1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL – PPGAS/UFRN MESTRADO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL RODOLPHO RODRIGUES DE SÁ “NUNCA DEIXAMOS DE SER ÍNDIO” Educação escolar e experiência na(da) cidade entre os Ramkokamekrá- Kanela Natal – RN 2009 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL – PPGAS/UFRN MESTRADO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL RODOLPHO RODRIGUES DE SÁ “NUNCA DEIXAMOS DE SER ÍNDIO” Educação escolar e experiência na(da) cidade entre os Ramkokamekrá- Kanela Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte das atividades obrigatórias para a obtenção do título de mestre em Antropologia Social. Orientadora: Profª. Drª. Luciana de Oliveira Chianca. Natal 2009 3 RODOLPHO RODRIGUES DE SÁ “NUNCA DEIXAMOS DE SER ÍNDIO” Educação escolar e experiência na(da) cidade entre os Ramkokamekrá- Kanela Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte das atividades obrigatórias para a obtenção do título de mestre em Antropologia Social. Orientadora: Profª. Drª. Luciana de Oliveira Chianca Aprovado em / / BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________________________ Profª. Drª. Luciana de Oliveira Chianca - PPGAS/UFRN (Orientadora) _________________________________________________________________________ Profº. Drº. Edmundo Marcelo Mendes Pereira - PPGAS/UFRN (Examinador interno) _________________________________________________________________________ Profª. Drª. Mércia Rejane Rangel Batista - PPGCS/UFCG (Examinador externo) ________________________________________________________________________ Profª. Drª. Rosa Aparecida Pinheiro – DEPED/UFRN (Suplente) 4 Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Sá, Rodolpho Rodrigues de. “Nunca deixamos de ser índio” : educação escolar e experiência na(da) cidade entre os Ramkokamekrá-kanela / Rodolpho Rodrigues de Sá. – 2009. 237 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, 2009. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Luciana de Oliveira Chianca. 1. Índios - Ramkokamekrá-kanela – Dissertação. 2. Migração – Aldeia indígena - Cidade. 3. Educação escolar indigenista. 4. Representações. I. Chianca, Luciana de Oliveira. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BSE-CCHLA CDU 397(=87) 5 AGRADECIMENTOS Como a elaboração de um trabalho como este se dá ao longo de uma trajetória temporal que envolve uma diversidade de atores sociais, certamente alguns destes não serão aqui lembrados, muito mais pela ocasião do que pela importância. Mas fica aqui meu reconhecimento e agradecimento àqueles que, mesmo não sendo aqui citados, contribuíram afetiva, intelectual e materialmente para esta iniciação cientifica. Neste sentido sou grato a todos que ajudaram e confiaram, direta ou indiretamente, em mim durante este percurso. No entanto, algumas pessoas vivenciaram comigo de maneira mais intensa o transcorrer dessa trajetória. Em primeiro lugar agradeço à professora Luciana Chianca, na qualidade de orientadora, pelo apoio e estimulo intelectual, contribuindo para minha formação em Antropologia Social, e pela sua disponibilidade em aceitar o desafio de orientar um trabalho que trata de um tema que não é seu foco de pesquisa em particular. Quanto ao meu interesse em discutir “cientificamente” questões referentes às sociedades indígenas, devo especial apreço às contribuições da professora Elizabeth Maria Beserra Coelho que, ao ultrapassar os limites da “orientação acadêmica”, tem nos ensinado a ser profissional e “eterno aprendiz” nos caminhos do “fazer antropológico”. Sua amizade é fundamental e seus ensinamentos uma lição de vida dentro e fora da academia. Aos integrantes do Grupo de Estudos “Estado Multicultural e Políticas Públicas”, principalmente àqueles que desenvolveram pesquisas junto aos Ramkokamekrá-Kanela. Durante meu “exílio temporário” em Natal-RN, meus agradecimentos são dirigidos aos professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Devo reconhecimento substancial aos professores com quem cursei disciplinas durante o período do mestrado (Edmundo Pereira, Carlos Guilherme, Eliane Tânia e, é claro, Luciana Chianca), com os quais mantive construtivos debates em sala de aula e fora delas. As importantes contribuições diretas de Edmundo Pereira e Eliane Tânia no exame de qualificação serviram para que eu repensasse a maneira como estava direcionando minha pesquisa. Devo também gratidão aos profissionais que se dispuseram a compor a banca de defesa dessa dissertação. 6 Ainda em Natal-RN é necessário lembrar dos discentes de minha turma de mestrado (2007.1), com os quais tracei diversos e intersos debates teóricos. As conversas que mantive com Augusto Nascimento, principalmente pela proximidade de nossos campos de pesquisa, contribuíram para entender mais a sociedade indígena onde realizei esta pesquisa. Os comentários e vigilância mútuos sobre nossas pesquisas e posicionamentos teóricos certamente fizeram parte de nossa formação acadêmica. Além, é claro, dos momentos de descontração em Natal-RN. Logisticamente em Natal-RN devo ainda agradecer a quatro pessoas em especial. A Ana Elvira (ex-secretária do PPGAS/UFRN), pela atenção a mim dedicada no momento em que participava da seleção do mestrado. A Diego (atual secretário do PPGAS/UFRN), por manter-me informado dos encaminhamentos do PPGAS/UFRN. De grande importância foi o apoio, durante os momentos em que não tinha lugar para “me arranchar” em Natal, de Flávio (“Garrote”) e Wesley (“Bubu”) e de seus familiares, que disponibilizaram suas residências para que eu pudesse terminar parte dos créditos. Agradeço à hospitalidade de Juci, Ernesto e Juciana, sempre amigos, durante minhas estadas em São Luís-MA. Minha estada próxima aos meus interlocutores durante a pesquisa de campo foi mais proveitosa devido ao apoio dos funcionários do Núcleo de Apoio Local Kanela (NALK-FUNAI) e do Projeto Wokrõ, financiado pelo Inter-American Fundation – IAF, que, sob a responsabilidade (inicial) de Jonaton Junior, Seu Júlio e Romênia, possibilitou minha entrada e estada, assim como de outros pesquisadores, na Aldeia Escalvado como instrutor de um Curso de Capacitação para os seus professores (indígenas e não-indígenas). Aos professores índios e não-índios da Aldeia Escalvado, assim como os demais os Ramkokamekrá-Kanela, que como interlocutores em nossa pesquisa, foram a base de sua realização. Destacaria entre os não-índios: Erlane, Silviamar.Lilia, Socorrinha, Ediana e Edjane. Entre os indígenas menciono, por diferentes motivos, os nomes que seguem: Ari Korampey, Rocardo Kutokre, Jaldo Komopat, Jaldo Cothy, Reginaldo Uhoko, Armando Prefet Kapelikó, Raimundinho Paat-Tset, Raimar Rokrainon e Vanildo Kukran. Ao grupo de estudantes Ramkokamekrá-Kanela que tive maior contato: Celso Cohhan, Arlene Kroitxene, Poliana Kwympê, Oziel Iromcukre, Evandro Kapreprec, Franklins Poxy, Abraão Kapreprec, Virgílio Jepej e Raimar Thuaré. 7 Aos funcionários das escolas na cidade de Barra do Corda. Não poderia deixar de mencionar também a contribuição das enfermeiras do Posto de Saúde da Aldeia Escalvado, destacando “Rosa” e Adriana. E também dos Agentes Indígenas de Saúde: Eduardo e Babau, principalmente. Agradeço a Capes pelo apoio financeiro, mediante bolsa de estudos durante o segundo ano do curso de mestrado e pelo financiamento, via convênio PPGAS/UFRN/PPGAS/MN/UFRJ, de minha estada de um mês no Rio de Janeiro, onde pude acessar, no Museu Nacional/UFRJ, alguns referenciais bibliográficos que foram fundamentais ao meu trabalho e estabelecer diálogos informais com parte do quadro docente do departamento de Antropologia Social desta instituição. A todos com quem me relacionei e que contribuíram para o meu crescimento intelectual e moral. Além, é claro, daqueles que me forneceram a serenidade e perseverança para superar as dificuldades do “exílio temporário” e, principalmente, do “retorno deslocado”. 8 A minha mãe, Maria Vilani Rodrigues de Sá e meus tios, José Ribamar Rodrigues de Sá e Maria Ivaneide Rodrigues de Sá, pelo amor dedicado em todos os momentos, pelo apoio e respeito incondicionais à minha escolha profissional e pelos “puxões de orelha” quando necessários. A Danielle Castro da Silva, minha namorada, pelo insubstituível amor e apoio afetivo, além das discussões durante a elaboração deste trabalho. A Émile Emanuelle Rodrigues de Sá (“Baduzinha”), minha sobrinha, simplesmente por existir. 9 “O que são esses mortos que vivem? É extremamente difícil, para não dizer impossível, deles fazermos uma idéia satisfatória. As representações variam de uma sociedade para outra, conforme sua estrutura e seu grau de desenvolvimento. Além disso, quase em todo lugar, o recém-falecido passa, mais ou menos depressa, por uma série de estados transitórios, antes de alcançar uma condição relativamente definitiva, de onde sairá, seja para uma nova morte, seja para um retorno ao mundo dos vivos. Freqüentemente, essas representações serão inconciliáveis entre si: sabemos que elas são fortemente emocionais, que a mentalidade primitiva se preocupa muito pouco com a coerência lógica, e que, finalmente, não encontramos em nenhuma sociedade um conjunto de representações que sejam do mesmo tempo e que constitua um sistema. Tudo leva a pensar, ao contrário, que existem as extremamente antigas, e a esse primeiro fundo outras vieram se juntar, no decorrer de séculos, pois eram mais ou menos compatíveis com as primeiras. O que constatamos hoje é uma espécie de amálgama, um magma, tão difícil de analisar para nós como a estratificação de um terreno do qual conhecemos apenas a superfície” (LÉVY-BRUHL, 2008, p. 69-70). 10 RESUMO Neste trabalho analiso a situação dos Ramkokamekrá-Kanela que migram com a finalidade de estudar fora da aldeia. Para tanto, utilizo-me de uma análise da sua organização social e de seus processos históricos. Procuro mapear parte das políticas de “educação escolar indigenista”, entendidas como instrumento oficial de “uniformização” de diferenças, e o tipo de relação destas com a migração aldeia-cidade. Proponho uma leitura da migração de estudantes indígenas para centros urbanos a partir da organização social da sociedade em questão, assim como de suas narrativas e representações. Esboço uma interpretação desse processo como decorrente também da dinâmica interna da sociedade indígena pesquisada e não só como resultado de ações externas. A pesquisa centra-se em casos experimentados pelos Ramkokamekrá-Kanela que, saindo de sua aldeia (Aldeia Escalvado), deslocam-se para estudar em centros urbanos, principalmente em Barra do Corda – MA. Palavras – Chave: Ramkokamekrá-Kanela, migração aldeia indígena-cidade, educação escolar indigenista e representações. 11 ABSTRACT In this work I analyse the Ramkokamekrá-Kanela situation that migrate with the purpose to study out of the village. For this, I use an analysis of their social organization and their historic process. I intend to map out part of the “indigenist school education” policies, understand like an “uniformization” official instrument of differences, and the kind of this relationship with the migration village-city. I propose a students migration reading to the urban centers from the social organization of the society in focus, as their narratives and representation. I draft an interpretation of this process like ensued also the indigenist society researched internal dynamic and not only like resulted of external actions. The research focus in experimented cases by the Ramkokamekrá-Kanela that, coming out their village (Escalvado Village), desplace theirselves to study in urban centers, mairly in Barra do Corda – MA. Keywords: Ramkokamekrá-Kanela, Indigenist village-city migration, indigenist school education and representations. 12 LISTA DE ILUSTRAÇÕES p. Foto 1 - “Ramkokamekrá-Kanela dançando em abril de 2007”.............................. 66 Foto 2 - Reunião no pátio da aldeia Escalvado em 2006........................................... 66 Mapa 1 - “The Timbira and their neighbors, past and present”………………… 68 Gráfico 1 - Esquema geral de uma aldeia “Timbira”............................................... 70 Foto 3 - Aldeia Escalvado em 1970.............................................................................. 71 Gráfico 2 - Croqui da Aldeia Escalvado..................................................................... 71 Quadro 1 – Designação das metades entre os Ramkokamekrá-Kanela.................. 76 Quadro 2 – Sociedades Indígenas do Maranhão....................................................... 95 Mapa 2 - Terras Indígenas do Maranhão em 2003................................................... 96 Quadro 3 – Estimativa populacional dos Ramkokamekrá-Kanela entre 1919- 2008................................................................................................................................ 97 Mapa 3 - TI Canela e região circunvizinha................................................................ 98 Mapa 4 - “The Canela region”.……………………………………….....………… 99 Foto 4 – Centro de Ensino Indígena General Bandeira de Melo – CEIGBM........................................................................................................................ 136 Foto 5 - CEIGBM (julho/2008).................................................................................... 137 Mapa 5 - Barra do Corda no Maranhão.................................................................... 160 Quadro 4 - Atividades desenvolvidas na Aldeia Escalvado por indígenas que estudaram em Barra do Corda (julho/2008).............................................................. 191 Quadro 5 - Estudantes Ramkokamekrá-Kanela em Barra do Corda até junho de 2008........................................................................................................................... 200 Foto 6 – “Casa do Estudante” em agosto de 2008...................................................... 202 Foto 7 – Banheiros........................................................................................................ 202 Foto 8 – Fogão de Barro............................................................................................... 202 Quadro 6 – Relação de Limpeza da “Casa do Estudante”....................................... 203 Foto 9 – Casa de Severo Roncor.................................................................................. 204 Foto 10 – Rua da casa de Severo Roncor.................................................................... 204 Foto 11 – Casa de Adriana Konikrê............................................................................ 204 Foto 12 – Rua de uma casa alugada............................................................................ 204 13 Quadro 7 – Uma síntese do percurso de Awkê.......................................................... 215 14 LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES ABA – Associação Brasileira de Antropologia ABANNE – Reunião de Antropólogos Norte-Nordeste ACI – Área Cultural indígena AIS – Agente Indígena de Saúde BR – Estrada de Rodagem Federal CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEB – Câmara de Educação Básica CEIGBM – Centro de Ensino Indígena General Bandeira de Melo CFB – Constituição Federal Brasileira CNE – Conselho Nacional de Educação CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CTI – Centro de Trabalho Indigenista CVRD – Companhia Vale do Rio Doce EUA – Estados Unidos da América FAB – Força Aérea Brasileira FUNAI – Fundação Nacional do Índio GDH – Gerência de Desenvolvimento Humano GT – Grupo de Trabalho HCBP – Havard Central Brazil Project IAF – Inter-American Fundation MA – Maranhão MEC – Ministério da educação e do desporto MJ – Ministério da Justiça MN – Museu Nacional NALF – Núcleo de Apoio Local da FUNAI NALK – Núcleo de Apoio Local Kanela NALMAP – Núcleo de Apoio Local Mardônio Amorim Pompeu PPGAS – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social PPGCS - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais 15 PPGCSo – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas RN – Rio Grande do Norte SEEDUC – Secretaria de Educação SIL – Summer Instituto of Linguistics SNE – Sistema Nacional de Educação SPI – Serviço de Proteção ao Índio SPILTN – Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais TI – Terra Indígena UFCG – Universidade Federal de Campina Grande UFMA – Universidade Federal do Maranhão UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro 16 SUMÁRIO p. 1 – INTRODUÇÃO....................................................................................................... 18 1.1– Localizando a problemática................................................................................. 21 1.2– Do campo e da metodologia................................................................................. 24 1.2.1 – Outros aspectos da produção e seleção dos dados.............................................. 31 1.3 - Da divisão do trabalho......................................................................................... 37 2 – LOCALIZANDO O AUTOR: No limite da “autoridade” e da “consagração discursiva”..................................................................................................................... 38 2.1 – “Pintando objetos” e reconhecendo dívidas: as “escolhas” e “sujeições” nos “campos de consagração”...................................................................................... 41 2.2 – “Pesquisando em casa” e refletindo em todo lugar: situação liminar, pré- noções e autoridade ...................................................................................................... 45 3 – COMPREENDENDO OS RAMKOKAMEKRÁ-KANELA: entre classificações e (re)conhecimentos............................................................................... 59 3.1 – O Tronco Lingüistico Macro-Jê......................................................................... 61 3.2 – A Família “Timbira”........................................................................................... 65 3.3 – Aspectos organizacionais de uma sociedade indígena...................................... 70 3.4 – As narrativas míticas........................................................................................... 81 3.5 – Algumas formas de estabelecer “alianças”........................................................ 89 3.6 - O contexto interétnico.......................................................................................... 95 4 – “PISANDO EM ESPINHOS”: uma “história social” da educação escolar indigenista...................................................................................................................... 109 4.1 - Coerção Física e Simbólica: Estratégias de colonização e educação escolar indigenista...................................................................................................................... 111 4.2 – O SPI e a FUNAI: alterações em torno da “assimilação natural” explícita... 117 4.2.1 – Educação Escolar entre os Ramkokamekrá-Kanela........................................... 126 4.2.2 – A escola da Aldeia Escalvado: aspectos recentes............................................... 133 4.3 – A estratégia multicultural e o “respeito à diferença”: alterações em torno da “assimilação natural” implícita.............................................................................. 138 4.3.1 – A estratégia multicultural no Maranhão: aspecto legal...................................... 146 4.4 – A “Escola Timbira”: migrações contidas e incentivadas................................. 148 5 – MIGRAÇÕES ALDEIA INDÍGENA-CIDADE: uma complexa rede de interpretações................................................................................................................ 156 5.1 – Barra do Corda: histórico de tensões interétnicas............................................ 158 5.2 – Do atendimento logístico: diversidade cultural e estudantes indígenas migrantes em Barra do Corda..................................................................................... 165 5.3 – Estudantes indígenas migrantes: representações e identificações................... 168 5.4 – Os Ramkokamekrá-Kanela e as experiências na(da) cidade: trajetórias e representações............................................................................................................... 172 5.4.1 – Entendendo a migração aldeia indígena-cidade entre os Ramkokamekrá- 17 Kanela............................................................................................................................. 175 5.4.2 – De quem sai, de quem fica e de quem volta: algumas explicações êmicas........ 179 5.5 – Até junho de 2008: para uma contextualização mais recente da presença de estudantes Ramkokamekrá-Kanela em Barra do Corda..................................... 195 6 – PARA CONCLUIR, INQUIETAÇÕES: uma leitura da relação com a alteridade a partir da narrativa sobre Awkê............................................................. 209 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................ 218 SITES PESQUISADOS................................................................................................ 228 ANEXO 1....................................................................................................................... 229 ANEXO 2....................................................................................................................... 231 18 1 - INTRODUÇÃO Minha iniciação nas discussões sobre as sociedades indígenas teve como ponto chave a disciplina “Questão Indígena” que fiz durante minha graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Maranhão. Meu interesse pelas questões que envolvem “índios” e “não-índios” também pode ser percebido como decorrente da minha vivencia antes da graduação na cidade de Barra do Corda, já que sou nativo deste lugar. Esta cidade é conhecida por ser o palco de intensos contatos com populações indígenas, mas precisamente com os Tenetehara-Guajajara, Apanjêkra-Kanela e Ramkokamekrá-Kanela1, sendo estes últimos o campo empírico dessa dissertação. Desde a graduação, minhas preocupações dizem respeito à saída de “índios” para estudar fora da aldeia, o que pode ter sido despertador pelas situações escolares em que dividia salas de aula com “índios” ainda em Barra do Corda – MA. As pesquisas que desenvolvi antes do mestrado não possibilitaram um maior aprofundamento, provavelmente por não ter construído bem o “objeto”. Na graduação tentei compreender as relações interétnicas nas escolas em Barra do Corda, abordando as diferentes sociedades indígenas que por lá transitam. Todavia, foram importantes por terem possibilitado a construção de um panorama geral da situação de migração e a conseqüente definição do interesse de pesquisa. Neste trabalho procuro compreender como os Ramkokamekrá-Kanela significam suas experiências na (da)cidade. A aproximação com esta população indígena se intensificou em 2003, quando fiz minha primeira viagem à sua aldeia, Aldeia Escalvado. Neste momento acompanhava um outro pesquisador (Jonathon da Silva Junior) que desenvolvia sobre as relações entre estes “índios” e os sertanejos da região. Desde então, meu interesse esteve mais voltado para pensar os “índios” diante da situação de contato. Logo é importante tentar entender tanto o contexto interétnico como as 1 Faço uso dessa grafia por entender que esta agrega elementos que tornam menos confusa a identificação dos sujeitos que me refiro. Na grafia tentou-se respeitar a norma culta da “Convenção para a Grafia dos Nomes Tribais”, estabelecida pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 14 de novembro de 1953, que por considerar, conforme Ricardo (2001, p. 67), o “q” e o “c” letras complicadas, devido a sua sonoridade, sugere que sejam evitadas. 19 representações da comunidade sobre os eventos. É a partir dessa lógica que tento abordar a problemática do presente trabalho. O contexto que experimentei em meus primeiros contatos fizeram meu interesse se aguçar para as questões referentes a educação escolar e os “índios”, tomando como foco a migração dos Ramkokamekrá-Kanela para estudar na cidade de Barra do Corda. Esse trabalho trata disso, de tentar perceber que motivações existem para a saída da aldeia e que implicações isso trás para os indivíduos que vivenciam tal experiência ou para aqueles que mantém contato com os que migram. Tento assim explicar como a migração aldeia indígena-cidade é atravessada pelo processo de escolarização, ao qual as sociedades indígenas foram e são submetidas, mas também pela filtragem que essas experiências são submetidas pelas crenças e representações advindas de suas heranças culturais e históricas. Sendo assim. o presente trabalho pretende fazer uma discussão sobre a situação de migração experimentada pelos “índios” em direção aos centros urbanos. Objetiva entender esse processo no que se refere aos estudantes que saem da aldeia para estudar. Neste sentido, procuro compreender a situação dos Ramkokamekrá-Kanela que se deslocam para Barra do Corda, tomando como referência a dinâmica interna da sociedade Ramkokamekrá-Kanela, percebida pela análise de sua organização social e de suas crenças e como processam a construção da idéia de “necessidade” da educação escolar perpassada pelas políticas publicas (de educação escolar), assim como pelas experiências que vivenciam na instituição escolar. Para tanto faz-se necessário entender como se deu e vem se dando a relação entre “índios” e “não-índios”, principalmente no que diz respeito a atuação estatal. Considero que desde o início da colonização do Brasil, historicamente situada no século XVI, a relação entre os “não-índios” e as populações aqui já presentes, as quais foram nomeadas genericamente de “índios”, tem sido marcada por tensões e impasses. Estas tensões, por parte do Estado, caracterizam-se pela alternância entre tentativas integracionistas e homogeneizantes (via imposição física ou imposição simbólica) com a retórica do respeito à diversidade étnica. Por parte dos “índios”, os impasses alternam iniciativas de resistência à imposição e o desejo de usufruir de bens advindos dessa imposição/ assimilação. 20 É importante perceber que esta relação pode ser caracterizada a partir do que Balandier (1976, p.150) chamou de situação colonial, que diz respeito a o “relacionamento de duas entidades sociais por meio da qual se enfrentam duas civilizações”, que inseridas em um mesmo contexto territorial, podem ser entendidas como amplamente distanciadas no que diz respeito às formas de atuação e percepção do mundo. Essa distância pode ser observada em discursos indígenas como o de um professor Tenatehara-Guajajara descrito por Coelho (2006, p. 7): “(...) para mim, tudo em língua portuguesa tem que vir entre aspas porque tudo é estrangeiro”. A grande variedade de documentos referentes às sociedades indígenas elaborados pelo Estado dá um pouco a dimensão do que denomino aqui de tentativas de homogeneização. Têm-se assim o Diretório de Pombal (Colônia - 1755), o Regimento das Missões (Império - 1845), o Estatuto do Índio (República - 1973) e, mais recentemente, a Constituição Federal Brasileira de 19882 - CFB/1988, que são documentos oficiais que fornecem diretrizes sobre a maneira como os “índios” devem ser “assistidos” no Brasil. Dentre estes, priorizo, nesta análise, aqueles que tratam mais especificamente da educação escolar para “índios”, por constituírem um dos instrumentos mais eficazes de coerção simbólica, ao sugerir que incitam o distanciamento de “índios” de suas aldeias, já que criam um certo “fetiche” acerca da escrita alfabética, que é relacionada a “melhorar de vida” e assim poderia ser potencializada na cidade3. As tensões no interior dos debates que antecederam a legitimação no Brasil dos direitos específicos e diferenciados intensificaram-se na medida que alguns setores da sociedade civil, passaram, principalmente após a redemocratização do Brasil, a advogar a favor da “causa indígena”. Isso ajudou na elaboração, após 1988, de políticas específicas de educação escolar voltadas para os “índios”. Todavia, mesmo diante desse contexto, a tensão no discurso oficial permanece. A vinculação da educação escolar indigenista ao Sistema Nacional de Educação, estabelecida em 1991 (BRASIL, 1991), deixa explícito que o respeito à diferença tem limites impostos pelo próprio Estado, limites estes que propiciam 2 Esta constituição, mesmo afirmando o respeito às organizações próprias dos povos indígenas, insere a educação indigenista no Sistema Nacional de Educação. 3 Trata-se apenas de prioridade, já que reconhecemos e alguns discursos de nossos interlocutores afirmam isso, que não é só por causa da educação escolar que há o deslocamento aldeia indígena-cidade. Porém, em nossas conversas em campo, essa justificativa é a primeira e mais constantemente acionada. 21 o embate entre o discurso oficial e outras posições que advogam maior flexibilidade na implementação da educação escolar para as sociedades indígenas. Esse panorama da educação escolar tem importantes resquícios em relação à problemática desse trabalho, pois tem também influência na constante saída de “índios” para estudar fora das aldeias. 1.1 – Localizando a problemática “só se conhece o que se tem interesse de conhecer, entende-se apenas o que se precisa entender, a necessidade cria o conhecimento: só se tem interesse intelectual por um objeto social com a condição de que esse interesse seja levado por outros interesses, com a condição de que encontre interesses de outra espécie” (SAYAD, 1998, p. 16). Mediante o problema que tem me intrigado desde meus primeiros contatos com a temática indígena, referente à saída4 de sujeitos de suas aldeias para estudar em cidades e como essa situação é equacionada pelos agentes que dela fazem parte, considero importante tentar apreendê-la por seus aspectos internos e externos, já que atuam simultaneamente. Sendo assim, a compreensão dessa dinâmica passa pelo desafio de observá-la simultaneamente através da atuação de forças peculiares à sociedade indígena em questão, assim como do contato interétnico pelo qual esta vem passando. Um estudo mais aprofundado da dinâmica interna de uma sociedade indígena requer, como a etnologia indígena em geral já demonstrou, uma estada em campo de longa duração, o que não foi possível operar durante o curto tempo do mestrado. Diante dessa dificuldade e por considerar ser imprescindível a este problema entender a dinâmica interna dos “índios” que pesquiso, empreendi uma revisão da literatura referente ao seu contexto etnográfico, o que permitiu também contextualizar historicamente as relações de contato interétnico que se estabeleceram no Maranhão, em geral, e no centro desse estado, em particular, área da sociedade indígena em questão nessa dissertação. 4 É notório que a saída de indígenas de suas aldeias em direção a cidades ocorre por diferentes motivações. Por exemplo: receber o pagamento do salário, receber a aposentadoria, ser atendido em hospitais, fazer compras, entre outras. Segundo Fazito (S/d), estes eventos seriam classificados como “deslocamentos”, pois não há necessidade de uma longa ausência do lugar de origem. A questão dos estudantes indígenas, segundo a mesma lógica, parece-nos caracteriza-se como “migração”, já que implica (e é representado) em uma saída, uma estada (liminar) e um retorno (físico ou não). Em suma, a “migração” está sendo representada como um “rito de passagem”, sendo assim ela atualiza e dá sentido coletivamente ao ato do migrante. 22 Ao longo dessa leitura percebi que os estudos de populações indígenas no Brasil estiveram, geralmente, divididos entre o que se pode chamar de “estudos de aculturação” e de “etnologia indígena”, sendo o primeiro mais voltado às questões do contato colonial com os “não-índios” e suas conseqüências, as quais na maioria das vezes indicavam diagnósticos fatalistas em relação aos indígenas e seu destino, e a outra mais interessada em entender como os indígenas, por meio de suas crenças e perspectivas, procuram atualizar e significar as situações de interação, nas quais não necessariamente envolvem “não-índios”, já que trata-se de contato com a alteridade, a qual pode ser manifestada frente a outras diversidades de grupos humanos e não-humanos. O empreendimento de tentar dá um outro caminho aos estudos sobre “sociedades indígenas” (RAMOS, 1986) no Brasil, o qual não privilegiaria apenas os aspectos econômicos e a perspectiva da sociedade nacional, é iniciado, como afirma DaMatta (1987), em 1964 por Roberto Cardoso de Oliveira, com o trabalho “O Índio e o Mundo dos Brancos”. DaMatta (1987, p. 202) assim se refere: Não tenho dúvidas de que a revisão mais crítica das teorias de contato – ou teorias da aculturação – elaboradas no Brasil e fora dele, foi aquela produzida por Roberto Cardoso de Oliveira no seu livro O Índio e o Mundo do Brancos (1964). Ela não será repetida aqui, exceto para indicar como vejo sua tônica inovadora em relação ao que dominava a etnologia Brasileira nesta época. Quero me referir ao fato de que, até então, a dinâmica do contato era percebida através da dimensão econômica, e somente pelo lado da sociedade nacional brasileira, vista como desmembrada em frentes de expansão. A interpretação que DaMatta (1987) dá à obra expressa na citação acima contribui para realçar minha argumentação, na medida em que entendo ser necessário perceber a situação de contato/interação entre “índios” e “não-índios” como sendo potencialmente reorganizada pela “ordem tribal” (OLIVEIRA, 1996) ou pela organização social nativa. Neste sentido, o contato dos indígenas com elementos novos ou da sociedade nacional, como mercadorias industrializadas ou a própria instituição escolar, não poderia ser equacionado apenas pela lógica fatalista da aculturação, sob a qual os indígenas seriam transfigurados ou deixariam de ser “índios”5. É necessário atentar que a lógica 5 A utilização que faço da categoria “índios” não desconsidera sua construção histórica. Estou ciente que “o trauma provocado no europeu (ibérico) pelo encontro de uma forma tão radicalmente distinta de humanidade se consolidou na construção de uma categoria – o ‘índio’ – evidente e auto explicativa, inteiramente infensa à história: expressão completa de simplicidade, do passado e da primitividade. É essa categoria ‘plena, redonda 23 organizacional nativa é aqui entendida como o elemento primeiro de significação, ou seja, é a partir dela que a própria situação de interação é significada. Com relação ao contato dos Tükúna com uma outra forma de produção, Oliveira (1996, p. 111, grifo meu) alerta: Com a integração dos Tükúna na economia regional, fruto da expansão da ou das sociedades nacionais (brasileira, peruana e, mais recentemente, colombiana), a produção indígena começou a ser comercializada, adquirindo com isso uma nova dimensão. A mandioca e o peixe deixaram de ser produzidos na quantidade suficiente para o consumo doméstico (ou mesmo tribal), passando essa produção a ser incrementada, estimulada pela perspectiva de troca pelas mercadorias do homem branco. Transformava-se, assim, em mercadorias. Entretanto, o processo de produção envolvido nesses produtos jamais chegou a modificar substancialmente a organização tradicional do trabalho indígena. Deu-se não uma modificação na natureza do trabalho, mas somente um aumento da quantidade desse mesmo trabalho6. Parte dos apontamentos do autor citado acima, que nos parece indicar elementos que dão forma e força à eficácia da organização nativa indígena frente ás investidas “nacionalistas”, são evidenciados em outras partes de sua obra. Destaco a passagem onde o autor ilustra essa perspectiva. Lê-se em Oliveira (1996, p. 111) que: Por mais que o sistema mercantil haja penetrado na economia Tükúna deve-se acentuar, não obstante, que a sociedade indígena longe de se “mercantilizar”, reteve, ao contrário, seu caráter tribal. Esta breve contextualização serve de alerta no sentido de considerar pertinente a necessidade de, ao pesquisar situações que envolvam sociedades indígenas em contato com “não-índios”, atentar sobremaneira para os aspectos da organização social nativa, pois assim podem emergir elementos que, ao se distanciarem reflexivamente da lógica da sociedade nacional, contribuem para compreender como estes sujeitos, doravante considerados passivos frente aos “processos de inculcação intercultural” (LARAIA e DAMATTA, 1978, p. 202), estão processando/significando suas experiências. É a partir dessa conjuntura teórica que considero importante perceber a situação de migração experimentada pelos estudantes Ramkokamkerá-Kanela. e lisa’, saturada de culpas e seduções, que o senso comum repete e consagra incessantemente” (OLIVEIRA, 1999, p. 07). 6 Sempre que achar necessário chamar atenção para alguma coisa utilizarei a opção “sublinhado”. Outras formas de destaque provavelmente serão as dos autores que citaremos. 24 1.2 – Do campo e da metodologia Neste momento tenho a intenção de relativizar a idéia de “campo”7, entendida como aquele lugar distante e diferenciado, onde o pesquisador iria lá apenas para “colher” ou “constatar” informações que a priori o estariam esperando. Como assinala Gupta e Ferguson (1997, p. 01): The pratice of fieldwork, together with its associated genre, etnhography, hás perhaps never been as central to the both intellectual principles and professional practices. Buscarei, a partir do percurso de pesquisa que vivenciei, traçar um panorama geral dos impasses e surpresas que trazem considerável contribuição à investigação. Neste sentido utilizarei termos como “locais” para indicar que não se trata de uma pesquisa em apenas um lugar, o qual seria fechado em si mesmo e estático, mas trata-se de entender, como sugere Hannerz (2003, p. 210), que o pesquisador se depara com um cenário mais complexo, de deslocamentos e fluxos, mas em que precisa-se identificar os centros de irradiação. Como a problemática desse trabalho refere-se à analise da situação de estudantes Ramkokamekrá-Kanela que se deslocam de suas aldeias para estudar em centros urbanos, buscando compreender o significado que esse processo adquire em diversos contextos, faz- se necessário atentar para algumas questões: porquê pesquisar essa situação? Porquê essa sociedade indígena? Porquê buscar compreender este caso de Barra do Corda? Minha idéia inicial de investigação não era essa. Objetivava fazer uma pesquisa ”clássica” em relação aos Apanjêkrá-Kanela. Essa pretensão era decorrente de dois motivos principais: a falta de estudos específicos sobre este grupo8 e o encantamento que nutri por alguns textos específicos em etnologia indígena9. Não deu certo fazer tal pesquisa. Por quê? Os motivos são vários, mas o fundamental foi justamente o que se refere à operacionalidade dessa pesquisa no Maranhão, já que fazer pesquisa deste tipo com estes grupos implica dispor de recursos a mim não disponíveis. 7 A não problematização dessa da idéia de “campo” leva a eu ser constantemente interrogado, quando digo que “vou a campo”, se fui à aldeia, já que faço pesquisa junto a povos indígenas. 8 No 6º período de graduação em Ciências Sociais fiz uma pesquisa sobre este grupo, a qual foi apresentada como trabalho de conclusão do curso “Questão Indígena”, ministrado pela Profª. Drª.; Elisabeth Maria Beserra Coelho, na Universidade Federal do Maranhão. 9 Ver Vidal (1977) e Melatti (1978). 25 Diante da impossibilidade de levar a diante esse projeto inicial, chamou-me a atenção a situação dos “índios” fora das aldeias. Essa situação a meu ver coadunaria “interesse” e “possibilidade”, visto eu ser nativo de Barra do Corda10. A situação mais viável para eu pesquisar pereceu dizer respeito ao caso dos estudantes indígenas na cidade, já que tive contato direto com alguns desses alunos ainda enquanto estudante de nível fundamental e médio em Barra do Corda, além de alguns parentes que atuavam em escolas da cidade. Neste sentido, a tradicional relação entre pesquisador (envolvendo povos indígenas) e FUNAI (Fundação Nacional do Índio), no que diz respeito ao pedido de autorização, não foi o passo mais imediato, já que achava não ser necessário por se tratar de “índios” em cidades. Essa dificuldade ou falta quase que completa de comunicação com o órgão acima citado trouxe alguns inconvenientes na pesquisa (no período da graduação), impossibilitando a apreensão de dados quantitativos importantes para nossa pesquisa, já que minha entrada na aldeia, em certas circunstâncias, foi negada. Essas circunstâncias passaram a inquietar-me sobre como se daria minha entrada nas aldeias. A entrada no PPGAS/UFRN exigiu a definição da sociedade indígena que seria a base de minha investigação. Neste sentido, no meu caso, teve relevante importância o inicio das atividades do “Projeto Wokrô”11, o qual atuaria junto aos Ramkokamekrá- Kanela. Esse projeto foi inicialmente coordenado por um cientista social que fez parte do grupo de pesquisa “Estado Multicultural e Políticas Públicas” da UFMA, grupo que faço parte e que estava como um dos consultores do projeto. Neste sentido, a decisão pelos Ramkokamekrá-Kanela foi circunstancial/logística, já que em meu caso adiantou os trâmites e burocracias da FUNAI para autorizar a entrada de pesquisadores em “terras indígenas”. As discrepâncias entre as pretensões e os limites impostos pelo tempo também fazem parte da pesquisa. O tempo de fazer pesquisa e como fazer é uma discussão que não se encerra, já que cada situação investigada requer mecanismos específicos para tal fim. 10 Um estudo mais geral sobre índios e não-índios em Barra do Corda resultou na monografia de minha autoria, intitulada “Ser ou não ser”: esta é a questão? Estudo das relações interétnicas entre indígenas e não- indígenas em centro urbanos (SÁ, 2006). 