantes ao GERUS devem ser implantados, na tentativa de garantir a organização da assistência. Para tal, devem-se buscar parcerias com as demais insti- tuições de saúde (SESAP e/ou Ministério da Saúde) e com as instituições de ensino superior. Contudo, também deve haver uma mudança no atual modelo de gestão encontrado no nível central da SMS e nos seus estabelecimentos de saúde. Deve ser implantada uma forma de gestão que abra espa- ço para as discussões coletivas no processo de trabalho, re- solvendo problemas e satisfazendo profissionais e usuários, configurando-se como uma gestão efetivamente participativa. Além de romper, assim, com a verticalização das ações, dando autonomia aos gerentes e implantando o planejamento local. | 132 | Referências ANDRÉ, Adriana Maria; CIAMPONE, Maria Helena Trench. Desafios para a gestão de unidades básicas de saúde. Revista de Administração em Saúde, v. 9, n. 34, p. 16-21, mar. 2007. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo.1. ed. Lisboa: Edições 70, 1977. BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Desenvolvimento gerencial de unidades básicas de saúde do Distrito Sanitário – Projeto GERUS. Brasília, 1995. BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n.º 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da atenção básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). In: BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE. Saúde legis: Sistema de Legislação da Saúde. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2012. 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A nova concepção de saúde apontado no Art.196 da Constituição Brasileira não se reduzia à ausência de doença, mas a uma vida com qualidade. Muitas foram as dimensões com as quais o estado brasileiro se comprometia: promover, proteger, cuidar, recuperar, rea- bilitar, enfim, produzir saúde. O conceito ampliado de saúde traz consigo um novo significado para o cuidado. Estava posto um dos maiores desafios da reforma sanitária: preparar profissionais para o cuidado integral e generalista, considerando que a formação de recursos humanos para a saúde no Brasil tem perpetuado modelos essencialmente conservadores de conhecimentos fragmentados, centrados na doença, pautada em especialidades que supervaloriza proce- dimentos e equipamentos de apoio diagnóstico e terapêutico. Não restava dúvida que o cenário exigia uma nova ver- são para a formação em saúde, uma política pública em que | 138 | a atualização tecnocientífica fosse apenas um dos aspectos da qualificação das práticas e não seu foco central. A forma- ção deveria englobar aspectos de produção de subjetividade, produção de habilidades técnicas e de pensamento, além do adequado conhecimento do SUS. (BRASIL, 2003) Destarte, o primeiro problema seria superar a visão cartesia- na da mente como uma coisa separada do corpo e do mundo so- cial das pessoas, ou seja, a educação separada da vida. Problema que já era apontado por Paulo Freire desde a década de 1960. O segundo seria a estruturação curricular pautada em “gra- des”, ou seja, disciplinas que loteiam territórios do conheci- mento, em que cada educador se mantém preso ao seu campo disciplinar, restrito ao repasse de seus conteúdos, sem se sen- tir responsável pela formação integral do educando; portanto, uma prática separatista focalizada nas partes constitutivas, retalhando a visão da totalidade. Outro agravante se caracteriza pelo desencantamento con- temporâneo do educador pelo ato de educar; assim, apenas en- sinar, transmitir conhecimentos, cumprir tarefas acadêmicas, é mais fácil. Tem se tornado preocupante a rotina acadêmica de forma mecanizada e repetitiva, pautada apenas em produtivi- dade, em publicações, sem estímulo à criatividade, tornando a prática educativa para o cuidado em saúde, tediosa e exaustiva, não significante para o discente. Enfrentamos um racionalismo pedagógico exagerado. Freire (2006), em plena ditadura, mas com profunda sabedoria pedagógica, já dizia que sem o envol- vimento total do educador, ou seja, sem sua implicabilidade afetiva e efetiva, o processo de aprendizagem é prejudicado. Diante desses desafios assumidos pelo estado brasileiro, desde o início da Reforma Sanitária, quando em seu artigo 200, | 139 | inciso III, a Constituição Federal de 1988 atribui ao SUS a compe- tência de ordenar a formação na área da Saúde (BRASIL, 1988), não restava dúvida sobre a necessidade de que a mudança edu- cacional não se restringisse ao campo da formação em saúde. Necessária também seria a transformação das práticas dos pro- fissionais que já estavam formados, atuando nos serviços, daí a necessidade de responsabilização com a mudança, não só das Instituições de ensino, sob a égide do Ministério da Educação, mas também da educação dos serviços, ou seja, das instituições de saúde que compunham o sistema de saúde brasileiro. Nesse sentido, a legislação do SUS, em sua regulamenta- ção, apontou a responsabilização dos dois ministérios, educa- ção e saúde, com a formulação das políticas de formação em saúde, instituindo, na Lei 8080 de 19 de setembro de 1990, a Comissão Intersetorial de Recursos Humanos para Saúde, além de afirmar a responsabilização do SUS com sua ordena- ção. (BRASIL,  1990). Pela primeira vez, no Brasil, o Ministério da Saúde tinha como responsabilidade legal, junto com o Ministério da educação, a formulação de políticas orienta- doras da formação, do desenvolvimento, da distribuição, da regulação e da gestão dos trabalhadores da saúde. Assim, nesse âmbito, novos cenários vêm sendo exigidos e construídos a partir dos atuais dispositivos legais, tanto no âm- bito da educação quanto na saúde. As Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos da Área da Saúde, homologadas pelo Ministério da Educação a partir de 2001, orientaram novos currículos na graduação dos profissionais, coerentes com a necessidade indicada pelo Ministério da Saúde de promover mudanças na formação em saúde, com ênfase na integrali- dade da atenção. Além disso, temos a Declaração Mundial | 140 | da UNESCO sobre Educação Superior para este século XXI, emitida em Paris e a Política de Educação Permanente insti- tuída pelo Ministério da Saúde desde 2003, deflagrada pela Norma Operacional Básica de Recursos humanos para o SUS (NOB- RH/SUS – Resolução CNS nº. 330, de 4 de novembro de 2003) e homologada pelo Presidente do Conselho, o Sr. Ministro da Saúde, através da Resolução Conselho Nacional de Saúde Nº 335, de 27 de novembro de 2003. (BRASIL, 2004) Dando seguimento às conquistas nacionais, em 2004 foi homologada a Portaria 198/2004 do Ministério da Saúde, por meio da qual ficou instituída a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS) como estratégia do Sistema Único para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor, atualizada pela Portaria GM/MS de nº 1996 de 2007. (BRASIL, 2007). A PNEPS definiu diretrizes a serem seguidas pelas institui- ções de ensino que formam profissionais para o SUS, objetivan- do promover a mudança nas práticas de formação e nas práticas de Saúde e viabilizar a articulação Ensino – Gestão – Atenção – Controle Social. Nesse sentido, são implantados, inicialmen- te, os Polos de Educação Permanente em Saúde nos estados, os quais foram redimensionados, com a publicação da Portaria 1996/07 para Comissão de Integração Ensino Serviço (CIES). Mais recentemente, considerando a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão no SUS, foi publicada a Portaria Nº 278, de 27 de fevereiro de 2014 que institui diretri- zes para a implementação da Política de Educação Permanente em Saúde, no âmbito do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014, p. 1), a qual, em seu conteúdo legal, refere ser norteada pela | 141 | [...] valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde, usuários, trabalhadores e gestores, pelo fomen- to da autonomia e do protagonismo desses sujeitos; pelo aumento do grau de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujei- tos; pelo estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de gestão; pela identificação das necessidades sociais de saúde; pela mudança nos modelos de atenção e gestão dos processos de trabalho; e pelo compromisso com a ambiência e com a melhoria das condições de trabalho e de atendimento. Percebe-se, no texto, dois grandes desafios: por um lado, o Ministério da Educação com o compromisso de investir em novos currículos e novas metodologias para uma formação generalista para o SUS; por outro, o Ministério da Saúde com dupla responsabilidade, além de ordenar recursos humanos para o SUS, precisa tornar permanente a capacitação dos tra- balhores de saúde por intermédio das instituições que com- põem a Rede de Atenção. Considerando a ampla responsabilidade da educação permanente e a formação em saúde para a consolidação da Reforma Sanitária Brasileira, neste artigo, iremos nos deter no olhar pedagógico sobre as práticas educativas das institui- ções de ensino no campo da saúde, enfocando o descompasso existente entre a formação que temos e a formação que neces- sitamos para o SUS. | 142 | O descompasso entre a formação que temos e a formação que queremos No contexto específico da saúde, as Diretrizes Curriculares Nacionais, apontam para uma formação generalista, humanis- ta, crítica e reflexiva; determinam a qualificação do discente para o exercício da profissão, com base no rigor científico e intelectual e pautado em princípios éticos. No que se refere às competências, destacam a capacidade de conhecer e intervir sobre os problemas/situações de saúde-doença mais preva- lentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões biopsicossociais dos seus determinantes. Além disso, recomendam a formação com capacidade de atuar, com senso de responsabilidade so- cial e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. Cumprindo as exigências reformistas do sistema de saú- de brasileiro, as políticas atuais do Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério da Educação, apontam mudanças na formação dos profissionais de saúde no âmbito do ensino superior, considerando que a história de formação e exercí- cio profissional em saúde vem sendo marcada pelo desenho flexneriano de ensino e trabalho. Adota-se, então, como eixo norteador desse processo de mudança, orientar as gradua- ções em saúde para a integralidade da atenção, para a inter/ transdisciplinaridade. Essa recomendação está explicitada no texto do Parecer das DCN para os cursos da saúde: | 143 | As diretrizes curriculares constituem orientações para a elabora- ção dos currículos que devem ser necessariamente adotadas por todas as instituições de ensino superior. Dentro da perspectiva de assegurar a flexibilidade, a diversidade e a qualidade da formação oferecida aos estudantes, as diretrizes devem estimular o aban- dono das concepções antigas e herméticas das grades (prisões) curriculares, de atuarem, muitas vezes, como meros instrumen- tos de transmissão de conhecimento e informações, e garantir uma sólida formação básica, preparando o futuro graduado para enfrentar os desafios das rápidas transformações da sociedade, do mercado de trabalho e das condições de exercício profissional. (BRASIL, 2001, p. 2, grifo nosso). Essa visão do cuidado se baseia na Atenção Integral à Saúde, como noção de aceitação ativa das histórias de vida, das histó- rias familiares e das histórias culturais na conformação das necessidades de saúde e na configuração dos estados singula- res de adoecimento de cada pessoa para o conjunto da rede de serviços. (FEUERWERKER; SENA, 2002). Ao analisar o atual modelo de atenção, Merhy (2007) alerta para a compreensão dessa integralidade no contexto das tecno- logias das relações, dos processos de intervenção em ato. Para ele, tecnologia não pode ser confundida com equipamentos e máquinas, são saberes necessários para organizar as ações humanas nos processos produtivos. O trabalho em saúde pro- move processos de subjetivação que está para além de práticas rotuladas. O autor classifica o trabalho em vivo e morto, e as tecnologias em duras, leve-duras e leves. | 144 | Essa forma de compreensão amplia o olhar sobre o cuidado e a formação em saúde, possibilitando o ressignificar dos es- paços dos saberes no campo da atenção. As tecnologias duras se caracterizam pelo acervo de equipamentos, de normas, de estruturas, de organizações; leve-duras, como saberes disci- plinares, os quais operam no processo do trabalho em saúde, como a clínica médica, a clínica psicanalítica, a epidemiologia; e as leves, como os saberes relacionais, como a produção de vínculo, de autonomia, de acolhimento. (MERHY, 2007). As tecnologias leves, apontadas por Merhy (2007), tra- zem a essência dos saberes humanescentes apontados por Cavalcanti (2004, p. 5): “[…] saberes que emergem de dentro do Ser, de suas habilidades humanas, da sua subjetividade, da sua corporeidade”. Talvez seja esse o grande desafio da formação para o SUS: possibilitar uma educação para a vida, para o auto/mútuo cuidado, para a cidadania e a autonomia. Uma formação transdisciplinar que possibilite a corporali- zação do pensamento complexo. A autonomia, como pressuposto da integralidade, leva-nos aos estudos de Maturana e Varela (1997). Os autores, nessa obra, afirmam que a maneira de ser autônomo de um ser vivo está no fato de que todos os aspectos da atuação do seu viver ter a ver somente com ele e que tal atuação não surge de qualquer propósito ou relação, na qual resultados guiam o curso dos processos que lhe dão origem. Em outras palavras, os sistemas vivos interatuam através de sua estrutura a partir da vida co- tidiana, de suas relações com o meio; assim, “[…] podemos vi- venciar várias identidades simultâneas ou sucessivas em uma mesma corporalidade”. (MATURANA; VARELA, 1997, p. 21). | 145 | Destarte, como promover uma formação integral trans- disciplinar nessa realidade contemporânea tão dividida, tão racionalista? Que separa, fratura cultura científica-cultura humanística; ciência-valores humanos; objetividade-subjeti- vidade; quanti-quali, além da fragmentação dos saberes. Serres (2003), estudando a emergência hominiana, questio- na como as ciências ditas duras deixaram os homens de lado. Ainda sobre essa divisão, Weil, D`Ambrosio e Crema (2003) afirmam que quebramos a unidade do conhecimento e distri- buímos os pedaços entre os especialistas. Para os cientistas, demos a natureza; aos filósofos, a mente; aos artistas, o belo; aos teólogos, a alma. Esse cenário da modernidade apresenta uma dicotomia on- tológica, epistemológica e metodológica, qual seja, de um lado, as ciências sociais ou naturais, onde se encontram a educação e a saúde; e, de outro, as humanidades, onde se encontram a arte, a alteridade, as sensibilidades e os afetos. A formação para o cuidado em saúde requer ambas, ou seja, uma pedagogia mista, inter/transdisciplinar. | 146 | A Educação Permanente em Saúde e novos cenários pedagógicos da qualificação para o cuidado O caráter humanista da formação acadêmica para o cuidado tem suas origens na Grécia antiga, com Sócrates. Ceccim (apud GEIB, 2001, p. 33) aborda uma educação que tira de dentro das pessoas o que tem de humano; para ele, “[...] o processo socráti- co considerava o/a professor/a como um/a obstetra por tirar o humano do