UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS – LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM MESTRADO EM LITERATURA COMPARADA O FRAGMENTO EM TUTAMÉIA E NO LIVRO SOBRE NADA ROBEILZA DE OLIVEIRA LIMA NATAL 2009 2 ROBEILZA DE OLIVEIRA LIMA O FRAGMENTO EM TUTAMÉIA E NO LIVRO SOBRE NADA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudos da Linguagem, vinculada à linha de pesquisa Poéticas da Modernidade e da Pós-Modernidade, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Literatura Comparada. Orientadora: Profª Drª Joselita Bezerra da Silva Lino 3 Àquele que plantou a minha vida em solo fértil e a fez germinar. Ao que com tanto amor a regou e a fez prosperar, tornando-a árvore frondosa. Àquele que me ajuda a ir além dos desertos desta vida, às correntes de água a verter para sempre. Ao que me diz com voz gentil: não tema, eu estou com você... Eu lhe ajudo, eu sou o seu Deus, aquele que lhe sustenta e que lhe envolve com cordas de amor, que lhe abre portas de salvação. Ao meu Deus, o amado de minh’alma, eu dedico este trabalho. Àqueles que investiram sonhos em mim e não pouparam esforços para me sustentar e me encorajar. Aos meus queridos pais também é ele devotado. 4 AGRADECIMENTOS A DEUS, a origem e tudo, oceano em amor transfeito, meu eterno benfeitor. A meus pais, meus infatigáveis co-labor-a-dores com amor A meus demais familiares, aves companheiras de vôo A meus mestres, minhas inspiraAções A meus amigos, círculo de flores, verdadeiras gemas da terra À minha orientadora, estrela guia das linhas escritas e por escrever Mais uma vez, outra vez, ao SUPREMO CRIADOR SUSTENTADOR SALVADOR Àquele que com delicada e magnificente perícia entrelaçou linhas anis com brilhantes, criando assim a mônada do mundo. Eliminando a desordem inicial da terra, teceu na face das águas, a terra seca e nesta bordou com verdes fios as vastas florestas. Pingando cores variadas nesse lençol magnífico de terras e matas, criou as flores. Cada pingo, um gesto de intenso amor criador. Ainda àquele que não se limitou a dizer ―haja luz‖, mas fez da superfície da terra um espetáculo a ser longamente apreciado. Fez isso quando determinou que o animal e o homem se fizessem almas viventes. Almas de uma intrínseca, intrigante relação entre energia vital e matéria mineral, também orgânica. Unidade sensitiva, espiritual. Nela quarks, átomos, moléculas, células deram-se os braços para formar inteligência, emoção, instinto: a matéria espiritual, o espírito material, à imagem de Deus assemelhada. Complexas redes neurais estavam no comando, coordenando todo o bem ajustado corpo. E, ad infinitum, àquele que determinou que os seres fossem linguagem, e o homem mais ainda, linguagem ótica, sonora, simbólica, alegórica. O homem foi ramos, deu germínios, significações significantes, plurissignificações nos braços de seu ESPLÊNDIDO CRIADOR, CRIAMOR! 5 RESUMO O presente estudo está vinculado à linha de pesquisa Poéticas da Modernidade e da Pós- Modernidade, do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, na área de Literatura Comparada - CCHLA/UFRN. Seu objetivo principal é observar a fragmentação da escritura como recurso estético privilegiado em Tutaméia, de Guimarães Rosa (1908-1967), e no Livro sobre nada, de Manoel de Barros (1916). Na pesquisa, adotamos como ponto de partida a visão de que essas obras são expressões alegóricas. Tomamos como base a concepção do filósofo alemão Walter Benjamin (1984) sobre a alegoria barroca, a qual se vale do ―fragmento amorfo‖ e se constitui numa expressão dialética, em que ―cada pessoa, cada coisa, cada relação, pode significar qualquer outra‖ (1984, p. 196). Observamos os recursos estilísticos usados tanto por Guimarães Rosa quanto por Manoel de Barros na construção de poéticas capazes de romper com os limites entre os gêneros artísticos, literários e discursivos, agregando à escrita elementos orais, musicais e plásticos. Analisamos ainda a elaboração de poéticas fragmentárias, em que a voz do narrador/eu-lírico, as personagens, o espaço, o enredo e o tempo exibem o fragmento como elemento que contribui para a grande ambiguidade das duas obras e para a criação de uma linguagem nova, performática e vibrante, rica em sedutoras imagens, alegorias. Palavras-chaves: fragmentação, imagem, ambiguidade, barroco e modernidade. 6 ABSTRACT This study is connected to the research line Poéticas da Modernidade e Pós -Modernidade, of the Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, in the subarea: Comparative Literature - CCHLA/UFRN. Its main goal is to see fragmentation of writing as an aesthetic resource highlighted in the work of Tutaméia by Guimarães Rosa (1908-1967), and in Livro sobre nada by Manoel de Barros (1916). We undertake as a starting point the view that these works are allegorical expressions. We have as a basis the German philosopher Walter Benjamin (1984) conception about baroque allegory, that uses ―amorphous fragment‖ and constitutes a dialectical expression, in which ―each person, each thing, each relation, may mean any other one‖ (1984, p. 196). We see the stylistic features as used by Guimarães Rosa and by Manoel de Barros in the construction of poetics capable of breaking the boundaries between artistic genres, literary and discursive, adding oral, musical and plastic elements to writing. We also analyze the development of fragmentary poetics, in which the voice of the narrator/lyrical I, the characters, space, plot and time exhibit the fragment as a factor that contributes to the great ambiguity of the two works and to create a new language, performative and vibrant, rich in alluring images, allegories. Key-words: fragmentation, images, ambiguity, baroque and modernity. 7 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------------- 8 2. GÊNEROS ENTRECORTADOS -----------------------------------------------------------------13 2.1 A ALEGÓRICA FRAGMENTAÇÃO DOS GÊNEROS ------------------------------------- 21 2.2 ENSAIO E AFORISMO --------------------------------------------------------------------------- 57 3. POÉTICA DO FRAGMENTO ------------------------------------------------------------------- 71 3.1 INCISÕES DE VOZ DO EU-LÍRICO/ NARRADOR ---------------------------------------- 71 3.2 ENTRE AS FRATURAS DO SUJEITO... ------------------------------------------------------ 81 3.3 NUMA FRAÇÃO DE LUGAR PRÓXIMO/DISTANTE ------------------------------------- 92 3.4 ESTILHAÇOS DE UMA ESTÓRIA ----------------------------------------------------------- 103 3.5 UM TEMPO LACUNAR... ---------------------------------------------------------------------- 111 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS -------------------------------------------------------------------- 122 REFERÊNCIAS -------------------------------------------------------------------------------------- 127 8 1. INTRODUÇÃO Com a aparição de obras cada vez mais inovadoras em seu processo de construção, a criação artística desde o período da vanguarda européia chega muitas vezes a expressões inusitadas. O futurismo, o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo e o surrealismo foram movimentos artísticos de grandes proporções que trouxeram significativas contribuições para as artes em geral. A pintura, a escultura, a literatura e a música sofreram profundas mudanças e rupturas. Os modelos de arte adotados no renascimento italiano foram sendo gradualmente substituídos por novas expressões e foi crescendo o desejo de negação das estéticas consideradas tradicionais. Até mesmo a arquitetura teve muitos de seus princípios estéticos modificados, com a inserção de técnicas cada vez mais ousadas e de materiais antes nunca utilizados. Detendo-nos na literatura, grandes expoentes como Ulisses, de autoria do escritor irlandês James Joyce; Paradiso, do escritor cubano Lezama Lima; e Grande Sertão: Veredas, do brasileiro Guimarães Rosa, chegaram a causar estranhamento e, ao mesmo tempo, despertaram profundo interesse nos críticos da época como ocorre ainda nos dias atuais. O que causou isso foi a adoção de recursos estilísticos inusitados com relação aos padrões estéticos de então. Entre eles, merece destaque o fato de essas obras promoverem a fusão entre a prosa e a poesia, rompendo com as fronteiras dos gêneros literários. Aqui no Brasil, quando buscamos as raízes dessas transformações, temos que remontar à Semana de Arte Moderna, a qual ocorreu na década de 1920. É justamente nessa ocasião que nasce o movimento modernista, representando um rompimento com as formas já sedimentadas de se fazer literatura e a inserção de formas inéditas de se escrever. Foi precisamente esse movimento que buscou despertar a pesquisa linguística, visando descobrir novas maneiras de se fazer uso do signo verbal. Versos novos, marcados por novos ritmos, foram introduzidos na poesia e ela pôde vislumbrar novos horizontes em matéria de criação. A narrativa também incorporou novos elementos, desestabilizando as formas cristalizadas. Vários conceitos foram reavaliados; formas canônicas foram revistas, dando origem a maneiras novas e luzentes de se fazer literatura. Enfim, esse movimento possibilitou a inserção de recursos outros, nunca dantes experimentados pelos escritores que constituíam o cenário principal da literatura brasileira. 9 As décadas seguintes, em nosso país, presenciaram transformações mais significativas ainda, pois a experimentação com a linguagem foi aprofundada, ampliada, trazendo consigo textos inovadores. Textos estes que até hoje são considerados assim, pois não só romperam com o cânone tradicional em diversos aspectos, mas também constituíram um novo. Eles são expressões híbridas, por serem marcados pela confluência de vários gêneros literários e pela presença de vários discursos que se amalgamam para gerar uma linguagem reconhecidamente inusitada e inovadora. O responsável por isso, afirmam alguns críticos, foi o movimento pós- modernista, também chamado de terceira geração modernista, o qual será considerado em nosso trabalho como um prolongamento da modernidade numa acepção mais ampla do que o modernismo iniciado com a Semana de Arte Moderna. Além do já citado João Guimarães Rosa, entre os escritores brasileiros que mais se destacaram no uso dos recursos mais inovadores estão: Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. Todos eles contribuíram de forma muito peculiar para a renovação da literatura Brasileira. A relevância de cada um deles no panorama literário nacional é inquestionável e, em virtude disso, possuem uma considerável fortuna crítica e continuam despertando a atenção de diversos estudiosos, porque há muito a se dizer sobre eles, dada a riqueza de suas obras. Guimarães Rosa destaca-se, principalmente, por ser um eminente artífice da linguagem, chegando a construir quase um idioma próprio. A ele pertence o reino mágico das palavras em seu estado primeiro, o da nomeação. Através de um mergulho no universo sertanejo e da recriação da fala desse universo, Rosa atinge um alto nível de invenção. Como chega a dizer Walnice Nogueira Galvão (2000, p. 7) ―ele chega a se confundir com a língua, colocando-se em seu ponto inaugural e, a exemplo dela, criando incessantemente‖. O próprio autor, escrevendo para Edoardo Bizzarri, seu tradutor italiano, reconhece isso, pois afirma: ―a invenção e a criação devem ser constantes‖ (ROSA, 2003, p. 51). Nessa arte de recriar a linguagem, de maneira tão radical, segundo alguns críticos, Rosa tem encontrado um eco no escritor contemporâneo Manoel de Barros, o qual tem sido chamado por alguns de ―o Guimarães Rosa do verso‖. Embora essa denominação não seja muito oportuna, por deixar implícito que Rosa teria se restringido à prosa, o que não corresponde à realidade, pois ele também foi notável na produção em versos (Magma é um bom exemplo disso), a comparação procede no tocante a alguns aspectos da escritura de ambos os autores. Como em Rosa, a significativa inventividade da escritura barreana se sobressai, apresentando diante do leitor uma lógica diferente da convencional e o artefato da linguagem como um elemento trabalhado, com alto grau de criação/recriação/transcriação. 10 Manoel de Barros figura num momento posterior a Guimarães Rosa, pós geração de 45, mas é notório que o poeta mato-grossense segue a linha criativa do escritor mineiro, pela capacidade de compor frases com arranjos inesperados, singulares, e por vários outros motivos. Afastado dos grandes centros, Barros lança suas obras no auge da poesia concretista no Brasil, mas sem participar dela. De fato, esses dois autores têm vários elementos em comum. Isso fica evidente quando são confrontadas as obras dos dois. Essa afirmação é válida, especialmente, quando comparamos Tutaméia e o Livro sobre nada, textos em que os autores alcançam a radicalidade de suas poéticas inovadoras e modernas. Um recurso estético-filosófico privilegiado na composição de ambas é o fragmento, o qual interage com a realidade do homem moderno e remonta aos conflitos do homem barroco. Em virtude disso, as abordaremos como construções que exibem os pedaços de que são compostas, à semelhança de uma grande escultura que é fruto, não de um bloco inteiriço de matéria, mas de uma espantosa montagem, a qual reúne porções de matérias de naturezas diferentes. As rachaduras que separam um pedaço do outro estão sempre à mostra. Conforme veremos, a obra de caráter fragmentário abre precedentes para dois caminhos diferentes e que não são excludentes: para o laconismo ou para as múltiplas significações. Isso acontece porque o fragmento apresenta-se como algo de difícil interpretação e, no entanto, quando observado de forma mais apurada, desvela inúmeras trincheiras semânticas. Nessas duas obras, o fragmento é uma escolha intencional, é um recurso literário potencialmente rico. Nelas se cumpre aquilo que Jean Baudrillard (2003, p. 43) chega a afirmar em seu livro De um fragmento ao outro: ―em princípio, o fragmento desafia a interpretação ou, então, elas são múltiplas e inesgotáveis‖. É por esse motivo que pretendemos estudar essas duas obras à luz da alegoria barroca, conforme é definida pelo filósofo alemão integrante da escola de Frankfurt, no capítulo ―Alegoria e drama barroco‖, pertencente ao livro Origem do drama barroco alemão. Segundo esse tipo de alegoria, a qual é, em essência, uma forma de expressão fragmentária, as ruínas podem servir de base para a construção de um grande monumento moderno. O prisma de estudo da alegoria barroca é, sem dúvida, uma das teorias modernas que melhor aborda o cerne de importantes tendências da modernidade. Benjamin (1984), ao teorizar sobre a história, enxergada na perspectiva do declínio, também se ocupa do estudo da arte, especialmente, do drama barroco alemão, o qual é sintomático no que diz respeito ao caminho percorrido pela expressão artística na atualidade. Ao estudar os conceitos clássicos sobre a alegoria, os quais a consideravam como uma forma de representação, o pensador 11 alemão os refuta e busca revitalizar a alegoria em sua manifestação primeira, definindo-a como uma forma de expressão segundo a qual ―cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra‖ (1984, p. 196). Torna-se, então, muito pertinente o estudo comparativo desses dois livros à luz da alegoria benjaminiana, tendo em vista que ambos são construídos a partir do esfacelamento da linguagem convencional e da composição de uma linguagem revitalizada, com novos significados, imagética, alegórica. À semelhança do alegorista, que é aquele que se encontra em meio a ruínas e que tem em suas mãos o poder de transformá-las em algo novo, Guimarães Rosa e Manoel de Barros levam a cabo, através da inserção de inovações estilísticas, esse princípio alegórico de forma magistral. Esse trabalho com a linguagem, em que há uma verdadeira erupção de imagens nos incita a afirmar que Tutaméia e o Livro sobre nada estão configurados não apenas sob a insígnia da modernidade, mas também sob o signo barroco, uma vez que os textos são repletos de elementos paradoxais e antitéticos. Os elementos barrocos se insinuam também pelo fato de tanto o autor mineiro quanto o poeta mato-grossense serem escritores modernos de grande importância para a literatura brasileira e até universal e serem responsáveis por projetos estéticos capazes de levar a cabo uma recriação da língua portuguesa, de modo a fundir escrita/imagem. Assim, a proposta de concretizar nossa pesquisa desses dois livros, através do diálogo com a teoria mencionada e todo o suporte teórico que aparecerá ao longo do nosso estudo, constitui-se numa busca de (des)velar elementos importantes na escritura dessas duas obras. Além da alegoria barroca, estarão entre os estudos que nortearão o nosso trabalho: De um fragmento ao outro, de Jean Baudrillard (2003); ―Os gêneros do discurso‖, de Mikhail Bakhtin (2003); Arte poética, de Aristóteles (2007), ―Gêneros literários‖ e ―Poesia e prosa‖, de Massaud Moisés (2000); ―A forma ensaio‖ e ―Lírica e sociedade‖, de Theodor Adorno (2003); O trabalho da citação, de Antoine Compagnon (1996), ―Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana‖ e ―Poesia e música‖, de Haroldo de Campos (1977; 2004); ―O poema‖ e ―A consagração do instante‖, de Octavio Paz (1982; 1996); ―O narrador‖, de Walter Benjamin (1994); Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), dentre outros. Acreditamos que a aproximação/distanciamento desses dois importantes escritores brasileiros sob a égide desses estudos estético-filosóficos poderá evidenciar a substancialidade de uma linguagem que se apresenta ante o leitor como algo 12 capaz de ativar seus sentidos: paladar, olfato, tato, ouvidos e olhos, todos mobilizados pela riqueza de sedutoras imagens. É válido salientar que nossa intenção, com o estudo das obras referidas acima à luz das teorias que compõem o nosso escopo de pesquisa, não é acomodar a qualquer custo as artimanhas da linguagem bar/rosiana dentro do campo de abrangência dessas teorias, mas é estabelecer um diálogo entre teoria e texto literário, em que seja apenas realçado o teor alegórico/barroco/moderno/fragmentário/dialético/imagético. Observaremos como ocorre a quebra dos gêneros artísticos, literários e discursivos, a fragmentação dos elementos da narrativa/poesia e da própria linguagem como sistema de signos. Também atentaremos para a ambiguidade e a pluralidade que emergem dessas obras por seu caráter fragmentário. Enfim, tentaremos decifrar um pouco do complexo processo de construção que resulta numa espécie de transcriação da linguagem nas obras em estudo. Ademais, ressaltamos que buscaremos empreender uma análise literária eclética, o que implica dizer que tomaremos como ponto de partida a teoria da alegoria, por nos interessar o fenômeno da fragmentação alegórica e a ambiguidade dela decorrente. Entretanto, recorreremos a outras teorias quando julgarmos oportuno iluminar a fragmentação existente nas obras em estudo a partir de outras perspectivas. É importante também dizer que nossa investigação terá duas instâncias interpretativas: a instância das quebras da linguagem e/ou do discurso e a da relação entre fragmentação, barroco e modernidade. Organizaremos o nosso estudo em dois capítulos: ―Gêneros entrecortados‖ e ―Poética do fragmento‖. No primeiro, verificaremos como Guimarães Rosa e Manoel de Barros quebram os gêneros institucionalizados e constroem gêneros novos, formados pela magistral reunião de pedaços daqueles. Sejam eles gêneros artísticos, literários ou discursivos. Aqui nos interessa ainda observar como o radical processo de fragmentação empregado nas obras em estudo culmina com linguagens reinventadas, as quais têm como matrizes o sertão mineiro e o pantanal mato-grossense, mas ingressam na pátria literária pela força imaginativa dos dois autores. Já no segundo, observaremos a forma com que os autores constroem um discurso poético cuja origem está na fragmentação daquilo que é convencional em matéria de narração e de lirismo e na subsequente recriação/transcriação. O eu-lírico/narrador, as personagens, o espaço, o enredo e o tempo serão nossos objetos de estudo. É, especialmente, nesse momento que procuraremos averiguar a relação do fragmento com o barroco e a modernidade. 13 2. GÊNEROS ENTRECORTADOS Receita para se fazer um poema dadaísta Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema. Recorte o artigo. Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco. Agite suavemente. Tire em seguida cada pedaço um após o outro. Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se parecerá com você. E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público. (Tzara) Como nos lembra Sérgio Paulo Rouanet (1984), Walter Benjamin (1984), em seu livro Origem do drama barroco alemão, teoriza sobre o conhecimento, o drama barroco e a alegoria barroca. Para Rouanet (1984), quando Benjamin (1984) se ocupa do drama barroco, o compreende como remanescente do drama jesuítico e a partir da convivência dos extremos, dentro de uma perspectiva imanente. A busca por explicar sua estrutura leva Benjamin (1984) a recorrer à noção de origem, a qual é concebida como um conjunto de idéias básicas capaz de reger a organização interna dramática. Origem, portanto, é diferente da idéia de gênese. A mediação entre a origem e a estrutura fica a cargo da alegoria, linguagem do drama barroco por excelência. A alegoria, por sua vez, é entendida numa perspectiva barroca, cuja essência está numa visão da história como declínio, a qual é desprovida de finalidade e é entendida como natureza-história. Essa natureza-história exerce sobre a criatura a função de destino que não lhe outorga o direito de transcendência e de salvação. Em razão disso, a morte é o princípio estruturante da alegoria, uma vez que: Para que um objeto se transforme em significação alegórica, ele tem de ser privado de sua vida [pois] o alegorista arranca o objeto do seu contexto. Mata-o. [E assim] as ruínas e fragmentos servem para criar a alegoria. (ROUANET, 1984, p. 40) 14 Walter Benjamin (1984, p. 185), partindo desse tipo de alegoria, a qual é entendida como uma forma de expressão que serve de ―lei estilística dominante do alto Barroco‖, faz uma oposição com o símbolo, afirmando que este implica numa totalidade momentânea enquanto aquela pressupõe uma progressão, uma sequência de momentos, sendo, por isso, dramaticamente móvel. A alegoria barroca, para ele, remonta à antiguidade egípcia e grega, ocasião em que a alegoria era dotada de um sentido místico-histórico. João Adolfo Hansen (2006) confirma isso, ao dizer que a alegoria cujo auge está na poesia barroca é o principal meio de construção e interpretação dos discursos filosóficos e poéticos no renascimento, os quais faziam uma releitura de obras greco-latinas, trazendo ―referências muito variadas, como hieróglifos egípcios, a astrologia, a alquimia, a Patrística, a Escolástica, a Cabala etc.‖ (HANSEN, 2006, p. 139). Estudando alguns escritores renascentistas, Adolfo Hansen (2006, p. 140) reconhece que o pensamento religioso da antiguidade é um dos grandes responsáveis por a alegoria ser: [...] operada multiplamente [como] técnica da invenção e da interpretação de enigmas, [...] composição de emblemas, divisas e rebus; como arte combinatória ―mágica‖; como ornamentação verbal e plástica etc. [em que] os níveis operatórios se recombinam e proliferam, extensivamente, num rebatimento contínuo de um sobre o outro, dificultando sua delimitação rígida. Para Hansen (2006), o neoplatônico Marcílio Ficino é um bom exemplo disso, pois ele concebe a alegoria como um recurso retórico-hermenêutico. Isso ocorre na medida em que Ficino interpreta alegoricamente textos da tradição greco-latina e que ele enxerga a alegoria como ars inveniendi (arte de inventar), que ―valoriza o engenho do sábio e do artista‖ (HANSEN, 2006, p. 141). Com isso, a obra de arte, ―retoricamente, [...] aproxima-se da tradição da tota allegoria, alegoria fechada ou perfeita‖ (HANSEN, 2006, p. 153), em que ―o artífice opera a magia através da força das imagens e figuras‖ (HANSEN, 2006, p. 153). Isso nos dá a entender que a expressão alegórica entre os florentinos está longe de ser uma técnica de ornamentação apenas ou uma ―tradução figurada de um sentido próprio‖ (HANSEN, 2006, p. 140). Ela pode ser entendida como ―possibilidade de outras e novas expressões e interpretações aplicadas a objetos diversos‖ (HANSEN, 2006, p. 158). 15 A noção de alegoria como ars inveniendi é cara à visão benjaminiana e pode ser compreendida como uma ―ordenação exuberante de elementos antigos em um edifício, que sem unificar esses elementos em um todo, fosse superior, mesmo na destruição, às antigas harmonias.‖ (BENJAMIN, 1984, p. 201). Para Benjamin (1984), o alegorista é quem procede a essa ―ordenação exuberante‖, o qual, como ninguém, é ―capaz de manipular modelos soberanamente‖ (BENJAMIN, 1984, p. 201) e de transformar as coisas em algo diferente. O escritor/poeta moderno é esse alegórico. Susana Kampff Lages (2007), em seu estudo Walter Benjamin: tradução e melancolia, nos ajuda a entender bem isso, ao equiparar o poeta moderno, ―em sua relação com os textos que o antecedem na tradição‖ (LAGES, 2007, p. 92), ao tradutor no seu trato com o texto original, na medida em que ambos, numa acepção poundiana, fazem uma leitura interpretativa do original e, partindo dela, promovem uma recriação. 1 Pensar o escritor moderno nesses termos é fazer uma clara apologia à idéia de que ele comete ―uma traição, [...] ato de violência inerente e necessário à preservação de uma tradição viva‖ (LAGES, 2007, p. 92), ou seja, é afirmar que ele, numa disposição dialética, rompe com a tradição, ao surpreender com sua invenção e, ao mesmo tempo, a afirma, ao trazê-la renovada. Lembrando que a dialética se caracteriza por ser uma lógica filosófica que procura conciliar as contradições, podemos dizer que, paradoxalmente, o escritor moderno alia a tradição à modernidade, num movimento permanente de contradição, num jogo constante de negação/afirmação, de continuidade/descontinuidade. Isso se coaduna com o pensamento de Benjamin (1984), segundo o qual a alegoria barroca é uma expressão dialética, em que ―cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra‖ (BENJAMIN, 1984, p. 196). A implicação disso é que já não é uma alegoria do ―isso por aquilo‖, mas do ―isso e aquilo‖, como afirma Charles Singleton (apud HANSEN, 2006, p. 127), ao comentar a Divina Comédia. A dialética inerente à expressão alegórica culmina com sua grande riqueza: sua ambivalência, pois ―a ambiguidade, a multiplicidade de sentidos é o [seu] traço fundamental‖ (BENJAMIN, 1984, p. 199). Tal ambivalência propicia o fenômeno descrito por Carl Horst (apud BENJAMIN, 1984) como ruptura dos gêneros artísticos, ao abordar ―o problema do barroco‖ e observar que a alegoria implica uma constante ―transgressão das fronteiras de 1 A idéia de tradução implícita aqui comporta em sua base uma noção de transformação, de metamorfose, a que o original se submete, isto é, uma transcriação, conforme Augusto e Haroldo de Campos e ainda Décio Pignatari e Nelson Ascher (apud LAGES, 2007, p. 92). Ela também se relaciona com a desconstrução de Derridá (apud LAGES, 2007, p. 91), a qual é incorporada especialmente pelos irmãos Campos, a partir da noção oswaldiana de antropofagia. 16 outro gênero‖ (HORST apud BENJAMIN, 1984, p. 199). Parafraseando esse autor, Benjamin (1984) afirma que, na escrita alegórica, ocorre uma ―intrusão das artes plásticas na esfera de representação das artes ‗da palavra‘‖ (1984, p. 199). Podemos entender isso quando notamos que, no texto alegórico, é comum a proximidade com as artes plásticas, pelas imagens que pululam dos meandros da cifrada linguagem verbal. Em outras palavras, na alegoria, há uma conjunção entre escrita e imagem, em que os limites entre o texto escrito e a pintura são violados. Agora citando Horst, Benjamin (1984, p. 199) lembra ainda que: Essa violação de fronteiras [...] é punida implacavelmente na pura cultura do sentimento, mais do domínio das artes plásticas puras que nas da palavra, fazendo com que as primeiras se aproximem da música... Com a impregnação, a sangue- frio, das mais diversas formas de manifestação humana, por pensamentos autoritários... a sensibilidade e a compreensão artística são desviados e violentados. É o que faz a alegoria na esfera das artes plásticas. Sua intrusão pode, portanto, ser caracterizada como um grande delito contra a paz e a ordem, no campo da normatividade artística. E, no entanto, a alegoria nunca esteve ausente desse campo, e os maiores artistas lhe consagraram grandes obras. Por ser uma forma eruptiva, de rupturas, a alegoria barroca, na visão benjaminiana, está em oposição à técnica fria e tende a uma escrita visual que tem em sua base o fragmento amorfo e não a totalidade orgânica. Para esse autor, ―na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína‖ (BENJAMIN, 1984, p. 198). A fragmentação de que fala Benjamin (1984, p. 208) ―é particularmente clara como princípio da visão alegórica‖ e pode se manifestar tanto no reino dos objetos (o adereço cênico, por exemplo) como no grafismo, pois ―é sob a forma de fragmentos que as coisas olham o mundo, através da estrutura alegórica‖. No caso da linguagem, em especial, essa fragmentação pode ser entendida como um gesto que consiste na extração de palavras, sílabas e sons de seu contexto significativo original para imergi-los em um novo contexto, onde adquirem significação nova e mais intensa. É o que depreendemos do comentário abaixo realizado pelo próprio Benjamin (1984, p. 230): Nos anagramas, nas expressões onomatopaicas e em outros artifícios verbais, a palavra, a sílaba e o som, emancipados de qualquer contexto significativo tradicional, desfilam como coisas, livremente exploráveis pela intenção alegórica [...], a linguagem se fraciona, prestando-se, em seus fragmentos, a uma expressão diferente e mais intensa [...]. [Essa] linguagem segmentada não está mais a serviço da mera comunicação, e como objeto recém-nascido, afirma sua dignidade lado a 17 lado com os deuses, rios, virtudes e outras formas naturais que atravessaram, fulgurantemente, a fronteira do alegórico. Essa fragmentação, para o filósofo alemão, deve-se ao fato de a alegoria ser uma forma de expressão ―sacudida por rebeliões, promovidas por seus elementos constitutivos‖ (BENJAMIN, 1984, p. 229). Essas rebeliões remetem à já mencionada ―transgressão das fronteiras de outro gênero‖. Entendendo a palavra transgressão como sinônimo de infração, violação, não cumprimento de dada norma e nos atendo à palavra infração, por ela carregar em si a palavra fração, podemos pensar no que implicam essas rebeliões/subversões: a alegoria ―decompõe‖ os gêneros canonizados (os quais, como afirma Haroldo de Campos (1977, p. 9), no Classicismo, em sua ―tendência à estrita delimitação literária dos gêneros‖, servem de regulação e normativa para o uso da linguagem) e compõe, a partir dos pedaços resultantes, novos gêneros que dão origem a uma nova ordem, instável e fragmentária. Não é fortuito que Walter Benjamin (1984) desenvolva sua arguição a respeito do caráter de rupturas da alegoria, dizendo que a escrita alegórica opera uma síntese entre a intenção teológica e a artística. Mas essa síntese, conforme depreendemos de suas palavras, deve ser vista como uma tensa trégua que está longe de um ato de paz, já que as duas intenções são antagônicas e disputam entre si. A palavra transgressão pode ser entendida ainda como ―ir além do permitido‖. Esse ir além é algo que aproxima transgressor e criador, uma vez que, ao inventar, criar algo novo, o alegorista precisa romper com os modelos cristalizados (os gêneros canonizados) que o cercam, fragmentando-os para, em seguida, extrair algo novo. Ao afirmarmos isso, queremos dizer que o trajeto do alegorista envolve a transgressão e a fragmentação para chegar à criação em seu mais alto grau. É importante, no entanto, esclarecermos que a ruptura procedida por ele não implica um abandono dos gêneros antigos, mas a abertura deles ao novo, pela inserção de formas novas, num gesto que consiste em ultrapassar as fronteiras dos gêneros convencionais. Haroldo de Campos (1977, p. 10), estudando a ruptura dos gêneros literários na literatura latino-americana, afirma que o romantismo ―constituiu [...] uma revolução contra o caráter proibitivo das normas estéticas clássicas‖, por ser propenso ―à dissolução vertiginosa do estatuto dos gêneros, assim como de sua compartimentação lingüística‖. Mas para Campos (1977, p. 35), o barroco latino-americano vai além, realizando uma fusão, uma mestiçagem (originada na não conformidade com a ―partilha clássica dos gêneros e suas correlatas 18 convenções literárias‖) que é capaz de criar ―um caldo criollo‖ (segundo Haroldo, termo cunhado por Octavio Paz acerca de Lezama Lima) ―na textura mesma da linguagem‖. A alegoria como linguagem privilegiada do barroco instaura esse ―caldo criollo‖ a que faz referência Campos (1977). Isso nos autoriza a dizer que ela é uma expressão capaz de promover quebras, fraturas, ocasionando instabilidade nas práticas artísticas sedimentadas na tradição, mas, ao mesmo tempo, pode se afirmar como sinônimo de uma grande abertura da arte para formas novas, o que envolve a transposição dos modelos conhecidos, mas não o seu abandono. Mas que gêneros são esses que são ―decompostos‖ em Tutaméia e no Livro sobre nada? Podemos pensá-los em, pelo menos, três instâncias: gêneros artísticos, gêneros literários e gêneros discursivos. Entre os principais gêneros artísticos, normalmente, estão: pintura, escultura, arquitetura, literatura, música e ainda a coreografia. Se os focalizarmos numa perspectiva semiótica, podemos dizer que todos eles se caracterizam por empregar signos estéticos, entretanto alguns de natureza verbal e outros não. Partindo dessas noções gerais, entendemos que a ruptura dos gêneros artísticos ocorre quando a alegórica linguagem das obras estudadas propicia que haja uma fusão palavra-imagem, pela pictórica grafia e pela capacidade de suscitar inúmeras imagens mentais, uma vez que a escrita parece um grande lençol ricamente engendrado com estilhaços de cores e luzes variadas. Ainda quando os textos em análise apresentam uma vibrante musicalidade, através das várias imagens musicais que sugerem um profícuo jogo de sons, em que se insinuam falas e canções. Neles, há uma espécie de abertura para a música. Essa abertura pode muito bem ser entendida através das palavras de Haroldo de Campos (2004, p. 283), quando ele, em seu texto ―Poesia e música‖, comenta seu livro Signância: quase céu: Meu livro [...] pode ser visto (e lido e ouvido) como uma larga partitura de frases em conjunção e disjunção, microgramas de som rodeados de silêncio, onde a música que soa é a música da escritura, como um respiro da "forma interior" (a expressão é de Goethe) colhido por uma caligrafia móvel... Tomando a palavra caligrafia como sinônimo de grafia ou escrita, percebemos que a mobilidade da escritura é a responsável pela música que dela ecoa. Benjamin (1984) chega a dizer que a alegoria, ao contrário do símbolo, está em constante progressão, é dramaticamente móvel, torrencial. Ela é uma expressão dialética, como já ficou dito, que contribui para a 19 criação de uma tensão entre a linguagem escrita (reino das significações) e a linguagem oral (incluindo as onomatopéias). Observaremos, assim, a grande visibilidade e musicalidade dos textos, que aproximam a escrita da pintura, do texto oral e da música. Os gêneros literários serão tomados aqui na acepção que diferencia prosa de poesia. Esses gêneros envolvem uma vasta discussão no campo dos estudos da teoria literária. Conforme preconiza o filósofo Aristóteles, em sua Arte Poética, a literatura passou inicialmente por uma tripartição em matéria de gênero: tragédia e comédia (o teatro), ditirambo ou poesia lírica e poesia épica. Na visão de Aristóteles, o que diferencia as artes em geral são os meios usados, os objetos e as formas de imitação. Para ele, a produção poética compreendida nesses gêneros apresenta como meios o ritmo, a linguagem e a harmonia, além de enfocarem objetos e maneiras variadas. Partindo dessas noções, o filósofo conceitua a tragédia e a comédia, isto é, o teatro como um gênero caracterizado por utilizar ―personagens em ação diante de nós‖ (ARISTÓTELES, 2007, p. 28), as quais representam homens melhores na trajédia e homens piores na comédia. Conceitua o ditirambo como um gênero que se vale do ritmo, do canto e do metro. Já a poesia épica, ele a define como um gênero que se vale ―unicamente da palavra simples e nua dos versos, quer mesclando diferentes metros, quer atendo-se a um só tipo‖ (ARISTÓTELES, 2007, p. 24). Conforme nos lembra Massaud Moisés (2000), com o desenvolvimento da prosa, o que só ocorreu mais tarde, foi acrescentado ainda a essa classificação feita por Aristóteles o gênero narrativo. Mas para Moisés (2000, p. 69), ―um emprego mais rigoroso do vocábulo ‗gênero‘ e do conteúdo nele inscrito‖ só admite a existência de dois: poesia e prosa, embora essa última palavra, pelos seus muitos usos, não seja a mais apropriada. Vistos dessa forma, ―os gêneros seriam a expressão, a estrutura, de dois modos fundamentais de ver o mundo: o voltado para fora – a prosa -, e o voltado para dentro – a poesia‖ (MOISÉS, 2000, p. 69). O primeiro deles subdividindo-se em fôrmas: conto, novela e romance. Já o segundo estaria subdividido em espécies: a lírica e a épica, as quais ainda se subdividem em fôrmas. A primeira delas compreendendo o soneto e a ode, por exemplo, e a segunda, o poema, o poemeto e a epopéia. Embora os estudos de Massaud Moisés (2000) com respeito aos gêneros literários sejam um modelo ainda aberto para discussão, com seus pontos questionáveis, entendemos que a separação em dois grandes grupos, a poesia e a prosa – que, no dizer de Haroldo de Campos (1977, p. 25), corresponde às duas ―grandes divisões categoriais‖ da literatura – é válida para caracterizar a produção literária convencional, por ela, normalmente, poder ser enquadrada em uma dessas classes. Como, na visão de Moisés (2000), os gêneros literários 20 são classificações que se apóiam na idéia de predominância e não de exclusividade, devemos esclarecer que, para ele, um romance nos moldes convencionais é aquele que é predominantemente escrito em prosa, por exemplo. Dessa forma, ao tratarmos da ruptura dos gêneros literários nas obras que compõem o nosso escopo de pesquisa, estamos interessados em observar como os textos são tão híbridos que um conto, por exemplo, usualmente escrito em prosa, não contém apenas lampejos de poesia, como era de se esperar, mas passa a estar repleto de poesia. Assim, observaremos a rica fusão da prosa com a poesia, na chamada prosa-poética dos escritores estudados. Já os gêneros discursivos ou textuais serão entendidos como ―tipos relativamente estáveis de enunciados‖ (BAKHTIN, 2003, p. 262), ou ainda como ―formas típicas de enunciados‖ (BAKHTIN, 2003, p. 265), os quais são elaborados por cada campo de utilização da língua. Daí serem eles multiformes e heterogêneos. Neles estão intimamente entrelaçados três elementos básicos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. De acordo com sua natureza geral, eles podem ser primários, quando se formam ―nas condições da comunicação discursiva imediata‖ (BAKHTIN, 2003, p. 263), e secundários ou complexos, os que são normalmente escritos e tanto integram o convívio cultural mais complexo (artístico, científico, sociopolítico, dentre outros) quanto ―incorporam e reelaboram diversos gêneros primários‖ (BAKHTIN, 2003, p. 263). São exemplos de gêneros do discurso: contos, poemas, diários, cartas e artigos. Ao abordarmos a transgressão dos gêneros do discurso, tanto em Tutaméia quanto no Livro sobre nada, observaremos o fato de haver tantos pedaços de gêneros discursivos variados (alguns deles já secundários) inseridos dentro do texto principal e dos chamados paratextos, bem como estaremos atentos à importante contribuição das recorrentes citações enxertadas nessas obras para a quebra dos gêneros textuais. Pretendemos também averiguar algumas importantes inovações que esses textos promovem no sistema da língua, a saber, no nível fonético, morfológico e sintático, visando uma composição altamente estilizada e imagética. Atentaremos ainda para o caráter intrinsecamente fragmentário e/ou multifacetado de alguns tipos de gêneros, como é o caso do ensaio e do aforismo. Entendendo que, ―em termos semióticos contemporâneos, a alegoria é uma metalinguagem ou um interpretante da relação imagem pictórica/discurso/‗imagem mental‘‖ (HANSEN, 2006, p. 186), estaremos interessados ainda em averiguar como a quebra desses gêneros contribui para a formação de textos alegóricos que se valem das sentenças discursivas e das imagens pictóricas (no nosso caso, o grafismo) para suscitar uma cascata de imagens mentais. 