11 O Inter-American Fundation – IAF foi a instituição que financiou esse projeto. 26 Estes mecanismos são variáveis, porém é importante salientar que em antropologia dois elementos parecem ser essenciais: o tempo de pesquisa e o que pesquisar. Embora não seja possível prever que tempo seria o ideal para se fazer uma boa pesquisa, faz-se necessário estabelecer algumas diretrizes para nortear um trabalho, o qual não pode ficar, como entendemos sugerir Ellen (1984), simplesmente à mercê das circunstâncias encontradas, as quais podem fazer com que as informações importantes para a problemática investigada sejam perdidas. No meu caso específico de pesquisa os checklists elaborados bem gerais, não condiziam com questionários ou roteiros escritos, mais os diálogos com os interlocutores foram pautados por temas que geralmente eram iniciados por mim. O exemplo maior disso foi quando ao ser chamado para ministrar uma capacitação na Aldeia Escalvado em julho de 2008 ter, entre as temáticas a disposição, enfatizado questões que envolvem migração, educação escolar e representações. No que se refere ao tempo, não há como afirmar que a maior quantidade deste implica maior qualidade de informações para certos tipos de pesquisa, já que eventos dramáticos podem simplesmente ocorrer em um outro momento. Isso não significa que quando “nada acontece” (BECKER, 2007), nada deva ser registrado, pois sempre algo está acontecendo. Lê-se em Becker (2007, p. 130) que: Contaminado pelo estado de espírito deles, conclui que nada acontecia e, portanto, nada havia a fotografar. Um dia dei-me conta de que não podia ser verdade que nada estivesse acontecendo. Alguma coisa sempre está acontecendo, apenas não parece digna de nota. (...). Desse modo, propus a mim mesmo a tarefa de fotografar o que estava acontecendo quando nada estivesse acontecendo. Como não é de surpreender, muita coisa ocorria quando nada estava acontecendo. De toda maneira é pertinente perceber que estar muito tempo junto a centro de irradiação de sua pesquisa pode levar o pesquisador a se aproximar de tal maneira destes que naturaliza eventos essenciais à compreensão. A necessidade da longa duração da permanência do pesquisador em um determinado local, onde definiu como “seu campo”, evidenciou-se nos anos de legitimação da antropologia como ciência, que seria seu elemento definidor e diferenciador. Lê-se em “Guia Prático de Antropologia (1978, p. 50)” que um dos elementos da pesquisa antropológica seria a “longa permanência [do pesquisador] numa comunidade”. No entanto, 27 este elemento não é definidor da densidade dos “dados”. Essa atenção é explicitada em Evans-Pritchard (2005, p. 250): O fato de o missionário ter estado com o povo por muito tempo nada prova: o que conta é a maneira e o modo da residência; é preciso também saber se Deus lhe deu, entre outras bênçãos, o dom da inteligência. As experiências etnográficas por mim vivenciadas em muito se assemelham aos dilemas acima mencionados. Como se perceberá a “produção dos dados” (ELLEN, 1984) que deram origem a este trabalho não ocorreu em apenas um lugar. Transitei12 por diversos espaços e tracei diálogos com diversos agentes13. Desses momentos o que se tira de ensinamento é a necessidade de registrar o máximo possível de informações. Como assinala Becker (2007, p. 130), se não é possível ao pesquisador prestar atenção “a todas as coisas que acontecem nas situações que estudam”, que faça o exercício de mapear o máximo das coisas que percebe. À densidade de dados por mim produzidos em julho de 2008 na Aldeia Escalvado, circunscrito ao período do mestrado14, só se compara à experiência que tive em São Luís e Barra do Corda no primeiro semestre de 2008, a qual merece uma reflexão particular, principalmente por ter se caracterizado por dificuldades que abriram outros espaços para a “produção dos dados”. Neste momento mantive contatos com funcionários de órgãos públicos e com indígenas, assim como executamos “observações diretas” da situação pesquisada. Em São Luís – MA destaco alguns eventos. A realização em abril da “Semana dos Povos Indígenas no Maranhão/200815” foi importante, já que não se comentou nada sobre a temática especifica que pesquiso, a não ser quando intervi. Identificando-me como “estudante de mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte”, eu interrogar os componentes da mesa sobre a situação dos “índios” que estudam fora da aldeia. Os discursos, em geral, apontaram para a situação de penúria que vivenciam, ou seja, para a situação logística. O discurso de Silvia Krikati foi a único que ponderou 12 FUNAI, Secretarias de Educação, Casas de estudantes, casas particulares, aldeia e cidades. 13 Índios, não-índios, lideranças, professores, alunos, indigenistas, antropólogos etc. 14 A referencia ao período do mestrado indica que outros dados foram produzidos em outros períodos de nossa vivência acadêmica. 15 Realizada no Auditório João do Vale (São Luís – MA). 28 elementos acerca da representação desses processos, afirmando “ser necessário que alguns ‘índios’ passem por isso para poder defender sua comunidade”. Em Barra do Corda o primeiro passo tomado foi tentar retomar o contato com o NALK (Núcleo de Apoio Local Kanela), no intuito de formalizar minhas intervenções frente aos Ramkokamekrá-Kanela. A visita ao cumpriria um ritual de formalização (informal) de minha presença em Barra do Corda executando uma pesquisa frente a “índios” jurisdicionados por este órgão. A formalização da estada entre os indígenas frente ao “órgão tutelar oficial” é algo de importância fundamental, mas que resolve simplesmente questões burocráticas, pois a formalização frente aos “índios” se dá, efetivamente, nas relações face-a-face nutridas ou saturadas no cotidiano da pesquisa. No núcleo da FUNAI em questão não foi possível adquirir “dados” formais (quantitativos) sobre os indígenas fora da aldeia. Essas informações não estavam disponíveis, assim como não existem na FUNAI de São Luís-MA. Começava aí a parte não tão difícil, porém bem trabalhosa; o mapeamento dessa situação. Nesse período, os contatos com nossos interlocutores se deram logo no NALK. Foi com Ari Korampey Canela, lotado no momento como “professor indígena” pela SEEDUC, mas que atua como “fiscal” dos indígenas da Aldeia Escalvado que estudam fora da aldeia, que estabeleci um dialogo mais intenso. Este agente, que já conhecia de outros eventos16, e que se referia a mim como “da universidade”, convidou-me para participar de uma reunião que aconteceria na “Casa do Estudante” em Barra do Corda no dia 28/05/2008. Aceitei o convite por parecer uma boa oportunidade de reentrada na “Casa do Estudante”, já que fazia um bom tempo que não a visitava. Fisicamente, a estrutura da casa se conservava, porém ocorreram mudanças nos seus moradores se comparados à última vez que lá estivemos. Essa mudança se coloca como um constante desafio, pois precisaria ser “aceito” novamente pelos moradores da casa. A “aceitabilidade” (TONKIN, 1984, p. 219) é tema importante na literatura antropológica, já que se faz ou se torna necessária para o empreendimento investigativo. Porém, geralmente, a percepção desta é que ela deve ser permeada por “boas relações”. Alguns acontecimentos ilustram a relevância da análise da maneira como as relações se dão. 16 Em um outro momento que tive contato com Ary Korampey, I módulo da capacitação do Projeto Wokro, o mesmo reclamou excessivamente sobre pesquisadores, afirmando que “só pesquisavam, saiam para ganhar dinheiro e não retornavam nada para a aldeia”. Assim, seria pertinente ter cautela. 29 Na reunião que ocorreu na “Casa do Estudante”17 foi discutido questões de ordem logística da casa (limpeza, alcoolismo, assistência, etc), porém quando a mesma estava pra acabar um dos lideres da casa de então interrogou-me, diante de vários estudantes Ramkokamekrá-Kanela que lá estavam, se eu já tinha visto Roberto Thune18 preocupado com a Casa do Estudante? Percebia que uma resposta naquele momento implicaria em assumir uma posição em uma “briga” que desconhecia, mas que naquele momento serviria como elemento de legitimação. Esquivei-me e não respondi nem sim, nem não. Após a reunião fui interrogado pelo mesmo agente, que agora estava acompanhado pelo representante da Casa do Estudante, porque não respondi. Tentei justificar, mas parece que não consegui, já que falaram: “tu tá com medo de falar do Roberto, ele não é nada não?” Minha ausência de resposta logo foi percebida como “não estar do lado deles”, percebi então que fiquei marcado, de certa forma, pela resposta que não dei. Este estigma ficou evidenciado na proibição em utilizar gravadores ou maquinas fotográficas enquanto estivesse na casa. A maneira distanciada que fui tratado por alguns sujeitos (lideranças da casa) projetou uma imagem sobre mim que só foi se diluindo com o tempo. Como coloca Goffman (1999, p. 16): Em todo caso, na medida em que os outros agem como se o indivíduo tivesse transmitido uma determinada impressão, podemos ter uma perspectiva funcional ou pragmática, e considerar que o indivíduo projetou ‘efetivamente’ uma certa definição da situação e ‘efetivamente promoveu a compreensão obtida por um certo estado de coisas. A situação vivenciada expressa que as negociações durante a pesquisa se dão nas relações face-a-face e são mediadas por “manipulações de mão-dupla”, já que diferentes agentes da interação tentam manipula-la. Diante dessas situações seria adequado expressar- se apropriadamente? Mas o que seria apropriado? Se o pesquisador age como um ator, nos termos de Goffman (1999, p. 191), ele deveria “agir com expressiva responsabilidade, visto que muitas ações insignificantes e inadvertidas podem às vezes transmitir impressões inapropriados ao momento”. No entanto, se percebido de maneira inapropriada por um certo público não quer dizer que outros considerariam da mesma forma. Do evento ficou comprometida minha 17 Nessa reunião fui apresentado como “da universidade”, mas acrescentei que sou nativo de Barra do Corda, acreditando que os indígenas ficariam mais à vontade ao conversar comigo. 18 Índio Ramkokamekrá-Kanela que antes de Ary Korampey era o “fiscal” dos alunos na cidade. 30 pesquisa na Casa do estudante, mas não impossibilitada. Passei a ir à “Casa do Estudante” e sentar no terreiro e ficar observando. Um certo dia um de seus moradores veio até mim fazer perguntas sobre “cotas para índios na Universidade”. Essa situação aproximou-me do que denomino “periferia da casa”, já que o “centro burocrático” se tornou inacessível. Geralmente, quando os representantes da casa chagavam as conversas informais eram encerradas19. Os incidentes ocorridos nesse momento também ajudaram a chamar nossa para o caso dos Ramkokamkerá-Kanela que estudam fora da aldeia, mas que não moram na “Casa do Estudante”. Aqueles que residem em casas alugadas, que denomino “casas particulares”. Dessas foi possível contabilizar cinco, onde moravam, geralmente, moram de 4 e 7 pessoas. Destaco ainda que nesse momento havia um clima tenso entre pesquisadores e “índios” Ramkokamekrá-Kanela devido a algumas conseqüências do Projeto Wokrõ. Como coloquei no início deste trabalho a decisão pelos Ramkokamekrá-Kanela foi também pela possibilidade operacional que minha relação com o “Projeto Wokrõ” possibilitaria. Decorrente do que os “índios” chamaram de “má gestão do projeto”, por parte do então coordenador, houve repercussões frente a atuação de outros pesquisadores, principalmente aqueles relacionados ao grupo de estudo “estado Multicultural e Políticas Públicas”. Neste sentido, emergia-se uma outra identificação para o pesquisador, no caso eu, e que certamente tem conseqüências na maneira como fui observado. Esse tipo de repercussão, por fazerem parte do oficio do pesquisador, é ilustrada em outros trabalhos. Para citar apenas um tem-se Rabinow (1977, p. 71, grifo meu) que diz: I chose Sidi lahcen Lyussi. Making the choice was not difficult, but gaining entry posed some strategic problems. Although I never succeeded in getting all of the details, from what I have been able to piece together there was a group in the village who opposed my entry. They had two main objections, both linked to my association with Ali. First, anything Ali advocated, it turned out, was certain to generate a counterreaction of equal and opposite force. His activities in Sefrou were well know and considered shameful. Second, the villagers moralized about this saint’s descendant who was neglecting his wife, engaged with prostitutes, and tied in with the Aissawa brotherhood. In sum, Ali was quite definitely persona non grata in Sidi Lahcen. As he himself was quick to point out, there was a great deal of sheer jealousy, resentment, and backstabbing in these attacks on him, true as they might be, Indeed, I later discovered that many of the men in the village were envious of the high life which Ali seemed to be leading. 19 Em julho de 2008 um desses representantes procurou-me na Aldeia Escalvado para dizer pedir desculpas pelo clima tenso que ficou na cidade meses antes. 31 Nas “casas particulares” tive uma acolhida menos problemática, principalmente na casa onde residem meu ixû (pai) e minha ixê (mãe) cerimoniais da aldeia. Destes, o primeiro estuda na cidade. Pude então iniciar a enumeração dos “índios” que estudam fora da aldeia, a qual foi sendo completada nas idas às escolas e através de conversas com outros Ramkokamekrá-Kanela. Acredito que, nesse momento, distanciar-me relativamente daqueles que seriam os “legítimos informantes” da situação dos Ramkokamekrá-Kanela que estudam fora da aldeia foi positivo, já que evidenciou-me outros espaços para a pesquisa. As interações com sujeitos não-indígenas nesse período em Barra do Corda ocorrei mais precisamente com alguns funcionários das escolas20 da cidade. Nesta outra situação optei por identificar-me como “pesquisador do PPGAS/UFRN”21, já que isto daria um maior grau de formalização. Apenas nestas instâncias foi necessário demonstrar a carta de apresentação disponibilizada por minha instituição de ensino. Os “dados” documentais oriundos desse momento serviram para complementar o mapeamento quantitativo da situação pesquisada. Além da necessidade, estes e outros eventos, como o retorno generalizado dos Ramkokamekrá-Kanela para a Aldeia em junho de 2008, influenciaram na minha decisão de desenvolver parte da pesquisa na própria Aldeia Escalvado. Esse momento da pesquisa, julho de 2008, foi marcado por circunstancias particulares, como expressarei. Mas ressalto que os dados produzidos nesse momento tiveram importância decisiva na definição de nosso foco de pesquisa, o qual procurou dar importância tanto ao que é dito sobre a migração aldeia indígena-cidade, como aquilo que é feito. 1.2.1 - Outros aspectos da produção e seleção dos dados O percurso que trilhei na pesquisa teve algumas peculiaridades que influenciaram sobremaneira na forma como as informações foram produzidas. Primeiramente merece destaque o fato de não ter definido um grupo entre os Ramkokamekrá-Kanela para atuar 20 As escolas foram: Nossa Senhora de Fátima, Dom Marcelino de Milão, Maria Emídia, Maria Safira e Colégio Edson Lobão. 21 A forma como me identifico altera a maneira de se comportar do meu interlocutor. 32 como nossos informantes, já que o tema da “saída da aldeia para estudar na cidade” abrange, mesmo que de forma diferenciada, o imaginário de todo o corpo social da Aldeia Escalvado. Neste sentido, achei por bem manter principalmente o foco na temática que pesquiso e contextualizar os sujeitos e seus discursos na medida em que fossem relatados. Procuramos não diferenciar, aprioristicamente, entre os Ramkokamekrá-Kanela, aqueles que seriam os informantes legítimos22, em detrimento de outros que não seriam “dignos de fé” para falar sobre um tema específico. Essa foi uma alternativa aqui utilizada, a qual foi influenciada pelas limitações de recursos (financeiros) desse projeto. Além do mais, essa abordagem poderia deixar nossos interlocutores mais a vontade, já que não havia a imagem explicita da troca da informação por algum bem, financeiro ou não. Sempre deixei claro para eles que minha dissertação de mestrado referia-se à temática da “saída da aldeia para estudar na cidade”, porém a maneira como geralmente eu abordava o assunto parecia fazer com que esquecessem a formalidade do diálogo, que ultrapassava os limites de um jogo de perguntas e respostas a uma conversa informal, de onde as informações se produziam muito naturalmente, sem que a contrapartida fosse advogada. Quando ocorria, geralmente, se tratava de “contradons” viáveis, como informações sobre “cotas para índios em Universidades”. Portanto, não definir um grupo específico entre os Ramkokamekrá-Kanela (professores, estudantes da aldeia e da cidade, lideranças, agentes de saúde, ex-migrantes, etc) para travar os diálogos legitimava minha atuação frente a uma diversidade de sujeitos. Enquanto tinha “liberdade” para falar com diversos sujeitos, estava “liberado” de eventuais cobranças, que poderiam ser abusivas, pela exclusividade do fornecimento da informação. Esta relativa fluidez da abordagem na “produção dos dados” possibilitou uma maior abrangência do “campo”, pois os dados tinham a peculiaridade de poderem ser obtidos em diversos lugares e momentos: na cidade, na aldeia, em conversas agendadas, em encontros fortuitos, etc. É importante ressaltar que evidencia-se uma relativização da idéia de “campo”, como já expressei, que deixa de ser visto como um lugar geográfico, expandindo- se para todos os territórios possíveis, onde a questão possa ser objeto de observação e investigação. Assumo, então, uma idéia relativizada de “campo”. 22 Nesta categoria estariam os representantes dos Ramkokamekrá-Kanela na cidade, algumas lideranças ex- migrantes etc. 33 Asseverando algumas informações já sucintamente expostas, ressalto que, na Aldeia Escalvado, a produção do material da dissertação de mestrado, se deu em dois momentos: agosto e setembro de 2007 e julho de 2008. Estes foram possibilitados por um convênio entre o Grupo de Pesquisa “Estado Multicultural e Políticas Públicas”, da UFMA, e instituições internacionais23. Decorrente disso, eu tive financiamento que possibilitou minha estada na aldeia. Os dois momentos foram importantes, mas destaco o segundo, pois como instrutor pude discutir em sala de aula questões que posteriormente se tornaram essenciais para este trabalho. Minha permanência na Aldeia Escalvado (julho de 2008) foi marcada por uma situação peculiar e de significativa importância para esta pesquisa, pois se tratava de um momento singular, no qual todos os indígenas Ramkokamekrá-Kanela que estudavam em Barra do Corda estavam na Aldeia Escalvado. O motivo para este acontecimento, segundo as informações de “índios” e “não-índios” tanto na aldeia como na cidade, foi uma briga generalizada entre parte dos Ramkokamekrá-Kanela e uma gangue, de “não-índios”, local do bairro onde moravam. Esse evento teve como saldo o homicídio de um não-índio e o espancamento de um Ramkokamekrá-Kanela já idoso. Segundo um dos Ramkokamekrá-Kanela (2008), que estudava em Barra do Corda e que participou desse evento, mas que pediu que seu nome ficasse em sigilo, , a culpa teria sido “do gangue”. Ele contou a sua versão, segundo a qual um parente mais velho estava voltando pro Rancho24 e “o gangue” havia começado a bater nele por ter rejeitado acompanhá-los e financiar a sua entrada num espetáculo de circo25. Um outro índio, mais novo, que o acompanhava teria corrido até a Casa do Estudante - da qual falaremos adiante - e alertado os demais do ocorrido. O resgate desse Ramkokamekrá-Kanela idoso gerou mal-estar, o qual se sustenta até hoje, e intensificou uma situação de conflito já existente. Os estudantes Ramkokamekrá-Kanela já haviam afirmado em outros momentos que as casas onde se instalavam em Barra do Corda já foram depredadas e saqueadas anteriormente. 23 O Smithsonian Institute e o Inter-American Fundation. 24 Local onde os Ramkokamekrá-Kanela ficam os hospedados em Barra do Corda quando vem resolver assuntos de curto prazo. 25 Sabe-se em Barra do Corda que a maioria dos índios idosos se dirigem a esta cidade para receber os benefícios estatais (aposentadoria, bolsa-escola, etc), estando mais propensos, sob o efeito de bebida alcoólica a financiar os gastos da diversão de quem estiver próximo deles, índios ou não. 34 A briga generalizada teria se dado no momento posterior ao resgate, quando “o gangue” foi até a Casa do Estudante “tirar satisfação” do ocorrido. A tensão crescente obrigou todos os Ramkokamekrá-Kanela, pelo menos nos primeiros meses, a retornar para a aldeia. O retorno foi motivado tanto por “proteção pessoal” como pela preocupação dos familiares na aldeia, assim como da comunidade em geral. O desfecho desta situação-limite foi a sua transferência dos estudantes Ramkokamekrá-Kanela para a escola da aldeia ou para escolas de Fernando Falcão26. Atualmente, apenas Raimar Thaure (índio da Aldeia Escalvado) ainda estuda em Barra do Corda, mas sabe-se que sua família há muito tempo tem casa própria nesta cidade27. Ele estuda fora da aldeia há aproximadamente 10 anos e, como também me informou, “tem boas relações no bairro principalmente porque joga bem futebol em um time local”. Raimar Thaure, em 29 de julho de 200828, forneceu-me o depoimento29 que segue sobre sua experiência citadina. A minha vida em Barra do Corda é muito importante pra mim que eu conhecem muita coisa importante. Quando eu fico na Barra eu acho muito legal aprendendo com o Kupên as coisas deles. A minha vida estuda aprender as coisa na cidade e outras coisas a minha vida tem que ter todas as coisas pra mim na cidade de Barra do Corda tem que ter dinheiro, roupa e tudo mas que a gente precisa. Em Barra do Corda eu tem que conhecer os amigos em Barra do Corda. E em outra parte da minha vida na cidade eu fico só pensamento em minha família é mas importante estuda. É pratica esporte todas os final de semana e curte com gatas nas balada. A minha vida é assim em anos de 2006 eu fui o seleção de sub 18 em Barra do Corda. Quando eu fico na casa de meu irmão as gata fico louco por mim e eu só agarrando. Percebe-se que diversos elementos são acionados no pequeno texto acima. No entanto, destacam-se a necessidade de aprender as “coisas do não-índio”, a pretensão de conseguir bens, a saudade da família da aldeia no momento do exílio, as “liberdades” no 26 Aos alunos Ramkokamekrá-Kanela que passaram a estudar em Fernando Falcão foi disponibilizado um carro para fazer o transporte diariamente. A distancia entre a aldeia e esse município propicia essa situação, já que é impossível realiza-la cotidianamente. Todavia, havia um recurso da Secretaria de Educação do Estado para prover o transporte desses estudantes, porém “só servia para deslocá-los em momentos que precisavam se deslocar para jogar futebol ou para levar e trazer os professores não-índios” (Edjane – julho/2008). Segundo Edjane, somente estudariam em Fernando Falcão aqueles que estivesse nas séries que não fossem contempladas na aldeia. 27 Inclusive, quando eu estudava na escola Nossa Senhora de Fátima (por volta de 1995-1999) também estudava nessa escola seu irmão, Roberto Thune, atual Chefe de Posto da Aldeia Escalvado. 28 Eu ministrava um curso de capacitação na Aldeia Escalvado. 29 Os relatos dos Ramkokamekrá-Kanela, assim como de outros interlocutores, que exporei obedecerão a grafia ou a oralidade original. 35 exílio (participação em festas e relacionamento com o sexo oposto) e a utilização do futebol como meio de interação na cidade. Em um jogo que assisti em Barra do Corda, do qual Raimar participava, pareceu que as suas referências ao diacrítico indígena se diluíam relativamente. Nesse caso específico, como ele teve um bom desempenho não houve comentários sobre sua identidade étnica. Porém, como afirmou em outros momentos, “quando não joga ou outros reclamam e dizem que é porque sou índio”. Diversas foram as discussões que tive com diferentes agentes sobre os desdobramentos do evento de junho (a briga) em Barra do Corda. Destaco as afirmações de estudantes Ramkokamekrá-Kanela que advogavam em favor do desejo de não estudar na aldeia, mesmo havendo seu nível escolar30. A situação pela qual passavam foi percebida como provisória. Arlene Kroitxene, que estudava em Barra do Corda até junho de 2008, afirmou um mês depois que seria necessário apenas “dar um tempo para a poeira baixar”. Outros discursos coadunam-se com o de Poliana Kwympê, que também estudava em Barra do Corda até junho de 2008, pois disse “preferir morrer a estudar na aldeia”. A conversa que tive com Arlene Kroitxene em julho indicou que ela não tinha pretensão de estabelecer aliança matrimonial até terminar os estudos, porém soube em janeiro de 2009, por uma professora não-índia da Aldeia Escalvado chamada “Socorrinha”, que ela havia se casado pouco tempo depois de minha estada na aldeia. Certamente este evento (a briga) mereceria uma maior atenção, no entanto considero que a descrição acima fornece alguns subsídios para compreender como a saída da aldeia para estudar na cidade é significada e vivenciada pelos Ramkokamekrá-Kanela. Ou ao menos para pontuar que no segundo momento em que estive na Aldeia Escalvado (julho de 2008) todos os sujeitos falavam sobre a situação que pesquisei no mestrado. Armando Prefet Kapelikó Canela (professor índio da Aldeia Escalado e ex- estudante de Barra do Corda) em 31 de julho de 2008 assim se expressou ao falar sobre o acontecido de junho: Tem, tem lá na aldeia, quando faz alguma coisa errado a FUNAI, a FUNAI vai ver se vai resolver, a FUNAI vai resolver, isso quer dizer lá na Barra. E eu vou dizer também que a gente bebia junto, nunca quis brigar com a gente, hoje em dia ta aumentando população, tem muito estudante mal educado que as vezes, 30 Como lê-se em Maranhão (2008, p. 05), “em 2006 o ensino de 5ª a 8ª série foi implantado” na escola da Aldeia Escalvado. 36 agora que isso aconteceu em vez de separar, ter separado, não, (...) iam matar o velho. Ai daqui, o povo, os novo ficou com pena do velho por isso que (...) ele, mas um dia eu vou falar com meus amigos, eu vou falar pra não pensar que nós somos o nação maldoso, somos filho de Deus também, a gente pensa, por causa de um, dois pessoas quando faz alguma coisa errado assim, não vai mais deixar que levare não, quando tu fazer alguma coisa ruim é você que fez coisa ruim, porque se talvez aquela pessoa fez uma coisa ruim, o estudante né, aí outro estudante vai e perde a vida. Isso que a gente tem que parar por que violência não, paz sim, eu acredito que precisa é só isso. A oportunidade de estar na Aldeia Escalvado em julho de 2008 foi, como disse, importante para a pesquisa, pois a conversa compartilhada por todos era referente ao ocorrido e suas conseqüências. Ressalto ainda que a minha condição de nativo de Barra do Corda merece ainda que se diga que, rompendo o silencio inicial, só depois de reiteradas explicações e justificações de minha parte, as conversas se tornaram possíveis, pois eles perceberam meu interesse não apenas pelo evento em si, mas envolvendo também as suas experiências na cidade. O fato de eu estar na aldeia naquele momento e ter tido um convívio amistoso com eles, participando de suas atividades cotidianos quando sobrava tempo (jogar futebol com eles, compartilhar a alimentação com eles, etc)31, foi fundamental para a abertura que tive para tratar desse assunto e de outros também delicados. A coleta de dados na cidade de Barra do Corda, por via de encontros informais ou agendados com indígenas e não-indígenas desde 2004, e em outras fontes, como o email que Willian Crocker enviou-me em 9 de dezembro de 2007 sobre a pesquisa que fez acerca dos Ramkokamekrá-Kanela presentes em Barra do Corda em 2003, assim como as conversas com Eunice Cariry na Casa do Índio no Rio de Janeiro em dezembro de 2008 sobre Satú Canela32, por enquanto, encerram nossas apreciações sumárias sobre alguns aspectos de minha trajetória de pesquisa e “produção dos dados”. Tal contexto parece assemelhar minha “experiência etnográfica” daquilo que Marcus (1995) denominou “Etnografia Multi-Situada”, entendendo esta não simplesmente como “sítios espaciais” distintos, mas como locações políticas diferenciadas e em relação um tema comum. 31 A minha atitude na aldeia foi observada como peculiar por uma das professoras não-índias (Socorrinha). Segundo ela, geralmente os pesquisadores não participam das atividades cotidianas dos indígenas e essa disponibilidades seria do agrado deles. 32 Já estudou no Rio de Janeiro e atualmente mora na Aldeia Escalvado. 37 1.3 – Da divisão do trabalho A dissertação estrutura-se em seis partes. Na introdução limito-me a situar a problemática que será discutida, apontando para alguns referenciais teóricos, a definir o campo empírico da pesquisa e esboço uma discussão sobre os processos de “produção” de alguns dos dados que aparecem no texto final. Em seguida, que pode até parecer deslocado, mas que é importante para compreender os campos semânticos que estão em jogo influenciando-me, procuro localizar e discutir alguns dilemas e possibilidades que possam retratar os limites das escolhas do “fazer antropológico” e que foram necessárias serem feitas para a concretização do trabalho. Na parte três faço uso de um expressivo material bibliográfico e alguns dados de campo para compreender aspectos do contexto interétnico dos Ramkokamekrá-Kanela e de sua organização social, atentando para os aspectos que possam ajudar a compreender a migração desses sujeitos para estudar fora da aldeia. A quarta parte é voltada para uma discussão dos dispositivos legais sobre educação escolar indigenista e suas alterações, assim como de algumas experiências escolares e citadinas da sociedade indígena pesquisada. Na quinta parte procuro situar o campo de tensões interétnicas observadas em Barra do Corda – MA, decorrente da presença de “índios” nessa cidade, assim como as interpretações e representações dos Ramkokamekrá-Kanela sobre seus processos e experiências migratórias. Finalizo o trabalho com uma conclusão que não tem a intenção de concluir, mas estabelecer algumas hipóteses que me vem inquietando, como a possível relação entre a migração aldeia indígena-cidade e as narrativas-miticas dos Ramkokamekrá-Kanela. 38 2 – LOCALIZANDO O AUTOR: No limite da “autoridade” e da “consagração discursiva” “La filosofia critica kantiana ya há señalado el problema de las relaciones entre los objetos de observación y el sujeito del saber” (SULLIVAN y RABINOW, 1982, p. 108). “A sociologia deveria reafiar o seu gume de vanguarda, à medida que o neoliberalismo desaparece na amplidão, juntamente com a socialismo ortodoxo. Algumas perguntas para as quais novas respostas demonstraram-se necessárias são perenes, enquanto outras são surpreendentemente recentes. A busca por respostas às indagações de ambas as vertentes, tal como em outros tempos, requer uma boa dose do que C. Wright Mills chamou de imaginação sociológica, expressão que ganhou fama. Sociólogos, não se desesperem! Vocês ainda têm um mundo inteiro a conquistar ou, ao menos, a interpretar” (GIDDENS, 2001, p. 20, grifos nossos). Destaco estas duas citações por indicarem dois pressupostos da proposição desta parte do trabalho: 1) perceber que a discussão pretendida não é tão recente nas ciências humanas e 2) que a antropologia, enquanto disciplina cientificamente reconhecida, fundamenta-se bem mais pela forma de observar do que pelo que observa. Desenvolver uma reflexão que inquira sobre o conhecimento oriundo da relação entre “sujeitos que observam” e “sujeitos que são observados”33 e a “autoridade” latente levanta elementos que podem contribuir ao exercício do antropólogo, principalmente no que diz respeito às sujeições e escolhas da vivência antropológica34. Reconhecer a legitimidade da autocrítica dessa vivência (percebê-la epistemologicamente) parece ser uma dos maiores desafios da antropologia atualmente. Se, por um lado, parece importante, do ponto de vista de sua didática, segmentar a antropologia em escolas e fases distintas (às vezes apresentadas de modo quase incomunicáveis); por outro (mais pertinente para mim) pode-se considera-la no interior de um círculo hermenêutico, que envolve “estratégias de autoridade” para consagrar determinados campos discursivos como mais legítimos que outros. Neste sentido, o que está em jogo é a pretensa “objetividade cientifica”. Em “Sistemas Políticos da Alta Birmânia” (LEACH, 1996) já há indicativos sobre essa 33 A designação “sujeitos que observam” e “sujeitos que são observados” busca relativizar a comumente dicotomia ente o “eu” (ativo) e o “outro” (passivo), porém não pretende fazer apologia a uma pretensa simetria no fazer antropológico. 34 Trata-se, entre outros elementos, da construção do interesse de estudo, da iniciação do pesquisador, da operacionalidade do intento e dos limites e recurso da textualização final. 39 discussão. O autor reconhece que Malinowski no inicio do século XX já assinalava preocupações quanto as inferências subjetivas no produto da pesquisa. O momento histórico depois da descolonização testemunha o deslocamento dos “objetos de pesquisa”. Isso decorre da mudança do foco dos pesquisadores, o que resulta em trabalhos sobre realidades mais “próximas” dos pesquisadores. Sem sombra de dúvidas, os “sujeitos” legitimados a “serem observados” pela antropologia passaram por mudanças. À discussão que segue implica, até certa medida, reconhecer que os pares “objetividade”/“subjetividade” e “distanciamento”/“proximidade” são elementos constitutivos da cientificidade do “fazer antropológico” e de seu produto final, o texto. Em meio a essas polaridades, cabe ao pesquisador refletir sobre a construção do saber em antropologia. A contextualização desse seu “sensível lugar” figura-se como enriquecedora para entender desde a construção de seus interesses35 até suas inferências sobre os dados coletados. Diante dessa discussão, que envolve “autoridade” e “poder” na relação pesquisador- pesquisado, refletirei sobre o “fazer antropológico”. Espero, a partir de minhas experiências e angústias, ter condições de contribuir à disciplina. Neste sentido não me limitarei a apenas autores denominados “contemporâneos”, mesmo considerando que após a segunda metade do século XX “antropólogos e nativos passaram a refletir as mudanças ocorridas nas relações políticas e econômicas entre os paises dos quais tradicionalmente provinham uns e outros” (SILVA, 2000, p. 116)36. Assim, Geertz (2002, p. 172) chama a atenção para a especificidade desse contexto: O fim do colonialismo alterou radicalmente a natureza da relação social entre os que perguntam e observam e os que são perguntados e observados. O declínio da confiança em fatos brutos, procedimentos preestabelecidos e conhecimento descontextualizado no campo das ciências humanas e, a rigor, do saber especializado em geral, alteraram não menos essencialmente a concepção que têm os indagadores e observadores daquilo que estão tentando fazer. 35 Se esses interesses são construídos, depreende-se que são trazidos à existência. Quem traz? Utilizando os termos de Bourdieu (1989) pode-se afirmar que, num primeiro momento, na relação pesquisador-pesquisado temos uma relação de “poder”, na qual a “autoridade” do observador “produz a existência daquilo que enuncia” (p. 114), ou seja, produz “uma ‘realidade’ que, sendo em primeiro lugar, representação, depende tão profundamente do conhecimento e do reconhecimento” (p. 108) por e para quem é representado. 36 Saliento que é fundamental situar esse tipo de construção em um momento histórico de “descolonização”, fato que é fundamental para entender o pensamento social do período. 40 Esse período é marcado também pela alteração de papéis, já que os denominados “nativos” passaram também a serem reconhecidos como pesquisadores. Desde então percebemos uma busca constante para diluir a distância entre o “nós” (sujeitos que pesquisam) e o “eles” (sujeitos pesquisados), em um processo que chamo aqui de “qualificação de subjetividades”, no qual destaca-se a do pesquisador (por ser o seu elemento) e que, utilizando os termos de Geertz (2002, p. 170) teria uma “vida dividida”, uma “situação de migrante” (BOURDIEU, 1998) que parece bem pertinente para qualificar o seu lugar (in)classificado na execução da sua “dupla tarefa” (DAMATTA, 1978): transformar simultaneamente o exótico em familiar e o familiar em exótico. A “vida dividida”, a “situação de migrante37” e o exercício de familiarizar-se e distanciar-se possibilita qualificar liminarmente o lugar do pesquisador. Expressar, de forma clara, no texto final esses imponderáveis parece-me possibilitar a apreensão, pelo leitor, de um elemento nem sempre evidenciado: os percursos vivenciados bio e academicamente pelo autor. Se um dos elementos da pesquisa em antropologia é “ser afetado”, como coloca Favret-Saada (2005, p. 155), “não pude fazer outra coisa a não ser aceitar deixar-me afetar pela feitiçaria”, faz-se necessário discutir a antropologia também, segundo alerta Geertz (2002, p. 171), “em termos morais, políticos e até epistemológicos” e “não apenas em termos de técnica de pesquisa”. Mesmo questionando se seria possível qualificar pesquisas recentes com essas preocupações em detrimento de outras consideradas mais clássicas, creio ser este mais um elemento que contribui ao “viver liminar” das diferentes fidelidades do pesquisador, podendo ser esta considerada uma máxima do “fazer antropológico”. Ao considerar o pressuposto de que as ciências vivem de mudanças (e não de “crises”’ a serem resolvidas simplesmente pela superação de uma coisa por outra), na antropologia não é diferente. A maneira de percebê-la e “faze-la” vem sofrendo 37 Percebido como “incômodo em todo lugar, e doravante tanto em sua sociedade de origem quanto em sua sociedade receptora, ele obriga a repensar completamente a questão dos fundamentos legítimos da cidadania e da relação entre o Estado e a Nação ou a nacionalidade. Presença ausente, ele nos obriga a questionar não só as reações de rejeição, que, ao considerar o Estado como uma expressão da Nação, justificam-se pretendendo fundar a cidadania na comunidade de língua e de cultura (quando não de “raça”), como também a “generosidade” assimilacionista, que, confiante em que o Estado, armado com a educação, saberá produzir a Nação, poderia dissimular um chauvinismo do universal” (BOURDIEU, 1998, p. 11). 41 questionamentos, evidenciados principalmente após meados do século XX38, período que, para Geertz (2002, p. 173), “um dos pressupostos em que se alicerçavam os escritos antropológicos, (...) – o de que seus objetos de estudo e seu público eram não apenas separáveis, mas estavam também moralmente desvinculados, e de que os primeiros deviam ser descritos, mas não convidados a se manifestar, e os últimos deviam ser informados, mas não implicados -, praticamente se desfez”. Assim, acredito ser pertinente reconhecer a implicação dos pesquisadores em suas pesquisas como um importante elemento a ser desenvolvido, contribuindo - como afirma Giddens (2001) sobre a Sociologia - para perceber nossa disciplina de modo menos demarcado, definido ou circunscrito em seu “objeto”, mas sim numa maneira particular de ver a realidade. Oliveira (2000, p. 19, grifos nossos) exemplifica essa perspectiva salientando que “seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido [também] pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade”. Sem pretender “superar o mestre” mas buscando através desse exercício reverenciar suas reflexões, modestamente proporia o acréscimo do termo “também” à citação, por considerar, como tentarei demonstrar no decorrer do trabalho, que outros elementos também são relevantes, não apenas o “esquema conceitual da disciplina formadora”, mas a maneira como esse “esquema conceitual” é apreendido e operacionalizado. 