humano, ou em outras palavras, por permitir que o conhecimento viesse à luz”. Isso posto, desde a origem do SUS, já se vislumbravam di- ficuldades para a construção de um novo modelo de atenção à saúde, dentre elas, destacam-se as questões relativas à forma- ção de recursos humanos e, em particular, o seu componente de desenvolvimento com demandas claras de qualificação e de requalificação do cuidado. Nesse sentido, o Ministério da Saúde, em 2003, lança um convite aos gestores do SUS e da Educação, ao Conselho Nacional de Saúde e Conselho Nacional de Educação, aos traba- lhadores de saúde e aos cursos de graduação na área da saúde: Engendrar novas relações de compromisso e responsabilidade entre o MEC e as instituições de ensino superior (IES) e o SUS, que incluem: implementação das diretrizes curriculares nacionais; participação ativa das universidades em projetos locorregionais de educação permanente em saúde; estabelecimento de projetos de cooperação técnica com o SUS para o desenvolvimento de ca- pacidades e competências locais, provimento e fixação de profis- sionais e qualificação da gestão local e locorregional do sistema de | 147 | saúde; produção de conhecimento relevante para a consolidação e avanço do SUS; construção do ensino de saúde de maneira arti- culada e negociada com o SUS. (BRASIL, 2003, p. 5). Assim, o Ministério da Saúde, em parceria com o Ministério da Educação, assume em 2003, por meio do Projeto AprenderSUS, uma Política Nacional de Reformulação das Práticas Acadêmicas formativas para o setor saúde, sugerindo, a partir da integra- lidade da atenção à saúde, a ampliação e o desenvolvimento da dimensão cuidadora. O desafio é formar profissionais mais ca- pazes de acolhimento, de vínculos com os usuários das ações e dos serviços de saúde e, também, mais sensíveis às dimensões do processo saúde/doença não inscritas nos âmbitos tradicionais da epidemiologia ou da terapêutica. O documento do Ministério da Saúde expressa, claramente, o entendimento do que seria um cuidado integral: A integralidade pressupõe práticas inovadas em todos os espa- ços de atenção à saúde, práticas em diferentes cenários – todos aqueles em que a produção da saúde e do cuidado ocorre e co- nhecimento da realidade de vida das pessoas, bem como de todos os âmbitos do sistema de saúde. A integralidade requer a imple- mentação clara e precisa de uma formação para as competências gerais necessárias a todos os profissionais de saúde, tendo em vista uma prática de qualidade, qualquer que seja seu local e área de atuação, que desenvolva a capacidade de análise crítica de contextos e que problematize saberes e processos de educação permanente no desenvolvimento das competências específicas de cada trabalho. (BRASIL, 2003, p. 4). | 148 | Além do AprenderSUS, o Ministério da Saúde lança também, em 2004, o HumanizaSUS1. Amplia-se, assim, o compromisso social, político e ético com um cuidado mais humanizado2, e, portanto, a real necessidade da articulação com as instituições formadoras de profissionais da saúde, onde se dão as forma- ções para esse cuidado. O conceito e a percepção do cuidado em um currículo na área de saúde norteiam o modelo ou as teorias na formação do profissional para uma filosofia do cuidado. Vive-se uma rup- tura paradigmática: estão saindo do paradigma positivista na saúde, para um paradigma complexo, humanístico e ecológico. Essas mudanças deverão refletir nas estruturas curriculares e nas posturas dos docentes. Se a formação acadêmica for considerada como a base para a prática profissional do futuro profissional da saúde, terá aí a grande importância das abordagens pedagógicas na formação de valores para uma nova cultura do cuidado integral. Fica clara a decisão política e a necessidade de ressignifi- car o processo formativo dos profissionais que desenvolverão esse cuidado. Esse processo não é simples, considerando que a maioria dos profissionais foi formada em bases positivistas, centrada na racionalidade, no cientificismo, no tecnicismo e, consequentemente, focada, unicamente, na objetividade. Assim, hoje há profissionais que não foram motivados a pen- sar, a imaginar, a sentir. Aprenderam a ignorar as sensações, as impressões, os desejos e os afetos. 1 Política Nacional de Humanização lançada pelo Ministério da Saúde em 2004. (BRASIL, 2004). 2 Termo bastante usado no vocabulário da saúde, que será questionado no de- correr deste estudo, substituindo-o. | 149 | Nesse contexto, buscando superar o modelo biologicista do cuidado em saúde e romper com o paradigma racionalista da formação em saúde, o governo brasileiro considerou, como im- portante referência na construção das novas políticas públicas na área da educação, o Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, conhecido como Relatório Jacques Delors, o qual apresenta quatro pi- lares3 para a educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser. Esse relatório sugere novas práticas pedagógicas que promovam um repensar sobre a vida, enquanto componentes de uma educação de valores. (DELORS et al., 2003). Essa Comissão propôs uma prática baseada em um ressig- nificar da existência humana, em novos valores, em que sejam estimuladas as práticas do dever de compreender melhor a si mesmo, ao outro, ao mundo. Foram esses referenciais que subsidiaram a elaboração da proposta de reorganização do modelo educacional brasileiro, a partir da LDB. Nela, a edu- cação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (BRASIL, 1996). Desse modo, ir além do saber conhecer e do saber fazer, es- pecialmente os outros dois espirais da educação, precisam ser trabalhados nessa formação transdisciplinar: o saber ser e o 3 Neste estudo, tomamos emprestada a metáfora dos pilares de Delors para trans- formá-la em espirais, admitindo a educação não como uma construção com pila- res rígidos, mas como um campo energético que envolve uma rede de conexões. | 150 | saber conviver. Eis o grande desafio da formação contemporâ- nea. Faz-se necessário encontrar os caminhos para o aprender a aprender a ser. Há um problema que é ontológico, epistemoló- gico e metodológico fundamental, que repensa e refaz a forma de ensinar e de aprender na formação em saúde e a nova rela- ção entre aprender a aprender e aprender a cuidar; uma nova forma de compreender e se relacionar com o ser. Nesse sentido, Moraes (2005) ao analisar o paradigma edu- cacional emergente, afirma essa separação dos saberes e as consequências na área médica. Para ela, a visão antropológica do homem-máquina que aloja uma alma, cuja essência é o pensamento, e que provocou o dualismo entre matéria e mente, o corpo e a alma, continua tendo profundas re- percussões no pensamento ocidental, com desdobramentos nas mais diferentes áreas do conhecimento humano, como na biolo- gia, na medicina, na psicologia e na educação, para citar apenas algumas delas. Essa visão nos levou a aceitar o nosso corpo sepa- rado de nossa mente, como coisa absolutamente desconectada. De um lado, era substância corporal, divisível, volumosa e funcio- nando mecanicamente. De outro, a substância mental, indivisível, fluida, desencarnada. Esta compreensão alterou significativa- mente os rumos da medicina ocidental em razão das direções assumidas por uma prática medicinal cartesiano-new toniana. (MORAES, 2005, p. 44). Eis o desafio: rejuntar as partes, promover uma formação integral que articule cultura científica e cultura humanística, possibilitando o diálogo entre arte, ciência e espiritualidade. O pensamento complexo (MORIN, 2002a; 2002b) afirma que o todo é muito mais do que a soma de suas partes. A | 151 | Educação e a Saúde são necessidades essenciais para o desen- volvimento humano, portanto, interligadas como políticas públicas que afetam o ser, a vida e o cosmos. Há, dessa forma, necessidades, além das estruturas materiais para a evolução desses dois campos sociais, algo relacional. A interação das partes é essencial para harmonização do todo. Tudo depende das interações e o que resulta são propriedades emergentes resultantes dessa interação. Ou seja, o padrão de tudo o que existe, vivo e não-vivo é a rede de ligações. É no âmago desse desafio para educação do século XXI que apresentamos em nossa defesa de tese de doutorado o es- quema metodológico da Pedagogia Vivencial Humanescente (SAMPAIO, 2009), a qual rompe com as concepções tradicio- nais de ensino, possibilitando um processo de aprendizagem inter/transdisciplinar vinculado à realidade pessoal e social, coerente com as novas diretrizes curriculares. Pedagogia Vivencial Humanescente na formação para o cuidado integral Formar profissionais generalistas humanescentes (criativos, reflexivos, sensíveis e transformadores) é, necessariamente, uma exigência para o atual Sistema de Saúde. Assim, a forma- ção e a prática pedagógica transdisciplinar baseada no pensa- mento complexo e nos princípios da humanescência. Não é possível separar o inseparável. Nesse sentido, en- tende-se a educação como um campo energético de intera- ções (MORAES, 2005), a saúde como um campo vivencial para humanescência (SAMPAIO, 2009), o que nos leva a defender | 152 | que a formação para a saúde necessita, urgentemente, de uma prática educativa humanescente4. Reforçando a necessidade de uma nova pedagogia, Moraes (2005, p. 182), com toda sua sabedoria inspiradora, acrescenta: Tanto a inter quanto a transdisciplinaridade, em termos edu- cacionais, têm uma grande importância metodológica, exigem uma nova prática pedagógica, que requer, necessariamente, um processo de comunicação [...]. Diante dessa reflexão sobre a complexidade, a formação hu- mana e agora de posse dos princípios teóricos da humanescên- cia, questionamos: que pedagogia possibilitaria uma prática humanescente? Usando as palavras de Cavalcanti (2004, p. 2): “[…] uma pedagogia que pedagogize a vida”. Para ela, “[…] trazer a corporeidade para o centro da educação como foco irradiante significa trazer a vida e as vivências para o processo educativo e convocar a Pedagogia para pedagogizar a vida”. Concordando com os autores pesquisados, de que essa seria uma pedagogia voltada para a formação integral do ser, para o 4 Prática integrativa multidimensional que resulta do diálogo entre cognição e vida, a qual envolve sentimento, pensamento e ação, a partir da corporei- dade humana. Processos auto-organizadores, autorreguladores e autotrans- formadores que envolvem a totalidade do ser, gerando mudanças interior e exterior, as quais visam expandir as diferentes dimensões constitutivas do sujeito cognoscente. Sistema relacional aberto ontopoiético, que adota como práxis a Pedagogia Vivencial Humanescente, que possibilita trocas energé- ticas mediante relações interativas e dialógicas entre educador, educando e ambiente de aprendizagem, envolvendo processos de assimilação, acomoda- ção, auto-organização em constante movimento de construção e de recons- trução pela ação do sujeito sobre o meio ambiente. Uma prática que exige ambientes de aprendizagem agradáveis, ricos em elementos significativos e desafiadores, capazes de resgatar a alegria e o prazer em aprender. Conceito adaptado por Sampaio a partir de Freire (2006), La Torre (2008), Maturana e Varela (1997), Cavalcanti (2004), Moraes (2005) e Assmann (2001). | 153 | desenvolvimento da sua inteligência, de seu pensamento, de sua consciência e de seu espírito, precisava possibilitar, além dos saberes tradicionalmente disciplinares, o fluir de novos saberes, os saberes humanescentes, os quais emergem do interior do ser, da essência do “humano, do belo, do sensível, do fluir, do deixar transparecer, do experienciar”. (CAVALCANTI, 2004, p. 3). Ciente de todas essas possibilidades e coerente com a pro- posta apontada pela UNESCO e pelas novas DCN, ousamos, a partir da herança primordial de Paulo Freire, incorporar os pressupostos da formação humana, apontados por Maturana, à visão complexa do humano e a moderna cosmologia a uma Pedagogia Vivencial, a qual passou a se chamar Pedagogia Vivencial Humanescente5. (SAMPAIO, 2009). O processo pedagógico proposto pela PVH busca promover uma aprendizagem significativa para os aprendentes. Na organi- zação dos conteúdos, em lugar de esquematizá-los previamente, a proposta é trabalhar com uma lógica do imaginário e das sig- nificações, respeitando os conhecimentos prévios, as diferentes maneiras e os ritmos de cada ser cognoscente na construção do conhecimento, permitindo o desenvolvimento da capacidade criativa, reflexiva, de investigação e de intervenção. Na PVH, educador e educando têm papéis diferentes dos tradicionais. O educador não é mais a fonte principal da infor- mação (conteúdos), mas o facilitador do processo de aprendi- zagem, que deve estimular o aprendente a ter postura ativa, sensitiva e reflexiva durante o processo de construção do 5 Pedagogia que associa os princípios educacionais freirianos ao pensamento complexo, a qual visa à formação integral do ser, sendo este objeto de estudo da Base de Pesquisa Corporeidade e Educação da UFRN. No decorrer desse estudo será detalhadamente apresentada. | 154 | conhecimento. Necessariamente, os conteúdos trabalhados devem ter potencial significativo (funcionalidade e relevância para a prática profissional) e, também, responder a uma signi- ficação psicológica, de modo a valorizar elementos pertinentes e relacionáveis dentro da estrutura cognitiva do aprendente (conhecimentos prévios). Para que a aprendizagem seja significativa, há que se tra- balhar com uma pedagogia diferenciada, que considere cada aprendente com seus potenciais e dificuldades e que esteja vol- tada à construção de sentidos, abrindo, assim, caminhos para a transformação e não para a reprodução acrítica da realidade social. (BRASIL, 2003). A prática pedagógica vivencial humanescente tem possi- bilitado avanços consideráveis em busca do re-encantamento da educação (ASSMANN, 2001) visando uma aprendizagem significativa para a vida humana, para o universo. Para isso, adotamos os seguintes pressupostos: 1. Educação como campo energético quântico que possibilite o resgate da subjetividade, da espiritualidade como esta- do do ser e da aprendizagem como resultados de conexões significativas entre aprendentes (educadores e educandos). 2. Prática educativa como espaço vivencial de convivência a qual permite e facilita o crescimento dos educandos como seres humanos que respeitam a si próprios e os outros com consciência social e ecológica de modo que possam atuar com responsabilidade, com liberdade no contexto pessoal e profissional ao qual pertencem. 3. Educadores que compreendem os educandos como seres legítimos em sua totalidade, ou seja, em suas dimensões in- dividual, social, espiritual, planetária e cósmica. | 155 | 4. A aprendizagem considerada, não apenas como conheci- mentos memorizados (com tempo de validade), mas como processo cognitivo construído mutuamente que envolve habilidades e atitudes incorporadas de forma significativa no cotidiano. 5. Ambientes de aprendizagem que mobilizem sentidos, senti- mentos, emoções, afetos e se tornem envolventes e cativan- tes para os educandos. 