21 Em Tutaméia, estudaremos seus quatro prefácios: ―Aletria e hermenêutica‖, ―Hipotrélico‖, ―Nós, os temulentos‖ e ―Sobre a escova e a dúvida‖, por acreditarmos que eles são emblemáticos quanto à ruptura dos gêneros. Já no Livro sobre nada, observaremos especialmente o ―Pretexto‖, o ―Diário de Bugrinha (excertos)‖ e alguns outros textos extraídos das seguintes partes: ―Arte de infantilizar formigas‖, ―Desejar ser‖ e ―O livro sobre nada‖. Assim, atentaremos para a dialética em que os textos bar/rosianos apresentam, em sua composição, traços de diversos gêneros (sejam artísticos, literários ou discursivos), rompendo com a estrutura de muitos deles, num permanente jogo de conjunção/disjunção, em que se configuram como textos alegóricos, isto é, fragmentários, ambíguos e imagéticos. 2.1 A ALEGÓRICA FRAGMENTAÇÃO DOS GÊNEROS É comum que a obra literária apresente apenas um prefácio, que é uma espécie de introdução do livro. Quando apresenta mais de um, é comum que sejam todos no início. Com Tutaméia acontece algo diferente: apresenta quatro prefácios distribuídos entre os contos. Por essa quebra de paradigma, já podemos perceber a que grau chega a inovação estilística nessa obra de Guimarães Rosa. Mas é o alto nível de criatividade e o poder poético/imagético de cada um desses prefácios que mais fascina e permite que eles sejam tão ricos, literariamente, quanto qualquer conto. Como nos assegura Irene Simões (s.d., p. 14-15), esses prefácios, embora revelem ―certa intenção teorizadora‖, ―são também estórias, narrados num tom quase coloquial e onde os recursos expressivos da linguagem oral (os ditos populares, a adivinha, as recorrências sonoras) estão presentes‖. À semelhança do que acontece com os contos, conhecidos pela riqueza de significação e por seu caráter fragmentário, os prefácios exibem o fragmento como uma de suas maiores riquezas. ―Aletria e hermenêutica‖, o primeiro deles, é não só prefácio, mas também conto, ensaio e uma compilação de anedotas e de outros gêneros orais, conforme será demonstrado adiante. Sua matéria básica é uma reflexão que passa pelos meandros do conhecimento erudito e vai culminar no absurdo cotidiano, numa tentativa de aproximar o coloquial de toda uma tradição filosófica e literária. Para tanto, o cinzel utilizado por Guimarães Rosa é o riso, não um riso qualquer, mas aquele que permite ao autor dar ―um pulo do cômico ao excelso‖ (ROSA, 2001, p. 39). Segundo Irene Simões (s.d.), esse riso vai muito além do comum rumo à magia de uma linguagem carregada de significado, através da mistura de lirismo, arte, crítica e humor. 22 Como diz também Irene Simões (s.d., p. 16), ao aproximar e entrelaçar a tradição filosófica e literária ao saber cotidiano, Guimarães Rosa a revisa, rompendo com muitas das estruturas que a fundamentam, imprimindo uma lógica particular ao leitor, a qual está impregnada do não-senso da linguagem oral e também de poesia. Ao revigorar a língua através de suas inovações estilísticas, Guimarães Rosa transforma a linguagem corrente de sentido automatizado em uma linguagem poética, alegórica, imagética, com novos significados. Nas palavras de Ana Maria de Andrade (apud DUARTE, 2003, p. 40), é em ―Aletria e hermenêutica‖ que ―encontramos [...] a definição de estória, a partir de uma contraposição com a (H)história e uma aproximação à anedota, numa defesa do chiste e da alegoria como instrumentos para se chegar ao supra-senso – da obra e da vida.‖ No fragmento abaixo da ―estorieta‖ colhida por Guimarães Rosa da tradição oral, embora ele afirme que foi construída à moda Kafka, percebemos que, pela presença do ―burlesco‖, ela acaba sendo uma reinvenção do estilo kafkaniano. Os elementos nucleares da narrativa kafkaniana são re-arranjados conforme a vontade do escritor mineiro e trazidos à superfície do texto, culminando numa nova expressão. Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita: - ―Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!...‖ Larga o herói a carrocinha, corre, vôa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase... e exclama: - ―Que diabo! Eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa...‖ Agora, ponha-se em frio exame a estorieta, sangrada de todo burlesco, e tem-se uma fórmula à Kafka, o esqueleto algébrico ou tema nuclear de um romance kafkaesco por ora não ainda escrito. (ROSA, 2001, p. 30) Essa reorganização ocorre também na medida em que a personagem enfocada não é um protagonista, como nas páginas dos romances kafkanianos, mas ―o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão‖. Assim a realidade e a ficção se mesclam, se confundem, se interpenetram, numa divertida recriação. Um dos elementos que mais se sobressaem na ―estorieta‖ rosiana é o não-senso da reação do figurante-herói ou herói-figurante, que não tendo qualquer motivo para se identificar com a situação, larga tudo e sai em disparada para só depois se dar conta de que não era ele, o que gera humor e aproxima o conto da anedota. O não-senso a que nos referimos permeia ―Aletria e hermenêutica‖ e, 23 muitas vezes, está associado ao ―pulo do cômico ao excelso‖, na medida em que encharca o texto de lirismo, isto é, da subjetividade tão característica do poema lírico. Isso permite que esse prefácio incorpore também traços do gênero poema. Vejamos alguns versos dispostos no final do prefácio: ―a peninha do rabo do gato não é apenas ―para atrapalhar‖, ―saudade é o predomínio do que não está presente, diga-se, ausente‖ e ―o silêncio proposital dá a maior possibilidade de música‖. (ROSA, 2001, p. 40) Cada um dos versos acima se vale do não-senso para gerar humor, mas também, por seu caráter abstrato e subjetivo, conferem ao texto uma dimensão lírica. O primeiro, através do uso do diminutivo ―peninha‖, expressa afetividade. O segundo, ao fazer a definição da palavra saudade, traz toda uma subjetividade para o texto. Já o último, ao associar o ―silêncio proposital‖ à ―possibilidade de música‖, coloca um olhar intensamente poético sobre o silêncio. Rosa, fazendo alusão aos versos acima, afirma que, ―pelo comum, pode[r]-se corrigir o ridículo ou grotesco, até levá-los ao sublime; seja daí que seu entre-limite é tão tênue‖ (ROSA, 2001, p. 39). É importante lembrar que, para Mikhail Bakhtin (2003, p. 262), os gêneros discursivos são ―tipos relativamente estáveis de enunciados‖ que ―cada campo de utilização da língua elabora‖. Nas palavras de Luiz Antônio Marcuschi (2003, p. 26), esses campos são as ―mais diversas esferas da atividade humana‖. Sendo assim, os gêneros textuais são atividades sócio- discursivas, isto é, são formas que circulam em nossa sociedade por uma necessidade de comunicação. Essa relativa estabilidade dos gêneros, de que fala Bakhtin (2003), é quebrada e eles passam a ser regulados não mais apenas por uma necessidade de comunicação, mas pelos ditames da expressão alegórica. Isso acontece na medida em que Guimarães Rosa quebra os gêneros convencionais, fazendo-os perderem as funções sócio-comunicativamente determinadas para serem explorados fora dos contextos usuais, com o objetivo de chegar ao ―alegórico espiritual e ao não-prosaico‖ (ROSA, 2001, p. 29). Vejamos alguns exemplos: [...] cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e, como estivesse justo sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu: - ―Trocar... com quem?‖ (ROSA, 2001, p. 31) Esta sí que es calle; calle de valor y miedo. Quiero entrar y no me dejan, Quiero salir y no puedo. [...] As minhas ceroulas novas, ceroulas das mais modernas 24 não têm cós, não têm cadarços, não têm botões e não têm pernas. (ROSA, 2001, p. 31-33) O que é, o que é: que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a gente morta come, e se a gente viva comer morre?‖ Resposta: — ―É nada. (ROSA, 2001, p. 33) ―R. / Uso int.º / Aqua fontis, 30 c.c. / Illa rrepetia, 20 c.c. / Eadem stillata, 100 c.c. / Nihil aliunde, q. s.‖ (ROSA, 2001, p. 34) * COROLÁRIO, em não-senso: O que respondeu o anspeçada, em exame para sua promoção a cabo-de-esquadra: - ―Parábola? É precisamente a trajetória do vácuo no espaço.‖ (ROSA, 2001, p. 38) Aqui, temos uma anedota, dois fragmentos de poema, uma adivinha, uma receita médica e uma nota, respectivamente. Se pensarmos inicialmente na função de cada um desses textos, observaremos que normalmente a anedota e a adivinha estão a serviço do entretenimento; um poema, por ser um gênero ficcional, está a serviço da imaginação e da expressão; uma receita médica cumpre um propósito comunicativo de informar um paciente sobre o tratamento de alguma enfermidade; e, por fim, uma nota serve para adicionar um esclarecimento, normalmente, fora do corpo do texto. Diante disso, podemos dizer que esses gêneros cumprem funções específicas no caudal comunicativo em que já estão razoavelmente sedimentados pelas práticas sociais. Entretanto, dentro de ―Aletria e hermenêutica‖, eles adquirem novas funções, rompendo com as funções institucionalizadas pelas esferas sociais a que pertencem. Todos estão, como já dissemos, a serviço da literatura, cumprindo os propósitos que o autor lhes incumbe dentro de sua criação artístico-literária. Como se não bastasse isso, o formar novos gêneros a partir da mescla de outros já existentes, o autor ainda insere gêneros já mistos dentro do texto principal, como por exemplo, uma nota que contém dentro de si anedotas, fragmentos de poemas ou adivinhas. Eles são ―inter-gêneros de natureza altamente híbrida‖ (MARCUSCHI, 2003, p. 28), sendo uma amostra da extrema reinvenção e da quebra dos gêneros tão marcante no prefácio em análise. Observemos um fragmento de uma dessas notas, em que se encontra a advinha: ―Ainda uma advinha ―abstrata‖, de Minas: ―O trem chega às 6 da manhã, e anda sem parar, para sair às 6 da tarde. Por que é que não tem foguista?‖ (Porque é o sol.) Anedótica meramente‖. (ROSA, 2001, p. 35) No prefácio ―Hipotrélico‖, a ruptura das fronteiras entre os gêneros do discurso é também inerente à sua construção, tendo em vista que sendo um texto ensaístico que aborda o processo de criação das palavras, não deixa de ser também uma ―fábula diversa‖, dotada de 25 toda uma riqueza literária. Esse ensaio-prefácio-estória apresenta ainda outros vestígios da mistura de gêneros textuais. Isso é evidente já no que se constitui como motivo de tal prefácio, a anedota proveniente do bom português, a qual se refere ao aparecimento da palavra hipotrélico, conforme transcrita abaixo. O bom português, homem-de-bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas necessidades íntimas. Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente: ― E ele é muito hiputrélico... Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto: ― Olhe, meu amigo, essa palavra não existe. Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo: ― Como?!... Ora... Pois se eu a estou a dizer? ― É. Mas não existe. Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz de descoberta, e apontando para o outro, peremptório: ― O senhor também é hiputrélico... E ficou havendo. (ROSA, 2001, p. 109) Nesse prefácio há ainda a ―Glosação em apostilas ao hipotrélico‖, que é uma espécie de glossário contendo verbetes de alguns termos usados no decorrer do texto. Tal glossário é composto por uma epígrafe, que é um verbete extraído do Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Antenor Nascentes, sobre o termo irreplegível; por nove parágrafos contendo explicações das mais diversas naturezas sobre outros termos; e, por último, por um pós- escrito, contendo uma citação, em latim, de Quintiliano sobre o uso de palavras novas e sua respectiva tradução. ―Nós, os temulentos‖, à semelhança dos anteriores, tem um caráter híbrido. Ele versa sobre a dupla realidade das coisas (SIMÕES, s.d., p. 25) de maneira ensaística, mas também é uma estória, pois é nada menos que uma narrativa dos episódios ocorridos na trajetória de um bêbado, o herói Chico, ―a pifar, virar e andar, de bar a bar‖ (ROSA, 2001, p. 151). Além disso, os episódios vivenciados por Chico são nada menos que anedotas colhidas da tradição oral. Podemos mesmo afirmar que o texto é uma espécie de compilação de anedotas sobre bêbados. Uma delas é a que se refere à ocasião em que o Chico ofende ―uma senhora, de paupérrimas feições‖ (ROSA, 2001, p. 152), que ao revidar, ouve uma réplica do Chico, que é uma resposta inesperada típica dos textos de humor, conforme observamos abaixo: 26 E, mais três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trinta espetos. – Feia! – o Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. – E você, seu bêbado!? – megerizou a cuja. E, aí, o Chico: - Ah, mas... Eu?... Eu, amanhã, estou bom... (ROSA, 2001, p. 152) ―Sobre a escova e a dúvida‖, cuja temática principal gira em torno da própria construção da obra rosiana, no que ela tem de intuitivo e espontâneo, é mais um prefácio- ensaio-estória, formado por sete partes, nada menos que pequenas narrativas que têm também função ensaística. Somente nessa atípica divisão em sete partes diferentes, já vemos a manifestação da fragmentação alegórica, tendo em vista que aponta para uma desconstrução da forma convencional do gênero prefácio e composição de um diferente e novo formato. Isso certamente pode ser estendido aos prefácios anteriores, mesmo que eles não apresentem a subdivisão presente aqui. É oportuno lembrar das palavras de Vera Novis (1989, p. 100), a qual, ao tratar das citações em Tutaméia, se refere às pequenas narrativas que integram os prefácios como ―‗contos‘ narrados nos prefácios‖. Dessa forma, cada uma das partes se constitui numa estória, conferindo ao prefácio um caráter ensaístico e narrativo a um só tempo. Além disso, esse prefácio possui também um teor lírico. O tema da criação no que ela tem de intuitivo propicia reflexões diversas acerca do ―supra-senso‖ (ROSA, 2001, p. 30) da arte e da vida. A partir de situações comezinhas, essas reflexões são tecidas poeticamente. A estorieta relatada pelo narrador-personagem do último conto, a qual se refere a um encontrão do narrador com um verdadeiro homenzarrão, é um bom exemplo disso: Indo andando, dei contra acelerado homem – tão convincentemente corpulento, em diametral aparição, que tudo me tapou, até a pública luz da manhã – próprio para abalrôo e espanto. Tomei-o não por cidadão, antes de alguma espécie adversa. Aliás direito ora ao ajuizado, assíduo, regular quotídio eu me encaminhava. O mundo se assustou em mim: primeiro que qualquer ver e conjeturar enfiei desculpas, que é o cogente em desaguisos tais. Perfizera-se-me aquele o Mau-Gigante, que do mundo também advém. E como é que às criaturas confere-se possibilidade de existirem soltas, assim, separadas umas das outras, como bolas ou caixas, com cada qual um mistério particular, por aí? (ROSA, 2001, p. 216) Afora tudo isso, esse prefácio conta com a presença abundante de outros gêneros discursivos separados do corpo do texto principal. Em seu interior, além de onze epígrafes, temos a presença de um fragmento de canção; três notas (a primeira, um fragmento de poema extraído do livro Interlúnio, de Eugênio de Castro, poeta simbolista português, a segunda, 27 esclarecimentos, e a terceira, uma lista de nomes de vacas que constavam no caderno do vaqueiro Zito); um poema, extraído do diário de viagem de Zito; e um inusitado glossário, contendo trinta e nova verbetes, entre os quais está o do próprio nome do livro. Abaixo temos alguns dos textos pertencentes a esses gêneros transcritos (respectivamente, o fragmento de poema, as três notas, o poema de Zito e quatro verbetes extraídos do glossário): Moi, je ferai faire un p‘tit moulin sur la rivière. Pan, pan, pan, tirelirelan, Pan-pan-pan... (ROSA, 2001, p. 211) 2 *À meia-noite, nos descampados, Sobes às negras torres sonoras, Onde os relógios desarranjados Dão treze horas! Eugênio de Castro. Interlúnio. (ROSA, 2001, p. 213) * Meu colega amigo Dayrell, do Serro-Frio, faz tempo contaram-me que isso, transposto do inglês, chamar-se-ia ―soroptimícia‖. [...] (ROSA, 2001, p. 222) * Eis alguns: ―Farofa, Despedida, Carvoeira, Barqueira, Cerveja, Brasileira, Susana, Rosada, Boneca, [...] (ROSA, 2001, p.226) No dia 19 saimo do sertão o zio no consolo Joaquim no lampião Manoelzão do Pedez Joazito na Balaica De hoje a 3 dia Nos chegamo no reachau das Vacas Quando sai de minha terra Todo mundo ficou chorando Sebastião no Barão O preto no Cabano. A Deus todos meios amingo A te para o ano nesta vila O retrato com cangaia O colchete com a muchila (ROSA, 2001, p. 229) afgã: do Afganistã; natural ou habitante do Afganistã. afgânico: referente ao Afganistã. afta: ulceraçãozinha na boca. [...] tutaméia: nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; meã omnia. Yayarts: autor inidentificado, talvez corruptela de oitiva. Não é anagrama. (Pron. iáiarts.) Decerto não existe. (ROSA, 2001, p. 231-233) 2 Eu vou fazer/ uma pequena fábrica no rio/ Pan, pan, pan, tirelirelan,/ Pan-pan-pan... 28 Mas a quebra dos gêneros nos prefácios em estudo ocorre ainda quando Guimarães Rosa, com seus artifícios verbais, fragmenta a linguagem clichê, automatizada pelo uso. Isso ele o faz extraindo os sons, as sílabas, as palavras e até as frases correntes (de sentido automatizado) dos contextos usuais e lhes agrega novos sentidos. Em virtude disso, esses textos se manifestam com a exuberância de quem reúne em si as mais diversas linguagens artísticas/literárias. Eles são performáticos, isto é, próximos da linguagem oral e com abertura para a música. Eles são também uma fusão de palavras e imagens, já que os jogos sonoros são nada menos que imagens musicais e que a pictórica escrita cria condições para uma intensa visualidade. Em ―Aletria e hermenêutica‖, isso é muito evidente, pois, como foi dito acima, o saber erudito é retirado dos compêndios e dos livros e ganha as ruas, renovando-se com o não-senso e a musicalidade da linguagem popular, passando a estar nas aragens da poesia de Rosa, com intenso e novo brilho que faz da história: estória, da realidade: mito e da tradição: arte da alegoria e da reinvenção, em que surge uma nova lógica, um novo texto. Uma preciosa amostra dessa fragmentação é o que ocorre com certas expressões, como: ―denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da língua quotidiana ou círculo-de-gis-de-prender-peru‖ (ROSA, 2001, p. 30), por representarem insólitas construções que colocam as palavras num contexto inteiramente outro em que elas se comportam de uma maneira diferente da usual. Além disso, os hífens presentes na expressão círculo-de-gis-de-prender-peru criam uma visibilidade que sugere uma espécie de cadeia que serve para prender os perus. A escrita de ―Hipotrélico‖ é repleta de expressões que são uma mistura de prosa e poesia - e essa última no limiar da música, a qual emerge da melodiosa fala sertaneja estilizada pela prolífica criatividade de Guimarães Rosa. É válido destacarmos o primeiro parágrafo do Glossário como exemplo, por apresentar uma acentuada poeticidade: ―Evidentemente os glossemas imprizido, sengraçante e antipodático não têm nem merecem ter sentido; são vacas mansas, aqui vindo só de propósito para não valer.‖ (ROSA, 2001, p. 110). A musicalidade gerada pela repetição dos fonemas consonantais /v/, /s/ e /p/ contribui para que até mesmo um glossário seja poético. Em alguns outros momentos também existem marcas inconfundíveis de poeticidade, vejamos: 29 [...] um neologismo contunde, confunde, quase ofende. [...] Na fecundidade do araque apura-se vantajosa singeleza, e a sensatez da inocência supera as excelências do estudo. [...] No sertão há dessas expressões; nascem ninguém sabe como; vivem eternamente ou desaparecem um dia sem também se saber como. Confere. Pode-se lá, porém, permitir que a palavra nasça do amor da gente, assim, de broto e jorro: aí a fonte, o miriquilho, o olho-d‘água; ou como uma borboleta sai do bolso da paisagem? (ROSA, 2001, p. 106-108) No trecho acima é evidente a repetição dos fonemas /õ/, /ũ/, /d/ e /f/, como também dos fonemas /e/ e /s/. Em ambos os casos, as repetições contribuem para dar poeticidade ao texto. Ademais, o entrecortar das vírgulas e a ordem invertida aproximam ainda mais o falar sertanejo da música. Tudo isso faz do texto uma ―fábula diversa‖, como classifica o próprio autor, em que a mescla dos gêneros está na base de seu edifício poético. Esse prefácio atualiza o princípio segundo o qual o alegorista é aquele indivíduo capaz de trazer à tona, em meio às ruínas, com seu dom criador, objetos novos, no nosso caso uma linguagem nova. A fragmentação, entendida como processo caracterizado pelo isolamento de sons, sílabas, palavras (e também frases) dos contextos mais comuns para inserção em outros, inusitados e, às vezes insólitos, é evidente em todo esse prefácio-estória-ensaio, conforme atestam termos, como: ―hipotrélico‖ (ou ―hiputrélico‖), ―impesquisada‖, ―sem-tempo‖, ―desadoro‖ e ―imanejáveis‖3, que representam neologismos criados por Rosa. Servem também de ilustração para tal fragmentação as seguintes expressões: [...] e mais e mais e mais [...] o objetivo prevale o subjetivo, tudo obedece ao terra- a-terra das relações positivas, e, pois as coisas pesam mais do que as pessoas [...] São seres sem congruência, pedestres ainda na lógica e nus de normas [...] como ia o milho: — ―Vai de minerol infante.‖ — ―Como é?‖ — ―Está cobrindo os tocos...‖ [...] Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente:[...] os glossemas imprizido, sengraçante e antipodático não tem nem merecem ter sentido; são vacas mansas, aqui vindo só de propósito para não valer. (ROSA, 2001, p. 107- 110). Nesse segmento, é o talento criador de Guimarães Rosa que se sobressai, através da estilização da linguagem popular, linguagem de ―obscura coerência‖, de que o autor se vale para criar sua própria escrita estilizada, arte da reinvenção, alegoria. Alegoria porque é uma amostra da ―excessiva força de idéias‖ rosiana, isto é, de sua ardente força criativa. Notamos a invenção de neologismos (terra-a-terra é um deles), desarticulação de frases (Ora, pois, numa 3 Expressões retiradas entre as páginas 106 e 109 de Tutaméia. 30 roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente, por exemplo). Além disso, percebemos a conjunção de palavras e imagens, como é evidente na equiparação das palavras ―imprizido‖, ―sengraçante‖ e ―antipodático‖ à plástica expressão ―vacas mansas‖. Como acontece nos dois prefácios acima, ―Nós, os temulentos‖ é uma mescla de prosa e poesia e está no limiar da linguagem oral das conhecidíssimas anedotas de bêbado (às vezes próxima da música), bem como se investe de um grande poder imagético. Nesse particular encontramos trechos, como: ―caiu: chão e chumbo.‖ (ROSA, 2001, p. 154), ―E conseguiu quadrupedar-se, depois verticou-se, disposto a prosseguir pelo espaço o seu peso corporal‖ (ROSA, 2001, p. 154) e ―Você está bebaço, borracho!‖ (ROSA, 2001, p. 154). No primeiro trecho, a presença dos fonemas vocálicos nasalizados /ã/ e /ũ/ e o fonema consonantal /ς/ se sobressaem, enquanto no segundo, os fonemas consonantais /k/, /s/ e /p/. Já no terceiro, o fonema consonantal /b/ e os vocálicos /a/, /e/ e /u/. A visibilidade, especialmente da segunda passagem, é bastante perceptível, pois o leitor tem a impressão de enxergar o bêbado em sua tentativa de se equilibrar e de andar. ―Nós, os temulentos‖, como já dissemos, trata da dupla realidade das coisas. É a partir do olhar de um bêbado (o herói Chico), com suas ―duvidações diplópicas‖, muitas delas situadas no limiar da realidade e da fantasia, que o autor constrói esse ensaio-prefácio-conto, que não deixa de ter traços significativos de poema. É fácil perceber, logo a princípio, o caráter lacunar e ambíguo do texto. Ele parece acompanhar o herói Chico e seus ―copoanheiros‖, com seu constante titubear e sua errante trajetória. Ele também é marcado pela visão dúbia do herói, abrindo precedentes para inumeráveis lacunas e múltiplas interpretações. Ilustra muito bem isso a ambiguidade da visão diplópica do ébrio Chico, a qual pode ser entendida como uma metáfora do próprio processo criativo rosiano, em que mito e realidade se confundem, como mostra o fragmento registrado abaixo: Exercera-se num, até às primeiras duvidações diplópicas: — ―Quando... — levantava doutor o indicador — ... quando eu achar que estes dois dedos aqui são quatro‖... Estava sozinho, detestava a sozinhidão. [...] E, mas três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trinta espetos. — Feia! — o Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. — E você, seu bêbado!? — megerizou a cuja. E, aí, o Chico: — Ah, mas... Eu? ... Eu, amanhã, estou bom... (ROSA, 2001, p. 151-152) A segmentação da linguagem em ―Nós, os temulentos‖ ganha proporções, na medida em que tanto na fala do narrador quanto das ébrias personagens vários neologismos são 31 trazidos a lume, assim como algumas expressões inédita, propiciando que a linguagem seja retirada de seu contexto original e dotada de novas significações dentro do mosaico textual rosiano. Isso fica claro através de expressões, tais como: ―Aquém-túmulo‖; ―tãopouco‖; ―duvidações‖; ―sozinhidão‖; ―E, vindo, noé; pombinho assim, montado-na-ema, nem a calçada nem a rua olhosa lhe ofereciam latitude suficiente‖; ―copoanheiros‖; ―combeber‖; ―desapaixonar‖; ―fora-de-horas‖; ―despedidosa dose‖; ―morto proverbial‖; ―entreafastar‖; ―incoordenada‖; ―semi-audaz‖; ―quadrupedar-se‖; ―mistilíneo, porém, porém — se- soerguido‖; ―com susto, recuou, avançou de novo, e idem, ibidem, itidem, chocou-se‖; ―ibibibidem‖; ―e foi de ziguezague, veio de zaguezigue [...] curvabundo, tentabundo; peru-de- fim-de-ano‖; e, ―embriagatinhava‖.4 Todos esses vocábulos e expressões representam um revigorar a língua com novas significações, como fica evidente se tomarmos alguns para uma breve análise. ―Sozinhidão‖, por exemplo, acaba por dar maior dimensão à solidão experimentada pela personagem Chico; já ―copoanheiros‖, consegue amalgamar, fundir a idéia de companheiros de copo e ―embriagatinhava‖ acaba por sintetizar numa só palavra um engatinhar devido à embriaguez. Contemplando de perto o esfacelamento existente em todo o tecido textual de ―Sobre a escova e a dúvida‖ e, consequentemente, na textura de cada uma das partes que o formam, observamos que a quebra dos gêneros artísticos/literários ocorre de maneira exemplar. Em vários trechos, aparecem tanto aliterações quanto assonâncias de diferentes sons. As frases/versos: ―As francesas, o chique e charme, tufões de perfume‖, ―O caracol sai ao arrebol‖, ―A cobra se concebe curva‖ e ―o rato, rápido, o gato mágico‖ materializam muito bem isso. A primeira delas tem como ponto forte a repetição dos fonemas /f/ e /ς/. A segunda e a terceira, os sons /o/, /w/, /k/ e /s/. Por último, a quarta apresenta a reiteração dos sons /r/, /a/, /o/ e /i/. 5 Em todas elas ocorre uma intensificação dos sentidos. O charme e a elegância das francesas, por exemplo, são realçados pela sonoridade e assim acontece com os sentidos das demais frases. Mas não é só a musicalidade dos trechos acima que nos encanta, o caráter imagético de ―versos‖ como: ―O caracol sai ao arrebol. / A cobra se concebe curva‖ seduz o nosso olhar e testifica da proximidade do texto rosiano com as artes plásticas. Prosa-poética é em que se constitui o texto. Texto limítrofe entre música e pintura. A primeira das epígrafes pertencentes a esse prefácio é outro exemplo disso, pois, pela aliteração dos fonemas /p/ e /v/ e a assonância dos sons /Є/, /e/ e /o/, também apresenta uma linguagem que é misto de gêneros: 4 Expressões extraídas do intervalo de páginas compreendido entre 151 e 155. 5 Retiradas entre as páginas 210 e 220 de Tutaméia. 32 Atenção: Plínio o Velho morreu de ver de perto a erupção do Vesúvio. Ia. Tabuleta. (ROSA, 2001, p. 209) Em todo o prefácio, encontramos várias expressões que atestam a existência da fragmentação da linguagem. ―Nhaniônias‖ e ―reerro‖ são bons exemplos, uma vez que são neologismos e como tais inserem as sílabas e sons num contexto diverso do usual. As frases ―singelo como um fundo de copo ou coração‖ (ROSA, 2001, p. 210) e ―Rão ora gratuitamente embevecia-se em sua fisionomia quadragésima-quinta — inclinada pessoa, mais fraca que o verbo concupiscir‖ (ROSA, 2001, p. 211) são construções que provocam estranhamento pelo caráter inédito das analogias que tentam estabelecer. Não é comum a singeleza ser comparada a um fundo de copo. Também não é habitual equipararmos a fraqueza de quem quer que seja a um verbo como concupiscir, que nem dicionarizado é. O segmento transcrito abaixo também ilustra o trato todo especial com a linguagem, pois apresenta palavras como: ―circunsequentes‖, ―descarrilhonou‖ e ―tãotanto‖ e ainda expressões, como: ―Era noite mais noite e mais meia-noite‖ que violam os usos do idioma português correntes nos dias de Rosa. A mangueira, e nós, circunsequentes [...] — Meu Deus, descarrilhonou — entrepensava na ocasião Lucêncio [...], ocloques, descarecia, Era noite mais noite e mais meia-noite; [...], despercebendo, cozinheta, desrequentado, maisqueperfeitos, consonhada. Quotídio, cite-se neste ponto-e-vírgula [...], da mesma fórmula[...] sobredito descomenso, melhormente civis & eficazes [...] tãotanto (ROSA, 2001, p. 213-217). A fragmentação alegórica nesses prefácios também é evidenciada pelo arranjo do texto, com uma abundância de sinais de pontuação que, muitas das vezes, se prestam a outros usos, bem peculiares, de acordo com os interesses do escritor mineiro. Invertendo a ordem das frases e entrecortando-as com uma pontuação inusitada, ele impõe seus próprios ritmos aos textos. Em ―Aletria e hermenêutica‖, os travessões e as aspas se juntam para segmentar o texto em mil pedaços e enxertar citações de obras literárias e filosóficas. Mas não são só esses dois sinais de pontuação, em seu peculiar uso, que retalham o texto, as reticências também se fazem presentes, quebrando as citações enxertadas no texto e a 33 fala dos muitos personagens que aparecem em cena. É importante ressaltar que entre as próprias funções das reticências, já se encontram: denotar ―interrupção ou incompletude de pensamento, ou hesitação em anunciá-lo‖ (BECHARA, 2006, p. 657). Mas, por outro lado, podem sugerir continuidade. Assim, ao serem usadas no texto rosiano, na abundância e da forma como ocorre, aglomeram todas essas funções. Com isso, fazem da lacuna o local ideal para a proliferação de sentidos, tendo em vista que elas são o espaço do possível. Observemos o trecho abaixo em que os travessões, as aspas e as reticências aparecem combinados e deixam o texto visualmente em retalhos: Dando, porém, passo atrás: nesta representação de ―cano‖: — ―É um buraco, com um pouquinho de chumbo em volta...‖ — espritada de verve em impressionismo, marque-se rasa forra do lógico sobre o cediço convencional. Mas, na mesma botada, puja a definição de ―rede‖: — ―Uma porção de buracos, amarrados com barbante...‖ — cujo paradoxo traz-nos o ponto-de- vista do peixe. (ROSA, 2001, p. 37) A fragmentação de que estamos tratando não é gerada apenas pelos mais diversos sinais de pontuação que atravessam o texto, segmentando-o em pedaços que, por força dos mesmos sinais, são colados num novo arranjo, numa montagem surpreendente. A própria diferença de formatação contribui para que o texto revele os retalhos de que é composto. Essa diferença transparece através do uso de fontes em itálico, em tamanho 10 e fontes com estilo normal, tamanho 12, nas vozes inseridas no texto, como pode ser observado no trecho acima, mantido na formatação original. 6 Às vezes o processo de fragmentação alcança níveis que representam uma verdadeira radicalização, em que a linguagem cria um fecundo vazio. Na passagem abaixo, isso acontece, através do uso de uma linha pontilhada onde deveria haver uma explicação. Dissuada-se-nos porém de aplicar — por exame de sentir, balanço ou divertimento — a paráfrase a mais íntimos assuntos: Meu amor é bem sincero, Amor dos mais convincentes: ................................ (etc.). (ROSA, 2001, p. 34) 6 Considerando que Guimarães Rosa acompanhava de perto a edição de seus livros, sempre orientando os editores, não podemos acreditar que é fortuita essa diferença de formatação. 34 O autor vai além, combinando vários sinais de pontuação e formatações diferentes. Isso acaba por realçar o caráter fragmentário do texto e aumentar sua expressividade. Ana Martins Marques (apud DUARTE, 2003, p. 44), com base em um estudo de Lauro Belchior que trata dos signos visuais presentes na obra Grande sertão: veredas, chega a afirmar que ―a proliferação dos elementos de pontuação [...], as palavras em itálico, a disposição gráfica do texto [...] fazem com que a dimensão plástica torne-se determinante e venha ampliar as possibilidades de significação.‖ Essa afirmação também é válida para Tutaméia, e, por conseguinte, para o prefácio em análise, uma vez que a pontuação abundante e imprevista, assim como a variada formatação contribuem sensivelmente para a visibilidade, a fragmentação e a riqueza semântica do texto. Observando os dois fragmentos anteriores, o qual também foi mantido na formatação original, percebemos que os dois-pontos, as aspas, o travessão, fontes em itálico e em estilo normal aparecem juntos. Ainda para Ana Marques (apud DUARTE, 2003, p. 44), essas ―marcas visuais tornam-se expressivas, signos que se oferecem ao olhar [...] como objetos gráficos que se tornam também portadores de sentido.‖ ―Hipotrélico‖ e ―Nós, os temulentos‖ também contam com uma fragmentação gerada por sua peculiar pontuação. Especialmente no caso do segundo, o uso bastante recorrente das reticências contribui para as inumeráveis lacunas e múltiplas interpretações a que nos referimos acima. Entretanto, isso acontece não só através das reticências, mas também dos travessões que são uma marca da constante permuta entre a fala do narrador e a das personagens, num jogo em que a fala daquele é repetidas vezes entrecortada pela fala destas. Para realçar ainda mais esse fenômeno e imprimir a marca do visual, está a diferença de formatação e tamanho entre suas falas. A saber, a voz do narrador está grafada com fonte em itálico tamanho 10, enquanto a das personagens se encontra em estilo normal e tamanho 12. Poderíamos dizer que a fala das personagens por estar em tamanho maior e numa formatação diferente ganha destaque, enquanto a do narrador fica num segundo plano. É o que vemos ocorrer na passagem logo abaixo: E, de repente, Chico perguntou a João: - Se é capaz, dê-me uma razão para você se achar neste estado?! Ao que João obtemperou: - Se eu achasse a menorzinha razão, já tinha entrado em lar – para minha mulher ma contestar... E, desgostados com isso, João deixou Chico e Chico deixou João. Com o que, este penúltimo, alegre embora física e metafisicamente só, sentia o 35 universo: chovia-se-lhe. – Sou como Diógenes e as Danáides... – definiu-se, para novo prefácio. Mas, com alusão a João: - É isto... Bêbados fazem muitos desmanchos... – se consolou, num tambaleio. (ROSA, 2001, p. 153)7 ―Sobre a escova e a dúvida‖ apresenta uma excepcional pontuação que inova e rompe com aquela recomendada pela Gramática Normativa, imprimindo um ritmo particular ao texto. Nele é bastante notório o uso de vírgulas e travessões de maneira abundante e singular. O trecho: ―Deveres de fundamento a vida, empírico modo, ensina: disciplina e paciência. Acredito ainda em outras coisas, no boi, por exemplo, mamífero voador, não terrestre. Meu mestre foi, em certo sentido, o tio Cândido‖. (ROSA, 2001, p. 212) é um bom exemplo do uso peculiar das vírgulas, já que apresenta uma farta presença desse sinal gráfica, sugerindo a divisão do texto em vários pedaços. No primeiro período, o uso das vírgulas antes e depois da expressão ―empírico modo‖ se dá por haver uma inversão na ordem habitual da escrita: a vida ensina deveres de fundamento de modo empírico: disciplina e paciência. A ordem usual seria: sujeito, verbo, objeto, adjunto adverbial e aposto, a qual foi substituída por objeto, sujeito, adjunto adverbial, verbo e aposto. No segundo período, o uso reiterado das vírgulas provavelmente ocorra pela elipse de alguns termos como: ―que é‖ e ―e‖. Talvez seja resultado ainda do deslocamento da expressão ―por exemplo‖. Poderíamos pensar na seguinte frase: Acredito ainda em outras coisas como, por exemplo, no boi que é mamífero voador e não terrestre. Já no último, a razão do emprego de duas vírgulas em vez de apenas uma poderia ser também a inversão da sentença: Em certo sentido, meu mestre foi o tio Cândido. O processo através do qual a pontuação é re-arranjada dentro do texto alcança níveis muito elevados e radicais de inovação estilística, como chega a acontecer na terceira parte desse prefácio, num parágrafo que termina abruptamente com um travessão: ―Da kitchenette, via palmos de pátio de cimento, de garage, molhado e que reflexos alumiavam fraquíssimo. Mexi meu chocolate. E —‖ (ROSA, 2001, p. 214). Tomando por base que o trecho acima pode ser uma espécie de demonstração do que o narrador fala sobre a calma: algo ―capaz de parar-me em qualquer ponto‖ (ROSA, 2001, p. 214) e acerca da felicidade: ―um modo sem sequência, desprendido dos acontecimentos‖ (ROSA, 2001, p. 214), inferimos que o corte brusco ―E –‖ no final do parágrafo evoca visualmente a parada e a falta de sequência a que se 7 Este fragmento foi mantido na formatação original em virtude de sua relevância para a análise. 