2.1 – “Pintando objetos” e reconhecendo dívidas: as “escolhas” e “sujeições” nos “campos de consagração” “o sociólogo neste percurso [de construção do ‘objeto de estudo’] poderia tornar sua a fórmula de Flaubert: ‘pintar bem o medíocre’” (BOURDIEU, 1989, p. 20). Disponibilizar ao leitor referenciais que contextualizem o pesquisador e sua pesquisa são essenciais. Procurarei de maneira sintética expor meu atual interesse de estudo para desenvolver em outro item alguns elementos que nos influenciaram as escolhas dele e de mim para “ele”. 38 Segundo Marcus (1994, pág. 09) “as críticas às tradições disciplinares (especialmente na sua tendência, após a Segunda guerra Mundial, de privilegiar e tentar reproduzir as realizações das ciências naturais) já estavam a caminho antes que o espectro do pós-modernismo surgisse em âmbito generalizado no início dos anos 80”. 42 É importante atentar que, mesmo parecendo óbvio, o interesse de estudo está em constantes alterações, que implicam em desafios a serem superados. Acerca desse processo, Bourdieu (1989, p. 26-27) afirma: A construção do objeto – pelo menos na minha experiência de investigador – não é uma coisa que se produza de uma assentada, por uma espécie de acto teórico inaugural, e o programa de observações ou de análises por meio do qual a operação se efectua não é um plano que se desenhe antecipadamente, à maneira de um engenheiro: é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridos por o que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas. Percebe-se que a primeira dificuldade é a própria construção do “objeto”. Refletir sobre o lugar do pesquisador pode denunciar uma outra dimensão não tão evidente: a importância da subjetividade no “fazer antropológico”. Silva (2000, p. 29) não me deixa à deriva nessas preocupações, afirmando que a experiência do pesquisador é duplamente influenciada, principalmente quando este pertence “ao universo do terreiro e da academia”. Esta reflexão é pertinente para caracterizar minha situação enquanto acadêmico nativo de Barra do Corda e que desenvolve pesquisas referentes a “índios” que migram da aldeia para esta cidade. Essas referências nos fazem entender que “localizar o pesquisador” é fundamental para entender a sua construção particular, as dificuldades e os resultados da investigação. Ter consciência de quem, de onde, o porquê, como (o modo), e para quem ele fala pode servir para ajudar a destrinchar armadilhas que consciente ou inconscientemente ele relega. Peirano (1995, p. 137), sem desconsiderar o estatuto científico da antropologia, atenta para a importância da dimensão biográfica no “fazer etnográfico”, visto que, a trajetória do pesquisador, suas opções teóricas e o contexto histórico-sociológico da pesquisa têm influência sobre escolhas, encaminhamentos, discussões e conclusões acerca do que observa: Hoje sabemos que a pesquisa depende, entre outras coisas, da biografia do pesquisador, das opções teóricas presentes na disciplina, do contexto sócio- histórico mais amplo e, não menos das imprevisíveis situações que se configuram entre pesquisador e pesquisado no dia a dia da pesquisa. A dissertação consiste na análise da situação de estudantes indígenas Ramkokamekrá-Kanela que migram para estudar em Barra do Corda - MA) e o significado 43 desse processo. Tais modalidades de investigação ganham fôlego na medida em que as pretensões antropológicas passam a ser deslocadas das tradicionais circunscrições das aldeias distantes para campos mais próximos ao pesquisador. A sociedade indígena que pesquiso é classificada na família Timbira e habita atualmente os cerrados do centro maranhense. O contato desses indígenas com a população não-indígena da cidade remonta à 1835. Têm-se assim um contexto de contato interétnico de mais de 150 anos, o qual mesmo contendo toda uma pressão assimilacionista pode ser caracterizado, atualmente, como de constante resistência dessa sociedade indígena. A literatura etnográfica referente aos “Ranmkokamekrá-Kanela” é extensa. Nela encontram-se trabalhos de Ninmuendajú (s/d), Azanha (1984), Crocker (1990), Ribeiro (2002), Folhes (2004), Silva Junior (2006), Macena (2007), entre outros39. Interessa que nenhum destes trabalhos contemple, especificamente, a migração indígena para a cidade e a forma como estes indígenas significam esse processo. Geralmente aparecem de forma residual. Essas questões de ordem etnológicas e históricas serão retomadas posteriormente. Para guiar a análise neste momento destacaria algumas questões: sendo eu de Barra do Corda, que implicações tal vivência teria em minha pesquisa, em minhas escolhas e em minhas construções? No processo de pesquisa quem manipula e quem é manipulado? É pertinente considerar o jogo relacional do contexto de pesquisa em termos tão dicotomizados? Que desafios são estabelecidos nas relações pesquisador-pesquisado? Como suporte é importante, como sugere Mauss apud Bourdieu (2001, grifo meu), perceber que nas relações pesquisador-pesquisado existem arbitrariedades, que são manifestadas de diversas formas. Assim se expressa: (...) tem na verdade um atributo essencial: seja um símbolo, uma palavra, um instrumento, uma instituição; seja mesmo uma língua, e até a ciência mais bem feita; seja ele o instrumento mais bem adaptado aos melhores e mais numerosos fins, seja ele o mais racional possível, o mais humano, ele é ainda arbitrário. Refletir sobre essa “arbitrariedade”, que tem relação direta com a “autoridade” presente no “fazer antropológico”, é fundamental. Para tanto, partirei da seguinte 39 Dentre os citados destacamos o antropólogo Crocker, que pesquisa os Ramkokamekrá-Kanela desde 1957, Curt Ninmuendajú que atuou como etnólogo na região desse povo na primeira metade do século XX e Paula Ribeiro, que colheu, por volta de 1878 informações sobre os que hoje são reconhecidos como “Ramkokamekrá-Kanela”. 44 interrogação: porquê diante de várias possibilidades no campo das ciências sociais, minha “escolha” foi desenvolver pesquisas com sociedades indígenas, em Barra do Corda e na área da educação escolar? Reconheço que iniciar uma argumentação com uma pergunta cria expectativas que posso não satisfazer a contento. No entanto, fazendo eco às palavras de Evans-Pritchard (2005, p. 243), “na ciência, como na vida, só se acha o que se procura”. Depreende-se daí que “interesses de estudo” não “caem no colo” ou são impostos “guela abaixo”, mas são construídos por sujeitos que, consciente ou inconscientemente, procuram, através destes, responder determinadas questões, considerando a operacionalidade de sua empreitada. Levando em conta que o autor não domina absolutamente todas as etapas de suas pesquisas (CLIFFORD, 2002), mas que também não é dominado absolutamente por fatores exógenos em seu fazer e em suas escolhas, têm-se que perguntar como a investigação adquire sentido para os sujeitos envolvidos, inclusive o pesquisador? Além disso, inquire- se: como trazer para o texto final, de forma clara, os processos que contribuem para dar sentido, para si e para os outros, a determinado interesse de investigação? Sem pretender dar respostas definitivas, vejo que a manifestação de “estratégias de autoridade” é o elemento singular desse processo de consagração, que se consolida através da pertinência/relevância do trabalho. Acredito que os interesses de estudo se enquadram num rol de escolhas conscientes a partir de pré-determinações que ultrapassam a intencionalidade e o controle pessoal. A consciência das escolhas não significa um domínio absoluto dos atos e das inumeráveis variáveis que a pesquisa de campo acrescenta à nossas “pré-noções”. Minha experiência indica que ao pesquisador cabe, no entanto, diante de certas possibilidades, limitações e interesses acadêmicos, pessoais e logísticos, a escolha sobre o que pesquisar. Ao tratar de “redes de significados”, Silva (2000) traz alguns exemplos sobre a relação entre pesquisadores (de níveis graduais diferentes), a qual põe limites e abre possibilidades de pesquisa. Tal reflexão parece oportuna por assemelhar-se a meu processo de aproximação da questão da educação escolar para “índios”. Enquanto Silva (2000, p. 28) comenta como certos intelectuais contribuíram para sua pesquisa, lembro-me das conversas que tive com minha orientadora, ainda na graduação, e que certamente tiveram influência em minhas escolhas. 45 No tópico que segue buscarei expor algumas situações que incentivaram minha intenção em refletir sobre o meu “fazer antropológico”, meus limites, minhas possibilidades, minhas dúvidas, minhas dívidas, minhas influências, minhas angústias e as soluções que a interpretação antropológica me propiciam. 2.2 – “Pesquisando em casa” e refletindo em todo lugar: situação liminar, pré- noções e autoridade Tendo em vista o objetivo deste momento, um episódio que aconteceu em 2007 (31 de outubro), durante a aula de Metodologia do Ensino Superior (Programa de Pós- Graduação em Educação – UFRN) parece clarificar bem a discussão40. Em meio a uma discussão acerca da política universitária de distribuição de recursos, assumi uma postura que gerou um certo mal-estar, principalmente em outro colega que afirmou: “tu só se posiciona assim porque tem dinheiro pra fazer tuas pesquisas”. Mas porque citar tal acontecimento? Não pretendo discutir aqui a política de distribuição de recursos na Universidade, procuro simplesmente apontar que essa situação me conduziu a uma reflexão sobre minhas escolhas, sujeições e dilemas no processo de “iniciação” ao “fazer antropológico”. Um dos aspectos que considero fundamental nas escolhas de pesquisa é a sua operacionalização, pois mesmo que um “objeto de pesquisa” seja [considerado] bem intencionado, este poderá se deparar com limites formais para sua execução. Nos termos de Gupta e Ferguson (1997, p. 11) lê-se: Field sites thus end up being defined by the crosshatched intersection of visa and cleareance procedures, the interests of funding agencies, and intellectual debates within the discipline and its subfields. As escolhas do pesquisador ultrapassam a sua pretensa autonomia intencional. Logisticamente pode ser mais viável pesquisar em sua terra natal, mas também por interesses pessoais, e pelas preocupações legitimamente reconhecidas (e aceitas) pelas universidades e órgãos de fomento. 40 Já era aluno do mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – PPGAS/UFRN. 46 Um primeiro esclarecimento (e reconhecimento) a ser feito é que residi em Barra do Corda - MA e mantive contatos diretos e constantes com “índios” durante meus primeiros dezoito anos de vida. Na região de Barra do Corda encontram-se sujeitos indígenas classificados, na cidade, como “Guajajara” e “Kanela”41, os quais mantêm contatos diretos e diferenciados com os regionais não-indígenas. Apesar de haver um histórico diferenciado de contato, as sociedades indígenas42, dessa região, geralmente, são tratados de sob a categoria genérica “índios”, o que contribui para o fato de, mesmo sem tanta relação citadina com “não-índios”, os “Ramkokamekrá-Kanela”, assim como os Apanjekrá-Kanela, serem representados de maneira pejorativa. Essa aversão aos “índios” é sentida logo ao chegar nesta cidade, principalmente quando conversamos com indivíduos “não-índios”. Ao ingressar na Universidade Federal do Maranhão - UFMA, em 2002, sem muita certeza do que era “antropologia”, “sociologia” ou “ciência política”, interessei-me (quase de imediato e não por acaso) pela disciplina “Questão Indígena”43, oferecida como eletiva no período 2002.2. Minha participação obedecia a uma tentativa de confirmar cientificamente minhas pré-noções (habitus cordino) à época, de que os “índios” ou são preguiçosos e selvagens, ou “sabidos”, vivendo “sugando tudo do governo”. Como pode-se imaginar, não foi bem isso que ocorreu. As discussões da disciplina voltavam-se para a questão da diversidade e respeito à diferença e a relação entre sociedades indígenas e o Estado, ou seja, tratava-se de uma reflexão sobre essa interação. Este foi o momento no qual comecei a experimentar aquilo que Bourdieu (1989) denomina de “conversão do olhar”. Entre “relativizar” e eleger um interesse de estudo há uma significativa distância. Como isso se deu? Como iniciei a argüição utilizando um acontecimento que traz à tona a questão de recursos para pesquisas, é imprescindível trazer ao conhecimento três etapas de pesquisa que desenvolvi com bolsista CNPQ/PIBIC. Etapas e objetivos que foram também influenciados pelas discussões do grupo de pesquisa, onde pude definir melhor as questões que congregavam meu “interesse pessoal” e aqueles que eram “socialmente relevantes”, “dignas de bolsas de estudo” ou de “fé acadêmica”. 41 Os termos Guajajara e Kanela são utilizados pelos regionais para designar, respectivamente, os Tenetehara e os Apanjekra e Ramkokamekra. Coelho (2002, p. 102) afirma que “tem sido um hábito dos brasileiros de designar os índios com os quais entram em contato à revelia de suas autodenominações”. 42 O contato dos Tenetehara/Guajajara com os não-índios remete a cerca de 400 anos (COELHO, 2002). 43 Ministrada pela Profª. Drª.: Elisabeth Maria Beserra Coelho. 47 Na primeira etapa, sem muita experiência de pesquisa, resolvi (ou resolvemos?) fazer uma investigação das relações do Estado com as sociedades indígenas desde os primeiros tempos de contato, tendo por base a questão da educação escolar, de modo a favorecer a compreensão da forma como essas relações se dão no Estado do Maranhão. Já na segunda etapa o objetivo parecia mais modesto, pois era compreender essas relações, mas simplesmente através da atuação do órgão de educação de Barra do Corda. No terceiro ano é que minha atuação ganhou mais “sentido” (para mim), pois iniciava ali a pesquisa sobre estudantes indígenas em Barra do Corda. Como pode-se perceber, alguns termos ainda me são recorrentes desde então: “índios”, educação escolar, deslocamento aldeia-cidade, Barra do Corda.. A motivação para as questões da educação escolar voltada às sociedades indígenas é singular. Ter a mãe professora e envolvida constantemente com a questão educacional em Barra do Corda em geral, certamente contribuiu para tal direcionamento, visto que poderia também pesquisar, entre outras coisas, questões relacionadas a terra, saúde e assistência social. Apreende-se aqui que no processo de escolhas e sujeições resta ao pesquisador certa liberdade em tentar facilitar (tornar operacionalizável) seu trabalho, o que nem sempre se efetiva como desejado. Certas escolhas foram então bastante “intencionais”, pois foram influenciadas por uma avaliação positiva do contexto logístico: morava em Barra do Corda e tenho familiares diretamente relacionados à educação escolar nesta cidade. Mas por outro lado não tinha proximidade com os profissionais dos Núcleos da FUNAI que atuavam (e atuam) no campo do indigenismo nesta cidade, o que as vezes dificultou minha entrada nas aldeias. Esta situação é exemplificada em uma ocasião em que, diante de fofocas e brigas “inter- institucionais”, foi a mim negada a permissão para ir à Aldeia Escalvado. Nesta viagem intencionava “produzir” os últimos dados para o exercício de conclusão de curso da graduação. Tal situação só foi resolvida em um acontecimento “ao acaso” três anos depois, no qual fiquei sabendo das histórias que circulavam e que não tinha conhecimento. Porém, no processo de investigação percebi que o que considerava uma “facilitação” à pesquisa, em muitos momentos constituiu-se em obstáculo. O fato da pesquisa ser realizada no local onde vivi muitos anos dificultou, em parte, a obtenção de algumas informações junto aos gestores devido à familiaridade com que era tratado. Neste 48 caso, um dos elementos que se colocam (ou deveriam se colocados) em meu “fazer antropológico” é uma constante tentativa de distanciamento. Além do mais, até mesmo a proximidade manifesta seus limites. Essa discussão leva-me a momentos anteriores em que, ainda enquanto aluno não- índio que estudava em Barra do Corda e dividia salas de aula com “índios”, os preconceitos e discriminações frente aos sujeitos indígenas figuravam-se como “normais” e “naturais”. Ao tentar fazer emergir problemáticas dessa natureza creio, através de uma apreensão cognitiva alterada (um novo olhar diferenciado), nutrir o texto com elementos nem sempre confessáveis, mas que servem para facilitar o entendimento dos porquês de certas tomadas de posição e não de outras. Acredito não ser exagero considerar que a problemática que venho abordando atualmente, às vezes pode confundir-se com minha própria vida, enquanto pesquisador e nativo não-indígena de Barra do Corda. Mas há um adendo significativo a ser considerado: sou “legitimamente reconhecido” como alguém que é universitário/acadêmico em Antropologia e que, pelo menos em teoria, deveria estar alicerçado nos princípios relativistas da disciplina. Tem-se assim, a meu ver, um cenário propício para refletir sobre essa atuação singular de pesquisador, onde se deparam fidelidades e lealdades contrastantes, mas não excludentes, que adentram relações, discursos e produções textuais, caracterizando a “liminaridade” vivenciada pelo antropólogo. Situação liminar esta entendida positivamente, pois como afirma DaMatta (2000, p. 14, grifos meus): ..., em muitos sistemas relacionais [o fazer antropológico, por exemplo], ficar só é estar disponível para dialogar com fantasmas e monstros. Isolar-se é obrigatório e legítimo somente para buscar o contato com seres poderosos e letais – (...) –, ou passar por ordálios, sofrer dor física, ter as orelhas ou lábios furados, ser circuncidado, jejuar, ficar acordado, decorar textos etc., situações nas quais a sociedade [e os valores dela] penetra o corpo dos noviços, marcando e como se dissolvendo suas pessoas, seus órgãos genitais, cabeça, cabelos, braços, lábios e orelhas. Seria diante dessa situação que se apresentaria algo novo, um novo interpretar, um “potencial criador” resultado desse viver liminarmente, nem lá, nem cá, isolado e dialogando com fantasmas muitas vezes construídos e silenciados por nós mesmos. 49 Ao entender que “quem escreve, sobre o quê, e para quem, são os principais elementos de uma etnografia que considere os aspectos visíveis e invisíveis do trabalho antropológico e seu papel de crítica cultural” (SILVA, 2000, p. 183), faz-se necessário evidenciar situações que podem ser entendidas como exemplares para a reflexão da liminaridade inerente ao pesquisador. Atento que a liminaridade refere-se ao reconhecimento de estar imerso a, no mínimo, duas lealdades; no meu caso, ser acadêmico em antropologia e nativo de Barra do Corda, o que evidenciaria, utilizando os termos Herzfeld (2001) apud Goldman (2003, p. 468), uma das características da antropologia, a “investigação daquilo que é marginal”. Para uma melhor compreensão da discussão optei por mencionar três situações importantes: 01) os debates informais com cidadãos de Barra do Corda, 02) a troca (in)consciente ocorrida na monografia e 03) o assalto que sofri na BR 22644. Eu, em conversas informais com cidadãos de Barra do Corda durante a graduação em Ciências Sociais na cidade de São Luís – MA, assumia constantemente um posicionamento de defesa (extrema) dos “índios”, visto estar, no momento, vivenciando um processo de encantamento com questões referentes a relativismo, diversidade, cultura etc, o que resultava em interrogações do tipo: “tu não é mais de Barra do Corda?” ou “esqueceu que os índios ficam fechando a BR 226 sem motivos?”. Estas situações, naquele momento, não eram entendidas com dilemas epistemológicos. Todavia, ao terminar o texto da monografia e apresentar suas primeiras versões à orientadora deparei-me como algumas designações “trocadas”, nas quais substitui o “indígenas” de “línguas” e de “sociedades” por “indignas”, ficando “línguas indignas” e “sociedades indignas”. O dilema de ser pesquisador “nativo de Barra do Corda” e trabalhar com populações indígenas foi posto em causa (e de forma mais instigante) no acontecimento que consistiu em um assalto sofrido por mim, envolvendo sociedades indígenas como algozes e contribuiu para uma reflexão (ou questões) sobre “risco” dessa situação liminar. Considero importante reproduzir na íntegra as minhas primeiras impressões45 desse evento. 44 Estrada Federal que perpassa o Maranhão. O trecho do acontecimento refere-se a parte do percurso que fica próximo da Área Indígena Cana Brava Guajajara. 45 Parte dessa discussão foi apresentada durante a realização da X ABANNE, que ocorreu em Aracajú- Sergipe, no GT 14 que teve como proposta discutir o “risco” inerente ao “fazer antropológico”. 50 No dia 10 de junho de 2006 (por volta de 20:00 h), na viagem que fiz de Carolina para Barra do Corda, aproveitei para fazer algumas anotações sobre o que observava no trecho do percurso em que o ônibus passou pela Terra Indígena Cana Brava. Observei que uma das famílias de índios estava reunida ao redor de uma fogueira, do lado de fora da casa, enquanto assistiam TV, a qual estava dentro da casa, colocada de modo a sua imagem poder ser vista pela janela. Além de ver em outra casa redes postas fora das casas (de alvenaria). Ao sair da área indígena (em Santa Maria), enquanto lia Relativizando (DAMATTA, 1987) fui surpreendido com o anúncio do assalto. Estava sendo vítima, assim como as demais pessoas do ônibus de um assalto. Este foi efetuado por, provavelmente, três indígenas que pediram parada ao ônibus ainda quando este estava no interior da área indígena. O assalto foi efetuado logo que saímos (o ônibus) da área indígena (próximo de Santa Maria – povoado – estava ocorrendo uma festa). Pareciam ladrões inexperientes (não mandaram acender as luzes, utilização de apenas armas rústicas: duas garrunchas e um facão). O que originou os seguintes comentários, por parte de alguns dos passageiros, após a descida dos assaltantes: ‘a sorte é que eram índios bestas, mas foi bom, agora sabem do que esse povo é capaz’; ‘todo dinheiro aqui é suado, porque eles não vão trabalhar?’; eles não gostam de trabalhar’; eles tem uma fala feia’; ‘não pode parar pra levar índio’; ‘vai ver que tem um outro índio (pessoa) esperando eles com nosso dinheiro’; ‘temos que viajar armados’; ‘eles (os assaltantes) pareciam até gente, estavam vestidos do jeito de branco46. No momento compartilhei dos comentários preconceituosos, afinal tratava-se de uma situação extrema. Mas porque considerar esse acontecimento como relevante? 47 Acredito que ter armas apontadas para sua cabeça coloca em causa a atuação de qualquer pesquisador, por mais relativista que possa ser. Imaginemos então se esse pesquisador foi ensinado que “índios não prestam, são vagabundos, sujos, indignos, só dão problema, e que todos devem ser extintos (fisicamente)”. O que se apreende disso e que contribui para nossa reflexão? O cenário interpretativo que venho apresentando indica que há horizontes perceptivos distintos, mas em relação (harmoniosa ou não): o “eu” antropólogo e o “eu” nativo. Esta situação nutre a discussão, pois ao reconhecer que existem limites/obstáculos e ao pô-los em causa, os deslocamos da categoria de “meros dados naturais” a de “problemas epistemologicamente relevantes”. Considero que, enquanto elemento constitutivo da produção científica em Antropologia (independente da proximidade do “objeto”), demonstrar situações que 46 Trata-se de, seguindo os termos de Sperber (s/d), considerar a descrição em termos de “generalizações interpretativas”, no sentido de reconhecer que a questão é “que representação fazemos das coisas e não como as coisas são”. 47 O assalto em questão, para além do perigo evidente a que o pesquisador (eu) ficou exposto, levanta a questão da objetividade e riscos da produção do mesmo. 51 evidenciam a dimensão subjetiva do pesquisador é fundamental48. Tal atitude merece ponderação, visto não pretendermos tampouco exacerbar a subjetividade em detrimento da “objetivação”49. Creio, ao contrário, que a subjetividade do pesquisador enquanto elemento de reflexão (auto-reflexão) pode contribuir para credibilizar (ou ao menos explicar) argumentos sobre o fenômeno estudado. Faço minhas as palavras de Sullivan e Rabinow (1982, p. 109) que dizem: De ninguna manera se trata aquí de exaltar una conciencia “subjetiva” en detrimento de una objetividad científica presuntamente indiferente, a la manera romántica del siglo XIX. No, el acercamiento interpretativo impugna y supera a oposición casi de rigor entre la subjetividad e la objetividad. A tomada de consciência dessa influência levou-me a refletir sobre o que considerei um “duplo risco” em meu “fazer antropológico”, pois se já existe a dificuldade de comunicação efetiva50 entre pesquisadores (“não-índios”) e pesquisados (“índios”), devido haver em cena campos semânticos diferentes, também há o fato de que, enquanto sujeito que viveu em Barra do Corda, poderia tender a assumir um posicionamento X em detrimento de um Y. Vejo que aqui a questão não é de “assumir posição”, mas sim de tornar legíveis os vários elementos que compõem a sua produção. Tornar “legíveis” e “objetivos” esses elementos é possível? Dificilmente, já que nossa subjetividade, mesmo diante de toda vigilância, é constante e sem ela não poderíamos viver. Como afirma Wolf citado por Oliveira (2001, p. 250), “somos todos iguais sob a pele, é a mensagem do humanista; [...] Mas o perigo de dissolver lealdades paroquiais é que sem elas o homem não pode viver”. É lícito indicar que diante de todo cuidado e auto-vigilância/policiamento epistemológica, ao elaborar o “texto etnográfico”(assim como nas demais etapas da 48 Evans-Pritchard (2005, p. 244) afirma que “..., pode-se dizer que, desde que nosso objeto de estudo são os seres humanos, tal estudo envolve toda a nossa personalidade – cabeça e coração; e que, assim, tudo aquilo que moldou essa personalidade está envolvido, não só a formação acadêmica: sexo, idade, classe social, nacionalidade, família, escola, igreja, amizades e assim por diante. Sublinho com isso que o que se traz de um estudo de campo depende muito daquilo que se levou para ele. Essa pelo menos foi minha experiência, tanto no que diz respeito às minhas próprias pesquisas, quanto do que pude concluir das de meus colegas”. 49 Sobre “objetivação” Bourdieu (2006, p. 193) afirma que “garante a permanência e a cumulatividade das aquisições, tanto materiais como simbólicas, que podem assim subsistir nas instituições sem que os agentes precisem recriá-las, de forma contínua e integral, por uma ação expressa (...). 50 Ver Oliveira (2001, p. 245 – 252). 52 pesquisa) o antropólogo não se despe totalmente de seus próprios valores e subjetividades. Lê-se em SILVA (2000, p. 183, grifos meus) que: “O texto etnográfico, como representação do campo e das relações que nele se dão, pode ser, portanto, menos o resultado “final” de uma pesquisa, e mais um meio para a melhor compreensão dos valores do outro, considerando o fato de que estes valores são interpretados por alguém que também não se despe de seus próprios valores e subjetividades, e fala para terceiros, desconhecidos, de modo generalizante, ainda que “cuidadosamente”. Os momentos angustiantes vivenciados na pesquisa antropológica podem ser apreendidos sob os termos de Evans-Pritchard (2005, p. 246) ao entender que o pesquisador “se torna, ao menos temporariamente [ou permanentemente?], uma espécie de indivíduo duplamente marginal, alienado de dois mundos”. Diante do exposto, observa-se certa ênfase à situação angustiante, tida como elemento fundamental da reflexividade antropológica, vivenciada pelo pesquisador no processo de construção, investigação e textualização da pesquisa. No entanto, é necessário atentar que por mais angustiante que possa ser, o “fazer antropológico” (como um processo de pesquisa cujo produto final é geralmente um texto escrito) tem se mostrado viável devido principalmente às classificações, etnocêntricas ou não tão etnocêntricas, que faz. Com afirma Malighetti (2007, p. 26), o etnocentrismo é “condição ineliminável e constitutiva” do saber em antropologia. Um a priori fundamental à construção desse saber é a importância dada à etnografia (diários de campo), que nos termos de Malinowski (1978, p. 18) pode ser entendida como “ciência em que o relato honesto de todos os dados é talvez ainda mais necessário que em outras ciências”. Neste caso a honestidade não se refere a fidelidade obsoleta ou reprodução, por isso o situar-se do autor na investigação, como recurso metodológico, não diminui a importância da etnografia, já que o problema não estaria necessariamente no ato de fazê-la (descreve-la), mas sim na maneira como o autor expressa ou não no texto as suas “condições de criação” (GEERTZ, 1978). Mesmo abrangendo dimensões que envolvem “subjetividades” e “historicidades”, as próprias “condições de criação” da etnografia são (ou podem ser) evidenciadas através desta. Este “pôr em evidência” das diversas dimensões que envolvem a relação 53 pesquisador-pesquisado no texto final pode ser categorizado, utilizando os termos de Geertz (1978), de “descrição densa”51. As discussões que trazem as “subjetividades” e as “historicidades” como elemento de investigação não são recentes. Mesmo num contexto de institucionalização da antropologia como ciência, no qual exigia-se que esta se portasse “neutra” e objetivamente52, já haviam apontamentos da inerente subjetividade e tribulações do cientista. Lê-se em Malinowski (1978, p. 18, grifos nossos): Na etnografia, o autor é, ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador; suas fontes de informação são, indubitavelmente, bastante acessíveis, mas também extremamente enganosas e complexas; não estão incorporadas a documentos materiais fixos, mas sim ao comportamento e memória de seres humanos. Na etnografia, é freqüentemente imensa a distância entre a apresentação final dos resultados da pesquisa e o material bruto das informações coletadas pelo pesquisador através de suas próprias observações, das asserções dos nativos, do caleidoscópio da vida tribal. O etnógrafo tem que percorrer esta distancia longa dos anos laboriosos que transcorrem desde o momento em que pela primeira vez pisa numa praia nativa e faz as primeiras tentativas no sentido de comunicar-se com os habitantes da região, até à fase final dos seus estudos, quando redige a versão definitiva dos resultados obtidos. Uma breve apresentação acerca das tribulações de um etnógrafo – as mesmas por que passei – pode trazer mais luz à questão do que qualquer argumentação muito longa e abstrata. Silva (2000, p. 115) coloca que “comparando os Argonautas com o Diário53, percebe-se como a relação de campo não está isenta de conflito, relações de poder e dominação não totalmente reveladas pelo texto etnográfico”. Ora, a revelação dessas dimensões no texto escrito varia em grau (já que em alguns momentos são mais manifestas que em outros), porém não em natureza, pois há, necessariamente, hierarquias a “autoridades” em busca de legitimação constante. Mesmo tendo considerável apreço ao rigor metodológico pretendido pela denominada “Antropologia Clássica”, é forçoso reconhecer as mudanças que essas questões vêm propiciando à disciplina. Não se trataria de negar ou fazer apologia aos “métodos clássicos” que se pensava pautar a pesquisa em antropologia no seu inicio, mas sim de tentar demonstrar que existem além das heranças, certas interfaces entre autores clássicos e 51 A noção é tomada por ele de Gilbert Ryle (GEERTZ, 1978, p. 15). 52 Ver Gupta e Ferguson (1997). 53 Em “Um Diário no Sentido Estrito do Termo” (MALINOWSKI, 1997), obra póstuma, Malinowski chama seus “informantes” muitas vezes de “insolentes”, “atrevidos”, “brutos”, “estúpidos” e “selvagens neolíticos”. 54 contemporâneos. E que aquela que é, por vezes, considerada como uma “mudança paradigmática” constitui-se, segundo entendo, como um “contínuo hermenêutico”. A citação de Silva (2000, p. 117) demonstra que, mesmo que alguns elementos tenham sido levados, recentemente ao extremo, estes já podiam ser percebidos em obras classificadas como pertencentes à fase clássica da antropologia. As dificuldades de aproximação, a construção do tema de pesquisa durante o trabalho de campo, as implicações dos sentimentos e da condição de classe, gênero e etnia no tipo de diálogo que se travou com os “informantes”, o envolvimento de múltiplos planos que a intimidade com o cotidiano das pessoas acarreta, enfim, as várias encruzilhadas pelas quais passam os antropólogos e seus interlocutores no campo, continuam sendo, desde Malinowski até nossos dias, elementos imprescindíveis para a compreensão do tipo de representações etnográficas que os antropólogos constroem a partir de suas experiências de pesquisa [e também experiências anteriores à pesquisa]. Constata-se que o mito do “pesquisador fantasma”, despido de seus afetos e desafetos, não é condizente com a situação real da investigação. A subjetividade do pesquisador é inerente a qualquer pesquisa antropológica, em qualquer época, e o simples (que não é tão simples) (auto)reconhecimento desta é considerado, por mim, de fundamental importância. Ao elaborar o texto final, ao “estar aqui” nos termos de Geertz (2002), associam-se “estratégias de autoridade” conduzidas por “jogos de linguagem”, nem sempre conscientes, mas que buscam imprimir sentido ao conteúdo. Nesses “jogos” é importante evidenciar alguns elementos constitutivos daquele que fala. Cardoso de Oliveira (2000, p. 66) afirma que se “as condições do trabalho de gabinete” já são por si problemáticas por envolver a “dinâmica dos jogos de linguagem, próprios de nossa disciplina e das congêneres”, não podemos furtar-nos de uma “atitude crítica, ou melhor, autocrítica”. Nesse sentido, através da contextualização reflexiva sobre o interesse de estudo, poderíamos evidenciar, no campo do “jogos”, as “estratégias de autoridade” em suas diferentes formas de manifestação. Clifford (2002), ao discutir sobre a “autoridade etnográfica” do pesquisador, problematiza a influência que os “sujeitos que são observados” tem sobre o pesquisador/autor e o não controle total deste sobre os (seus) dados. Não discordo que tal influência possa proceder, porém é importante atentar que quem faz a seleção desse “outro”, potencialmente influente, é o próprio pesquisador, mediante relações construídas (com) e dos (re)conhecimentos dos “sujeitos que são observados”, alguns dos quais 55 considerados “dignos de fé”. Assim, o autor mesmo sendo influenciado, conserva/mantém ou tenta conservar/manter certo “controle” e “autoridade” sobre o dito, pois, diferentemente da autoridade potencialmente exercida por seus “interlocutores”, é ele que, na textualização final, fará a seleção que imprimirá um sentido particular ao texto e sua inteligibilidade. Parece então impossível negar (ou ao menos desejar) a dialogicidade, a polifonia, as textualizações difusas e outros elementos no “fazer antropológico”, que são evidenciados mais explicitamente pela denominada “Antropologia Interpretativa”. Clifford (2002, p. 54) diz inclusive que “se a etnografia é parte do que Roy Wagner (1980) chama de ‘a invenção da cultura’, sua atividade é plural e além do controle de qualquer indivíduo”. Cabe enfatizar que o autor em questão problematiza um pretenso controle absoluto (“autoritarismo”) do pesquisador sobre o “fazer antropológico” e não a sua “autoridade”, visto que sem certa dose dessa “autoridade” dificilmente seria possível dar sentido a elementos que para determinados públicos, inclusive para o próprio autor, são por vezes ilegíveis. Como afirma Maligheti (2007, p. 27 – 28): O etnógrafo não pode renunciar a própria autoridade, que inexoravelmente se manifesta e lhe funda a função de autor. Por mais que procure substituir o monólogo pelo diálogo, seu discurso permanece assimétrico. (...). No plano do discurso antropológico, a relação etnógrafo-nativo e inevitavelmente hierárquica. (...). Produzir uma etnografia requer decisões sobre o que dizer e como dize-lo, as quais são influenciadas pelos interlocutores a quem nos dirigimos. (...). A etnografia se funda necessariamente sobre uma hierarquia discursiva e sobre a dominação “epistemológica” e escritural do Outro. Por isso, é sempre desequilibrada e assimétrica. Diante desses elementos, é pertinente refletir sobre a natureza da relação pesquisador-pesquisado, a qual é alicerçada nos termos metodológicos da denominada “Antropologia Clássica (Moderna)”. Ao considerar que na natureza da relação pesquisador- pesquisado (entrevistador-entrevistado) está o poder do primeiro sobre o segundo é importante atentar para a citação de Oliveira (2000, p. 23), a qual situa bem a posição do pesquisador na relação: Penso que esse questionamento começa com a pergunta sobre qual a natureza da relação entre entrevistador e entrevistado. (...). No ato de ouvir o ‘informante’, o etnólogo exerce um poder extraordinário sobre o mesmo, ainda que pretenda posicionar-se como observador o mais neutro possível, como pretenda o objetivismo mais radical. 56 Ao perceber não ser possível a “neutralidade” em tais relações, visto considerar que ao propor como recurso metodológico a “observação participante” os chamados clássicos (Malinowski, por exemplo), mesmo “sem consciência” do fato, já assinalavam a “subjetividade” do pesquisador como elemento constitutivo da pesquisa, acho pertinente afirmar que assimetria, hierarquia e “autoridade” são constantes e inelimináveis no “fazer antropológico”, desde os denominados clássicos aos pensadores mais contemporâneos. Algumas situações de pesquisa sinalizam este fato, principalmente se observarmos os discursos dos “sujeitos que são observados” e que corroboram com esse ineliminável contexto assimétrico. Essas facetas de “autoridade” outorgadas ao autor se expressam em vários momentos da pesquisa, sendo o texto final sua maior expressão. A “autoridade” legitimada do autor no ato da escrita e outorgada por aqueles que seriam os “interpretadores de primeira ordem” (GEERTZ, 1997) é visualizável em Malighetti (2007, p. 75), que transcreve o seguinte depoimento: Roberto, você é que tem que dizer isso. [...] Como era, como não era [...]. Estás vendo essa roupa? Eu tenho de lavá-la e voltar pra casa [...] Você é que deve escrever o livro. Por vezes essa legitimidade reconhecida pelos “sujeitos que são observados” pelo “pesquisador” advém também de sua performance e sua demonstração de interesse. Considero que quanto maior o aprofundamento feito sobre determinado tema, mais possibilidades são abertas para seu entendimento. Inquietar-se aqui implica em pesquisar, pensar, escrever e agir liminarmente (ou ao menos tentar). Não se trata de simplesmente, por um lado, defender a “autoridade” do pesquisador em seu fazer etnográfico ou, por outro, propor desconstruir essa “autoridade”, visto que esta se manifesta em diferentes momentos e sob diferentes formas durante a pesquisa, mas de tentar qualificar os ponderáveis do “fazer antropológico” (quem fala, de onde fala, sobre o que fala, pra quem fala, porque fala, etc). Diante dessas considerações, há as “representações” primeiras do autor como um importante material a ser analisado (sobre os “dados de campo”, os “informantes”, as “praias desertas”, em fim, o “fazer antropológico”), o que significa dizer que há influências dessas “representações” sobre o que se observa e como os dados são produzidos. 57 Mesmo sendo um dos autores que problematizam as chamadas “Antropologias Tradicionais” (Inglaterra, França e EUA), Geertz, como aponta Ericksen e Nielsen (2007, p. 178), já se preocupava com as pretensões de superação paradigmática, criticando principalmente o que denominou “geração mais jovem”: O próprio Geertz achava que a geração mais jovem havia ido longe demais, e cunhou o termo “hipocondria epistemológica” para descrever a autocrítica excessiva que impedia as pessoas de realizar um bom trabalho etnográfico. Coaduno com essa leitura de Geertz em partes, pois considero essa “hipocondria epistemológica” um elemento relevante à construção do saber em Antropologia. Reconhecer a importância da subjetividade do pesquisador como um elemento constitutivo da investigação e da construção do saber e esmiúça-la não implica confinar a antropologia à experiência pessoal do pesquisador, nem a repartir a “autoridade etnográfica” com seus informantes, nem negar à disciplina seu específico estatuto de ciência, mas alimentá-la com um elemento pouco reconhecido, a “autoridade” inerente desse saber. Atentar que a experiência do pesquisador é um dado antropológico não implica necessariamente pretender tornar simétrica a relação pesquisador-pesquisado. Percebo, entretanto, que há demandas e contextos nos quais exigem-se “hierarquia” e “autoridade” para possibilitar inteligibilidade. A citação que segue pode dar alguns indicativos à nossa discussão, pois sintetiza a tentativa deste trabalho em problematizar a questão da “autoridade” que se coloca na relação pesquisador-pesquisado. Esta não precisa ser desconsiderada, reconhecê-la já seria relevante. Lê-se em Bourdieu (1989, p. 111) que: ... o objeto da ciência, a saber a concorrência pelo monopólio da divisão legítima também pertence ao domínio da ciência, isto é, está também no campo científico e em cada um dos que nele se acham envolvidos. Isto não implica de forma alguma – antes pelo contrário – que este facto esteja claramente presente na consciência dos investigadores. Ora, a ciência social, que é obrigada a classificar para conhecer, só tem alguma probabilidade, não já de resolver, mas de, pelo menos, pôr correctamente o problema das classificações sociais e de conhecer tudo o que, no seu objeto, é produto de actos de classificação se fizer entrar na sua pesquisa da verdade das classificações o conhecimento da verdade dos seus próprios actos de classificação. 