6. Práticas pedagógicas que partam das situações e/ou realida- des apresentadas pelos educandos (experiências prévias dos seus imaginários ou de situações vividas) possibilitando a criatividade, a ludicidade, a sensibilidade e a reflexividade histórica/vivencial. O desafio é usar a imaginação para promover o envolvimen- to para a incorporação dos discursos, despertar a curiosidade, o intelecto e as emoções dos educandos. O corpo, aqui, não é uma entidade monolítica composta de partículas que, conti- nuamente, organizam e reorganizam dentro das relações de velocidade e lentidão. Lowen (1984), pautado nos estudos de Reich, em toda a sua obra nos fala de prazer. Na nossa concep- ção de educação, pensamos que o que deveria mover o cotidia- no do professor em sala de aula, seria o prazer, a satisfação, a entrega, a implicabilidade afetiva. Nela, os aprendentes assumem os sentimentos, as sensações, as críticas. Uma aprendizagem que encara um jeito novo e dife- rente, por meio do potencial auto-organizativo da corporeidade no processo de aprender a aprender. São essas paixões constru- tivas que reencantam a vida e a educação. (ASSMANN, 2001). | 156 | Na PVH a aprendizagem é de dentro para fora e não de fora para dentro. Os conceitos de aprendizagem são associados ao ato autopoético (MATURANA; VARELA, 1997) e de percepção, considerada fenômeno de duas vias, de fora para dentro e de dentro para fora, e não somente de fora para dentro, caracte- rizando a dualidade transmissor/receptor. (ASSMANN, 2001). Assim, como afirmam Freire (2006), Moraes (2005), Assmann (2001) e Cavalcanti (2004), a corporeidade, a pe- dagogia vivencial e o cotidiano são possibilidades de trazer, para a educação, critérios indispensáveis à aprendizagem que, apesar de comumente negligenciados, nela estão implicados o prazer, o desejo, as histórias de vida. A universidade deve ser um espaço de vida, de descobertas para propiciar atividades que possibilitem aos sujeitos cog- noscentes o desenvolvimento de atitudes e de ações críticas/ reflexivas/sensitivas, tendo como meta a formação de um ser/ cidadão. Isso representa a superação da fragmentação e da li- nearidade do conhecimento, o reencantar do processo educa- tivo no papel do educador. Considerações finais Não é fácil mudar pensamentos e atitudes, pois esse processo envolve toda a complexidade humana. A formação em saúde tem como princípio, difundido nas instituições de ensino, assistir o indivíduo como ser biopsicossociocultural; no en- tanto, é priorizada a dimensão biológica, a linearidade. Isso é preocupante, uma vez que partimos do princípio de que as instituições de ensino são responsáveis pela formação do fu- turo profissional que cuidará da saúde humana. | 157 | A formação em saúde exerce um importante papel social no atual modelo de atenção, considerando os princípios que regem a Reforma Sanitária Brasileira. Educar o sujeito cog- noscente para ser um futuro profissional da saúde significa ir além do preparo para assistência à doença, resgatamos, para tanto, a concepção de atenção à saúde. Esse processo envolve sua estrutura humana interna, a necessidade de autoconheci- mento e de auto-organização. O desafio é paradigmático: edu- car visando formar profissionais para exercerem o cuidado integral, na busca da autonomia e do direito à saúde e à vida. Para isso, não é suficiente mudar regras e leis, pois, pelo contrário, às vezes, essas exigências provocam coações que inibem as potencialidades humanas. Nessa lógica, a missão educativa supera a capacitação pro- fissional, pois é uma capacitação para o ser, ligada à grandeza da existência que se expressa pela compreensão e pela apre- ensão de conteúdos significativos, um saber fazer, um poder sentir, um despertar para a totalidade da vida. Articular saberes disciplinares e saberes da vida, propor- cionar alegria, sensibilidade, criatividade e beleza na formação para o cuidado, é, certamente, uma nova forma de compreen- são da dimensão formativa para o assistir, uma estratégia que exige um ressignificar da prática educativa docente. Essa seria uma aprendizagem significativa, um todo constituído de cor- po, mente, sentimento e espírito, um sujeito respeitado na sua história, em sua dimensão social e cultural, na sua expressão afetiva. Uma pedagogia totalmente corporalizada. Portanto, a leitura a respeito da formação em saúde, faz acreditar que uma realidade está lentamente se desfazen- do, perdendo força, desaparecendo e um novo cenário da | 158 | formação para o cuidado começa a se apresentar, a ser neces- sário neste século XXI. A mudança de paradigmas, no âmbito do cuidado, come- ça pela mudança de pensamento, pela possibilidade de novos olhares, por novas atitudes e por novas formas de cuidar. A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde tem possibilitado, na formação para o SUS, o diálogo entre ensino e serviço. Esse é o caminho da mudança. O pensar e o agir crítico interdisciplinares no âmbito da EPS se apoiam no princípio de que nenhuma fonte de conhe- cimento é, em si mesma, completa e de que pelo diálogo, com outras formas de conhecimento, de maneira a se interpene- trarem, surgem novos desdobramentos na compreensão da realidade e sua representação. A interdisciplinaridade/transdisciplinaridade é um passo imprescindível para avançarmos no leque de possibilidades do conhecimento disciplinar, a fim de promover o rompimen- to fronteiriço, ampliando as possibilidades do conhecimento disciplinar necessário, em função do desenvolvimento cien- tífico e tecnológico. O termo é novo, mas a atitude transdisciplinar acompanha o homem desde a sua origem. Por ser o homem produto da na- tureza biofísica e cósmica – a mesma natureza que sempre se comportou de forma transdisciplinar –, ele traz na sua estru- tura o modo de se inserir e evoluir no ambiente peculiarmente constituído por essa conjuntura cósmica e planetária. Além de influenciar, nos espaços da formação em saúde, a EPS atua nos espaços dos serviços, exigindo uma coerência da relação entre as propostas de capacitação e as políticas de trans- formação de serviços de saúde, particularmente, nos contextos | 159 | de mudanças ou de reformas. O processo de reorganização da atenção/assistência envolve, não só o processo pedagógico da aprendizagem nas instituições, mas também o processo do as- sistir individual e coletivo, no âmbito dos municípios. Formação e capacitação necessitam andar juntas e de mãos dadas com en- foques educativos transformadores e significativos. A reforma sanitária brasileira só se consolidará com o quadrilátero do SUS (Atenção, Formação, Gestão e Controle Social) forte e coeso. Não adianta mudarmos as concepções sem modificarmos nossas práticas e, para isso, é fundamental uma nova lógica na formação e na capacitação dos trabalhado- res em saúde. O enfoque da Educação Permanente em Saúde exige um novo fazer pedagógico, representando uma impor- tante mudança na concepção e nas práticas de capacitação dos trabalhadores dos serviços. | 160 | Referências ASSMANN, Hugo. Metáforas novas para reencantar a educação. 3. ed. Piracicaba: Unimep, 2001. BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 335/2003, de 27 de novembro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, n. 25, p. 62, 5 fev. 2004. Seção I. BRASIL. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES nº 3, de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, n. 215, p. 37-38, 9 nov. 2001. Seção I. BRASIL. Ministério da Saúde. Aprender SUS: o SUS e os cursos de graduação da área da saúde. Brasília, 2003. BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 1.996, de 20 de agosto de 2007. Dispõe sobre as diretrizes para a implementação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, n. 162, p. 34-38, 22 ago. 2007. Seção I. ______. Portaria nº 278, de 27 de fevereiro de 2014. 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Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. WEIL, Pierre; D`AMBROSIO, Ubiratan; CREMA, Roberto. Rumo à nova transdisciplinaridade: sistemas abertos de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Summus, 2003. Educação permanente: o trabalho em saúde e os seus pressupostos Jônia Cybele Santos Lima Aldenísia Alves Albuquerque Barbosa Rossana Mota Costa Flávia Christiane de Azevedo Machado Jane Suely de Melo Nóbrega | 165 | Considerações iniciais Diante do aspecto estruturante do trabalho em saúde, a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS), lançada pelo Ministério da Saúde (MS), por meio da Portaria 198, de fe- vereiro de 2004, traz consigo as premissas para a ampliação da formação dos trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS). De fato, os trabalhadores devem estar constantemente em pro- cesso de aprendizado em meio às modificações processuais do seu objeto ação. No caso dos serviços de saúde, o objeto do trabalho são os indivíduos, famílias e seus territórios e esses são influencia- dos por diversos fatores, inclusive, aqueles cujo escopo de ação extrapola questões tipicamente relacionadas aos serviços de saúde. Diante disso, já é possível inferir que demandas rela- cionadas ao processo saúde-doença são intersetoriais, desa- fiando, potencialmente, os serviços de saúde quem têm como atribuição o cuidado à saúde. Mediante o conceito de cuidado de Cecílio (2011), que diz respeito a disponibilizar aquilo que o indivíduo necessita, mo- bilizando os recursos disponíveis em tempo oportuno, perce- be-se a grandiosidade dessa atribuição e, por conseguinte, a necessidade de buscarmos meios de atingi-la. Um desses meios é mobilizar, essencialmente, as tecnologias do cuidado em saú- de, identificadas por Merhy (2002) como duras, leve-duras e leves. Pela análise da raiz etimológica do vocábulo tecnologia, infere-se que, se o objeto de ação se modifica, as técnicas, ar- tes ou ofício (tekhne) que viabilizam uma intervenção neste | 166 | objeto, com vistas a uma transformação, igualmente variam. Por consequência, os sujeitos que desenvolvem o trabalho ne- cessitam de modificações, também, permanentemente viabili- zadas por processos educativos. Diante disso, o objetivo deste texto é discutir a importân- cia da educação permanente para o trabalho em saúde e, para isso, aborda o conceito de educação permanente em saúde, seu objetivo e eixos norteadores, enfatizando a mudança na for- mação acadêmica dos profissionais de saúde em prol de uma aprendizagem significativa como elemento fundamental para a melhoria da qualidade dos serviços de saúde. Educação permanente em saúde: conceito e finalidade As necessidades e as demandas para o exercício do cuidado eclodem do serviço, no trabalho vivo em ato. Não obstante, o processo de qualificação deve se dar para o serviço e, pre- ferencialmente, no serviço. Para Ceccim (2005a), a Educação Permanente em Saúde (EPS) pode ser definida como a ação pe- dagógica que enfoca o cotidiano do trabalho em saúde e o leva à autoanálise e à reflexão do processo. A EPS avança no sentido multiprofissional e na construção coletiva por meio das expe- riências de novos conhecimentos, que podem gerar práticas inovadoras. Assim, “[...] a política de educação permanente em saúde congrega, articula e coloca em roda diferentes atores, destinando a todos um lugar de protagonismo na condução dos sistemas locais de saúde”. (CECCIM, 2005b, p. 977). | 167 | A EPS deve ser considerada como estratégia fundamental à reestruturação das práticas formativas da saúde, estabele- cendo ações de parcerias com os setores das políticas públicas. Essa parceria viabiliza uma reestruturação das práticas do serviço, uma vez que se supõe um diálogo entre instituições de ensino e os serviços. Quando um diálogo ocorre de fato, os sujeitos implicados são transformados. Nesse sentido, a aprendizagem no trabalho, a partir da EPS, direciona que o aprender e o ensinar devem ser incorporados ao cotidiano das organizações em prol de sua qualificação. A EPS propõe que os processos de capacitação dos trabalhadores tomem como referência as necessidades de saúde das pessoas e das populações, tendo como objetivo a transformação das práticas profissionais, da organização, pelo estabelecimento da problema- tização dos processos de trabalho em saúde. (BRASIL, 2004a, p. 9). Nesse contexto, a PNEPS materializa as reivindicações co- letivas da saúde pública brasileira, bem como mundiais, em transpor um modelo de atenção biologicista para o de aten- ção à saúde e instituir valores relacionados ao protagonismo e corresponsabilidade dos sujeitos envolvidos no ato de cuidar – o cuidador e aquele que é cuidado. (BERTANI; SARRETA; LOURENÇO, 2008). A proposta da EPS tem fundamentação no processo de instituição do SUS enquanto direito social e política pública, construindo espaços democráticos na busca de respostas para melhorar a qualidade de vida e reduzir ini- quidades em saúde. | 168 | Portanto, o grande desafio e contribuição da EPS é reforçar a veemente necessidade de viabilizar uma formação profissio- nal ética, humanizada, de cunho crítico, reflexivo e criativo, que possa contribuir, efetivamente, para a qualificação dos processos de trabalho em saúde. Essas perspectivas são legi- timadas por instituições como a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS) que defendem a EPS como estratégia de aprendizagem, tendo como base os processos de trabalho, valorizando as vivências e as experiências dos sujeitos sociais. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2007). A formação permanente é indispensável para que os gestores e os trabalhadores questionem o seu fa- zer e promovam espaço para que os usuários assim também o façam. (CECCIM; FEUERWERKER, 2004a). Educação permanente e trabalho em saúde: pressupostos e interconexões O mundo do trabalho, educação e saúde se interligaram no ar- cabouço de intensa discussão que ocorreu nos marcos do pro- cesso de redemocratização da sociedade brasileira nos anos 1980. Dentre os processos de redemocratização, desta ca-se a discussão pelo direito a assistência à saúde gratuita a todos os brasileiros. Esse clamor da assistência à saúde como um direi- to de cidadania foi gestacionado no movimento da Reforma Sanitária (RS), iniciado nos anos 1970 e efetivado nos anos 1990 com o advento do SUS. Todavia, a viabilização da saúde como um direito de todos e dever do Estado, baseada nos princípios de universalidade, equidade e integralidade, exigia e exige, | 169 | entre outros pontos, repensar a formação profissional dos trabalhadores da saúde e instituir a transdisciplinaridade na produção e recriação de conhecimento. (PEREIRA, 2008). Para modificar ações é preciso modificar sujeitos. O mer- cado de trabalho precisa de profissionais que protagonizem movimentos de transformações sociais, não só no âmbito das políticas de saúde, mas nas políticas de cunho social como um todo. (MERHY, 1994; CECCIM; FEUERWERKER, 2004a). Nesse sentido, a formação de um novo profissional, capaz de inserir-se em uma equipe multiprofissional, vinculando -se às famílias/comunidades, impõe revisar atitudes, valores e práticas de saúde, razão pela qual exige, por parte dos órgãos formadores, o desenvolvimento de estratégias de ensino, de produção e de disseminação de conhecimentos direcionados a uma nova realidade social e sanitária. É necessário, também, o apoio incondicional da gestão no sentido de incluir todos os segmentos da sociedade, principalmente, os órgãos formadores, nos debates das construções da PNEPS voltadas para os traba- lhadores de saúde do SUS, visto que se percebia, até bem pouco tempo, a inexistência de uma integração ensino -servi ços de saúde. (BARBOSA, 2009). A PNEPS surgiu como alternativa para viabilizar as pro- fundas transformações na formação e no desenvolvimento dos profissionais de saúde, com práticas diferenciadas em consen- so com as condutas que são exigidas no contexto social em que eles atuam. (BARBOSA, 2009). Nesse sentido, Paschoal (2004) coloca que não basta apenas “saber” ou “fazer”, é preciso “saber fazer”, intera- gindo e intervindo. Por conseguinte, a formação deve ser caracterizada pela autonomia, pela capacidade de aprender, | 170 | constantemente, de relacionar a teoria com a prática e vice- -versa. Complementa, ainda, que a EPS deve ser uma habili- dade de aprendizagem contínua, desenvolvida pelo sujeito durante sua vida, por meio de suas relações pessoais, profis- sionais e sociais, no intuito de transformá-lo e ter conformi- dade com as mudanças no mundo do trabalho. Para Campos (2010), o trabalho em saúde, além da técnica, baseada no saber acumulado previamente, necessita de refle- xão sobre o contexto singular em que a ação se desenvolve, considerando os sujeitos envolvidos e seus valores, significa- dos e condições históricas, tratando-se, assim, da adaptação do “saber tecnológico ao contexto singular”. Trabalhar em saúde, portanto, não é meramente traçar comportamentos considerados próprios ao setor, mas compreender como os sujeitos (usuários, gestores e trabalhadores) se relacionam com esse mundo do trabalho. Portanto, a pedra fundamental é que todos os envolvidos se comprometam e participem do aprimoramento realizado e construído nas práticas dos ser- viços ofertados. Isso pode estimular e articular novas ações, reestruturar formas antigas de lidar com as demandas da saú- de, enfim, transformar as práticas. Não obstante, as necessidades e as lógicas de organização social buscam definir que os trabalhadores sejam cada vez mais qualificados, diante de suas demandas individuais e coletivas. Dentro desse contexto, a EPS, estratégia implementada pelo Ministério da Saúde, baseia-se no pressuposto da aprendiza- gem produtora de sentidos, da reflexão crítica e da transfor- mação das realidades. | 171 | A EPS impulsiona a [...] problematização do processo e da qualidade do traba- lho em cada serviço de saúde onde são identificadas as ne- cessidades de qualificação, garantindo a aplicabilidade e a relevância dos conteúdos e tecnologias estabelecidas. (CECCIM; FEUERWERKER, 2004a, p. 50). Baseia-se na aprendizagem significativa das pessoas e das organizações, levando em consideração os conhecimentos e as experiências que as pessoas já possuem. O processo de educa- ção dos trabalhadores da saúde deve ser realizado a partir da problematização do processo de trabalho, considerando que sua formação e desenvolvimento sejam pautados pela neces- sidade de saúde da população. (BRASIL, 2007). Assim, a EPS pressupõe que as mudanças de práticas de gestão e de atenção sejam viabilizadas no diálogo com as prá- ticas e concepções vigentes, problematizando-as no cotidiano das equipes. Somente por meio do reconhecimento das fragi- lidades existentes há possibilidade do enfrentamento. Não há mudanças se não há a percepção da necessidade em instituí-la. Portanto, a condição indispensável para a educação permanen- te cumprir seu objetivo é expor o trabalho vivo em ato para a autoanálise e, pedagogicamente, abrir espaços relacionais para poder se falar e se implicar com a melhoria contínua da atenção à saúde. Para tanto, os eixos norteadores da Educação Permanente em Saúde deverão retirar o trabalhador da condição de “re- cursos” para a de ator social; reconhecer a população como detentora de direitos, tais como a acessibilidade e a resoluti- vidade da atenção; e enfatizar a autonomia da população e a | 172 | sua participação na gestão das políticas públicas de saúde. Por conseguinte, a educação permanente em saúde pressupõe uma modificação processual dos trabalhadores da saúde e do seu público-alvo, implicando a análise da educação dos profissio- nais de saúde, das práticas de atenção à saúde, da gestão seto- rial e da organização social. (CECCIM, 2005a; 2005b; 2005c). Considerações finais A busca por processos de mudanças nas relações estabelecidas no fazer saúde pode ser vivenciada nos campos de formação dos trabalhadores da saúde, de forma mais proativa e com cunho de corresponsabilidade compartilhada por todos. O ato de difundir conhecimento deve ser distribuído pelos sujeitos, a partir de mecanismos que vislumbrem suas potencialidades e promovam alterações permanentes nas condições de vida. Esse aspecto envolve a ruptura com formações em saúde, fundamentadas de forma fragmentada, desarticuladas dos mo- dos de trabalhar os coletivos diante do cuidado. As capacitações para os processos de trabalho em saúde devem ser construídas e compartilhadas nos modos de saberes e práticas articulados nos diversos campos da saúde, almejando, assim, impactar de forma positiva a vida cotidiana das pessoas. A PNEPS, por meio dessas discussões, focaliza o modo de atuar nos serviços, nos seus movimentos e anseios, que surgem dos fazeres diários, evidenciando a importância da aprendizagem significativa, a partir da construção, acumulação e reestruturação de saberes e das experiências no setor saúde. A EPS vem dar suporte ao SUS, a partir da efetivação de um olhar ampliado do conceito de saúde, o qual vem traçando um caminho próximo, diante da | 173 | necessidade de se formar e manter em permanente estímulo de atuação um trabalhador com perfil de múltiplos conhecimentos. Nesse sentido, os processos de educação, quando direcio- nados às demandas da saúde, trazem à tona ações voltadas aos propostos reflexivos de atividades direcionadas à promoção humana que possam causar alterações pertinentes nos mo- dos de fazer e de lidar com as condições de vida e seus laços na saúde. Portanto, a EPS vem ser mola propulsora para a trans- formação das práticas formativas em saúde, possibilitando mo- dificações das atitudes comportamentais dos profissionais, ao fazer com que se vejam como protagonistas de suas ações, dian- te das demandas sociais inerentes à saúde e fora dela, envolven- do-se e se corresponsabilizando com os fatores pertencentes ao processo saúde-doença-cuidado das comunidades onde atuam. | 174 | Referências BARBOSA, Aldenísia Alves Albuquerque. A educação permanente em saúde na ótica dos cirurgiões-dentistas. 2009. 85 f. il. Dissertação (Mestrado em Odontologia Preventiva e Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Odontologia Preventiva e Social, Natal, RN, 2009. BERTANI, Iris Fenner; SARRETA, Fernanda de Oliveira; LOURENÇO, Edvânia Ângela de Souza. Aprendendo a construir saúde: desafios na implantação da política de educação permanente em saúde. Franca: Ed. UNESP, 2008. BRASIL. 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Na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986, que se configurou num marco histó- rico da Reforma Sanitária, foram tratadas, além de questões organizativas e de atribuições ao sistema de saúde como a uni- versalização, a equidade e a democratização, questões relativas aos trabalhadores em saúde, apontando para a urgência na adequação da formação profissional voltada para as necessi- dades colocadas pela realidade social. Neste mesmo ano, a 1ª Conferência de Recursos Humanos (RH) destacou a capacitação após a graduação como um aspecto a ser observado, recomendando: [...] que a formação ulterior deveria ser definida em função das necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS) de dispor de pro- fissionais e equipes qualificadas para dar conta de modo eficien- te (em termos de custo) e eficaz (em termos de resultados), de questões específicas referentes a problemas menos frequentes. (BRASIL, 1986, p. 30). Seguindo esse processo, ficou estabelecido, pela consti- tuição de 1988, como atribuição do SUS, a competência de ordenar a formação dos Recursos Humanos (RH) em saúde, o que representou um grande avanço no fortalecimento de | 180 | estratégias para formar trabalhadores com perfil condizente com a nova realidade. Em 2000, por ocasião da 11ª CNS foram fixados princípios e diretrizes para a Norma Operacional Básica de RH para o SUS (NOB-RH/SUS), cuja aplicação como Política Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde ganharia estatu- to de política pública para o desenvolvimento e formação no âmbito do SUS. Já em 2003 é criada, no âmbito do Ministério da Saúde, a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGETES) como principal instrumento do Governo Federal para consecução da NOB-RH/SUS. Nesse mesmo período, é aprovada no Conselho Nacional de Saúde (CNS) a proposta da Política de Formação e Desenvolvimento para o SUS: caminhos para a Educação Permanente em Saúde – com o objetivo de [...] definir uma proposta nacional de formação e desenvolvi- mento para o conjunto dos profissionais de saúde, capaz de tra- tar de Educação e Trabalho, promover mudanças nas Práticas de Formação e nas Práticas de Saúde, promover articulação en- tre Ensino, Gestão e Controle Social e criar Polos de Educação Permanente em Saúde. (BRASIL, 2004, p. 39). Vale destacar que, mesmo antes da constituição do SUS, um conjunto de ações no campo da formação de RH foi se deline- ando no interior do setor de saúde, criando um cenário favo- rável à consolidação das mesmas enquanto elemento central da própria construção do sistema. Experiências e inovações importantes em educação na saúde ofereceram contribuições e proposições significativas frente à necessidade de promoção | 181 | de mudanças na formação profissional, buscando aproximá-la das necessidades da população, tendo o trabalho como eixo estruturante e centro privilegiado para a educação. Segundo Pinto e Teixeira, a questão de RH é um dos aspec- tos que tem chamado, particularmente, a atenção dos gestores e pesquisadores, considerada um dos “nós críticos” do processo de mudança da gestão e da atenção à saúde no país. Para as autoras, [...] a escassez de quadros qualificados para o exercício da gestão dos sistemas e serviços, além da precarização das relações de tra- balho, somadas à inadequação dos perfis e ausência de compro- misso de grande parte dos profissionais e trabalhadores de saúde para com o SUS, constituem, hoje, um dos grandes desafios à sua consolidação. (PINTO; TEIXEIRA, 2011, p. 1778). Nos âmbitos estadual e municipal, o processo de descentra- lização provocou a elaboração de várias propostas de soluções e arranjos para a gestão dos trabalhadores da saúde no enfren- tamento desses desafios. Se, por um lado, isso facilita a defini- ção de propostas mais adequadas à problemática regional e local; por outro, tem evidenciado a existência de problemas estruturais e conjunturais, que repercutem na capacidade de gestão de muitas secretarias de estado e municípios na área de gestão do trabalho e da educação em saúde. Segundo Nunes (2004), a educação para o trabalho em saú- de deve ser uma diretriz qualificadora da gestão de equipes e de serviços, em qualquer espaço onde o trabalho em saúde se realize. A consciência da importância dessa ação teria orien- tado a realização de planos e programas nos sistemas de saúde das Américas e do Brasil, impondo exercícios de revisão dos | 182 | modelos de formação até então adotados, tendo os princípios e pressupostos do SUS como foco alimentador das definições metodológicas e de conteúdo dos programas de formação. Considerando que as políticas e estratégias técnico-peda- gógicas, ora em curso, devem estar voltadas para o desenvolvi- mento de perfis adequados às perspectivas e às necessidades técnicas, políticas e sociais de mudanças nas estruturas e nas práticas de saúde, o presente relato buscou: (a) caracterizar o CGTES como dispositivo do processo de implementação da Política de Gestão do Trabalho e Educação na Saúde; (b) descrever e analisar os momentos do processo de tutoria/ mediação de aprendizagem; (c) discutir limites e possibilida- des da tutoria/mediação de aprendizagem na formulação e implementação de políticas no âmbito estadual. Formação de pessoal como estratégia de implementação da política de gestão do trabalho e da educação na saúde O Curso de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (CGETS) configurou-se como estratégia técnico-pedagógica voltada para formação profissional cumprindo papel impor- tante na constituição de perfis adequados às perspectivas e ne- cessidades de mudanças nas estruturas e nas práticas de saúde no âmbito do SUS. Nesse sentido, seu objetivo central foi o de qualificar, nas dimensões política, técnica e administrativa, os processos de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde nas secretarias estaduais e municipais no Estado da Bahia. | 183 | O processo educativo com 384 horas utilizou a modalidade de Educação a Distância (EAD) como estratégia educacional ca- paz de atingir o maior número de profissionais que assumiam funções de assessoramento, de coordenação ou de gerência de RH nos diversos níveis hierárquicos das instituições de saúde, em especial das áreas de gestão e de preparação de pessoal. As unidades didáticas foram constituídas por sequências de atividades, cujo encadeamento propiciou aos participan- tes o alcance dos seguintes objetivos gerais (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE, 2012, p. 8): 1. Compreender as questões relacionadas à gestão do trabalho e da educação a partir da construção histórica do SUS e da sua relação com a cidadania, das transformações que se dão no mundo do trabalho contemporâneo e de suas repercus- sões nos modos de produzir serviços de saúde. 2. Analisar questões da gestão do trabalho no SUS nos seus aspectos institucionais e operativos, desenvolvendo um conhecimento crítico que permitisse a formulação de es- tratégias que apontassem para a eficiência e efetividade dos serviços de saúde e para a melhoria da qualidade do atendi- mento à população. 3. Promover reflexões críticas sobre a realidade existente no sistema de saúde brasileiro, inserindo elementos con- ceituais e ampliando o conhecimento teórico e prático na perspectiva de contribuir para qualificar a gestão e as in- tervenções neste campo. 