36 refere o narrador. Isso nos faz supor que o autor visa uma intensificação semântica dessas idéias. Não é fortuito que Guimarães Rosa, em correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, chegue a confessar que escolhe certas palavras para compor o livro Corpo de Baile pela ―beleza física‖ delas. Tal afirmação nos leva a pensar no lugar especial que tem a materialidade do texto para o autor. Isso nos autoriza a dizer que ele procura alterar a estrutura das frases, por meio de uma particular pontuação, visando, dentre outras coisas, ressaltar o aspecto significante da linguagem. Assim, a pontuação e todos os recursos de formatação presentes no texto rosiano devem ser enxergados como marcas gráficas que contribuem para uma maior musicalidade e plasticidade do texto, bem como para aumentar a densidade de sentidos. Mas o texto rosiano não se torna descontínuo apenas pelos aspectos aqui explorados, mas também pela presença marcante de outras línguas, quebrando o próprio idioma português. Ao longo do texto de ―Aletria e hermenêutica‖, encontramos expressões como: ―humour‖ (francês), ―Esta sí es que calle, calle; [...]‖ (espanhol), ―Ten little Nigger boys‖ (inglês), ―Zwölf kleine Neger‖ (alemão), ―fallacia non causae pro causa‖ (latim) e ―skías ónar anthropos‖ (transcrição do grego) 8. Por outro lado, essa descontinuidade transparece ainda no uso do próprio idioma português. Há, muitas vezes, o uso de um registro mais culto, o discurso filosófico, por exemplo, e uma linguagem mais coloquial misturados. Rosa faz uso de uma grande variedade de registros lingüísticos interligados. Em seu projeto estético, ele ―deseja utilizar-se de todos os recursos de expressão ‗da linguagem de Minas, do Brasil e de Portugal, do latim, talvez até do esquimó e do tártaro‖ (SIMÕES, s.d., p. 14). O fragmento abaixo ilustra bem isso: — ―O nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo...‖ (Só que, o que assim se põe, é o argumento de Bergson contra a idéia do ―nada absoluto‖: ―... porque a idéia do objeto ‗não existindo‘ é necessariamente a idéia do objeto ‗existindo‘, acrescida da representação de uma exclusão desse objeto pela realidade atual tomada em bloco.‖ Trocado em miúdo: esse ―nada‖ seria apenas um ex-nada, produzido por uma ex-faca.) (ROSA, 2001, p. 32) Esse incontínuo textual deve ser entendido não apenas como uma variação de registro, mas como uma mistura de discursos diferentes, de visões de mundo distintas, de linguagens diferentes que compõem um texto polifônico, onde inúmeras vozes se mesclam. É válido 8 Estas expressões foram extraídas do livro Tutaméia, entre as páginas 29 e 33. 37 lembrarmos alguns nomes de artistas e escritores com suas idéias, os quais estão presentes no prefácio ―Aletria e hermenêutica‖, seja por citação direta ou não. Todos colocados na engrenagem do cotidiano. Podemos mencionar o ator Chaplin, o escritor espanhol Cervantes, o filósofo grego Platão (com o ―Mito da Caverna‖ e a noção de erro positiva), o escritor alemão Kafka (e sua fórmula romanesca), o filósofo Hegel (com sua concepção do erro absoluto), o filósofo Bérgson (com a idéia do nada residual), Verhaeren, Apporelly, o filósofo Voltaire, o filósofo Plutarco, o escritor de diversos koans: Zen, o filósofo Protágoras (com a noção de erro negativa), o aviador Sarmento de Baires, o escritor Pedro Bloch, Rilke, o filósofo Píndaro, o escritor francês Paul Valéry e os poetas brasileiros Augusto dos Anjos, Vinícius de Morais (com o não-senso) e Manuel Bandeira. Sem dúvida, é bastante notório que Guimarães Rosa traz para dentro de seu texto muitas vozes, como ficou dito antes, ele faz uma revisão de toda uma tradição filosófica e literária. E ao fazê-la, não deixa de mesclar o pensamento grego com o saber oriental, autores antigos com os mais modernos, das mais diferentes nacionalidades e culturas, relacionando suas idéias, seus ditos com os mais diversificados contextos: a rua, o consultório médico, o bar, o recanto mais afastado do sertão, dentre outros. O autor acaba por construir o seu texto com fragmentos de textos pertencentes a variadas esferas, domínios diferentes do saber humano: filosofia, literatura, ciência, cultura popular. E nessa construção se sobressai o eco produzido por uma gama de discursos diferentes que se cruzam para dar corpo a esse polifônico prefácio, transfigurado nos domínios da alegoria, pela multiplicidade de vozes que apresenta. A polifonia das vozes também aparece em ―Hipotrélico‖, na medida em que diversas são as falas referenciadas como criadoras dos neologismos que acabam se instaurando na língua. O texto acaba incorporando uma longa lista de palavras, que mais lembra um Dicionário, as quais estão acompanhadas de seus criadores. São desde figuras cultas até as mais incultas e iletradas, as responsáveis por trazerem à luz novas palavras. Os pensadores aos quais Rosa faz referência e as respectivas palavras por eles criadas são: Cícero, qualitas; Comte, altruísmo; Stendhal, egotismo; Guyau, amoral; Bentham, internacional; Turguêniev, niilista; Fracástor, sífilis; Paracelso, gnomo; Voltaire, embaixatriz (ambassadrice); Van Helmont, gás; Coelho Neto, paredro; Ruy Barbosa, egolatria; Alfredo Taunay, necrotério; Castro Lopes, cardápio, convescote, preconício e lucivelo; e, Gustavo Barroso, subdorada. A notável fragmentação de ―Sobre a escova e a dúvida‖ dá espaço para que surja uma vigorosa polifonia. Inicialmente, ela é percebida através das várias epígrafes que introduzem cada uma das sete partes que formam o prefácio. Temos epígrafes de várias origens e autorias: 38 Ia. Tabuleta; Efemérides Orais; Sextus Empiricus; O domador de baleias; P. Bourdin, apud Brunschvicg, citados na Lógica de Paul Mouy; Dr. Lévy-Valensi; Compêndio de Psiquiatria; Quiabos; Sêneca; e Tolstoi. Na verdade, todo o texto é uma combinação de vozes, que vêm do sertão, como a do vaqueiro Zito, e dos livros mais eruditos. Falas essas que se misturam para comporem a rica camada textual. É manifestação viva dessa mistura de vozes/linguagens o que acontece na quarta parte desse prefácio, uma vez que de maneira muito emblemática, para ilustrar algumas situações, o narrador se vale de uma linguagem, muitas vezes, usada em Matemática e em Física em suas sistematizações. São usadas variáveis para identificar as personagens envolvidas nas situações que, por sua vez, também são representadas por variáveis. É interessante notar que a expressão ―da mesma fórmula‖ é quem introduz a narrativa envolvendo essas personagens e situações. Isso significa que o uso das variáveis é intencional e visa mesclar linguagem literária com linguagem científica, num jogo lúdico em que cada letra se exibe perante os olhos do leitor como elementos do ―esqueleto algébrico‖ (ROSA, 2001, p. 30) do texto literário. Notamos claramente isso no trecho citado a seguir: [...] da mesma fórmula em situação, conforme em R. se traçou, onde o povo circula de comum armado. A esbarrou em B e emitiu: — Me desculpe... — voz forte e urso tom, pois vindo no instante remoído de um dali ausente C, com quem mental a rediscutir remenicado. B ouviu e entendeu ―Fedaputa!‖, por quanto irado por dentro, sua vez, em lembrança de D ou E. Expôs-se garrucha, perpetrou-se quase morte. (ROSA, 2001, p. 217) Essas muitas vozes e linguagens emergem das muitas citações diretas ou indiretas que cortam o texto. Isso significa dizer que a quebra dos gêneros, de que fala Carl Horst (apud BENJAMIN, 1984), e que é tão recorrente em Tutaméia, é evidenciada ainda pelo ―entrecortamento‖ dos textos pelas próprias citações. O gesto mesmo de Guimarães Rosa de extrair diversos textos, ou melhor, pedaços de textos do contexto original para imergi-los nos domínios da ficção poética que constrói já pressupõe uma fragmentação. Segundo Antoine Compagnon (1996), isso acontece porque a citação implica um desmontar o texto de origem. Sendo assim, na medida em que uma obra traz recortes e mais recortes de vários outros textos, sejam antigos ou modernos, ela aponta para uma fragmentação de outras obras e, ao mesmo tempo, de si mesma, pois torna-se um espaço em que os recortes são reunidos e recompostos, sofrendo uma renovação semântica. 39 Para entendermos melhor a dimensão desse gesto, que Antoine Compagnon (1996) vai denominar de recorte e colagem, é importante recuperar o pensamento do autor, em sua primazia, no tocante à escrita. Para ele, a escrita é um exercício da intertextualidade, sendo que o trabalho com a citação é o que possibilita isso. Dessa forma, tesoura e cola, como já dizia James Joyce (apud COMPAGNON, 1996), são dois elementos emblemáticos da escrita. Por isso também ―a paixão do recorte, da seleção e da combinação‖ (COMPAGNON, 1996, p. 09), que é notória desde a nossa mais tenra infância, está na base do exercício da escrita. Mas, como dá a entender Compagnon (1996), essa atitude de recortar-colar não é uma mera repetição, pois a autenticidade do contexto inicial não pode ser recuperada. Como foi dito acima, os recortes são reunidos e a escrita é recomposta. Para o autor, ―quando cito, extraio, mutilo, desenraízo‖ (COMPAGNON, 1996, p. 13), daí: O fragmento escolhido converte-se ele mesmo em texto, não mais fragmento de texto, membro de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro amputado, ainda não o enxerto, mas já órgão recortado e posto em reserva. (COMPAGNON, 1996, p. 13). A mutilação de um texto, a qual pressupõe uma ablação, isto é, uma retirada por força de algum fragmento, é o que propicia a desmontagem desse mesmo texto. A mutilação gera um membro amputado e esse, na medida em que for integrado a um novo conjunto, a um novo texto, envolve um processo de assimilação, o qual pode ser entendido como uma mastigação, uma trituração, como já dizia Quintiliano (apud COMPAGNON, 1996). Assim, a inserção do recorte, isto é, da citação num novo texto pressupõe a leitura do autor, a qual envolve o processo de assimilação a que fizemos alusão. É importante nos referirmos ao processo de assimilação, porque ―a leitura repousa em uma operação inicial de depredação e de apropriação de um objeto [...]‖ (COMPAGNON, 1996, p. 14). Em outras palavras, o processo de leitura envolve uma moedura do texto lido, a qual pode ser entendida como uma espécie de fragmentação. Em virtude de tudo isso, ao passo que a citação passa a integrar um novo texto, ela o integra numa rede de textos, como depreendemos da afirmação de Compagnon (1996), segundo a qual a citação viaja de texto para texto. Ao fazer essa viagem, a citação engloba duas operações: extirpação e enxerto, as quais geram toda uma dialética, a da mutilação e do enxerto, do recorte e da colagem. 40 Ainda para Antoine Compagnon (1996), a citação é capaz de dissolver a oposição entre o vazio e o pleno, pois ela é um artifício usado para preencher o vazio. Mas ao mesmo tempo, a citação é sempre um corpo estranho dentro do texto que a recepciona. Tendo em vista que é uma marca da escrita ser: ―colagem e glosa, citação e comentário‖ (COMPAGNON, 1996, p. 39), o texto passa a ser uma espécie de ―justaposição e combinação de retalhos ou de fichas‖ (COMPAGNON, 1996, p. 40). E assim, os livros são construídos ―em torno de uma rede de fragmentos ou citações‖ (COMPAGNON, 1996, p. 40). Essas noções motivam o autor a considerar a escrita como processo de reescrita, o qual deve ser entendido como um ato de citar e esse como o procedimento arcaico de recortar-colar. Mas o autor reitera o que havia dito em momento anterior: a citação não é cópia, ela é sempre singular, pois o ato de citar está vinculado à enunciação. A teoria da citação e também da escrita sintetizada acima se aplica de forma muito apropriada à escritura de Tutaméia, pois o exercício da citação direta ou indireta é uma das forças motrizes da obra, especialmente nos prefácios. Mas, como veremos adiante, os fragmentos que são as citações sofrem ainda a ação da fragmentação alegórica, uma vez que eles podem passar por alterações sensíveis em sua composição textual. Em ―Aletria e hermenêutica‖, nos deparamos com inúmeras citações. Entre elas, encontramos uma estrofe de um poema de Apporelly, a qual Rosa faz questão de frisar que é ―citada de memória‖. As minhas ceroulas novas, ceroulas das mais modernas não têm cós, não têm cadarços, não têm botões e não têm pernas. (ROSA, 2001, p. 33) O fato de ser uma citação de memória é significativo porque nos leva a pensar na possibilidade de alterações não só de contexto enunciativo, mas também na estrutura do fragmento amputado, isto é, citado. Apporelly é um contemporâneo de Rosa, Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, conhecido como o Barão de Itararé e que assinava algumas vezes com o pseudônimo de Apporelly. Esse escritor era um grande jornalista e humorista que fez história aqui no Brasil. Certamente, seu texto, ao integrar ―Aletria e hermenêutica‖, é inserido num novo contexto: o da discussão sobre o nada, em que o cômico dá um pulo para o excelso pela ação da inventividade rosiana, mas é provável que tenha sofrido outras alterações. Caso parecido é o da citação de duas estrofes da conhecida ―estória dos ‗Dez 41 pretinhos‘‖ (como é chamada por Rosa) ou ―Os dez negrinhos‖. Observemos os versos abaixo citados por Rosa, os quais, de acordo com o próprio autor, foram ―tentativamente adaptados‖. Eram dez negrinhos dos que brincam quando chove. Um se derreteu na chuva, ficaram só nove. Eram nove negrinhos, comeram muito biscoito. Um tomou indigestão, ficaram só oito. (E, assim, para trás.) (ROSA, 2001, p. 33) A estória, que tem origem numa cantiga infantil tradicional da Inglaterra, é recuperada, mas não em sua forma tradicional. Se observarmos as duas primeiras estrofes da cantiga em inglês, as quais estão transcritas abaixo, veremos o seguinte: o décimo negrinho sai de cena ao machucar-se e o nono ao cair no sono. Já na versão de Rosa, eles desaparecem, respectivamente, por se derreterem e por terem indigestão. Percebemos ainda que os versos ―Dez negrinhos/ saíram pra jantar‖ são substituídos por ―Eram dez negrinhos dos que brincam quando chove‖. Já as outras oito estrofes que integram a canção original são simplesmente substituídas pela expressão ―E, assim, para trás‖. Ten little nigger boys Went out to dine; One choked his little self And then there were nine, Nine little nigger boys Sat up very late; One overslept himself And then there were eight. 9 9 Tradução livre: Dez negrinhos / saíram para jantar; / Um deles machucou seu pequeno ser, / e então ficaram nove. / Nove negrinhos / deitaram-se muito tarde / Um caiu no sono, e então ficaram oito. 42 Por outro lado, como essa história, ou melhor, estória, já foi revisitada pela escritora Agatha Christie, num de seus mais famosos romances policiais: O caso dos dez negrinhos. 10 , Rosa, ao trazer para o interior de seu texto um fragmento da narrativa ―Os dez negrinhos‖, dialoga não só com a canção, mas também com a obra de Agatha Christie e com qualquer outro texto que revisite a estória. Fazendo isso, ele insere seu texto numa rede de fragmentos e citações, como diria Compagnon (1996), o que remete a um outro nível de fragmentação. Dessa forma, as citações referidas acima pressupõem uma fragmentação tanto em relação à obra de que foram extraídas quanto em relação ao texto do qual passam a fazer parte como corpo estranho, pelo fato de os versos estarem num novo contexto, mas sem deixar de fazer alusão à cantiga infantil inglesa. Por outro lado, pela inventiva recriação a que estão sujeitas as citações, elas acabam incorporando a fragmentação também alegórica, já que trazem à tona enunciados duplamente novos. Observando as passagens abaixo, as quais foram extraídas, respectivamente, do prefácio ―Hipotrélico‖ e da Bíblia, no livro de Gênesis (capítulo 1 e parte do capítulo 2), percebemos um caso parecido, uma vez que o texto do prefácio remete ao relato da criação, especialmente, no momento em que Deus usa a palavra para criar os céus e a terra e tudo o que neles há. A gente pensa em democráticas assembléias, comitês, comícios, para a vivíssima ação de desenvolver o idioma; senão que o inconsciente coletivo ou o Espírito Santo se exerçam a ditar a vários populares, a um tempo, as sábias, válidas inspirações. Haja para. Diz-se-nos também, é certo, que tudo não passa de um engano de arte, leigo e tredo: que quem inventa palavras é sempre um indivíduo, elas, como as criaturas, costumando ter um pai só; e que a comunidade contribui apenas dando-lhes ou fechando-lhes a circulação. (ROSA, 2001, p. 107) No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, estava sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas. Disse Deus: Haja luz; e houve luz. [...] E disse Deus: Haja firmamento no meio das águas e separação entre águas e águas. [...] E assim se fez. (Bíblia Sagrada, 1993, p. 3) 10 Esse livro, por ser um romance policial, desenraíza da antiga canção a estória dos dez negrinhos, colocando-a num contexto inteiramente diferente, mas sem deixar de remeter ao texto anterior. Ele remete à antiga canção da seguinte forma: dez pessoas recebem convites de pessoas conhecidas para irem numa ilha, mas, ao chegarem em seus destinos, percebem que o dono do imóvel não está e que no quarto há uma cantiga de ninar: ―Os dez negrinhos‖. As pessoas, então, começam a morrer misteriosamente do modo que se dá na cantiga. 43 É explícita a semelhança entre os dois textos, uma vez que o ―Haja luz‖ (ou outro elemento da criação) pronunciado por Deus é parafraseado em ―Hipotrélico‖, através de ―Haja para‖, fazendo alusão ao processo de criação das palavras. Já a frase ―o Espírito de Deus pairava por sobre as águas‖ é retomada pelo ―inconsciente coletivo ou o Espírito Santo se exerçam a ditar a vários populares, a um tempo, as sábias, válidas inspirações‖. Mas as semelhanças não param por aí, o ―E houve luz‖ ou o ―E assim se fez‖ também encontram ressonância no prefácio, por meio da expressão ―E ficou havendo‖ (ROSA, 2001, p. 109) que aparece no final do texto para fazer referência ao surgimento do termo hipotrélico ou hiputrélico (como também é grafado). Tudo isso, já sinaliza para a fragmentação que o alegorista Guimarães Rosa, numa atitude de renovação da língua, acaba por fazer. Como observamos, as semelhanças a que fizemos referência são nada menos que uma inserção de palavras e expressões pertencentes ao relato bíblico da criação em um outro contexto, o da criação das próprias palavras e da própria obra rosiana, de forma transfigurada. As expressões retomadas por Rosa são inseridas num contexto bem diferente do original, passando a adquirir um caráter metalinguístico, pois pertence a uma reflexão sobre o próprio processo de criação das palavras e da obra literária rosiana no que ela tem de valorização aos neologismos. Isso alude à busca rosiana por uma linguagem inovadora, muito bem compreendida por Irene Gilberto Simões (s.d., p. 13) quando diz que o escritor mineiro coloca a recriação da linguagem em primeiro plano, procurando ―reinventar a palavra, num processo permanente do idioma‖, e que ele pretende ―fugir aos ‗hábitos estadados‘ e ‗à esclerose torpe dos lugares-comuns‘‖ (SIMÕES, s.d., p. 14). ―Sobre a escova e a dúvida‖ é um caso exímio no uso das citações. Como nos lembra Vera Novis (1989), um dos traços mais marcantes de Tutaméia são as citações entre os contos que integram o livro, inclusive entre aqueles narrados nos prefácios e isso acontece especialmente no caso de ―Sobre a escova e a dúvida‖. Nele, cada uma das sete narrativas que o compõe é introduzida por, pelo menos, uma epígrafe. É importante lembrar que, segundo Compagnon (1996), as epígrafes são citações por excelência. Conforme Ana Maria de Andrade (apud DUARTE, 2003), em Tutaméia, elas são paratextos que se proliferam entre os textos principais e estabelecem relação intertextual desses com outros textos externos à obra, podendo ser apócrifas, heteronímicas ou canônicas. Vera Novis (1989) chega mesmo a mencionar que algumas vezes as citações se relacionam intertextualmente com textos pertencentes ao próprio livro numa espécie de intertextualidade interna. Há uma certa extravagância barroca no uso que Guimarães Rosa faz das citações. Isso é muito válido no 44 tocante a esse último prefácio, pois onze epígrafes (como dissemos anteriormente) estão espalhadas por todo o texto. Observemos então uma delas: Necessariamente, pois, as diferenças entre os homens são ainda outra razão para que se aplique a suspensão de julgamento. (ROSA, 2001, p. 209) A epígrafe acima é do médico e filósofo grego Sextus Empiricus e é uma das três que abre a primeira narrativa de ―Sobre a escova e a dúvida‖. Acerca dessa forma de citação (a epígrafe) é importante frisar: ela estabelece uma relação toda especial do texto iniciado com o antigo autor, como já dizia Compagnon (1996). Sextus Empiricus, que é conhecido por sua posição cética, relativista e empirista, procura defender em seus escritos que não há uma verdade absoluta e, por isso, é necessário, muitas vezes, a suspensão de julgamento. Esse pensamento do médico e filósofo grego se comunica bastante com a estória que abre, tendo em vista que a atitude do narrador-personagem para com o protagonista ―Roasao, o Rão por antonomásia e Radamante de pseudônimo‖ (ROSA, 2001, p. 209) é a de suspender o julgamento, criando uma identidade com o último. A identidade a que nos referimos fica evidente na medida em que o narrador diz a respeito do Roasao: ―Ele era – um meu personagem‖ (ROSA, 2001, p. 211) e, ao mesmo tempo, diz tratando do mesmo Roasao: ―Eu era personagem dele!‖ (ROSA, 2001, p. 211). É importante notar que isso ocorre mesmo quando o narrador não está de acordo com as idéias do Roasao, como fica evidente no trecho: ―Visava não a satisfação pessoal, mas à rude redenção do povo‖ (ROSA, 2001, p. 210). O final do prefácio, com as palavras: ―tudo nem estava concluído, nunca, erro, recomeço, reerro [...] até que a morte da gente venha à tona‖ (ROSA, 2001, p 211), mostra muito bem que tal identidade só se torna possível porque o narrador adota uma posição relativista em relação a Roasao, ou seja, uma suspensão de julgamento. Mesmo com a íntima relação entre epígrafe e estória, a primeira é flutuante e parece deslocada, uma vez que, segundo Compagnon (1996), o autor do texto que ela encabeça, no caso Guimarães Rosa, renega-a. Esse gesto contribui para uma descontinuidade e dialética no texto em que a epígrafe é inserida. A epígrafe abaixo (também pertencente à primeira parte de ―Sobre a escova e a dúvida‖) ilustra bem isso, pois Rosa se apropria de um texto proveniente 45 ―Das efemérides orais‖ que traz à tona tópicos da história e ditos populares, mas ao mesmo tempo se distancia dele, pois a estória que relata é inteiramente outra. Esta epígrafe faz um jogo lúdico com os nomes Sardinha e Cook, os quais aludem, respectivamente, a um bispo devorado por uma tribo canibal aqui no Brasil no período da chegada dos portugueses e a um famoso navegador devorado no século XVIII no arquipélago da Polinésia, como podemos ver logo a seguir: Nome nem condição valem. Os caetés comeram o bispo Sardinha, peixe, mas o Navegador Cook, cozinheiro, Também foi comido pelos Polinésios. Ninguém está a Salvo. Das Efemérides Orais. (ROSA, 2001, p. 209) A brincadeira acontece porque sardinha é o nome de um peixe, sendo assim, alimento, e porque cook, em inglês significa cozinheiro, como é explicitado na própria epígrafe. Os elementos nucleares da epígrafe, sem dúvida, distam bastante dos que se fazem presentes na estória rosiana que remetem ao episódio ―comezinho‖ de um amigo (o narrador-personagem) que recebe outro de viagem (o Rão), procurando mostrar toda sua hospitalidade. Assim, temos que a exploração da epígrafe nesse prefácio (e da forma exaustiva como ocorre) é sintomática da posição privilegiada da citação em sua construção. Esse fato é, por extensão, um indicativo da fragmentação do texto, uma vez que a citação é sempre o fragmento enxertado. Por outro lado, tratar desse tipo especial de citação que são as epígrafes nos faz voltar à noção de quebra dos gêneros discursivos, pois uma epígrafe é nada menos do que mais um gênero do discurso (um texto breve, geralmente, usado para abrir solenemente livros ou capítulos) que é inserido nesse fragmentário e alegórico prefácio. Como se não bastasse isso, as epígrafes aparecem de forma abundante e ainda estão presentes em boa parte dos contos que compõem Tutaméia. Na verdade, elas abrem e fecham o livro e se juntam aos inúmeros outros gêneros discursivos (prefácios, ensaios, contos, anedotas, adivinhas, poemas, glossários, notas, receitas médicas, cantigas e até máximas ou aforismos, como veremos adiante) para darem mostra da diluição das fronteiras entre os gêneros textuais. No Livro sobre nada, a ruptura dos gêneros do discurso também se faz presente, mas em menor grau, tendo em vista que a quantidade de textos pertencentes a gêneros diferentes é 46 menor, ou seja, há uma variedade de gêneros menor. Lúcia Castello Branco (2004), ao fazer o comentário de capa da obra, aponta entre os principais paratextos: epígrafes, citações, referências e notas de pé de página. As epígrafes e as notas seguramente podem ser consideradas como gêneros discursivos e outros ainda podem ser observados: diários, anedotas ou piadas, máximas ou aforismos, são alguns deles. Assim, embora os críticos considerarem-no como um livro de poemas, há também a intromissão considerável de outros gêneros. O poema ―Diário de Bugrinha (excertos)‖, o qual integra a primeira parte do livro, é um importante retrato do curioso trabalho de Manoel de Barros com os gêneros textuais. A palavra excertos presente no título do poema pode ser entendida como fragmentos, trechos, extratos. Isso significa que o autor simula recolher apenas partes de um diário de uma criança de cerca de 10 anos de idade para compor o poema. Assim, o diário/poema, poema/diário aparece de forma fragmentada a serviço da poesia. Observemos a passagem abaixo, extraída do referido texto: 1925 22.1 O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-ninguém. Ele parece com Bernardo. 23.2 Lagartixas têm odor verde. 2.3 Formiga é um ser tão pequeno que não aguenta nem neblina. Bernardo me ensinou: Para infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de água no coração delas. Achei fácil. 23.2 Quem ama exerce Deus – a mãe disse. Uma açucena me ama. Uma açucena exerce Deus? 2.3 Eu queria crescer pra passarinho... 47 5.3 A voz de meu avô arfa. Estava com um livro debaixo dos olhos. Vô! O livro está de cabeça pra baixo. Estou deslendo. (BARROS, 2004, p. 30) Como fica evidente na transcrição acima, a própria enumeração do poema aponta para a fragmentação do texto, pois aparece de forma ―desordenada‖ e incompleta. O texto é composto, supostamente, de pedaços de um diário num intervalo de dois anos consecutivos (1925 e 1926). Relativo ao primeiro ano, aparece a sequência: 22.1, 23.2, 2.3, 23.2, 2.3, 5.3, 5.6, 7.8, 12.8, 10.9, 13.9, 19.9, 1.10, 11.11, 5.2, 29.2. Já referente ao segundo ano, temos: 2.1, 12.1, 1.3, 1.4, 10.4, 21.4, 22.4. Partindo do princípio que o texto tenciona ser não só poema, mas também diário, esses números são nada menos que datas, sendo os dígitos antes do ponto, dias e aqueles situados depois do ponto, meses. Isso é confirmado pelo fato de que o maior dígito antes do ponto é 29 e depois, 11, como também pela data completa (dia, mês e ano) que aparece em dado momento: 2.1.1926. Mas que importância teria esse dado? Se pensarmos que as vivências íntimas da personagem são trazidas à lume não seguindo uma ordem cronológica, mas psicológica, veremos que existe uma intencionalidade por trás da ―confusa‖ sequência numérica dos versos/frases. Como é sabido, o poema (especialmente o lírico) tradicionalmente é uma composição que tem em sua base o subjetivismo e, por consequência, está interessado muito mais nos movimentos internos do eu-lírico do que nos acontecimentos em si, com seu ordenamento no decorrer do tempo. Sendo assim, os recursos poéticos parecem invadir as fronteiras do diário, formando um inter-gênero. Nisso ocorre uma transgressão dos moldes do diário, tendo em vista que uma de suas marcas mais características, o arranjo de vivências e fatos respeitando a ordem cronológica, é quebrada. O poema/diário, como resultado disso, surge com um novo arranjo, capaz de criar novas relações de sentido e de exibir uma inovadora e irregular montagem. Um outro gênero presente no ―Diário de Bugrinha (excertos)‖ é o que o próprio Manoel de Barros (apud CASTRO, 1991, p. 74) ―denominou de gags‖, isto é, anedotas ou piadas poéticas. Esse gênero, que é essencialmente oral e que visa um efeito humorístico, é inserido dentro do poema/diário e aparece em momentos como quando é mencionada a morte de um personagem por nome Lara, o qual era um dos habitantes do brejo pantaneiro. O humor típico de uma anedota é gerado pela reação engraçada e também inesperada do avô do eu- lírico, ao dizer: ―Ué, eu que morri e quem está no caixão é o Lara!‖ (BARROS, 2004, p. 32). 48 O humor se expande, com a explicação do eu-lírico de que o avô reagiu dessa forma porque enxergava mal. Todas as expectativas do leitor são quebradas, como fica evidente no trecho: ―Hoje o Lara morreu picado de cobra. Fizeram seu caixão de costaneiras. Meu avô encostou no caixão. Ué, eu que morri e quem está no caixão é o Lara! Meu avô enxergava mal‖. (BARROS, 2004, p. 32) Introduzindo a segunda parte do Livro sobre nada, ―Desejar ser‖, encontramos uma epígrafe, de autoria do Pe Antônio Vieira, a qual foi extraída de suas ―Paixões humanas‖. Já na quarta e última parte, encontramos uma nota explicando como ocorria a invenção das cores pelo pintor boliviano Rômulo Quiroga a partir de extratos vegetais e estabelecendo relação das inovações perpetradas pelo próprio Manoel de Barros com as de Picasso e Klee. Esses gêneros paratextuais se juntam com os que perfazem o corpo do texto principal do livro, sinalizando para a fragmentação e hibridez da obra em matéria de gênero do discurso. Por ora, vejamos de um trecho da nota mencionada: Nota: Um tempo antes de conhecer Picasso, eu tinha visto na aldeia boliviana de Chiquitos, perto de Corumbá, uma pintura meio primitiva de Rômulo Quiroga. Era um artista iluminado e um ser obscuro. Ele mesmo inventava as suas tintas. [...] Lembrei que Picasso depois de ver as formas bisônticas na África, rompeu com as formas naturais, com os efeitos de luz natural, com os conceitos de espaço e de perspectiva, etc etc. E depois quebrou planos, ao lado de Braque, propôs a simultaneidade das visões, a cor psíquica e as formas incorporantes. Agora penso em Rômulo Quiroga. Ele foi apenas e só uma paz na terra. Mas eu vi latejar rudemente nos seus traços milagres de Klee. Salvo não seja. (BARROS, 2001, p. 74) Atentando para o fragmento acima, notamos alguns elementos que nos ajudam a entender algumas concepções estéticas do autor mato-grossense. Primeiro, a idéia de que Rômulo Quiroga inventa as próprias tintas, porque mostra que o poeta defende que o escritor deve criar seu próprio estilo. Segundo, a idéia de que Picasso, ao conhecer as formas bisônticas, ―rompeu com as formas naturais‖ e (juntamente com Braque) ―quebrou planos‖, pelo fato de dar a entender que Barros tem uma consciência aguda de que é preciso efetuar rupturas para que a imaginação ganhe asas. Pensando agora no plano dos gêneros do discurso, é exatamente isso que o autor efetua. Assim, como em Tutaméia, observamos que há uma desestabilização dos gêneros convencionais, através da quebra desses. O autor corta determinados gêneros e aglutina elementos de outros gêneros, formando novos. 49 O projeto estético de Manoel de Barros, à semelhança do que ocorre com Guimarães Rosa, demonstra que ele é um alegorista, isto é, constrói uma escritura fragmentária e ambígua, uma expressão marcada por rupturas. Nela ―o princípio dissociativo e pulverizador‖ (BENJAMIN, 1984, p. 230) que faz parte da concepção alegórica tem um papel fundamental. Esse é um traço do Livro sobre nada também no tocante aos gêneros artísticos e literários. A presença da prosa já é uma amostra do hibridismo dos gêneros literários, uma vez que essa obra se propõe a ser um livro de poemas e como tal remete à escrita em verso. Mas, muitos poemas são escritos sem maiores preocupações com os recursos poéticos convencionais, chegando até a ser dispostos em linhas ininterruptas, traço preeminente da prosa. Embora Manoel de Barros não seja o primeiro poeta a escrever poemas em prosa, esse não é um traço comum do gênero poema. Os primeiros poemas escritos em prosa remontam à crise do verso que se instaura nos primórdios da modernidade, com os Pequenos poemas em prosa, de Charles Boudelaire. Essa crise é nada menos que uma expressão de ruptura com a herança dos versos tradicionais. Aqui no Brasil, Massaud Moisés (2000), ao tentar diferenciar a poesia da prosa, já apresenta como exemplo dessa prática o poeta simbolista Cruz e Souza. Moisés chega ainda a afirmar que os modernistas vão ampliar essa ―técnica‖, por meio de sua grande liberdade formal. Ele chega mesmo a conceituar poesia como: ―a expressão metafórica do ‗eu‘, cujo resultado, o poema, pode ser em verso ou em ‗prosa‘‖ (MOISÉS, 2000, p. 94). Moisés (2000) faz isso quando apresenta uma distinção entre forma e conteúdo e defende que gênero nenhum pode ser definido por sua forma, o que implica dizer que podemos admitir a existência de poemas em prosa e de prosa em verso. Entretanto, ele admite que ―o verso parece corresponder mais de perto à essência da poesia, graças ao seu jogo rítmico‖ (MOISÉS, 2000, p. 94). Assim, podemos afirmar que Barros, com seu gesto de escrever vários poemas em prosa, promove uma quebra na relativa estabilidade do gênero categorial poesia, que tradicionalmente se consagrou como um texto em verso. Vejamos uma ocasião em que isso acontece (poema quatro da segunda parte, ―Desejar ser‖): Escrevo o idioleto manoelês archaico 1 (Idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas). Preciso de atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável do que o solene. (Para limpar das palavras alguma solenidade – uso bosta.) Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de cerebral nos meus escritos é apenas uma vigilância pra não cair na tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão. (BARROS, 2004, p. 43) 50 Entretanto, esse poema barreano, mesmo sendo escrito em prosa, não deixa de ser performático. O fragmento acima exibe períodos curtos, com idéias coordenadas, isto é, justapostas, o que nos remete à fala. Ele também apresenta, em alguns momentos, um ritmo bem marcado, como fruto de jogos fônicos, como por exemplo: ―Idioleto é o dialeto que os idiotas [...]‖, cujas aliterações do /d/ e /t/, bem como as assonâncias do /i/ e /o/, principalmente, criam uma profícua relação som-sentido entre idioleto, dialeto e idiota. Isso torna o texto rítmico e o aproxima da música, pois o próprio Manoel de Barros (2009), em entrevista concedida a Lu Moraes, chega a afirmar que ―poesia [...] é armação de palavras com canto dentro‖. Como já dizia Haroldo de Campos (2004, p. 284), a poesia pode ser entendida sempre como uma ideomúsica, o que, segundo ele, pode ser evidenciado muito bem pela operação da tradução concebida como uma transcriação: Ela [a operação tradutora] impõe uma leitura partitural do texto, mostrando que, nesse sentido, num sentido de imanência estrutural, a poesia (desde sempre) pode ser entendida como música, uma ideomúsica de formas significantes. Basta ter ouvidos livres para ouvir "estruturas" (e estrelas ...). Como é possível então o texto barreano, apesar de ser escrito em prosa ser, em alguns momentos, uma poesia tão rítmica e musical? Octavio Paz (1982, p. 82), refletindo sobre a relação entre o verso e a prosa, nos ajuda a entender isso. Segundo Paz (1982, p. 83), tradicionalmente a prosa é ―um instrumento de crítica e análise‖ e como tal privilegia os conceitos e não as imagens, sendo, por isso, artificial e incapaz de seguir o ritmo do idioma. No entanto, segundo ele, com a reforma poética ocorrida na França: a prosa deixa de ser a serva da razão e torna-se a confidente da sensibilidade. Seu ritmo obedece às efusões do coração e aos saltos da fantasia [...]. Logo se converte em poema. [...] A imagem arrebenta a prosa como descrição ou narrativa. (PAZ, 1982, p. 102) No poema abaixo, extraído da primeira parte do livro, a qual é intitulada ―Arte de infantilizar formigas‖, observamos a presença de um relato bastante inusitado, no qual a figura do avô do eu-lírico/narrador é fundida à natureza de maneira estranha. Essa fusão é 51 sugerida muito bem pelos versos: ―- meu avô começou a dar germínios‖ e ―queria ter filhos com uma árvore‖, os quais, se intercalados pela conjunção porque, revelam o interesse do avô em se unir intimamente a uma árvore, a ponto de procriar. Tal fusão é realizada também através do uso das expressões: ―para rã, para árvore, para pedra‖. Elas evocam a idéia de que o avô se converteu sucessivamente em rã, em árvore e, por fim, em pedra. Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra – meu avô começou a dar germínios. Queria ter filhos com uma árvore. Sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir vender na cidade. Meu avô ampliava a solidão. No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fundos do Quintal: Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro. Um lagarto atravessou meu olho e entrou para o mato. Se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou. (BARROS, 2004, p. 21) A escrita barreana ―conduz as palavras (e as coisas) muito além de seus limites habituais, e o poder de criação evita repetir os gestos automáticos e cotidianos da natureza: a poesia é um ser vivo que se sabe capaz de criar o inusitado.‖ (MARINHO; MENEZES, 2002, p. 87). Nela, a fragmentação e a recriação da linguagem atingem níveis elevados, uma vez que as expressões referidas são imersas numa situação muito diferente das habituais, em que, como afirmam Marcelo Marinho e Emanuela Ramires (2002, p. 32), ocorre uma transmutação do ser humano em árvore, isto é, uma ―conversão virtual entre elementos de naturezas distintas‖. Nessa transmutação, apagam-se ―as tênues e artificiais fronteiras taxinômicas propostas - e impostas - no século XVIII pelo naturalista sueco Carl von Linné‖ (MARINHO; RAMIRES, 2002, p. 30). As expressões ―o dia já envelheceu‖, ―um lagarto atravessou meu olho‖ e ―se diz que o lagarto entrou nas folhas, que folhou‖, por implicarem numa subversão de conceitos que funcionam como modelos básicos de apreensão do mundo e até do uso da linguagem, por introduzirem o não-senso no universo do texto, ilustram bem o afastamento da lógica científica ou consensual, como diria José Prioste (2006). O segmento ―sonhava de pegar um casal de lobisomem para ir/ vender na cidade.‖, que alude a um sonho do avô, por ser insólito ao extremo, também revela a que grau o poeta pantaneiro chega. Sem dúvidas, todos esses exemplos ilustram o afastamento da megera cartesiana e a intromissão do insólito no texto. Henrique Eduardo de Souza (2002, p.20) afirma a esse respeito: ―[...] atrelando o princípio da 52 racionalidade ao imaginário, a poesia de Manoel de Barros parece desestabilizar as configurações sedimentadas no conhecimento formal‖. Muitas das vezes em que isso ocorre, deve-se à aproximação do universo infantil, com sua lógica particular, o que Henrique de Sousa (2002) vai chamar de paralógica. Por tudo isso, se cumpre o que Octavio Paz (1982, p. 47) afirma ser traço básico da criação poética: se inicia como violência sobre a linguagem. O primeiro ato dessa operação consiste no desenraizamento das palavras. O poeta arranca-as de suas conexões e misteres habituais: separadas do mundo informativo da fala, os vocábulos se tornam únicos, como se acabassem de nascer. Essa linguagem recém criada, inaugural, rompe com as fronteiras dos gêneros artísticos, na medida em que é capaz de induzir o leitor a visualizar as cenas apresentadas no tecido textual, sendo seu aspecto imagético mais do que pungente. A expressão ―um lagarto atravessou meu olho‖ (BARROS, 2004, p. 21), por exemplo, é bastante sugestiva, sendo capaz de fazer passar a cena perante/através dos olhos do leitor atento. Isso ocorre também com a imagem barreana, essencialmente surrealista, que aflora do trecho: ―como um lápis numa península‖ (BARROS, 2004, p. 17). Assim, o texto ganha visibilidade, através de uma espécie de intrusão das artes plásticas no texto barreano. O próprio Manoel de Barros (2004, p. 51) tem consciência disso, pois chega a dizer que: ―Pertenço de fazer imagens/ Opero por semelhanças‖. Como afirma Maria Adélia Menegazzo (2008, p. 7), ele ―sabe se valer do jogo intertextual, explorando propriedades plásticas no discurso poético‖. Ao operar com essa intertextualidade, conforme esclarece ainda Menegazzo (2008, p. 3), Manoel de Barros não faz uma mera transposição das artes plásticas para a sua arte poética, mas uma aproximação das duas por meio das analogias de procedimentos e estruturas: [...] as inúmeras referências a artistas plásticos, obras de arte e objetos que agem como intertextos na obra literária manoelina, propiciando a atualização de conceitos, técnicas e elementos da linguagem visual, contribuindo para novos efeitos de sentido a partir dessas imagens [...] transforma[m] as relações intersemióticas na afirmação de uma linguagem poética única em seus mecanismos, afastando-se da mera tradução ou ilustração de um código em outro, articulando analogicamente suas estruturas, levando à reflexão as linguagens da arte e seus modos de construção e representação. 53 No Livro sobre nada, a dissolução das barreiras entre os gêneros artísticos/literários é favorecida também pela abundância de sinais gráficos que se presentificam no texto, por eles estarem diretamente ligados à fragmentação. Nesse particular, se sobressai o poema contido na terceira parte do livro, a qual é denominada ―O livro sobre nada‖. Em decorrência do caráter aforístico do texto (o qual será analisado mais adiante), o uso do ponto final é abundante. Aqui, o ponto final marca bem o fato de os versos serem sentenças isoladas e realça a fragmentação resultante da justaposição deles para formar o poema. Vejamos a sequência abaixo, constituída de cinco versos consecutivos, a qual foi extraída do referido poema: É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. Tudo que não invento é falso. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. Tem mais presença em mim o que me falta. Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário. (BARROS, 2004, p. 67) Observando os versos acima, do ponto de vista da disposição, é interessante notarmos que eles não se aglomeram para formar estrofes, mas eles são distribuídos invariavelmente com uma linha em branco intercalando-os. Ademais, a formatação original do texto realça ainda mais a separação entre eles pelo fato de haver um espaçamento entre as linhas e de elas apresentarem um marcador em seu centro, conforme representado acima. A linha em branco também é recorrente na disposição dos versos/linhas do poema ―Diário de Bugrinha (excertos)‖, pois ela sempre está intercalada entre uma data e outra. Mas voltando ao ponto final, é importante observar, como esclarece Evanildo Bechara (2006) em sua Gramática Escolar da Língua Portuguesa, que é o sinal gráfico capaz de denotar maior pausa, encerrando períodos que terminem com orações quaisquer que não 54 sejam interrogativas diretas, exclamativas e reticências. Sabendo disso, é significativo, então, o fato de termos diversos poemas do livro constituídos de versos curtos e todos eles encerrados por ponto final. Ora, se esse sinal demarca uma pausa maior e se dentro do livro seu uso é bastante recorrente, é lógico inferirmos que ele é mais um dos fatores que contribui para a fragmentação da escrita. Vejamos mais um caso que ilustra isso: Sou um sujeito cheio de recantos. Os desvãos me constam. Tem hora leio avencas. Tem hora, Proust. Ouço aves e beethovens. Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin. O dia vai morrer aberto em mim. (BARROS, 2004, p. 45) Em matéria de pontuação, merece destaque ainda o uso dos parênteses. É bastante recorrente em todo o livro. Vários poemas exibem esse sinal gráfico. É interessante notar que uma das funções dos parênteses dentro do texto, conforme esclarece também Evanildo Bechara (2006, p. 662), é a de promoverem ―um isolamento sintático e semântico‖ da forma mais completa dentro de um enunciado. Esse isolamento implica dizer que um comentário aparte corta o texto dito principal para poder se inserir nele. Notemos alguns momentos em que isso acontece: Mano Preto não tinha entidade pessoal, só coisal. (Seria um defeito de Deus?) (BARROS, 2004, p. 15) Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só pra poder andar torto) (BARROS, 2004, p. 39) Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo). (BARROS, 2004, p. 49) Os dois pontos, embora sejam menos recorrentes, também merecem atenção. Em algumas situações, eles são usados de uma maneira atípica, criando uma lacuna entre os versos e sinalizando para a ausência de conectivos e de verbos de dizer, na formação de uma espécie de discurso direto livre. Eles abrem verdadeiras rachaduras no texto barreano. Nos versos: ―O pai desbrincou de nós: / Só o obscuro nos cintila.‖ (BARROS, 2004, p. 15), 55 notamos que os dois pontos promovem uma verdadeira quebra no discurso. Puxando o fio desse, através da inserção de uma conjunção e de um verbo de dizer, obteríamos um texto mais coeso, como vemos na paráfrase: O pai desbrincou de nós e disse: só o obscuro nos cintila. Os versos: ―Ele subia no Coreto do Jardim: / Olha o urinol enferrujado.‖ (BARROS, 2004, p. 27) também deixam evidente uma lacuna provocada pela ausência de conjunção e verbo de dizer, os quais se estivessem presentes formariam a sentença: Ele subia no Coreto do Jardim e dizia: olha o urinol enferrujado. Toda essa fragmentação oriunda da pontuação exposta acima contribui para a ruptura dos gêneros artísticos, uma vez que, pela presença bem marcada de tais sinais gráficos, o texto se torna mais imagético. Certamente, como acontece com Guimarães Rosa, Manoel de Barros visa também através da pontuação ressaltar a corporeidade da linguagem, tornando-a sensorial. Mais que isso, em entrevista a André Luís Barros, o próprio Manoel de Barros (2009) afirma que aprendeu com o poeta Rimbaud e, por isso, visa ―uma certa promiscuidade dos sentidos na natureza‖, o que segundo Barros ainda está atrelado a uma busca de encontrar a língua da poesia. Com relação ao uso das citações, o Livro sobre nada, já em seu ―Pretexto‖, começa por trazer à baila Flaubert: ―O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada‖. As Cartas exemplares organizadas por Duda Machado e escritas por Flaubert em 1852 a uma amiga são as referências dadas pelo próprio Manoel de Barros, o qual explicita a aplicação da citação num novo contexto quando diz: Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc, etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora. (BARROS, 2004, p. 7) A citação de Flaubert, por sua vez, já remete a Stéphane Mallarmé, pois, conforme depreendemos das palavras de Calvino (apud LINO, 2004, p. 172), na poesia mallarmaica, o nada é tido ―como substância última do mundo‖. Para Mallarmé, a beleza da poesia está nas palavras e não nas idéias, daí poder o texto estar desvinculado do mundo que o cerca. Assim, Barros, ao citar Flaubert, dialoga também com os escritos de Mallarmé e acaba por inserir o Livro sobre nada numa cadeia intertextual de fragmentos. Mas o uso todo especial dessa 56 citação também é sintomática da fragmentação alegórica, já que uma linguagem outra é criada, a qual é capaz de extravasar ―semântico-visualmente‖, como diria Meganazzo (2009). Isso fica muito evidente pelo uso de expressões como: ―um alarme para o silêncio‖, ―um abridor de amanhecer‖, ―pessoa apropriada para pedras‖ e ―parafuso de veludo‖, as quais são plásticas e de caráter inusitado, servindo muito bem para nos dar mostra da ars inveniendi que é a criação barreana. É válido lembrarmos as palavras de Lúcia Castello Branco (2004), quando aborda a questão dos paratextos para entendermos melhor a importância das citações no contexto da obra barreana em análise: [...] nas margens do texto [...] nos litorais da escrita, um lápis [...] corta, recorta, assinala, sublinha, rasura. São epígrafes, citações, notas de pé de página que oferecem falsas pistas ao leitor, traçando o movimento de uma segunda mão que escreve, nos espaços paratextuais [...] O gesto de Manoel de Barros de entrecortar, a saber, de (re)cortar entre os inúmeros outros textos, pedaços para, em seguida, colá-los dentro de sua radical poética, revela a irregular construção de sua obra e dá prova de sua intrigante/ambígua e fragmentária montagem. A citação destacada abaixo, a qual consiste na epígrafe de Pe Antônio Vieira (já mencionada acima como um dos gêneros discursivos que compõe o Livro sobre nada), como era de se esperar, é um exemplo eminente de citação. Aponta para o seu autor e o relaciona ao texto de que passa a fazer parte, o texto barreano: O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos vêem com amor o que não é, tem ser. (BARROS, 2004, p. 36) Essa relação ocorre na medida em que Manoel de Barros se apropria do texto do Pe Vieira, que originalmente deveria estar associado a uma concepção religiosa de que somente com amor o ser humano pode enxergar o que ele não é, ou seja, para fora de si mesmo (o que implica ver além e se afirmar como indivíduo), e o introduz num novo contexto (o lírico), em que é realçada a importância de o sujeito ver o que ele não é para chegar à sua essência como ser humano. ―Desejar ser‖, a parte do Livro sobre nada iniciada pela epígrafe acima, com 57 seus catorze poemas, pela valorização do inútil, do marginal, do fragmento e da negação estabelece uma relação próximo/distante com o Pe Vieira. Ademais, pela construção de uma poética das sequenciais imagens inusitadas (metáforas continuadas, como diria Adolfo Hansen (2006)), a escrita barreana ascende ao plano alegórico. Através dessa poética, a linguagem se torna um meio de alegorizar a construção do eu e uma vibrante revelação da força imaginativa do poeta do pantanal, conforme demonstram os versos: ―Com pedaços de mim eu monto um ser atônito‖. (BARROS, 2004, p. 37), ―As violetas me imensam‖. (BARROS, 2004, 41) e ―Os delírios verbais me terapeutam‖. (BARROS, 2004, p. 49) 2.2- ENSAIO E AFORISMO O gênero ensaio é de difícil definição. Como afirma José Luis Gómez-Martínez (1992, p. 1), costuma-se ―denominar ‗ensayo‘ a todo aquello difícil de agrupar en las tradicionales divisiones de los géneros literarios‖.11. Segundo o autor, o termo ensaio é vago e pretende abarcar uma grande variedade de obras. Para Gómez-Martínez, em essência, esse gênero continua o mesmo criado por Miguel de Montaine, embora tenha passado por evoluções na forma e no conteúdo. Isso significa que ele desde o seu surgimento até os dias atuais continua suscitando interesse por parte dos críticos, mas sem uma solução definitiva para a sua problemática. Na visão do filósofo alemão Theodor Adorno (2003), o ensaio é um tipo de texto que exprime liberdade: nem pretende ser científico nem artístico, ocupando um lugar entre os despropósitos, exige do receptor ―espontaneidade da fantasia subjetiva‖ (2003, p. 17). Essa mesma liberdade da forma ensaio também é abordada por Gómez-Martínez (1992, p. 15), quando diz: En realidad, el elaborar una idea y llevarla a sus últimas consecuencias requiere un proceso de sistematización que raramente está dispuesto a seguir el ensayista. Su espíritu es demasiado libre. Escribe según piensa, y su produción la considera tan unida a su mismo ser, que no cree necesario, o quizás posible, el volver la vista atrás para modificar, adaptar o reorganizar lo ya escrito. 12 11 denominar ―ensaio‖ a tudo aquilo que é difícil de agrupar nas tradicionais divisões dos gêneros literários 12 Na realidade, elaborar uma idéia e levá-la a suas últimas consequências requer um processo de sistematização que raramente está disposto a seguir o ensaísta. Seu espírito é demasiado livre. Escreve segundo pensa, e considera sua produção tão unida a si mesmo, que não crer ser necessário, ou mesmo possível, o dirigir a vista atrás para modificar, adaptar ou reorganizar o já escrito. 58 A liberdade do texto ensaístico propicia a grande dificuldade no tocante à definição de suas fronteiras. É possível encontrarmos autobiografias, artigos de opinião, diários íntimos, cartas, crônicas, aforismos dentre outros gêneros com tom ensaístico, como afirma Gómez- Martínez (1992). Além disso, o ensaio reúne em si conhecimentos científicos, filosóficos e literários. Os conhecimentos científicos aparecem através dos conceitos com que trabalha o ensaísta. Os filosóficos, pela reflexão, que embora seja o reflexo do ser individual que é o autor e esteja ligado às circunstâncias de produção do texto, remete ao ser no mundo. Já os literários, pela linguagem carregada de imagem de que se vale. O ensaio, em decorrência disso, é um gênero dramaticamente híbrido, fragmentário e multifacetado, com muitos aspectos a serem explorados. Em seu estudo sobre a forma ensaio, Theodor Adorno (2003, p. 25) diz que ela ―é radical [...] ao acentuar, em seu caráter fragmentário, o parcial diante do total.‖ Para esse pensador, ―o ensaio pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele encontra sua unidade ao buscá-la através dessas fraturas, e não ao aplainar a realidade fraturada‖ (ADORNO, 2003, p. 35). Isso acontece, conforme deixa entrever o autor, porque o ensaísta abandona a expectativa do definitivo, oferecendo apenas explicações inacabadas de obras alheias ou de suas próprias idéias. Dessa forma, o ensaio não tem a pretensão do discurso científico de ser tomado como algo generalista e fechado, ou seja, ―o ensaio não segue as regras do jogo da ciência [...] como a ordem dos conceitos, uma ordem sem lacunas [...], o ensaio não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva‖. (ADORNO, 2003, p. 25). Ele também não se amolda aos ―procedimentos de uma filosofia veraz, aferida por valores eternos‖ (ADORNO, 2003, 22). Em virtude disso, o ensaio é uma forma aberta. Mas essa abertura não deve ser tomada como um elemento negativo, pois o texto ensaístico não é algo vago, já que o seu conteúdo o delimita. ―O ensaio procede, por assim dizer, metodicamente sem método‖ (ADORNO, 2003, p. 30), ao eleger uma experiência como objeto de análise. Isso significa dizer que o gênero ensaio pode ser tido como uma forma aberta, mas fechada ao mesmo tempo, isto é, dialética. Mostra muito bem isso o estudo realizado por José Gómez-Martínez (1992), quando ele busca levantar algumas características observadas nos escritos de diversos ensaístas hispânicos de sua época no intuito de apresentar os traços comuns do fazer ensaístico de seus dias. As características principais apontadas por Martínez (1992) são: tratar de um tema sempre ligado às circunstâncias em que o autor viveu; não pretender ser exaustivo; imprecisão nas citações; ter um tom confessional; apresentar um caráter dialogal; ser uma forma ativa de 59 pensar; não apresentar estrutura rígida; contar com digressões; apresentar sugestões para o leitor, sempre problematizando; chamar o leitor para participar ativamente da construção do sentido; ter liberdade de tema e de estilo. Entre essas características, algumas merecem destaque por sua importante contribuição para a configuração desse gênero como um texto fragmentado e multifacetado. Por esse motivo, em nosso trabalho, observaremos os textos de teor ensaístico que se fazem presentes em Tutaméia e no Livro sobre nada, atentando para tais elementos. Num brilhante estudo sobre os quatro prefácios de Tutaméia, Irene Simões (s. d. , p. 24) comenta a função de cada um deles. Ela faz isso a partir de uma pesquisa feita por Otto Maria Carpeux sobre a função do prefácio na obra literária. Para ela, fica evidente que eles exercem a função de ―gênero independente‖, se comportando como pequenos ensaios que refletem sobre o próprio processo criativo do autor, mas sem deixarem de ser também estórias que entremeiam outras estórias (como vimos antes). Mas somente o fato de eles funcionarem como ensaios já é de grande importância para que os entendamos como texto essencialmente fragmentário e ambivalente. Esses prefácios refletem sobre a singular experiência artística do escritor Guimarães Rosa e o fazem de forma metodicamente assistemática, seguindo a fina sensibilidade do autor para apreender seu próprio fazer artístico-poético. As reflexões presentes nesses prefácios não pretendem ser válidas para outros autores (embora às vezes o sejam), mas para o singular processo de escritura rosiano. Os textos, numa disposição metalinguística, efetuam as considerações aglomerando pensamentos de forma, muitas vezes, justaposta. Em ―Aletria e hermenêutica‖, Guimarães Rosa, ao discorrer sobre a relação da estória com a anedota e dessa com a poesia, vai tecendo suas reflexões, deslizando de um pensamento para outro sem procurar uma rigorosa sistematização. Inicialmente, o autor afirma que a estória (que não quer ser história) se parece com a anedota e que essa última pode servir para a poesia. É preciso, para ele, haver uma classificação, para que sejam descobertas as anedotas de abstração, as quais são, especialmente, as que tomam como ponto de partida o não-senso, fator muito apropriado para se ler a vida em seu ―supra-senso‖, como diria Rosa. Com essa análise, o autor não pretende chegar a nenhum conceito acabado, mas almeja muito mais compartilhar sua singular sensibilidade artística com o leitor, o receptor de seus escritos. Tanto é assim, que ele chega mesmo a fazer confissões, na sexta parte do prefácio ―Sobre a escova e a dúvida‖, ao revelar para o leitor o mecanismo pelo qual algumas de suas obras foram arquitetadas. Vejamos abaixo a exposição feita por Rosa sobre o processo 60 de criação de três diferentes textos (―Buriti‖, ―Conversa de bois‖ e ―A terceira margem do rio‖): À Buriti (NOITES DO SERTÃO), por exemplo, quase inteira ―assisti‖, em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de Bois (SAGARANA), recebi-a, em amanhecer de sábado, substituindo a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerava como definitiva ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do Rio (PRIMEIRAS ESTÓRIAS) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão ―de fora‖, que instintivamente levantei as mãos para ―pegá-la‖, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. (ROSA, 2001, p. 222) É interessante notar que, ao fazer essas confissões, Guimarães Rosa tem um diálogo tão íntimo com o leitor que vai construindo juntamente com ele seu parecer sobre a arte e a criação. Sem dúvidas ele vai constituindo seu texto como ativa forma de pensar, como fruto de um meditar ao correr da pena, como diria Gómez-Martínez (1992). Fica evidente isso no fragmento: No plano da arte e criação – já de si em boa parte subliminar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza – decerto se propõem mais essas manifestações. Talvez seja correto confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir. (ROSA, 2001, p. 222) O tom confessional que às vezes se insinua nos prefácios de Tutaméia é uma evidente marca de subjetivismo do autor. Tal subjetivismo implica em maior espontaneidade, maior liberdade por parte dos textos, ainda que existam profundas reflexões em seus meandros. Isso favorece algumas imprecisões no tecido textual. Especialmente, ―Aletria e hermenêutica‖ e ―Sobre a escova e a dúvida‖ se sobressaem por trazerem à tona um expressivo número de citações de outros autores para discorrerem sobre os temas abordados. Ao fazê-lo, o autor não se preocupa com as exigências a respeito das citações, pois muitas vezes elas aparecem sem referências e algumas vezes com sensíveis alterações no texto. Essa inexatidão das citações que permeiam esses prefácios-ensaio contribui de forma significativa para a fragmentação dos textos. Segundo Gómez-Martínez (1992, p. 19) isso ocorre porque: 61 […] las citas, numerosas en los ensayos, tienen valor por sí mismas en relación con lo que el ensayista nos está comunicando; importa destacar que alguien creó una idea, representada en la cita, pero el "quién", y el "dónde" carecen en realidad de valor. No son las citas importantes porque fulano o mengano las dijo, sino por su propia eficacia. Y el hecho de señalarlas como citas es sólo con el propósito de indicar que no son de propia cosecha, sino que forman parte del fondo cultural que se trata de revisar. 13 O caráter fragmentário dos prefácios transparece ainda através do seu inacabamento evidente. A ―fórmula‖ com que ―Aletria e hermenêutica‖ é encerrado: ―Ergo: O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber. Quod erat demonstrandum.‖ (ROSA, 2001, p. 40), é uma boa amostra disso. Traduzindo as expressões do latim para o português temos, respectivamente: ―logo‖ e ―como se queria demonstrar‖. Assim, Guimarães Rosa termina o texto admitindo que esse deixou de contemplar muitas coisas relativas ao assunto abordado, mas também revela que era seu intuito demonstrar a incapacidade de o texto abarcar a vasta gama de coisas que se relacionam com o assunto de que trata. É importante ainda realçar que a ―fórmula‖ mencionada acima é lançada no texto depois de terem sido listados diversos pensamentos de forma aforística, pensamentos esses que aludem a um mundo numa frase. Mas, como nos lembra José Gómez-Martínez (1992), o ensaio não tem a pretensão de ser exaustivo, a forma ensaística não tenciona esgotar o tema de que se ocupa. Desse modo interessa ao ensaísta apenas recortar um dado aspecto e refletir sobre ele de maneira intensa, detida, mas sem se preocupar em abarcar a totalidade do assunto. O autor esclarece isso ao dizer: La totalidad no importa. Se intenta únicamente dar un corte, uno sólo, lo más profundo posible, y absorber con intensidad la savia que nos proporcione […] El propósito del ensayista al internarse en la aventura de escribir un ensayo no es el de confeccionar un tratado, ni el de entregarnos una obra de referencia útil por su carácter exhaustivo. Esa es la labor del investigador. El ensayista reacciona ante el discurso axiológico del estar que le impone la sociedad para insinuarnos una 13 [...] As citações, numerosas nos ensaios, têm valor em si mesmas em relação com o que o ensaísta está nos comunicando; é importante destacar que alguém criou uma idéia, representada na citação, mas o "quem" e "onde "não é realmente de valor. As citações não são importantes porque o fulano ou beltrano disse, mas pela sua própria eficácia. E o fato de assinala-las como citações é apenas com o propósito de indicar que não são de colheita própria, mas são parte do contexto cultural que é posto em revista. 62 interpretación novedosa o proponernos una revaluación de las ya en boga. (GÓMEZ-MARTTÍNEZ, 1992, p. 14-15). 14 A intensidade das reflexões a que alude Martinez (1992) se faz presente em cada um dos prefácios estudados. Guimarães Rosa se esforça para captar a essência do seu próprio fazer artístico, tentando se apropriar dele em sua complexidade. Fazendo um recorte de um aspecto importante em sua criação literária, os neologismos, o escritor mineiro, no prefácio ―Hipotrélico‖, sem ir à exaustão, traz à luz cogitações interessantes a respeito do processo através do qual são geradas novas palavras. Ele faz isso com o intuito de esclarecer que, ao criar neologismos, está se valendo de um processo natural do idioma: [...] um neologismo contunde, confunde, quase ofende[...] previu-se um bem decretado conceito: o de que só o povo tem o direito de se manifestar, neste público particular. Isto nos aquieta. A gente pensa em democráticas assembléias, comitês, comícios, para a vivíssima ação de desenvolver o idioma; senão que o inconsciente coletivo ou o Espírito Santo se exerçam a ditar a vários populares, a um tempo, as sábias, válidas inspirações. Haja para. [...] Seja que, no sem-tempo quotidiano, não nos lembramos das e muitíssimas que foram fabricadas com intenção[...] Palavras em serviço, já hoje viradas naturais[...] criar novas palavras invade muitas vezes o criador como imperial mania[...] (ROSA, 2001, p. 106-109) No Livro sobre nada, embora o ensaio não se faça presente como em Tutaméia, estão presentes textos de tom ensaístico. É o caso do ―Pretexto‖, no qual Manoel de Barros procura explicar em que consiste o nada de seu livro: ―[...] o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito[...] Fazer coisas desúteis. O nada mesmo[...]‖ (BARROS, 2004, p. 7), o que pode ser entendido, a partir da leitura da obra, como investir em tudo aquilo que não é valorizado pela sociedade capitalista em que vivemos, como o próprio ato de fazer poesia. Nesse gesto de o autor desvendar perante o leitor o que pretendia ao escrever um Livro sobre nada, percebemos que é feita uma espécie de confissão ao leitor. Mas as confissões não estão restritas ao ―Pretexto‖. Mais adiante, nos poemas quatro e oito da segunda parte, a qual é intitulada ―Desejar ser‖, Barros elucida para o leitor que a escrita do 14 A totalidade não importa. Pretende-se apenas dar um corte, um só, o mais profundo possível, e absorver com intensidade la seiva que nos proporcione […] O propósito do ensaísta ao adentrar na aventura de escrever un ensaio não é o de confeccionar um tratado, nem o de entregar-nos uma obra de referência útil por seu carácter exaustivo. Esse é o trabalho do investigador. O ensaísta resiste diante do discurso axiológico do estar que lhe imponhe a sociedade para insinuar-nos uma interpretacão inovadora ou propor-nos una revalorização das já em voga. 63 livro comporta arcaísmos, novas significações (muitas vezes inusitadas e insólitas), imagens que têm sua base no ato de fazer comparações, conforme observamos a seguir: Escrevo o idioleto manoelês archaico [...] Preciso de atrapalhar as significâncias [...] aprecio uma desviação ortográfica para o archaico (BARROS, 2004, p. 43) Pertenço de fazer imagens Opero por semelhanças. (BARROS, 2004, p. 51) Manoel de Barros, como afirmam Marcelo Marinho e Edna Menezes (2002, p. 83-84), através de sua metalinguística poesia, transmite uma ―consciência de que a palavra é capaz de engendrar novas visões do mundo, por meio da fragmentação do Verbo-Universo e de sua simultânea recriação por intermédio da própria palavra.‖ É com essa consciência que o poeta mato-grossense prossegue, com sua linguagem metalinguística, explicando seu fazer poético. Através dos versos transcritos abaixo, o autor esclarece que o ato de desestabilizar a linguagem, especialmente o discurso instituído, tem o objetivo de expressar melhor os mais profundos anseios (o que é prerrogativa, por excelência, da literatura). Daí ele dizer que não gosta ―de palavra acostumada‖, isto é, da linguagem automatizada pelo uso. A linguagem inédita, conforme também explica, é conseguida por uma espécie de jogo lúdico. Esse é um dos artifícios que o autor diz utilizar, na sua busca de desformar as formas naturais. Isso tudo é o que depreendemos dos versos a seguir: A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a um ponto que ela expresse nossos mais profundos desejos. [...] Não gosto de palavra acostumada. [...] Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria. [...] Deus deu a forma. Os artistas desformam. [...] É preciso desformar o mundo: tirar da natureza as naturalidades. (BARROS, 2004, p. 70-75) Ao fazermos a leitura do livro, percebemos que o autor propõe uma poética da desaprendizagem, como diria Lúcia Castello Branco (2004). Os procedimentos adotados por ele para concretizar essa proposta são constantemente elucidados por meio de explicações que emergem de todo o livro de forma rigorosamente assistemática. A ausência de método que é 64 seguida pelo autor, ao analisar sua própria criação de maneira difusa, refletindo o trajeto seguido em seu próprio fazer poético, faz de sua escrita a um só tempo ensaística e lírica. Há uma tensão em que crítica e poesia se atritam e se fundem, servindo de mostra de uma linguagem fraturada, transgressiva e multifacetada. Todo o livro é permeado de ponderações do autor a respeito de sua criação artística, as quais não deixam de destilar poesia. O caráter assistemático da escritura barreana chega a ser um fator preponderante, pois ocorre uma quebra no encadeamento dos versos que é de impressionar. A escrita se aproxima do aforismo de uma forma muito expressiva. Conforme Gómez-Martínez (1992, p. 31-32), enquanto ―En el tratado —y por extensión en el discurso, en la monografía aunque en lo sucesivo no se mencionen— destaca lo metódico […], en el ensayo prevalece lo aforístico.‖15 Para Martínez (1992) ainda, o ensaísta prefere o discurso das associações e das intuições à ordem lógica adotada pela ciência. Ele está mais preocupado em garantir a sua liberdade criativa e as lacunas para que o leitor preencha do que em seguir algum método rígido. Isso ocorre pela presença de sentenças compactas, assemelhadas às máximas populares. Às vezes, uma sentença tratando sobre um dado assunto é imediatamente seguida por outras (também condensadas), cada uma delas tratando de um assunto diferente. A terceira parte do livro, intitulada ―O livro sobre nada‖, por ter em sua base sentenças isoladas, é um texto de natureza aforística. Ela é um caso exímio. Vejamos a sequência de versos extraídos de tal parte: É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. Tudo que não invento é falso. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. Tem mais presença em mim o que me falta. Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário. Sou muito preparado de conflitos. 15 No tratado —e por extensião no discurso, na monografia embora não seja mencionada a seguir— destaca-se o metódico[…], no ensaio prevalece o aforístico. 65 Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou. [...] (BARROS, 2004, p. 67) Em toda a sequência de versos, percebemos uma certa quebra de pensamento. Embora saibamos que esses versos fazem parte do ―projeto de ensino da desaprendizagem poética‖, do enxergar aquilo que parece inexistente para a maioria, notamos a estrutura aforística do texto, na medida em que os versos parecem isolados uns dos outros, cada um com sua unidade semântica particular, sem que haja um maior encadeamento discursivo. Nela, embora exista um tema geral: o nada, os versos são arranjados com relativa independência semântica, cada um sendo uma unidade de sentido completa. Todos estão numa relação de coordenação entre si. Eles são justapostos um ao outro e não se subordinam a uma idéia central. Eles são uma reunião de pensamentos a respeito da importância do nada, da negação e da falta capaz de existir independentemente um do outro. Caso mais emblemático da composição de um texto aforístico somente o do primeiro poema da segunda parte do livro que é formado tão somente pelo verso: ―Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.‖ (BARROS, 2004, p. 37), o qual parece uma espécie de máxima sobre a dramática fragmentação do eu-lírico. Quando procuramos o significado de aforismo, temos que: é uma palavra advinda do grego aphorismós, que significa: ―limitação; definição; breve definição, sentença‖. Comumente a palavra aforismo aparece com o sentido de provérbio, dito, ditado, dizer, adágio, e o de máxima, sentença, sendo que as fronteiras entre esses termos são pouco definidas. Mas o aforismo pode ter uma dimensão mais culta, estando numa área de convergência entre o filosófico e o literário. Ele pode ser entendido como um estilo de discurso ligado à percepção do mundo e que é capaz de contribuir para a expressividade da mensagem. Ele pode ser entendido como um gênero singular dentro da tradição das formas breves, sendo considerado o mais nobre delas. A análise linguística dos aforismos pode revelar certas estratégias lexicais, sintáticas e semânticas. Assim, para além do conteúdo, deve-se ter em conta a forma de expressão, normalmente curta e concisa. Eles têm habitualmente sentido figurado e grande expressividade estilística. A sua função pragmática é fundamental. A forma lacônica e a natureza de máximo apuramento desses ditados propiciam uma grande condensação de potencialidades significativas, apresentando assim um código de prescrições sociais para a interpretação da realidade. O recurso frequente a palavras polissêmicas, a sinônimos, antônimos, a perguntas retóricas, os torna instrumentos clássicos do poder do discurso. 66 Podem, assim, aparecer como afirmação política, filosófica, moral, apresentando um ideal de sabedoria. Para Jean Baudrillard (2003), o aforismo, aphorizein, comporta a noção de separar, isolar. Segundo o autor, ―o aforismo consiste em lançar pensamentos dispersos, cada leitor tirará deles seu próprio proveito, de maneira diversa‖ (BAUDRILLARD, 2003, p. 38). De acordo com ele ainda, ―cada detalhe do mundo pode ser perfeito se encontrar seu eco‖ (BAUDRILLARD, 2003, p. 38). Assim, embora represente o fragmento e o estilhaçado, o aforismo encerra a perfeição, uma vez que é o detalhe que pode encontrar seu eco no leitor, apresentando a possibilidade de se projetar através da figura desse até formar uma unidade semântica independente. No momento em que isso acontece, para Baudrillard (2003, p. 39), o aforismo torna-se ―uma resistência paradoxal à ditadura do instante [...]‖. Embora tenha em comum com o clip e o spot a instantaneidade, a rapidez e o efêmero, ao criar um vazio simbólico em torno de si, a forma aforística pode, como dissemos, encontrar seu eco, pois: [...] no detalhe, o mundo é perfeito [pois] cada detalhe do mundo considerado em sua singularidade é perfeito[...] convém passar[...] para o lado do fragmento, devolvendo-lhe sua singularidade; aliás esse é o único espaço em que podemos nos movimentar porque, se uma singularidade é em si perfeita, podemos também passar de uma para a outra, ou lançar uma contra a outra, há uma verdadeira regra do jogo[...] Isso se reflete[...] na linguagem que, neste aspecto, talvez seja a plataforma mais preciosa[...] A língua é uma das coisas que resistem melhor a esse ajuntamento finalizado. (BAUDRILLARD, 2003, p. 40) Ainda de acordo com Jean Baudrillard (2003, p. 34), ―no aforismo, no fragmento, há a vontade de retirar o máximo de gordura possível; [...] os objetos se transformam, quando são vistos no detalhe, em uma espécie de vazio elíptico.‖ Esse gesto de retirar, conforme Baudrillard (2003, p. 35), pode ser entendido à luz de uma classificação de Leonardo da Vinci, a qual considera a escultura, a arte da depuração e a assemelha a uma forma de escrita que: [...] atenta aos detalhes, dispersa. Esse mesmo trabalho em relação ao detalhe, ao fragmentário, é efetuado na escrita com o aforismo[...] O aforismo é, no conjunto, muito mal aceito; de certa maneira, está do lado do mal, sendo uma violência cometida contra o discurso, mas não contra a linguagem[...]. 