58 À guisa de conclusão acrescentaria que a reflexão sobre a prática do pesquisador tem em si mesma seu potencial criador, numa disciplina que pode nem sempre levar a resultados que assegurem certezas, mas podem instaurar inquietações construtivas. O incentivo a tal exercício reflexivo, para além de qualquer “momento antropológico”, “escola” ou “paradigma”, está na base empírica relativa à disciplina. Esta base (o “trabalho de campo” em antropologia, o “estar lá” segundo denomina Geertz, 2002, o “olhar diferenciado”) a distingue de outras ciências, na medida em que o pesquisador não executa uma coleta de dados pura e simples, mas vivencia uma experiência que certamente o afetará. Como indica Andrade (2003, p. 04): A amplitude ou profundidade de tal experiência dá ao trabalho de campo um significado especial, uma vez que o principal instrumento da pesquisa é o próprio pesquisador na consciência de si mesmo. Portanto, a discussão que tracei nesta etapa reconhece a existência de limites e desafios na pesquisa e na “razão científica”, em geral, e na “cientificidade” da disciplina antropológica, em particular, principalmente no que diz respeito ao “tornar evidente” a subjetividade do autor e percebê-la epistemologicamente. No entanto, é pertinente ressaltar que, parafraseando Oliveira (2000, p. 65), “continuo acreditando na razão e, para fazer eco às palavras de Habermas, diria que a modernidade ainda não se esgotou para começarmos a levar muito a sério essa pós-modernidade”. Essa perspectiva pode servir de indícios para entender a maneira como procurei estruturar esta dissertação de mestrado. 59 3 - COMPREENDENDO OS RAMKOKAMEKRÁ-KANELA: entre classificações e (re)conhecimentos “... o objecto da ciência, a saber a concorrência pelo monopólio da divisão legítima também pertence ao domínio da ciência, isto é, esta também no campo científico e em cada um dos que nele se acham envolvidos. Isto não implica de forma alguma – antes pelo contrário – que este fato esteja claramente presente na consciência dos investigadores. Ora, a ciência social, que é obrigada a classificar para conhecer, só tem uma probabilidade, não já de resolver, mas de, pelo menos, pôr correctamente o problema das classificações sociais e de conhecer tudo o que, no seu objecto, é produto de actos de classificação se fizer entrar na sua pesquisa da verdade das classificações o conhecimento da verdade dos seus próprios actos de classificação” (BOURDIEU, 1989, p. 111). Os Ramkokamekrá54-Kanela são formados por uma diversidade de pequenos grupos ou sub-grupos que guardam entre si certas semelhanças, o que pode explicar o fato de atualmente habitarem um mesmo território. Mël mol-tüm-re é um termo que significa “os que sempre estiveram aqui” e, segundo Silva Junior (2006), é a maneira pela qual os Ramkokamekrá-Kanela se autodenominam. Segundo esse autor, Mël mol-tüm-re teria o mesmo sentido de Ràm-kô-kãm më-kra. Em minha experiência de pesquisa não presenciei os sujeitos pesquisados fazendo uso do primeiro termo, diferente do segundo, que é bem mais comum. Os outros grupos que provavelmente deram origem aos atuais Ramkokamekrá-Kanela foram os “Mateiros”, que também foram chamados de Irom-catêjê (mato-povos), os Xoo-kãm-më-kra (filhos da Raposa), Carë-kãm-më-kra (filho do barro vermelho), Apaniekrá (Filhos da Piranha), e Crôô-re-kãm me-hkra (filhos do Porco queixado). Por habitarem atualmente o mesmo território estes diversos grupos têm suas relações com os “não-índios” pautadas na dicotomia Ramkokamekrá-Kanela/não-índios. Esta designação será utilizada, o que não implica que desconsidero as facções internas desta sociedade indígena. Trata-se de tentar tornar menos confusa nossa explicação sobre o processo migratório que pesquiso. Esta sociedade indígena faz parte daqueless que são classificados na “Família Timbira” e no “Tronco Lingüístico Macro-Jê”. Atualmente ocupam uma faixa territorial no cerrado sul maranhense. Das 11 Áreas Culturais Indígenas/ACI55, que foram classificadas 54 Esse termo, segundo Crocker e Crocker (1994), foi primeiramente utilizado por uma ONG alemã. 55 ACI Norte-Amazonas, ACI Juruá-Purus, ACI Guaporé, ACI Tapajós-Madeira, ACI Alto-Xingú, ACI Tocantins-Xingú, ACI Pindaré-Gurupi, ACI Paraguai, ACI Paraná, ACI Tietê-Uruguai e ACI Nordeste. 60 por Eduardo Galvão e que exponho aqui através de Ribeiro (1982, p. 453-461), os Ramkokamekrá-Kanela estão situados na ACI Tocantins-Xingú56, região esta que fica localizada entre o litoral nordestino, região de maior força das frentes de expansão, e o interior do Brasil, onde os indígenas conseguiram por mais tempo não tão serem atingidos pelos colonos. Esta localização não pode ser menosprezada, pois em cada região o contato se dá de maneira diferenciada e com conseqüências específicas. A região de minha pesquisa foi, por Ribeiro (1982, p. 57), caracterizada da forma que segue: Entre as caatingas áridas do Nordeste e as florestas úmidas da Amazônia estende-se uma região que combina características de ambas. São as campinas do sul do Maranhão banhadas por rios permanentes, protegidos por florestas ciliares e entremeados de tufos da mata e de palmais. Este era o território de algumas tribos relativamente populosas e altamente especializadas à região. Eram os Timbira, que constituíam originalmente quinze tribos, das quais somente quatro alcançaram o século XX. A localização entre as regiões acima citadas pode indicar algumas hipóteses quanto às especificidades das sociedades indígenas dessa área, principalmente no que se refere a suas constantes relações com os “não-índios” e sua manutenção cultural, a qual pode estar fundamentada tanto em suas organizações sociais diferenciadas como nas maneiras próprias que dão sentido às suas interações. Regionalmente, os Ramkokamekrá-Kanela são também conhecidos, juntamente com os Apanjêkrá-Kanela57, pela designação “Canela”. Compartilhar um etnômio pode estar relacionado às semelhanças de suas organizações sociais e seus diacríticos corporais. As similitudes não significam que estes “índios” são iguais, pois cada sociedade guarda suas peculiaridades, principalmente no que tange à relação com os “não-índios” da região. O etnômio “Canela”, como apontam Ribeiro58 (2002, p. 175) e Crocker & Crocker (1994), 56 Além dos Ramkokamekrá-Kanela, como coloca Ribeiro (1982, p. 459), foram ainda classificados nesta ACI os Krahó, Apinayé, Gavião, Krem-yé, Krikatí, Xerénte, Xavante, Gorotíre, Kubén-Kran-Kegn, Ubén- Kragnotíre, Mentuktíre e Txukahamêi, Dióre, Xikrin, Kreen-Akaróre, Arara, Asurini, Parakanân, Mudjetíre, Tapirapé, Karajá e Borôro. 57 Estes indígenas habitam terras próximas as dos Ramkokamekrá-Kanela, mas não tem relacionamentos muito amistosos. Porém, são jurisdicionados pelo mesmo pólo da Fundação Nacional do Índio. 58 É importante ressaltar que neste livro/documento encontram-se as memórias de Francisco de Paula Ribeiro que, conforme lê-se em Ribeiro (2002, p. 7), “foi um militar que galgou quase todos os postos constitutivos da hierarquia vigente em seu tempo, em decorrência de penosos e relevantes serviços prestados à causa portuguesa no último quartel do período colonial do Maranhão”. Este militar em muito contribuiu para a compreensão do que hoje identificamos como o cerrado maranhense e suas populações indígenas ou não. Cf: Ribeiro (2002, p. 7-27). 61 pode ser devido ao tipo físico desses indígenas, pois se comparados aos Tenetehara- Guajajara59 e aos regionais “não-índios” possuem as canelas60 mais finas. Pelo fato de o termo “canela” ser corriqueiramente utilizado pelos “não-índios” da região, entendemos ser pertinente designarmos os sujeitos indígenas de nossa pesquisa por Ramkokamekrá-Kanela, pois assim os diferenciamos dos “não-índios” e dos indígenas Apanjêkrá. Aos Ramkokamekrá-Kanela, como percebe-se, diversas classificações são aferidas, as quais trazem por conseqüência seu reconhecimento, tanto no nível mais empírico ou das relações cotidianas, como mais teórico ou das grandes teorizações antropológicas. A relevância das classificações, como Bourdieu (1989, p. 115) já alertou, se dá pelo poder que elas tem de produzir a existência daquilo que enunciam. Sendo assim, algumas classificações são fundamentais para compreender a dinâmica social do Ramkokamekrá- Kanela e de seus processos migratórios. Não desconsidero que as classificações são construções exógenas e arbitrárias, o que não significa estarem incorretas, já que as mesmas também dependem de conteúdo empírico/etnográfico. Como sabemos, “todo antropólogo, em princípio, deve começar sua carreira escrevendo uma etnografia” (GOMES, 2008, p. 63). O autor entende a etnografia como “o documento básico, de cunho empírico, pelo qual a Antropologia se legitima como disciplina acadêmica” e a partir da qual são possíveis as mais variadas análises, desde a descrição de um evento específico até a formulação de uma teoria mais ampla por via comparativa61. 3.1 – O Tronco Lingüístico Macro-Jê Buscar entender uma situação envolvendo os Ramkokamkerá-Kanela implica tentar compreender uma vasta produção etnográfica, a qual perpassa os estudos sobre os “índios” de língua Jê62 no Brasil. No que se refere a essa produção apreende-se por Gordon Junior 59 É uma sociedade indígena classificada na “Família Tupi” e habita também as terras do estado do Maranhão. Ver Coelho (2002) e Zanonni (1998). 60 Conforme Ferreira (2004), “canela” é “a parte da perna entre o joelho e o pé”. Sendo esta a definição que queremos dá nesse contexto. 61 Gomes (2008, p. 65) afirma que “o exercício de comparação entre culturas ou entre costumes de culturas diferentes foi praticamente banido (da Antropologia) como método”. Mas em seguida o autor alerta que isso se deu apenas em tese, “porque na prática ninguém jamais deixou de fazer comparações em seus raciocínios, algo realmente inato na lógica da ciência” (GOMES, 2008, p. 65). 62 Gordon Junior (1996, p. 2) coloca que o termo Jê, para classificar determinados grupos em uma família lingüística, é batizado por Martius (com SPIX, 1823-31) e advém do sufixo coletivo “-yê”. Esse sufixo 62 (1996) que existem três momentos fundamentais: as descrições de Curt Nimuendajú63, as teorizações dos pesquisadores do Havard Central Brazil Project64 (coordenado por Maybury-Lewis) e a retomada65 dos grupos domésticos, com seus sistemas de aliança e descendência, como meio para entender os processos experimentados por estas sociedades. Quando falo em Jê ou sociedades classificadas no Tronco Lingüístico Macro Jê no Brasil me refiro às populações indígenas localizados na porção subandina da América do Sul. As terras brasileiras estão por completo nesta porção. A grande dimensão territorial dessa área pode indicar elementos que propiciem entender os diferentes relacionamentos que essas populações tiveram (e mantém) com outras alteridades. Certamente que não estou considerando que os aspectos geográficos determinam absolutamente as performances culturais, pois como já disse Boaz (2004, p. 62) “as relações espaciais dão apenas a oportunidade para o contato; os processos são culturais e não podem ser reduzidos a termos geográficos”. Porém, é importante também considerar que a localização geográfica de uma dada sociedade, indígena ou não, propicia a esta diferentes “oportunidades para o contato”, o que pode repercutir na sua maneira de experimentar a relação com a alteridade. Os Jê, mesmo compartilhando diversas semelhanças, guardam diferenças lingüísticas, econômicas e culturais, as quais podem estar relacionadas aos aspectos também é explicado por Azanha (1984), que o relaciona a grupos específicos que compartilham de elementos comuns, mas que sendo diferenciados compartilham prescrições ritualísticas e de parentesco. 63 Em Laraia (1988, p. 01 – 08), que traz um pouco da biografia deste personagem, lê-se que “em 1903, procedendo da Alemanha chegou ao Brasil o jovem Curt Unkel, nascido em Jenna, em 1883. O seu único objetivo era o de conhecer os índios brasileiros. Com efeito, de 1905 a 1945, somente não esteve entre os índios em 1943 e 1944”. Entrou em contato com os índios “Guarani, Kaigang, Ofaié, Oti, Terena, Tembé, Urubu-Kaapor, Aparai, Yuruna, Xipaya, Arara, Kayapó, Parintintin, Mura, Pirahã, Tora, Matanawi, Mawé, Palikur, Baniwa, Wanana, Tariana, Tukano, Maku, Apinaué, Canela, Krikarti, Krempunkateyé, Pukobie, Guajajara, Tukuna, Xerente, Krahô, Funiô, Xucuru, Pataxó, Kamakã e Maxacali”. “Em 1906, os índios Apapukuva-Guarani, localizados em São Paulo, deram-lhe o nome de Nimuendajú. (...), em 1922, naturalizou-se brasileiro adotando o nome de Curt Nimuendajú. Morreu entre os Tukuna, no Alto Solimões, em dezembro de 1945”. As causas e responsáveis da morte de Nimuendajú ainda são misteriosas (ver Laraia, 1988). “O seu auto-didatismo [de Nimuendajú] foi compensado quando tornou-se correspondente do antropólogo americano Robert Lowie”. “Nimuendajú foi também um pioneiro no estudo do parentesco entre os índios do Brasil”, além de sempre ter recusado “ter um contato mais direto com o mundo acadêmico”. Para outras informações ver Crocker (1990, p. 7). 64 “O Havard Central Brazil Project foi um programa de pesquisa coordenado, envolvendo pesquisadores do Museu Nacional e de Havard, entre 1962 e 1967. O projeto tinha por meta um estudo comparativo das sociedades Jê, baseado em uma série de pesquisas individuais, cobrindo uma parte representativa dos subgrupos. (...). Além de Maybury-Lewis, os principais pesquisadores associados ao HCBP foram Terence Turner e Joan Bamberger Turner (que realizaram pesquisas entre os Kayapó), Roberto DaMatta (Apinayé), Julio César Melatti (Krahô), Jean Carter Lave (Krikatí) e Christopher Crocker (Bororo)” (GORDON JUNIOR, 1996, p. 52-53). Note-se que paralelamente ao HCBP ocorreram produções sobre os atuais Ramkokamekrá-Kanela, as quais forma operacionalizadas por William Crocker, da Smithsonian Institution. 65 Os estudos de Maria Elisa Ladeira, durante a década de 80, são deste momento. 63 geográficos de suas localizações. Os aspectos que justificariam certas diferenças são inúmeros e não cabe aqui tentar hierarquizar-los. Todavia, parece que foi a questão da localização geográfica que deu base para a classificação dos Jê em três subgrupos principais: os Jê Setentrionais, os Jê Centrais e os Jê Meridionais. Gordon Junior (1996, IX) assim enumera: Os Jê Setentrionais ocupam uma larga faixa que se estende desde o nordeste brasileiro (sul do Maranhão) e sudeste do Pará, através de Tocantins e Goiais, até o limite norte do Parque Indígena do Xingu. De norte para sul, temos os grupos Timbira Orientais (Canela-Ramkokamekrá, Apaniekrá, Gaviões – Parakateyê e Pukobiyê -, Krikati e Krahô); Apinayé (que são normalmente classificados como Timbira Ocidentais, mas que muito se aproxima lingüisticamente dos Kayapó); Kayapó Setentrionais ou Mebengokre (Xikrin o Gorotire); Suyá e Krenakarôre ou Panará (estes últimos dois grupos foram deslocados para o Parque do Xingu. Os Panará são ainda considerados como descendentes dos Kayapó Meridionais). Os Jê Centrais dividem-se no povos Xavante (ocupando majoritariamente os estados de Mato Grosso e Goiás, nas regiões dos formadores dos rios Xingu e Araguaia); Xerente (habitando o estado do Tocantins, altura do médio rio Tocantins); e Xacriabá (que habitam o nordeste do estado de Minas Gerais). Os Jê Meridionais dividem-se nos povos Kaingang e Xokleng que espalham-se em pequenas e fragmentadas áreas indígenas nos estados da região sul. Estas populações doravante foram compreendidas como “sociedades fechadas à exterioridade”, muito devido ao “esquematismo simbólico-espacial da aldeia” (GORDON JUNIOR, 1996, XII). Todavia, parece que essa perspectiva tem diminuído, o que abre espaço para a construção de modelos mais teóricos que em níveis simbólicos apontem elementos para o entendimento de suas relações com a alteridade. Gordon Junior (1996, XI), ao citar Viveiros de Castro (1986) e Kaplan (1984), afirma que: Parece haver atualmente a inclinação por parte desse grupo de americanistas para a hipótese de que a compreensão das sociedades ameríndias requer uma investigação sobre os modelos pelos quais são estruturadas e conceitualizadas em diversos níveis simbólicos as relações com a alteridade. O trabalho de Gordon Junior (1996) é importante para essa discussão, pois apresenta a parte da trajetória dos estudos Jê e a possibilidade de uma investigação comparativa acerca do lugar e da função da alteridade nessas sociedades. Ao entender que a relação com a alteridade se manifesta em diversos níveis, na família, na aldeia, entre aldeias 64 e com o sobrenatural, certamente pode-se estendê-la para a compreensão da experiência frente aos “não-índios”. Outros apontamentos sobre os Jê também colaboram com a temática especifica em discussão, principalmente no que se refere aos sistemas de aliança, que dinamizam tais relações e reproduzem a lógica do contato com a alteridade. A escolha deste caminho para situar a análise exige contextualizar o momento em que essas populações, classificadas de Jê, se constituíram como “problema” antropológico. Trata-se dos anos 40 e 50, que com as produções de Nimuendajú possibilitaram a sistematização dos diversos relatos de cronistas e viajantes66 que antecederam este “etnólogo autodidata”. Nimuendajú passa a ser essencial, desde então, para os futuros trabalhos os Jê, principalmente. Citando Carneiro da Cunha (1993: 82), Gordon Junior (1996, p. 2) corrobora a afirmação da autora ao considerar que “com Nimuendajú, os Jê tornam-se parte integrante do universo antropológico”, mas ressalta que... (...) isto se deveu, em grande parte, ao comprometimento de Lowie, que enxergou nos dados de Nimuendajú elementos de importância central para o desenvolvimento da antropologia tipológico-comparativa, de base empírica, que praticava. Este outro contexto demarcaria o “ressurgimento das preocupações com macro- sínteses das formas sociais” (GORDON JUNIOR, 1996, p. 4). Tal projeto teórico ganha forma, respectivamente nos anos 1932 e 1939, com o Handbook of South American Indians67 e Smithsonian Institution68, os quais buscavam explicar a estrutura social dessas populações, seu dualismo, os sistemas de parentesco e a discrepância entre sua complexa organização social e o seu, nos termos de Gordon Junior (1996), “baixo” desenvolvimento econômico e material. 66 “No século XIX, as descrições mais conhecidas eram a de Francisco de Paula Ribeiro (1841, 1870) que esteve entre os Timbira de 1800 a 1823; Martius (com Spix, 1823-31), que batiza a família lingüística, utilizando pela primeira vez o termo Jê, a partir do sufixo coletivo ‘-yê’; Pohl (1832) sobre os Kayapó e menções aos Jê Centrais; Castelnau, que encontrou os Krahô em 1844, tomando-os por um grupo Apinayé (1850-59); Couto de Magalhães, que visitou os ‘Coroá’ (Kayapó); Coudreau (1897), que esteve entre os Timbira e Kayapó; e Von den Steinen (1894), que descreve sua célebre viajem, de 1887 a 88, entre os ‘aborígenes do Brasil Central’” (GORDON JUNIOR, 1996, p. 1-2, grifo meu). 67 Para os impasses entre a previsão teórica do projeto e o que a prática demonstrou, ver Gordon Junior (1996, p. 4 – 6). É importante atentar que a própria complexidade das organizações sociais dos diversos grupos Jê, a despeito da previsão teórica de alguns autores, foi importante para inseri-los no cenário da etnografia Sul- americana. 68 Ver www.si.edu/Museums ou http://pt.wikipedia.org/org/wiki/Smithsoniam_Institution. 65 Se estes eixos de pesquisa ajudam a significar os Jê frente à antropologia, essa nova visualização torna possíveis e pertinentes novas produções sobre outras temáticas, as quais recairão principalmente sobre questões de aliança, descendência, identidade e alteridade. Esses eixos são relevantes na medida em que imprimem tentativas de explicações de como essas populações podem tentar equacionar/significar suas relações com sujeitos que, a princípio, são afins e que podem ser consangüinizados ou com aqueles que podem, no decorrer do tempo, se afinizar ou serem afinizados. A segunda situação parece se aproximar da situação dos Ramkokamekrá-Kanela que experimentam processos migratórios. 3.2 – A Família “Timbira” Mesmo que reduzida, nossa estada na aldeia dos indígenas com os quais desenvolvi esta pesquisa tem demonstrado a reprodução de alguns elementos já observados no início do século XX por Nimuendajú, os quais serão oportunamente evidenciados, sobretudo quando consideramos que grande parte do material de Nimuendajú foi obtida entre os atuais Ramkokamekrá-Kanela. Antes, porém exporei algumas informações que dizem respeito aos “Timbira Orientais”69, grupo no qual os Ramkokamekrá-Kanela são classificados. O termo “Timbira” foi utilizado por Nimuendajú para diferenciar as sociedades indígenas que, entre os Jê, foram submetidos a situações análogas de contato interétnico com os “não-índios”. Citando NIMUENDAJÚ (s/d, p. 08), Libório (s/d, p. 36) afirma que “o termo Timbira refere-se, (...), as ligas que estes usavam amarradas nas canelas, nos braços, no pescoço e na testa, que etmologicamente seria ‘composto do verbo tí = amarrar + o passivo píra cujo p- inicial regularmente depois de um nasal se transforma em mb-. Timbira significaria então ‘os amarrados’”. A citação condiz com parte de minhas observações mais recentes na Aldeia Escalvado, sendo que hoje esses ornamentos são utilizados pelos Ramkokamekrá-Kanela principalmente em festividades e reuniões70. 69 Os Apinayè são classificados como “Timbira Ocidentais”. 70 É importante frisar que estas ligas feitas de palha foram os primeiros presentes que nos foram oferecidos em nosso primeiro contato com essa aldeia. 66 Foto 1 - “Ramkokamekrá-Kanela dançando em abril de 2007” (OLIVEIRA, 2008). Em seguida temos os mesmos ornamentos utilizados em um momento de reunião no pátio da aldeia. Foto 2 - Reunião no pátio da aldeia Escalvado em 2006 (MACENA, 2007). Diferente do que tende-se a supor, o termo “Timbira” não foi estabelecido, nem inaugurado por Nimuendajú, pois há indícios de que no período colonial do estado do Piauí esta denominação já era utilizada para designar algumas populações indígenas. Em Carvalho (2008, p. 97, 99 e 102, respectivamente) lê-se: “Que morram os Timbira e se salvem as fazendas de Sua Majestade!!!” Esta era a ordem dos ouvidores que atuaram no Piauí no período colonial no momento em que se fazia a conquista dos sertões tomados aos indígenas pelos vaqueiros e fazendeiros procedentes do litoral na pista do gado. 2ª Testemunha: Zacarias Garcia Paz: - Este é morador na fazenda das “Caraíbas”, da Ribeira do Gurguéia, e acusa os índios Timbira e os na nação Gueguê de terem invadido uma fazendo chamada “Gameleira” e aí terem matado muito gado e queimado a casa dos vaqueiros. 67 A documentação datada dos anos de 1734, 1737, 1738 e 1738 relativa aos índios Timbira, com o acréscimo dos autos das testemunhas, cujos depoimentos acabo de resumir, constitui, no conjunto, o processo jurídico justificativo da condenação dos Timbira. Gueguê, Acoroá-Mirim e Acoroá-Açu à escravidão pelo sistema da chamada “guerra justa”, com respaldo na lei de 1655. Mesmo diante dessa “guerra justa”, que segundo Carvalho (2008, p. 99) estaria embasada por uma Lei de 3 de abril de 1655, documento regulador da guerra entre brancos e “índios” em todo o Estado do Maranhão e Grão-Pará (incluindo-se o Piauí), segundo Azanha (1984, p. 6), os “Timbira” chegaram até o final do século XIX compondo-se de 15 grupos, os quais ocupavam toda a porção dos cerrados do atual estado do Maranhão (central e meridional) e parte norte do Goiás, atual Tocantins. Este imenso território é limitado, ao norte, pelos cursos do rio Gurupí, Grajaú e Mearim; a leste, o alto Itapecurú e formadores; o rio das Balsas ao sul e o Tocantins a oeste, desde a desembocadura do rio Manuel Alves grande até bem abaixo da desembocadura do Araguaia. 68 Mapa 1 - “The Timbira and their neighbors, past and present” (CROCKER e CROCKER, 1994, p.14). O mapa acima demonstra as sociedades indígenas, com suas respectivas localizações, que formavam aquilo que Nimuendajú (1944) chamou de “País Timbira”, o qual seria composto pelas seguintes sociedades indígenas: Timbira de Araparytiua (Gurupi), Kreyé de Bacabal, Kukóekamekra, Kreyé de Cajuapara, Kre/púmkateye, Pukópye, Krikateye, Gaviões da Mata, Apanjêkrá, Ramkokamekrá, Kenkateye, Krahô, Cakamekra, Porekamekra e Apinayé. Estes, afirma Nimuendajú (2001, p. 151), são assim classificados por serem “um povo física, lingüística e culturalmente caracterizado como da família Jê, que disperso, habitava o interior do Maranhão e partes limítrofes dos Estados do Pará, Goiás e Piauí”. 69 As inúmeras semelhanças entre esses “índios”, como “corte de cabelo específico (notadamente o desbastamento de uma linha na região das têmporas, ou ‘hair furrow’, nas palavras autor), batoques auriculares, corridas de tora, e por habitarem aldeias circulares, cujas casas dispõem-se em circulo na periferia da aldeia, ligadas por ruas radiais (prikarã) ao pátio central (kà – um círculo com cerca de 50 metros de diâmetro)” (GORDON JUNIOR, 1996, p. 6), levaram a serem entendidos como formando uma “unidade étnica” (NIMUENDAJÚ, 1944). Citando Nimuendajú (1946), Gomes (2007, p. 18) diz que: The Timbira know that they are several tribes of a major ethnic unit, which they define above of all – apart from the greater or lesser linguistic homogeneity – by the presence of the hair furrow, earplugs, circular form of settlement, and log racing. Acerca dessa questão, não se deve deixar de considerar que as semelhanças, como expõe Gomes (2007, p. 18), não sucumbem as diferenças. Talvez por isso Nimuendajú (1946) insistiu que cada grupo que pesquisou tinha sua própria “individualidade étnica”71. Coaduno com essas inferências e acrescentamos, utilizando os termos de Azanha (1984) ao se referir à “Forma Timbira”, que esta, mesmo possibilitando visualizar uma “grande unidade” é vivenciada de maneira peculiar em cada uma dessas sociedades, encerrando em si esta forma e reproduzindo-se. Como afirma AZANHA (1984, p. 15), “a totalidade implícita na unidade Timbira seria mais bem definida pela idéia de ‘totalidade expressiva’ (Althusser e Balibar, 1975, p. 105) onde cada parte encerra em si própria a totalidade e que só se reproduz através da autonomia das suas partes”. A autonomia das partes, dos grupos específicos, seria o que evidenciaria o próprio conjunto do todo ou o todo se inter-relacionando e se reproduzindo autônoma e coletivamente. 71 Ao trazer o elemento “individualidade étnica”, Nimuendajú contribui aos estudos dos “Timbira”. Porém, é necessário salientar que a identificação desses grupos como “unidade”, mais ou menos similares, é anterior ao etnólogo alemão. Como afirma Azanha (1984, p. 7), o Major Francisco de Paula Ribeiro, comandante da guarnição de Pastos Bons no Maranhão no final do século XVIII e inicio do XIX, coloca que “A nação Gamella... não forma contudo mais do que três ou quatro povoações; porém a nação Timbira, super abundantemente numerosa, tem absorvido com inumeráveis aldeias quase todo o âmbito central desses terrenos da capitania do Maranhão, que ainda estão por nós desabitados”. 70 3.3 - Aspectos organizacionais de uma sociedade indígena Para tentar compreender a dinâmica dos Ramkokamekrá-Kanela frente ao contexto que o cerca se faz necessária evidenciar alguns aspectos que classificam essa população indígena de maneira específica. Neste caso, apresenta-se uma série de elementos. Geralmente, um dos primeiros elementos com que se depara o pesquisador ao chegar em uma aldeia “Timbira”, como ocorreu comigo em agosto de 200372, é o seu formato. Os diversos trabalhos produzidos sobre os “Timbira”, dos quais ressalta-se aqueles produzidos sobre os Ramkokamekrá-Kanela, demonstram que suas aldeias têm um formato circular. Gordon Junior (1996, p. 7) traça um esquema da aldeia “Timbira”, o qual é expressado pelo gráfico que segue: Gráfico 1 - Esquema geral de uma aldeia “Timbira” (GORDON JUNIOR, 1996). A Aldeia habitada pelos atuais Ramkokamekrá-Kanela obedece esse padrão, o qual não tem sofrido alterações significativas no decorrer dos anos, pois mantém essa circularidade característica. 72 Caracterizo este primeiro contato como uma “passagem”, literalmente, já que não fiquei na Aldeia Escalvado nem 24 horas, pois a pesquisa que acompanhava no momento era do atual Cientista Social Jonaton Junior, formado pela UFMA, o qual estava mais interessada em colher informações sobre a relação entre índios e sertanejos, mas a partir da perspectiva dos segundos. 71 Foto 3 - Aldeia Escalvado em 1970 (CROCKER E CROCKER, 1994, p. 2) Em janeiro de 2009, ao explicar-me sobre como se dava a passagem de uma categoria de idade para outra, Cornélio Pijapit, que naquele momento era o cacique da Aldeia Escalvado, se utilizou de um desenho feito por ele, no qual a figura da aldeia é semelhante às acima expostas, ou seja, o desenho muito se assemelhou ao gráfico de Gordon Junior (1996) e à fotografia de Crocker e Crocker (1994). Além disso, constatei esse formato nas viagens à Aldeia Escalvado. O croqui elaborado por Nelma Rolandes73 ilustra tal modelo. Gráfico 2 - Croqui da Aldeia Escalvado (OLIVEIRA, 2008). 73 Graduada em Artes pela Universidade Federal do Maranhão e integrante do Grupo de Estudos “Estado Multicultural e Políticas Públicas” (DEPSAN/UFMA). 72 A circularidade peculiar dessas aldeias é constatada de imediato, porém são poucas as tentativas de explicá-la. Em Melatti (1974) encontrei uma reflexão acerca dessa forma redonda, embora reconheça que essa questão é um mistério, já que ela é naturalizada pelos próprios “índios”. Diante da pergunta “Por que a aldeia é redonda?”, feita a Mellati (1974, p. 1) por um jornalista da Gazeta Esportiva numa aldeia Krahô em 13 de janeiro de 1965, ele diz: A pergunta era difícil de responder e nem eu e nem os índios ensaiamos de lhe dar uma resposta satisfatória. Perguntar a um índio craô porque faz sua aldeia redonda seria o mesmo que perguntar a queima roupa a um civilizado por que, entre nós, os homens usam calças. As hipóteses mais elucidativas que o autor chega referem-se ao respeito aos costumes e a solidariedade da comunidade. Primeiramente, à pergunta “Por que a aldeia é redonda?”, Melatti (1974) sugere que a resposta está associada aos costumes e sua continuidade temporal, logo os “índios” afirmarão: “porque os antigos também faziam assim”. Porém, esta resposta parece não satisfazê-lo, pois apenas retruca a pergunta. Sendo assim, a partir de informações de um líder indígena Krahô, o autor propõe que esta pode estar relacionada às relações de solidariedade que estes sujeitos devem nutrir entre si. Melatti (1974, p. 1) então coloca que... (...), uma vez um líder indígena repreendia os demais habitantes da aldeia porque não estavam, todos eles dando ajuda coletiva no plantio das roças de cada família. Ele lhes perguntava mais ou menos assim: “Por que as casas estão em círculo? Por que nos reunimos no pátio?” Suas palavras mostram que o líder associava a forma da aldeia à solidariedade que devem manter entre si os habitantes da mesma. Como decorrência destas explicações, que colocam a herança ancestral e a solidariedade como “definidores” do formato da aldeia, emergem-se categorias que nos ajudam a pensar o nosso objeto. Se por um lado a expressão herança ancestral pode remeter à idéia de defesa da comunidade indígena como um todo em relação aos de fora dessa comunidade, por outro, ao serem exigidas que as relações sejam solidárias intra- comunidade percebe-se que existem divergências internas, as quais podem ser equacionadas pelo estabelecimento de alianças. 73 Uma aldeia circular para essas populações parece dificultar possíveis incursões ofensivas de inimigos, além de prover relações entre grupos domésticos74 que sejam econômica e culturalmente significativas. Melatti (1974, p. 3, grifo nosso) considera que a forma circular da aldeia seria a mais econômica para representar, simbolicamente, as diversas oposições inerentes aos “Timbira”, já que equacionaria comportamentos nas relações entre as diversas sub-unidades. O congregar-se numa aldeia juntamente com outros grupos domésticos devia de ser essencial para a defesa. Além disso, as pessoas nascidas no seio de um mesmo grupo doméstico ou de um segmento residencial não podem casar ou ter relações sexuais entre si, o que as obriga a procurar seus amantes ou cônjuges fora de seu segmento residencial. Tais contactos se tornam mais fáceis se vários segmentos residenciais se reunirem na mesma aldeia. Essa proibição de relações sexuais entre pessoas nascidas no mesmo segmento, não explicado pelos craôs, mas visível através de recenseamento, constitui uma maneira de obrigar os membros de um segmento a fazerem aliança com os membros de outro, estreitando assim a solidariedade entre eles. Assim, o casamento entre núcleos domésticos de diferentes segmentos residenciais e sua reunião numa aldeia atenderia às necessidades de defesa. O caso específico em questão nos ajuda em nossa dissertação na medida em que a partir dele é possível entender que se a aldeia é vista como um compósito de grupos internamente diferenciados que se relacionam, possuem regras de relacionamento e se solidarizam, é possível inferir que a ida para a cidade de alguns indígenas pode ser significada também como um desdobramento de relações com a alteridade já presentes em outros momentos. O estabelecimento de alianças parece ser a chave para compreender tanto situações intertribais como interétnicas75. Após essa breve apresentação sobre a disposição espacial de uma aldeia “Timbira”, passo a especificar as diversas unidades que a compõem. Ressalto que grande parte das informações aqui apresentadas foram obtidas entre os Ramkokamekrá-Kanela, em momentos e por autores variados, e talvez essas não lhes sejam exclusivas. 74 Sobre essas divisões entre os “Timbira” (familiar elementar, grupo domestico e segmento residencial) falaremos adiante. 75 Utilizo o termo “intertribal” para fazer referência às relações entre indígenas, já o termo “interétnico” é utilizado em relação à interação entre indígenas e não-indígenas. 74 Os apontamentos feitos por Nimuendajú (1944) revelam a complexidade da organização social e ritual dos “Timbira”,76 os quais teriam um elaborado sistema de metades, compreendendo “tanto metades exógamas (matrilinares) quanto não-exógamas, de função cerimonial, definidas por outros critérios que não a descendência” (NIMUENDAJÚ & LOWIE, 1937 APUD GORDON JUNIOR, 1996, p. 7)77. A leitura de Nimuendajú (2001) e Gordon Junior (1996) aponta também para outro aspecto: como outros “Timbira” (com exceção dos Apinayé), os Ramkokamekrá-Kanela são divididos em metades exogâmicas matrilineares, pela descendência, e uxorilocais78, pela residência. As metades mais evidenciadas são as do oeste, denominada Harãkateye, e as do leste, chamada Köikateye. Do lado leste encontram-se os subgrupos Kupê (tribo estrangeira), Kétre (papagaio anão) e Aucét (tatu). No lado oeste tem-se os Codn (Urubu), Cepré (morcego) e Haká (jibóia)79. Como afirma Gordon Junior (1996, p. 8), outras “unidades sociais” agrupam os indivíduos Ramkokamekrá-Kanela; São elas: (a) a família individual; (b) a família extensa matrilinear; (c) metades exógamas matrilineares; (d) metades “da estação chuvosa” (rainy-season moieties), não-exógamas; (e) os grupos do pátio (plaza groups); (f) as metades do pátio (plaza moieties); (g) as classes de idade; (h) as metades de classes de idade (enfeixam as classes de idade); e finalmente (h) seis sociedades masculinas. A existência dessas diversas unidades diferenciadas pode indicar que constantemente esses grupos estão acionando estratégias para se relacionar com a alteridade. A família individual, regulada pela regra de residência uxorilocal, compõem-se de um homem, uma mulher e seus filhos. O conjunto de famílias individuais, que podem ocupar uma mesma residência, forma o que Nimuendajú chamou de “família extensa matrilinear”. Às famílias extensas80 cabem as tarefas de cooperação, principalmente pela ajuda prestada pelo homem que ingressa na família da esposa pelo casamento. A situação 76 Para compreender mais detalhadamente os aspectos da organização social dos Ramkokamekrá-Kanela é relevante o exemplar trabalho de Nimuendajú (2001) intitulado “A corrida de toras dos Timbira”. 77 A “descendência”, juntamente com a “aliança”, serão considerados relevantes para compreender a dinâmica dos grupos “Timbira” principalmente na segunda metade do século XX. 78 Nimuendajú (2001) chamava de “matrilocal”. 79 Ver Nimuendajú (2001, p. 158). 80 São também chamados de “grupos domésticos”. 75 de “ajudante dos sogros” permanece até o nascimento do segundo ou terceiro filho, quando uma casa é construída pelo esposo, a qual fica geralmente do lado ou atrás da casa dos pais da esposa. Ao considerar que a família individual é a unidade básica das aldeias “Timbira”, apreende-se que as relações fora desta seriam caracterizadas como relações com a alteridade. A dinâmica das altamente complexas “unidades sociais” dos Jê (incluindo aí os “Timbira” e por conseqüência os Ramkokamekrá-Kanela) indicam a necessidade de manter relacionamentos com outras unidades que não fazem, a principio, parte do meu grupo específico, o que se evidencia em diversas instituições desses indígenas, como a nominação e a amizade formal. A “nominação” tem regras especificas entre os Ramkokamekrá-Kanela, pois se dá pela linha materna para os filhos e pela linha paterna às filhas81. Esta característica é sensivelmente diferente entre os Krahô, a qual foi resumida por Melatti (2007, p. 6) da maneira que segue: Quanto às regras para a transmissão do nome pessoal, o indivíduo do sexo masculino recebe nome daqueles parentes consangüíneos a que aplica o termo keti, o qual engloba, entre outras categorias de parentesco, o irmão da mãe, o pai da mãe, o pai do pai e seus primos paralelos. Já o indivíduo do sexo feminino recebe o nome pessoal das parentas consangüíneas a que aplica o termo de parentesco tëi, que abrange, entre outras categorias de parentesco, as de irmã do pai, filha da irmã do pai, mãe do pai, mãe da mãe e suas primas paralelas. Colocando o nominado em relação com uma unidade familiar (do nominador) que não é a sua família individual, tal especificidade caracteriza a busca por estabelecer alianças, a qual pode ser visualizada pelos processos de consanguinização e afinização dos agentes. Se nessa situação o nominado se distancia relativamente de sua família progenitora, se afinizando, ele também passa ao mesmo tempo por um processo de incorporação, consangüinização, em outras unidades familiares (a do irmão da mãe ou irmã do pai, por exemplo) e localizações sociais. Nesse processo, a “necessidade de reciprocidade” (NIMUENDAJÚ, 1944) vigoraria, pois dar o nome ao filho da irmã implica nesta ficar comprometida a nomear ou 81 Esta característica é obedecida quando ocorre na aldeia o chamado “batismo de branco”, que é quando um não-índio recebe na aldeia um nome, juntamente com uma família, e suas atribuições. Observei que a escolha do nominador respeita a hierarquia etária. 