4. Construir um projeto de intervenção exequível na área da gestão do trabalho e da educação na saúde como parte inte- grante do processo de formação. | 184 | Frente aos objetivos expostos, a concepção pedagógica apontou para a aquisição do saber vinculado ao contexto de trabalho dos discentes, situando o processo de ensino-aprendi- zagem no contexto das experiências dos mesmos. Nesse sentido, buscou-se estimular a capacidade dos discentes para desenvol- ver um processo de aprendizagem crítico e reflexivo com ritmo próprio e de forma contínua. O Ambiente Virtual de Aprendizagem foi composto por um conjunto de interfaces de conteúdo e de comunicação. As interfaces de conteúdo se constituíram nos dispositivos que permitiram produzir, disponibilizar e compartilhar conteúdo digitalizado em diversos formatos e linguagens (textos, vídeos, imagens estáticas e dinâmicas). Já as interfaces de comunica- ção foram aquelas reservadas para interatividade, sendo as síncronas utilizadas em tempo real (chats e web conferências) e as assíncronas, em diferentes tempos (fóruns, portfólios e diários). (SANTOS, 2006). Tutoria/mediação de aprendizagem: a face pedagógica do Sistema Único de Saúde Aprendizagem e formação Este relato de experiência apresenta como sustentação cen- tral, a perspectiva da aprendizagem imbricada ao fenômeno da formação, sendo a mesma constituída essencialmente por uma dimensão experiencial. Embora a aprendizagem seja um dos fatores fundamentais da formação, a mesma não se reduz ao processo de aprendizagem simplesmente. Nesses termos, a | 185 | formação traz a aprendizagem para uma dimensão que não se reduz à memória, ao perceptivo ou ao intelectual. Segundo Macedo (2010, p. 232), a aprendizagem como uma atividade humana extremamente complexa, [...] se caracteriza por um processo em que o sujeito busca, e é desafiado a buscar, compreender a realidade em que vive e a si, através da sua capacidade percepto-cognitiva e de interação es- truturantes, (nem sempre conscientes), mediadas por suas inten- ções, interesses, desejos e escolhas, modificando, portanto, seu meio e a si próprio, onde a resultante desse processo (o aprendi- zado), se configura na aquisição de saberes e fazeres, em níveis intelectuais, cognitivos, psicomotores, psicossociais, culturais, como dimensões relativamente integradas, implicando aí um inacabamento infinito. Tal processo acontece e se realiza, em meio a uma cultu- ra e a uma realidade social e histórica, implicando relações estruturantes onde atividades e conteúdos, a serem aprendi- dos, configuram escolhas socialmente referenciadas. Nesse sentido, destaca-se que aprender num cenário curricular é aprender num contexto social e cultural onde um determinado tipo de conhecimento e de atividade se apresenta e se organiza como relevante em termos de aprendizado e de formação. Ou seja, é aprender em espaços onde se elege um conhecimento relativamente sistematizado como formativo. Mas afinal quem elege e para quê? | 186 | Tutoria e mediação de aprendizagem Essa é uma pergunta crucial no campo das reflexões e ex- plicitações sociocurriculares e formativas, porque envolve intenção, interesse e construção de poder. Nesse sentido a centralidade do professor/tutor é um aspecto fulcral. Atualmente, a concepção de tutor complexificou-se, per- dendo a ênfase instrumentalista. Com a instauração do novo paradigma educacional da interatividade, impulsionado pela utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e pelo deslocamento conceitual de papéis, vários questionamen- tos têm sido suscitados no sentido de modificar ou de ampliar o sentido em torno da nomenclatura tutor em EAD, embora essa seja a denominação empregada pela legislação brasileira. Segundo Belloni (2006, p. 84), a função docente se alarga na EAD uma vez que [...] consideradas do ponto de vista da organização institucional, podemos agrupar as funções docentes em três grandes grupos: o primeiro é responsável pela concepção e realização dos cursos e materiais; o segundo assegura o planejamento e organização da distribuição de materiais e da administração acadêmica (matrí- cula, avaliação); e o terceiro responsabiliza-se pelo acompanha- mento do estudante durante o processo de aprendizagem (tutoria, aconselhamento e avaliação). A tutoria/mediação de aprendizagem é, portanto, uma função docente, tanto na tutoria específica de uma disci- plina ou conteúdo, quanto na tutoria como orientação de estudo. Como mediador pedagógico do processo de ensino e de aprendizagem, o tutor é aquele que também assume | 187 | a docência, apresentando plenas condições de mediar conte- údos e intervir para a aprendizagem. Na prática, o tutor é um docente que deve possuir domínio, tanto tecnológico quanto didático, do conteúdo. Para Zuin (2006, p. 948) : [...] o tutor não pode simplesmente absorver os conhecimentos transmitidos pelos professores, quer seja nos encontros pre- senciais esporádicos entre ambos, quer seja no sortilégio que as imagens de tais mestres “virtuais” possam exercer. Ele deve se permitir, cada vez mais, ousar saber, o que implica não a aceitação passiva dos conhecimentos obtidos, mas sim o questionamento destes mesmos conhecimentos. A atuação do tutor na EAD online amplia-se e se redimen- siona em virtude das suas ações serem desenvolvidas exclu- sivamente (ou quase exclusivamente) no ciberespaço, local de difusão e de produção de conhecimentos e informações. Nele, o tutor e os cursistas necessitam ser agentes ativos no processo educativo, de forma que todos possam ser “vistos”, se fazer pre- sentes, fazer circular suas ideias, para que as mesmas possam ser tematizadas, questionadas, aprofundadas. Ou seja, na EAD online, a ação do tutor deve ser amparada pelos princípios da aprendizagem colaborativa. (SANTOS, 2005). Para Silva (2003), o tutor ou docente online atua como um articulador entre os cursistas e o conhecimento, estimulan- do, orientando, conduzindo e reconduzindo as participações e as discussões, criando novas possibilidades de construção do conhecimento. Ou seja, cabe ao docente disponibilizar domí- nios de conhecimentos de modo expressivamente complexo e, | 188 | ao mesmo tempo, uma ambiência que garanta a liberdade e a pluralidade das expressões individuais e coletivas. A partir dessa compreensão, a tutoria realizada apresen- tou competências gerenciais (planejamento, comunicação, organização), tecnológicas (saber lidar com mídias e diversos tipos de tecnologias), pedagógicas (ação fundamentada em teo- rias e práticas educacionais) e de conteúdo (ter conhecimentos aprofundados sobre o tema em foco). Além desses pontos, des- tacaram-se outras funções do tutor como: a) o acompanhamen- to, b) a avaliação e a constituição da memória no processo de aprendizagem, c) a liderança e a mediação de reuniões grupais e d) o estabelecimento de redes de comunicação e informação. Modo de produção dos agentes de saúde: processo e relações de ensino A experiência da tutoria/mediação de aprendizagem, propria- mente dita, será apresentada tendo como base o conceito de “modo de produção” dos agentes de saúde e o modelo utilizado por Garcia (1972) ao analisar a Educação Médica na América Latina (FIGURA 1). Nesse sentido, o tutor/mediador de apren- dizagem, ao organizar com certo grau de autonomia as suas atividades, poderia contribuir, em certo limite, para transfor- mar as práticas, estabelecendo novos perfis que questionariam o exercício profissional vigente. | 189 | Fi gu ra 1 - O m od el o (a da pt ad o) u ti li za do p or G ar ci a (1 97 2) a o an al is ar a E du ca çã o M éd ic a na A m ér ic a La ti na Fo nt e: G ar ci a (1 97 2) | 190 | O conceito de sociedade, ou melhor, de estrutura social nos permite compreender a educação dos profissionais de saúde enquanto um processo não isolado. Situa a educação e a saúde como um dos setores subordinados à estrutura econômica, mas não de forma mecânica, guardando certo grau de autonomia. O processo de educação dos profissionais de saúde, a forma e o conteúdo dos currículos por apresentarem certas contradi- ções secundárias ao processo de produção capitalista não são, portanto, totalmente determinados pela matriz econômica. As relações entre Estado e Sistema Educacional, a partir de uma concepção dialética da educação, compreendendo histo- ricamente tal sistema como um aparelho de hegemonia, coloca o mesmo enquanto espaço profícuo à guerra de posição, à de- marcação de um dado projeto de formação humana divergente em relação à direção hegemônica. (DANTAS JÚNIOR, 2005). As políticas de educação, organizadas por meio de nor- mas especificas para o setor, a partir de órgãos do aparelho do Estado, como a Lei de Diretrizes e Bases e as políticas es- pecíficas de formação para a área da saúde, expressariam as contradições dos projetos hegemônicos e contra hegemônicos disputados na sociedade que, por sua vez, dão direcionalidade tanto aos Projetos Políticos Pedagógicos quanto ao processo de formação dos agentes de saúde. Nesse sentido, entende-se o sistema de formação educacio- nal como um dos espaços privilegiados do processo de forma- ção dos agentes das práticas de saúde e os planos de estudo como conjunto de elementos distribuídos em uma organização que determina a função de cada componente dentro da totali- dade. O processo de produção dos agentes de saúde constitui um conceito básico do quadro teórico adotado no presente | 191 | relato, conformando-se como a própria estrutura educacio- nal. Na análise do modo de produção dos especialistas podem ser identificados dois componentes inseparáveis: o processo de ensino e as relações de ensino. O processo de ensino, por sua vez, pode ser definido como o conjunto de momentos pelos quais o estudante/discente passa ao se transformar em especialista. Neste processo distinguem-se: atividades, meios e objetos de ensino. Já as relações de ensino expressam os vínculos estabelecidos en- tre as pessoas que participam do “processo de produção” dos especialistas, que são técnicas e ao mesmo tempo sociais. As atividades de ensino predominantes explicitam, de al- guma forma, o papel que o tutor/mediador de aprendizagem desempenhou enquanto facilitador do processo de apren- dizagem, tendo o estudante como sujeito ativo do mesmo, utilizando-se de estratégias pedagógicas voltadas à problema- tização da prática profissional. No Quadro 1, são identificadas algumas das características das atividades realizadas. | 192 | Objeto Processo de implementação do SUS com ênfase nas práticas de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde Marco Conceitual Definido a partir de problemas crescentes de complexidade Contato com a prática Durante todo curso Metodologias Aulas expositivas Estudos dirigidos Estudos de caso Fóruns de discussão Situações problemas Papel do docente Facilitador do processo de aprendizagem Papel do discente Sujeito ativo do processo de aprendizagem Experiências de aprendizagem Práticas de gestão do Trabalho e Educação na saúde Projeto de intervenção – TCC Quadro 1 – Características do projeto pedagógico Fonte: Livro Didático do Curso de Especialização em Gestão do Trabalho e Educação na Saúde (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE, 2012) Como meio de ensino privilegiado, destacou-se a utilização do Ambiente Virtual de Aprendizagem, Moodle, como recurso de interação/interatividade do processo de ensino- aprendizagem. A característica marcante nesse espaço é a cooperação, percebida mediante o compartilhamento de diversos tipos de arquivos, fóruns de discussão, comunidades virtuais, dentre outros. As relações que ocorrem no ambiente | 193 | de trocas de experiências favorecem a diluição das linhas de separação entre emissor e receptor da mensagem, sendo que a construção do conhecimento passa a ser coletiva. Nesse espaço, o fórum, interface assíncrona, possibilitou a interação e a discussão sobre as variadas temáticas relativas ao curso, a partir de dinâmicas hipertextuais e da agregação de outras mídias. De outro lado, o chat, interface síncrona, fa- voreceu o esclarecimento de dúvidas, a criação de vínculos e a interação. A definição de tópicos prévios para discussão do mesmo acarretou numa dinâmica colaborativa onde todos po- deriam contribuir com a discussão em tempo real. Já as tarefas sugeridas pelo curso foram desenvolvidas pelos discentes no próprio espaço disponibilizado pelo Moodle, sendo ofereci- das as opções de envio de arquivo previamente concebido ou elaborado no próprio editor de texto. A construção do Projeto de Intervenção, a partir da orien- tação do tutor, possibilitou o desenvolvimento do raciocínio científico bem como de uma ação organizada a partir da iden- tificação de um problema. A busca de novos conhecimentos produziu intervenções consistentes sobre questões de gestão do trabalho e educação na saúde que ainda não tinham sido resolvidas, ou foram de maneira incompleta, insatisfatória ou inadequada frente às necessidades do cotidiano de traba- lho dos discentes. O material didático configurou-se como um conjunto de mí- dias (impresso, audiovisual e informáticos), no qual os conte- údos apresentaram-se de forma dialógica e contextualizada, favorecendo uma aprendizagem significativa. Ao se apresentar, de forma diversificada, aproximou-se das diferentes realidades dos educandos, possibilitando diferentes formas de interagir com o conteúdo. A lógica hipertextual utilizada, promoveu a | 194 | não-linearidade dos conteúdos possibilitando que os discentes participassem da construção de seu caminho de aprendizagem. Elemento importante que interferiu ativamente no pro- cesso de ensino foi o discente configurando-se, ao mesmo tem- po, como objeto e sujeito da ação pedagógica. Ao assumirem funções de assessoramento, de coordenação e de gerência de recursos humanos, em diversas instituições, os discentes ex- ploraram a capacidade de refletir sobre sua própria experi- ência de aprender, identificando aí potencialidades e limites. As relações de ensino dizem respeito às conexões ou aos vínculos que foram estabelecidos entre tutor e discentes, du- rante o processo de ensino, resultante do papel que esses in- divíduos desempenharam. Destacou-se o estabelecimento de relações técnicas e sociais contra-hegemônicas dentro de uma proposta de mudanças de relações e papéis desempenhados entre tutores e discentes no processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, a avaliação, por exemplo, cumpriu papel estratégico, integrando diversas estratégias, estando o tutor à disposição para orientar o discente com uma variedade de recursos que possibilitaram um acompanhamento de todo desenvolvimento, não apenas medindo quantitativamente momentos pontuais. Para Perrenoud (1999, p. 18) essa prática de avaliação pode ser entendida como [...] contínua que pretenda melhorar as aprendizagens em cur- so, contribuindo para o acompanhamento e orientação dos alu- nos durante todo o seu processo de formação. É formativa toda a avaliação que ajuda o aluno a aprender e a se desenvolver, que participa da regulação das aprendizagens e do desenvolvimento no sentido de um projeto educativo. | 195 | A existência de práticas avaliativas parciais ao longo do processo permitiu ajustes necessários, superando a ideia de mera classificação dos resultados finais do curso. Considerações finais Segundo Rovere (1993, p. 16), é preciso situar os aspectos técnicos e ideológicos das práticas educativas dentro do espaço político onde se movem os projetos consequentes de mudanças. Cumpre, portanto, aproveitar as oportunidades de mudanças no processo de produção dos agentes do ensino já que, “[...] iniciar processos que produzam fatos, acumulem poder e promovam mudanças, mesmo no espaço-micro das instituições, possibilitam novas acumulações sociais”. A construção de propostas pedagógicas como o CGTES deve ter como perspectiva o equilíbrio entre excelência técnica e relevância social, sustentados em modelos pe- dagógicos mais interativos, na adoção de metodologias de ensino-aprendizagem centradas no discente como sujeito da aprendizagem e no tutor/docente como facilitador do pro- cesso de construção de conhecimento. Identificar estratégias e buscar subsídios para processos de mudança dos referenciais pedagógicos e do projeto de en- sino, validar alternativas de ensino para novos processos de formação e propor princípios norteadores para as políticas de formação de profissionais de saúde são desafios estrutu- rantes e inadiáveis para o campo da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. | 196 | Referências BELLONI, Maria Luisa. Educação a distância. Campinas: Autores Associados, 2006. BRASIL. Ministério da Saúde. Relatório final da 1ª Conferência Nacional de Recursos Humanos para a Saúde. Brasília-DF, 1986. p. 13-36. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Política de educação e desenvolvimento para o SUS: caminhos para a educação permanente em saúde: pólos de educação permanente em saúde. Brasília, 2004. (Série C. Projetos, programas e relatórios). Disponível em:< http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ publicacoes/ politica2_vpdf.pdf>. Acesso em: 2 out. 2015. DANTAS JUNIOR, Hamilcar Silveira. Estado, educação e hegemonia: reflexões teórico metodológicas da Filosofia da Práxis de Antonio Gramsci. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.20, p. 28-44, dez. 2005. Disponível em . Acesso em: 2 out. 2015. GARCIA, Juan César. La educación médica en la America Latina. Washington,D. C.: OPS, 1972. MACEDO, Roberto Sidnei Alves. Compreender/mediar a formação: o fundante da educação. 1. ed. Brasília: Liber Livro, 2010. 252p. NUNES, Tania Celeste Matos. Educação permanente: um novo olhar sobre a aprendizagem no trabalho. 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Formação, perfil, atuação e o mundo do trabalho do bacharel em Saúde Coletiva: uma nova profissão Alba Regina Silva Medeiros Lidianni Cruz Souza Luan Cuiabano Arruda Tuanny Karen Souza Ramos | 199 | Introdução A história da Saúde Coletiva brasileira é bastante característi- ca do país, fruto de longa caminhada, iniciada no fim do século XIX. (BARROS, 2006). A ideia de formar profissionais em nível de graduação se vincula, inicialmente, ao acúmulo advindo da experiência institucional brasileira no ensino da Saúde Coletiva em diferentes cursos de graduação em saúde, soma- da à tradição da área, na pós-graduação lato e stricto sensu. A criação de uma graduação em Saúde Coletiva vem sendo proposta há quase duas décadas e discutida no meio acadê- mico de maneira mais sistemática, desde 2002. (BOSI; PAIM, 2009). Experiências internacionais de cursos semelhantes, bem como, as orientações contidas no documento referen- te às Funções Essenciais da Saúde Pública, elaboradas pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) em 2000, asso- ciadas às diretrizes curriculares para cursos de graduação, também figuram como subsídios importantes na construção dessas propostas. (BOSI; PAIM, 2010). A justificativa para a abertura dos cursos girou, inicial- mente, em torno de algumas referências como o documento da Organização Pan-Americana da Saúde (2000), que define dez serviços essenciais de saúde pública, ou Funções Essenciais de Saúde Pública. Além dessa justificativa, tivemos, ainda, o Projeto de Reestruturação e Expansão das Universidades (Reuni), do Ministério da Educação, que pressionou a abertu- ra de novas graduações nas universidades públicas, com a in- tenção de abrir novas vagas de ensino superior. Ainda temos, | 200 | como pano de fundo, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) que trazem uma formação mais abrangente do profis- sional de saúde, abrindo uma brecha para esse tipo de curso. (KOIFMAN; GOMES, 2008). Os debates em torno das vivências acumuladas, sejam nas universidades, sejam nas associações da área de saúde cole- tiva (Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO e Associação Brasileira Rede Unida), apontaram para a criação do curso de graduação específico, significando a instituição de uma nova carreira profissional. (ARRUDA, 2014). É nesse contexto que, em 2010, os docentes do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (ISC/UFMT), dirigido pela professora Maria Angélica Spinelli, aprovaram a criação do Curso de Graduação em Saúde Coletiva (CGSC). Em 2013, após quatro anos da implantação, o colegiado do curso aprova a proposta da Coordenação sobre o perfil do novo profissional. O perfil do graduado em Saúde Coletiva contemplará um conjunto de competências gerais e específicas, formando um profissional qualificado para o exercício em Saúde Coletiva, com base no rigor científico e intelectual, pautado em prin- cípios éticos e humanísticos. Tal profissional será capaz de conhecer e intervir sobre os problemas e situações de saúde- -doença mais prevalentes no perfil epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões políticas, sociais, culturais e históricas de seus determinantes. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO, 2013). Tendo em vista que a graduação em Saúde Coletiva ob- jetiva romper com as práticas e perfis profissionais tradi- cionais da Saúde Pública, o curso aponta para a formação | 201 | interdisciplinar, orientando o graduado a conquistar o mer- cado de trabalho com senso de responsabilidade social e com- promisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. (ARRUDA, 2014). Constituição e concepção do Curso de Graduação em Saúde Coletiva De acordo com Bosi e Paim (2010), ainda que se reconheça certa arbitrariedade ao se demarcar a gênese de processos sociais, pode-se, no que se refere à criação dos Cursos de Graduação em Saúde Coletiva (CGSC), recuperar um percurso pontuado por alguns marcos. Uma das primeiras iniciativas foi da ABRASCO duran- te uma reunião nacional, em 1983, para discutir o ensino da Saúde Coletiva nos cursos de graduação em geral. Embora a intenção de uma graduação em Saúde Coletiva não tenha sido explicitada, os participantes recomendaram um “Núcleo de Graduação” na entidade, com vistas a influenciar a graduação dos cursos da saúde, o que seria um investimento estratégico na Reforma Sanitária Brasileira. (ARRUDA, 2014). Outras duas oficinas representaram marcos fundamen- tais nesse percurso. A primeira ocorreu em setembro de 2002 com o apoio do Ministério da Saúde, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) e contou com representantes da ABRASCO e de universidades. Essa oficina foi organizada pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e foi intitulada “Graduação em Saúde Coletiva: pertinência e | 202 | possibilidades”. Em julho do ano seguinte, uma atividade pré- via do IV Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva nomeada de “É tempo de termos uma graduação em Saúde Coletiva?”, ocor- rida em Brasília, ganhou destaque e participação no painel de 800 participantes. (ARRUDA, 2014). Com a realização de uma reunião em Belo Horizonte, se- guida do Encontro Nacional sobre a Implantação do CGSC, em Salvador, em agosto de 2008, promovido pela UFBA com o apoio do Ministério da Saúde (MS) e OPAS, ocorreram os primeiros processos seletivos por meio do vestibular: a Universidade Federal do Acre (UFAC) e Universidade de Brasília (UnB) co- meçaram as primeiras turmas de graduação em Saúde Coletiva do Brasil, no segundo semestre desse ano. No início de 2009, o curso teve início nas Universidades Federais do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul e da Bahia (UFRJ, UFRGS e UFBA, respec- tivamente) e, em 2010, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com o objetivo de formar o profissional graduado em Saúde Coletiva, visando atender as necessidades da saúde, com base nos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). As políticas voltadas à inclusão social, à expansão do ensino superior e à necessidade na implantação do Sistema Único de Saúde de novos profissionais, com capacidade de dar respos- tas generalistas, ampliadas e diferenciadas, que vão além das graduações tradicionais existentes no país, intensificaram os movimentos. (BOSI; PAIM, 2009). O CGSC está presente nas cinco regiões do Brasil com cer- ca de 280 profissionais formados pelas graduações em Saúde Coletiva, sendo que até 2015 já se contam 24 cursos no Brasil, das quais nove não possuem a mesma nomenclatura, como por exemplo: Saúde Coletiva Indígena/Universidade Federal de | 203 | Roraima (UFRR); Saúde Ambiental/Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Gestão de Serviços de Saúde/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Saúde Pública/Universidade de São Paulo (USP); Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde/ Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), den- tre outras. A Universidade de Brasília (UnB), recentemente, adotou o nome do Curso de Saúde Coletiva. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA, 2015). A elaboração de uma proposta pedagógica para a forma- ção do profissional de saúde coletiva busca o enfrentamento de problemas e de necessidades apontadas ao longo dos anos pela demanda social e política, pois as críticas, ao processo formativo dos profissionais da saúde, pautam, ainda, o mo- delo hegemônico de formação predominantemente voltado para a prática curativa, unicausal, flexneriana, de intervenção na doença e centrada no indivíduo. Essa formação prioriza o cuidado, individual e direcionado, em detrimento da for- mação voltada para uma visão mais complexa e interligada com a realidade e o gerenciamento das demandas e das infra- estruturas. Os problemas na formação estão relacionados às deficiências na produção dos serviços de saúde pelo distancia- mento dos profissionais em relação às reais necessidades da população, bem como pelo privilégio à assistência hospitalar e individualizada, o que perpetua a dicotomia prevenção-cura. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO, 2013). Em contrapartida, a reforma sanitária, que desencadeou o paradigma sanitário de saúde no país, está pautada em um mo- delo valorizador da integração setorial, profissional e comuni- tária, por meio da construção de novos saberes e de práticas em saúde e o uso de metodologias diferenciadas e de instrumentos | 204 | de ação orientados por uma visão ampliada de saúde e o resgate da universalidade, equidade e integralidade. Na concepção pro- posta do Curso no ISC/UFMT, o trabalho educativo promove e facilita experiências de interação – interlocução (diálogo) em torno do objeto de conhecimento. A valorização do diálogo nos espaços de ensino é fundamental, bem como a articulação e a re- flexão sobre as vivências cotidianas e suas relações com concei- tos e com categorias teóricas. Os conceitos ensinados devem ter conexão com aquilo que a pessoa já sabe – outros conceitos cien- tíficos ou conceitos que se desenvolvem a partir de experiências pessoais. Essa articulação favorece a aprendizagem à medida que o conteúdo novo se apresenta de forma significativa. Essa articulação de conceitos, efetua-se a partir da compreensão de que o conhecimento não se dá de forma linear e simplesmente progressiva. Ao contrário, o conhecimento se constrói numa rede de entrelaçamentos diversos para cada indivíduo e em cada contexto sociocultural. (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO, 2013). A Saúde Coletiva é um campo científico onde se produzem saberes e conhecimentos acerca do objeto “saúde” estrutura- dos, pedagogicamente, como eixo de construção do aprendi- zado sobre o tripé das três áreas constituintes: Epidemiologia; Ciências Sociais em Saúde e Política, Planejamento e Gestão. (CECCIM; FEUERWERKER, 2004). Seguindo esses princípios, o trabalho educativo é pautado no desenvolvimento de postura investigativa, na construção de conceitos e na compreensão lógica dos fenômenos que estão sendo estudados. | 205 | Diretrizes curriculares, perfil de competências do bacharel em Saúde Coletiva Em qualquer área, sempre se procura saber qual o perfil dos seus profissionais, uma vez que o desenvolvimento/crescimen- to da profissão depende da atuação desses. Com o CGSC não é diferente. Devido a seu pouco tempo de existência, é ainda mais importante estudar o perfil desses novos profissionais da saúde. (ARRUDA, 2014). Embora os primeiros CGSC tenham formado seus egressos apenas no ano de 2012, a discussão para criar uma graduação voltada para a formação em saúde pública remete à Reforma Sanitária Brasileira (RSB). Como vimos, era necessária uma mudança na formação do profissional em saúde marcada por uma reflexão crítica, propositiva, com capacidade de articula- ção, de criação e de poder de escuta e que não ficasse restrita às discussões na área, seja na pós-graduação lato, seja na stricto sensu. (ARRUDA, 2014). O conjunto de conhecimentos, de habilidades e de atitudes e o saber agir do bacharel em Saúde Coletiva, apto ao mercado de trabalho, ainda é motivo de debates. Considerando o parecer do Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação (CNE/MEC) nº 1133/2001, todos os profissionais da área da saúde devem apresentar competências de atenção à saúde, à educação permanente, à comunicação, à tomada de decisões, à liderança, à administração e ao gerenciamento. Na UFMT, o bacharel em Saúde Coletiva, que compõe uma equipe multidisciplinar, deverá ser capaz de fazer a gestão de sistemas e de serviços de saúde; avaliá-la a partir de dados epidemiológicos, relacionando-os com os conhecimentos das | 206 | Ciências Sociais, na busca do fortalecimento da integralidade e da equidade na atenção à saúde (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO, 2013). De acordo com Koifman e Gomes (2008), o perfil do egresso em Saúde Coletiva seria o de um profissional qualificado para atender as necessidades sociais de saúde e para gerenciar pro- cessos coletivos de trabalho em saúde. Ademais, seria capaz de realizar ações de vigilância, de planificação, de gestão, de con- trole, de avaliação, de auditoria, além de intervenções sociais organizadas dirigidas à promoção, à proteção, à comunicação e à educação em saúde. O Fórum de Graduação em Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (FGSC/ABRASCO) propôs, no pri- meiro semestre de 2015, uma resolução ao Conselho Nacional de Educação (CNE) que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais dos CGSC. Tendo o objetivo de defender a saúde enquanto direito de todos e dever do estado, como previsto na Constituição Federal, bem como um direito social imprescindí- vel à construção da cidadania plena, assim, de acordo com essa proposta do FGSC/ABRASCO, o bacharel em Saúde Coletiva: Artigo 3: [...] terá formação integral, crítica, reflexiva e ética, sob a perspectiva da integralidade na atenção à saúde, da parti- cipação popular e da descentralização político-administrativa, com capacidade para analisar e atuar em políticas e sistemas de saúde, em avaliação e monitoramento da situação de saúde, em vigilância da saúde, no controle de danos e riscos à saúde das po- pulações, na planificação e gestão de sistemas e serviços de saúde, com destaque ao acesso equitativo da população aos serviços de saúde de que necessite, na educação e promoção da saúde e no | 207 | desenvolvimento científico e tecnológico em saúde, com respon- sabilidade social, compromisso com a dignidade humana e forta- lecimento da capacidade institucional do Sistema Único de Saúde. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA, 2015, p. 2). Práticas transformadoras Na graduação em saúde coletiva, onde o arcabouço teórico é robusto e a prática bastante complexa, do ponto de vista de sua relevância, dos atores envolvidos (gestores, trabalhadores e usuários) e de seu cenário, torna-se imprescindível que o campo da prática possa propiciar um caráter crítico reflexivo que instrumentalize o egresso do curso para se fazer protago- nista das mudanças que o “campo” requer em seu cotidiano. (CORREIA, 2008). A concepção da proposta para a construção do campo de atuação do bacharel em Saúde Coletiva passa pela construção coletiva, envolvendo a Coordenação do Curso de Graduação, Comissão de Práticas e Estágio, Núcleo Docente Estruturante (NDE), formada, assim, por docentes representantes das áreas de Epidemiologia, de Ciências Sociais e Humanas e de Políticas, Planejamento e Gestão, além de representantes dos discentes, dos técnicos administrativos do CGSC e por atores sociais en- volvidos no campo. O foco da atuação parte do âmbito individual e cole tivo e abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, desenvolvidas por meio do exercício de práticas de gestão participativa e democrática e trabalho em equi- pe, e são dirigidas a populações definidas, considerando a | 208 | complexidade existen te no território em que vivem essas po- pulações. (LAVRAS, 2011). Nessa perspectiva, os discentes são estimulados a contem- plarem a realidade e, a partir dessa reflexão, a buscarem as explicações e a elencar ações que sejam capazes de intervir e/ ou cooperarem em uma determinada situação, visando mo- dificá-la. Dessa forma, o foco da aprendizagem desloca-se do docente para o próprio discente. (BERBEL, 1998). De acordo com Martins, Medeiros e Castro (2015), no cená- rio do ISC/UFMT o sanitarista, formado em outro paradigma, diferente da formação biologicista dos cursos de saúde, arti- cula os saberes dos três pilares do campo da Saúde Coletiva: Epidemiologia; Política, Planejamento e Gestão e Ciências Humanas e Sociais em Saúde e os conhecimentos próprios do território onde atua na esfera coletiva e populacional, além de sua inserção no âmbito do ensino e pesquisa. Também é estimulado a valorizar a Intersetorialidade com envolvimento de diferentes atores e equipamentos sociais e de saúde do terri- tório, com ênfase na Promoção da Saúde, na Sustentabilidade, na Inovação e na Criatividade. De acordo com as Diretrizes do Curso no ISC/UFMT, a Atenção Primária é o foco principal para o desenvolvimento dos profissionais, sendo a coordenadora da rede de atenção à saúde, que demanda serviços a todos os outros níveis de complexidade: Secundário, Terciário e de Alta Complexidade. Os profissionais também atuam nos níveis centrais das Secretarias Municipais e Estadual de Saúde onde, também, vivenciam as práticas de polí- tica, de planejamento, de epidemiologia, de gestão e de organiza- ção dos serviços nos diversos setores, com intuito de promover redes entre os serviços e as políticas, tais como: Educação, | 209 | Segurança, Lazer, Cultura, Esporte, Feira de Abastecimento de frutas e verduras, Base Comunitária da Polícia Militar, Centro de Referência e Assistência Social (CRAS), Associação de Moradores de Bairros e Conselhos Tutelares, dentre outros. Mundo do trabalho A criação do CGSC foi ancorada, principalmente, para atender uma demanda de gestores do SUS que buscam uma forma de preencher os vazios de profissionais em determinados locais e serviços de saúde, realidade esta problematizada há muito pelos governos Estaduais e Municipais e pelo Ministério da Saúde. (BOSI; PAIM, 2009). Nesse sentido, tendo os primeiros egressos formados em 2012, e sabendo quem são esses novos atores, precisamos sa- ber onde estão após a graduação. Em recente pesquisa, desen- volvida pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), aplicou-se um questionário para os egressos do referido curso, com o retorno de 144 questionários res- pondidos. Os resultados encontrados apontaram que apenas 42,4% estão atuando na área de formação. A justificativa para a não atuação se deu, em maior parte, pelas dificuldades en- contradas para atuar no mercado de trabalho (57,8%), e 18,1% atribuíram à necessidade de dedicação exclusiva a pós-gra- duação. (PINO et al., 2015). Para Elias (2003, p. 3), [...] o primeiro compromisso de um novo curso com os jovens alunos deve ser o de possibilitar trabalho ao final da graduação, pois o Brasil não pode continuar se dando ao luxo de formar | 210 | profissionais para que o mercado de trabalho os desqualifique num círculo de ferro de enorme desperdício de recursos sociais e, porque não dizer, de talentos individuais e das melhores es- peranças de uma juventude socialmente generosa e engajada na construção de uma sociedade menos desigual. Ainda assim, verificou-se a amplitude dos espaços que estão sendo ocupados por esses atores: são coordenadores, analis- tas, consultores, residentes, pesquisadores inseridos nas três esferas de governo. Cabe ressaltar que 67% dos egressos en- trevistados estão cursando alguma pós-graduação lato sensu e 33% inseridos no mestrado e doutorado. (PINO et al., 2015). Entretanto, o processo de regulamentação da profissão ainda não aconteceu, o que ocasiona prejuízos à carreira do sanitarista e, também, à consolidação do SUS, tema da oitava reunião do FGSC/ABRASCO – 2015. No encontro, além da fi- nalização da proposta das Diretrizes Nacionais Curriculares (DNC), a ser encaminhada para o Ministério da Educação, de- liberou-se a continuidade no processo de regulamentação pro- fissional, tendo como encaminhamento a inclusão da ocupação de sanitarista na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) seja por formação graduada, seja por formação pós-graduada. | 211 | Considerações finais Na segunda década da implantação do SUS, criou-se o CGSC, cujos egressos são profissionais qualificados e com perfil para enfrentar os grandes desafios e contribuir para o futuro das políticas públicas e do sistema de saúde vigente no país, arti- culando os diferentes setores. Entendemos que a atuação desse novo profissional está diretamente relacionada ao conceito do processo saúde-do- ença desenvolvido durante toda a formação com base na in- teração entre as três áreas de conhecimento que constituem o campo da Saúde Coletiva e, posteriormente, vivenciado no mundo do trabalho. O território onde a população usuária do SUS vive é onde se concretiza o trabalho dos sanitaristas – profissionais capazes para atuar na superação dos problemas atuais e na efetiva- ção de princípios e de valores para o bem-estar coletivos, com práticas voltadas para a promoção, a prevenção e a vigilância em saúde. Esses profissionais contribuem, significativamente, para as políticas públicas de saúde do país. | 212 | Referências ARRUDA, Luan Cuiabano. Estudantes do curso de graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso: perfil e participação em movimentos sociais, 2010 – 2013. 2014. 78f. Trabalho de conclusão de curso, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2014. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA. Proposta de Resolução CNE/CNS que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Saúde Coletiva e dá outras providências. In: REUNIÃO DO FÓRUM DE GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA, 8.; CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA, 11., 2015, Goiânia. [Minuta]. [S.l.], [2015?]. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2015. BARROS, Aluísio J. D. Produção científica em saúde coletiva: perfil dos periódicos e avaliação pela Capes. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. esp., p. 43-49, ago. 2006. DOI: < http://dx.doi. org/10.1590/S0034-89102006000400007>. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2015. BERBEL, Neusi Aparecida Navas. A problematização e a aprendizagem baseada em problemas: diferentes termos ou diferentes caminhos?. Rev. Interface, Botucatu, v. 2, n. 2, p. 139-154, fev. 1998. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2014. | 213 | BOSI, Maria Lúcia Magalhães; PAIM, Jairnilson da Silva. Graduação em Saúde Coletiva: subsídios para um debate necessário. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 236-237, fev. 2009. DOI: . Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2014. ______. Graduação em Saúde Coletiva: limites e possibilidades como estratégia de formação profissional. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 4, p. 2029-2038, jul. 2010. DOI: < http:// dx.doi.org/10.1590/S1413-81232010000400017>. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2014. CECCIM, Ricardo Burg; FEUERWERKER, Laura C. Macruz. O quadrilátero da formação para a área da saúde: ensino, gestão, atenção e controle social. Physis: Rev. Saúde Coletiva, v. 14, n. 1, p. 41-65, 2004. DOI: . Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2015. CORREIA, Wilson; BONFIM, Claudia. Práxis pedagógica na filosofia de Paulo Freire: um estudo dos estádios da consciência. Rev. Trilhas Filosóficas, ano 1, n. 1, p. 55-66, 2008. ELIAS, Paulo Eduardo. Graduação em Saúde Coletiva: notas para reflexões. Rev. Interface, Botucatu, v. 7, n. 13, p. 167-170, ago. 2003. DOI: . Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2015. | 214 | KOIFMAN, Lilian; GOMES, Lina Nunes. A graduação em saúde coletiva: um debate ou uma realidade?.Rev. Bras. Educ. Med., Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, p. 417-418, dez. 2008. DOI: . Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2015. LAVRAS, Carmen. Atenção primária à aaúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saúde Soc., São Paulo, v.20, n.4, p. 867-874. 2011. MARTINS, Maria Angela Conceição; MEDEIROS, Alba Regina Silva; CASTRO, Marta de Lima. A implantação do estágio supervisionado em saúde coletiva. Rev. Ensino, Saúde e Ambiente, v. 8, n. 2, p. 50-58, 2015. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Funções essenciais de saúde pública. 2000. Disponível em: < http://www.paho.org/bra/index.php? option=com_ content&view=article&id=340&Itemid=445>. Acesso em: 19 fev. 2014. PINO, Michel Reina et al. Levantamento dos egressos da graduação em saúde coletiva no Brasil: onde está o sanitarista formado por essa graduação? São Paulo: USP, 2015. 32p. Relatório final/projeto de pesquisa. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO. Instituto de Saúde Coletiva. Coordenação do Curso de Graduação em Saúde Coletiva. Projeto pedagógico do curso de graduação em saúde coletiva. Cuiabá, 2013. 146 p. O desafio de formar profissionais para o Sistema Único de Saúde do Brasil Janete Lima de Castro Dyego Leandro Bezerra de Souza Mauricio Roberto Campelo de Macedo Ana Tania Lopes Sampaio Isa Maria Hetzel de Macedo Thais Paulo Teixeira Costa Karla Aparecida Rodrigues dos Santos Rafael Rodolfo Tomaz de Lima | 216 | Introdução A expansão da oferta de serviços e a implantação das redes descentralizadas e regionalizadas do Sistema Único de Saúde (SUS), centradas nos princípios da universalidade e da inte- gralidade, trouxeram para o sistema de saúde muitos desafios. Dentre tantos, um dos mais expressivos é a necessidade de qua- lificar a gestão dos serviços de saúde. Nesse contexto, propor políticas, tendo em vista a qualificação da gestão, passou a ser uma prioridade. Consciente de seu papel na sociedade brasileira e da complexidade do seu contexto histórico, as universidades públicas passam a ofertar cursos de graduação, visando a formação de gestores da saúde generalistas com uma visão histórica e compreensiva acerca das relações entre o Estado e a Sociedade, do homem como totalidade integrada com a natureza e a cultura, e da saúde como campo de interesses diversos, permitindo o exercício da gestão no contexto con- temporâneo das políticas públicas e de saúde, do trabalho humanizado, em equipe, e das novas formas de gestão de- mocráticas colegiadas. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE, 2014). Um desses cursos consiste no objeto de investigação des- ta pesquisa. Diante disso, foram problematizados os seguin- tes questionamentos: Que curso é esse? O que pensam os alunos sobre a importância dessa formação para o SUS do Brasil? Considerando que se trata de uma nova profissão no cenário brasileiro, que expectativas de emprego tem o futuro | 217 | profissional? Essas foram algumas das questões que nortea- ram a elaboração do estudo que resultou neste texto. Tendo esses questionamentos como bússola, foram defi- nidos os seguintes objetivos: analisar a formação em Saúde Coletiva a partir da visão dos alunos dos cursos de gradua- ção; analisar as expectativas sobre o mercado de trabalho dos alunos do Curso de Graduação em Saúde Coletiva e analisar a percepção dos alunos sobre a contribuição da formação em saúde coletiva para a gestão dos serviços de saúde. Material e métodos utilizados Trata-se de um estudo com abordagem qualitativa, do tipo es- tudo de caso. Foi utilizada a técnica do grupo focal para a coleta de dados. (GATTI, 2005). Participaram do grupo focal estudantes do curso de gra- duação em Saúde Coletiva da UFRN, de períodos variados, atendendo ao convite da coordenação da pesquisa. Para rea- lização do grupo focal, foi elaborado um roteiro prévio com questões abertas, tendo em vista nortear as discussões que foram gravadas e transcritas na íntegra. Já para a análise dos dados, foi utilizada a técnica de Análise de Conteúdo. (BARDIN, 2004; FRANCO, 2008). | 218 | À guisa de apresentar o curso de graduação em Saúde Coletiva da UFRN A literatura mostra que, embora no contexto brasileiro o movi- mento de criação dos cursos de graduação em Saúde Coletiva seja recente, a ideia de uma graduação em Saúde Coletiva não é nova. (BOSI; PAIM, 2010). Pelo contrário, afirmam os autores referenciados, a discussão de criação de uma graduação em Saúde Coletiva se iniciou há mais de duas décadas. Nos meios acadêmicos, essa discussão assumiu mais força a partir de 2002, vindo a se tornar realidade em 2008, com a criação dos primeiros cursos de graduação em Saúde Coletiva. A criação desses cursos é uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) do Brasil e se insere na política de expansão da Rede Federal de Educação Superior, que conta com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007. O objetivo principal do Reuni consiste em ampliar o acesso e a permanência dos estudantes na educação superior, com o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país. Com o Reuni, o governo federal adotou uma série de medidas para retomar o crescimento do ensino superior público, criando condições para que as universidades federais promovam a expansão física, acadêmica e pedagógica da rede federal de educação superior. As ações do programa contemplam o au- mento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos, a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, dentre outras metas. | 219 | Nesse contexto, foi criado o curso de graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, re- sultado de uma iniciativa do Departamento de Saúde Coletiva do Centro de Ciências da Saúde. O citado curso foi, no ato de sua criação, denominado Gestão em Sistemas e Serviços de Saúde. Encontra-se, atualmente, em processo de mudança de nome para Saúde Coletiva. A proposta de criar um curso de graduação dessa nature- za responde às demandas local, regional e nacional pela pro- fissionalização da gestão em saúde, como também atende às diretrizes da recente política educacional do governo brasi- leiro. No estado do Rio Grande do Norte, a criação do curso de graduação