67 No Livro sobre nada, podemos entender o aforismo como uma insurreição contra a noção de conjunto e uma insurreição contra as teias do discurso tradicional, contra o pensamento teórico com sua sistematização. A dispersão criada pela justaposição de pensamentos diversos, dispostos quase aleatoriamente, é sintomática de uma quebra nas cadeias discursivas habituais. O rompimento com as malhas desse tipo de discurso é evidente na obra barreana em análise e aponta para a fragmentação da obra de uma forma geral, tornando-a distante do que tradicionalmente se entende por conjunto: resultado da união das partes de um todo orgânico sem que haja brechas. A obra em foco tem um caráter lacunar, podendo ser assemelhada à obra do escultor, a de retirar, uma vez que corta o discurso, retirando muitos dos nexos que compõem as malhas desse, deixando-o em pedaços. Nela, o leitor está livre para seguir sua intuição e fazer associações diversas, partindo das muitas fendas da superfície textual. Ele pode participar ativamente do processo de construção dos muitos sentidos do texto. Na escrita aforística, a fragmentação e a ambiguidade são traços complementares, como deixam entrever as palavras de Jean Baudrillard (2003, p. 43-46), quando diz: O lado enigmático [do fragmento] é, no mínimo, tão essencial quanto a forma breve... Convém que isso permaneça suspenso, que nenhuma significação se torne prevalecente... Pode-se, sem dúvida, imaginar, pensar, interpretar, mas, em princípio, o fragmento desafia a interpretação ou, então, elas são múltiplas e inesgotáveis... O fragmento é feito para ser decodificado em sua literalidade, ele está aí, é tudo, como um objeto e não em termos de formulação subjetiva; ele é como qualquer objeto, indecifrável, permanece inesgotável para o pensamento [...] É necessário devolver a tonalidade incomparável a cada detalhe, a cada fragmento [...], e não finalizá-los enquanto tais!‖ (BAUDRILLARD, 2003, p. 43-46) Em Tutaméia, embora o aforismo não seja usado com a mesma intensidade com que se faz presente no Livro sobre nada, ele ainda emerge com certa força. A conclusão de ―Aletria e hermenêutica‖ é uma viva demonstração da presença do texto aforístico na obra rosiana, dentro desse prefácio-ensaio. Como podemos observar na transcrição abaixo, jamais uma conclusão que estivesse inscrita nas malhas discursivas tradicionais apresentaria essa estrutura. No texto, é notória a ausência de conectivos que estabeleçam os nexos argumentativos inerentes a uma conclusão. Todas as frases listadas tratam do não-senso que impregna a linguagem humana, culminando com conceitos positivos da ausência, da negação. Contudo, elas se distanciam bastante por remeterem a contextos de naturezas tão diferentes e 68 isso as tornam unidades semânticas relativamente independentes. Isso é o que vemos logo abaixo: Conflui, portanto, que: Os dedos são anéis ausentes? Há palavras assim: desintegração... O ar é o que não se vê, fora e dentro das pessoas. O mundo é Deus estando em toda a parte. O mundo, para um ateu, é Deus não estando nunca em nenhuma parte. Copo não basta: é preciso um cálice ou dedal com água, para as grandes tempestades. O O é um buraco não esburacado. O que é – automaticamente? (ROSA, 2001, p. 39-40) O comentário realizado por Ana Maria Bernardes de Andrade (apud DUARTE, 2003, p. 36) a respeito de Tutaméia, é válido especialmente para esse prefácio: ―Rosa parece brincar com as expectativas do leitor, tornando instáveis as categorias da retórica tradicional‖. Como diz ela também, esse prefácio é encerrado com ―uma série de máximas do não-senso‖ (ANDRADE apud DUARTE, 2003, p. 40). Essas máximas são nada menos do que aforismos que transferem para o leitor a tarefa de completar o sentido dos vazios deixados pelo texto. Esses vazios propiciam a proliferação de sentidos e são, ao mesmo tempo, um desafio à interpretação, como dão a entender as palavras de Baudrillard (2003) citadas há pouco. O fragmento aforístico está ligado a ―um suspense, algo que não está elucidado e não se encontra aí por acaso.‖ (BAUDRILLARD, 2003, p. 43) Além de tudo isso, como nos diz Roland Barthes (apud BAUDRILLARD, 2003, p. 33), o aforismo apresenta ―uma elevada condensação [...] de música [...] alguma coisa de articulado e de cantado‖. Ele também, por sua grande proximidade e até identificação com outras formas breves e, em especial com a máxima, dentro de Tutaméia e do Livro sobre nada, adquire ―a mesma função que o efeito luminoso na pintura: [...] lampeja[ndo] com uma luz penetrante na escuridão da complexidade alegórica (BENJAMIN, 1984, p. 220). O fragmento aforístico então é um gênero imagético, que rompe a fronteira dos gêneros artísticos e se aproxima da música e da pintura. Como o aforismo, muitas vezes, está presente no interior do ensaio, isso já nos faz presumir que o último também pode apresentar a mesma riqueza imagética. Ademais, tendo em vista que o ensaio, em Tutaméia, adquire características de conto, de anedota e até de poema e, no Livro sobre nada, é mais 69 propriamente apenas uma tonalidade crítica do texto lírico, podemos afirmar que esse gênero é de grande teor imagético dentro das obras em estudo. Isso nos motiva a dizer que a ruptura das fronteiras entre os gêneros artísticos, literários e discursivos também fica evidente pela presença do ensaio e do aforismo, com seus limites indefinidos. Eles são uma verdadeira insurreição contra o encadeamento discursivo tradicional, exibindo fragmentos-imagens como formas privilegiadas em suas composições. Ao fazerem isso, tanto o ensaio quanto o aforismo desestabilizam os modelos, os gêneros, convencionais com a sua relativa estabilidade. Na verdade, pelo que estivemos observando até aqui, a fragmentação é uma marca das escritas tanto de Guimarães Rosa quanto de Manoel de Barros. O alto nível de hibridismo dos gêneros textuais, artísticos e literários é um meio privilegiado através do qual a fragmentação e a recriação da linguagem (como também do discurso) se materializam tanto em Tutaméia como no Livro sobre nada. O cruzamento de diversos gêneros dentro dessas obras culmina com a construção de gêneros entrecortados, os quais são um misto de ensaio, conto, aforismo, poema, prosa-poética, música e imagem. Nessas obras, a fragmentação alegórica se insinua ao serem arrancados sons, sílabas, palavras e ainda frases de seus contextos usuais para desfilarem a serviço de novas e mais intensas significações. Com isso, os poetas-alegoristas Guimarães Rosa e Manoel de Barros remontam ao gesto de quem se encontra num reino de morte e se vale das ruínas que o rodeia (no caso deles a linguagem clichê) para erigir um monumento poético, cuja marca principal é a reunião de pedaços. A tesoura e a cola são emblemas do recorte-colagem, processo comum às escrituras desses dois autores. Estilhaços de discursos, de expressões artísticas diferentes são inseridos dentro dos textos, fazendo-os participar de uma rede de citações e fragmentos, ao se comunicarem intertextualmente com outras obras. Em ambas as obras, pedaços de gêneros distintos se intercalam, compondo gêneros entrecortados, novos, os quais têm como marca principal a mescla dos gêneros de forma tão difusa que temos dificuldade de definir os textos como pertencentes a um ou a outro gênero, se transformando em verdadeiros ―inter-gêneros‖. Em outras palavras, esses livros são expressões alegóricas, que exibem o ―fragmento amorfo‖ como uma de suas maiores riquezas. Neles, a dissolução dos gêneros convencionais se materializa na liberdade estética e na imaginação poética dos grandes alegoristas que são Rosa e Barros. Isso ocorre quando eles adotam procedimentos inerentes à poesia, na prosa, constituindo uma prosa-poética, com uma ―linguagem plástica, poética, próxima da música‖ (LINO, 1996, p. 100); quando os autores rompem com as estruturas dos gêneros convencionais e fazem surgir novos. A eles pertence o 70 reino (en)cantado de uma linguagem demiúrgica que acompanha o mágico pensamento, segundo o qual: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. [...] Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall (BARROS, 2004, p. 75) 71 3. POÉTICA DO FRAGMENTO Ao estudarmos a ruptura dos gêneros em Tutaméia e no Livro sobre nada, percebemos que é uma marca forte tanto da escritura de Guimarães Rosa quanto de Manoel de Barros a quebra das fronteiras dos gêneros artísticos, literários e discursivos, ultrapassando o exclusivismo linguístico existente nas formas que seguem os parâmetros clássicos. Notamos ainda a segmentação da linguagem em seus mais diversos níveis, culminando com uma linguagem ambígua e imagética. A fragmentação no projeto estético desses dois autores é algo que se manifesta de forma significativa também nos elementos estruturais da narrativa e da poesia (narrador/eu-lírico, personagem, espaço, enredo e tempo). 3.1 INCISÕES DE VOZ DO EU-LÍRICO/ NARRADOR Quando paramos para ouvir o prosear dos narradores rosianos que emergem das reentrâncias da linguagem de Tutaméia, notamos que suas vozes não seguem a linearidade do narrar convencional (o que tem como parâmetro as formas clássicas), com seus ideais de clareza e seu encadeamento lógico prototípico. O falar dos contadores arquitetados por Rosa sofre cortes, apresenta incongruências, ambiguidades, à semelhança da prosa do jagunço Riobaldo em Grande sertão: veredas. Para observarmos como essa fragmentação ocorre em Tutaméia, tomaremos como base o narrador Prudencinhano, do conto ―Antiperipléia‖, por ser uma construção exímia na obra. Também teceremos alguns comentários sobre a narradora Flausina, de ―Esses Lopes‖. Prudencinhano é um narrador-personagem, ex-guia de cego, que relata a morte, em circunstâncias misteriosas, do cego seô Tomé, para o qual serviu de guia por algum tempo. Ele narra ainda que o povo do lugarejo onde o incidente ocorreu o acusa de ser o responsável pela morte do cego. Seu nome, a partir do radical ―Prudenci‖, remete explicitamente à noção de prudência, sabedoria, cautela. Entre os significados da palavra prudente podemos ter ainda: qualidade de quem age com moderação, comedimento, buscando evitar tudo o que acredita ser fonte de erro ou de dano; cautela, precaução; ou circunspeção, ponderação, cordura, sensatez. Já o sufixo ―nhano‖ parece um gracejo, uma coisa pra não se levar a sério, algo até de conotação pejorativa. Ele é bastante sugestivo no tocante à possível falta de prudência do narrador. Mesmo que ele seja considerado alguém prudente, não podemos livrá-lo da suspeita 72 do crime, pois ele pode usar de prudência no momento de narrar, para não se comprometer, para encobrir dissimuladamente os fatos ocorridos. É interessante observar que, em meio ao seu contar, Prudencinhano deixa escapar algumas informações bastante suspeitas, o que pode indicar um envolvimento na morte do cego: Que é que eu tenho com o caso... Todos fazem questão de me chamar de ladrão. Cego não é quem morre? [...] Ela me dava cachaças, comida. Ele me fiava a féria. Me tratavam. O que podia durar, assim, às estimas fartas? [...] Mas o marido, imoral, esse comigo bebia, queria mediante conluios pegar o dinheiro da sacola... Eu, bêbado e franzino, ananho, tenho de emendar a doideira e cegueira de todos? [...] Me chamo Prudencinhano. Agora o cego não enxerga mais...‖ (ROSA, 2001, p. 43-45). A opinião popular acredita que Prudencinhano é culpado. Primeiro, o povo o chama de ladrão, o que sugere que ele teria matado seô Tomé para ficar com o dinheiro. Isso não é sem motivos, pois o narrador bebia com o rival do cego (o marido da amante deste), o mesmo que visava a sacola de dinheiro. Atentando para o trecho citado acima, percebemos a recorrência de interrogações que cravam dúvidas no discurso de Prudencinhano e de reticências que assinalam interrupções na fala do narrador bastante provocativas. Elas sugerem um calar ciente de algo mais, parecem uma ponta de um grande ice berg, um segredo, que se insinua levemente para o leitor. Isso é verdadeiro, especialmente, se seguirmos a regra do jogo discursivo apresentada pela narradora Flausina, do conto ―Esses Lopes‖: ―Dito: meio se escuta, dobro se entende.‖ (ROSA, 2001, p. 83). Torna-se mais válido ainda se levarmos em consideração que o narrador deixa entrever rasgos maiores de sua suposta culpa: ―ao meu Seô Cego mentir. Procedi. [...] Tive nenhum remorso. [...] Tenho culpas retapadas [...] Temo que eu é que seja terrível‖ (ROSA, 2001, p. 42) Por outro lado, ao dizer que é agradado pela amante do cego, Prudencinhano está querendo convencer a todos de que para ele era mais vantajoso que o cego continuasse vivo, não tendo ele razões para matá-lo. Podemos então indagar: a cegueira e a doideira são dos outros? Ou dele mesmo? Será que ele, através da narrativa, não faz um esforço para reparar ou, pelo menos, disfarçar sua própria loucura? Será que ele não tenta escamotear o fato de que ele não usou de prudência quando deveria? Já que ele bebia com o rival do cego e recebia agrado da mulher do primeiro e também amante do segundo, tudo é possível. Por essa breve análise, já percebemos que a fala do narrador provoca o leitor. Através de um jogo artificioso, tira o leitor do tino, perturba-o, lembrando os narradores enganosos de Machado de Assis. 73 Para Paulo Rónai (2001, p. 24), ―Antiperipléia‖ pode ser contada entre as antonímias metafísicas, isto é, as ―abstrações opostas a fenômenos perceptíveis pelos sentidos, tais como: antipesquisas, acronologia, desalegria, improrrogo, irreticência; desverde, incogitante [...]‖. Para compreender alguns possíveis sentidos dessa abstração rosiana, observemos alguns significados dos morfemas que compõem essa palavra. O prefixo ―anti‖ significa do, ou pelo lado oposto, ou face oposta e ―peri‖, movimento em torno. Já ―pléia‖ pode ser fragmentada em ―ple‖, que com o mesmo significado de ―pli‖, alude a mais numeroso, em maior número e advindo da palavra plebe pode ser entendida como povo. Por último, a terminação ―éia‖ lembra odisséia, palavra essa que pode remeter a uma viagem cheia de peripécias e aventuras, a uma narração de aventuras extraordinárias ou ainda a uma série de complicações, peripécias ou ocorrências singulares, variadas e inesperadas. Assim, poderíamos supor que ―Antiperipléia‖ quer dizer um andar contrário à opinião de todos. Assim, as acusações do povo do vilarejo em que ocorreu a morte do cego seriam infundadas, fruto apenas da antipatia popular pelos guias de cego. Essa suposta antipatia transparece nas palavras do próprio Prudencinhano quando diz: ―A gente na rua, puxando cego, concerne que nem se avançar navegando – ao contrário de todos.‖ (ROSA, 2001, p. 42). Por outro lado, ―Antiperipléia‖ também pode remeter à noção de uma ―anti-aventura‖ cometida pelo narrador: o crime, o qual é uma oposição aos valores sociais. Lembrando as palavras do narrador: ―Tudo, para mim, é viagem de volta.‖ (ROSA, 2001, p. 41), podemos inferir que o discurso do narrador se movimenta de forma bastante sinuosa, procurando retornar à idéia da inocência/culpa dele e contrariar as desconfianças populares a respeito de seu envolvimento na morte do cego seô Tomé. Na maré de sua linguagem, Prudencinhano tenta arrastar o seu interlocutor, o leitor. Isso é ratificado pelo travessão que inicia o texto numa indicação da tentativa de diálogo, de interação. Também o verbo ―delongo‖ usado no início do texto parece indicar a intenção do narrador de se demorar na sua própria defesa, a qual acaba sendo ambígua. Na verdade o discurso é enganoso, escapa às nossas mãos, é um artificioso jogo. Um falar entrecortado por um propositado silêncio, oscilante, se configura. Um arrazoar com brechas e incongruências, o qual está longe de um discurso linear e fere, em alguns momentos, o encadeamento lógico, cravando a dúvida no cerne da narração/arguição procedida. Um outro momento em que isso fica patente é: Mas não cismo como foi que ele no barranco se derrubou, que rendeu a alma. Decido? Divulgo: que as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; 74 quando no remate acontecem, estão já desaparecidas. Suspiros. Declaro, agora, defino. (ROSA, 2001, p. 41-42) Tenho e não tenho cão, sabe? Me prendam! Me larguem! A mulher esteja quase grávida. Me chamo Prudencinhano. Agora o cego não enxerga mais... A culpa cai sempre é no guiador? (ROSA, 2001, p. 44-45) Prudencinhano demonstra indecisão no que irá divulgar. Primeiro diz não saber como ocorreu a queda do cego do barranco. Em seguida, diz que as coisas existem mesmo é por detrás do que há. O narrador urde um relato afirma obscuramente algo e recua para reparar o que disse. Seu discurso pode ser enxergado como algo alegórico. A imagem do movimento de volta é algo que atravessa todo o conto. Um discurso contraditório, em que a coerência é quebrada, emaranha-se cada vez mais e procura envolver o leitor, capturando sua imaginação e fazendo-a girar num turbilhão que a fertiliza sem que haja uma definição sobre o que de fato ocorreu e o tipo de envolvimento do narrador. Paulo Rónai (2001, p. 26) chega a dizer que ―Antiperipléia‖ é: [...] o relatório feito em termos ambíguos por um aleijado, ex-guia de cego, do acidente em que seu chefe e protegido perdeu a vida. Confidente, alcoviteiro e rival do morto, o narrador ressuscita-o aos olhos dos ouvintes, enquanto tenta fazê-los partilhar seus sentimentos alternados de ciúme, compaixão e ódio. Prudencinhano chega a lembrar a figura prototípica do marujo, narrador viajante que ―tem muito que contar‖ (BENJAMIN, 1994, p. 198). Como guia de cego, ele costumava viajar pelos vilarejos. É justamente dessas andanças que extrai a matéria narrada, a qual, por seu caráter lacunar e ambivalente, ―conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver‖ (BENJAMIN, 1994, p. 204). Para Benjamin (1994), o narrador é também um homem sábio, que sabe dar conselhos. Mas no caso de Prudencinhano, essa sabedoria é questionável. Por ser um narrador em primeira pessoa, a dúvida sobre o caráter dele é uma tônica em toda a narrativa, o que nos faz supor que seu nome pode ser uma grande ironia, remetendo à outra e inversa coisa, à loucura, de uma maneira ambígua. Por sua ambivalência, ele se aproxima da figura do cortesão, o qual, conforme Walter Benjamin (1984, p. 120), está muito presente nos dramas barrocos alemães, encarnando o santo e o intrigante a um só tempo, tendo um ―caráter incomparavelmente ambíguo‖, capaz de fundar ―a dialética, muito barroca, de sua posição [de cortesão]‖. 75 Prudencinhano é o senhor das significações alegóricas. Ele tem ―a mente anuviada pelas múltiplas significações com que tem que lidar, [mas] ao mesmo tempo [...] esse trato com as inúmeras significações lhe confere uma argúcia ímpar‖ (LAGES, 2007, p. 155). Prudencinhano, sendo a personificação do cortesão, é um portador exemplar da fala alegórica, prolífica em múltiplas significações e imagens. Servem para ilustrar isso, os momentos que remetem ao cego seô Tomé, ao jogarem com a noção de cegueira: Cego suplica de ver mais do que quem vê. [...] Cego esconde mais que qualquer um, qualquer logro. [...] Só sendo cego quem não deve ver? [...] Cego corre perigo maior é em noites de luares... [...] O pior cego é o que quer ver... Deu a ossada. [...] Me chamo Prudencinhano. Agora o cego não enxerga mais... (ROSA, 2001, p. 42- 45) Há um deslocamento da palavra cego ao longo do texto, deixando um rastro de insinuações que intensificam ainda mais a dúvida a respeito do envolvimento do narrador num suposto assassinato do cego. Cego é quem ―suplica de ver mais‖, quem ―esconde mais‖, sendo pior quando ―quer ver‖. O vaivém dessas expressões e a afirmação de que o cego deixa de enxergar quando morre apontam para uma idéia de que o cego seô Tomé enxergava, escondia algum segredo. Mas qual? Talvez soubesse a real aparência da mulher que Prudencinhano dizia ser bonita. Ou quem sabe decifrasse o caráter terrível do narrador: mentiroso, ladrão. Mas talvez o cego apenas desconfiasse e como não deveria ver, Prudencinhano, usando de cautela, o impediu de enxergar, matando-o. Muitas são as possibilidades de interpretação e nenhuma delas se torna definitiva diante da rica e complexa teia semântica rosiana, a qual tem múltiplas entradas e múltiplas saídas. Nesse jogo se sobressai a grande força expressiva do prosador/poeta Guimarães Rosa, a qual se revela numa escrita visual que crava a imagem do cego no grafismo. A plasticidade em Tutaméia é um fenômeno bastante recorrente. A fala da narradora Flausina, do conto ―Esses Lopes‖ é outro exemplo de uma fala repleta de imagens. Entre as mais expressivas estão: Eu era menina, me via vestida de flores [...] linda eu era até a remirar minha cara na gamela dos porcos, na lavagem. [...] Regi de alisar por fora a vida. [...] Daninhagem, o homem parindo os ocultos pensamentos, como um dia come o outro, sei lá as perversidades que roncava? [...] Virei cria de cobra. [...] Experimentei finuras novas – somente em jardim de mim, sozinha. [...] Lopes, 76 desatinado, fogoso, água de ferver fora de panela. Vi foi ele sair [...] revestido de raiva, com os bolsos cheios de calúnia. [...] Se enfrentaram, bom contra bom, meus relâmpagos, a tiros e ferros. [...] Sorocabano Lopes, velhoco [...] [casamento] para homem nessa idade inferior, é abotoar botão na casa errada. (ROSA, 2001, p. 81- 84) ―Aos pedacinhos‖, como diz Flausina, ela vai construindo seu prosear deixando um rastro de líricas e encantadoras imagens. As flores que abrem a narração são seguidas pelas ―gamelas de porcos‖, pela ―cria de cobra‖, pelo ―jardim de mim‖, pela ―água de ferver fora de panela‖, ―pelos bolsos cheios de calúnia‖, pelo ―abotoar botão na casa errada‖. Uma sucessão de metáforas díspares é colocada dentro de um mesmo contexto. Ela vai do ―vestida de flores‖ aos ―crespos do homem‖. Muitos são os filigranas usados pela narradora para entrelaçar a sua poética narrativa. Ela estampa no texto-imagem sua trajetória, desde quando era mocinha inocente até cair nas mãos de quatro Lopes diferentes e tramar, com grande dissimulação, a morte de cada um deles. Flausina, já pelo nome – flor de mau sina – revela as pinceladas que dá em sua matéria narrativa e revela-se como narradora/eu-lírico alegórica. A fala de Flausina é a de quem faz confissões na surdina, é a de quem usa ―retalhos de verbo‖ para fazer grandes revelações. É uma fala densa, carregada dos crimes cometidos pela narradora, mas nas entrelinhas. O dito é apenas uma porção, uma parte. A linguagem comunicativa é usada de forma econômica pela narradora (embora ela não faça o mesmo quanto às imagens), daí ela alerta para a necessidade de o ouvinte/leitor ser arguto para perceber o não dito, que amplia e muito o sentido daquilo que é expresso em palavras. No Livro sobre nada, como os poemas apresentam a narração de alguns episódios, podemos afirmar que aparecem alguns eu-líricos/narradores com vozes ―de harpas destroçadas‖ (BARROS, 2004, p. 25), erguendo seu canto. Para entendermos como ocorre a fragmentação/ambiguidade no discurso poético da obra, analisaremos um poema extraído da primeira parte do livro (―Arte de infantilizar formigas‖), um trecho do poema ―Diário de Bugrinha (excertos)‖, o qual está também na primeira parte, e dois fragmentos da segunda (―Desejar ser‖). Comecemos observando o terceiro poema da primeira parte, o qual está transcrito a seguir: À mesa o doutor perorou: Vocês é que são felizes porque moram neste Empíreo. Meu pai cuspiu o empíreo de lado. O doutor falava bobagens conspícuas. Mano Preto aproveitou: Grilo é um ser imprestável 77 para o silêncio. Mano Preto não tinha entidade pessoal, só coisal. (Seria um defeito de Deus?) A gente falava bobagens de à brinca, mas o doutor falava de à vera. O pai desbrincou de nós: Só o obscuro nos cintila. Bugrinha boquiabriu-se. (BARROS, 2004, p. 15) Nesse poema, o eu poético/narrador traz à lume a fala de três personagens diferentes: ―o doutor‖, ―meu pai‖ e ―Mano Preto‖, conforme grafadas acima. Feito isso, ele faz comentários que produzem bastante estranhamento, como dizer que o pai ―cuspiu o empíreo de lado‖ e que Mano Preto só ―tinha entidade [...] coisal‖. Além disso, ele narra acontecimentos comezinhos de um momento em que sua família, moradora do brejo pantaneiro, encontra-se à mesa com um doutor que vem de fora. Nada de excepcional parece ocorrer, mas o eu-lírico, com o olhar de quem vê as miudezas, relata até o gesto de abrir a boca, pois diz: ―Bugrinha boquiabriu-se‖. O poema começa com a fala do doutor e seu preciosismo linguístico: ―Vocês é que são felizes porque moram nesse Empíreo‖. O pai do eu-lírico/narrador, no gesto de cuspir a palavra ―empíreo de lado‖, mostra a reprovação pelo excesso de formalidade do doutor. Numa espontaneidade típica das crianças, o pai cospe o termo empíreo. Incorporando esse olhar outro da criança, o eu-lírico brinca com a palavra, retirando a inicial maiúscula e colocando-a em itálico, numa tentativa de mostrar visualmente a recusa da palavra empíreo. Há um certo ilogismo permeando o texto, há uma quebra com o pensamento lógico convencional. O poema, que começa com uma fala formal, termina com um bocejo. O eu-lírico, em sua fala, ―quebra todos os estatutos normais para brincar com os sentidos e com as palavras, expressando a beleza do mundo a serviço das crianças‖ (CASTRO, 2004, p. 27) O eu-lírico se expressa ―sem linearidade, por trancos, por sugestões, ambíguo – como requer a poesia‖ (CASTRO, 1991, p. 70). A retirada dos verbos discendi em alguns momentos e a presença de ―versos jogados em muitos espaços em branco. Versos definitórios, concisos, rítmicos, portadores de metáforas e de um dizer muito sintético, mas de amplitude abrangente‖ (CASTRO, 1991, p. 46) são uma demonstração de um falar entrecortado e ambíguo. Isso tudo pode ser enxergado como um reflexo do que Manoel de Barros, em entrevista concedida a José Otávio Guizzo (apud CASTRO, 1991, p. 70), diz ter influenciado sua formação: ―inaptidão para o diálogo, sentimento dentro de mim do fragmentário, laços rompidos [...] Necessidade de reunir esses pedaços decerto fez de mim um poeta‖. 78 O eu poético/narrador do primeiro poema da segunda parte do livro, a qual é denominada ―Desejar ser‖, também exprime muito bem esse anseio do poeta pantaneiro: ―Com pedaços de mim eu monto um ser atônito‖ (BARROS, 2004, p. 37). Entre os significados da palavra atônito estão: assustado, espantado, pasmado, chocado e até assombrado. Esse eu poético é um ser (como o que aparece na terceira parte do livro, a qual é chamada de ―O livro sobre nada‖) ―muito preparado de conflitos‖ (BARROS, 2004, p. 67). A contemplação de um mundo que perdeu sua coerência, os seus valores universais, faz o eu- lírico viver em choque dentro de si. Um assombro o perturba: a perda de sua própria unidade. Ele se reflete na dramática fragmentação e concisão da fala do eu-lírico, a qual chega ao ponto de poder ser considerada aforística. O caminho para a harmonização dos conflitos parece ser uma fala fundada nas antíteses e até nas contradições, como deixa transparecer o sétimo poema também de ―Desejar ser‖: Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras. Sou formado em desencontros. A sensatez me absurda. Os delírios verbais me terapeutam. Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo). (E sei de Baudelaire que passou muitos meses tenso porque não encontrava um título para os seus poemas. Um título que harmonizasse os seus conflitos. Até que apareceu Flores do mal. A beleza e a dor. Essa antítese o acalmou.) As antíteses congraçam. (BARROS, 2004, p. 49) O último verso do poema registrado acima afirma exatamente que as antíteses harmonizam, reconciliam. Talvez porque, como ocorre com Flores do mal, o poema promova a união entre ―a beleza e a dor‖. Afinal, são os ―delírios verbais [que] terapeutam‖ o eu poético, isto é, o tratam. É ―o inconexo [que] aclara as loucuras‖ desse eu ―formado em desencontros‖, cujos pedaços não se acomodam bem dentro de si. Por esse meio se cumpre o que o próprio Manoel de Barros diz ser o papel da poesia hoje: ―falar dos fragmentos do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua unidade interior.‖ (CASTRO, 1991, p. 70). A evidente fragmentação na própria constituição dos eu-líricos, os faz ter vozes repletas de incisões e os motiva a buscarem as linhas tortas como meio de conseguirem a ―sagração do eu‖ (BARROS, 2004, p. 39). Essas linhas tortas seguem o alto teor imaginativo 79 da poesia de Manoel de Barros, através do qual o mundo é transvisto, transfigurado. É acompanhando a prolífica inventividade do autor que o eu poético do terceiro poema de ―Desejar ser‖ afirma: ―só as coisas rasteiras me celestam.‖ (BARROS, 2004, p. 41), criando uma dialética em que palavras de sentidos opostos passam a serem complementares. Esse verso revela um aspecto importante dos eu-líricos barreanos: a busca da poesia através das miudezas e coisas desprezadas do chão pantaneiro. O livro Tratado geral das grandezas do ínfimo, já pelo título, aponta para isso. Mas é o primeiro poema da obra, ―A disfunção‖, que nos confirma de forma explícita tal idéia. O poema apresenta uma enumeração dos sete sintomas que caracterizam a disfunção lírica, a qual consiste na ―troca de parafusos [...] na cabeça dos poetas‖ (BARROS, 2008, p. 9). Feita essa enumeração, ele é encerrado com os versos: ―Essas disfunções líricas acabam por dar mais / importância aos passarinhos do que aos senadores.‖ (BARROS, 2008, p. 9). Disfunção é uma palavra importante para compreendermos o discurso poético do Livro sobre nada, pois a fragmentação chega a um grau tão elevado que a noção de conjunto, a ilusão de totalidade é quebrada. Ajuda-nos a entender essa noção, o moderno estudo feito por Jean Baudrillard (2003) a respeito da relação entre o funcionamento dos sistemas (sociais, políticos, relacionais) e as disfunções. Analisando alguns comportamentos sociais ditos de risco, como o caso de automobilistas que andam em alta velocidade mesmo sabendo dos perigos que enfrentam, Baudrillard (2003) associa o fragmento à idéia do mal, o qual deve ser entendido como uma brecha nos sistemas do bem, ou seja, uma disfunção que é propiciada pela própria ordem perversa de tais sistemas. Na política, por exemplo, ―não é a corrupção que é perversa, e sim a ordem até o pior, até a paródia.‖ (BAUDRILLARD, 2003, p. 84). Os eu-líricos barreanos têm um olhar capaz de captar as disfunções, as brechas, os fragmentos inerentes ao funcionamento perverso do mundo que os cerca. Os eu-líricos, dotados de uma disfunção lírica, vêem que as coisas desprezadas não o são porque não têm valor, mas porque a lógica capitalista que impera no ocidente as trata dessa forma, por não poderem ser tratadas de forma utilitarista. É dessa forma que um passarinho torna-se mais importante do que um senador. Com essa mirada disjuntiva, os eu-líricos são mensageiros de uma linguagem alegórica, imagética. A noção da linguagem como algo ambíguo capaz de ―construir saberes, desconstruindo inteirezas e a própria noção da construção contínua‖ (NEVES, 2003, p. 141), tão cara a Benjamin (1984), é transmitida pelos eu-líricos barreanos. Mais que isso, eles trazem à lume uma linguagem que sofre um enfraquecimento da função comunicativa para dar lugar à primazia da função estética, como diria Octavio Paz (1982), convertendo-se em fragmentos-imagens, imagens-fragmentos, imagens-brinquedos. Os 80 últimos versos do poema ―Diário de Bugrinha (excertos)‖ é uma boa ilustração do que estamos dizendo: Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim: De noite o silêncio estica os lírios. (BARROS, 2004, p. 33) Bugrinha, que é a personificação do eu poético infantil (ela só tem dez anos), com uma espécie de desvio no olhar, foge ao pensamento clichê e cria a insólita e lírica imagem: ―De noite o silêncio estica os lírios‖, a qual encanta e enche os olhos do leitor com sua intensa visualidade. Há uma atração do eu-lírico pelo poder encantatório das palavras em sua dimensão plástica, pois ele diz ter fabricado ―um brinquedo com palavras‖, numa clara disposição lúdica. Lembrando aqui as palavras de Johan Huizinga (2008, p. 133), de que a ―poiesis é uma função lúdica [através da qual] as coisas possuem uma fisionomia inteiramente diferente da que apresentam na ‗vida comum‘, e estão ligadas por relações diferentes das da lógica e da causalidade‖, podemos dizer que Bugrinha ―fabrica‖ poesia, e propicia que sua fragmentária subjetividade se dilate em imagens, alegorias. Como Bugrinha, os eu-líricos que aparecem no livro sofrem uma atração irresistível pela palavra-imagem, participando do jogo lúdico, poético, alegórico. Os narradores/eu-líricos bar/rosianos, cada um com suas singularidades, levam a cabo o jogo barroco do artifício lingüístico, o qual adota a ética do desperdício, como diria Severo Sarduy (1979), valendo-se dos fragmentos como uma espécie de suplemento para ocasionar a proliferação ―semântico-visual‖. Os narradores/eu-líricos rosianos estudados são senhores das significações alegóricas, que de posse de uma fala intrigante e fragmentária, exploram as potencialidades imagéticas e semânticas do signo verbal. Já os eu-líricos/narradores barreanos são também alegóricos, mas porque incorporam uma lógica infantil e imbuídos dela procuram descobrir sempre novos brinquedos com palavras, de palavras e/ou porque lançam um olhar disjuntivo sobre o mundo, compondo um discurso marcado pela disfunção. É dessa forma que: Rosa e Barros, como poucos, logram sucesso na árdua tarefa de dizer o indizível, de exprimir o inexprimível que se esconde nas entranhas e nos abismos do ser humano 81 [...]. Ou antes, Rosa e Barros não dizem: sugerem, despertam, evocam, são hábeis poetas impressionistas que manejam uma língua própria, que depositam sobre a página branca certeiras pinceladas de um idioma exclusivo, o idioma da grande poesia. (MARINHO; MAGALHÃES, 2002, p. 65) 3.2 ENTRE AS FRATURAS DO SUJEITO... Entre as estórias de Tutaméia estão ―Desenredo‖ e ―Reminisção‖. Nelas circulam personagens amantes e amadas que vivem de forma intensa a magia do amor ―e seu milhão de significados‖ (ROSA, 2001, p. 169). Elas são personagens ambíguas, múltiplas como o sentimento que as envolve. Em ―Desenredo‖, exemplifica isso o caso da personagem Livíria que, além desse nome, recebe três outros nomes diferentes (Rivília, Irlívia e Vilíria), como observamos no fragmento abaixo: Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu. [...] Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro [...] Imaginara- a jamais a ter o pé em três estribos [...] Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. (ROSA, 2001, p. 72-75) Essa ―plurinomeação‖ é bastante sugestiva, tendo uma relação estreita com o caráter multifacetado da personagem. Os três primeiros nomes podem remeter à situação nada estável e transparente em que, além do marido, possuía dois amantes. Livíria é Rivília não deixando de ser também Irlívia. Mesmo sendo denominada de Vilíria apenas num momento posterior (após a volta para Jó Joaquim, ex-amante e atual marido), pela simples troca na posição das letras, a personagem pode assumir a última identidade facilmente. Em suma, ela é todas de uma só vez, reversivelmente. Uma outra forma de compreender essa variação de nomes é através da simbologia de cada um deles. Em um estudo sobre o conto ―Desenredo‖, Vera Novis (1989) explicita muito bem a ambivalência da personagem Livíria, a partir de uma relação com a personagem Anna Livia Plurabelle de James Joyce, da obra Finnegans Wake. Novis (1989) justifica a relação, afirmando que a variação de nomes em Rosa se assemelha àquela que se faz presente em Joyce no que tange à simbologia. Segundo Novis (1989, p. 131-132): 82 Livíria remete a Lívia e retoma a imagem de lírio, símbolo da pureza do feminino. Rivília traz à lembrança a imagem de rio, simultaneamente curso d‘água e curso do tempo, e também de ilha. Irlívia remete a Irlanda, evidentemente não como espaço geográfico real, mas como referência ao espaço mito-poético no qual Joyce fez circular sua mulher-rio [...] o processo utilizado por Rosa na nomeação de sua personagem é bastante semelhante ao de Joyce: fazer variar a posição das letras ou das sílabas de uma palavra, criando novos conjuntos sonoros (outras palavras) que permitam novas associações semânticas sem anular as anteriores. A Lívia de Joyce é simultaneamente lírio (Lily, lilybit), rio (liffey, liffy, Missisliffi) e também Irlanda ou Dublin (Irish, doublin). Mas, não é somente em ―Desenredo‖ que encontramos de maneira prodigiosa esse traço de multiplicidade, ele também se sobressai em Reminisção com: ―[...] Nhemaria, mais propriamente a Drá, dita também a Pintaxa [...]‖ (ROSA, 2001, p. 126). Nesse conto, os nomes apontam para metamorfoses, as quais são expressas na mudança de comportamento e de aspecto físico por que vai passando a personagem: Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeva; [...] Medonha e má; não enganava pela cara [...] Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos [...] Todo o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa, dele, aquela, mulher mandibular. [...] De por aí, embora, seresma ela se aquietou, em desleixo e relaxo [...] Vivia e gemia – paralelamente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo. [...] Da Drá, num estalar de claridade, nela se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o rosto de Nhemaria. (ROSA, 2001, p. 126-129) Drá se metamorfoseia em Pintaxa e num momento posterior em Nhemaria. Drá é descrita como alguém ―feia feito fritura queimada‖, ―medonha e má‖, ―cenhosa, caveirosa‖, uma ―mulher mandibular‖, conforme vimos acima. Pensando na feiúra e maldade dessa personagem, podemos entender o nome Drá como uma redução da palavra dragão, a qual pode remeter a um monstro fabuloso muito conhecido no horizonte ficcional, mas também a uma pessoa de má índole. Entretanto, Drá, num instante, não mais que num instante de lampejo, torna-se uma manifestação de luminosidade e beleza, a ponto de receber posteriormente o nome de Nhemaria, o qual se subtraído do prefixo Nhe nos faz ter uma visão da virgem Maria, cujos atributos conferidos pela tradição cristã, especificamente o catolicismo, a eleva a uma condição de pureza e santidade que a torna uma mediadora entre Deus e os homens. O próprio nome Maria, por significar nobre, senhora, já aponta para uma elevação. Assim, Nhemaria representa a ascensão do mundo profano de Drá. Tal ascensão já era prenunciada pelo próprio 83 espaço em que a Drá vivia: ―[...] Cunhãberá, destinado lugar, onde o mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem.‖ (ROSA, 2001, p. 126). Drá, no entanto, antes que viesse a assumir a aparência de Nhemaria, metamorfoseou- se em Pintaxa. O narrador diz que Romão a chamou de Pintaxa, quer dizer, ―o bufo do povo‖. Um dos significados do vocábulo bufo é coruja, a qual, por ser uma ave noturna, pode ser associada ao saber, à meditação. A palavra bufo também pode ser entendida como sinônimo de misantropia. Dessa forma, Pintaxa pode ser considerado um estágio intermediário, de recolhimento para dentro de si, estágio de meditação. É interessante notar que o ser Pintaxa não faz Drá perder sua aparência feia e repugnante. A palavra seresma, usada pelo narrador para se referir à fase Pintaxa, indica muito bem isso. Mas algo parece se processar no interior da Drá, pois ela que antes atanazava a toda hora o Romão, agora se aquieta e chega a gemer, provavelmente remoendo suas culpas. Por outro lado, essa ascensão da personagem Drá pode ser enganosa. Na visão de Paulo Rónai (2001, p. 25), Romão, ―ao morrer, transmite por um instante aos demais a enganosa imagem que dela formara‖. As metamorfoses descritas acima não passariam então de uma criação de Romão, ―amante obstinado de uma megera‖ (RÓNAI, 2001, p. 25). A imaginação e o amor do personagem Romão seriam assim o fator decisivo para que as transfigurações ocorressem. Essa possibilidade de interpretação só vem a reforçar o caráter ambíguo da personagem Drá, cuja imagem luminosa pode se quebrar facilmente com a morte do amante inveterado. Tal interpretação também opera uma transfiguração de Romão diante dos olhos do leitor, pois ele deixa de ser o mero ―Romão, meão, condicionado, normalote‖ (ROSA, 2001, p. 127) para se desvelar como sujeito de grande densidade que tem ―em si uma certa matemática [...] [e cogita] súbitos, encobertos acontecimentos‖ (ROSA, 2001, p. 127) em seu íntimo. Ele, que vivia ―a tragar borras‖ com a enxerente Drá que ―não o deixava[...] trabalhar nem lazer; ralhava a brados surdos[...]. Todo o tempo o atanazava‖ (ROSA, 2001, p. 127), ―com pelejos de poeta‖, troca pesares por prazeres‖ e transfigura a Drá em outra que é seu inverso: Nhemaria. A personagem Livíria, quer dizer Rivília, ou melhor Irlívia, em fim, Vilíria também experimenta uma dúbia ascensão, na qual tem grande importância o personagem Jó Joaquim. Mas, por que tem ele tanta importância? Para tentar responder a essa pergunta lembremos do personagem bíblico Jó, apresentado como um ―homem íntegro e reto, temente a Deus e que se 84 desviava do mal‖ (Bíblia Sagrada, 1993, p. 537) que precisou orar a Deus a fim de três de seus amigos serem inocentados e terem seus pecados perdoados por Deus 16 . Segundo o relato bíblico, Elifaz, Bildade e Zofar, os três amigos do patriarca Jó, durante o período em que ele foi acometido de lepra, falaram de Deus de uma forma errônea. Isso está explícito no intrigante diálogo de Jó com seus três amigos, o qual perpassa quase todo o livro atribuído pela tradição cristã a Moisés. Num diálogo do próprio Deus com um dos três amigos, Elifaz, fica evidente o desagrado de Deus pelos amigos do patriarca e a recomendação do próprio Deus de que ofereçam sacrifícios por si e ainda peçam a Jó para que interceda por eles, através da oração. No final do diálogo, é dito que o ―Senhor aceitou a oração de Jó‖. A razão para a aceitação também é apresentada: Jó é ―íntegro e reto, temente a Deus‖, isto é, é justo e obediente ao Senhor. A descrição de Jó Joaquim e o que ele fez em prol de Livíria, em muito remete ao personagem bíblico Jó : ―[...] era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja.‖ (ROSA, 2001, p. 72) e é ele quem vai levar a cabo a tarefa de inocentar a sua amada perante o vilarejo em que morava ―Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. [...] Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.‖ (ROSA, 2001, p. 74). A razão que motiva Jó Joaquim é o amor que devota a ela: ―Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta.‖ (ROSA, 2001, p. 75). E assim, Jó Joaquim consegue ―inocentá-la‖: ―Soube-se nua e pura. Veio sem culpa.‖ (ROSA, 2001, p. 75). Ele faz tal proeza por sua devoção em dizer para todos, inclusive para si mesmo: ―Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim‖ (ROSA, 2001, p. 74). Jó Joaquim, impulsionado por suas ―defeituosas emoções‖, as quais emergiram quando ele ficou ―derrubadamente surpreso‖ de saber que a mulher amada estava com ―o pé em três estribos‖, resolve se afastar fisicamente de Irlívia. Esse distanciamento o faz imaginá- la ―sempre ou ao máximo mais formosa‖ (ROSA, 2001, p. 73). Morto o marido, Jó casa-se com Livíria, mas a alegria dele não dura muito, pois logo ele a flagra com outro. Esse ―abominoso‖ momento o faz expulsá-la, ―apostrofando-se como inédito poeta e homem‖ (ROSA, 2001, p. 74). Desde então, diz o narrador, o nosso Jó, ―que desejava a felicidade - 16 [...] o Senhor disse também a Elifaz, o temanita: a minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois amigos; porque não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Tomai, pois, sete novilhos e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei holocaustos por vós. O meu servo Jó orará por vós; porque dele aceitarei a intercessão, para que eu não vos trate segundo a vossa loucura; porque vós não dissestes de mim o que era reto, como o meu servo Jó. Então, foram Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita, e fizeram como o Senhor lhes ordenara; e o Senhor aceitou a oração de Jó. (Bíblia Sagrada, 1993, p. 566). 85 idéia inata‖ (ROSA, 2001, p. 74), de tanto ―sofrer e amar‖, dedicou-se a ―redimir a mulher‖. Mas nesse gesto, Jó Joaquim usa mais do que a devoção, usa a imaginação, ―o inebriado engano‖, o engenho do poeta: Nunca tivera ela amantes! [...] Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. [...] O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemhnhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava, transformada realidade, mais alta. Mais certa? (ROSA, 2001, p. 74) Pensando na associação feita por Vera Novis (1989) de Irlívia com a Irlanda poética de Joyce, podemos dizer que Jó Joaquim se distancia de Livíria, de Rivília, mas se aproxima de Irlívia via poesia, o que culmina com a transfiguração da amada. Assim, o Jó rosiano remete ao Jó bíblico, mas, ao mesmo tempo se distancia, pois não maneja mais a fé deste, mas a imaginação. Ele é outro Jó, é o que se banha nas águas da poesia e consegue dar o vôo da liberdade criativa que é cara ao próprio autor. Dessa forma, as ascensões experimentadas por Livíria e Drá podem ser associadas à doutrina alegórica da redenção do objeto no campo da significação, pelo que tanto uma quanto a outra, ao passarem por essa ascese aceitam a salvação que o alegorista Rosa lhes oferece, a qual só ocorre em termos semânticos. Elas precisam também ser apreendidas em termos ambíguos, pois o nome Vilíria, como bem disse Vera Novis (1989), remete à vileza e pureza a um só tempo. Nhemaria pode ser não mais do que fruto da imaginação de Romão, como disse Paulo Rónai (2001). Nesse movimento em que ―[...] o mundo profano é ao mesmo tempo exaltado e desvalorizado.‖ (Benjamin, 1984, p. 197) existe uma dialética que é elementar na expressão do alegorês, a qual implica em dizer que ―cada pessoa, cada coisa, cada relação pode significar qualquer outra.‖ (Benjamin, 1984, p. 197). Tal dialética, segundo Walter Benjamin (1984, p. 199), se manifesta porque ―a ambiguidade, a multiplicidade de sentidos é o traço fundamental da alegoria. A alegoria, o Barroco, se orgulham da riqueza das significações. Mas essa ambiguidade é a riqueza do desperdício.‖ (BENJAMIN, 1984, p. 199) Tudo isso nos motiva a dizer que Livíria, Drá, bem como Jó Joaquim e Romão são personagens alegóricas, barrocas por excelência e, por isso mesmo fragmentárias. Sua ambiguidade denuncia que elas são seres fraturados, cujas variações e metamorfoses revelam sua natureza descontínua. Somente seres fraturados podem adquirir a ambivalência que essas 86 personagens adquirem, pois, conforme afirma Jean Baudrillard (2003, p. 48), ―passa-se algo na falha das coisas, na brecha e, portanto, em sua aparição‖. De acordo com Baudrillard (2003), a brecha, isto é, a fratura tem uma relação estreita com o fragmento e esse, por sua vez, tem um lado enigmático, que consiste no desafio à interpretação ou nas múltiplas e inesgotáveis interpretações. Por isso, entendemos que é entre as fraturas dessas personagens que emerge a profunda ambiguidade alegórica que as integra. É importante lembrar que, segundo Benjamin (1984), diferentemente do símbolo, a alegoria irrompe das entranhas, onde moram os segredos do ser. Tomando como ponto de partida que Livíria, Drá, bem como Jó Joaquim e Romão são personagens barrocas, podemos entender essas fraturas como resultado de uma tensão existencial também presente na modernidade. Lembrando as palavras de Afonso Ávila (1978, p. 17): ―o homem barroco e o do século XX são um único e mesmo homem agônico, perplexo, dilemático, dilacerado‖. Mas, conforme Ávila (1978, p. 19), o homem barroco (e, por extensão, o moderno), especialmente o artista, encontrou no jogo: [...] a saída instintiva que teve para deter, ainda que ilusoriamente, o lento escoar de sua situação absurda no mundo [...] jogou tanto ao elaborar a sua arte, [...] personalizando melhor que o homem de qualquer outro período a imagem do homo ludens de Huizinga. Aqui novamente o seu parentesco com o homem moderno, notadamente o da crise de após-guerra, o existencialista do primeiro momento sartriano na sua atitude de auto-alienação, de demição, de descompromisso de viver-a-vida. Para que entendamos a noção de homo ludens, é importante frisar que Johan Huizinga (2008, p. 6-7) esclarece em seu estudo que seu interesse maior é abordar o jogo ―como forma específica de atividade, como ‗forma significante‘, como função social‖, isto é, como elemento cultural da vida. Mas Huizinga (2008, p. 7) explica também que o jogo é apreendido ―em sua significação primária [baseada] [...] na manipulação de certas imagens, numa certa ‗imaginação‘ da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)‖. Assim, o jogo lúdico a que se refere Afonso Ávila (1978) pode ser entendido como sinônimo do jogo alegórico a que procede Guimarães Rosa ao construir suas personagens. Esse jogo é empreendido pelos próprios personagens Jó Joaquim e Romão. O primeiro, quando deixa que o ―firme fascínio‖ de Vilíria o levante de seu ―decúbito dorsal‖ e o faça ultrapassar seu dolorido franciscanato. O segundo, quando usa sua imaginação para converter ―pesares em prazeres‖. Nesse gesto, segundo o próprio Rosa, personagens e autor se unem 87 ―querendo subir à poesia e à metafísica, juntas, ou com uma e outra como asas, ascender a incapturáveis planos místicos.‖ (2003, p. 38). Eles constroem uma realidade mais alta, nova, como diria o narrador de ―Desenredo‖, mas não mais certa. Como acontece em Tutaméia, as personagens do Livro sobre nada também são fragmentárias e ambíguas. Para averiguarmos como isso se concretiza no universo ficcional de Manoel de Barros, tomaremos como referência as personagens Mano Preto, Catre-Velho e Bernardo. Sobre a primeira, é dito: ―Mano Preto não tinha entidade pessoal, só coisal.‖ (BARROS, 2004, p. 15). À semelhança de muitos outros personagens que aparecem no universo barreano, Mano Preto é um indivíduo no limiar do não humano. Seu estatuto humano é posto em questão. Ironicamente, é dito que o personagem só tinha ―entidade[...] coisal‖, pois o vemos fazendo perguntas que revelam uma fina sensibilidade para perceber as coisas aparentemente sem importância, que passam despercebidas ao ―homem empalhado‖, ―coisificado‖ pela linguagem e pelos costumes sociais cristalizados. É bem verdade que as perguntas feitas por ele são repletas de ilogismo, mas isso só reforça a sua dimensão poética, tendo em vista que elas aludem à brincadeira, ao jogo, o qual, para Huizinga (2008), é irracional e é o solo onde a poesia tem fincadas suas raízes de maneira profunda. É por isso que Mano Preto é capaz de ter um olhar outro – o da poesia - sobre o cotidiano e, em especial, sobre as coisas da natureza. Seres mínimos, que normalmente não são notados, são enxergados por ele, através de um olhar outro, renovado e renovador. O pequeno passarinho e o minúsculo inseto ganham destaque e importância: são matéria de poesia, como transparece nos trechos abaixo: Mano Preto perguntava: Será que fizeram o beija-flor diminuído só para ele voar parado? (BARROS, 2004, p. 11) Mano Preto aproveitou: Grilo é um ser imprestável para o silêncio. (BARROS, 2004, p. 15) É por meio do olhar transfigurador da poesia que ―os sabiás divinam‖, ou seja, as coisas ínfimas são enxergadas em sua grandeza. É assim também que as coisas aparentemente simples ganham complexidade, sofisticação. O próprio Mano Preto adquire o estatuto da grande poesia, a qual, de acordo com Octavio Paz (1982, p. 15), é uma ―operação capaz de transformar o mundo‖, revelando-o e criando outro. Mano Preto, que é uma criança (no 88 poema ―Diário de Bugrinha (excertos)‖, a mãe dessa aparece batendo no Mano Preto, o que indica ser ele uma criança) habitante do brejo pantaneiro cria uma linguagem nova (o que alguns críticos chamam de infância da linguagem) e, com isso, engendra um nova realidade, na qual moram os encantos da poesia. Na linguagem barreana, ocorre o que Octavio Paz (1982, p. 25-26) afirma a respeito do poema: a linguagem recupera sua originalidade primitiva, mutilada pela redução que lhe impõem a prosa e a fala cotidiana. A reconquista de sua natureza [...] afeta os valores sonoros e plásticos tanto como os valores significativos. A palavra, finalmente, em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus sentidos e alusões. Daí, como diz ainda Octavio Paz (1982), o entusiasmo do poeta é o da criança diante das descobertas da linguagem. Confirma isso o contexto em que Mano Preto disse que ―Grilo é um ser imprestável para o silêncio‖, enquanto estava à mesa com a família e um doutor que vem de fora. Como sabemos, muitas crianças costumam falar daquilo que as deixa admiradas quando estão diante de pessoas que não fazem parte de seu convívio. Elas parecem querer, com isso, extravasarem toda a sua alegria diante das novas descobertas. O poeta se assemelha um pouco à criança, ao dividir suas invenções de linguagem com o leitor. Diferentemente de Mano Preto, a personagem Catre-Velho traz à tona a noção de velhice. Ele é um cantador e violeiro, cujo nome já carrega a noção de algo imprestável. A personagem Bugrinha diz que ele é ―confortável para moscas‖. Mais adiante, num poema a ele dedicado, é dito que ele ―é um traste pessoal à-toa‖, ―não vale um cabelo‖ e ―não serve nem pra remendo‖, como fica evidente na transcrição abaixo: 2.I.I926 Catre-Velho é um ser confortável para moscas. Ele nem espanta algumas. (BARROS, 2004, p. 32) Catre-Velho é um traste pessoal à-toa. Nossa mãe falava: Não vale um cabelo. Não serve nem pra remendo. Só presta pra cantar e tocar violão. (BARROS, 2004, p. 25) 89 A personagem Catre-Velho traz para a escrita barreana a dimensão das coisas que se tornaram desprovidas de função, por estarem velhas, isto é, em deterioração, em ruínas. Catre- Velho é o rejeitado, o abandonado, o que não tem serventia, pelo menos, dentro da visão utilitarista que predomina em nossa sociedade capitalista. Afinal, ele ―presta pra cantar e tocar violão‖ (BARROS, 2004, p. 25). Ele tem ―uma voz de harpas destroçadas‖. (BARROS, 2004, p. 25). A palavra destroçada remete a três palavras importantes para compreendermos essa personagem: despedaçada, rasgada e dilacerada. Catre-Velho é um ser em pedaços, dilacerado por conflitos internos. Conforme nos diz o próprio poeta, ―só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro‖ (BARROS, 2004, p. 75) e esse personagem tem, pois até ensina como ter grandezas na voz. A construção de Catre-Velho é eminentemente barroca, pois: ―o que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação barroca‖ (BENJAMIN, 1984, p. 200). Pelas imagens que o revestem e pelo caráter inédito dessas imagens, ele é, como Antônio Ninguém, uma espécie de ―ruína concupiscente‖ (BARROS, 2004, p. 79), isto é, um resto, um fragmento carnal, lascivo, sensual. Além disso, por ele ensinar que ―a voz de um cantador tem que chegar a traste para ter grandezas...‖ (BARROS, 2004, p. 25), ou seja, que a condição para a voz de um cantador ser nobre é alcançar o imprestável, ele tem a antinomia na voz. Sendo esse ser barroco, ele é também uma expressão do fragmentado homem moderno, o qual, segundo o próprio Manoel de Barros (2009): ―não tem mais as grandes unidades, como Deus‖. Catre-Velho é também aquele que reúne em si tudo aquilo que é rechaçado pela sociedade moderna, cuja lógica predominante é a do capitalismo, a qual consiste em valorizar somente o que pode se converter em moeda de troca. Por isso mesmo, ele é uma expressão de destaque dentro da lírica moderna, a qual, como nos lembra Theodor Adorno (2003), é uma expressão do antagonismo social, mas, ao mesmo tempo, tem em sua base uma corrente subterrânea coletiva. Dessa forma, ao incorporar as coisas que a sociedade ―pisa‖ e ―joga fora‖ (BARROS, 2001, p. 13), Catre-Velho expressa o desejo latente de cada indivíduo que compõe a sociedade de fazer oposição aos valores utilitaristas que se impõem no convívio social como regras de conduta. Outro personagem que nos chama a atenção por seu caráter ambíguo, embora exiba uma aparente simplicidade, é Bernardo. Ele é assemelhado, inicialmente, a um joão-ninguém, ―passarinho que vive no cisco‖ e logo adiante é mencionado que ensinou à personagem 90 Bugrinha como ―infantilizar formigas‖. Ele também é capaz de falar com pedra, nada e árvore. Isso é o que fica patente nos versos a seguir: 22.I O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-ninguém. Ele parece com Bernardo. [...] 2.3 Bernardo me ensinou: Para infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de água no coração delas. [...] I.I0 Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com árvore. As plantas querem o corpo dele para crescer por sobre. Passarinho já faz poleiro na sua cabeça. (BARROS, 2004, p. 29-30). Entre os significados da palavra cisco, está o de lixo. Dessa forma, Bernardo, como o joão-ninguém, é um ser que vive no lixo, ou pelo menos nos restos, nos rejeitos, e procura retirar dele algo para seu proveito. É dessa vivência que ele aprende a ―infantilizar formigas‖. Mas Bernardo adentra num estágio mais profundo, ele começa a falar a linguagem das pedras e das árvores. Falando essa linguagem, ele fica à mercê das plantas, se confundindo com elas, afinal, ―passarinho já faz poleiro na sua cabeça‖. Com isso, ele acaba se colocando no limiar do não-humano, do irracional. Mais que isso, o ser parece estar no limite do não ser, já que fala até com nada. As palavras da mãe da personagem Bugrinha, segundo as quais ele ―é bocó. Uma pessoa sem pensa.‖ (BARROS, 2004, p. 31), confirmam muito bem essa idéia. Pelo menos, é certo o seguinte: esse ser não pode existir com base no princípio ―penso, logo, existo‖. Ao mesmo tempo, Bernardo é um ser dotado de sabedoria vegetal, a qual, nas palavras de Barros (2004, p. 51), ―é receber com naturalidade uma rã no talo‖. Quando lemos a obra barreana O guardador de águas, observamos alguns detalhes interessantes que nos ajudam a compreender ainda melhor a personagem Bernardo. Primeiro, ele é chamado de ―Bernardo da Mata‖. Segundo, ele é apresentado como um ser capaz de fazer muitas peraltices, como ―encolher o horizonte/ No olho de um inseto‖ (BARROS, 2006, p. 10). Terceiro, ele, ―como a foz de um rio - [...] se inventa‖ (BARROS, 2006, p. 10). Quarto, 91 ―escreve escorreito‖ ―o Dialeto-Rã‖ (BARROS, 2006, p. 20). Por último, tem no quintal uma ―Oficina de Transfazer Natureza‖ (BARROS, 2006, p. 20). Com essas características, Bernardo é capaz de se transfigurar no próprio Manoel de Barros. Ele pode ser enxergado como um duplo do autor. Pensando no grande motivo do livro em pauta: a água, podemos entender essa mata como sinônimo de pantanal. As peraltices são de linguagem, são as do poeta que diz: ―posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo)‖ (BARROS, 2004, p. 49). A invenção a que Bernardo se submete é a especialidade do próprio autor mato-grossense, o qual, como Bernardo, ―é homem percorrido de existências‖ (BARROS, 2006, p. 10). A escrita em ―Dialeto-Rã‖ é a do poeta em O guardador de águas, a qual, no Livro sobre nada parece se converter no ―idioleto manoelês archaico‖, o qual ―é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas‖ (BARROS, 2004, p. 43). Por fim, a oficina de Bernardo é uma viva demonstração da oficina poética barreana, a qual, em seu pendor barroco, é capaz de ―perceber na physis [...] o que ela [contém] de heterônimo, incompleto e despedaçado‖ (BENJAMIN, 1984, p. 198) e de jogar com isso habilmente, seguindo o princípio: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades. Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar – como em Chagall. (BARROS, 2004, p. 75) Bernardo, como Barros, é um ser que se transfigura e transvê o mundo ao seu redor pelo poder da imaginação. Na verdade, não só Bernardo, mas também Mano Preto e Catre- Velho. Eles são, respectivamente, uma viva recorrência de três motivos muito presentes na poesia de Manoel de Barros: ele mesmo, a busca pela infância da linguagem e a valorização dos restos e das coisas ―desimportantes‖. O próprio autor ratifica isso quando diz, em entrevista concedida a André Luís Barros (apud BARROS, 2009): ―o tema da minha poesia sou eu mesmo‖ (BARROS, 2009) e ―tenho um lastro da infância [...], no meu Livro sobre nada, tem muitos versos que vieram da infância‖ (BARROS, 2009). Ele também confirma quando começa seu Matéria de poesia, em tom confessional, dizendo: ―todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia‖ (BARROS, 2001, p. 92 11). É assim que esses personagens se tornam matéria-prima da poesia de Manoel de Barros, cuja originalidade [...] consiste em que, recusando grandes temas (o Sublime), elabora liricamente, com as coisas menores, verdadeiras relíquias de linguagem. Bem ao modo irônico de Rimbaud, ou Duchamps, transforma a matéria mais desimportante em poesia. (JÚNIOR, 2001) Diante do exposto até aqui, podemos dizer que as personagens estudadas são seres essencialmente alegóricos, pois, a partir dos motivos mencionados acima, criam uma outra realidade, a qual, permeada pelo grande ilogismo que dá vez e voz à poesia barreana, aponta para inéditas possibilidades de sentido, através da rica camada de surpreendentes e vibrantes imagens. Elas são seres ambivalentes, que perderam sua unidade, humanos no limiar do inumano, civilizados no limiar do primitivo, seres ―ardentes de resto‖, mas perfazendo-se novos. Já as personagens rosianas, como vimos antes, são alegóricas em virtude de serem indivíduos móveis (sujeitos sempre a novas mudanças). As plurinomeadas Drá e Irlívia são seres metamórficos e multifacetados. Impulsionados por suas ―defeituosas emoções‖ e por seu alto poder de imaginação, Jó Joaquim e Romão são contraditórios em sua trajetória, capazes de reinventar a realidade à sua volta. É assim que tanto Manoel de Barros quanto Guimarães Rosa trazem para o centro de seus projetos poéticos seres fraturados (e, muitas das vezes, excluídos ou marginalizados), procurando descobrir, entre as fraturas desses, os ―sentidos poéticos profundos que os colocam além das fronteiras da razão convencional, às margens do inefável, onde a vida, a poesia e a linguagem se enlaçam, fluindo à procura de infinito‖ (SECCO, 2000, p. 121). 3.3 NUMA FRAÇÃO DE LUGAR PRÓXIMO/DISTANTE Escrevendo ao seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa confidencia que o livro Corpo de Baile ―foi um pouco febrilmente tentado arrancar de dois caos: um externo, o sertão primitivo e mágico; o outro, eu, o seu Guimarães Rosa [...]‖ (ROSA, 2003, p. 87). Essa afirmação, sem dúdida, é válida para Tutaméia e serve para compreender o espaço em sua íntima relação com as personagens que nele se movimentam. Na verdade, 93 existe uma relação indissociável entre o sujeito e o sertão, pois, afirma Rosa que o ―o sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o exterior não podem ser separados‖ (apud NIGRI; BARIL, 2006, p. 25), ou mais ainda o ―sertão: é dentro da gente‖. Dado o entrelaçamento entre espaço externo e interno na escritura rosiana, usaremos os conceitos de desterritorialização/reterritorialização presentes na obra Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995). Inicialmente é importante dizer que nessa obra, os autores adotam uma nova lógica, a do rizoma, a qual consiste numa teoria das multiplicidades. O rizoma não tem origem nem fim, se abre para a infinitude. Ele apresenta zonas de intensidades contínuas chamadas de platôs. Através de qualquer uma dessas zonas, o rizoma estabelece alianças com o exterior, as quais são chamadas de agenciamentos. Ele também é atravessado por vetores que ―constituem territórios e graus de desterritorialização‖ (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 8). Dessa forma, os fenômenos da desterritorialização e da reterritorialização estão atrelados a um duplo movimento através de linhas de fuga. O primeiro implica num deslocamento em direção ao exterior, e o segundo, numa compensação em direção ao interior. Começaremos nossa análise, observando a relação das personagens Drizilda, de ―Arroio-das-antas‖, e Jeremoavo, de ―Barra da vaca‖, com os ambientes em que vão se inserindo, conforme deixam entrever as passagens abaixo. Aonde – o despovoado, o povoadozinho palustre, em feio o mau sertão – onde podia haver assombros? Trouxe-se lá Drizilda, de nem quinze anos, que mais não chorava: firme delindo-se, terminavelmente, sozinha viúva. [...] De déu em doendo, à desvalença, para no retiramento ficar sempre vivendo à desvalença, desde desengano. O irmão matara-lhe o marido, irregrado, revelde, que a desdenhava. De não ter filhos? Estranhos culpando-a, soante o costume, e o povo de parentes: fadada ao mal, nefandada. [...] Mandaram-na e quis, furtadamente, para não encarar com ninguém, forrar-se a reprovas, dizques, piedade. Toda grande distância pode ser celeste. (ROSA, 2001, p. 46-47) Sucedeu então vir o grande sujeito entrado no lugar, capiau de muito longínquo [...] Tinha vergonha de frente e de perfil, todo o mundo viu, devia também de alentar internas desordens no espírito. Sem jeito para acabar de chegar, se escorou a uma porta, desusado forasteiro [...] alquebreirado tonteava, decerto pela cólica dos viajantes. [...] Jeremoavo, pois quem. Em aflito caminho para nenhuma parte [...] as pernas lhe doendo nervosas, a cabeça em vendaval, as idéias sacudindo-o como vômitos. [...] Largara para sempre os dele, parentes, traiçoeira família, em sua fazenda, a Dã, na Chapada de Trás, com fel e veemências. Mulher e filhos, tal ditos, contra ele achados em birba de malícias, e querendo-o morto, que o odiavam. Sumiu-se de lá, em fúria, pensado. (ROSA, 2001, p. 58-59) 94 Drizilda e Jeremoavo têm muito em comum. Ambos são traídos pela família. Ela além de ter sido traída pelo marido, o perde assassinado pelas mãos do próprio irmão dela e por causa de uma outra mulher. Ele é odiado pela mulher e pelos filhos, os quais procuram oportunidade para matá-lo. Ela sai de seu lugar ―furtadamente‖. Ele simplesmente ―sumiu-se de lá‖. Os dois se afastam de sua parentela furtivamente porque carregam feridas que os dilaceram. Seus corações parecem despedaçados pela perturbadora situação que os envolvem. Observando a primeira passagem transcrita, percebemos que Drizilda além de sofrer com a traição e perda do marido, sofre também porque parentes e até estranhos a culpavam do que havia ocorrido. Para ela, viver naquele ambiente, tendo que suportar acusações torturantes, a perda dupla do marido e do irmão (o primeiro morto e o segundo preso) e o embaraçoso fato de que essa tragédia se deu por uma outra mulher, é um constante martírio. O segundo trecho nos mostra que Jeremoavo se torna intensamente amargurado (―com fel e veemências‖) pela traição da família. Embora não seja mencionado claramente o motivo, é dito que ela o odeia tanto a ponto de querê-lo morto. A situação de Jeremoavo não é menos grave, pois a rejeição e ódio da família lhe turba tanto o espírito que ele resolve desaparecer de seu lugarejo. Assim, o deslocamento físico de Drizilda e de Jeremoavo reflete um desejo de fuga de uma situação vexatória e ameaçadora que oprime o espírito dos dois. O narrador de ―Arroio- das-antas‖ afirma que Drizilda vivia num constante ―desistir‖ (ROSA, 2001, p. 48) e que ela ―estremunhava-se, na disquietação, ainda com medrosas pálpebras primitivas‖ (ROSA, 2001, p. 48). Já o narrador de ―Barra da vaca‖ chega a dizer que Jeremoavo ―devia também de alentar internas desordens no espírito‖ e que ele chegou a adoecer, a ter febre, ―numa candura de delírio de com ele apiedarem-se‖ (ROSA, 2001, p. 59). Essas viagens são verdadeiras linhas de fuga para os dois num duplo movimento de desterritorialização e reterritorialização. Sobre isso, é válido lembrar aqui as palavras de Deleuze e Guattari (1995, p. 69-70) quando afirmam: Temos que pensar a desterritorialização como uma potência perfeitamente positiva, que possui seus graus e limiares (epistratos) e que é sempre relativa, tendo um reverso, uma complementaridade na reterritorialização. Um organismo desterritorializado em relação ao exterior se reterritorializa necessariamente nos meios interiores [...] toda viagem é intensiva e se faz em limiares de intensidade nos quais evolui ou, então, que transpõe. É por intensidade que se viaja, e os deslocamentos, as figuras no espaço dependem de limiares intensivos de desterritorialização nômade, por conseguinte, de relações diferenciais que fixam, ao mesmo tempo, as reterritorializações sedentárias e complementares. 95 A desterritorialização deve ser entendida como o processo por que passam Drizilda e Jeremoavo, ao serem praticamente banidos de seus lugares de origem de forma abrupta e até mesmo inesperada, devido às gravosas circunstâncias em que se encontram. Ela compreende também a imersão desses personagens num espaço desconhecido, o qual é capaz de torná-los seres deslocados. A reterritorialização a que nos referimos ocorre na medida em que ambos se adaptam relativamente aos locais de desterro. Para Drizilda, permanecer no seu povoado é penoso e a faz estar numa situação de deslocamento, pois é lá que é tida por nefanda, é rejeitada por familiares e conhecidos. Mas também se inserir no ―Arroio-das-Antas‖ é um grande desafio, pois lá é ―o despovoado, o povoadozinho palustre, em feio o mau sertão‖ (ROSA, 2001, p. 46), é ―onde só restavam velhos, mais as sobejas secas velhinhas, tristilendas‖ (ROSA, 2001, p. 47). É o espaço dos marginalizados, o ―último lugar do mundo‖ (ROSA, 2001, p. 47). Mas Drizilda consegue uma considerável interação com os moradores desse espaço. Em especial, com as velhinhas que são a maioria dos moradores. O exílio, que é a mudança exterior, motiva mudanças significativas no interior dessa personagem. Ela passa por uma mudança comportamental e de sorte. Uma espécie de agenciamento, de associação com o diferente mundo exterior propicia que a subjetividade dela seja alterada, num movimento que vai da desterritorialização à reterritorialização. Frases como: ―Toda grande distância pode ser celeste‖ nos faz supor que o distanciamento que ela consegue com sua viagem típica de um ―desterrado, desfamilhado‖ (ROSA, 2001, p. 61) é acompanhado de sensíveis mudanças. Elas podem ser observadas na passagem: [...] Ela [Drizilda], maternal com suas velhinhas, custódias, menina amante: a vovozinha... Moviam-na [as velhinhas] adiante, sob irresistíveis eflúvios, aspergiam-na, perseguinavam-lhe o travesseiro e os cabelos. Comutava-se. Olhos de receber, a cabeça de lado feito a aceitar carinho – sorria, de dom. (ROSA, 2001, p. 48-49) Vemos no trecho destacado acima, Drizilda comutando-se com as velhinhas do ―Arroio-das-antas‖, isto é, comunicando-se, interagindo com elas e logo em seguida sorrindo de dom. A intervenção dessas velhinhas é decisiva para que Drizilda sofra profundas mudanças em seu processo de subjetivação, deixando de ser aquela que vive num ―constante 96 desistir‖. Como deixa entrever o narrador do conto, tais mudanças são arquitetadas, forjadas entre as próprias velhinhas: Senão que, uma, avó Edmunda, sob mínima voz, abençoou-a: - ‗Meu cravinho branco...‘ Outra por ela punia afetando-se áspera: - ‗Gente invencioneira!‘ Suspiravam mor, em giro doce, enfim, entreentendidas, aguadas as vistas, com uma ternura que era quase uma saudade. [...] sábias velhinhas se aconselhavam [...] Vigiavam as velhas, sem palavras. Tramavam já com Deus em bico de silêncio, as quantas criaturas comedidas. (ROSA, 2001, p. 47-48) Drizilda, pelo que observamos no decorrer do conto, transpõe a sua condição de ―nefanda‖ (como é considerada pelos moradores de seu lugarejo de origem e até pela própria família) e se eleva à posição de ―cravinho branco‖ graças à ação do ambiente que a cerca, o grupo das velhinhas. Antes rejeitada pelos seus, agora querida entre as velhinhas. Isso a prepara para o encontro amoroso com o Moço vindo de fora que culmina com uma mudança radical de sorte. O encontro com o Moço faz Drizilda passar por mais uma intensa transformação. Isso fica evidente através da expressão: Drizilda ―levantou a beleza do rosto, reflor‖ (ROSA, 2001, p. 49). Antes o texto apresentava expressões, como: ―A flor é só flor‖ (ROSA, 2001, p. 46) e ―como as mais do campo, amarelas ou roxas, florzinha de má sorte?‖ (ROSA, 2001, p. 48). Agora a personagem chega a mudar inteiramente o seu semblante, refletindo uma espécie de renovação interior. O nome Drizilda parece já preconizar esta espécie de movimento de superação por que passa a personagem, uma vez que Zilda quer dizer guerreira da vitória. Antes sem senhor nem amor, agora no entreamor com o Moço que dela ―senhorizou-se‖, Drizilda voa nas asas de uma paixão para toda a vida. Na verdade, o deslocamento físico-espacial propicia que Drizilda passe por uma espécie de ascese, pois antes ela era a nefanda, mas depois do encontro com o Moço, ela ―levantou a beleza do rosto‖ (ROSA, 2001, p. 49). Essa ascese, no entanto, não impede que a personagem, em muitos momentos, ocupe um entre-lugar, entre a alegria e a tristeza, entre a sanidade e a dor. E é justamente nesse entre-lugar que o sujeito expõe suas fraturas e vai acrescentando experiências e passando por verdadeiras metamorfoses. No caso de Jeremoavo, a interação com o povoado de ―Barra da vaca‖ não chega a mudar radicalmente sua condição de ―desusado forasteiro‖, mas o faz um forasteiro um pouco mais experimentado. É importante lembrar a estória do conto para que entendamos como isso 97 ocorre. Jeremoavo, ―desusado forasteiro‖ que deixa sua propriedade, a Fazenda Dã, por causa da traição da mulher e dos filhos, abriga-se no povoado ―Barra da vaca‖. Lá ele fica doente e é acolhido na pensão de Domenha, que cuida dele até à recuperação. Enquanto ainda se recupera, surge um comentário no povoado de que o agora moribundo forasteiro é um ―brabo jagunço‖. A partir desse momento, o povo começa a tratá-lo com mais atenção, com o intuito de agradá-lo enquanto decide o que fazer. O povo então resolve oferecer uma festa para Jeremoavo, cuja intenção é embriagá-lo e expulsá-lo do lugarejo. Por medo de ele voltar, os homens do lugar vigiam armados por três dias. Ele não retorna, mas ciente da segunda traição sofrida, segue seu rumo de ―cavaleiro distraído, sem noção de seu cavalo, em direitura‖ (ROSA, 2001, p. 61). Como vimos acima, Jeremoavo segue seu rumo de forasteiro, mas a ―Barra da vaca‖ tem toda uma importância em termos de experiência, sendo capaz de permitir um aprendizado relevante: ―não podia torcer o passo‖. Procurando averiguar o significado de ―Barra da vaca‖, que é tanto o nome do povoado como do conto, temos que barra pode ser: foz de rio ou de riacho ou ainda estado de coisas; situação. Por sua vez, a palavra vaca pode ser entendida em sentido figurado como: indivíduo falto de energia, frouxo, moleirão, covarde. Assim, a expressão ―Barra da vaca‖ é passível de ser entendida como um entre-lugar para Jeremoavo. Não é gratuito que ele é chamado de ―graúdo estúrdio‖ (ROSA, 2001, p. 62) e que a terminação do seu nome é avo, que pode remeter a parvo, atoleimado ou idiota. Também não é fortuito que ele chega à ―Barra da vaca‖ atravessando uma difícil situação causada pela ―traição‖ da família. Além disso, é a situação vivenciada nesse lugar que o faz aprender a importante lição de que não pode se fixar mais em nenhum lugar, precisa continuar sua caminhada ―em desafio com o mundo‖ (ROSA, 2001, p. 59), como ―um desconhecido somenos‖ (ROSA, 2001, p. 59). Desconhecido para quem? Até para ele mesmo. Ele é o ―grande sujeito‖ (ROSA, 2001, p. 58) que vai se construindo a cada nova experiência, a cada novo encontro, em seu ―aflito caminho para nenhuma parte‖ (ROSA, 2001, p. 59). Como é comum à condição humana, vai revelando facetas desconhecidas até para si mesmo. É importante notar que ―Barra da vaca‖ é ―um ribanceiro arraial de nem quinhentas almas, suas pequenas casas com os quintais de fundo e onde o rio é incontestável: um porto de canoas [...] sobre o Urucúia‖ (ROSA, 2001, p. 59). Como sabemos, o rio pode ser símbolo do que há de mais mutável. Suas águas correm de uma forma constante e, por isso, ele encarna a imagem soberana do tempo. Dessa forma, ―Barra da vaca‖, por ser o lugar onde ―o rio é incontestável‖, estando mesmo sobre um rio, o Urucúia, passa a ser também imagem do tempo. Jeremoavo reconhece muito bem isso, pois o 98 narrador afirma que o estúrdio forasteiro ―torceu mais o espírito. Viu. Ali era o tempo, em trechos, entre a cruz e a cantação, e contemplar vivas águas, vagaroso o rio corre com gosto de terra‖. (ROSA, 2001, p. 61) Já que a vida é feita de tempo, o tempo pode simbolizar a própria vida, ―Barra da vaca‖ acaba por ser, então, uma projeção da própria subjetividade de Jeremoavo. Serve para confirmar essa idéia a fala do narrador quando ele diz que ―Saudade maior [de Jeremoavo] eram: a Barra, o rio, o lugar, a gente.