76 nominar a filha do nominador. Lê-se no trabalho de Gordon Junior (1996, p. 17) que “Nimuendajú ressaltava que os nomes eram transmitidos por linha materna no caso de um menino e linha paterna no caso de uma menina”. Segundo Melatti (1976), ao serem nominados os indivíduos são inseridos em duas grandes metades82 (Wakmenye ou Katamye, entre os Krahô), sendo que esta classificação não os imobiliza socialmente, já que outras unidades existem e obedecem outros critérios de inserção, os quais para serem identificados demadam pesquisas específicas sobre seus mecanismos. Acredito que é suficiente, neste momento, apenas indicar que a leitura de Nimuendajú (2001, p. 150-160) sugere que entre os Ramkokamekrá-Kanela as duas grandes metades seriam Kámakra, relacionada aos Kóikateye, e Atúkmakra, vinculada aos Harãkateye, assim caracterizadas83: KÁMAKRA ATUKMAKRA Leste Oeste Sol Lua Dia Noite Estiagem Chuvas Fogo Lenha Terra Água Tinta vermelha Tinta preta Quadro 1 – Designação das metades entre os Ramkokamekrá-Kanela O evento denominado “corrida de toras”84 deixa claro que a classificação em determinadas metades não são tão imobilizadores, pois a localização dos sujeitos durante a corrida vai depender da festividade. Logo, se um sujeito era meu “adversário” em uma corrida, em outra pode ser meu “companheiro”. Esta cerimônia não é entendida como uma competição, pois serviria para evitar conflitos entre grupos divergentes. Todavia, aquele que “vence” recebe grande reconhecimento na aldeia e, geralmente, a ele é atribuída a 82 Como lê-se em Nimuendajú (2001, p. 157), “a qualidade de membro é transmitida juntamente com o nome, de tio materno para sobrinho”. E acrescenta que “cada indivíduo, independente do sexo, possui um conjunto de nomes, variando de dois a oito, geralmente recebidos no nascimento” (NIMUENDAJÚ, 1946: 77 Apud Gordon Júnior, 1996, p. 17). 83 Nimuendajú (2001, p. 155) coloca que essas metades organizam as classes de idade no pátio após o encerramento dos ciclos de iniciação. Sobre estes ciclos de iniciação ver Oliveira (2008, p. 38-61). 84 Trata-se de uma cerimônia em que os rapazes indígenas, cada um na metade que lhe é devida, correm com toras de buriti nos ombros. Geralmente ocorria diariamente. Mas, atualmente este evento, entre os Ramkokamekrá-Kanela, concorre com a prática do futebol. Sendo que nos rituais ele é elemento fundamental e sempre presente. 77 qualificação de “o corredor”. Nimuendajú (2001, p. 182) sugere que a “corrida de toras”, menos que uma competição, é um exercício corporal de solidariedade física e moral. Os Timbira fazem parte dos índios que, em combate, se empenham ao máximo para não deixar nenhum companheiro ferido ou morto nas mãos do inimigo. Até os cadáveres dos tombados, na medida do possível, eram não apenas retirados em segurança, mas levados para casa a fim de se poder enterrá-los de acordo com o cerimonial dominante. A corrida de toras poderia ter nascido da necessidade de exercitar-se para semelhantes circunstâncias. Entre os Kaingang do rio Ivahy, vi como os garotos treinavam escaladas da seguinte maneira: “Como vocês procedem se o jaguar vier?”, perguntou um, depois do que, todos, ao desafio, escalaram as árvores. “E como vocês procedem se um companheiro chamar por socorro?” Imediatamente todos tornaram a descer e saltar com a maior rapidez. Assim que um Timbira fazia a pergunta análoga: “Como vocês procedem se seu companheiro tomba em combate?”, era inventada a corrida de toras. Talvez o costume, acima mencionado, de caracterizar torinhas Para-re como seres humanos, seja uma recordação daquele tempo primordial, quando ainda se sabia que as toras de corrida representavam, sobretudo, homens. Na citação pode estar uma explicação do porquê desse evento, sobre o qual, segundo Nimuendajú (2001, p. 182), não se encontra justificativa em suas mitologias e crenças. O cerimonial da corrida parece cumprir uma função pragmática e objetiva. Algumas especulações sobre o caráter da “corrida de toras” consideraram-na como prova de casamento, esporte, jogo, competição, dança, prova de força, ginástica e rito. Melatti (1976, p. 11, grifos nossos) nos ajuda nesse dilema classificatório ao concluir: Sem dúvida a corrida de toras diverte aqueles que a praticam e também desenvolve certas potencialidades do corpo humano. Sob esse ponto de vista é um esporte. Mas parece que lhe falta o aspecto competitivo do esporte, ou seja, do esporte como jogo. Lévi-Strauss (1970, pp. 52-55) tenta fazer uma distinção entre rito e jogo. Segundo ele, o jogo é disjuntivo: parte de uma situação de igualdade de condições entre os rivais e termina pela manifestação de uma desigualdade. Por exemplo, o jogo de futebol: os dois times têm o mesmo número de jogadores e devem seguir as mesmas regras, mas normalmente a partida termina com um vencedor e um derrotado. O rito, por outro lado, seria conjuntivo: parte de uma dissociação e termina numa união, pois todos os participantes "ganham". Ora, não se pode dizer que as corridas de toras comecem em igualdade de condições. É certo que as toras, na medida do possível, têm o mesmo peso; mas o número de participantes de cada metade não é necessariamente o mesmo. Há corridas que começam com a vantagem inicial de uma das metades, que parte na frente. Há outras em que as metades trocam, durante o percurso, em locais previamente estabelecidos, suas toras, desfazendo qualquer vantagem que uma delas tenha conseguido até o momento da troca. Além disso, quando um corredor, com a tora ao ombro, percebe que o rival, que está com a outra tora, é seu hõpin (um amigo ritual), não pode correr muito, para não fazer seu "amigo" se cansar. Assim, há uma diferença inicial, mas também há uma diferença final, 78 pois quase sempre uma das metades chega na frente. Mas sua vitória não é festejada. Maybury-Lewis (1965, pp. 85-88) notou essa falta de espírito competitivo dos craôs e contrastou-a com o comportamento oposto dos Xerénte, que seria resultado da influência dos civilizados. Convém notar, entretanto, que os craôs, quando não correm, são atentos observadores de seus companheiros e conhecem a capacidade de resistência e velocidade de cada um. Se nos detivermos nos aspectos simbólicos, verificaremos que as metades também são diferentes nesse nível, pois normalmente uma parece representar a sociedade e a outra, a natureza. Mas, apesar da disputa, ambas na verdade se unem para levar algo para dentro da aldeia. Sob esse ponto de vista, o resultado da corrida é uma conjunção. Portanto, as corridas de toras têm ao mesmo tempo o aspecto de jogo como o de rito. Este cerimonial acontece entre os Ramkokamekrá-Kanela, porém é notório que a sua freqüência vem diminuindo85 na medida que instituições exógenas exigem outra organização do tempo pelos indígenas: o calendário exigido pela escola é exemplar dessa assertiva, pois causam alterações de ordem diversas (de data, de participantes, de horário, etc). Porém, mesmo com alterações, as “corridas de toras” persistem e podem ser hoje presenciadas na Aldeia Escalvado. Nestas os corredores se dividem em dois grupos variáveis segundo o ritual que elas estejam iniciando ou finalizando86. Como se percebe na citação anterior, a categoria hõpin significa “amigo ritual” ou “compadre”. Estas categorias têm relação direta com uma instituição nativa que foi denominada “amizade formal”, a qual tem a função de regular o comportamento dos sujeitos e seus relacionamentos com aqueles que não são da família nuclear. Além da nominação87, que já tem influência nas determinações dessa instituição, outros mecanismos também são utilizados para sua manutenção. À amizade formal há a possibilidade de escolha pessoal, a qual pode ocorrer durante os rituais de iniciação. Conforme Gordon Júnior (1996, p. 19); 85 Esta hipótese refere-se aos comentários de parte dos professores não-índios da Aldeia Escalvado, que trabalham há bastante tempo nesta aldeia. Afirmam que os mais novos não querem mais participar da cultura, querem apenas jogar futebol. 86 Maiores informações sobre a “corrida de toras” do Ramkokamekrá-Kanela e Krahô, respectivamente, são conseguidas em Nimuendajú (2001) e Melatti (1976). 87 A relação entre nominação e amizade formal ficou clara em uma situação que me foi relatada de maneira inesperada durante um jogo de futebol, do qual eu participava como jogador na Aldeia Escalvado em julho de 2008. Em determinado momento do jogo, com os “nervos a flor da pele”, eu comecei a reclamar com um dos jogadores indígenas de minha equipe. Sem causar maiores constrangimentos, um outro indígena chamou-me e disse que eu não poderia falar daquela forma, pois ao receber o nome “Ãmcró” em meu batismo na aldeia, tinha que respeitar seus potenciais “amigos formais”. 79 Uma segunda maneira de adquirir amigos formais, é através da escolha pessoal, entre iniciandos da mesma classe de idade, durante as cerimônias do Pepyê. Se dois iniciados desejam estabelecer o laço, eles passam por um pequeno rito que consiste em mergulhar no riacho, de costas um para o outro, nadar em direção oposta e ao emergirem, encararem-se mutuamente. Nota-se que nessa relação dois critérios são exigidos, o respeito e a solidariedade. Ambos serão a base do relacionamento entre os sujeitos, já que estes não poderão “tirar brincadeiras” um com o outro, mas sempre manterão o dever de proteger seu “amigo formal”, ao qual deve-se todo respeito88. Acredito que outro elemento pertinente para compreender as alianças desses indígenas diz respeito à presença da instituição que constituiu o denominado “chefe honorário”, já que este também sai de seu grupo rumo a outro89. Sobre esta forma de estabelecer alianças Melatti (1978, p. 350) descreve que; Havia homens que se casavam em outras aldeias e que lá tinham filhos, gerando uma ligação entre os dois grupos locais. Podia haver também ocasiões em que duas aldeias se sentissem ameaçadas por uma terceira, o que as levava a uma aproximação. Essa aproximação por casamentos ou interesses comuns era, provavelmente, selada com a aclamação de chefes honorários. O indivíduo, ao sair de sua aldeia, portanto, podia ter os destinos mais diversos: encontrar a morte nas mãos de inimigos, conseguir o afeto de uma mulher numa aldeia estranha e lá passar a morar, constituindo uma ponte para o estabelecimento de relações amistosas entre as duas aldeias; e podia, mesmo dependendo dos motivos que o haviam levado a sair da aldeia de origem, voltar- se contra esta; podia também, voltando a sua aldeia de origem, tornar-se um defensor da outra entre os seus, um homem apto para se tornar chefe honorário da aldeia que o havia abrigado. Melatti (1978) ainda coloca que os chefes honorários poderiam ser tanto do sexo masculino como do feminino/ ser um adulto ou um imaturo. O que se coloca como fundamental é a aclamação90 do sujeito pela aldeia que o recebe. Neste sentido, essa ponte potencial deve ser significada no contato. 88 Presenciei uma situação dessa entre Apanjêkrá-Kanela em agosto de 2002. 89 Essa situação e densamente trabalhada por Azanha (1984) e Melatti (1978). 90 Melatti (1978, p. 335) coloca que “o indivíduo que recebe a chefia honorária é nela investido mediante um rito. Em primeiro lugar é conduzido ao ribeirão da aldeia, onde aqueles que o estão fazendo chefe (os homens ou as mulheres ou homens e mulheres) lhe dão um banho. Depois o conduzem à praça da aldeia sem que toque os pés no chão: é levado aos ombros e os indivíduos que o carregam vão se revezando, até que chegue ao centro da aldeia. Aí é posto de pé sobre uma esteira. Tem seus cabelos aparados, passam-lhe resina de almécega sobre o corpo e lhe colam penas. O sulco de sua cabeleira é pintado com urucu. Com urucu também são pintados os antebraços e as pernas, que não são cobertos de penas. Em seguida o individuo é levantado 80 Considerando haver similaridades entre o que é denominado “chefe honorário” e a saída da aldeia operacionalizada atualmente por “índios” que buscam a cidade para estudar, pode-se inferir que, guardadas as proporções do rito de aclamação91, as funções outorgadas aos sujeitos são condizentes umas em relação às outras. O que nos é demonstrado nas representações dos “índios citadinas”92 (e que desenvolveremos posteriormente) é que o Ramkokamekrá-Kanela que estuda fora da aldeia é visto como aquele que possibilitará a “ponte” entre mundos diferenciados. Sendo assim, parece ocorrer uma significação desse sujeito como um “embaixador” da sociedade indígena. Todavia, se é importante a representação da “aldeia” que o recebe93, não podemos perder de vista que a aclamação do “chefe honorário” feita pelo seu grupo de origem o investe de certos deveres, os quais não são estendidos aos demais. Logo a execução desta função não se daria sem prescrições ou à revelia: ela ocorre obedecendo a interesses da aldeia materna como um todo. Assim afirma Melatti (1978, p. 334, grifo nosso): O chefe honorário é selecionado dentre os moradores de outra aldeia que já tenham algum interesse na aldeia que os escolhe. (...). Assim, o indivíduo escolhido tem sempre alguma relação prévia com a aldeia que o escolhe. Quando se trata de um adulto, a homenagem geralmente visa ele mesmo; quando é uma criança, a homenagem se refere ao pai. Como coloca Melatti (1978, p. 334), “mesmo que um indivíduo seja feito chefe só pelas mulheres ou só pelos homens de uma aldeia, na verdade sua investidura visa satisfazer a interesses políticos de toda a aldeia”. Assim, independente da “unidade social”, interna ao grupo ao qual este “escolhido” pertença, sua função no exterior terá como prerrogativa defender toda a aldeia. A instituição da “chefia honorária” pode parecer distante das questões que envolvem os processos migratórios que pesquiso, porém, ao se tratar de relações com alteridades, os contextos se aproximam. Assim, se o “chefe honorário é alguém de fora incorporado à aldeia” (MELATTI, 1978, p. 338), pode-se dizer que há uma aproximação de novamente e se dá uma volta em torno da aldeia nos ombros de seus habitantes, que se revezam, sendo novamente conduzido ao pátio. Presentes lhe são então oferecidos”. 91 Ver Melatti (1978, p. 333-338). 92 Esta categoria provém de Oliveira (1968). Provavelmente a utilizaremos também para classificar os indígenas que tiveram ou têm experiências de migração aldeia-cidade. 93 Na cidade de Barra do Corda-MA parte das representações sobre os indígenas que lá estudam é que eles podem servir de entreposto entre a civilização e os índios da aldeia. 81 um sujeito a um agrupamento do qual antes não fazia parte. Todavia, considero pertinente expandir a interpretação dessa instituição e tentar entendê-la pelo seu inverso. Se um sujeito é aproximado de um grupo, logo este se distancia de outro: parece ser este um outro lado do processo vivenciado pelos “índios” que estudam fora da aldeia, pois ao serem aproximados do “mundo do brancos” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996), são automática e relativamente distanciados de sua sociedade indígena. Compreender essa dinâmica entre os Ramkokamekrá-Kanela faz parte das preocupações do presente trabalho. 3.4 – As narrativas míticas As características até aqui apontadas são encontradas em diversas sociedades “Timbira”, o que não menospreza as especificidades destas, mas pode dar bases para estudos comparativos e generalizáveis teoricamente94. Como aponta Melatti (1978, p. 22); Uma vez que as línguas incluídas na mesma família e as famílias incluídas no mesmo tronco têm uma origem comum, é muito provável que a sociedade Krahó seja derivada de uma outra sociedade, no passado, que deu origem também às demais populações indígenas citadas; se não tem uma origem comum, deve ter havido pelo menos contactos entre essas populações na sua história passada. De qualquer modo, tenham elas origem numa sociedade única ou em sociedades que mantiveram contacto entre si, suas afinidades não devem ser apenas lingüísticas, mas podem envolver também outros aspectos da cultura. Além dos aspectos culturais semelhantes já citados, indico outros referentes às suas narrativas míticas, que parecem indicar parâmetros para a análise dos processos migratórios. As narrativas aqui destacadas podem ser diferenciados em três ordens95, mutuamente relacionadas: sobre Pùt e Putwré (estrutura social “Timbira”), Aldeia Grande (expansão e diferenciação intertribal) e Awkê (contato com alteridades interétnicas). Inicio por aquela que, segundo Nimuendajú (1983, p. 120-124) apud Panet (2005, p. 9-10) se refere à “criação do homem, a criação da primeira aldeia, às desavenças entre Lua 94 Segundo Gomes (2008, p. 66) “a relativização deve ser limitada, porque a comparação é imprescindível para se chegar à compreensão de que há semelhanças entre coisas aparentemente diversas e diferentes”. 95 A primeira diz respeito ao estabelecimento da ordem social, ou seja o dualismo (Mito de Sol e Lua), a segunda se refere ao processo de expansão dos grupos “Timbira” (Mito da aldeia grande) e a terceira, mais evidenciada no cotidiano e na literatura “Timbira”, retrata elementos do relacionamento com a alteridade (Mito de Awkê). 82 e Sol e às diferenças entre os homens criados por eles”, a qual para a autora constitui a “base da religião e da ordem social dos Timbira”. Eis a narrativa: Sol (Pùt) e Lua (Putwrè) decidem um dia descer sobre a terra. Sol desce em primeiro. Lua engana-se de lugar e reencontra o seu amigo apenas no dia seguinte. Sol já havia construído uma casa que divide em duas partes para viver com Lua. No centro da casa deixa um espaço para dançar. Um dia, após um incêndio na floresta, os dois amigos decidem recolher os animais mortos no incêndio. Depois de abrirem a barriga dos animais Lua e Sol descobrem que eles são muito gordos e, por conseguinte muito bons para comer. Mas quando Lua abre os seus animais Sol grita: "magros, magros" e os animais de Lua ficam muito magros. Lua vai queixar-se de Sol que se zanga. Sol decide então ferir ser amigo. Ele pega um pouco de gordura quente e joga em cima da barriga de Lua. A gordura quente queima Lua que começa a chorar correndo ao mesmo tempo em direção do brejo. Chegando ao brejo Sol grita: "Seca, seca!" e a água do brejo desaparece imediatamente. Lua pega um pouco de areia ainda úmida e coloca sobre sua queimadura. Pouco mais tarde Lua vê uma tartaruga. Sol grita: "água volta!" e imediatamente a água do brejo volta. Lua permanece no mesmo lugar e é mordida pela tartaruga. Lua reclama da maldade do seu amigo Sol que se desculpa dizendo que não é sua culpa e que não fez propositadamente . Dias depois e passadas outras aventuras, Sol e Lua seguem para trabalhar na roça . Sol sai na frente e Lua vai atrás. Na roça começam a plantar cabaças, (ou troncos de palmeira) [Mauritia flexuosa sp.]. No dia seguinte pela manhã Sol sai novamente na frente. Lua, que dorme ainda, acorda atrasado e corre ao encontro de Sol. Ambos com suas cabaças (ou troncos de palmeira) na mão jogam-nas na água, de duas a duas. Estes pares de cabaça, ao encontrar a superfície, transformam-se em pessoas, homens e mulheres. Os que saem da água, sentam-se à beira do brejo. Sol só faz pessoas bonitas enquanto que Lua faz pessoas muito feias, doentes, cegas, ou pessoas com malformações. Depois de terem feito muita gente, Sol e Lua decidem criar uma aldeia para seus filhos. Escolhem um lugar elevado para fundar a aldeia. Fazem um círculo que Sol divide em duas partes no sentido leste-oeste. Após ter feito isto, diz: "Os meus filhos vão viver ao norte". "Os meus vão viver ao Sul", diz Lua. Estas duas partes devem casar-se entre si. É por isso que a sociedade e o espaço da aldeia é estruturado em duas metades. Não há informações sobre o local e o grupo indígena em que Nimuendajú colheu esta narrativa, que consideramos importante por dá mais detalhes. Sabe-se ao menos que foi entre os “Timbira”. Esta afirmação é baseada na comparação com versões colhidas entre os Apinayé e Ramkokamekrá96. Como pode-se observar, a narrativa, à sua maneira, explica a fundação de um local a ser habitado, além do modo como deveriam se dar as relações dos habitantes e que seria caracterizada essencialmente pelo (s) dualismo(s). Entre outras, essa narrativa teria assim um caráter ancestral e histórico, para o qual são remetidos os princípios organizacionais da aldeia e que sugere uma “continuidade orgânica que se manifesta entre mitologia, a tradição lendária e o que é preciso chamar 96 Ver Panet (2008, p. 10-11). 83 política” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 274). Poderia assim ser considerada de tipo “retrospectivo” e “prospectivo”. Lê-se em Lévi-Strauss (1993, p. 274, sic) que; (...) um mito que se transforma passando de tribo em tribo, finalmente se extenua, sem por isso desaparecer. Duas vias lhe permanecem abertas: a elaboração romanesca e a da reutilização para fins de legitimação histórica. Por sua vez, essa história pode ser de dois tipos: retrospesctiva, para fundar uma ordem tradicional sobre um passado longínquo; ou prospectiva, para fazer desse passado um início de um futuro que começa a desenhar-se. A narrativa Pùt e Putwré ao indicar elementos que precedem à atual organização social dos grupos “Timbira”, aponta também para a fundação do que é denominado “Aldeia Grande”, sobre a qual já foram feitas algumas interpretações. As principais dizem respeito ao seu processo de expansão e conseqüente diferenciação dos “Timbira”. Uma singularidade a ser mencionada refere-se ao fato de que cada grupo, individualmente, chama para si a responsabilidade acerca da origem da “Aldeia Grande”, sendo esta geralmente reivindicada pela sociedade que conta a narrativa, sendo que aos demais se atribui a dispersão. Essa leitura coaduna-se com a de Correa (s/d), a qual afirma que os “Timbira” “têm a consciência de terem constituído a um tempo atrás um povo só, habitando uma grande aldeia até que houve a dispersão, sendo esse grande grupo dividido em outros subgrupos com nomes e dialetos específicos”. As versões que seguem sinalizam para esse contexto, o qual é ilustrado por narrativas colhidas entre os Krikati e os Ramkokamekrá- Kanela. Sobre a dos Krikati Barros (1992) apud Correa (s/d) coloca: Antigamente nós vivíamos todos numa aldeia grande. Lá morava o povo Canela, o povo Apinayé, o povo Gavião, o povo Krahô, o povo Xerente, etc. Nessa aldeia tinha muitas crianças, era uma aldeia alegre. As crianças brincavam o dia todo e até à noite. Mas tinha um velho que vivia dormindo e por isso não gostava do barulho das crianças. Um dia ele perdeu a paciência e ralhou com elas. As crianças ouviram tudo caladas, não responderam nada para o velho. Reuniram-se no pátio para decidirem o que fazer. Iriam embora, era o melhor a fazer. Ficaram de acordo de que ninguém devia ficar sabendo, nem mesmo os pais. Depois da reunião foram todas para o mato cortar a Tora, que esconderam para que ninguém desconfiasse de nada. Reuniram-se mais uma vez no pátio e combinaram que sairiam de madrugada. Na hora marcada, cada qual pegou a sua Tora e saíram todos: meninos, meninas, moças e rapazes. Quando chegaram a uma certa altura da chapada, decidiram que deviam de dividir em grupos. Pegaram um pedaço de madeira de Catolé, queimaram-na e, com o carvão, pintaram o corpo, os braços e as pernas, desenhando largas listras horizontais. Então atravessaram aquele pedaço de Catolé no meio do caminho. Lá era o 84 limite. Caso alguém tentasse segui-lo e ultrapasse aquele limite, deveria morrer, mesmo que fossem alguns de seus pais. Despediram-se uns dos outros, adotaram para si o nome de um animal e foram embora. Quando o dia amanheceu no Krikati, tudo estava quieto, silencioso. Cadê as crianças? Não tinha nenhuma, tava tudo triste. Isso é coisa do ‘véi’ alguém falou. Revoltados, os adultos também decidiram ir embora. Assim, antes de sair, cada grupo cortava uma tora, corria ao redor do pátio e jogava a tora na porta da casa do velho, e aí se dirigia aos que ficassem e falava assim: quando vocês quiserem me visitar diz: hoje eu vou lá para a aldeia do Krahô. O outro grupo fazia a mesma coisa, até que ficou só nós. Por isso é que ainda hoje o povo chama-se assim de Krikati.. Antes de explicitar a versão colhida entre os Ramkokamekrá-Kanela, a qual é citada por Azanha (1984, p. 57), temos que recordar que, como já fizemos referência, estes seriam os Mël mol-tüm-re (ou Me Môrtum re). Segue a versão: Sim, antes os nossos primeiros eram valentes e mandavam na aldeia. Só os guerreiros é que mandavam e governavam a aldeia. E sempre que as outras tribos valentes atacavam a aldeia, um guerreiro sempre matava os atacantes. Logo, ele sozinho começou a governar a aldeia. Ele fez a aldeia grande e lá ficaram. E os pequenos faziam arapuca, mas os outros vinham primeiro e pegavam o ahtore que estava preso e já estavam se dirigindo palavras ruins, e aqueles que pegaram o ahtore na arapuca, começaram a brigar com os outros e começaram a atirar flechas, com o arco pequeno começaram a se flechar. E um índio chamado Caprôôre foi flechado Caprôôre caiu deitado e eles o flecharam no cotovelo, bem no meio do coraçãozinho, bem no lugar onde dá choque foi flechado. A flecha tinha sido feita com Talo de Najá e lá mesmo onde caiu, ele morreu. Quando chegaram os outros, eles o descobriram. Ai seus pais começaram a discutir e a se flecharem e a gritarem uns para os outros, e logo que acabaram de atirar flechas todos ficaram inimigos, e tiraram logo seus próprios nomes e assim que tiraram iam andando. Estes são os Krêêjê e saiam. Outros são Py Kopjêê e saiam. E também outros chamados Crahô e também saíram. E também outros puseram Hakàhpoti (Xavante) e saíram e entraram no Cocal. E outros chamaram Apanyêkrá e ficaram bem perto. E outros chamaram Xààkãm e ficaram no Mucura. Mas o Mõrtum re ficou aqui nesse lugar. E eles eram muito poucos e andavam aqui. E as outras tribos ficaram longe e voltaram para lutar com os daqui. E eles mesmos se matavam e sempre ficavam inimigos e sempre se matavam e sempre, sempre se dividindo e assim ficaram até quando o governo soube tudo e parou com tudo. E o governo os separou e ele os segurou. Mas ainda hoje quando alguém sai sozinho e lá chega, eles o matam. Mas aqui não matamos ninguém, ninguém de outra tribo. É, na aldeia do Me môrtum re não se mata ninguém de outra tribo. Aqui se tem pena dos outros. As narrativas colhidas entre os Krikati e Ramkokamkerá-Kanela sugerem que cada sociedade “Timbira” remete para sua aldeia a qualidade de ter sido no passado a “aldeia grande”, de onde partiram os indígenas que geraram as demais. Há indicações intricadas 85 dos processos de dispersão e expansão entre os “Timbira”. Azanha (1984, p. 19) tenta explicar esse complexo processo ao afirmar que a expansão dos “Timbira”: (...) aparece como resultado do processo de cisão, que por sua vez não é nada mais que um processo de diferenciação em que um grupo se distingue de outro (na dupla acepção deste termo: se separa e se destaca como singularidade no separar-se) para reproduzir, à sua maneira, a Forma “Timbira”, como as designações mútuas entre os grupos parece indicar. Este processo de diferenciação teria como resultado ainda, o estabelecimento de uma rivalidade crescente entre os grupos que disputariam não mulheres ou proteínas, mas, por assim dizer, a “razão” da Forma “Timbira”. Pois a afirmação da autonomia de cada grupo passa pela afirmação de uma certa “verdade de cada um em relação a esta Forma”. Atento que o processo de diferenciação progressiva dos “Timbira” sugere que cada um vivencia a “Forma Timbira” à sua maneira, o que permite inferir que seria a partir desta que as relações com a alteridade seriam equacionadas. Logo dizer que essa cisão gera rivalidades indica afirmar que provocam e promovem a relação com o “outro”, com aquele que não faz parte do meu grupo. Mas que princípios dariam as diretrizes para o relacionamento com a alteridade, independente do seu grau? Parece-me importante considerar que para entender o contato com o “outro” (não- índio) não se pode considerar apenas as relações que passam a ocorrer depois desse tipo de contato, pois é importante atentar que antes do que denominamos “contato interétnico” (entre “índios” e “não-índios”), os “índios” inter-relacionavam, o que provoca a necessidade de atribuir a certos sujeitos a função de “mediadores”. A “instituição da mediação” se dá em vários níveis, porém é necessário que ela seja significativa para os grupos que a vivenciam. Se, enquanto estudante (fora da aldeia), o indígena é representado com um potencial mediador, é necessário entender como isso se torna significativo para a sociedade. Talvez um dos mecanismos que são acionados para tornar significativa para essas populações a relação com a alteridade seja a “ancestralidade”, pois explica potenciais distanciamentos (afinização) e aproximações (consangüinização) de sujeitos. Entre os “Timbira” a narrativa mítica sobre Awkê97, considerado como “herói cultural” (CROCKER & CROCKER, 1994), parece exemplar dessa situação. Silva Junior (2006, grifos nossos) 97 Ver Azanha (1984), Crocker e Crocker (1994) e Silva Junior (2006). 86 traz uma narrativa sobre Awkê, a qual foi relatada na Aldeia Escalvado, no dia 22 de outubro de 2002, por José Pires Canela (Zé Pires, 50). Esta versão, se comparada a outras , tem algumas variações, as quais não comprometem seu cerne. Awkhê estava no ventre de sua mãe, quando começou a chamá-la para ir tomar banho. Sua mãe então lhe levou para o brejo para tomar banho, ele então saia de seu ventre como peixe, transformava-se em peixe, tomava banho, andava a vontade até enjoar, depois disso chamava sua mãe para ir embora. Chega então o tempo de Awkhê nascer, ele nasce sem dor. Sua mãe estava deitada durante a noite, quando percebeu ele já havia nascido. O menino depois que nasceu se transformou em uma grande cobra, sua mãe não acordou, quando ela percebeu se assustou, ela ficou com medo e jogou Awkhê longe, ela estava muito espantada, ele então cai e chora. Sua mãe então pergunta para ele porque ele havia nascido daquela maneira, se perguntando porque seu filho não nasceu normal. Ela então o pega novamente, lavando-lhe com água, amamentou e foi criando o menino. Quando Awkhê estava na idade de 10 a 12 anos, ele começa a “fazer mal” com seus amigos. Chamava sua mãe para tomar banho, mandando ela chamar seus parentes e seus amigos para irem ao brejo. Foram então para o brejo chamado por Awkhê: “Vamos brincar no brejo!”. Seus irmãos e parentes iam à frente para esconterem-se dele, ele então corria na frente e achava seus irmãos. Mas ninguém o achava, o menino se escondia por trás dos matos e se transformava em onça, seus irmãos, parentes e amigos procuravam por ele e quando achavam era a onça, ele então “rosnava”, todos se assustavam, sua mãe então reclamava com ele dizendo pra ele não fazer mais aquilo com seus amigos e irmãos, falava que eles tinham medo, ele então se transformava em índio novamente.Depois disso, voltavam a tomar banho, brincavam, os outros meninos então começavam as brincadeiras do “sucurulho”, um pulando na perna do outro. Awkhê então falava para os outros: “Vou me transformar em Sucurulho para pegar vocês!”, ele então se transformava mesmo e pegava na perna dos outros meninos e todos ficavam com muito medo, corriam para o seco. Sua mãe então lhe falou: “Meu filho por que você faz isso com teus irmãos?!”. Awkhê então se transformava em gente novamente, e todos voltavam para casa. Awkhê então cresceu mais um pouco, tinha entre 15 e 18 anos. Seus tios de Awkhê combinaram com seu avós, para matarem ele, todos ficaram certo de que Awkhê deveria morrer, porque se eles deixassem que ele crescesse daquela maneira, poderia fazer coisas ruins com seu povo, chamaram ele para uma caçada, seu avô foi na casa da mãe dele: “Minha sobrinha vou levar teu filho pra uma caçada, a turma98 combinou-se no meio do Pátio, para ele trazer pelo menos um pedaço de carne pra você!” Awkhê foi com toda a turma para caçada. Quando chegaram debaixo de um Morro muito alto seu avô lhe levou para cima deste morro, subiram os dois, chegando lá ele enganou Awkhê: “Vem meu neto vem vê um negócio lá em baixo!”. Quando foi olhar do que se tratava, foi empurrado, caiu, mais antes de chegar no chão ele encostou-se a uma folha de Sambaiba, e se transformou em uma folha seca desta planta caindo bem devagar, ali mesmo se transformou em gente novamente e foi embora para casa de sua mãe. Neste momento, fez com que surgisse uma espécie de cerca de pedra, cercando tudo que estava ao redor de seus tios que ainda permaneciam lá em cima. Não havia buraco para seus parentes saírem para voltarem para casa. De sua casa ele observava todos de sede e fome, procurando um buraco pra 98 “Turma” aqui se refere a partido o qual Awkhê pertencia. 87 puderem sair, tudo estava cercado de pedra, até quando deu umas 14h00min hora, todos ainda estavam presos com sede e fome, quando a mãe dele pergunta: “Filho, cadê teus parente?”, ele falou: “Não sei, eles ficaram lá, caçando!”. Ele não contou para sua mãe sobre o ocorrido. De onde ele estava olhou seus tios, e então pensou em fazer um buraco para eles saírem, evitando que eles morressem de sede e fome. Derrubou uma pedra para baixo, só então seus tios acharam o buraco e puderam sair. Chegando a tarde combinaram novamente em matar Awkhê, só que desta vez era queimado. Awkhê já havia escutado a combinação, já sabia o que iria acontecer, contou então para sua mãe que seus tios agora iriam lhe matar realmente, que eles iriam lhe queimar. Ninguém havia contado para ele, mas mesmo assim ele já sabia, falou então para sua mãe não chorar, que ele iria voltar a viver quando seus tios o matassem, mandou que sua mãe fosse até o local de suas cinzas e juntasse tudo, tirando algodão para fazer o fio do algodão, colocou em cima, para ele tornar a viver. Ele então pegou urucu passou no corpo, ficou todo vermelho para poderem matar ele, sua mãe chorou passando urucu em seu filho. Acabaram de pintar levaram ele, já haviam feito fogo por trás da Aldeia, muito fogo, chegaram todos os índios, todos esperando ele. Quando Awkhê chegou levaram ele para frente onde haviam feito um fogo para todos: “Vai encosta-se ao fogo para si esquentar para matar caça mais rápido!”, enganou ele. Todos se juntaram e empurraram-no para cima do fogo, quando ele caiu dentro do fogo, fizeram mais “coivara” para poder queimar bem. Eles então se mudaram para outro local com medo dele, só sua mãe ficou na aldeia. Ela então foi onde estava a cinza de Awkhê para juntá-la com fio de algodão. Quando ela terminou de fazer o que Awkhê havia dito, ela saiu atrás dos outros que haviam se mudado. Passaram-se uns dias para ela retornar até o lugar da morte de seu filho. Quando ela retorna, acha uma casa muito bonita, ele havia voltado a viver novamente, Awkhê ficou na porta esperando sua mãe, mais ela ficou com medo dele, ela então começou a chorar e ele pediu para ela parar de chorar. Deu comida para sua mãe, neste momento, fez a “espingarda” e o arco. Fez a catana, o facão. Fez o arco e outros materiais dos índios. A mãe dele ficou sentada numa sombra, ele pegou o arco para atirar nela, testá-lo se era mais rápido do que a espingarda. Ele então arremessa a fecha, mas antes da fecha chegar até sua mãe, ele a pega. Carregou então a espingarda e mirou para sua mãe, atirando logo depois, o tiro acertou e derrubou sua mãe, ele então disse: “Esse é ligeiro!”, fez sua mãe reviver novo. Os outros índios que haviam se mudado vieram por que a mãe de Awkhê não havia voltado, mandaram então um rapaz para tentar achá-la e explicar o que estava acontecendo. Já tinha muito gado ao redor da casa de Awkhê, todos para dar para os índios criarem. O rapaz veio viu o gado ficou com medo e volto para conta que tinha visto bichos. Mandaram outro rapaz, este então viu Awkhê vivo, sua mãe sorrindo, viu o gado. Voltou imediatamente e contou o que viu, que Awkhê havia tornado a viver. Todos concordaram vieram onde ele. Quando chegaram conversaram com Awkhê, neste momento chegaram também os “civilizados”, tinha chegado os “brancos”. Awkhê colocou a espingarda e arco um do lado do outro: “O que vocês vão querer, essa ou essa (espingarda ou arco)? Experimentaram o arco bonito bem feito, “era calado”. Pegaram na espingarda, escutaram estralo e disseram que aquilo matava gente. Os homens perguntaram para as mulheres qual elas queria e elas responderam que queriam a espingarda. Awkhê pegou e carrego a espingarda e atiro: “POU!” (barulho da espingarda), todo mundo caio no chão rolando, com medo, espantou todos eles. Pegou o arco e jogo: “CHUA!”(barulho do arco), caio lá calado, longe, e todo mundo não sentiu nada, e gostaram do arco. Awkhê disse que tinha oferecido o melhor para eles, mais os mesmos não queriam nada: “vocês viverão todo tempo do mesmo jeito, sem nada, em vez de vocês ficarem com a espingarda. Arco não vai levar vocês pra frente, agora espingarda vai levar, vocês terão mais rendas, agora vão ficar desse jeito sem recursos nenhum!” Assim ficamos morando dessa maneira!! 88 O percurso do “herói cultural”, de indígena que progressivamente foi se distanciando e sendo distanciado de seu grupo natal, relaciona-se diretamente ao nosso tema de pesquisa e perspectiva analítica sobre aproximação e distanciamento de sujeitos indígenas que estudam fora da aldeia, enfatizando que as relações se dão em termos do estabelecimento de alianças (seja pela rivalidade, pelo casamento ou pelo estabelecimento de um “agente mediador”) entre unidades que não são as mesmas. Awkê, como lê-se na narrativa, tinha a peculiaridade de transformar-se em diversos animais, o que fez com que seus parentes passassem a ter medo dele. Sendo condenado à morte, foi diversas vezes morto, porém sempre ressuscitava e retornava para seu grupo. No final da narrativa há o distanciamento geográfico de Awkê de seu grupo, já que o mesmo estaria próximo do que poderíamos chamar de “modo de vida do branco”. Esse modo deveria ser adotado pelo grupo, como este se recusou, Awkê se colocou na posição de defensor de seu grupo frente a outros, o que pode ser entendido como uma aproximação moral. O distanciamento, a aproximação, a morte, o retorno e a significação de Awkê fazem eco a nossa epigrafe e a investigação que desenvolvo, pois se tratar de tentativas de classificar sujeitos que passam por processos de distanciamento. Existe uma relação direta entre o que os Ramkokamekrá-Kanela representam sobre a narrativa sobre Awkê e seu cotidiano. Essa narrativa é utilizada para justificar determinadas atitudes no contato com a alteridade, como o “ato de pedir”. Ressalto que essa “mendicância” não se dá apenas em relação aos “não-índios”, pois como constatou Crocker (1990) ela se dá também frente àqueles “índios” que prestam serviços às instituições indigenistas ou que recebem algum beneficio do Estado. Tal situação é geralmente percebida como uma situação de “desigualdade” (CROCKER & CROCKER, 1994 e SILVA JUNIOR, 2006). Conceitualizar simplesmente como “desigual” poderia limitar a compreensão e explicação das relações e alianças postas em prática por esses “índios”, pois poderia se perder a dinamicidade do processo, substituindo-o por um comodismo entre “pedintes” e “doadores”. A busca por constituir esse agente mediador seria essencial dessa discussão. 89 3.5 – Algumas formas de estabelecer “alianças” A “aliança” parece ser um elemento que abarca toda a vida dos “Timbira”, os quais podem ser compreendidos por essa via. Se diversos elementos são importantes para a organização social dessas populações (exogamia de metades, por exemplo), é importante atentar que considerando a organização como dual, independente do critério e das alterações, a “aliança” estará sempre posta em cena, independente de seu nível. Essa questão remete a uma produção etnológica da segunda metade do século XX, a qual procura recuperar algumas dimensões que foram secundarizadas pelos pesquisadores do HCBP. Essas dimensões dizem respeito a enfatizar aquilo que se convencionou chamar de “periferia” da aldeia e suas funções quanto a classificação de sujeitos e grupos. Gordon Junior (1996, p. 131), ao analisar a produção de Vanessa Lea sobre os Kayapó-Mebengokre e Maria Elisa Ladeira99 sobre os Apaniekrá e Ramkokamekrá-Kanela, principalmente, expõe parte de pesquisas recentes que procuraram re-interpretar a organização social Jê: São trabalhos que discutem, alguns, a possibilidade de se pensar os “segmentos residenciais” da periferia das aldeias Jê, como grupos de descendência ou grupos incorporados, ou “pessoas morais (jurídicas)”, definidos pela propriedade de bens simbólicos que se transmitem unilinearmente. Como expus em outro lugar, a “nominação” situa o sujeito nominado em “unidades sociais” da aldeia. Ora, “a ‘periferia’ atua na composição de laços entre os grupos domésticos, articulando-se com os domínios estabelecidos no ‘pátio’ (ou centro)” (GORDON JUNIOR, 1996, p. 152). Ladeira (1982), como expõe Gordon Junior (1996), também percebe que as alianças se dão através dos “segmentos residenciais” da “periferia” da aldeia, constatação que já se verifica ao considerar a aliança e seu estabelecimento unicamente pela via do matrimônio100. Para mim, entretanto, a aliança é estabelecida também a partir da “nominação”, na medida em que vincula diferentes “famílias individuais ou nucleares”. Observa-se assim que se os cônjuges são traçados entre os 99 Nossas apreciações serão baseadas nessa autora dada sua proximidade com os Ramkokamekrá-Kanela. 