em Saúde Coletiva justifica-se pela ausência de profissionais graduados aptos para a gestão das organizações e sistemas de saúde e pela presença de uma demanda reprimida em busca dessa formação. De acordo com o Projeto Pedagógico do curso de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2014), o profissional de Saúde Coletiva deve ser capaz, den- tre outras ações, de § compreender o contexto da globalização no mundo con- temporâneo, as novas formas de ação estatal e de regulação do mercado e suas repercussões na cultura, na sociedade e na saúde; § analisar e compreender as diferentes concepções e necessi- dades sociais de saúde da população, o processo saúde-doen- ça como um fenômeno complexo e diagnosticar as demandas por ações e serviços de saúde nos vários contextos; § manejar as informações sobre saúde e serviços de saúde, a partir dos vários sistemas de informação, na perspectiva | 220 | de definir prioridades para a gestão e formular políticas institucionais; § conhecer e aplicar a legislação vigente na gestão em saúde, especialmente, o direito à saúde; § conhecer e utilizar métodos e ferramentas do planejamento, programação, monitoramento e avaliação em saúde, assim como a regulação de ações e serviços de saúde; § exercitar o diálogo e a negociação no trabalho; § propor projetos de educação permanente das equipes de saúde, articulados com parceiros interinstitucionais e os agentes sociais; § atuar na perspectiva de uma prática de gestão que seja capaz de estabelecer interfaces, interações e intercomplementa- riedades diversas: entre níveis de governo, áreas e institui- ções, setores organizacionais, programas, ações e grupos de trabalho; § identificar os pressupostos da arquitetura organizacional, compreender os modelos de organização e de gestão, traçar novos arranjos comprometidos com a gestão descentraliza- da e democrática e construir alternativas de organização e estratégias de mudança nos serviços de saúde; § conhecer e utilizar a gestão de materiais e equipamentos compreendendo-a como aspecto importante para a racio- nalização dos gastos nos serviços de saúde; § identificar as ferramentas e técnicas para o processo de me- lhoria da qualidade, incluindo a implantação de sistemas de garantia da qualidade; | 221 | § compreender sua profissão e atuação de forma articulada ao contexto social, atuando com base na ética, no compromisso social e nos direitos de cidadania; § conhecer métodos e técnicas de investigação e elaboração de trabalhos acadêmicos e científicos. Dialogando com os resultados encontrados A análise das falas dos estudantes participantes do grupo focal revelou uma reflexão madura feita por um grupo de jovens que aposta na sua formação acadêmica como uma estratégia determinante para a melhoria e o fortalecimento da gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme se observa nos depoimentos a seguir: Considerando que os maiores problemas no SUS são de gestão, eu creio que este curso tem grande importância para o SUS e para a sociedade. (Informação verbal). Acho que mais do que importante, é fundamental. O nosso curso é fundamental para dar a guinada no sistema, para promover melhorias. (Informação verbal). Para escolher o curso, eu olhei para os componentes curriculares [...] e vi a necessidade do profissional de saúde coletiva na gestão. Foi minha primeira opção, estou gostando, me apaixonei mesmo pelo curso. (Informação verbal). | 222 | Acho que é fundamental formar profissionais que saibam valo- rizar o SUS e o curso faz isso. (Informação verbal). Os resultados encontrados também destacam a importância das atividades pedagógicas que apostam no aprendizado de forma construtiva, associado a um contexto real, como pode ser evidenciado nos depoimentos que seguem: Eu acredito que o curso está estruturado de forma que a gente consiga, ao concluí-lo, atingir todas as competências e habilidades. (Informação verbal). Acho que as disciplinas estão bem orientadas para as necessida- des dos serviços de saúde. Elas se complementam, são integradas. (Informação verbal). Acho que a complementaridade entre as disciplinas é muito im- portante. O fato de a cada período a gente poder fazer um trabalho prático que integra todas as disciplinas é muito importante para a nossa formação. A gente aprende e pratica. (Informação verbal). Quanto às expectativas dos alunos acerca do mercado de trabalho, o estudo revela que há inseguranças e ansiedades em relação ao futuro. Todavia, eles mesmos reconhecem que esses sentimentos estão também presentes em outros cursos, como demonstram os seguintes depoimentos: Quanto a essa questão de quando se formar, como é que vai ser? Eu acho que todo mundo, de todos os cursos, passa por isso. Eu estou terminando outra graduação, em Psicologia, eu vou me formar nesse ano, e aí?! Como é que vai ser depois? (Informação verbal). | 223 | Eu me sinto preocupado também como todos os outros, mas não desanimado. É claro que por se tratar de uma profissão que de certa forma está se consolidando, ainda é preciso muita coisa para o seu reconhecimento pelas instituições de saúde. Mas, essa luta cabe a nós, estudantes e egressos. É importante que nos unamos em torno dessa questão e irmos à luta, articulando, divulgando e aproveitando espaços que já conquistamos. (Informação verbal). Ficou evidente que, apesar das dificuldades de emprego e da existência de contratos ainda instáveis, os estudantes in- vestigados acreditam que existe a necessidade da presença de profissionais qualificados em gestão de saúde nos serviços de saúde e que há um mercado de trabalho a ser desbravado e conquistado. Para essa conquista, eles pretendem se qualifi- car cada vez mais na área, apostando na mudança das atuais condições de gestão de muitos dos estabelecimentos do SUS, a partir da existência de pessoas profissionalizadas em gestão dos serviços de saúde. A análise dos dados ainda informa que os alunos acreditam que a graduação em Saúde Coletiva pode fazer grande diferen- ça na gestão do Sistema Único de Saúde do Brasil. Os depoimen- tos a seguir são bastante reveladores da crença do potencial de cada um deles, a partir da formação que estão adquirindo. Eu acho que o curso dá essa visão pra gente... de puxar a espa- da e dizer que vai mudar o mundo. Vejo todos os alunos com essa paixão: eu vou conseguir mudar, eu vou conseguir fazer. (Informação verbal). Eu espero ser a melhor profissional que for possível e pensar sempre no usuário. (Informação verbal). | 224 | Espero ser a mudança que tanto quero. Quero trazer a inovação. Acredito que o curso me dará essa capacidade! (Informação verbal). Eu quero ser uma gestora competente e considerar tudo que eu aprendi, quero colocar tudo em prática. Quero ser a mudança, a renovação e implementar coisas que ajudem a melhorar o sistema em que eu estou trabalhando. (Informação verbal). Coerente com um contexto que exige mudanças, o aluno se coloca na perspectiva de ator social, conforme Gramsci (1982). A leitura desses depoimentos revela o desejo de mu- dar uma ordem político-cultural geradora de grandes dificul- dades e que traz pobreza e sofrimento material e espiritual (MATURANA,  1998) para a grande parte da população usuária do Sistema de Saúde do Brasil. Mas, sobretudo, as falas dos estudantes evidenciam para quem eles querem melhorar os serviços de saúde, demonstrando, assim, o comprometimento desses futuros profissionais para com a sociedade. Se não há dúvidas, por parte dos estudantes, sobre a impor- tância do Sistema Único de Saúde para a população brasileira, também não há dúvidas sobre a importância da formação em Saúde Coletiva como uma estratégia para melhorar os serviços prestados à população por esse Sistema. Percebe-se, nas falas dos sujeitos envolvidos na pesqui- sa, o desejo comum de devolver ao país o que está se rece- bendo dele, numa perspectiva de responsabilidade social. (MATURANA, 1998). Destaca-se, ainda, a intenção dos estudan- tes de serem partícipes do fortalecimento do sistema de saúde, movendo-se como gestor/educador, mas, sobretudo, como gen- te, como preconiza Freire (1996), que não apenas sonha com o | 225 | desenvolvimento de uma prática ética nos serviços de saúde, mas a pratica, fazendo, de fato, com que ela aconteça. No contexto de uma sociedade de mudanças, os jovens es- tudantes do Curso de Gestão em Sistemas e Serviços de Saúde se dirigem para um mundo desconhecido, em que a incerteza parece ser uma das palavras-chave. Todavia, numa situação aparentemente paradoxal, esses jovens seguem confiantes no que querem fazer. A segurança do que querem ser e fazer apresentada pelos jovens estudantes colaboradores dessa pesquisa, autoriza os autores desse artigo a afirmarem que a graduação em Saúde Coletiva da UFRN será um elemento diferencial na qualifica- ção e na profissionalização da gestão dos serviços públicos de saúde do Brasil. Considerações finais A leitura e a análise do discurso dos participantes do grupo focal confirmam a pertinência da formação em Saúde Coletiva para a gestão dos serviços de saúde, desde que os cursos desen- volvidos pelas instituições de ensino saibam dialogar com as necessidades apresentadas pela população usuária dos ser- viços de saúde. Espera-se que as contribuições desse estudo reforcem a im- portância das universidades enquanto parceiras dos sistemas de saúde, na perspectiva de contribuir para a melhoria dos processos de gestão do setor saúde, tendo em vista as mudan- ças na qualidade de vida e de saúde da população. Para tanto, as instituições de ensino e de serviço precisam estar abertas ao diálogo constante. | 226 | No campo da Saúde Coletiva, observa-se, a partir das falas dos alunos, a existência de uma sensibilidade para escutar o outro. É com essa disponibilidade de escuta que eles estão construindo a segurança necessária para serem futuros ges- tores dos serviços de saúde do Brasil. | 227 | Referências BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004. BOSI, Maria Lucia Magalhães; PAIM, Jairnilson Silva. Graduação em saúde coletiva: limites e possibilidades com estratégia de formação profissional. Ciências & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.15, n. 4, p. 2029-2037, 2010. FRANCO, Maria Laura P. B. Análise de conteúdo. Brasília: Liber Livro, 2008. (Série pesquisa, v. 6). FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção leitura). GATTI, Bernadete Angelina. Grupo focal na pesquisa em ciências sociais e humanas. Brasília: Liber Livro, 2005. (Série pesquisa em Educação, v. 10). GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE. Projeto pedagógico de gestão em sistemas e serviços de saúde. Natal, RN, 2014. 50 p. (Digitado). | 228 | Sobre os autores Alba Regina Silva Medeiros Mestre em Saúde Coletiva.  Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (e-mail: albarsm@terra.com.br). Aldenísia Alves Albuquerque Barbosa Mestre em Odontologia e Preventiva Social. Pesquisadora do Núcleo de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: aldenisiaalbuquerque@gmail.com). Ana Tânia Lopes Sampaio Doutora em Educação. Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: anatsampaio@hotmail.com). Andriério Lopes Pereira Sobrinho Especialista em Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Secretário adjunto da Secretaria Municipal de Saúde de Jucurutu/RN (e-mail: andrierio@gmail.com). Anicélia Cristina de Oliveira Especialista em Gestão Pública. Farmacêutica Bioquímica do Laboratório do Hospital Monsenhor Antônio Barros – São José de Mipibu/RN (e-mail: annycelya@yahoo.com.br). | 229 | Bruno Guimarães de Almeida Mestre em Saúde Coletiva. Diretor de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (e-mail: bguial1@yahoo.com.br). Daiany Oliveira Pitombeira Especialista em Gestão Pública (e-mail: yaneoliveira@hotmail.com). Dyego Leandro Bezerra de Souza Doutor em Microbiologia e Saúde Pública. Professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: dysouz@yahoo.com.br). Flávia Christiane de Azevedo Machado Doutora em Saúde Coletiva. Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte ( e-mail: flavitamachado@yahoo.com.br). Isa Maria Hetzel de Macedo Mestre em Saúde Pública. Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: ishetzel@hotmail.com). Jane Suely de Melo Nóbrega Mestre em Saúde Coletiva. Professora do Centro de Formação de Pessoal para os Serviços de Saúde do Rio Grande do Norte (e-mail: janenobrega@gmail.com). | 230 | Janete Lima de Castro Doutora em Educação. Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coordenadora do ObservatórioRH-UFRN (e-mail: janetecastro.ufrn@gmail.com). Jônia Cybele Santos Lima Mestre em Odontologia com Área de Concentração em Saúde Coletiva. Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: joniacybele@yahoo.com.br). Jorge Luiz de Castro Especialista em Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Apoiador Nacional da Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS (e-mail: jorgecastrorn@hotmail.com). Karla Aparecida Rodrigues dos Santos Bacharel em Gestão em Sistemas e Serviços de Saúde da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: karlinhaparecida@gmail.com). Lenina Lopes Soares Silva Doutora em Educação. Professora do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: lenina.lopes@ifrn.edu.br). Lidianni Cruz Souza Enfermeira. Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (e-mail: lidianni@gmail.com). | 231 | Luan Cuiabano Arruda Especialista em Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Apoiador Institucional do Ministério/Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (e-mail: luan_cuiabano@hotmail.com). Maraisa de Fátima Almeida Especialista em Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Consultora da Organização Pan-Americana da Saúde/ Ministério da Saúde (e-mail: maraisa.almeida@saude.gov.br). Marcio Lemos Coutinho Mestre em Saúde Coletiva. Assessor da Escola de Saúde Pública da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia. (e-mail: marcio.eesp@gmail.com). Mauricio Roberto Campelo de Macedo Doutor em Saúde Pública. Professor do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: macemauri@hotmail.com). Nathalia Hanany Silva de Oliveira Especialista em Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Pesquisadora do ObservatórioRH-UFRN (e-mail: nathaliahanany@hotmail.com). Rafael Rodolfo Tomaz de Lima Especialista em Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Pesquisador do ObservatórioRH-UFRN (e-mail: limarrt@gmail.com). | 232 | Rosana Lúcia Alves de Vilar Doutora em Ciências Sociais. Professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: rosanaalvesrn@gmail.com). Rossana Mota Costa Mestre em Odontologia e Preventiva Social. Professora do Centro de Formação de Pessoal para os Serviços de Saúde do Rio Grande (e-mail: rossanacosta3@gmail.com). Tatiana de Medeiros Carvalho Mendes Especialista em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana. Sanitarista do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (e-mail: tameca@hotmail.com). Thais Paulo Teixeira Costa Especialista em Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Pesquisadora do ObservatórioRH-UFRN (e-mail: thaiis.paulo@hotmail.com). Tuanny Karen Souza Ramos Bacharel em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (e-mail: tkaren8@hotmail.com).