‖ (ROSA, 2001, p. 62). Assim, ―Barra da vaca‖ é um lugar de mudanças consideráveis para Jeremoavo. É o lugar que faz do ―desusado forasteiro‖ um desterritorializado por excelência, o que caminha para ―lugar nenhum‖, o que anda sem rumo. Seu intinerário explode sempre numa nova linha de fuga. Nas palavras de Ana Santana Souza (2007, p. 51), Jeremoavo é um estrangeiro de si mesmo, vivendo uma vida ―de maneira múltipla, por desvios e por voltas‖. Jeremoavo percorre não só terrenos geográficos desconhecidos, mas, principalmente, zonas estranhas de sua própria subjetividade. Não é fortuito que seu nome remeta ao profeta bíblico Jeremias, o qual ficou conhecido como o profeta do exílio, como oportunamente lembra Souza (2007). Remontando à maneira como o jagunço Riobaldo vai guiando o seu interlocutor através dos seus relatos ao grande sertão dos gerais, Flávio Lobo (2004, p. 14) chega a afirmar que o sertão de Rosa é ―um lugar de múltiplas faces, onde os rios têm uma terceira margem‖. Dessa forma, ele é um lugar de idas e vindas, de bifurcações, de conflitos, trilhas com múltiplas saídas que deve ser compreendido como uma extensão primitiva e caótica dos sujeitos que transitam pelas suas veredas. Esse sertão é então móvel, capaz de se transfigurar, revelando ―múltiplas faces‖. É uma imagem dramática da própria subjetividade dos personagens que nele transitam. Portanto, em Tutaméia, a relação entre ambiente externo e interno das personagens ocorre de maneira tão íntima que as mudanças físico-espaciais são imagens das mudanças internas por que passam os sujeitos nas suas travessias pelo sertão que os cerca, mas, principalmente, que está dentro de si. ―O sertão é o mundo‖, como afirma o próprio Guimarães Rosa, e ele está dentro de cada sujeito e, ao mesmo tempo, o envolve. Do sertão rosiano, as personagens não conhecem nada mais que frações, pois esse é um sertão metafísico, de grande amplitude, que pretende ascender ao universal. Podemos dizer então, tomando de empréstimo as palavras de Adélia Prado (apud LOBO, 2004, p. 20) quando fala do cenário em que ocorreu o amor de Riobaldo por Diadorim, que o sertão é o lugar em que ―as distâncias [são] dilatadas em tamanho de mar‖, mas que também, como disse o próprio Rosa (2001, p. 24), em seu Grande sertão: veredas, ―corre em volta [...] está em toda a 99 parte‖. À semelhança da ―Serra [que] avultava, esconderija, negando firmeza [...] montanhitância‖ no conto ―Droenha‖ (ROSA, 2001, p. 78), assim avultam frações desse sertão no decorrer de Tutaméia. No Livro sobre nada, também existe uma estreita relação do pantanal barreano com as personagens, que, em sua maioria, são habitantes de uma localidade fixa, já que os deslocamentos não são tão frequentes como no sertão rosiano. Nas três primeiras partes do livro há apenas um certo doutor que aparece pra espantar as rolinhas que povoam o lugar de morada do eu-lírico e de sua família. Somente na quarta e última parte é que aparecem indivíduos como Bola-Sete (poema ―Um filósofo de beco‖) e Andaleço (poema ―O andarilho‖), os quais são seres errantes em suas trajetórias de um lugar para outro. Nossa análise enfocará, principalmente, a relação desses dois seres errantes com os ambientes que os cercam. Tanto Bola-Sete quanto Andaleço são capazes de surpreender, de serem vários. Eles também são seres que contrariam toda uma ordem estabelecida e se inscrevem numa lógica esquizofrênica (rizomática), conforme entendida por Deleuze e Guattari (1995). Isso transparece na seguinte fala de Bola-Sete: ―Eu queria fazer a biografia do orvalho‖ (BARROS, 2004, p. 81). Ora, pode haver frase mais insólita que essa? Esse Bola-Sete, é válido lembrar, é filósofo de beco, como elucida o eu-lírico. Já Andaleço, por sua vez, é aquele que diz: ―os loucos me interpretam‖ (BARROS, 2004, p. 85) e ―não tenho carne de água‖ (BARROS, 2004, p. 85). É importante realçar que, de acordo com Deleuze e Guattari (1995), o rizoma apresenta alguns princípios importantes. O princípio da Conexão e heterogeneidade e o da Multiplicidade são os dois primeiros. Para os autores, Conexão e heterogeneidade implica dizer que ―qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro‖ (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16). Já a Multiplicidade deve ser entendida sem ―nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto‖ (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16), já que: As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é o fora de todas as multiplicidades. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17). 100 Os outros dois princípios apontados por Deleuze e Guattari (1995) são: Ruptura a- significante e Cartografia e decalcomania. O primeiro se dá pelo fato de que ―um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retomado segundo uma ou outra linha‖ (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 18). Isso acontece ―cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga‖ (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 18). Assim, para os autores, como a linha de fuga faz parte do rizoma, existe um processo de contínua ruptura, em que as linhas segmentares não param de se remeter à de fuga. O outro, a Cartografia e decalcomania, quer dizer que o rizoma é um mapa e não um decalque, pois somente o mapa: [...] contribui para a conexão dos campos, [...] para sua abertura máxima sobre um plano de consistência [...] O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22). O beco representa a linha de fuga de muitas das convenções sociais. É nos becos que estão aqueles que não se enquadram nos padrões morais da sociedade e onde impera a transgressão de muitas das normas sociais. É lá que vive Bola-Sete, um indivíduo em que ―marimbondo faz casa no seu grenho‖ (BARROS, 2004, p. 81). Como muitos dos seres errantes dos becos, esse personagem enche ―os bolsos de guimbas, de tampinhas de cerveja, de vidrinhos de guardar moscas‖ (BARROS, 2004, p. 81). São os ―doidos dos becos‖ que recolhem objetos descartados pela sociedade, numa demonstração de sua condição deslocada. Eles são seres que estão à parte, não estão inseridos no convívio social, levando ―todos os dias de tarde para casa a mesma solidão‖ (BARROS, 2004, p. 81). No dizer do próprio Manoel de Barros (2004, p. 39), o beco é um lugar ―torto e deserto‖. (BARROS, 2004, p. 39) É no beco que ―o escuro do homem‖ é unido ―com a indigência do lugar‖ (BARROS, 2004, p. 81). Refletindo sobre os significados da palavra indigência - miséria, mendicância, pobreza - percebemos que o beco é onde perambulam os miseráveis. É lá que o lado obscuro do ser humano aflora com toda a sua força. Quem nunca ouviu falar da má fama dos becos como ambientes propícios aos vícios e até à violência? Ele ―é um lugar que eleva o homem até o seu melhor aniquilamento‖ (BARROS, 2004, p. 81). Daí ser o beco um espaço de contínua ruptura, de desterritorialização. Paradoxalmente, é lá que alguns encontram a salvação. O eu-lírico chega a dizer: ―um anspeçada, amigo meu, de aspecto moscal, só 101 encontrou a salvação nos becos‖ (BARROS, 2004, p. 81). Isso provavelmente acontece porque os indivíduos que lá transitam se amoldam à ―instituição‖ às avessas que é o beco, estabelecendo novas conexões, num movimento de reterritorialização. Já Andaleço tem como direção ―a pessoa do vento‖ (BARROS, 2004, p. 85) e costuma ―andar atoamente‖ (BARROS, 2004, p. 85). O aflitivo caminho pra lugar nenhum que segue a personagem Jeremoavo também é trilhado por Andaleço. Como andarilho que é, ele é deslocado em relação a qualquer agrupamento social, não possuindo sequer um lugar fixo de habitação. Ele caminha ―por beiras de rios conchosos‖ (BARROS, 2004, p. 85). Se lembrarmos aqui a simbologia do rio: a vida em constante mudança e se atentarmos para o fato de a palavra concha ser sinônimo de curva, podemos entender que Andaleço é aquele que vive uma vida de acidentadas e sinuosas mutações. Seu trajeto é o torto caminhar pelos ermos do mundo. Como Andaleço não é nome, mas ―desnome‖, esse personagem sofre uma espécie de despersonalização. Ele é sempre um estranho, sem nome nem referências. ―Eu já disse quem sou Ele‖ (BARROS, 2004, p. 85). Sendo sempre um ―Ele‖, Andaleço tem sua subjetividade atravessada por seus muitos encontros, os quais são mais com seres de outras espécies e com a natureza do que com seres humanos. Pássaros, sapos, flores. Ele também se desloca tendo a companhia de latas furadas, pregos e papéis usados. Apenas as crianças o têm por alguém: ―o Homem do Saco‖ e somente os loucos o ―interpretam‖, os seres humanos pertencentes à idade da razão o ignoram, eles são alheios à sua existência. Essa personagem é um ser que confunde suas condições de vida com a de seres inumanos do ambiente que o cerca. Seu isolamento certamente ―tem o poder de influir sobre seus gestos, sobre a abertura de sua voz, etc.‖ (BARROS, 2004, p. 84) e o motiva a travar relação ―com as suas árvores, com as suas chuvas, com as suas pedras‖ (BARROS, 2004, p. 84). Isso mostra que seu distanciamento de outros indivíduos é tanto que se segue uma diluição das fronteiras entre o humano, outros animais, os vegetais e os minerais. Nesse gesto, é expressa de forma exímia ―a originalidade com que o poeta estabelece o universo relacional das pessoas com as coisas, com a natureza, com a terra e com o homem novo que dela surge‖ (CASTRO, 1991, p. 25). À semelhança do que diz Afonso de Castro (1991, p. 25) ocorrer com o personagem Pedro da obra barreana Poesias, Andaleço se amalgama ―à força da terra‖. Ele chega a se despir de sua natureza humana e ―se adquirir do chão a modo de um sapo‖ (BARROS, 2004, p. 84). Mais que isso, Andaleço humaniza as coisas: ―Carrego latas furadas, pregos, papéis usados./ (Ouço harpejos de mim nas latas tortas‖ (BARROS, 2004, p. 85). Enquanto isso, as coisas se humanizam, como dão a entender 102 os versos: ―A minha direção é a pessoa do vento/ [...] Não tenho carne de água.‖ (BARROS, 2004, p. 85). A diluição dos limites entre os mais diversos seres e objetos que compõem o cenário por onde transita Andaleço é tão acentuada que pássaros são arborizados: ―De tarde arborizo pássaros‖ (BARROS, 2004, p. 85). Tudo se torna móvel seguindo a ―originalidade com que o poeta [Manoel de Barros] estabelece o universo relacional das pessoas com as coisas, com a natureza, com a terra e com o homem novo que dela surge‖. (CASTRO, 1991, p. 25). O andarilho, os animais, os vegetais, os objetos, o ambiente pantaneiro como um todo se torna descontínuo, com abertura para assumir várias formas, reversivelmente. Nele acontecem inusitadas relações e habitam entes metamórficos e plenos de significados outros, diferentes dos convencionais. ―Tudo [...] se modifica e se reinventa. Tudo está em devir.‖ (CASTRO, 1991, p. 51). No andar nômade desse andarilho que pertence ―de andar atoamente‖ (BARROS, 2004, p. 85) em ambientes metamórficos, existe também o duplo movimento: desterritorialização/reterritorialização. A desterritorialização é acarretada pelas constantes separações. Como nos lembra Maurice Blanchot (apud LAGES, 2007, p. 124), no movimento nômade ―se inscreve a idéia de partilha e separação‖. Dessa forma, o andarilho é um ser marcado pelas quebras com os ambientes por que passa em seu trajeto. Não é fortuito que Andaleço é ―desnome‖ e que o ―Ele‖ é incorporado tão dramaticamente: ―Eu já disse quem sou Ele‖ (BARROS, 2004, p. 85). Nas palavras ainda de Blanchot (apud LAGES, 2007, p. 124), o movimento nômade ―se afirma, não tanto como eterna privação de um domicílio, mas como uma maneira autêntica de residir, de uma residência que não nos liga à determinação de um lugar, nem à fixação a uma realidade já fundada, segura, permanente‖. A reterritorialização acontece na medida em que em seu isolamento, esse andarilho experimenta uma espécie de ―crescimento espiritual‖ (o qual deve ser entendido de forma imamente e não transcendente), pois ele diz: ―E estes ermos me somam‖ (BARROS, 2004, p. 85). Essa fala nos leva a crer que Andaleço passa por constantes e significativas mudanças em sua subjetividade em seu caminhar errante. Talvez mesmo haja um momento ―em que esse homem começa a adivinhar‖ (BARROS, 2004, p. 84), colocando-o numa posição à frente daqueles que vivem em comunidade. Assim, diferentemente do sertão rosiano, que é um lugar metafísico, dramaticamente interiorizado pelos sujeitos, através de oscilantes sentimentos ou de conhecimentos adquiridos com as experiências, o brejo pantaneiro de Manoel de Barros é um espaço em que não há uma centelha sequer de transcendência. É onde as personagens se ligam ao chão, isto é, à natureza, 103 sendo-a por ―infusões, aderências, por incrustações‖ (CASTRO, 1991, p. 30) numa espécie de deslocamento excêntrico. O cenário barreano é aquele em que ―todas as coisas têm ser‖ (BARROS, 2004, p. 85). Nas palavras ainda de Castro (1991, p. 38), o ―pantanal é um referencial do universo em profunda coalescência e transformação‖. É o espaço do devir, do vir a ser. Por outro lado, como o sertão de Rosa, o pantanal de Barros é o espaço da linguagem alegórica por excelência, em que as viagens das personagens são imagens que aludem à outra coisa: aos deslocamentos de uma linguagem em trânsito que fraciona os signos para potencializar os sentidos. O sertão e o pantanal são matrizes, de onde emergem inúmeros cenários que geram a mais alta poesia. São lugares distantes, por estarem recuados em relação à sociedade moderna em que estamos inseridos, mas próximos, por fazerem parte de nós, na dimensão do primitivo, do caótico, que nos habita, ainda que só reconheçamos uma pequena fração dele, pois, como diria Benjamin (apud BAUDRILLARD, 2003), a modernidade tem nos alienado de nós mesmos, daí nossa perda de unidade, nossos conflitos barrocos. 3.4 ESTILHAÇOS DE UMA ESTÓRIA ―O enredo esgarça-se consideravelmente nesse livro‖, afirma Paulo Rónai (apud GALVÃO, 2006, p. 171) a respeito de Tutaméia. Esgarçar significa, dentre outras coisas, rasgar um tecido afastando os fios, isto é, desfiar. É exatamente isso que ocorre com as intrigas dessa obra, embora não sejam banais, dada a densidade semântica que as envolve. Walnice Nogueira Galvão (2006, p. 171) aprofunda o pensamento de Rónai dizendo que, em Tutaméia, ―a instilação da atmosfera e a construção enigmática tendem a ser mais fortes que a trama, que se baseia em iluminações e advinhações [...] [e] quase desaparece‖. Excluindo os prefácios, há quarenta tramas curtas em toda a obra, o maior número entre as obras rosianas. Os assuntos são os mais diversos: amor, ciganos, bois e boiadeiros, caçadas, o valor da imaginação, crimes e ainda metamorfose e redenção, como bem aponta Walnice Galvão (2006). Em nossa análise, nos deteremos em ―Desenredo‖ e ―Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi‖, por acreditarmos que, nesses contos, a imaginação rosiana dá desmedidos vôos em busca de uma trama recriada e inovadora. A começar por ―Desenredo‖, percebemos que o próprio nome é alusivo a uma idéia de desestabilização, desconstrução da intriga enredada no discurso do narrador. Nesse conto, o poder da imaginação de Jó Joaquim é capaz de desfazer ―o enredo de traição [de Livíria] na 104 memória dos moradores da vila‖ (RIBEIRO, 2000, p. 122). Ele desconstrói, ―como inédito poeta e homem‖ (ROSA, 2001, p. 74), a trama urdida com relação ao passado de Irlívia, dizendo: Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. (ROSA, 2001, p. 74) Jó Joaquim trata o enredo envolvendo o passado de Irlívia como ―lenda‖ e como ―um plástico e contraditório rascunho‖ (ROSA, 2001, p. 74). Operando-o de forma genial, Jó acaba por construir ―uma outra estória‖ (RIBEIRO, 2000, p. 122), a de que a amada Irlívia não tivera amantes. Assim, ele consegue criar uma ―nova, transformada realidade‖ (ROSA, 2001, p. 74). A frase: ―E pôs-se a fábula em ata‖ (ROSA, 2001, p. 75), que aparece no final do conto, dá a entender que a versão divulgada pela personagem Jó foi aceita pelo povoado, tanto é que foi registrada em ata. Através do jogo enredar/desenredar, Rosa ―desmaterializa os fatos [...] [e] a narrativa passa para as mãos autoras de Jó [...] virando [...] uma ficção com os farrapos de fatos concretos‖ (RIBEIRO, 2000, p. 122-123). Jó Joaquim, além de ser personagem principal, adquire o status de autor, pois é ele quem cria a fábula posta em ata. Com esse gesto, ele lembra Rodrigo S.M., o qual se apresenta como uma segunda mão que escreve, juntamente com Clarice Lispector, A hora da estrela. Esse Rodrigo chega a dizer que é quem escreve a história junto com Clarice e que determina a história ―com falso livre-arbítrio‖ (LISPECTOR, 1998, p. 13). Além disso, ele se coloca como um dos personagens mais importantes da narrativa. Embora, Jó Joaquim não seja a segunda mão que escreve junto com Rosa, ele cria uma estória, que é um desenredar da trama rosiana. Nesse processo, como ocorre na maior parte das narrativas de Clarice, interessam mais as sensações e sentimentos de Jó Joaquim do que os fatos em si, havendo uma predisposição intimista. Como a intriga de ―Desenredo‖ se materializa à semelhança de uma combinação de confissões íntimas, o tecido textual reflete isso através das inversões lógicas e de uma rica camada de imagens. É um exemplo das inversões referidas a frase: ―Sorriram-se, viram-se.‖ (ROSA, 2001, p. 72), em que a ordem natural dos acontecimentos, que é duas pessoas se verem e só então sorrirem uma para a outra, é invertida, quebrando a sequência temporal 105 lógica. Primeiro, o narrador faz uma referência às emoções de Jó e Irlívia, para só depois dizer que enxergaram um ao outro. Outra ilustração é: ―soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda‖ (ROSA, 2001, p. 74). A aposição dos prefixos ―anti‖ e ―a‖ sugere que Jó conseguiu descaluniar Irlívia recorrendo a métodos que ferem a lógica ocidental, a qual costuma se valer de pesquisas e cronologias como formas adequadas na busca do conhecimento. Entre as imagens que afloram do texto, podemos destacar: ―Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento‖ (ROSA, 2001, p. 72). A expressão ―infinitamente maio‖ intensifica o amor sentido pela personagem Jó, uma vez que maio é conhecido como o mês das flores: símbolo de amor e ternura. Ainda a primeira imagem torna-se bastante material com a inserção do verbo ―pegar‖, pois sugere que o amor é um elemento concreto, as flores, o qual se pode pegar. A segunda intensifica grandemente a rapidez do entendimento entre Jó e Irlívia, além de presentificar a embarcação e o vento, através da aliteração do v. Ao fazerem isso, tais imagens encharcam o texto de lirismo e o enredo termina por adentrar nas águas da poesia. ―Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi‖ é um outro conto em que o enredo esgarça-se consideravelmente. Nele acompanhamos a estória de três vaqueiros: Jerevo, Jelázio e Nhoé. O primeiro era casado com uma mulher ―de simpatia e singeleza sem beleza‖ (ROSA, 2001, p. 166), da qual o segundo era amante. Já o último era ―certificativo homem, de severossimilhanças‖ (ROSA, 2001, p. 165), que era ciente da situação. São justamente os três, que nos intervalos, nos momentos de descanso, urdem um boi, ―uma rês semi-existida‖ (ROSA, 2001, p. 164). Observemos como isso ocorre: Sentados vis-a-visitantes acocorados, dois; o tércio, Nhoé, ocultado por moita de rasgagibão ou casca-branca [...] Então que, um quebrou o ovo do silêncio: - ―Boi...‖ – certo por ordem da hora citava caso de sua infância, do mundo das inventações; mas o mote se encorpou, raro pela subiteza. – ―Sumido...‖ – outro disse, de rês semi-existida diferente. – ―O maior‖ – segundo o primeiro. – ―...erado de sete anos...‖ – o segundo recomeçou; ainda falavam separadamente. Porém: - ―Como que?‖ – de detrás do ramame de sacutiaba Nhoé precisou de saber. – ―Um pardo‖ – definiu Jelázio. – ―...porcelano‖ – o Jerevo ripostou. Variava cores. (ROSA, 2001, p. 164-165) Tudo começa quando um dos três vaqueiros pronuncia: ―Boi...‖, palavra vinda ―do mundo das inventações‖ que de súbito se avoluma diante dos três. Com a palavra boi atiçando sua imaginação, um segundo vaqueiro diz ―Sumido...‖, referindo-se a um animal ―semi- 106 existido‖. Mas a urdidura dos três está só no início. O que principiou a trama acrescenta: ―O maior‖, então o segundo a falar diz dessa vez: ―... erado de sete anos‖. Daí o Nhoé ficou sem entender e perguntou: ―Como que?‖. A isso respondeu Jelázio que era ―um pardo‖ e Jerevo que era ―...porcelano‖. Atentando para a maneira como ocorreu a urdidura do boi, notamos que palavras e expressões vagas são usadas pelos vaqueiros, o que resulta num animal bastante fragmentário: ―Boi...‖ ―Sumido...‖ ―O maior‖ ―...erado de sete anos‖ ―um pardo‖ ―porcelano‖. As reticências aparecem de forma reiterada, tornando as palavras e expressões bastante indefinidas. Essas, por sua vez, acabam contribuindo para a imprecisão dos contornos do boi, delineando-o como um misterioso animal, o qual é advindo ―do mundo das inventações‖, uma criatura ―semi-existida‖. Ele é integrado por farrapos de linguagem, os quais comportam também elementos discordantes, como fica evidente na atribuição das diferentes cores ao bicho. Tais discordâncias culminam com a indefinição na cor, formada por pinceladas de várias cores juntas, conforme verificamos no trecho abaixo: Entanto, por arte de logo, concordaram em verdade: seria quase esverdeado com curvas escuras rajas, araçá conforme Jelázio, corujo para o Jerevo, pernambucano. Dispararam a rir, depois se ouvia o ruidozinho da pressa dos lagartos. – ―Que mais?‖ – distraía-os o fingir, de graça, no seguir da idéia, nhenganhenga. De toque em toque, as partes se emendavam: era peludo, de desferidos olhos, chifres descidos; o berro vasto, quando arruava – mongoava; e que nem cabendo nestes pastos... Assim o boi se compôs, ant‘olhava-os. (ROSA, 2001, p. 165) De pincelada em pincelada, ou no dizer do narrador, ―de toque em toque, as partes se emendavam‖, até que ―o boi se compôs‖. Ou seja, os pedaços foram sendo combinados até que o fragmentário animal estivesse criado. E é assim que o leitor assiste a uma verdadeira montagem, em que peça por peça está bem à mostra. Assim ocorre com o enredo, sua urdidura é uma espécie de montagem que se insinua aos olhos do leitor. A imagem do boi, com suas idas e vindas, sempre passeando dentro do texto, é um elemento desagregador que interrompe o fluxo da narrativa, estando presente em diversos momentos da estória. Vejamos quatro situações em que isso acontece: – ―Sai, boi!‖ – ela [a mulher do Jerevo] troçava mistério deles [de Jerevo, Jelázio e Nhoé], do que fino se bosquejava. O Boi bobo – de estatura. Vai, caprichou Jelázio de arrenegar essa lembrança, joça. Sisudos, os outros dois se olhavam, comunheiros 107 por, por censuração. [...] Por maneira que de febres a mulher do Jerevo faleceu [...]. Então, [Jerevo, Jelázio e Nhoé] podiam só indagar o que do Boi, repassado com a memória [...] De certo modo. Mais para diante, o Jelázio morreu, com efeito, inchado dos rins, o espírito vertido. – ―Só a palma do casco...‖ – e riu, sem as recorridas palavras. [...] [Nhoé] Chegou a uma estranhada fazenda [...] [e lá] Refalavam de um boi, instantâneo. Listrado riscado, babante, façanhiceiro! (ROSA, 2001, p. 166-167) O primeiro momento é quando a mulher do Jerevo mofa do boi inventado por ele e seus amigos Jelázio e Nhoé. O segundo é por ocasião da morte da mulher do Jerevo. O terceiro é quando o Jelázio morre. Já o último é quando Nhoé vai trabalhar numa outra fazenda. De forma dinâmica a imagem do boi se movimenta ao longo da trama, deixando ―altos rastros [...], em ponto de pesares‖ (ROSA, 2001, p. 167). O boi chega a assumir a feição de ―coisa esperta, bicho duende, sombração‖ (ROSA, 2001, p. 165). Se atentarmos para o fato de que entre os significados de duende está aparição, alma e até pequeno demônio e se observarmos também que a palavra sombração é o mesmo que espectro, assombração, entenderemos melhor porque a imagem do boi é um elemento desagregador dentro do enredo. Ele traz a dimensão do caótico para a estória, o que se converte em muitos dissabores. Sem contar que ainda causa um certo desvio, um deslocamento na intriga, a qual acaba por dar maior destaque à imagem espectral do boi do que aos acontecimentos em si. Mas esse boi é uma plástica figura composta de elementos discordantes, como dissemos acima, enquanto era forjado pelos vaqueiros, ele os distraía e até causava risos desdobrados, como fica evidente em expressões como: ―disparavam a rir [...] para se rir e mais rir‖ (ROSA, 2001, p. 165). Esse boi é uma imagem capaz de se projetar no texto, através de um jogo da mais alta invenção rosiana. Num jogo em que a imagem do boi traz os assombros e êxtases do sujeito. São as impressões desse sujeito sobre o mundo e seu poder inventivo que vão para o primeiro plano da trama, enquanto os fatos ficam relegados a um segundo plano. Podemos nos valer das palavras de Benjamin (1984, p. 230) com relação a Andreas Gryphius, para nos referir à construção dos enredos analisados acima: ―seu laconismo abrupto, ajusta-se bem ao estilo [...], [evocando] a impressão do estilhaçado e do caótico‖. Como os dramas de Gryphius, as intrigas estudadas são estilhaços de estórias que trazem à tona a dimensão caótica da organização dos elementos do enredo. Daí podermos dizer que esses enredos evocam o drama barroco, o qual, ―no espírito da alegoria, [...] foi concebido como ruína, como fragmento‖ (BENJAMIN, 1984, p. 258), e que, por conseqüência, são expressões alegóricas. Neles, as ruínas dos enredos tradicionais, não mais capazes de produzir 108 no leitor uma viva impressão, são recriadas, ganhando intensidade. Neles, a inventividade do enredo tão cara ao drama barroco, como bem assinala Benjamin (1984), é uma marca inalienável. Diferentemente de Tutaméia, o qual é composto de matéria narrativa (embora, como vimos, seja permeado de lirismo), o Livro sobre nada é formado pela matéria lírica. Em virtude disso, a primeira pergunta que se avoluma diante de nós é: Podemos falar em enredo numa composição lírica, cujo foco tende a ser a expressão da subjetividade de um eu poético? Para respondermos a essa pergunta remontemos aos primórdios do Modernismo. Se lembrarmos bem, entre as idéias defendidas pelo movimento era a de que a Literatura precisava inserir a linguagem falada pelo povo em seu dia-a-dia nos livros. Como disse Manuel Bandeira, em seu conhecido poema ―Evocação do Recife‖, ―a língua errada do povo/ língua certa do povo‖ (BANDEIRA, 2000, p. 44). Na tentativa de retratar a linguagem falada nas ruas, a poesia moderna, através não só da obra de Manuel Bandeira, mas também da produção de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade, começou a trazer à cena alguns episódios extraídos do cotidiano. Um bom exemplo de tal prática é o ―Poema tirado de uma notícia de jornal‖, também de Bandeira, no qual, após uma sucinta descrição do personagem João Gostoso, aparece um relato também breve da noite na qual ocorreu sua morte, em que é dito que ele: ―chegou no bar Vinte de Novembro/ Bebeu/ Cantou/ Dançou‖ (BANDEIRA, 2000, p. 46). O texto é finalizado de forma nada usual, apenas com a informação de que ele ―se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado‖ (BANDEIRA, 2000, 46). O uso dos verbos no pretérito perfeito, como sabemos, é uma marca característica do texto narrativo e essa forma verbal aparece reiteradas vezes no poema. Além disso, existe toda uma progressão temporal, a qual está ligada aos episódios que envolvem a morte do João. Mas isso é suficiente para dizermos que o texto apresenta um enredo? Se não nos permite afirmarmos que existe uma trama com toda a complexidade de um conto, uma novela ou romance, por outro lado, ela não deixa de estar presente, pois o poema é uma micro-narrativa. Feitas essas considerações, acreditamos ser possível traçar uma breve análise de alguns trechos de poemas barreanos, entendendo-os como rudimentos de enredos, ou pequenos episódios. É certo que nos causa um certo estranhamento falarmos em enredo dentro de uma expressão altamente lírica, como é o caso do Livro sobre nada. Mas isso é mais uma demonstração da evidente fragmentação e ambiguidade da obra, a qual, num certo sentido, instaura, como diria Hugo Friedrich (apud PRIOSTE, 2006): 109 desorientação, dissolução do que é corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento, modo de ser astigmático, estranhamento... (FRIEDRICH apud PRIOSTE, 2006, p. 124) Entre os segmentos textuais escolhidos para nossa apreciação estão os dos seguintes poemas: o sexto e o nono poemas de ―Arte de infantilizar formigas‖ e o ―Diário de Bugrinha (excertos)‖. Observando, inicialmente, dois episódios envolvendo a personagem denominada apenas de ―avô‖, percebemos que, no primeiro, o eu-lírico/narrador relata que o avô, após converter-se sucessivamente em rã, árvore e pedra, começa a dar germínios. Já no segundo, é dito que o avô, comicamente, pega uma faca e tenta cortar seu próprio órgão sexual ―com o lado grosso da faca‖. Sua intenção, de acordo com o eu poético/narrador, era arremessar o órgão para os urubus, o que acaba desistindo de fazer. Isso é o que observamos nos trechos citados abaixo: Depois de ter entrado para rã, para árvore, para pedra – meu avô começou a dar germínios. (BARROS, 2004, p. 21) Nos fundos da cozinha meu avô tentou cortar o phalo com o lado grosso da faca. Não cortou. Ia pinchar aos urubus. Não pinchou. (BARROS, 2004, p. 27) Os episódios referidos acima são uma amostra de que existem pequenos relatos permeando os textos que compõem o Livro sobre nada, os quais são insólitos e causam estranhamento. De forma abrupta, o poeta mato-grossense traz o elemento fantástico para dentro do primeiro evento: o avô não só se converte em rã, árvore e pedra, mas também começa a dar germínios. As atitudes do avô, relatadas de maneira aparentemente simples, com um ar de naturalidade, são, na verdade, estranhas e, ao mesmo tempo, reveladoras de uma fina e sofisticada criação poética. O segundo acontecimento narrado chama a atenção pela bizarria da cena em que um homem idoso intenta se castrar e oferecer seu órgão às aves de rapina - os urubus. Mas ao mesmo tempo, ela se destaca pelo caráter de fingimento da narração, pois o avô usa o lado grosso da faca e não o lado afiado. O eu-lírico/narrador nos diz, ao final do poema, que o avô 110 ―era o próprio indizível pessoal‖ (BARROS, 2004, p. 27), dando-nos uma forte pista de que tudo não passa de um fingimento poético, através do qual o poeta tenta alcançar o inefável, mesmo que se valendo de elementos grotescos. Dessa forma, apesar de remeterem aos relatos presentes em alguns poemas de Oswald de Andrade e de Manuel Bandeira, bem como de outros modernistas, pela presença do comezinho, os eventos barreanos vão além, com um ineditismo que revela um alto grau de invenção dos relatos. Vejamos outras duas pequenas narrativas presentes também de natureza insólita: 13.9 A mãe bateu no Mano Preto. Falou que eu não apanhava porque não dei motivo. Subi no pico do telhado para dar motivo. Aqui de cima do telhado a lua prateava. A mãe disse que aquilo não era motivo. 19.9 Uma égua iniciava meu irmão. O pai ralhou com ele. Meu irmão foi entrando para inseto até desaparecer. Ficou dentro do mato até amanhã. (BARROS, 2004, p.31) Na primeira das micro-narrativas citadas acima, observamos a personagem Bugrinha subindo no telhado de casa com o objetivo de dar motivo para que sua mãe lhe batesse. Na segunda, por sua vez, acompanhamos a seguinte seqüência de acontecimentos: o irmão de Bugrinha é iniciado por uma égua, o pai reclama com ele, então o jovem passa por uma metamorfose, se convertendo em inseto, até que desaparece, ficando ―dentro do mato até amanhã‖. Em ambos os casos ocorre o fenômeno descrito por Luís Carlos Prioste (2006, p. 131): ―a poética de Manoel de Barros [...] busca na fragmentação um modo de pôr em questão a lógica ocidental determinada pela causalidade linear‖. Além do caráter insólito dos fatos, notamos que as relações de causalidade ocorrem de forma paradoxal. Não é razoável que alguém, mesmo que seja uma criança, aja de forma propositada para apanhar. Também não é plausível que a reclamação de um pai acarrete a conversão do filho em inseto. Se nós repararmos bem a expressão ―Ficou dentro do mato até amanhã‖, notaremos ainda uma contradição de base na seqüência temporal criada. O tempo passado expresso através do verbo ―ficou‖, que está no pretérito perfeito, não é compatível com o advérbio ―amanhã‖, que remete a futuro, à idéia de ―dia seguinte ao de hoje‖. Mas esse ―amanhã‖ forja uma frutífera ambiguidade, à medida que pode ser entendido como ―o amanhecer‖ (o que é sugerido pela relação homófona entre ―amanhã‖ e ―a manhã‖), como o 111 dia posterior à fala de Bugrinha ou ainda como um amanhã sempre atualizável pela leitura, sendo, portanto, indefinido. Na verdade, há todo um jogo com o sentido do ―amanhã‖, um jogo poético, o qual se torna ainda mais encantado/encantador no caso da expressão: ―Aqui de cima do telhado a lua prateava‖, pois por meio dela é que descobrimos o real motivo de Bugrinha subir para o telhado: ela queria ir em busca da poesia. A lírica imagem da lua prateando é reveladora disso. Bugrinha serve a um intento do poeta pantaneiro: fazer aflorar a poesia, através de uma acentuada brincadeira (tão profunda que chega a ser séria) com o código lingüístico. O poeta realiza a ―inversão das normas do código verbal usual‖ (PRIOSTE, 2006, p. 127), como um bom representante da lírica moderna que é. Por tudo isso, é possível afirmarmos que Manoel de Barros, à semelhança de Guimarães Rosa, urde relatos com uma textura fragmentária, imagética, ambígua. Tutaméia, mesmo sendo um livro de teor narrativo, pela sua alta invenção alcança o status da poesia, instaurando um alto lirismo e fazendo esmaecer os enredos. Já o Livro sobre nada, sem deixar de ser a mais fina matéria lírica, enreda alguns pequenos episódios plenos de ilogismo, laconismo, prolífica ambiguidade e riqueza imagética. 3.5 UM TEMPO LACUNAR... Na leitura das estórias de Tutaméia, é comum nos depararmos com expressões como: ―revenho ver a casa‖ (ROSA, 2001, p. 67), ―aos pedacinhos, me alembro.‖ (ROSA, 2001, p. 82) e ―só memória. O vão, por onde vê, recorta pedaço de céu‖ (ROSA, 2001, p. 181). A primeira delas, que faz parte do conto ―Curtamão‖, pode ser entendida como estou vindo olhar a casa outra vez através da memória, estou rememorando-a. A segunda, que integra o conto ―Esses Lopes‖, atrela o relato feito pela narradora Flausina à sua capacidade de lembrar. À medida que vai se recordando, Flausina vai narrando, o que não acontece de forma instantânea e inteira, mas ―aos pedacinhos‖. Já a terceira, extraída de ―Quadrinho de estória‖, sugere uma relação do campo de visão do ―pseudopreso‖ que protagoniza o relato com o vão da memória, o qual (re)corta apenas ―pedaço de céu‖. Os trechos destacados são apenas uma pequena ilustração da presença de uma memória que é esfacelada e bastante prolífica. Entre as estórias que mais nos chamam a atenção devido ao importante papel exercido pela memória estão ―Reminisção‖ e ―Lá, nas campinas‖. É sobre eles que empreenderemos nossa análise. 112 Para começarmos, observemos a passagem transcrita logo abaixo, a qual foi extraída do conto ―Reminisção‖: Foi desde. Parece até que iam odiar-se, moço e moça, no então. Divulgue-se a Dra: cor de folha seca escura, estafermiça [...] primeiro sinisga de magra, depois gorda de odre, sempre própria a figura do feio fora-da-lei. Medonha e má; não enganava pela cara. Olhar muito para uma ponta de faca, faz mal. Dizia-se: - ―Indicada.‖ (ROSA, 2001, p. 126) Um corte brusco é feito logo no início do parágrafo com a expressão ―Foi desde‖, uma vez que ocorre a supressão da data que é de praxe aparecer numa narrativa convencional. Não é feito nenhum indicativo do tempo exato em que a personagem Dra conheceu o Romão, que veio a tornar-se seu marido. Os sequenciadores temporais ―primeiro‖ e ―depois‖ sinalizam para a passagem do tempo, mas sem deixarem marcas ou indícios do período transcorrido, isto é, de quanto tempo se passou para ocorrer a mudança sofrida pela Dra: ―de sinisga de magra‖ para ―gorda de odre‖. Sentimos uma atmosfera de imprecisão circundando os acontecimentos. Ao longo do conto são usados alguns outros marcadores temporais, tais como: ―então‖, ―foi‖ e ―futuramente‖, mas sem que haja qualquer referência mais precisa. O tempo nessa narrativa é lacônico e por sê-lo abre precedentes para as confabulações do leitor, o qual, à semelhança dos espectadores que assistem à repentina melhora de Romão, seguida da morte, pode ver nos espaços deixados pelo texto, com olhos ―otusos, imaginânimes, com olhos emprestados‖ (ROSA, 2001, p. 129), a materialização de um tempo mítico. Um tempo que é capaz de ser um passado distante, mesclado com presente e com projeções no futuro. Isso é sugerido pelo fragmento abaixo: Romão, hem, gostou dela, audaz descobridor. [...] Tinhava-se a Drá [...] Romão imutava-se coitado. Disso ninguém dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta cegueira? Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memória pré- antiquíssima. Tudo vem a outro tempo. (ROSA, 2001, p. 127-128) 113 Talvez seja imbuído desse olhar que Romão suporta a Drá com sua compleição ―estafermiça, abexigada, feia feito fritura queimada‖ (ROSA, 2001, p. 126), de ―mulher mandibular‖ (ROSA, 2001, p. 127), pois ele, que se devotava à mulher com ―pelejos de poeta‖ (ROSA, 2001, p. 128), sabia o que esperava, o ―pedacinho de instante‖ em que a Drá assumiria ―o rosto de Nhemaria‖ (ROSA, 2001, p. 129), tornando-se, ―num estalar de claridade [...] alva, belíssima‖ (ROSA, 2001, p. 129). A palavra reminisção remete à idéia de reminiscência, a qual pode ser entendida como uma lembrança parcial, vaga e quase apagada. Faz então todo o sentido as lacunas temporais e também espaciais, já que as referências de lugar em que o causo de amor entre Romão e Dra são indefinidas da mesma forma. Cunhãberá, como já vimos anteriormente, é um ―destinado lugar, onde o mal universal cochila e dá o céu um azul do qual emergir a Virgem‖ (ROSA, 2001, p. 126). É um espaço místico, ou melhor, mítico, é onde ―tudo vem a outro tempo‖, ou seja, onde tudo pode ser atualizado/recriado por uma memória que corta e recorta se valendo dos pedaços para compor algo novo. Podemos até pensar que lá é o ―destinado lugar‖ em que as contagens do tempo não importam, mas as experiências vividas, a vida e suas peripécias, é ―onde o mal universal‖ das datas ―cochila‖. Lá o tempo primitivo, remoto, lírico/dramático aflora, através de uma ―memória pré-antiquíssima‖. Cunhãberá é um lugar do: sertão que, como reflete Willi Bolle, incorpora o avesso da ideologia da modernidade, a ―história a contrapelo‖, talvez para revelar uma sociedade ambivalente, imposta por uma modernidade ainda não assimilada. Nas suas palavras, o engenho de Guimarães Rosa é arcaico, ctônico,... periferia da periferia (NEVES, 2003, p. 142) Outro caso exímio no tocante à fragmentação da memória é o do conto ―Lá, nas campinas‖, pois nele ―alguém, agarrado a um fragmento de frase que lhe sobrara na memória, tenta ressuscitar a mocidade esquecida‖ (RÓNAI, 2001, p. 25). Nele se instaura um jogo entre esquecimento e lembrança que favorece o primado da imaginação que está ―apta a engendrar a realidade‖ (GALVÃO, 2006, p. 173). Através de uma expressão lingüística que se presentifica como um vago resquício na memória, o protagonista Drijimiro procura resgatar paisagens de indefinidos contornos (as campinas). Isso fica patente na fala do narrador quando ele diz: ―Frase única ficara-lhe [a Drijimiro], de no nenhum lugar antigamente – ‗Lá, nas campinas...