100 Como afirma a Ubbiali e Ekos (2004, p. 34), no pequeno livro “Os índios dos Maranhão. O Maranhão dos índios”, sobre os Ramkokamekrá-Kanela, “filhos e irmãos de uma mulher casam-se fora de sua própria ‘casa comprida’ [“segmento residencial”] e fora daquela de onde vieram seus pais, os pais de suas mães e os pais de seus pais, de modo a evitarem o incesto”. 90 “segmentos residenciais”, os nomes são trocados entre “famílias individuais”, as quais são inseridas em “segmentos residenciais” diferentes. Temos então demonstrado que “a nominação é uma relação que não se esgota entre o doador e o recebedor de nomes” (GORDON JUNIOR, 1996, p. 157), o que implica reconhecer que as conseqüências dessa peculiaridade perpassam a esfera cerimonial (do pátio), sendo fundamental no domínio “das alianças entre os grupos domésticos e segmentos residenciais” (LADEIRA, 1982, p. 42 APUD GORDON JUNIOR, 1996, p. 157). Algumas “regras” da troca de nomes para o estabelecimento de alianças são sumariadas por Ladeira (1982, p. 13) apud Gordon Junior (1996, p. 153) em três principais: 1. não é bom fazer ituaré [trocar nomes] com irmão próprio mesmo [irmão real]; 2. não é bom casar com parente perto [que indica uma norma exogâmica entre os segmentos residenciais, já notada nas outras etnografias Jê]. 3. não é bom misturar com uma raça só [o que, a principio, indica uma tentativa de impedir repetições de alianças entre os segmentos residenciais]. Veremos, no entanto, que essa norma parece se sujeitar a ciclos muito curtos (duas gerações), numa estrutura de troca de forte viés patrilateral. As prescrições de “nominação” são advindas, como entende Ladeira (1982), do contexto político das alianças. A rigidez imaginada das instituições nos grupos “Timbira” são na verdade relaxadas em parte devido à relativa autonomia das “famílias individuais”. Outra característica, que apreende-se em Crocker e Crocker (1994), é que os “segmentos residenciais” podem cindir ou mesmo deixar de existir101, no lugar dos quais podem surgir novos segmentos propensos a estabelecer alianças. Como a “nominação” faz parte do domínio das alianças, sendo fundamentalmente um mecanismo de troca, deve-se entendê-la principalmente pela possibilidade de estabelecer laços com outros “segmentos residenciais”. Essa interpretação nos ajuda a entender seus mecanismos ao perceber, como coloca Gordon Junior (1996, p. 164, grifo meu), que “os nomes masculinos permanecem, de fato no segmento residencial de origem, como uma forma de compensar a mobilidade masculina, ao passo que os nomes femininos 101 Lê-se: “Crocker (1994: 75) afirma que mesmo: hipoteticamente, os segmentos residenciais (‘langhouses’) pode acabar, bastando para isso que a última geração sexualmente ativa tenha somente filhos homens. Ele também nota a regra de exogamia como constitutiva da unidade do segmento: se um casamento ocorre dentro da mesma unidade, entre parentes distantes, ela está automaticamente quebrada, dando lugar a dois novos segmentos unidos pelo casamento” (GORDON JUNIOR, 1996, p. 156). 91 precisariam circular para compor a teia de relações de aliança entre os segmentos residenciais”. A relação que se estabelece entre “nomes” e “matrimônios” giram em torno da “aliança”, pois relacionam “nomes” de natureza distinta que interferem na esfera do parentesco, tanto pelo estabelecimento do matrimônio como da “amizade formalizada”. Gordon Junior (1996, p. 170) se expressa nos termos que seguem: (...) os nomes masculinos e femininos têm uma natureza distinta, mas isso não significa supor que esses últimos não cumprem nenhuma função dentro da organização social Timbira. Os dados Timbira parecem indicar que os nomes não têm seu funcionamento restrito à esfera cerimonial. Muito ao contrário, eles interferem de forma crucial nas relações de parentesco, no sistema de atitudes e principalmente servem como guia das relações de aliança matrimonial. Como sugere Gordon Júnior (1996), um dos méritos de Ladeira (1982), ao recuperar o papel das alianças como principio estruturador das sociedades “Timbira”, é dar ou (re)acionar elementos que possibilitam compreender outras situações de contato com a alteridade, as quais podem ultrapassar os limites da própria aldeia. Para aproximar nosso problema de pesquisa às questões relacionadas a alianças, identidade e relação com a alteridade é necessário fazer mais algumas considerações sobre a “amizade formal”, principalmente a partir de Azanha (1984) e Gordon Junior (1996), já que observamos que esta também institui uma relação peculiar entre consangüíneos a afins, em um processo constante de aproximação e distanciamento. A “amizade formal” faz parte das instituições que são compartilhadas pelos grupos “Timbira” como pôde nos demonstrar a revisão das produções de Vidal (1977), Crocker e Crocker (1994), Azanha (1984), entre outros. A questão que se coloca é sobre a natureza da relação de “amizade formal”. Em sua pesquisa sobre os Xikrin do Catete (Kayapó Setentrional, grupo lingüístico Jê, localizados no Estado do Pará, município de Marabá), Vidal (1977, p. 98) afirma que “os amigos formais fazem parte de uma categoria de não-parentes”, e continua: Quando se pede a um índio que defina essa categoria em português, ele tem dificuldade. Disse um informante: “Krobdjuo não é parente porque não se conversa com ele, há muito pyaám (vergonha). Ao que parece, o informante utilizou-se da palavra “parente” no sentido restrito de “parente consangüíneo”. 92 Outro índio observou: “São õmbikwa (parentes) diferentes”. Mas todos são unânimes em afirmar: “Krobdjuo é pessoa que ajuda”. As explicações expostas por Vidal (1977) indicam a complexidade e funcionalidade dessa categoria de sujeitos. Se considerado como um “não parente” ou um “parente diferente”, o qual transcende, pelo menos a nível simbólico, a oposição consangüíneo/afim, o “amigo formal” pode estar diretamente ligado à alteridade, com a qual uma “unidade social” ou um grupo específico mantém contato e constrói alianças. A “amizade formal” foi ainda entendida como uma “distância que toma a forma extrema de oposição” (CARNEIRO DA CUNHA, 1978 Apud GORDON JUNIOR, 1996). Sobre essa instituição Gordon Junior (1996, p. 188, sic) diz: O que estamos tentando mostrar é, justamente, que a relação de amizade formal não pode ser vista nem como uma relação de afinidade, nem como uma relação de consangüinidade (...), mas que, estruturalmente (ao nível de um modelo possível de aliança) talvez seja interessante tratar amigos formais como “irmãos” (um “ajuda” o outro na obtenção de cônjuges), uma vês que a amizade formal não implica numa alteridade radical. Essa percepção parece bem ilustrativa já que relaciona consangüinidade e afinidade de um modo bem peculiar, pois relativiza explicações muito rígidas/estáticas sobre essas categorias. Utilizando os temos de Melatti (1970, 455-456), Gordon Junior (1996, p. 191) expõe: É bem provável que a “amizade formalizada”, que não soubemos interpretar totalmente, se fundamenta nesse princípio [a toda diferença entre dois elementos em oposição corresponde uma igualdade entre os mesmos elementos]: é um parentesco de afinidade que não permite relações sexuais nem agressão; entretanto, seu caráter de afinidade é mantido pela maneira como os “amigos formais” fazem prestação de bens e serviços entre si [mas não de mulheres]; [enfim] seria um parente afim tratado como consangüíneo. Se a explicação sobre “amizade formalizada” de Carneiro da Cunha (1978) parece um tanto rígida quanto a relação entre o “eu” e o “outro”, Melatti (1970) e Azanha (1984) revelam como pode ser equacionada englobando de maneira significativa indivíduos ou funções que possuem características ambíguas. Trata-se especificamente do que Azanha (1984) chamou de “síntese dos contrários”, onde nenhum dos termos contrapostos (consangüíneo/afim) seria suprimido, mas sim englobado e significado em sua 93 ambigüidade. A categoria cahkrit, com coloca Azanha (1984, p. 19), pode ser exemplar para compreender esse contexto. É designado cahkrit “aquele que vem de outro segmento residencial”; “aquele que não é parente”: o “afim”; o “aliado”; o “habitante de outra aldeia Timbira” e, finalmente, o “inimigo”. Este termo estabelece uma cadeia conotativa que percorre o sistema de relações Timbira em toda a sua extensão, do nível local às relações interaldeias. Mesmo não tendo sido percebida uma categoria especifica para designar os sujeitos que saem da aldeia para estudar na cidade, é importante notar que a qualificação de sua função, geralmente, perpassa pela condição de liminaridade entre defender o grupo (ser aliado) e perder a cultura. Se distanciar e se aproximar seria aquilo que conectaria os Ramkokamekrá-Kanela migrantes às categorias que venho analisando. A função e qualificação aferida ao composto /ca/ e /krit/ parece pertinente à temática da migração, pois tentam equacionar elementos/sujeitos/posições que a princípio seriam opostos. Porém, na prática, demonstram ambigüidades em sujeitos que compartilham proximidade e distanciamento. Como expressa Azanha (1984, p. 19): Analisando o termo cahkrit, vemos que o composto de /ca/ - que deve ter a mesma função do /ca/ em camekra (algo como um “eles” genérico, se se pode dizer assim), e do sufixo /krit/, sufixo este presente numa variedade de palavras, de nomes de animais a termos do parentesco formal. Percebe-se que o /ca/ indica certo distanciamento ou diferenciação, o que coloca o termo /krit/ como assumindo uma especificação de aproximação. Como diz Melatti em Azanha (1984, p. 19): (...), “o elemento krit parece indicar associação, contigüidade” (m.s: 256). De fato, o sufixo /krit/ parece pôr em relação coisas distintas que no entanto guardam uma proximidade física ou que estão numa relação de contigüidade: o tepkrit é um pássaro que se alimenta de peixe (tep) e cheira a peixe; o pokrit é um pássaro que de certo modo “convive” com o veado (po), o revela e o espanta; auxêtkrit é um marimbondo que é como o tatu-peba. O que parece ser relevante para a semântica do /krit/ é o fato de remeter a algo que é distinto do substantivo que ele próprio modifica, mas que guarda com este substantivo uma relação da contigüidade ou similaridade. 94 O termo /krit/, por assim dizer, significaria “algo distinto, do qual não se faz parte, mas com que se compartilha semelhanças”. Este ajudaria a revelar a própria identidade do sujeito, pois serviria como ponto de comparação que revelaria quem sou, a mim e aos outros. Ainda segundo Azanha (1984, p. 21): O sufixo /krit/ possuiria, portanto, um sentido mais ou menos determinado que pode auxiliar na compreensão do por quê designar-se “cahkrit” ao “afim”, “ao habitante de outra aldeia”, ao “inimigo”. De fato, “os que estão do meu lado”, “os da minha parte” (meikwya, “meus parentes”) são aqueles que me apóiam em quaisquer circunstâncias mas dos quais não me distinguo: enquanto “parte de mim” me absorve completamente, não me permitindo saber quem sou. Os mecakrit [me=plural], ao contrário, são aqueles que, “semelhantes” a mim (pois um não-Timbira é cupen, vimos) são no entanto distintos de mim, não se confundem comigo – guardam uma autonomia em relação a mim; são aqueles que me distinguem (me destacam como ser singular) pois, “do outro lado” me enfrentam e afirmam: me define (revela-me). Mesmo acentuando as diferenças, os processos de aproximação do “outro” buscam evidenciar particularidades e estabelecer relações de reciprocidade e troca. Assim, como demonstra as instituições de “amizade formal” e “chefia honorária”, há um processo que pode ser chamado de “consangüinização do afim/da afinidade”, que parece ter sido a forma como boa parte da literatura etnológica procurou compreender as “alianças” dos “Timbira”. Se estiver correto na afirmação, podería considerar também pertinente seu inverso: “a afinização do consangüíneo”. A necessidade de um “mediador” para estabelecer relação com a alteridade impõe aos Ramkokamekrá-Kanela que distanciem sujeitos, que conseqüentemente se aproximarão de uma outra realidade ou “unidade social”. O deslocamento dos Ramkokamekrá-Kanela, entre outros “Timbira”, para estudar fora da aldeia parece também característico dessa necessidade de estabelecer a mediação, de estabelecer alianças. No entanto, parece que, devido ao entendimento unilinear da instituição “escola” como aparelho colonial, esta temática vem sendo apreendida a partir de um único foco que, mesmo importante, não dá a pertinência devida às categorias explicativas e significativas internas das sociedades indígenas. Considero relevante as relações interétnicas e seu histórico para entender parte das situações que cercam os grupos indígenas no Brasil, tanto que faremos referência em seguida àquela vivenciada pelos Ramkokamkekrá-Kanela. Nos parece, porém, que por vezes, a ênfase em demasia nesse 95 foco pode comprometer a compreensão de uma situação específica. Se a saída da aldeia natal é intensificada pelo contato com os “não-índios”, não significa dizer que esta saída inexistia antes, como já tentamos demonstrar. Todavia, os aspectos históricos desses relacionamentos não podem ser desconsiderados. 3.6 - O contexto interétnico “(...) uma compreensão das sociedades e culturas indígenas não pode passar sem uma reflexão e recuperação críticas de sua dimensão histórica” (OLIVEIRA, 1999, p. 8). Refletir sobre o contexto interétnico dos Ramkokamekrá-Kanela implica tomar conhecimento de uma sociedade indígena que, historicamente, tem mantido contato com outros indígenas, principalmente aqueles que hoje ocupam o território maranhense. São eles: SOCIEDADE INDÍGENA TRONCO LINGUISTICO LOCALIZAÇÃO Tenetehara-Guajajara Tupi-Guarani Centro do Maranhão (regiões dos rios Pindaré, Grajaú, Mearim e Zutiwa) Awá-Guajá Tupi-Guarani Noroeste do Maranhão Urubu-Kaapor ou Ka’aporté Tupi-Guarani Norte do Maranhão Ramkokamekra-Kanela Macro Jê Sul-sudeste do Maranhão Apaniekrá-Kanela Macro Jê Sul-sudeste do Maranão Krikati Macro Jê Sul-sudoeste do Maranhão Pukobyê Macro Jê Sul-sudoeste do Maranhão Quadro 2 – Sociedades Indígenas do Maranhão A partir de estimativas de Ubbiali (2004) em 2003 o quadro das Terras Indígenas no Maranhão poderia ser expresso da maneira que segue: 96 Mapa 2 - Terras Indígenas do Maranhão em 2003” (UBBIALI, 2004). Como já sugeri que os Ramkokamkerá-Kanela compartilham elementos de sua organização social e de suas crenças com outras sociedades indígenas, notadamente os “Timbira”, há também similitudes quanto ao contato interétnico com os “não-índios”, as quais são marcadas por intensas investidas ofensivas e descaracterizadoras e pelas suas resistências. Libório (s/d, p 57) diz: A relação de contato dos Ramkokamekra, que se estende desde 1815, estabeleceu-se sob condições conflituosas, nas quais este povo esteve sempre em condições desfavoráveis, que ocasionaram perdas numéricas significativas em relação à sua população, causadas por epidemias ou execuções sumárias, chegando quase a extinção deste povo. O percurso pelo material bibliográfico sobre esta sociedade e informações colhidas durante a pesquisa de campo demonstraram certas singularidades históricas, as quais apresentarei na seqüência do trabalho. Estas precisam ser considerados para uma melhor compreensão de sua atual configuração. 97 De acordo com os dados produzidos em julho de 2008 por meio de nossa interlocução com um agente indígena de saúde (AIS)102 da Aldeia Escalvado, os Ramkokamekrá-Kanela contabilizariam um quantitativo de 1647 indivíduos. Este dado foi possível pelo controle que as enfermeiras não-índias da aldeia elaboraram, principalmente aquela que é chamada de “Rosa”, por via do registro em um caderno do nome de todos os “índios”, sendo que a organização deste se deu a partir da casa. Ou seja, foram classificados como da mesma casa apenas os indivíduos que habitavam uma mesma estrutura predial/física. Assim sendo, foram contabilizadas 412 residências. A tabela que segue, a qual confeccionamos a partir de fontes variadas, mostra uma estimativa da variação populacional dos Ramkokamekrá-Kanela entre 1919 e 2008. ANO ALDEIAS FONTE POPULAÇÃO 1919 Ponto103 Censo 226 1933 Ponto Nimuendajú 298 1957 Ponto Crocker 380 (230 + 150) 1960 Ponto Crocker 412 1966 Sardinha104 Crocker 396 1969 Escalvado FUNAI 400 1976 Escalvado Crocker 500 1979 Escalvado Crocker (?) 600 1983 Escalvado Coelho 718 1986 Escalvado FUNAI 791 1988 Escalvado Mehinger 836 1989 Escalvado FUNAI 903 1990 Escalvado FUNAI 992 1998 Escalvado FUNAI 1290 2003 Escalvado ACIW 1445 2004 Escalvado CIMI 1698 2005 Escalvado Crocker e Jonathon Junior 1340 ou 1337 2006 Escalvado FUNAI (MACENA, 2007) 1630 2008 Escalvado Sá 1647 Quadro 3 – Estimativa populacional dos Ramkokamekrá-Kanela entre 1919-2008 102 Esse AIS chama-se Eduardo Karapê Canela. 103 “Aldeia do Ponto” e “Aldeia Escalvado” são denominações ainda hoje utilizadas para se referir às áreas habitadas pelos Ramkokamekrá-Kanela. 104 Aldeia que habitaram quando foram deslocados de sua aldeia natal devida ao clima de animosidade que havia entre os sertanejos da região após o chamado “massacre de 1963”. A peculiaridade desse momento será trabalhada mais adiante. 98 Até início do século XIX (por volta de 1820) os Ramkokamekrá-Kanela eram conhecidos, juntamente com os Apanjêkrá-Kanela e os Kenkateyê, por Kapiekrans105 (RIBEIRO, 2002, p. 175). Nos anos 1817 os referidos Kapiekrans, devido a guerras intertribais e varíola106, passaram por processos de déficit populacional, influenciados também pelas incursões de milícias e bandeiras contra sua população. Estas estariam agindo com o intuito de tomar posse das terras habitadas pelas populações nativas. Essas situações de contatos provocaram deslocamentos que culminaram com a chegada dos sobreviventes aos territórios que posteriormente seriam seus de direito. Pelo mapa que segue pode-se visualizar a localização atual dos Ramkokamekrá- Kanela e sua situação geográfica com relação a outras populações que existem na região. Mapa 3 - TI Canela e região circunvizinha 105 Ribeiro (2002) grafou o nome deles com “C” (Capiekrans). 106 Provavelmente resultado do contato com não-indígenas decorrente de terem sido contatados por forças militares no fim do século XVII. 99 Mais detidamente temos no mapa seguinte a região habitada pelos Ramkokamekrá- Kanela e seus vizinhos mais próximos: Mapa 4 - “The Canela region” (CROCKER E CROCKER, 1994, p. 20). Os Ramkokamekrá-Kanela habitam, na atualidade, a Aldeia Escalvado, que é conhecida regionalmente também como Aldeia do Ponto. Esta é cercada pelos povoados Buriti, Leandro, Sitio dos Arrudas, Bacabal dos Maciel, entre outros. A Terra Indígena Canela (125.212 hectares), onde se encontra a referida aldeia e que foi demarcada entre 1971 e 1983107, localiza-se a, aproximadamente, 75 km a sul-sudeste de Barra do Corda (MA), município que até 2002, antes da elevação do povoado Fernando Falcão108 à categoria de município, tinha sob sua jurisdição essas terras. A localização atual da Terra Indígena Canela corresponde a uma região de Cerrado, o que faz jus às observações de Paula Ribeiro sobre o local habitado pelos Kapiekrans no século XIX (2002, p. 175). Estas 107 Que compreende o tempo de reconhecimento, demarcação, homologação e registro. 108 Localiza-se a sudeste de Campo Largo. 100 semelhanças autorizam a concordar com Nimuendajú (1946, p. 28) apud Libório (s/d,) ao sugerir que Kapiekrans e Ramkokamekrá são dois nomes distintos para caracterizar a mesma sociedade “Timbira”. Os contatos entre os “não-índios” e os Ramkokamekrá-Kanela são marcados por casos de desconfiança e conflitos. Isso pode ser um dos fatores de sua atual localização, na medida em que foram submetidos a frentes de expansão pastoril desde os primeiros anos do século XX. Ribeiro (1982, p. 63-64) diz: Nos primeiros anos do século XX o cerco e a opressão dos criadores era tal que os grupos Timbira se viram compelidos a mudanças constantes. Onde quer que se estabelecessem, porém, eram alcançados pelos criadores; renovavam-se os atritos, as acusações de roubo de gado e de plantações das roças e, por fim, o choque, o massacre. O mais violento deles ocorreu já em 1913 e custou a vida a mais de uma centena de índios. Um criador estabeleceu-se com seu rebanho na Chapada das Alpercatas, próximo da aldeia Chinela. O gado, vivendo solto, espalhou-se pelos campos vizinhos onde os índios Canelas continuavam a caçar. Ora, é sabido que o pastoreio e o próprio gado afugentavam a caça, assim ela foi escasseando e os índios esfaimados tiveram de incluir a carne do boi em sua dieta. Estouravam os conflitos com os fazendeiros. Citando Fróes (1931: 226), Ribeiro (1983, p. 64) continua: O índio comia um boi, o fazendeiro matava um índio. Certo dia os tais Arrudas reuniram para mais de cem Canelas em sua fazenda para tomarem parte numa festa onde havia muita cachaça; depois de embriagá-los, caíram sobre eles, sem deixar um só vivo. Além desses, outros eventos são relatados e dos quais participaram os “índios” que atualmente são classificados como Ramkokamekrá-Kanela. Como coloca Ribeiro (2002) e Libório (s/d), um ocorreu em 1817 e foi decorrente da fome que assolou os Kapiekrans depois que ficaram sob a tutela do Governo. Tendo ajudado o governo na luta contra os Sakamekrãs (Mateiros), em 1814, esta sociedade passou a viver mais próxima dos “não- índios” de maneira relativamente pacífica, já que estavam protegidos pelo Governo, o que os levou a “abandonar” parte de suas atividades de subsistência. A escassez de alimentos é apontada como o motivo que os fez saquear fazendas da região, o que parece ter culminado com o genocídio por contaminação, proposital, de varíola. Nesse contexto, a iniciativa seria deliberada de aniquilar fisicamente os indígenas. 101 A utilização desses “índios” em combates com outros também foi uma manobra recorrente. Como ocorreu em 1901, segundo afirmam parte de nossos interlocutores109, no evento denominado “O Massacre de Alto Alegre”, os Ramkokamekrá-Kanela teriam sido utilizados pelo governo, já que conheciam as matas da região, para lutar contra os Tenetehara-Guajajara. Este evento é bem próximo de minha realidade e tem repercussões sobre parte dessa discussão, já que se vivencia até hoje em Barra do Corda seus desdobramentos, pois apesar de ter ocorrido há mais de um século (em 1901) marca de maneira significativa a forma como os “índios” da região, genericamente, são representados. Estes são lembrados correntemente como preguiçosos e assassinos “que mataram os “padres e as freiras que só tinham a intenção de ajuda-los”. O “Tempo de Alto Alegre” 110, remetido a 13 de março de 1901111, foi decorrente da reação indígena (dos Tenetehara-Guajajara) a investidas da Igreja católica na região (iniciada em 1895). Esta, sob a justificativa de “cristianizar os selvagens” retirava do seio materno as crianças indígenas recém-nascidas para, no convento da missão (localizado em Alto Alegre-MA), serem educadas a partir dos dogmas da instituição religiosa. Nos parece que a investida indígena deveu-se bem mais às conseqüências diretas dessa iniciativa (desaparecimento de crianças, mães índias com problemas decorrentes do excesso de leite nos seios e suas conseqüentes mortes), porém não se pode considerar que a retirada das crianças do convívio familiar e uma potencial desestruturação étnica não tenha trazido elementos potencializadores da rebelião. Como outras sociedades indígenas, os Tenetehara-Guajajara tem seus ritos de iniciação para formar o que consideram “homem verdadeiro”, os quais certamente foram alterados com a presença da missão entre eles. Como resultado desses conflito teve-se diversos óbitos em ambos os lados, porém o que geralmente é divulgado e que é reforçado pelas figuras de padres e freiras na fachada da Igreja central de Barra do Corda (Igreja Matriz) é o caráter selvagem e bárbaro dos “índios” e a benevolência e martírio dos 109 Essa questão é sempre levantada por Ary Korampey Canela, como que cobrando a Barra do Corda que prestaram. 110 Essa foi a expressão utilizada por um indígena Tenetehara-Guajajara em uma produção cinematográfica de dirigida por Murilo Santos (2006). 111 Ver Brandes (1994, p. 225-238), Merlatti (2001), Coelho (2002, p. 114-117), Banco do Nordeste do Brasil (1985) e Cruz (1982). 102 capuchinhos. Por essa explanação, pareceria que tratou-se de um evento que envolveu apenas “não-índios” e Tenetehara-Guajajara da região. Porém a atuação dos Ramkokamekrá-Kanela foi, como afirmou Ary Korampey Kanela em agosto de 2009, “decisiva para resolver a briga de vocês [não-índios e Tenetehara-Guajajara]”. E continuou dizendo que “os guajajara até hoje não gosta dos Canela”, o que reforça a necessidade de relativizar a categoria genérica “índios” e a história que é “contada” sobre o evento. Caberia assim entender qual a parte da atuação desse grupo “Timbira” no evento e destaca-la, já que esses sujeitos reivindicam este reconhecimento e conseqüentemente alguma “compensação”. As críticas por falta de reconhecimento na literatura parecem não se justificar, pois há referências da atuação dos Ramkokamekrá-Kanela em Banco do Nordeste do Brasil (1985, p. 47, grifo nossos) e Brandes (1994, p. 234, grifos nossos) que, respectivamente, expõem: Segundo o antropólogo Willian Croker e outros pesquisadores, os Canelas tomaram parte da famosa revolta da Balaiada em 1839/1840, e, sob o comando do Cel. Pedro José Pinto, lutaram contra a tribo guajajara, no ano de 1901, em Alto Alegre, também no Maranhão. Além das autoridades já enumeradas, algumas famílias tiveram participação notável na arregimentação da tropa e na organização do combate. De Grajaú, o célebre capitão Raimundo Ângelo Goiabeira – talvez aquele que mais trucidamente haja promovido sobre os adversários: Raimundo Leonildo Maranhão – o Mundinho Maranhão, que posteriormente assumira a Delegacia de Policia, já nos anos 40 e fora atingido por estilhaços e chumbos dos ataques dos ataques dos índios nos primeiros combates com as nossas tropas; de Picos (Colinas), o Alferes e o célebre Ten. coronel Pedro José Pinto; remanescentes da Balaiada, comandando diretamente mais de 70 homens armados; do Sul do Município, os índios da Tribo Canela – descendentes do grupo Jê (vide Capítulo I), com mais de 40 índios. A atuação dos atuais Ramkokamekrá-Kanela parece ter sido significativa, justamente pelo fato destes conhecerem as matas da região. Essa peculiaridade, porém, não foi suficientemente forte para evitar que fossem atacados por “não-índios”, como veremos a seguir. Todavia, como coloca Ribeiro (1982), houve momentos em que a situação na região era de relativa paz, o qual corresponde ao início do século XX, momento em que é fundada em Barra do Corda a Ajudância do Serviço de Proteção aos Índios. Este contexto favoreceu bastante a atuação de Nimuendajú na região habitada pelos Ramkokamekrá-Kanela e de outros agentes que advogaram outro tipo de posicionamento 103 frente aos “índios”, como Castelo Branco (em 1938) e Olímpio Cruz (em 1940), que teriam inaugurado na região a prática de, como funcionário do órgão indigenista, viver do lado da aldeia “para aprender mais sobre a vida dos Canelas” (CROCKER, 1990, p. 34). Neste período, os Ramkokamekrá-Kanela vivenciaram uma relativa paz na relação de contato com os “não-índios”, devido à “proteção” prestada pelo órgão indigenista de então, O SPI – Serviço de Proteção aos Índios. Com a saída de Nimuendajú (em 1936), quem assumiu a função de representante do órgão, em 1938, frente à sociedade que pesquiso foi Castelo Branco112. Como aponta Crocker (1990, p. 35), “sua tarefa [de Castelo Branco] consistia em tentar dissolver os enclaves que os sertanejos tinham feito a partir de 1830. Ele [Castelo Branco] avisou aos criadores que o gado que entrasse nas terras dos “índios” seria morto a tiros e comido como os animais selvagens que o gado estava substituindo”. Por esta atitude, alguns pesquisas costumam sugerir que “Castelo Branco queria ajudar os índios”, porém, além disso, é importante ressaltar que a política de defesa dessas populações fazia parte dos objetivos do órgão indigenista e de suas preocupações com a dinâmica territorial nacional. Libório (s/d, p. 56), ao analisar a interação entre práticas tradicionais de cura e práticas biomédicas, deixa entender que as instituições estatais (tutelares) seriam representadas como exemplo de uma suposta “proteção” que Awkê, o herói cultural dos “Timbira”, havia incumbido aos “não-índios”. A narrativa mítica sobre Awkê nos parece indicar outra leitura, na medida em que afirma que ser a aldeia o lócus de origem deste “herói cultural”. Neste sentido, o sujeito que se dispõe a proteger os indígenas é aquele que tendo nascido índio passou por processos de distanciamento de seu lugar natal e de aproximação de outro lugar/grupo. Portanto, considerar simplesmente as instituições estatais como representando uma atualização de Awkê seria inferir que o herói cultural dessa sociedade teria tido sua origem em outro lugar, que não aquele de seus protegidos. Sendo assim, pode-se perceber que o desenrolar dessa narrativa indica o desejo por parte de Awkê de que seu grupo se transforme, assim como ele, porém seu grupo recusa essa alternativa. Mesmo ficando triste, ele parece se conformar, aceita e respeita a decisão e se compromete a protegê-los. Como conseqüência, 112 “Ele construiu uma casa para sua família nas duas aldeias [aldeia do brejo da Raposo e área próxima do rio Santo Estevão]. Pela primeira vez, uma família brasileira estava vivendo bem ao lado da aldeia dos Canelas” (CROCKER, 1990, p. 35). 104 tem-se a aceitação e o reconhecimento por parte da comunidade dessa proteção. Nesse sentido, mesmo não aceitando as alterações da maneira como foram propostas pelo “herói cultural”, a sociedade legitimaria a performance de determinados sujeitos (a priori, ambíguos) para atuarem como “mediadores” no campo das relações interétnicas. Foi no período do SPI, já sob a administração de Olimpio Cruz, a partir de 1940, que atividades escolares/educacionais113 se intensificaram entre os Ramkokamekrá-Kanela, o que imprimiu outros significados sobre o mundo de fora da aldeia. Diversos foram os eventos que, nas palavras de Crocker (1990, p. 36), indicariam “fatores deculturativos”. Porém, parece tratar de elementos que mesmo sendo “novos” são significados através das lógicas nativas. Em Sistemas Políticos da Alta Birmânia, Leach (1995, p. 328) diz: Somente o observador externo tende a supor que as mudanças na cultura e na organização estrutural de um grupo devem ter um significado desagregador. É um preconceito do antropólogo etnocêntrico supor que a mudança é “destruidora da lei, da lógica e da convenção”. A introdução da instituição escolar, entre outras instituições, como veremos mais detidamente no segundo capitulo deste trabalho, perece ter trazido conseqüências pertinentes para entender certos aspectos envolvendo os Ramkokamekrá-Kanela. Destaco, para uma breve explanação, o conhecido “movimento messiânico de 1963” que ocorreu entre os Ramkokamekrá-Kanela114. Cabe ressaltar que este evento abalou consideravelmente a relativa paz com os “não-índios” e as representações sobre os indígenas da Aldeia Escalvado. Este evento é sempre associado regionalmente aos Ramkokamekrá-Kanela. Tratou- se de um momento especifico na história dessa população, no qual, afirmando está levando na barriga Awkê, uma índia chamada Maria Castelo Kee-kwëi115 proclamou que estaria chegando a hora de inversão dos papeis de “índios” e “não-índios”. Essa sociedade indígena, como coloca Oliveira (2002), trabalhou desde muito cedo com o já citado 113 Analisaremos mais detidamente esse processo educacional no segundo capítulo deste trabalho. 114 Negrão (2001, p. 119) Apud Silva Junior (2006) coloca que movimento messiânico corresponderia “a atuação coletiva (por parte de um povo em sua totalidade ou segmento de porte variável de uma sociedade qualquer) no sentido de concretizar a nova ordem ansiada, sob a condução de um líder de virtudes carismáticas”. 115 Silva Júnior (2006) estima sua data de nascimento entre os anos de 1924 e 1925, na antiga Aldeia do Ponto. Outra informação a ser considerada é que Kee-kwëi viveu alguns anos na capital do Estado do Maranhão. 105 representante do SPI, Orículo Castelo Branco, do qual sofreu enorme influência116. Essa influência pode indicar, juntamente com as representações das narrativas míticas dos Ramkokamekrá-Kanela, subsídios para compreender parte de suas performances durante o fenômeno de 1963. Como enunciei, Castelo Branco tinha a política de “proteger” os “índios”. Parte dessa “proteção” se manifestava em sua permissão destes matarem os gados dos sertanejos que invadissem seu território. Essa então foi a atitude tomada e divulgada por Kee-kwëi e divulgada pelos seus potenciais seguidores117. A política do movimento de saquear o gado dos regionais se fez presente. Esta equacionava um dos problemas da aldeia, que era a falta de suprimentos. Quanto a esse ponto não há registros de críticas ao fenômeno por parte dos indígenas. O que não se pode dizer em relação às quebras de regras tradicionais, impostas por Kee-kwëi, principalmente aquelas referentes às relações de parentesco. Crocker (1967, p. 4-5, sic) assim se expressa: Nas segundas, terças, quartas e quintas feiras, os Canelas dançavam no pátio as danças tradicionais. A diferença principal era que agora tinha de dançar e continuar dançando por muito tempo, ou então eram castigados. Deviam, também, cantar bem alto ou enfrentar as conseqüências. Uma das punições era amarrar o réu e mantê-lo sentado, durante horas, no topo de um tronco de buriti levantado, e cheio de pedras fragosas. Outra era fazer passar uma fila de mulheres diante dos réus masculinos amarrados, cada uma das quais lhes arrancava alguns tufos de pêlo púbico. Numa ocasião pelo menos, os piores cantores masculinos foram deitados de costas, num lado do pátio, para uso sexual exaustivo das boas cantoras, ao passo que no outro lado do pátio ocorria o inverso. (...). Não há dúvida de que a maioria dos Canelas, ou por convicção ou por medo, foram levados a cooperar intensamente nos objetivos e nas atividades do movimento de culto. Às sextas-feiras, aos sábados e domingos, os Canelas dançavam à maneira dos civilizados, aos pares, ao som da música de acordeão surpreendentemente boa do jovem Kaahï (de uns 20 anos). Às vezes, as casadas só podiam dançar com seu par e os solteiros eram segregados, ao passo que em outras ocasiões a dança era misturada. Entretanto, a disciplina nos fins de semana era mais rigorosa do que nos outros quatro dias. Os transgressores eram levados para um recinto vizinho ao local da dança e amarrados sem roupa. Por vezes, eram obrigados a ficar sexualmente à disposição de quantos ali chegassem. Em grande parte, eram seguidores masculinos que aplicavam “punições” aos “réus” do sexo feminino. 116 Silva Júnior (2006) sugere que Castelo Branco e Kee-kwëi tiveram um relacionamento extraconjugal. Além disso, como ficará mais claro no capitulo seguinte, era política dos representantes do órgão indigenista ensinar aos indígenas, principalmente aos mais próximos, noções básicas de “leitura e matemática” tal como aquelas que se aprende nas escolas de fora da aldeia. 117 Crocker (1990, p. 37) coloca que um de seus mais fieis seguidores foi um indígena chamado Kaapêltuk, o qual já tinha tido experiência de estudar fora da aldeia. 106 A descrição acima coaduna com as informações que obtive em julho/2008 por Gildo Kryt118, nascido em 03/08/1922, o qual se diz envergonhado das práticas de então, pois eram “contra as regras da cultura”. Afirmou ele que foi obrigado a ter relação sexual com pessoas de sua família elementar, mais precisamente com a sua irmã. Exceto a premissa de que os gados dos sertanejos poderiam ser saqueados, mortos e consumidos também pelos “índios”, Gildo Kryt mostrou-se em desacordo com outras práticas tomadas pelo movimento. É unânime por Crocker (1967) e Silva Junior (2006) a interpretação de que este movimento legitimou-se simplesmente pela pretensão de inverter a ordem posta entre “não- índios” (dominadores) e “índios” (dominados). Diante do exposto, acrescentaría que outras leituras podem ser feitas. Parece que este fenômeno não se justificaria simplesmente pela narrativa mítica sobre Awkê, posto que esta diz bem mais respeito ao estabelecimento de alianças, via a legitimação de um representante (ou representantes) para atuar fora do grupo de origem, do que à total transformação/inversão cultural deste. Ao considerar simplesmente essa discussão em termos de inversão, tender-se-á a perder o foco central da narrativa mítica: o estabelecimento de alianças através de “agentes mediadores” que tenham condição de proteger o grupo das investidas externas, respeitando sua reprodução/manutenção cultural. Neste sentido, este evento poderia ser entendido como dizendo muito mais do que uma pretensa “inversão de ordem ou imposição de uma outra ordem”. A falta de condições objetivas119 para a realização de “rituais diferenciadores”120 pode ser considerada como uma causa mais direta do fenômeno de 1963. Assim, percebe-se que não se tratava, simplesmente, de inversão cultural, mas também de conseguir executar certos rituais tradicionais, os quais, devido ao processo histórico de contato, careciam de suprimentos. Portanto, a afinidade desse fenômeno com a narrativa mítica sobre Awkê estaria mais nas questões relacionadas ao “saque legitimado” do gado dos sertanejos, o que denota que a líder messiânica estaria ajudando a população ao supri-la com alimentos. A interpretação de 118 Gildo Kryt não fala português. As informações que nos passou foram traduzidas por Cornélio Piapit, então cacique da aldeia. 119 Aqui me refiro à falta de carne de gado. Mas podemos, atualmente, considerar outros suprimentos. Por exemplo, a laranja para a realização da “Festa da Laranja”, 120 Entendo estes como eventos considerados “da cultura indígena” e que expressão sua “indianidade”. Oliveira (2004, p. 27, sic) coloca que “dentre os componentes principais dessa indianidade (Oliveira 1988) cabe destacar a estrutura política e os rituais diferenciadores”. 107 “inversão cultural” dado a esse fenômeno se distanciaria da narrativa mítica sobre Awkê, pois não há essa proposição pelo “herói cultural” nas versões conhecidas. A proposição seria para se adequar, significando, situações decorrentes da situação de contato e não se tornar “branco”. O desfecho geral da profecia foi a não concretização da suposta inversão da então ordem do mundo. As informações sobre o destino de Kee-Kwëi são incertas, mas Crocker (1967, p. 8) sustenta que “ela foi parcialmente excluída da vida comunitária, porém não sofreu ofensa física”. Objetivamente, uma das conseqüências desse evento, que caracteriza um tipo de migração, foi o exílio dessa população em Sardinha (aldeia Tenetehara-Guajajara), de 1963 a 1968, decorrente da situação de animosidade121 envolvendo “índios” e “não-índios” e que assolou a região. Crocker (1990, p. 38) diz que depois que chegaram à aldeia Sardinha (localizada a 50 km a noroeste de sua antiga aldeia) “as famílias se haviam colocado em posições e ordem tradicionais em torno do círculo, em relação ao sol”. Esse contexto é ilustrativo para atentarmos que diante de vicissitudes históricas, a sociedade indígena da qual estou me referindo tem formas próprias e efetivas de atuação e significação. Como expõe Oliveira (1999, p. 23): O que efetivamente importa – e que constitui o fator dinâmico – é o processo complexo de construção de sentido por um agente, que opera sempre com um código cultural e uma lógica específica, mas que igualmente registra, especula e traduz para os seus próprios termos a existência de outros agentes e de outras culturas. Da Sardinha, o retorno à Chapada iniciou-se em 1968. Crocker (1990) coloca que isso foi possível devido à atuação da Fundação Nacional do Índio – FUNAI122, então órgão indigenista, que sob as diretrizes do regime militar procurou garantir a propriedade territorial das localidades situadas na Chapada Centro-maranhense. Foi neste momento que se deu o inicio dos trabalhos, inconclusos, de demarcação das Terras Indígenas, em geral, e 121 Crocker (1990, p. 37) assim se expressa: “Logo os fazendeiros do sertão se deram conta de que algo estava acontecendo na tribo e que cerca de 40 cabeças de gado haviam desaparecido em quatro meses. Isso não podia ser tolerado e serviu de desculpa para que tomassem conta das terras dos Canelas, que cobiçavam há muito tempo. Contrataram bandoleiros em Tuntum e se prepararam para punir os canelas, que chamavam de ‘bichos do mato”. 122 Criada em substituição ao SPI em 1967, através da Lei nº 5.371 de 05/12/1967 (MAGALHÃES, 2003, p.85). 108 da TI Canela, em particular. Sendo este último concluído em 1983, mas que atualmente se encontra em processo de reconfiguração. Certamente não só esses foram os eventos relacionados ao contexto interétnico dos Ramkokamekrá-Kanela. Também merece destaque a atuação do Instituto Lingüístico de Verão e da própria presença do pesquisador estadunidense Willian Crocker, entre outros, que tiveram papel importante no reconhecimento externo dessa sociedade indígena e na alfabetização de parte de seus sujeitos, que conseqüentemente se tornavam seus “assistentes de pesquisa” ou “diaristas” (FOLHES, 2004). A ocupação de diarista passou a ser significada como de prestígio, o que é reconhecido por Crocker (1990, p. 45) ao afirmar que “esse programa deu um certo prestígio ao fato de alguém saber ler e escrever”123. Têm-se assim, entre os Ramkokamekrá-Kanela, certos elementos peculiares que, associados ao processo educacional imposto pelo Estado Brasileiro às populações indígenas, vem a colocando diante de contextos que exigem sua atuação como protagonista, mas que também a insere em um processo que vem contribuindo para a consolidação de uma situação que, nos termos de Oliveira (1977) Apud Paladino (2006, p. 50), denominaria de “processo de urbanização”, a qual indica um constante contato com elementos novos, estranhos à aldeia, mas que podem passar a ser positivamente significados. Este pode ser o caso da escola atualmente. No capitulo que segue abordarei esta questão, procurando analisar a “história social” da educação escolar para sociedades indígenas como um processo dinâmico, que mesmo possuindo diretrizes próprias e sendo, a priori, exterior e estranhos aos processos ensino-aprendizagem dos “índios”, passam por significações peculiares nas sociedades indígenas. 123 Em Folhes (2004, p. 70) lê-se que “durante os anos 80 este programa foi suspenso graças a atuação de um administrador da FUNAI e antropólogos brasileiros contrários à presença de estrangeiros em terra indígena. Após 11 anos de paralisação desta atividade, Crocker a retoma em 1991, aumentando paulatinamente o número de participantes desde então”. 109 4 – “PISANDO EM ESPINHOS”: uma “história social” da educação escolar indigenista A função primária da comunicação escrita foi facilitar a servidão Claude Lévi-Strauss (1955) A discussão que proponho, referente ao deslocamento de “índios” que buscam os centros urbanos para estudar e as implicações dessa situação no contexto da aldeia e da cidade, requer uma retomada histórica do processo de construção dessa configuração social. Neste sentido, nesta parte do trabalho, refletirei sobre a “história social”124 da educação escolar voltada para as sociedades indígenas no Brasil, com base nas políticas públicas relacionadas a esta temática, e as suas influências sobre os agentes envolvidos. Esse movimento vem se construindo ao longo das interações históricas entre “índios” e “não-índios”, mas adquire um significado peculiar quando se percebe criticamente os diversos discursos presentes neste campo. Num esforço expositivo, evidenciarei um panorama geral acerca da educação escolar para “índios” no Brasil. Em certa parte da explanação deterei a analise à situação escolar experimentada pelos Ramkokamekrá- Kanela. Como os demais Estados que se afirmam nacionais, o Estado brasileiro inspira-se no discurso universalista, fundamentando-se no indivíduo como medida de todas as coisas. Assim, com as sociedades indígenas, com costumes e crenças diferenciadas, ele adota práticas universais, inclusive nos campos da educação e da saúde. Sobre a atuação do Estado brasileiro frente à diferença Coelho (2006, p. 6), em “Cidadania violenta: expressão de um paradoxo”, assevera: 124 A utilização desta categoria está baseada na formulação de Bourdieu (1989, p. 37), que afirma ser “preciso fazer a história social da emergência desses problemas, da sua constituição progressiva, quer dizer, do trabalho colectivo – freqüentemente realizado na concorrência e na luta – o qual foi necessário para dar a conhecer e fazer reconhecer estes problemas como problemas legítimos, confessáveis, publicáveis, públicos, oficiais: podemos pensar nos problemas da família, do divórcio, da delinqüência, da droga, do trabalho feminino, etc. Em todos os casos, descobrir-se-á que o problema, aceite como evidente pelo positivismo vulgar (que é a primeira tendência de qualquer investigador), foi socialmente produzido, num trabalho colectivo de construção da realidade social e por meio desse trabalho: e foi preciso que houvesse reuniões, comissões, associações, ligas de defesa, movimentos, manifestações, petições, requerimentos, deliberações, votos, tomadas de posição, projectos, programas, resoluções, etc. para que aquilo que era e poderia ter continuado a ser um problema privado, particular, singular, se tornasse num problema social, num problema público, de que se pode falar publicamente – pense-se no aborto, ou na homossexualidade - ou mesmo num problema oficial, objecto de tomadas de posição oficiais, e até mesmo de leis e decretos”. 110 Construído de forma ilegítima, o estado brasileiro foi marcado pelos ideais liberais e pela ideologia da igualdade da cultura política ocidental. Nesse sentido, a diferença tem sido percebida como uma ameaça à identidade nacional. As instituições políticas brasileiras não estão em condições de respeitar a diferença. Ao contrário, a solução encontrada tem sido diluir a noção de diferença na noção de igualdade civil, através do discurso da cidadania, buscando confinar as diferenças à esfera do privado. Na mesma linha de raciocínio lê-se em Ferreira (2001, p. 13) que “o surgimento do estado-nação pressupõe a homogeneização de diferentes povos, com distintas línguas, crenças e tradições, em um país com fronteiras espaciais delimitadas e a constituição de um poder central criado à revelia do reconhecimento das concepções internas dos povos formadores do tal estado-nação”. A força coercitiva de tais estados pode ser exemplificada, no caso do Brasil, através das deliberações estatais, que, mesmo considerando suas transformações históricas o trato com as sociedades indígenas, são apoiadas em premissas que buscam diluir as diferenças (indígenas ou não) através dos discursos de cidadania125. A existência de uma “unidade nacional” pode ser posta em questão quando sujeitos afirmam pertencer também a “nacionalidades” distintas daquela oficialmente reconhecida pelo Estado. Esta situação caracteriza a situação do “índios” no Brasil. Durante minha atuação como “estagiário”126 do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), tive a oportunidade de dialogar com sujeitos de diferentes sociedades indígenas do Maranhão (Ramkokamekrá- Kanela, Apanjêkrá-Kanela, Krahô, Apinayé, Krikati, Pukobyê, entre outros). Chamou-me atenção a resposta de Ivam Polgatê Canela127 quando interrogado sobre seu pertencimento. Afirmou ser “Ramkokamekrá” e “brasileiro”, respectivamente. Esta afirmação é exemplar na medida que reflete a tensão identitária vivenciada por esse sujeito. É importante apontar que mesmo sendo conscientes de pertencer a um país maior, a maioria dos “índios” não abrem mão de seu “desejo” e legítimo “direito” de diferenciação e organização social própria. No campo oficial pode-se ler em Brasil (1988, art. 231): 125 Considero que mesmo sendo campos distintos, interesses de cidadania e interesses indígenas, há negociações constantes, as quais dependem dos interesses dos agentes. . 126 Não havendo designação oficial pela instituição ao serviço que prestava, assumo aqui a definição dada pelos indígenas. 127 É importante atentar para a especificidade deste ator social, visto o mesmo ter vivido muito tempo fora da aldeia. Isto nos traz a interpretação de haver um sentimento de pertencer ao povo do qual faz parte e também está ciente das atribuições do fato de ter nascido em território brasileiro - Sobre a definição de “brasileiros natos” ver Brasil (1988, art. 12, inciso I, letra a). 111 São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Tal reconhecimento não deixa entretanto de sofrer críticas, já que o mesmo é fundamentado, segundo Coelho (2006), em princípios que não fazem referência à pluralidade étnica, mas sim à soberania, à dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho e ao pluralismo político. Sendo assim, para as sociedades indígenas o que se coloca na prática é a negociação de certos poderes de atuação que eles podem conservar para si. No entanto, constata-se no Estado brasileiro algumas estratégias apontando para princípios políticos de assimilação e integração dos “índios” à sociedade majoritária, diante das quais observam-se também resistências, as quais historicamente têm levado os “índios” a (re)criarem e atualizarem (na prática) mecanismos e significações, que a partir de suas visões de mundo, possam fragilizar o empreendimento colonial. No caso dos Ramkokamekrá-Kanela venho observando incentivos para que alguns sujeitos estudem fora da aldeia (na cidade), pois potencializaria sua atuação no contato interétnico e na defesa da comunidade. Esta iniciativa parece ser uma atualização, frente a educação escolar, de uma prática já manifestada na relação com outras sociedades indígenas, a construção de um “mediador”. Se por um lado o Brasil é marcado pela diversidade cultural, por outro é marcado por tentativas de diluí-la. Essa situação vem resultando numa constante tensão histórica que envolve Estado e “índios” e caracteriza-se por políticas assimilacionistas, resistência indígena e práticas de significação. 4.1 - Coerção Física e Simbólica: Estratégias de colonização e educação escolar indigenista No Brasil, o período colonial (1500 a 1808) foi marcado pelo projeto de colonização empreendido por Portugal, que tinha como meta a exploração das riquezas encontradas neste território. Nesse contexto, os “índios” foram considerados, pela metrópole como um empecilho para tal fim, já que estes tinham outras formas de conceber, por exemplo, a “exploração da terra”. A metrópole, então, depara-se com a tarefa de 112 transformar a força indígena, que de varias formas resistia, em força dócil a serviço da Coroa portuguesa. As “guerras justas”, “descimentos”, “aldeamentos”, “entradas e bandeiras” são exemplos de estratégias utilizadas para capturar, cristianizar, civilizar, colonizar os “índios” e tomar-lhes a posse das terras. Para entender esse momento é fundamental atentar para a atuação dos missionários, que a historiografia aponta como os primeiros a buscar distanciar as sociedades indígenas de suas práticas ancestrais.. Macena (2007, p. 38, grifos meus) citando Madureira (1986, p. 58) constata que: O ensino nas escolas e missões possuía como objetivo maior, como já foi colocado, uma maior humanização do homem, tornando-o universal. Tal universalidade seria obtida através dos ensinamentos dos dogmas cristãos católicos, dos estudos humanistas e da instrução cívica, pois o aluno “destina-se a entrar e viver na sociedade, não como um egoísta indiferente, mas como membro ativo e interessado na vida nacional, o jovem educando não receberia no colégio formação completa se não lhe fossem ensinados os princípios teóricos e práticos da educação cívica. Nos jovens de hoje, que serão os homens de amanhã, fundam-se as esperanças da nacionalidade. A educação intelectual, religiosa e moral associam-se à educação cívica. Civismo é termo que melhor designa o conjunto de qualidade que deve possuir um perfeito cidadão”. Entre “guerras justas”, empreendidas pelo Estado Colonial, e educação escolar, levada a cabo pelos missionários128, há diferenças apenas nos métodos, pois em ambas não se observava o interesse em respeitar as manifestações culturais específicas dos “índios”. A busca constante de impor aos “índios” valores e idéias externos, inferiorizando suas crenças, línguas e culturas expressa-se por meio de força física (“guerras justas”) e força simbólica (educação escolar, catequese, etc). No primeiro momento (séc. XVI), para “civilizar” os “índios”, os jesuítas utilizavam como estratégia a “tradução” como forma de “conquista”, técnica difundida entre os “índios” através de missões, as quais ainda hoje atuam em determinadas aldeias no Brasil. Como coloca Macena (2007, p. 38), “uma importante singularidade das escolas jesuítas no Brasil seria o estudo do Tupi, e não do grego ou hebreu. Desta forma as línguas nessas escolas eram o latim, que representava a “língua do saber e do sagrado” e o Tupi que era “o instrumento apto e próximo para a conquista das almas”. Dessa forma, percebe- 128 Os primeiros jesuítas, chefiados por Manoel da Nóbrega, chegam às terras do novo mundo em 1549, com a missão de conseguir submeter os indígenas aos interesses coloniais. 113 se haver certa predisposição por parte dos missionários em primeiro aprender (a língua nativa) para depois ensinar (os dogmas cristãos). Utilizando os termos do Padre Antonio Vieira, Macena (2007, p. 39, grifos nossos) ilustra a afirmação precedente. Por vezes me aconteceu estar com o ouvido applicado à boca do bárbaro, e ainda do interprete, sem poder distinguir as syllabas, sem perceber as vogaes, ou consoantes, de que se formavam, equivocando-se a mesma lettra com duas a três semelhantes, ou compondo-se (o que é mais certo) com mistura de todas elas; umas tão delgadas e subtis, outras tão duras e escabrosas; outras tão interiores e escuras, e mais afogadas na garganta que pronunciadas na língua; outras tão curtas e subidas, outras tão extendidas e multiplicadas, que não percebem os ouvidos mais que a confusão... Se é trabalho ouvir uma língua que não entendeis, quanto maior será haver de entender a língua que não se ouvis? O primeiro trabalho é ouvi-la; o segundo percebe-la; o terceiro reduzi-la a grammatica e preceitos; o quarto estudá-la; o quinto (e não menor, e que obrigou S. Jerônymo a limar os dentes) o pronunciá-la. E depois de todos estes trabalhos, ainda não começaste a trabalhar, porque são disposições somente para o trabalho. Estes procedimentos tiveram por conseqüência a elaboração no Brasil da denominada “língua geral”129, que teve o objetivo de disseminar-se e unificar as línguas e as culturas indígenas. A utilização da “língua geral”, como afirma Ferreira (2001, p. 20), encerra-se no séc. XVIII, com a divulgação da Provisão de 12 de outubro de 1727, que proibiu o uso da chamada língua geral e determinou o ensino da língua portuguesa nos “aldeamentos”. Para além da tradução, a língua portuguesa falada e a escrita foram gradativamente percebidas como únicos valores lingüísticos viáveis a serem interiorizados pelos indígenas. Esta situação vem se alterando nos últimos anos, onde a demanda pela língua materna faz parte das exigências dos “índios”. A influência dos jesuítas e de parte de suas técnicas educacionais nos “aldeamentos” sofreu outro revés na segunda metade do século XVIII, com o decreto de 7 de junho de 1755, que pôs fim, legalmente, à pedagogia jesuítica entre as sociedades indígenas. Conhecido como Diretório dos Índios130 ou Diretório de Pombal, esta lei caracteriza-se pela expulsão dos jesuítas dos “aldeamentos” e pela regulamentação acerca das escolas em seu objetivo de otimizar o domínio colonial. Por tal Diretório almejava-se 129 Segundo Macena (2007, p. 40, sic) a língua geral ‘consistiu na tentativa de se criar uma língua comum, que facilitasse o entendimento entre os as diversas nações indígenas e missionários”. Tal língua deveria ser adotada pelos “índios”, aldeados ou não. 130 Composto por 95 artigos que teve como principal objetivo retirar a administração das aldeias dos religiosos. 114 transformar os “índios” em servos do soberano ou mão-de-obra barata, com centralidade para a obrigação da utilização da língua portuguesa. Como se lê no artigo 6: Será um dos principais cuidados dos Diretores estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que, os meninos e meninas, que pertencerem às escolas, e todos aqueles índios que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da Língua própria das suas nações131, ou da chamada geral, mas unicamente da portuguesa. O que está em jogo nesse momento é a utilização de práticas disciplinares, por parte do Estado, para a formação de um tipo de “cidadão”, aquele que lhe convém. Mesmo que o “poder disciplinar” presente nas escolas das aldeias contribua para alterações na maneira dos “índios” significam suas formas de ensino-aprendizado, tal influencia não pode ser percebido de modo unilinear. Formas próprias de ensino-aprendizado atuam simultaneamente às formas escolares nas aldeias. Para uma caracterização do modo indígena de ensino-aprendizagem, destaco Ramos (1986, p. 58) que coloca: A infância é uma fase de aprendizado social, e as crianças são totalmente integradas na vida comunitária. Não há lugar nem contexto onde uma criança indígena não possa ser admitida, nem há recintos nem assuntos ‘impróprios para menores’. Os brinquedos são miniaturas dos instrumentos dos adultos e raramente criações especiais como bonecas ou jogos de armar. Poderíamos dizer mesmo que as crianças são adultos em miniatura e não um segmento incapaz e segregado da sociedade. Impressiona a um estranho a habilidade e competência com que crianças índias de quatro, cinco anos manipulam facas, terçados, fazem fogueiras, sem incorrerem em acidentes infantis, como cortes ou fraturas, tão conhecidos entre nós. Nas aldeias a “instituição escola” causou alterações significativas na maneira como os “índios” concebem instituições de mundos sociais diferenciados. Houve também a imputação de valores que contribuem para outras formas de significação de elementos alienígenas, alegando-se a convivência intercultural. Mesmo assim, a “escola”, enquanto “instituição colonizadora”, continuou atuando após a Proclamação da Independência do Brasil, em 1822, como instituição homogeneizadora. Neste outro momento da historia do Brasil ainda se sentiram as prerrogativas do Diretório dos Índios, mesmo este tendo sido revogado, como coloca Macena (2007, p. 44), em 1798. 131 Em documentos posteriores as populações indígenas passam a não ser mais classificados como “nações”. 115 As mudanças ocorridas após a independência do Brasil, no que diz respeito à forma de atuação frente às sociedades indígenas dizem respeito à maneira como se passou a tentativa de efetivar o ideal integracionista. Há uma fragilização, legal, dos meios que legitimavam coerção física. O Decreto nº 426 de 1845, denominado Regimento das Missões, foi o documento que fixou neste momento as diretrizes para o trato com os “índios”. Definida como política de catequese e civilização, este se diferenciava por, em teoria, não permitir violência física contra os “índios”132. A educação escolar para as sociedades indígenas voltava a ficar também a cargo de missionários, que seriam responsáveis pelas aldeias. Como prerrogativa legal, lê-se no artigo 6º do Regimento das Missões a passagem que segue: Art. 6º, § 1. Instruir aos índios nas máximas da religião católica, e ensinar-lhes a doutrina cristã. § 6. Ensinar a ler, escrever e contar aos meninos, e ainda aos adultos, que já sem violência se dispuserem a adquirir essa instrução. À possibilidade legal, que legitimava o “índio” a escolher, é marcada pelo intenso processo histórico de imposição, o qual ainda hoje tem seus vestígios visíveis. No momento imperial o ideal de uma “civilização nacional” permaneceu tolhendo outras formas de manifestações, que não aquela oficialmente reconhecida. De uma obrigação punida fisicamente, a “civilidade” tendeu a ser disseminada como “necessária”. Nesse sentido a estratégia utilizada parecia mais eficaz, pois sendo mais simbólica n~çao seria reconhecida pelo coletivo alvo. Esse irreconhecimento da produção termina por legitimar o produto, ou seja, a “necessidade” da educação escolar. Bourdieu (2006, p. 28) afirma que: Em matéria de magia, como Mauss já havia observado com justeza, a questão não é tanto saber quais são as propriedades específicas do mago, nem sequer operações e representações mágicas, mas determinar os fundamentos da crença coletiva ou, ainda melhor, do irreconhecimento coletivo, coletivamente produzido e mantido, que se encontra na origem do poder do qual o mago se apropria: se é ‘impossível compreender a magia sem o grupo mágico’ é porque o poder do mago, cuja assinatura ou grife miraculosa não é senão uma manifestação exemplar, é uma impostura bem fundamentada, um abuso de poder legítimo, coletivamente irreconhecido, portanto, reconhecido. 132 Devido, provavelmente, à influência da Igreja Católica percebe-se neste momento uma certa preocupação oficial com a vida dos “índios”, mas apenas enquanto sujeitos individuais, não como coletividades distintas. 116 Sob o aspecto de se legitimar pelo desconhecimento dos mecanismos de produção, encontra-se também a educação escolar que, neste caso, instaura, dissimula e reproduz um certo tipo de dominação. Bourdieu (2006, p. 200, grifos meus) assim continua: O efeito de legitimação da ordem estabelecida não incumbe somente, conforme se vê, aos mecanismos tradicionalmente considerados como pertencentes à ordem da ideologia, como o direito. O sistema de produção dos bens simbólicos ou o sistema de produção dos produtores desempenham, também – isto é, pela lógica mesma de seu funcionamento – funções ideológicas pelo fato de que se mantém escondidos os mecanismos pelos quais eles contribuem para a reprodução da ordem social e para a permanência das relações de dominação. Não é tanto através das ideologias produzidas ou inculcadas pelo sistema de ensino (como poderiam fazer-nos crer aqueles que falam de “aparelhos ideológicos”) que tal sistema contribui para fornecer à classe dominante um “teodicéia de seu próprio prestígio”, como disse Max Weber, mas é, sobretudo, através da justificação prática da ordem estabelecida que tal sistema instaura quando dissimula sob a relação patente, garantida por ele, entre diplomas e cargos, a relação que ele registra sub-repticiamente, sob a aparência de igualdade formal, entre os diplomas obtidos e o capital cultural herdado, ou seja, através da legitimação que fornece assim à transmissão desta forma de herança. Os efeitos ideológicos mais óbvios são aqueles que, para se exercerem, não precisam de palavras, mas do silêncio cúmplice. O mesmo é dizer de passagem, que toda análise das ideologias, no sentido restrito do discurso de legitimação, que não comporte uma análise dos mecanismos institucionais correspondentes, se expõe a ser apenas uma contribuição suplementar para a eficácia de tais ideologias: é o caso de todas as análises internas (semiológicas) das ideologias políticas, escolares, religiosas ou artísticas que esquecem que a função política dessas ideologias pode reduzir-se, em certos casos, ao efeito de deslocamento e desvio, de dissimulação e legitimação, produzido por tais análises ao reproduzirem, por falta ou omissão, em seus silêncios – voluntária ou involuntariamente, cúmplices -, os efeitos dos mecanismos objetivos, A saída de alguns “índios” de suas aldeias para estudar na cidade pode ser reflexo das relações interétnicas, mas não só. O entendimento dessa perspectiva não indica que é a única, outros elementos também precisam ser considerados. Ressalto ainda que no Império a busca por “civilizar e catequizar” os indígenas tomou outro formato na medida que, como afirma Macena (2007, p. 46), estes sujeitos são considerados como “parente[s] indesejado[s]”, “que não podia[m] ser ignorado[s]” e que deveriam ser aconselhados a se comportar de maneira adequada. Neste sentido, torna-se pertinente relativizar os meios “brandos” e “simbólicos” desse período, pois sendo menos reconhecidos tenderiam a ser mais eficazes. 117 4.2 – O SPI e a FUNAI: alterações em torno da “assimilação natural” explícita É no contexto em que a coerção física para com os “índios” sofre certa fragilização que emergem duas instituições que precisam ser entendidas e contextualizadas. O Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), as quais ainda são presentes no imaginário dos Ramkokamekrá-Kanela. Em conversa na Aldeia Escalvado, em julho de 2008, com Raimundo Roberto Kaapêltùk recebi a informação que teria sido no tempo do SPI e da Nazaré que ele havia começado a estudar. A revisão da literatura indicou que com o declínio da Monarquia e início do período Republicano (1889) ocorreram algumas modificações na atuação estatal frente aos ìndios”, o que não significou o distanciamento significativo de uma política educacional voltada para a catequização, evangelização e civilização das populações indígenas. No período ora em questão, sob a égide do “desenvolvimento econômico”, o governo brasileiro acirrou a elaboração e execução de projetos de desbravamento do interior do país. A intenção era demarcar e garantir as fronteiras nacionais. Este projeto de interiorização deparou-se com resistências de sociedades indígenas que intencionavam proteger seus territórios e suas culturas, num momento que se caracterizou pólo extermínio sistemático dessas sociedades. A preocupação quanto ao destino dos “índios”, enquanto coletividades especificas, não estava entre as prioridades do governo central, sendo esta o “desenvolvimento econômico”. O problema dos conflitos gerados pela confrontação dos “índios” com segmentos das “frentes de expansão” era discutido apenas a partir de três perspectivas: extermínio das “tribos hostis”, “civilidade” e “proteção oficial”. A valorização do “progresso” e do “desenvolvimento” das regiões inexploradas era uma meta, que para ser efetivada precisava buscar soluções aos conflitos interétnicos de então. Das três perspectivas acima citadas, a proteção oficial foi a que vigorou, já que abarca, implicitamente, as demais. Retiraria-se “tribos hostis “ do caminho, já que estas seriam transformadas em “dóceis”, sendo que tal processo se daria pela “civilização” e “catequese” e num local formalmente reconhecido e protegido, as terras indigenas. A proteção oficial aos “índios” neste momento concretizou-se formalmente com a criação, no dia 20/06/1910, do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de 118 Trabalhadores Nacionais - SPILTN, que posteriormente (1928), através do decreto 8.072, passa a ser denominado de Serviço de Proteção aos Índios – SPI. Este órgão foi chefiado primeiramente por Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon133 constituem dois tipos diferenciados e de atuação concomitante de agência indigenista: os postos de atração, vigilância e pacificação e os postos de assistência, nacionalização e educação (Coelho, 2002). A atuação dessas instâncias manteve o objetivo de integrar os “índios” à sociedade nacional, mas agora os protegendo de extermínios. Macena (2007, p. 47) expõe uma passagem que indica a perspectiva do SPI em sedentarizar as sociedades indígenas: O discurso do SPI, contido no Decreto 8.072, revela a tentativa de tornar os indígenas e os aldeamentos onde vivem locais de implantação de políticas de civilização. O discurso de respeito às culturas indígenas do SPI amalgamavam- se com propostas de aldeamento de indígenas nômades tidos como “promíscuos” por não estabelecerem contato com a sociedade nacional, juntamente com a inserção de instituições culturais como a escola e a agricultura nesses aldeamentos. As prerrogativas do SPI, com ênfase no ensino do português nas aldeias, como coloca Cunha (1990), dá margem para esta interpretação. Esta instituição a justificava afirmando, como lê-se em Macena (2007, p. 48), “a diversidade de línguas e culturas demandaria um grande esforço para a elaboração de um grande número de cartilhas, bem como a preparação de vários profissionais, para atender a cada realidade lingüística”. Sendo assim, o ensino bilíngüe não era percebido como viável pelo SPI. Cunha (1990, p. 82) diz que apenas com a FUNAI, na década de 1970, é que o ensino bilíngüe começou a ser oficialmente autorizado e recomendado nas aldeias, principalmente através dos convênios entre o órgão indigenista e o Summer Institute of Linguistic (SIL)134. A educação estatal para as sociedades indígenas, oficialmente, manteve a retórica do voluntariado dos “índios”. A educação escolar nas aldeias ganhou paulatina conformidade entre os “índios”, que passam a percebê-la não como uma imposição autoritária, mas como uma “necessidade”. Esse contexto foi caracterizado por Cunha (1990, p. 15) ao analisar a obra “Educação e Sociedades Tribais” (SANTOS, 1975, p. 82) da maneira que segue: 133 Para mais informações ver Freitas (2001). 134 Para mais informações ver Cunha (1990, p. 85-87). 119 Quanto às escolas que visitou, reconhece-se que o seu funcionamento é idêntico ao das escolas da população rural local, com professores precariamente qualificados não só para lidar com questões educacionais como também para trabalhar com a realidade dos grupos indígenas, onde “os resultados concretos apresentados (...) são nulos”, cumprindo a escola, portanto “(...) apenas uma função burocrática” ou mais concretamente, estimulando apenas “a submissão do índio”. No entanto, é importante atentar que este cenário não outorga somente uma relação de unilateralidade, pois se deve perceber que significado a educação escolar indigenista adquire no decorrer de sua história, assim como passa a ser representada pelos agentes envolvidos. Nesse contexto há tentativas implícitas e explícitas de criação e recriação de valores e demandas. O SPI conseguiu, até certo ponto, assegurar a sobrevivência física das populações indígenas, mesmo havendo relatos de abusos por parte de seus funcionários. Sua atuação garantiu efetivamente a sobrevivência dos “índios”, incorporando-os à sociedade nacional (principalmente na forma de mão-de-obra dependente do Estado). Nesse contexto o direito à diferença é perverso e precário, mas garantiu a existência física de parte considerável das populações indígenas. Cunha (1990) entendendo que estas atitudes são decorrentes da pressão da opinião pública, tanto nacional como internacional, afirma: A atuação do SPI, a despeito das suas contradições, foi decisiva para a sobrevivência de vários grupos indígenas. Também foi importante a consciência indigenista que se começou a ser criada no Brasil a partir do trabalho desenvolvido pela Instituição, quando dirigida por Cândido Mariano Rondon. (p. 09). Neste sentido, a educação para o índio “de caráter oficial” é caracterizada pelo “desrespeito” aos povos indígenas, “mascarando-se através de um paternalismo autoritário” que, apesar de aparentemente proteger, na verdade domina e destrói (GRIZZI & SILVA, 1981: 17). Assim, a educação “de caráter oficial” (“estatal” ou missionária”, conforme os textos em análise, historicamente tem servida para a sujeição e destruição das populações tribais, de onde se pode concluir, pois, que este tipo de educação só aceita a diversidade cultural provisoriamente. (p. 88). As escolas nas aldeias nesse período assemelhavam-se às escolas rurais. Chamo atenção para a tentativa do SPI, como órgão indigenista oficial, de discutir suas ações, para que as mesmas tivessem os efeitos educacionais desejados. Como lê-se em SPI (1953, p. 10-12) apud Cunha (1990, p. 89-92, grifos meus). 120 (...), a Secção de Estudos está elaborando um programa de reestruturação das escolas tendo como objetivo adapta-las melhor as condições e necessidade de cada grupo indígena. O conceito geral que orienta esta reforma é o de que, ensinar é preparar a criança para assumir aqueles papéis que sua sociedade a chamará a exercer. Algumas medidas preliminares já foram tomadas neste sentido como a transparência de escolas que funcionam junto a grupos pouco aculturados, para outros onde possam ser mais úteis e instalação de novas escolas dotadas de oficinas para ensino artesanal. Um novo tipo de escola deverá ser inaugurada brevemente para os grupos indígenas menos aculturados. Ali será evitado até o nome de escola para fugir as conotações negativas que esta designação tem para os índios, como de um lugar onde se confina as crianças durante longas horas de cada dia, submetendo-as a uma disciplina forçada e em prejuízo de outras atividades que lhes parecem mais úteis. Nem podiam ter outra atitude para com as escolas que conhecera, das quais nenhum benefício lhes veio, mas ao contrário, somente os prejudicou por privar crianças de longas horas de aprendizado informal das técnicas que lhes seriam realmente úteis, como a preparação dos artefatos tribais, as técnicas de caça, pesca, coleta e outras. A primeira delas está sendo instalada na ilha do Bananal para os índios Carajá. A nova escola será chamada Casa do Índio e deverá funcionar como um clube onde homens, mulheres e crianças possam sentir-se a vontade, como em sua própria aldeia135. Para isto modificou-se a planta das escolas que, em geral são uma extensão da casa do professor e só podem ser procuradas pela criança durante certas horas do dia. A nova instituição será organizada num prédio próprio sem porta e sem janelas, construído com a mesma disposição das aldeias Carajá, isto é, voltada para o Rio Araguaia, onde se desenvolve grande parte das atividades daqueles índios. Será composta de um amplo alpendre e dois grandes salões; o primeiro com 80 metros quadrados, cercado por paredes de um metro de altura, será dotado de máquinas de costura, rodas de oleiro, e ferramentas de carpintaria e outras, e estará sempre à disposição dos adultos como um lugar de trabalho e de conversa: o outro, com 60 metros quadrados e cercado com paredes de um metro e 60, será mobiliado com pequenas mesas e cadeiras para funcionar como sala de aula, onde as crianças, à vista de seus pais, se reunirão com o professor para aprenderem português e para serem instruídas na utilização de todas as máquinas e ferramentas da escola e do posto, inclusive a olaria, o trator, o motor elétrico, etc... Esperamos que este novo tipo de escola dê melhores resultados que as comuns, as quais, nos vários anos de funcionamento entre os Carajá, conseguiram apenas alfabetizar algumas crianças que pouco depois esqueceram tudo por não terem oportunidades e necessidade de utilizarem destes conhecimentos inteiramente supérfluos, no caso daqueles índios. A S. E. [Seção de Estudos] tem dedicado considerável atenção, também, ao problema da alfabetização na língua indígena, e os resultados atuais dos estudos a respeito, desaconselham sua adoção no Brasil. O que melhor caracteriza os nossos grupos indígenas é a sua diversidade de línguas e culturas, são muito poucos os grupos que contam com mais de um milhar de pessoas, a grande maioria deles conta por poucas centenas e a alfabetização bilíngüe exigira preparo de uma infinidade de gramáticas para as várias línguas e alfabetos falados pelos índios e a preparação de outros tantos professores capazes de aplicá-los, o que foge inteiramente as nossas possibilidades. Além disto a alfabetização só oferece vantagens reais para os grupos mais assimilados que geralmente são bilíngües, exigindo do professor, apenas mais 135 Esta definição da nova escola, a Casa do Índio, sugere o deslocamento de indígenas de suas aldeias até o local reservado para o seu funcionamento. 121 atenção no ensino do português às crianças, no primeiro ano de atividade escolar. Em vista destas condições a casa dos índios só procurará ensinar as crianças a falarem português e as escolas comuns estão sendo orientadas no sentido de utilizarem o primeiro ano escolar exclusivamente para este fim, só tratando a alfabetização nos anos seguintes. Estamos preparando, também, uma cartilha especial para os índios, redigida em português, mas utilizando temas que lhes sejam acessíveis e que possam despertar seu interesse. A maior dificuldade com que nos defrontamos no terreno educacional é a do recrutamento de professores capazes. Devido baixo nível de salários pagos pelo S. P. I. e as condições de trabalho extremamente difíceis que oferece, não tem sido possível selecionar mestres melhores que os disponíveis nas regiões em que estão localizados os Postos Indígenas; os quais via de regra, não possuem outra instrução que a primária. O S. P. I. tem procurado superar esta dificuldade entregando as escolas ás esposas dos agentes dos postos que geralmente apresentam melhores qualificações profissionais. É evidente, contudo, que o problema persiste ainda mais porque a tarefa de educar jovens de uma corrente cultural diversa da nossa, exige preparo pedagógico especial que nenhuma delas apresenta. Qualquer solução para este problema deverá partir de uma melhoria de salários que permita atrair pessoas com preparo adequado e infelizmente, não vemos perspectivas de resolver proximamente este problema. A extensa citação precedente, datando de 1953, exprime um contexto que sugere uma reflexão por parte do órgão indigenista, que busca por adequações nos métodos e na estrutura logística das escolas nas aldeias visando a construção de um local que fosse, ou parecesse, aos “índios”, “agradável”. Nos anos 1960 e 1970, acusado de corrupção, abusos e práticas etnocidas e com a imagem abalada no exterior, o governo brasileiro desfaz o SPI136 e em seu lugar cria a Fundação Nacional do Índio137 – FUNAI. A função da FUNAI era, além de representar juridicamente os “índios”, de “estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista”. Os princípios dessa instituição são definidos pela Lei 5.371 (art. 1º, inciso I) que é explicitada em MAGALHÃES (2003, p. 85): a) respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades tribais; b) garantia à posse permanente das terras que habitam e o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as unidades nelas existentes; c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contato com a sociedade nacional; d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma que sua evolução sócio-econômica se processe a salvo de mudanças bruscas. 136 Decreto nº 58.824, de 14.07.1966 (ver CUNHA, 1990, p. 44). 137 Através da Lei nº 5.371 de 05 de dezembro de 1967. 122 O ideal integracionista mantinha-se através da idéia de uma “aculturação lenta e gradual” no contexto de um discurso oficial que também advogava, teoricamente, em favor do respeito às instituições indígenas138. Tem-se assim um discurso oficial imergido em ambigüidades. Por um lado a FUNAI herda o discurso de “assimilação natural”139 do SPI, por outro de tratou de prestar assistência ás sociedades indígenas. A quais interesses essa assistência atende é a questão que ainda se coloca. Sob a tutela do então órgão indigenista oficial - FUNAI, os “índios” são expostos a uma educação escolar que cada vez mais se formaliza, com vistas também a “beneficiar” a conquista dos lugares inexplorados do interior do país, já que instituiria um elemento diretamente relacionado ao sedentarismo: a escola. Considera-se então que a questão da conquista territorial pelo Estado e a educação escolar aos “índios” andam conjuntamente, pois seria através da sua domesticação que “deixariam” de constituir um empecilho ao “progresso” e seriam direcionados à sociedade colonizadora. Cunha (1990, p.21) sugere que “as duas agências historicamente tem usado a escola com o objetivo de ‘civilizar’, ou seja, de impor aos índios a ideologia da sociedade colonizadora”. De qualquer maneira, devido às especificidades das diferentes realidades indígenas, é difícil pensar que a educação escolar não se efetive de maneira diferenciada daquela que ocorre em outros locais, como as cidades. Neste sentido é importante atentar para a certa flexibilidade que a legislação do funcionamento outorga a estas instituições. Cunha (1990, p. 59) entende que a “legislação sobre o funcionamento do sistema de ensino – das escolas mantidas pela FUNAI, através de convênios ou por outras instituições – é relativamente flexível quanto á elaboração de calendários e programas, escolha de conteúdos, adoção de material e processo de avaliação de aprendizagem”. Essas características parecem presentes atualmente na escola da Aldeia Escalvado, na medida em que parte das decisões sobre o funcionamento da escola é “levado ao pátio”140, como afirmou em julho de 2008 138 Lei nº 5.371, art. 1º, inciso V apud Magalhães, 2003, p. 86. 139 Macena (2007, p. 50) coloca que “as modificações propostas pelo SPI, na educação escolar para os indígenas, apontavam para a criação de agro-escolas, uma vez que é visível a preocupação em ensinar ofícios agrícolas para os indígenas. Ao mesmo tempo em que defende uma “assimilação natural”, ou seja, a gradual e branda inserção dos indígenas nas instituições culturais ocidentais, o SPI fornece ferramentas para que tal processo seja acelerado”. 140 O “pátio’ é o lugar de tomada de decisão sobre os dilemas que afligem as aldeias “Timbira”, assim como onde ocorrem seus cerimoniais. 