‘‖ (ROSA, 2001, p. 130). ―Hermético feito um coco‖ (ROSA, 2001, p. 130), Drijimiro, atacado pela saudade, dispõe 114 apenas da frase ―Lá, nas campinas...‖, que não passa de um ―dos retalhos do verbo‖ (ROSA, 2001, p. 130) de que costuma fazer uso. Atentando para o trecho ―de no nenhum lugar antigamente‖, usado pelo narrador para se referir à lacônica ―Lá, nas campinas...‖, percebemos que ela alude a um lugar remoto e incerto, que não existe mais e que pode nunca ter existido. Observando a urdidura do conto, podemos associar esse lugar longínquo à infância, pois o narrador afirma que ―Drijimiro tudo ignorava de sua infância; mas recordava-a, demais‖ (ROSA, 2001, p. 130). O narrador nos conta que os anos vão se passando, mas Drijimiro continua sua busca pelas campinas. Conhecidos lhe dão notícias de campinas de que ouviram falar, mas elas não se coadunam com os cenários buscados. Ele também andava ―às vastas terras e lugares [mas] nada encontrava, a não ser o real: coisas que vacilam, por utopiedade‖ (ROSA, 2001, p. 131). ―Que jeito recobrar aquilo, o que ele pretendia mais que tudo?‖ (ROSA, 2001, p. 130). Embora viesse a Drijimiro ―a lembrança – do último íntimo, o mim de fundo‖ (ROSA, 2001, p. 130), ele ―voltava-se para o rio de ouvidos tapados.‖ (ROSA, 2001, p. 131). Entendendo o rio como sinônimo de tempo, podemos dizer que Drijimiro não conseguia ouvir a voz do tempo materializada nas lembranças que despontavam em seu íntimo. Enquanto isso ele ia em busca dos lugares desejados, sem obter êxito em sua procura. É somente quando o protagonista se envolve numa confusão com a sobrinha do Padre do vilarejo em que mora e tem que ―refugir‖ é que ele, de maneira confusa, fala o que ―sempre sem saber‖ havia guardado dentro de si: luz, o campo, pássaros, a casa entre bastas folhagens, amarelo o quintal da voçoroca, com miriqüilhos borbulhando nos barrancos... Tudo e mais, trabalhado completado, agora, tanto – revalor – como o que raia pela indescrição: a água azul das lavadeiras, lagoas que refletem os picos dos montes, as árvores e os pedidores de esmola (ROSA, 2001, p. 134) No sobressalto, Drijimiro fala nada menos que palavras e expressões soltas, compondo uma fala bastante fragmentária. Como disse o narrador, ―tudo era esquecimento, menos o coração‖ (ROSA, 2001, p. 134). A epígrafe do conto, com as palavras: ―nessas tão minhas lembranças eu mesmo desapareci‖, nos ajuda a entender o que acontece ao protagonista nesse momento: ele se esfacela. Pouco antes do desarticulado falar de Drijimiro, o narrador afirma que ele [Drijimiro] havia ―perdido o tino‖. Mas esse perder o tino pode não ter um sentido trivial apenas, se levarmos em consideração as palavras do narrador logo no início do conto: 115 Drijimiro [...] nada diria [...] se o fundo da vida não o surpreendesse, a só saudade atacando, não perdido o siso. Teve recurso a mim. Contou, que me emocionou. – ―Lá, nas campinas...‖ – cada palavra tatala como uma bandeira branca – comunicado o tom – o narrador imaginário. (ROSA, 2001, p. 130) Mas que sentido poderia ter essa perda de senso? Observando o fato de que o protagonista nada teria dito se não houvesse recorrido a um ―narrador imaginário‖, podemos entender que ela remete à outra coisa: à imaginação, à poesia. Não é fortuito que o narrador diz que Drijimiro ―achava, já sem sair do lugar, pois onde, pois como, do de nas viagens aprendido, ou o que tinha em si, dia com sobras de aurora‖ (ROSA, 2001, p. 132). Essa imagética frase é pura poesia. E o que dizer das palavras e frases ―soltas‖ citadas anteriormente? Por toda a beleza plástica da passagem, notamos uma recriação poética das reminiscências da infância esquecida/recordada. Recriação essa que é um jogo com os pedaços de verbo que integram o vão da memória. O conto, que começa por dizer que ―todo o mundo tem a incerteza do que afirma‖ (ROSA, 2001, p. 130), não poderia terminar de maneira mais vaga e sugestiva: ―Então, ao narrador foge o fio. Toda estória pode resumir-se nisto: - Era uma vez uma vez, e nessa vez um homem. Súbito, sem sofrer, diz, afirma: - ―Lá...‖ Mas não acho as palavras‖. (ROSA, 2001, p. 134). A fórmula do ―era uma vez‖, a qual recupera a tradição dos contos de fada é repetida, ocasionando a intensificação da indefinição temporal. As expressões ―ao narrador foge o fio‖ e ―não acho as palavras‖ é outra repetição que tem como efeito uma dilatação da idéia de uma perda: a das palavras. A já lacunar expressão: ―Lá, nas campinas...‖ torna-se apenas o monossilábico ―Lá...‖, uma prova da descontinuidade espacial e histórica, que, nas palavras de Daniela Neves (2003, p. 143-144): marca [...] a visão do signo linguístico rosiano, em seus saberes e desaberes aglutinados ou justapostos, no tempo/espaço fluido, passado e vindouro, transitório e transitante nas línguas, nas histórias e nas geografias do país, alegoricamente, desfaceladamente, estilhaçando ou potencializando os sentidos. Deslocando nosso foco para o Livro sobre nada, percebemos, logo no comentário de capa, a seguinte fala de Lúcia Castello Branco (2004): no Livro sobre nada, ―um lápis 116 atravessa a paisagem da memória: corta, recorta, assinala, sublinha, rasura‖. Branco (2004) diz isso se referindo aos ―litorais da escrita‖, isto é, aos paratextos da obra, mas tal idéia é válida para todo o livro. O lápis de Manoel de Barros revolve a memória e semelhante a um estilete, corta, recorta, abre sulcos em meio ao esquecimento, trazendo de lá matéria fértil para a poesia. No segundo e no quarto poema da primeira parte do livro (―Arte de infantilizar formigas‖), bem como no sexto poema da segunda parte (―Desejar ser‖) há um eco muito forte dessa idéia, como veremos logo mais em nossa análise. O pai morava no fim de um lugar. Aqui é lacuna de gente – ele falou: Só quase que tem bicho andorinha e árvore. Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã. Um dia apareceu por lá um doutor formado: cheio de suspensórios e ademanes. Na beira dos brejos gaviões-caranguejeiros comiam caranguejos. E era mesma a distância entre as rãs e a relva. A gente brincava com terra. O doutor apareceu. Disse: Precisam de tomar anquilostomina. Perto de nós sempre havia uma espera de rolinhas. O doutor espantou as rolinhas. (BARROS, 2004, p. 13) O poema acima é encharcado de reminiscências do eu-lírico, as quais são de um tempo longínquo chamado infância, tempo em que o eu poético ―brincava com terra‖. O espaço retratado está situado ―no fim de um lugar‖ da memória, onde há ―lacuna de gente‖ e quase só tem ―bicho andorinha e árvore‖. Lá ―a distância entre as rãs e a relva‖ é a mesma. Ali, à semelhança do que ocorre em O guardador de águas, ―as águas [do tempo] [...] não correm, antes escorrem, mornas, no ritmo dos pântanos‖ (BRANCO, 2006), havendo ―uma espera de rolinhas‖. Nesse recanto da memória, o espaço e o tempo são fluidos, incertos. Como acontece no livro Memórias inventadas: a segunda infância, a ―data maior era o quando‖ (BARROS, 2006, cap. XV). Segundo o poeta pantaneiro explica ainda em Memórias inventadas, somente o quando pode fazer o tempo ―andar pra trás‖ (BARROS, 2006, cap. XV). Colocar data na existência é impedir que isso aconteça. Assim, a indefinição favorece a ampliação do sentido, o que podemos verificar através do efeito gerado pela expressão ―um dia apareceu por lá um doutor formado‖, a qual é passível de ser atualizada pelo leitor, por não fazer referência a data alguma. Mas o principal efeito de um tempo lacônico é a grande liberdade inventiva que ele propicia. ―Reminiscências da infância do poeta [...] são recriadas nas asas da liberdade‖ 117 (CASTRO, 1991, p. 21). O plástico e sonoro verso: ―Quem aperta o botão do amanhecer é o arãquã‖ é uma boa ilustração de como o tempo é transfigurado dentro dos horizontes da poesia barreana. O termo ―botão‖, que pode ser associado facilmente ao relógio, um dos maiores símbolos da marcação do tempo, aparece numa inédita expressão (―botão do amanhecer‖), a qual se liga a outro termo imprevisto: arãquã, o qual remete ao nome de uma ave dos brejos pantaneiros, o araquã, mas com uma outra nasalização. A imagem de um pássaro apertando um botão já causa estranhamento e ainda mais se esse botão é do amanhecer do dia. A palavra adquire o status de brinquedo. O tempo ganha maiores proporções e permite que a imaginação do poeta adentre ainda mais na infância, como notamos no poema citado abaixo, o qual foi extraído de ―Desejar ser‖: Carrego meus primórdios num andor. Minha voz tem um vício de fontes. Eu queria avançar para o começo. Chegar ao criançamento das palavras. Lá onde elas urinam na perna. Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos. Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem. Pegar no estame do som. Ser a voz de um lagarto escurecido. Abrir um descortínio para o arcano. (BARROS, 2004, p. 47) Atentando para o imagético verso ―carrego meus primórdios num andor‖, percebemos que os primórdios, isto é, as origens, são carregadas num tabuleiro usado comumente nas procissões católicas para carregar os santos. Isso revela muito bem a importância dada pelo eu-lírico à questão da origem. Na verdade todo o poema se centraliza na idéia da volta para o começo, numa incessante busca por um ―ideal primevo do ser‖, como diria Henrique Eduardo de Sousa (2002, p. 54), e por ―uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural‖ (BARROS, 2006, p. 64), que para se concretizar precisa que os poetas voltem ―às crianças que foram, às rãs que foram, às pedras que foram‖ (BARROS, 2006, p. 64). Esse gesto da poiesis barreana pode ser entendido como uma espécie de retorno a uma consciência mítica, a qual tem uma estreita relação com a própria essência do poema, conforme a visão de Octavio Paz (1996, p. 52), pois ele diz: O poema é um tecido de palavras perfeitamente datáveis e um ato anterior a todas as datas: o ato original com que principia toda história social ou individual; 118 expressão de uma sociedade e, simultaneamente, fundamento dessa sociedade, condição de sua existência[...] Como toda criação humana, o poema é um produto histórico, filho de um tempo e de um lugar; mas também é algo que transcende o histórico e se situa em um tempo anterior a toda a história, no princípio do princípio. Como depreendemos do fragmento acima, de acordo com Octavio Paz (1996), o poema afirma sua historicidade e ao mesmo tempo sua transcendência com relação à história. Isso acontece porque o poeta apreende o mundo externo poeticamente, não se limitando ao dado histórico, social, embora parta dele. Assim, a poesia não é a história, apenas se relaciona com ela, podendo se situar num momento anterior à essa mesma história, se configurando num ato original bem representado pelo ―no princípio do princípio‖. O poema, apesar de pertencer a um dado momento histórico, é capaz de se transportar para o instante primeiro, quando está raiando a estrela da alva de nossa existência. O que o poeta tenta instaurar é uma outra linguagem e, com isso, uma outra realidade, a que emerge da imaginação, com outras diretrizes, as que o poeta, numa atitude demiúrgica, institui, nessa busca pelas origens. Não basta a transmutação do homem em outros seres, nessa volta ao começo, mas é preciso remontar ao dialeto falado no princípio. O próprio Manoel de Barros (2009), em entrevista a André Luís Barros, afirma que essa busca é o que Mallarmé chamou de procura por encontrar a língua. Nesse afã, o autor mato-grossense efetua aquilo que Adorno (2003, p. 87) diz ser uma virtude de Mallarmé, ele ―supera a alienação da língua materna, provocada pelo uso, e a intensifica até o estranhamento de uma língua que propriamente já não é mais falada, uma língua imaginária em cuja composição o poeta intui potencialidades jamais realizadas‖. Voltando ao poema que citamos há pouco, percebemos que a tentativa de reconstruir o princípio de tudo, inclusive recriando a suposta linguagem original, nada mais é do que a exploração das potencialidades da linguagem, de modo a intensificá-la, por meio de ricas imagens. Dão testemunho disso, as expressões: ―elas [as palavras] urinam na perna‖, ―pegar no estame [no fio] do som‖ e ―ser a voz de um lagarto escurecido‖. Mas esse processo não pode ser entendido como algo harmônico, que de fato projeta o eu lírico para o momento inaugural de geração da vida, mas deve ser entendido como um esforço capaz de revelar que existe uma significativa fratura entre o homem civilizado e o mundo à sua volta. Lembremos que o ―doutor formado: cheio de suspensórios e ademanes‖, o qual é mencionado no primeiro poema citado, ―espantou as rolinhas‖. Por exibir tal fratura, o texto poético instaura um 119 espaço em que existe uma tensão entre o primevo e o civilizado. As palavras de Adorno (2003, p. 70-71) são bastante elucidativas a esse respeito: Aquilo que entendemos por lírica, antes mesmo que tenhamos ampliado historicamente esse conceito ou o direcionado criticamente contra a esfera individualista, contém em si mesmo, quanto mais ‗pura‘ ela se oferece, o momento da fratura.[...] O eu lírico acabou perdendo, por assim dizer, essa unidade com a natureza, e agora se empenha em restabelecê-la[...] A pura subjetividade dessas composições, aquilo que nelas parece harmônico e não fraturado, testemunha o contrário, o sofrimento com a existência alheia ao sujeito, bem como o amor a essa existência – aliás, sua harmonia não é propriamente nada mais que a consonância recíproca desse sofrimento e desse amor. (2003, p. 70-71) Como a linguagem na modernidade é vista como a morada do ser, é possível termos uma consciência bastante dilatada sobre seu poder de influenciar e até de construir a realidade. Manoel de Barros, de posse disso, procura compor uma outra realidade, a que vive em suas obras. O poeta pantaneiro exclama, através de uma das epígrafes do livro Ensaios fotográficos, de autoria de Clarice Lispector: ―Eu te invento, ó realidade!‖. Mas, como essa realidade inventada não deixa de se comunicar com a realidade material em que vive o poeta, ele entrelaça as duas numa relação ambivalente. Isso acontece porque o ―sujeito que avança para o começo esbarra[...] numa espécie de umbigo da memória, em que toda significação estanca. Desse lugar nada mais se pode dizer, a não ser reinventando-o, ficcionalizando-o‖ (BRANCO, 2004). O fragmento abaixo, extraído do segundo poema da ―Arte de infantilizar formigas‖, nos ajuda a entender isso: Apenas de mês em mês aparecia uma carreta de mascate, puxada por 4 juntas de bois no fim daquele lugar. Levava caramelos, bolachinhas, pentes, argolas para laço, extrato Micravel, peças de algodoin para fazer saia branca, filó de mosqueteiro, vidros de arnica para curar machucaduras, brincos de peschibeque, - essas coisinhas sem santidade... Nossa mãe comprava arnica e bolachinhas. Dona Maria, mulher do Lara, comprava brincos e extrato Micravel. Meu avô abastecia o abandono. De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra – Como um lápis numa península. (BARROS, 2004, p. 17) À semelhança do primeiro poema analisado, esse texto tem como material principal as reminiscências do eu-lírico e essas estão a serviço da criação. A expressão ―no fim daquele 120 lugar‖ é bastante sugestiva de que o que é lembrado não passa de um pequeno fragmento daquilo que compunha a infância. Da carreta de mascate com suas ―coisinhas sem santidade‖, das compras que a mãe e a Dona Maria faziam, do avô abastecendo o abandono, enfim da infância só ficou ―um sentimento/ longínquo de coisa esquecida na terra‖. Sendo assim, o poeta joga com o esquecimento, com as lacunas, para daí extrair algo novo, como por exemplo, fazer o leitor ver ―um lápis numa península‖. Dessa forma, podemos dizer que a volta à infância cria uma segunda infância, já que as memórias do eu-lírico são ―memórias fósseis‖ (BARROS, 2004, p. 43) capazes de produzirem ―uma ressonância atávica‖ (BARROS, 2004, p. 43) dentro dele. Essas memórias são uma ―coisa que sonha de retravés‖ (BARROS, 2004, p. 43). Elas diferem da lembrança, a qual, segundo o próprio Barros (2004, p. 75) ―revê [...] o mundo‖. Elas se aproximam da ―imaginação [que] transvê [...] o mundo‖ (BARROS, 2004, p. 75). Nessas memórias, as lacunas do tempo são brechas por onde a imaginação poética barreana se alastra e torna a se alastrar intensa e criativamente. Tanto Manoel de Barros quanto Guimarães Rosa, sabedores de que a escrita possui virtualidades destruidoras e renovadoras, como barrocos que são ―e garimpeiro[s] de jazidas da memória, [tentam] operar um resgate [...] da infância passada, que a consciência registra como perdida‖ (LAGES, 2007, p. 158). Esse resgate é realizado através de uma linguagem escorregadia, retalhada, imagética, em suma: alegórica. Rosa (2001, p. 179) segue em seus contos o princípio: ―o que recorda não se sabe quando onde‖, tendo ―a incerteza do que afirma‖ (ROSA, 2001, p. 130). Isso, ele o faz ―sutil feito uma colher de chá‖, em meio às obrigações imediatas do viver adulto. Barros (2006, cap. XV), em sua poesia, anda ―pra trás botando a palavra quando de suporte‖ e dizendo: ―tudo que não invento é falso‖ (BARROS, 2004, p. 67). Sua busca pelo tempo da infância é a de quem aperta ―o botão do amanhecer‖ sem nenhuma cerimônia. Ambos têm o olhar voltado para a infância e usam a recriação/transcriação da memória como meio de aproximação com o universo infantil. Seus lápis revolvem a memória e, semelhantes a estiletes, cortam, recortam, abrem sulcos em meio ao esquecimento, despertando o verbo olvidado e compondo um tempo lacunar, mítico. Com esse gesto, ativam a memória e a colocam a serviço da imaginação. Servem muito bem para elucidar esse gesto bar/rosiano, as palavras de Rosa (apud BUERES, 2009), em entrevista concedida a Günther Lorenz, quando comenta sua biografia literária: 121 não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são minha maior aventura. Escrevendo descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta... 122 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O fragmento em Tutaméia e no Livro sobre nada é um recurso estético privilegiado. Guimarães Rosa bem como Manoel de Barros o manipulam de forma exímia. Numa demonstração de seu caráter barroco, alegórico, moderno, esses livros apresentam estéticas de ruptura, as quais apontam para a dissolução das fronteiras entre os gêneros convencionais e para uma abertura sem precedentes do signo linguístico. Nas duas obras, a palavra escrita é muito próxima das artes plásticas e da música, pela riqueza de imagens visuais e musicais. É comum a presença de gêneros híbridos que quebram os estatutos dos gêneros literários, definidos conforme os padrões clássicos, com suas limitações de linguagem. Nelas também encontramos textos que ultrapassam a típica linguagem dos gêneros discursivos. Em ambas as obras, os escritores/poetas levam a cabo poéticas do fragmento, em que os narradores/eu-líricos (ou eu-líricos/narradores), as personagens, o espaço, o enredo e o tempo exibem a fragmentação, a ambiguidade e a riqueza imagética do barroco, que são também parte integrante da modernidade. O estilo é o cinzel utilizado pelos escritores/poetas para promoverem as incessantes quebras dos gêneros e dos elementos estruturais da narrativa/lírica. Nas palavras de Manoel de Barros (2004, p. 69), ―estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma‖. A palavra estigma, dentre outras coisas, remete à marca, sinal, tatuagem. É através de estilos altamente criativos que os autores fracionam a linguagem, de tal modo que frases, palavras, letras e sons são arrancados de seus contextos usuais (na mera linguagem da comunicação), para serem revitalizados e tatuados nas malhas da linguagem poética de cada um dos escritores. Com isso, eles modelam, em suas mãos, valiosas e singulares gemas de linguagem que se caracterizam pela exploração das potencialidades/virtualidades do signo verbal. Ao contrário do que fazem os lapidadores, que removem as excrescências, gerando formas regulares, lisas e brilhantes, os lápis/estiletes desses autores escavam sulcos, fissuras, produzindo formas completamente irregulares, fragmentárias e repletas de sentido. Como barrocos que são, João Guimarães Rosa e Manoel de Barros primam pelo visual, o qual se materializa numa alegórica linguagem, em que ―a imagem é fragmento‖: fragmento informe, sempre sujeito a mudanças no decorrer do tempo. Num jogo lúdico, alegórico, com a linguagem os artífices escritores vão tecendo na escrita imagens rendadas, as quais são bordadas pela imaginação e dão maior intensidade aos textos. Como alegoristas 123 exímios, Barros e Rosa insuflam o verbo poético de múltiplos sentidos, cumprindo o princípio básico da alegoria barroca de que ―cada pessoa, cada coisa, cada relação, pode significar qualquer outra‖ (1984, p. 196), pois os signos estão sempre em trânsito, são dramaticamente móveis e transcendem os sentidos convencionais. Eles são engenhosos em sua escrita, visando sempre o que o escritor mineiro confessa ao seu tradutor italiano: ―a uma possível e ampliada ressonância universal, [...] atendendo ao [...] acorde, cacho, multiplicidade de conotações, empastamento semântico [...]‖ (ROSA, 2003, p. 84) Empreendendo um estudo comparativo das duas obras selecionadas para análise, procuramos enxergá-las em suas afinidades e diferenças. No capítulo ―Gêneros entrecortados‖, percebemos que a quebra dos gêneros artísticos em Tutaméia ocorre através da construção de contos e prefácios que avançam em direção às artes plásticas e à música, pela riqueza imagética e a incorporação de elementos da oralidade. Assim como acontece em Tutaméia, no Livro sobre nada, a palavra escrita ―na contundência das formas tipográficas como no exagero das metáforas – [...] tende à expressão visual‖ (BENJAMIN, 1984, p. 198), aproximando a escrita da pintura e da música. Em conseqüência da aproximação com a pintura e a música, o texto rosiano se funde à poesia, configurando-se numa prosa poética. Por se tratar de um livro de poemas, o Livro sobre nada, manifesta a superação dos limites entre os gêneros literários num sentido inverso da obra rosiana: é a poesia que incorpora elementos da prosa e não o contrário. Ainda no mesmo capítulo, observamos que os prefácios de Tutaméia são textos híbridos, não só porque acumulam a função de conto e ensaio, mas também porque carregam pedaços de outros textos pertencentes a gêneros diferentes: anedotas, poemas, adivinhas, notas, receitas médicas, epígrafes e ainda aforismos, que são fragmentários por natureza, como também pudemos ver. O próprio fato de esses prefácios serem ensaios já sinaliza para a quebra dos gêneros, uma vez que é próprio da forma ensaio o inacabamento e a indefinição de suas fronteiras em relação a outros gêneros discursivos. No Livro sobre nada, a ruptura dos gêneros discursivos se materializa na medida em que os poemas agregam excertos de diário e anedotas e se dilatam por conterem epígrafes e notas nos paratextos. Esse fenômeno é percebido ainda através da presença de textos de tom ensaístico (como se dá com o ―Pretexto‖ e a maior parte dos metalinguísticos poemas) e aforístico (como é o caso do poema ―O livro sobre nada‖ e alguns outros). Já no capítulo ―Poética do fragmento‖, notamos que, em Tutaméia, os narradores/eu- líricos Prudencinhano e Flausina têm um discurso engenhoso, em que as incisões em suas vozes deixam brechas capazes de instaurar uma prolífica ambiguidade em torno do que é dito, 124 em outras palavras, eles têm uma fala fragmentária e intrigante. No Livro sobre nada, os três eu-líricos/narradores estudados, com um olhar lúdico e disjuntivo, apresentam uma fala enviesada, permeada por quebras e surpreendentes inovações. Ao estudarmos as personagens rosianas Irlívia e Drá, observamos que se tratam de seres plurinomeados, metamórficos, multifacetados, descontínuos. Analisando Jó Joaquim e Romão, em suas trajetórias de apaixonados, vimos que são sujeitos fraturados e ambivalentes, impulsionados por ―suas defeituosas‖ emoções e por uma rica imaginação. Voltando nosso olhar para as personagens barreanas Mano Preto, Catre-Velho e Bernardo, notamos que o primeiro é um ser humano no limite do ―inumano‖, podendo assumir várias formas; já o segundo é um indivíduo ―ardente de restos‖ e o último é uma espécie de duplo do autor, capaz de transfigurar os elementos da natureza e de se transfigurar. Todos esses seres bar/rosianos têm em comum, o fato de serem sem unidade, fragmentados, com seus conflitos barroco/modernos. O sertão rosiano é um espaço que não se dissocia do sujeito. Conforme estudamos, Arroio-das-antas e Barra da vaca, espaços de contos com os mesmos nomes, são amostras disso, pois são dramaticamente interiorizados pelos sujeitos, os quais passam por intensos trânsitos, movimentos de desterritorialização e reterritorialização. Em contrapartida, o pantanal barreano é um cenário ao qual as personagens vão se aderindo, de maneiras inusitadas e a diferentes elementos, num jogo em que elas se desterritorializam e reterritorializam. Atentando para os enredos dos contos ―Desenredo‖ e ―Os três homens e o boi‖, vimos que Guimarães Rosa tece intrigas que se esgarçam e transmitem a impressão do estilhaçado e do caótico. Quebrando a linearidade dos acontecimentos, através da intromissão de expressões imagéticas e carregadas de subjetividade, o autor evidencia mais as impressões, sentimentos e cogitações/imaginações das personagens do que os fatos em si. Com isso, ele encharca o texto de lirismo. Analisando curtos episódios que aparecem em três poemas diferentes do Livro sobre nada, compreendemos que eles são rudimentos de enredo que são permeados pelo laconismo e pelo ilogismo. Ao observarmos o elemento tempo em Tutaméia, através do estudo dos contos ―Reminisção‖ e ―Lá, nas campinas‖, vimos um intenso jogo com a lembrança/esquecimento que está na base de uma memória fragmentada, capaz de remeter à infância e a um tempo mítico/poético, abertamente lacunar e impreciso. Deslocando nosso foco para o Livro sobre nada, notamos que a construção do tempo se assemelha muito a que se faz presente na obra 125 rosiana, entretanto o poeta mato-grossense rejeita a lembrança (porque ela revê) e atira-se ao esquecimento para daí extrair suas memórias inventadas., suas reminiscências recriadas. Tomando como ponto de partida o fenômeno da fragmentação da escrita tão presente nos textos bar/rosianos, podemos entendê-los como escrituras de equilíbrio instável, assemelhadas a arranjos de blocos suspensos que apresentam brechas, por onde correm os veios pulsantes da criatividade dos artífices escritores, fazendo surgir os muitos sentidos, mas essas brechas também são onde se criam os vazios. Não é fortuito que tanto Tutaméia quanto o Livro sobre nada tragam a insígnia do nada já em seus próprios títulos. (Tutaméia é sinônimo, dentre outras coisas, de ―nonada [...], quase-nada‖ (ROSA, 2001, p. 233), conforme elucida o próprio autor mineiro no quarto prefácio do livro). A presença do nada não se restringe ao título, mas é notada ao longo dos dois livros, a qual se traduz num recurso estético de grande relevância para a construção de sentido de ambos os textos. O Livro sobre nada, segundo o autor mato-grossense explica no ―Pretexto‖ da obra, é formado pela reunião de ―coisas desúteis,[...] é coisa nenhuma por escrito, [...] o nada mesmo‖ (BARROS, 2004, p. 7). Tutaméia, logo em seu primeiro prefácio traz várias alusões ao nada, compondo diversas imagens. Em virtude disso, destacamos desde já o nosso interesse em abordar esse assunto, o qual se relaciona intimamente com o fragmento, o qual, inevitavelmente se depara com o desaparecimento, como assinala Baudrillard (2003). Desaparecimento que deve ser entendido nos termos borgianos: ―uma ausência que trabalha as coisas: [...] a verdadeira fonte da energia...‖ (BAUDRILLARD, 2003, p. 54). Mas isso é tema para outra ocasião. Voltemos ao fragmento. Como já dissemos, em nosso trabalho, procuramos compreender um pouco da grande riqueza do fragmento como expediente poético que integra as obras bar/rosianas analisadas. Tentamos trilhar o caminho dos fragmentos, dos mansinhos e dos indomáveis, dos leves como um vôo de uma borboleta e dos pesados como pedras. Vimos fragmentos multicores, de sombras e de luz; ouvimos os que fazem ecoar os sons de todos os pássaros (sabiás, rouxinóis, tu-you-yous...). Tivemos que nos demorar no caminho e pegamos alguns fragmentos de amanhecer, de céu, de anoitecer. Nessa demora, convivemos com fragmentos adversos, diversos, intrigantes, borbulhantes, brinquedos, multidões de coisas: fragmentos mágicos. Todos eles juntos inebriaram nossos sentidos, nos engananaram, não conseguimos ver além do vão de nossa escrita. Os múltiplos sentidos, à semelhança de uma cachoeira, precipitaram-se sobre nós, mas sob o véu de água, conseguimos enfeixar apenas uns poucos, os que ora foram ditos. Como é natural, eles continuam a escorrerem à nossa volta e a perseguirem seu infindável curso nos riozinhos furta-cores das escrituras bar/rosianas. 126 Parecido com o que ocorre com aqueles que contemplam a obra Melancolia I, conforme realça Suzana Lages (2007), múltiplas são as possibilidades de interpretação das obras e nossa a sensação de falência interpretativa. As obras continuarão suscitando inúmeros estudos, como é natural, dadas as proporções que tomam. 127 REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor. A forma ensaio. In:______. Notas de literatura I. Trad. e apresentação Jorge de Almeida. 34. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2003. p. 15-45. ______. Palestra sobre lírica e sociedade. In:______. Notas de literatura I. Trad. Jorge M. B. de Almeida. 34 ed. São Paulo: Duas Cidades, 2003. p. 65-89. ANDRADE, Ana Maria Bernardes de. A velhacaria nos paratextos de Tutaméia. In: DUARTE, Lélia Pereira [et al]. (Org.). Veredas de Rosa II. Belo Horizonte: PUC Minas, CESPUC, 2003. p. 36-41. ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2007. ÁVILA, Afonso. O barroco e uma linha de tradição criativa. In:______. O poeta e a consciência crítica: uma linha de tradição, uma atitude de vanguarda. São Paulo: Summus, 1978. p. 15-23. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In:______. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 262-309. BANDEIRA, Manuel. Libertinagem e Estrela da manhã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. BARROS, Manoel de. Entrevista com o exímio esbandalhador de versos: Manoel de Barros. Entrevista concedida a Lu Moraes. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2009. ______. Livro sobre nada. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. ______. Matéria de poesia. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. ______. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2006. ______. O guardador de águas. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. 128 ______. Tratado geral das grandezas do ínfimo. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. ______. O tema da minha poesia sou eu mesmo. Entrevista concedida a André Luís Barros. In: MARTINS, Floriano; Willer, Cláudio. Jornal de Poesia. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2009. BAUDRILLARD, Jean. De um fragmento ao outro. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Zouk, 2003. BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006. p. 654-662. BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221. ______. Origem do Drama Barroco Alemão. Trad., apresentação e notas: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. Bíblia sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. Ed. revista e atualizada. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, l993. p. 3. BRANCO, Lucia Castello. [De tudo haveria...]. In: BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. orelha do livro. ______. [Não nos enganemos...]. In: BARROS, Manoel de. O guardador de águas. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. orelha do livro. BUERES, Priscilla Guedes. Rosa/Heidegger: questões/aproximações. Disponível em: http:. Acesso em: 24 ago 2009. CAMPOS, Haroldo de. Poesia e música. In:______. Metalinguagem e outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 283-287. ______. Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. In:______. Ruptura dos gêneros na literatura latino-americana. São Paulo: Perspectiva, 1977. p. 9-50. 129 CASTRO, Afonso de. A poética de Manoel de Barros: a linguagem e a volta à infância. Brasília: Universidade de Brasília, 1991. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Trad. Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1996. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. Vol. 1. GALVÃO, Walnice Nogueira. Guimarães Rosa. São Paulo, Publifolha, 2000. ______. Rapsodo do sertão: da lexicogênese à mitopoese. Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo, ano 10, n. 20 e 21, p. 144-186, dez. 2006. GÓMEZ-MARTÍNEZ, José Luis. Teoría del ensayo. 2. ed. México: UNAM, 1992. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2008. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. Campinas: Hedra (Editora da Unicamp), 2006. HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2008. JÚNIOR, Adalberto Müller. Em pleno uso da poesia. In: BARROS, Manoel de. Matéria de poesia. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. orelha do livro. LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: tradução e melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007. LINO, Joselita Bezerra da Silva. Dialegoria: a alegoria em Grande Sertão: Veredas e em Paradiso. João Pessoa: Idéia, 2004. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 130 LOBO, Flávio. Pelas veredas do sertão. Carta Capital: política, economia e cultura, São Paulo, ano x, n. 293, p. 12-20, jun. 2004. MARINHO, Marcelo [et al]. Manoel de Barros: o brejo e o solfejo. Brasília: Ministério da Integração Nacional: Universidade Católica Dom Bosco, 2002. MARQUES, Ana Martins. Travessia de linguagens: imagem e escrita em G.S.:V., de Arlindo Daibert. In: DUARTE, Lélia Pereira [et al]. (Org.). Veredas de Rosa II. Belo Horizonte: PUC Minas, CESPUC, 2003. p. 42-47. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Ângela P.; MACHADO, Anna R.; BEZERRA, Maria A. (Org.). Gêneros textuais e ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003. p. 16-33. MENEGAZZO, Maria Adélia. A poética visual de Manoel de Barros. In: JORGE, Carlos J. F. IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Vol. 3. Disponível em: . Acesso em: 29 fev. 2008. MOISÉS, Massaud. Gêneros literários. In:______. A criação literária: poesia. 14. ed. São Paulo: Cutrix, 2000. p. 45-73. ______. Prosa e poesia. In:______. A criação literária: poesia. 14. ed. São Paulo: Cutrix, 2000. p. 74-101. NEVES, Daniela. Trânsitos, transcendências e alegorias da linguagem rosiana. In: DUARTE, Lélia Pereira [et al]. Veredas de Rosa II. Belo Horizonte: PUC Minas, Cespuc, 2003. p. 140- 148. NIGRI, André; BARIL, João Pombo. O nome da Rosa. Bravo!, São Paulo, ano 9, p. 22-33, mar. 2006. NOVIS, Vera. Tutaméia: engenho e arte. São Paulo: Debates (Editora da Universidade de São Paulo), 1989. PAZ, Octavio. A consagração do instante. In: _____. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 51-62. 131 ______. O poema. In:______. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 35-138. ______. Poesia e poema (introdução). In:______. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 15-31. PRIOSTE, José Carlos Pinheiro. A unidade dual: Manoel de Barros e a poesia. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: 2006. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2009. RIBEIRO, Célia. Confidências íntimas na ponta da língua: uma análise do conto Desenredo, de Guimarães Rosa. In: DUARTE, Lélia Pereira [et al]. Veredas de Rosa I. Belo Horizonte: PUC Minas, Cespuc, 2000. p. 122-127. ROUANET, Sérgio Paulo. [Prefácio]. In: BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. Trad., apresentação e notas Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. RÓNAI, Paulo. As estórias de Tutaméia. In: ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras estórias). 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. p. 21-27. ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003. ______.Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. ______.Tutaméia (Terceiras Estórias). 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. SARDUY, Severo. Por uma ética do desperdício. In:______. Escrito sobre um corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 57-79. SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. As margens do inefável: a significação poética dos velhos e aleijados em Guimarães, Luandino e Mia Couto. In: DUARTE, Lélia Pereira [et al]. Veredas de Rosa I. Belo Horizonte: PUC Minas, Cespuc, 2000. p. 117-121. SIMÕES, Irene Gilberto. Guimarães Rosa: as paragens mágicas. São Paulo: Perspectiva, s.d. SOUSA, Henrique Eduardo de. O menino de ontem me plange: a infância da linguagem na poesia de Manoel de Barros. Dissertação de mestrado. Natal: 2002. 132 SOUZA, Ana Santana. Jeremoavo: estrangeiro de si mesmo. In: DUARTE, Lélia Pereira [et al]. Veredas de Rosa III. Belo Horizonte: PUC Minas, Cespuc, 2007. p. 48-53.