123 Edjane Soares (professor não-índio da Aldeia Ecalvado). Tal característica da escola na Aldeia Escalvado foi resumida por Macena (2007, p. 102) nos termos que seguem: De acordo com ele [professor não-índio], em primeiro lugar, tudo o que é trabalhado na sala de aula é “levado ao pátio”. Ele quer dizer com isso, que somente o que é aprovado pelo conselho das lideranças, durante as reuniões deliberativas no pátio central da aldeia, é aplicado na escola. Estas considerações levam ao período em que sanciona-se a Lei 6001 de 19 de dezembro de 1973 (BRASIL, 1973), a qual insere no cenário nacional o denominado Estatuto do Índio. Esta lei, específica para os indígenas, manteve a perspectiva de “proteção” e “assimilação”. Lê-se em Brasil (1973, art. 1º, p. 5): Esta lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Neste documento é mencionada a “possibilidade” de se fazer respeitar as especificidades indígenas, porém aquelas “reconhecidas pela lei”. O parágrafo único (p. 5, grifo meu) coloca que “aos índios e às comunidades indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas pela Lei”. Constata-se uma ambigüidade nesse “direito à diferença”, pois na medida em que diz “resguardar” as práticas indígenas, incorpora (à União) suas terras141 e “estende obrigatoriamente” a estes os “direitos nacionais de cidadania” (educação, saúde, etc) da mesma maneira que os demais brasileiros. No art. 50, título V lê-se (BRASIL, 1973, p. 14): A educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como o aproveitamento das suas aptidões individuais. Esse “momento democrático”, presente no discurso, é evidenciado na “liberação” oficial do uso, também, das línguas indígenas nas escolas das aldeias (BRASIL, art. 49, p. 14), preceito do estatuto encontrado em outras publicações da FUNAI. Lê-se em FUNAI (1972a: 12-13) apud Cunha (1990, p. 95-97, grifos meus) que: 141 Poderíamos dizer que os indígenas passam de senhores de suas terras (proprietários) a posseiros da União. 124 Conferindo-se ao Posto Indígena a responsabilidade maior e primária no processo educativo, a escola, por conseqüência, deverá ser entendida como um simples local de reuniões, que ofereça um condicionamento ambiental mínimo para o aprendizado formal de conhecimentos e técnicas que exijam esforço e concentração especiais. Instituição estranha ao sistema tribal, e ele deve adaptar-se de todos os modos, cuidando que os novos valores a serem propostos cumpram sua função; satisfazer necessidades. E sempre que esses elementos não satisfaçam necessidade alguma, devem ter o bom senso de alijá-los, como negativos e prejudiciais. Deverá constituir-se, ainda, pelo trabalho da parcela da comunidade que lhe esteja mais intimamente ligada. (professores e alunos), num exemplo vivo das proposições do Posto. Assim, como demonstração inicial de respeito aos valores tribais, deverá ministrar o ensino, nas suas primeiras etapas, através da própria língua indígena. Cocomitantemente, ensinará o português, e só após o domínio completo do idioma nacional, passará a transmitir os conhecimentos nesta língua. Tal atitude, pois, exige a participação do elemento indígena, e, nesse processo, deve-se buscar a progressiva capacitação do índio, para que assuma, integralmente, as funções educativas na sua comunidade. Aos grupos que perderam o domínio da língua tribal, essa capacitação, evidentemente, será mais fácil, e, portanto, dentro da urgência que reclama. Por outro lado, como apoio básico do Posto Indígena no estudo e solução concreta dos problemas vitais da sociedade tribal, a escola deverá oferecer o ensino do maior número de técnicas possíveis buscando dotar o indivíduo indígena dos meios necessários à sua sobrevivência e a do seu grupo. Destarte, não pode se restringir ao ensino da leitura e escrita, mas oferecer outros conhecimentos fundamentais (higiene, saneamento, estudos sociais, aritmética, etc), além do ensinamento prático de técnicas agrícolas, mercenária, mecânica, costura, em suma, todos os meios que venham criar mão-de-obra capacitada, de sorte a eliminar, nessas comunidades, tanto possível, as dependências do mundo branco. Recomenda, ainda, o DGAs, que os benefícios a serem introduzidos na comunidade, desde a Escola e por meio dela, sempre ocorram com o esforço e participação indígena, de modo que o índio venha a se sentir à vontade como usuário e responsável como dono e senhor. Precisa-se ressaltar ainda que, mesmo sendo uma instituição do Estado, a FUNAI, em maior ou menor grau, tem atuado ou é assim representada pelas sociedades indígenas como defensora de seus direitos. Cunha (1990, p. 109) conclui como a seguinte alerta: A relação do Estado com os índios, entretanto, não ocorre de forma mecânica, determinista. Assim, ainda que esteja em andamento um projeto de integração do índio à sociedade nacional, onde o objetivo final é a assimilação dessas populações, a FUNAI, a quem cabe o papel de concretizar esse projeto, também funciona de forma a proteger e defender alguns interesses dos indígenas. A atuação do Estado se dá, portanto, de forma complexa e os interesses dos segmentos dominantes da sociedade nem sempre prevalecem. Nesse sentido, tem sido possível garantir certos direitos e atender certos interesses dos índios. Dessa maneira, a assistência escolar, segundo Brasil (1973, p. 14, art. 51), deveria, quando possível, ser feita nas aldeias, sem afastar os estudantes indígenas de seu convívio 125 familiar, de suas aldeias. Porém, parece-me que a questão principal não reside apenas no local onde a educação escolar se operacionaliza, pois a escola na aldeia ou na cidade tende a expressar uma situação de “colonialismo interno” (OLIVEIRA, 1996). No entanto, considero, como foi dito em campo, que a escola da cidade tende a desrespeitar mais as especificidades dos “índios” que as “da aldeia”. Esta preocupação está expressa no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNEI (BRASIL, 1998, p. 14), como veremos adiante. Esta referência não guarda originalidade. Como afirma Cunha (1990, p.62-62), a Portaria nª 788 (incisos 1º e 3º, art. 4, 1982), faz menção à introdução de “índios” no sistema de ensino oficial. § 1º Educação Bilíngüe visará um entrosamento rápido com o sistema oficial de 1º grau, possibilitando ao aluno índio, com dois ou três anos de escolaridade no sistema especial, a assegurar sem problemas na segunda ou terceira série do sistema oficial. § 3º Deverá, sempre que possível, utilizar o mesmo sistema de ensino para introduzir de modo explícito os indígenas na cultura da Sociedade nacional. Desde os seus primeiros momentos a educação escolar para os “índios” também tem atuado142 no processo de saída de alguns “índios” de suas aldeias, o que se confirma pela percepção feita deste por professores “índios” e “não-índios”, assim como pelos próprios alunos indígenas e seus familiares. Neste sentido, ir para a cidade estudar parece ser produto da política indigenista de educação oficial que se sustenta pelo desconhecimento de seus mecanismos, estratégias e interesses de produção. 142 Esse cenário pode ser sintetizado pela seguinte citação de Cunha (1990, p. 66-67): “Uma leitura apenas superficial da legislação sobre o funcionamento das escolas indígenas, seguramente reforça essa imagem de autonomia, uma leitura crítica desta legislação, entretanto, nos leva a refletir sobre os verdadeiros objetivos da escola entre os índios. Basta verificar que, de fato, toda a ênfase dada à adaptação dos currículos, programas e conteúdos tem sido, por exemplo, ao contrário do que se costuma afirmar, uma forma de melhor levar os índios ao mundo do ‘civilizado’, e não de assegurar-lhes a condição de etnias diferenciadas. Não é por acaso que o ensino bilíngüe costuma ser visto como uma ‘ponte’. Resta ver qual é o verdadeiro sentido desta ‘ponte’. Ela pode corresponder por um lado, a um processo pelo qual os índios acederiam ao mundo do ‘branco’ a fim de optar pelo tipo de participação que melhor lhes converia no conjunto da sociedade. Mas, por outro lado, pode também significar o caminho a ser percorrido pelo índio para a sua integração nos segmentos mais desfavorecidos da sociedade. Ao analisar o funcionamento das escolas indígenas mantidas pela FUNAI verificamos que se trata, efetivamente, desta última perspectiva”. 126 4.2.1 – Educação Escolar entre os Ramkokamekrá-Kanela As atividades escolares formais na Aldeia Escalvado tiveram início, como diz Crocker (1990) e Macena (2007), no contexto do SPI e da FUNAI. No entanto, é importante ressaltar que antes dessas instituições alguns “índios” da região habitada atualmente pelos Ramkokamekrá-Kanela eram encaminhados para estudar na capital do Estado do Maranhão (fundada em 1612). Em texto de 10 de maio de 1819, o Major Graduado Francisco de Paula Ribeiro143 coloca: Projetou-se primeiro fazer descer os Capiecrãs à ilha do Maranhão, ou ainda à capital; pensamento que não era fora de propósito, porque havia aqui muito com quem reparti-los para os educar e sustentar longe de seus lares, e debaixo das condições ordenadas no 1º e 2º artigos do § 2º da carta régia expedida para Minas Gerais em 2 de dezembro de 1808, sobre os índios Botocudos e outros; (...). Esta foi a única referência de publicação anterior ao período da atuação do SPI sobre a educação escolar dos sujeitos que hoje são conhecidos como Ramkokamekrá- Kanela que tive acesso. Devido à escassez de material sobre educação escolar anterior a esse período entre os Ramkokamekrá-Kanela desenvolverei as considerações a partir deste momento, sobre o qual disponho, além de material bibliográfico, também relatos de sujeitos que vivenciaram experiências escolares na Aldeia Escalvado tanto no período do SPI como no da FUNAI. Nos anos de 1970 e 1971, já com a presença do FUNAI na Aldeia Escalvado, foram construídas por essa instituição algumas estruturas prediais, das quais uma serviria como escola. Crocker (1990, p. 42) diz que: O quarto fator que contribuiu para levantar o moral dos Canelas foi o aumento da presença da FUNAI. Em 1970 e 1971, a FUNAI construiu no Escalvado um posto grande, com oito salas, telhado de cerâmica e paredes caiadas. Também construiu uma escola e vários prédios auxiliares de barro, caiados e reforçados com estacas e telhado de palha. Havia também a casa do agente, o poço e a casa de força e uma casa onde os sertanejos podiam pendurar suas redes e deixar suas coisas enquanto visitavam os Canelas ou viajavam pela região. 143 Ver Ribeiro (2002, p. 181-182). 127 Como se percebe a dinâmica dos prédios obedecia a separação entre posto indígena e escola, obedecendo o discurso oficial da FUNAI na época. Porém, as atividades de educação escolar, como relatou Raimundo Roberto (liderança Ramkokamekrá-Kanela), em julho de 2008, iniciaram bem antes, durante a gestão do SPI, órgão que começou a atuar na região habitada atualmente pelos Ramkokamekrá-Kanela em 1920. Como lê-se em Crocker (1990, p. 34): A Ajudância do Serviço de Proteção aos Índios na Barra do Corda foi fundada em 1920. O primeiro agente, Marcelino César de Miranda, facilitou bastante a pesquisa de Nimuendajú. Ele aceitou que Nimuendajú quase se transformasse num nativo e apoiasse as atitudes dos Canelas contra os sertanejos. Logo após sua chegada, Nimuendajú foi adotado por uma família. Segundo o Kaapêltùk mais velho, Nimuendajú observava e participava bastante, mas fazia poucas perguntas aos Canelas. Raimundo Roberto, em julho de 2008, relatou que antes da escola ativa nos dias hoje as aulas eram ministradas “num barracão que tinha o telhado de cavaca144, onde hoje é o curral” de uma residência. A atual escola foi construída pela FUNAI e depois teve suas dependências aumentadas pela Companhia Vale do Rio Doce - CVRD e mais recentemente pelo Governo do Estado do Maranhão145. Deste período, em que as atividades escolares ocorriam na “escola de cavaca”, um nome se destaca na fala de Raimundo Roberto, o da Dona Nazaré. A atuação dessa “não- índia” ganha relevância por ser mencionado no primeiro momento em que a educação escolar formal foi levada de forma mais sistemática aos Ramkokamekrá-Kanela. Além de Raimundo Roberto, outros “índios” foram alunos de Dona Nazaré, entre eles Francisquinho Tep-Hot, que tendo aprendido a escrever em português passou nos anos 1970 a ser “assistente de pesquisa”146 de Willian Crocker. 144 “Cavaco significa lasca de madeira” (FERREIRA, 2001a, p. 141). “Cavaca”, como explicou Raimundo Roberto, são pedaços quadrados de madeira sobrepostos uns aos outros e que serviriam para cobrir prédios. 145 Ver Maranhão (2008, p. 5). 146 Sobre a discussão dessa categoria ver Folhes (2004). È importante atentar para essa função na aldeia, implantada por Willian Crocker, pois pode dar indicativos da busca pela educação escolar formal. 128 Dona Nazaré, como os Ramkokamekrá-Kanela a chamam, chegou à atual Aldeia Escalvado em 1944147 para assumir a função de professora. Ela era irmã de Antonio Ferreira do Nacimento148, que era funcionário do SPI. Segundo as informações, esta professora aprendeu a língua dos Ramkokamekrá-Kanela melhor que Nimuendajú, o que pode ter favorecido o processo de alfabetização ali empreendido por ela. Crocker (1990, p. 35) retrata a atuação de Dona Nazaré da seguinte maneira: Em 1944, chegou uma jovem professora do SPI, que os Canelas chamam simplesmente de Nazaré, irmã de Antônio Ferreira do Nascimento. Ela ensinou vários meninos a ler e escrever para que eles pudessem enviar mensagens pelo interior. Seis desses meninos ainda escreviam quando eu cheguei em 1957: o Kaapêltùk mais jovem, o Pùto mais jovem, Hàwpùù, o Tep-hot mais jovem e Yàmtê. E, 1964, pedi aos três primeiros que escrevessem um diário e depois pedi ao Tep-hot mais jovem que fizesse o mesmo. Nenhum dos seis professores que vieram depois de Dona Nazaré conseguiu ensinar os canelas a escrever, com exceção de Dona Risalva em 1979. Os assistentes de pesquisa disseram que Nazaré conseguiu porque ela aprendeu a ensinar em Canela. Como coloca Macena (2007, p. 52), o aprendizado da língua indígena por parte de alguns funcionários do SPI fez com que os Ramkokamekrá-Kanela mudassem sua percepção sobre os “não-índios”, na medida em que estes passavam a ser vistos como “bons estranhos”, pois demonstravam interesse na cultura nativa. Percebi no entanto, em julho de 2008, que essa percepção vem mudando. Raimundo Roberto e Ary Korampey Canela, em julho de 2008, afirmaram que os “não-índios” só querem tomar o lugar dos “índios” nas escolas das aldeias e no posto de saúde, não se preocupam e só querem ganhar dinheiro. Estes sujeitos tem ressaltado sistematicamente a importância da formação de lideranças indígenas para atuar, efetivamente, no espaço interétnico, sem que haja para tal necessidade da mediação do “não-índio”149. 147 Neste período o encarregado do órgão indigenista for Olímpio Martins Cruz. 148 Que inicialmente foi enfermeiro da aldeia e depois, em 1948, emergiu a agente do SPI. Era política do SPI contratar para ser professor de aldeia sujeitos “não-índios” que fossem parentes de outros que já trabalhavam neste órgão (esposas, irmãs, etc), pois acreditava-se numa melhor adequação à realidade das aldeias. 149 Em janeiro de 2009 um funcionário do Núcleo de Apoio Local Kanela afirmou que os Ramkokamekrá- Kanela estavam querendo substituir o administrador “não-índio” de então, para que em seu lugar assuma um “índio”. O chefe de Posto Indígena da Aldeia Escalvado é um indígena Ramkokamekrá-Kanela, assim como o responsável pelo Posto de Saúde. Ressaltamos que ambos estudaram fora da aldeia. 129 Uma outra conseqüência do momento das atividades do SPI, além da possibilidade de assumir a função de “assistente de pesquisa”, foi o deslocamento de alguns Ramkokamekrá-Kanela para estudar em São Luís nas décadas de 1960 e 1970. Lê-se em Crocker (1990, p. 35) que: Em 1949, dois jovens a quem Dona Nazaré ensinou foram enviados a São Luís para viver com funcionários do SPI. O Kaapêltùk mais jovem e Há-khà passaram quase um ano e meio aprendendo os costumes dos habitantes da cidade, indo à escola e trabalhando em fazendas que usavam irrigação e fertilizantes. Assim, Kaapêl (o mais jovem dos dois) passou a ser o que mais sabia sobre o mundo exterior e o que melhor falava português durante os anos 50 e 60. Suas habilidades também fizeram dele o melhor assistente de pesquisa tanto para mim quanto para o missionário Jack Popjes nos anos 60 e 70. Neste sentido, o aprendizado sobre o mundo exterior daria um certo prestígio na comunidade, além de potencializar a ocupações de cargos em emergência. Percebe-se que, de alguma maneira, a educação escolar é relacionada desde os anos 1950 a execução de funções novas até então inéditas nas aldeias, tais como professor, agente de saúde, chefe de posto e assistente de pesquisa. Embora Macena (2007, p. 52) tenha afirmado que desde o SPI (1920) os Ramkokamekrá-Kanela foram contratados para atuar nos órgãos indigenistas, não encontrei referência que justifique essa afirmação no caso da educação escolar, visto que os primeiros professores Ramkokamekrá-Kanela da Aldeia Escalvado iniciaram suas atividades docentes apenas no período da FUNAI, o que se configurava desde sua fundação como um de seus atributos.já que está era uma prerrogativa deste órgão e não do outro. Crocker (1990, p. 44, grifos meus) coloca: Em 1979, Sebastião só queria deixar os Canelas depois que tivesse treinado alguns para substituí-lo e a outros funcionários do posto. Esse objetivo parecia viável. Em 1979, ele já havia treinado um jovem Canela enfermeiro (Krokro) para assumir a responsabilidade de cuidar dos doentes, embora houvesse uma enfermeira a tempo integral, Luzanira Vieira de Araojo. Dois Canelas com um pouco de treinamento podiam ensinar português na escola (Kaprêêprêk e o Kaapêltùk mais jovem, embora no posto houvesse também uma professora a tempo integral, Risalva Freire de Sá. Dona Risalva era índia (Tuchá), mas foi criada na cidade de Rodelas (Bahia) numa tribo aculturada que não mais falava sua língua. Assim tinha simpatia pelos alunos Canelas. Nunca vi tantos jovens entusiasmados fazendo dever à noite como em 1979, quando ela começou a ensinar. 130 Além do que lê-se em Maranhão (2008), os depoimentos datado de julho de 2008, confirmam que Raimundo Roberto foi a primeiro professor Ramkokamekrá-Kanela a atuar na Aldeia Escalvado. Suas funções se estenderam também à escola construída pela FUNAI. Ainda nesse período, entre os anos de 1978-1984, outro Ramkokamekrá-Kanela, chamado Satú Canela, assumiu a função de assistente da professora Risalva. Crocker (1990, p. 56- 57) faz a seguinte consideração: É interessante assinalar que os funcionários da FUNAI que trabalhavam no posto em 1978-1979 ainda se encontravam lá em 1988: o agente Sebastião Ferreira, a enfermeira Luzanira Gieira de Araojo e a professora Risalva Freire de Sá; além de um novo funcionário: Tsààtu, que havia saído de Sardinha em 1964 para viver com uma família no Rio de Janeiro. Ele freqüentou uma escola da FAB, mas saiu quando lhe disseram que não podia ser piloto e passou a trabalhar na loja da família fazendo molduras para quadros e fotos. Voltou para a tribo entre 1979 e 1984. Por conhecer aritmética e saber ler e escrever, foi empregado pela FUNAI como assistente da professora (Risalva). Essa permanência de funcionários dedicados no posto do Escalvado (ao contrário do que acontecia antes da chegada do Sr. Sebastião em 1970) dá aos Canelas um sentido de segurança e confiança no futuro. Pela primeira vez, o novo Pró-khãmmã150 tem uma base razoável para planejar o futuro. O retorno de “índios” que saem para estudar ou trabalhar fora da aldeia é característico da Aldeia Escalvado e percebida por parte de alguns jovens como negativa. Entretanto, a negatividade não se trata de estar vivendo na aldeia, mas à dificuldade daquele retorno ajudar a comunidade. Logo deve-se refletir acerca da noção de “retorno” para os Ramkokamekrá-Kanela. Neste sentido, deve-se atentar para saber quem são os sujeitos que geralmente saem, estudam fora e passam a ocupar certas funções específicas na aldeia, ou seja, que condicionamentos são acionados pela comunidade para que apenas certos “índios”, e não todos, cheguem a certos cargos, ocupando certas funções, e não outros? Existe um controle coletivo da saída e do retorno? Que dinâmica interfere nessa conjuntura? Sendo aos poucos superada o receio dos Ramkokamekrá-Kanela frente à educação escolar, principalmente pelos meios amenos que vão assumindo lugar fundamental para 150 Classe de idade mais velha e mais respeitada na Aldeia Escalvado. 131 entender a dinâmica da relação entre Estado e sociedades indígenas, cabe mencionar outras instituições que também tiveram influência entre os Ramkokamkerá-Kanela. Além do SPI e da FUNAI, outras instituições atuaram e tem atuado entre os Ramkokamkerá-Kanela no que se refere à educação escolar. Destacamos o Summer Instituto of Linguistics (SIL) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI)151, O SIL é no Brasil também conhecido como Instituto Lingüístico de Verão que, fundado em 1934, tem o “objetivo de estudar as línguas ágrafas e as culturas dos povos que as falam, tem como meta a tradução da Bíblia nas diferentes línguas estudadas, e a conversão ao protestantismo dos povos que as falam” (CUNHA, 1990, p. 85). As atividades desta instituição no Brasil tiveram início em 1956, “através de convênio com o Museu Nacional” (CUNHA, 1990, p. 86). Foi esta instituição que aplicou a metodologia do ensino bilíngüe, a qual foi adotada nos anos 1970 pela FUNAI. Teve assim um importante papel no resgate da língua materna das populações indígenas152. Todavia essa iniciativa trazia implícita uma ambigüidade na medida em que guardava relação essencial com uma corrente religiosa, o que levou a um desgaste no seu relacionamento com instituições acadêmicas. Assim essa instituição teve atuação direta entre os Ramkokamekrá-Kanela, pois a chegada do SIL é apontada como relacionada às conseqüências do movimento messiânico de 1963, pois foi o período de retorno da aldeia da Sardinha, onde ficaram refugiados até que os ânimos dos fazendeiros fossem controlados. Neste momento o missionário Jack Popjes fortaleceu sua influência, principalmente ao participar das festividades dos Ramkokamekrá-Kanela. Crocker (1990, p. 45, sic) expressa que: Jack Popjes, um missionário do Instituto Lingüístico de Verão, chegou em 1968 à aldeia da Sardinha. De lá, foi como o grupo do Kaapêltùk mais jovem para a área do Escalvado na chapada. Construiu uma grande casa de barro com telhado de palha no círculo da nova aldeia, a segunda aldeia de Escalvado no final dos anos 60. No início, dedicou a maior parte de seu tempo a aprender a língua, 151 Sobre este último falaremos em um tópico a parte. Por enquanto no deteremos no primeiro. 152 Lê-se em Cunha (1990, p. 86) que “coube ao SIL, o principal papel quanto ao resgate das línguas até então não documentadas, pela identificação dos sistemas de sons, a elaboração de material de alfabetização na língua materna e de material de leitura, no treinamento do pessoal docente, tanto da FUNAI, como de missões religiosas evangélicas, e na preparação de autores indígenas”. 132 Também participou de alguns festas, ritos e atividades tradicionais dos Canelas como a corrida de toras; ele e sua esposa foram adotados por famílias Canelas. Morar entre os Ramkokamekrá-Kanela, como indicam alguns casos já citados, parece ter sido uma estratégia mais eficiente de ganhar a confiança destes e conseguir chegar aos objetivos desejados. Mesmo que se em seus relatos a William Crocker, Popjes expressasse não querer contrariar as tradições culturais dos Ramkokamekrá-Kanela, tinha consciência ou ao menos esperava que com a tradução do novo testamento houvesse substituições dos costumes dos Ramkokamkekrá-Kanela por outros baseados na palavra de Deus. Todavia, o missionário preocupava-se que esse processo não ocorresse de modo abrupto, mas gradualmente, pois poderia levar a problemas como alcoolismo, já que a vida deles ficaria vazia (CROCKER, 1990, p. 45). Entende-se assim que a atuação do SIL entre os Ramkokamekrá-Kanela girou em torno de uma perspectiva integracionista, o que levou-a, como afirma Cunha (1990, p. 86), a ser confundida com o próprio Estado. A presença do SIL na Aldeia Escalvado teve influência positiva, pois alguns “índios” em contato direto com Popjes tinham maior possibilidade de aprender a ler e a escrever na própria língua, estes posteriormente também foram (e são) utilizados por William Crocker como “diaristas”, ou seja, escrevem constantemente para Crocker sobre o cotidiano da comunidade em troca de pagamentos. Como aspecto negativo desse contato pode-se considerar que tal atuação colocava os Ramkokamekrá-Kanela em um circuito de relações econômicas o qual não possuíam (e ainda não possuem) condições de controlar totalmente. O ideal assimilacionista via educação escolar foi então percorrendo outras trilhas, as quais passavam pela compreensão da importância de aprender a língua nativa, o que implicava conviver diretamente na aldeia. A vivência de professores “não-índios” na Aldeia Escalvado entre os Ramkokamekrá-Kanela, que teve início com Dona Nazaré, permanece na atual gestão do Centro de Ensino Indígena General Bandeira de Melo - CEIGBM, o que poderia facilitar o convívio. Macena (2007, p. 85) coloca que: 133 O fato de grande parte dos professores morarem na aldeia, no posto indígena, fez com que muitos deles aprendessem, mesmo que minimamente, a língua indígena do local aonde residiam, utilizando-a em salas de aula, o que também tem influência direta sobre a boa percepção, por parte dos indígenas, da educação fornecida por eles, Na Aldeia Escalvado a confecção de cartilhas153 da língua Canela-Krahô pelo SIL, por volta dos anos 1980, pode ter sido um elemento facilitador de parte das atividades escolares das localidades indígenas em questão. 4.2.2 – A escola da Aldeia Escalvado: aspectos recentes O Centro de Ensino Indígena General Bandeira de Melo, que teve sua construção iniciada a aproximadamente quarenta anos, fornece hoje educação escolar para os Ramkokamkerá-Kanela desde a alfabetização até a 8ª série do ensino fundamental maior. Como se lê em Maranhão154 (2008, p. 5): 153 Lê-se na introdução da 2ª edição da Cartilha 1 da série de cartilhas lançadas pelo SIL em parceria com o Ministério do Interior, Fundação Nacional do Índio e Museu Nacional que “o objetivo desta série de cartilhas é ensinar a leitura, introduzindo todos os símbolos ortográficos básicos da língua Canela-Krahô. A ortografia baseia-se em uma análise completa do sistema de sons desta língua. Sua aprovação oficial, para o uso em toda literatura educacional, deu-se durante a Conferência sobre Ortografia Timbira Jê, realizada em Belém, em 1974, sob o patrocínio da FUNAI, que resultou na Portaria 211/N 29-10-74. O método empregado para se ensinar os símbolos é o seguinte; o ensino das letras é feito, na medida do possível, de acordo com a freqüência com que estas ocorrem na língua. Assim sendo, as duas vogais mais usadas a e i, como também as duas consoantes mais usadas c e p, são introduzidas na Primeira Lição. As letras são ensinadas em quase todas as suas posições de ocorrência tanto nas sílabas quanto nas palavras. Através da experiência, tem-se constatado o seguinte fato: se os falantes nativos de uma determinada língua aprendem a ler e escrever primeiro em sua língua materna, aquela que realmente é significativa para eles, os mesmos fazem com grande habilidade a transição de leitura e escrita para a língua nacional, na medida de seu conhecimento desta língua. Esta série de cartinhas deve ser considerada como um meio visando um fim, e não um fim em si mesmo, pois trata-se de um recurso cuja finalidade é tornar mais fácil para os falantes nativos da língua Canela-Krahô a aprendizagem da leitura e escrita. Pelas razões expostas, a presente série de cartinhas tem uma única finalidade, que é a de ajudar os Canela-Krahô a se tornarem pessoas alfabetizadas, através da maneira mais rápida e eficiente. Logo, não há um objetivo paralelo tal como difundir conceitos religiosos, econômicos ou políticos, embora tais aspectos também sejam alvo de interesse do aprendiz indígena. Ademais, a imposição de pontos de vista político ou religioso, como um preço a ser pago pelo aprendiz, seria uma atitude despojada de ética. Eis o porquê das principais histórias contidas nestes volumes referirem-se especialmente aos acontecimentos da vida cotidiana, por exemplo, a pesca, a caça e esportes culturalmente relevantes para os Canela-Krahõ” (SIL, 1982). Ganhei as cartilhas “Canela-Krahô” durante minha estada na Aldeia Porquinhos (28/07/2005 a 12/08/2005) a serviço do CTI de Aderivam Kograplô Canela, que é Apanjêkrá-Kanela. 154 Este documento foi conseguido junto ao Setor de Educação Indígena da Secretaria de Educação do Maranhão – SEDUC/MA em 12 de agosto de 2008. Foi enviado por email. 134 O ensino escolar começou funcionando com turmas multietapas, atendendo alunos da pré-escola à quarta série. (...). Em 2006 o ensino de 5ª e 8ª série foi implantado, Hoje a escola funciona com turmas separadas e não mais multietapas. O cenário em que os atores do CEIGBM atuam é o das políticas denominadas multiculturais, instituídas legalmente a partir da CFB de 1988 e que fornece as diretrizes para a educação escolar para índios no Brasil. Antes de discutir os documentos elaborados após a CFB/1988 considero pertinente elencar algumas observações e considerações sobre o CEIGBM a partir de minha estada na Aldeia Escalvado em julho de 2008. Assim, tem-se uma instituição escolar que atua no interior de uma aldeia indígena, onde freqüentam apenas alunos indígenas Ramkokamekrá-Kanela e que conta no rol de seu corpo docente com professores “índios” e “não-índios”, os quais são contratados através de processos seletivos que deveriam ser anuais. Por ser muito instável, já que geralmente os prazos de contratação de professores não são cumpridos, essa justificativa é alegada por parte dos Ramkokamekrá-Kanela para estudar fora da aldeia. Em julho de 2008 os professores que participaram da capacitação e que aparecem como lotados no CEIGBM foram os “não-índios”155 Aureliano Ribeiro de Assis, Erlane Ribeiro Freitas, Ivaldeth Ribeiro da Silva, Hildetânia Gomes da Silva, Silviamar Pereira Oliveira, Lilia Rosania Ramos Santos, Maria do Perpetuo Socorro Feitosa da Silva, Pedro Jorge Barbosa dos Santos, Ediana Maria Leite Rodrigues, Edson Lima do Nascimento e Edjane Soares Silva e os “índios”156 Armando Prefete Kapelikó Canela, Jaldo Komopat Canela, Raimar Ronkrainor Canela, Jaldo Cothy Canela, Raimundinho Paat-Tset, Reginaldo Uhoko Canela, Ricardo Kutokrê Canela, Vanildo Kukran Canela e Cornélio Piapiti. 155 A diretora Maria do Socorro de Sousa Castro e o professor José Edilson Rocha dos Santos, mesmo lotados não estavam na aldeia em julho de 2008, sob a justificativa de estarem participando de um curso de especialização em Barra do Corda. São nativos de Barra do Corda – MA Aureliano, Erlane, Hildetânia, Lilia, Maria do Perpetuo, Edson, Edjane e Maria do Socorro. Do Fernando Falcão apenas Silviamar é nativa. De São Luís são Ivaldeth, Pedro Jorge e Ediana. 156 Ari Korampey, mesmo já tendo atuado como professor (desde 1991) e ter participado da capacitação, não aparece na lista por no período está exercendo outra função para a FUNAI, “fiscal dos alunos que estudavam fora da aldeia”. 135 Os professores “não-índios” dão aulas desde a alfabetização até a 8ª série, situação que não acontece com os professores “índios”, os quais, com exceção de Cornélio Piapít, dão aulas apenas nas classes de alfabetização à 2ª série. Outra característica que observei em julho de 2008, aqual Macena (2007, p. 104-113) também refere-se é que além dos professores contratados pelo Estado, existem outros que também ministram aulas no CEIGBM, sendo mantidos pelo Centro de Trabalho Indigenista. São eles: Nilton Thuko, Raimar Roikrainon e Otávio Portoj. A característica comum aos professores “índios” da Aldeia Escalvado e que examinarei mais detalhadamente posteriormente é o fato de todos terem tido experiências de estudar fora da aldeia. Sobre o cotidiano do CEIGBM cabe ressaltar que ela funciona nos três turnos, sendo que pela manhã e a tarde ocorrem as atividades da alfabetização até a 4ª série, ficando o ensino fundamental maior (5ª a 8ª séries) para o período noturno. A princípio as aulas deveriam acontecer nos cinco dias da semana, sendo cada aula com duração de 40 a 50 minutos. Porém, essa prerrogativa oficial, a qual estaria relacionada e um calendário mínimo, é fragilizada tanto devido à instabilidade e à incapacidade da constituição de um ano regular por parte do Estado, como pelas constantes suspensões de aulas ou diminuição dos horários devido às “festas indígenas tradicionais” que ocorrem no decorrer do ano. Discursos em geral confirmam essa afirmação. Se por um lado Cornélio Piapit afirma que “não pode ter aula no dia que tem festa tradicional” (07/2008), por outro Edjane Soares diz que “no dia de festa deles não tem como ter aula, eles não vêm” (07/2008). As disciplinas lecionadas, a não ser “Língua Indígena”, “Cultura Indígena” e “Arte Indígena”, são as mesmas daquelas da escola da cidade: Português, Artes, Ciências, Matemática, Geografia, História, Educação Física, Inglês, além de Ética e Cidadania (MACENA, 2007, p. 100). Percebe-se que se existe uma predominância de disciplinas “do mundo não-indígena”, também ocorre a efetivação de disciplinas que teriam um caráter de “reafirmação e revalorização étnica”. Essa especificidade, entre outras, se não elimina a pressão assimilacionista, pelo menos a fragiliza, instituindo um campo de tensão. A fragilização acima citada pode não ser tão radical, pois como afirmou a professora “não-índia” Maria do Perpetuo Socorro Feitosa da Silva (07/2008) “é difícil dar exemplos da aldeia se os alunos não querem, eles querem saber as coisas da cidade”, 136 assertiva que observei diretamente em aulas dos professores “não-índios” na aldeia. No entanto, na aula que assisti do professor “índio” Cornélio Pijapit sobre “Cultura Indígena” percebi uma maior e mais intensa participação dos alunos. Ressalto que mesmo como minha presença em sala, toda aula foi ministrada na língua indígena nativa, mesmo se o seu conteúdo referia-se a uma parte da Bíblia. Nesta aula o Cornélio Pijapit fez um paralelo entre a cruz e o formato da Aldeia Escalvado, sendo que as extremidades do feixe vertical significariam aonde o sol nasce e se põe e as extremidades do feixe horizontal indicariam as duas metades (dois partidos) da aldeia circular, segundo as quais os Ramkokamekrá-Kanela parecem organizar suas vidas. No caso da presença de professores “não-índios” na aldeia, percebi que estes, quando efetivado o contrato, passam a maior parte do mês em terra indígena (22 dias aproximadamente), onde parte deles habita a estrutura física da escola e outra parte o prédio onde deveria funcionar o Posto Indígena. Segue a fotografia da parte da escola destinada aos professores “não-índios” (julho/2008): Foto 4 – Centro de Ensino Indígena General Bandeira de Melo - CEIGBM Com exceção do professor e secretário Edjane Soares157, não observei por parte dos demais “não-índios” muita predisposição quanto ao aprendizado dos saberes da aldeia, como a língua. O 157 Que consegue tabular algumas conversas na língua indígena dos Ramkokamekrá-Kanela. 137 que se verifica também pelo escasso deslocamento destes da escola ou do posto em direção ao pátio central da aldeia (a distancia é de aproximadamente 400 metros). Grande parte das reclamações que são proferidas pelos agentes com quem conversei em julho de 2008, sobre o CEIGBM, referiam-se a questões logísticas e estruturais. Como exemplo têm-se as reclamações devido à higiene e manutenção dos prédios, o fornecimento de material didático e de merenda escolar158. Segue uma foto do panorama geral do CEIGBM em julho de 2008. Foto 5 – CEIGBM (julho/2008) Diante dos elementos que presenciei, identifica-se que o CEIGBM na prática acontece de maneira diferenciada se comparada às escolas da cidade, porém nota-se que este, como indicam os discursos dos professores da aldeia, tem influência na representação que os alunos criam sobre a cidade, o que pode indicar parte das motivações destes para estudar fora da aldeia. Outra forma formalizada desse incentivo ocorre, entre os Ramkokamekrá-Kanela, pela atuação do CTI através da “Escola Timbira”. Esta tem suas especificidades, já que foi proposta para limitar a migração de “índios” para estudar na cidade, porém repassa também 158 No Curso de Formação Continuada denominado Magistério Indígena que ocorreu em janeiro de 2009 em Barra do Corda teve um momento em que os participantes debateram e fizeram algumas deliberações sobre este último item. 138 conteúdos que afloram o desejo de experimentar a cidade. Voltarei a uma análise mais detalhada dessa modalidade de educação escolar destinada aos Ramkokamekrá-Kanela no tópico 4.4 deste trabalho. Antes me deterei à discussão das estratégias multiculturais de educação escolar indigenista. 4.3 – A estratégia multicultural e o “respeito à diferença”: alterações em torno da “assimilação natural” implícita Na segunda metade do século XX o Estado brasileiro passou a adotar novos eixos para direcionar as políticas indigenistas. Este processo se deu, segundo Meliá (2000, p. 15), devido aos movimentos de resistência e de reivindicação de direitos sobre a terra e contra a discriminação, os quais foram organizados em conjunto por indígenas e setores da sociedade civil. Com a CFB de 1988, ocorreram algumas alterações, legais, em relação à atuação do Estado frente às sociedades indígenas, se comparada a dispositivos oficiais anteriores. A legislação do país passou, como coloca Coelho (2001) a pautar-se em princípios multiculturalistas. A utilização do termo multiculturalismo aparece como possibilidade de jogar com as tensões entre igualdade e diferença. Como lê-se em Santos; Nunes (2003, p. 25) apud Pacheco (2005, p. 32): Multiculturalismo, justiça multicultural, direitos coletivos, cidadanias plurais são hoje alguns dos termos que procuram jogar com as tensões entre a diferença e a igualdade, entre a exigência de reconhecimento da diferença e de redistribuição que permita a realização da igualdade. Essas tensões estão no centro das lutas de movimentos e iniciativas emancipatórias que, contra as reduções eurocêntricas dos termos fundamentais (cultura, justiça, direitos, cidadania), procuram propor noções mais inclusivas e, simultaneamente, respeitadoras da diferença de concepções alternativas da dignidade humana. O (re)direcionamento das políticas são gerados à partir do reconhecimento oficial de que o Brasil é um país multicultural, o que também se dá a partir da Constituição Federal de 1988. Segundo o texto constitucional, o Estado deverá proteger as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (BRASIL, 1988, art. 215, inciso 1º). No entanto, simultaneamente a esse reconhecimento, há a inserção dos “índios” e de outras minorias nas instituições nacionais de assistência social, de educação e de saúde. Neste 139 período ocorre a transferência da atenção à educação escolar indigenista para o MEC159, órgão oficial não específico das causas indígenas. A garantia de proteção às manifestações culturais indígenas, “sua organização social, costumes, línguas, crenças, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam...” (BRASIL, 1988, art. 231) parece obedecer princípios multiculturais. Todavia, o respeito formal à diversidade cultural é tolhido na prática e no próprio discurso legal, onde há políticas e leis advogam um tratamento igual a todos os “brasileiros” (BRASIL, 1988, art. 5º, caput). A dificuldade no respeito à diferença pode ser constatada com o entendimento da maneira como o Estado se coloca frente à questão da educação escolar para “índios”, pois por um lado garante que as manifestações culturais específicas serão respeitadas e protegidas (dentre estas as formas próprias de ensino-aprendizagem de cada sociedade) e por outro lado define que “serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais” (BRASIL, 1988, art. 210). Tem-se ai o paradoxo da garantia à diferença confrontada com a exigência de que todos teriam os mesmos direitos. A cidadania tem assim seus “custos”. Como lê-se em Souza (1983, p. 42): A cidadania necessariamente implicará o gozo de certos direitos e o respeito a certos deveres. Direitos e deveres iguais para todos. Significará, pois, que tornará o índio igual em direitos e deveres ao cidadão brasileiro. O índio, portanto, terá de deixar de ser índio para ser cidadão. Pois participar plenamente da sociedade significa também tornar-se súdito do estado e obedecer às regras impostas. Acontece, porém – e este porém é fundamental -, que as referidas regras revelam necessariamente a concepção de mundo, a forma de organização para produzir, o modo de ganhar a vida, os valores da sociedade nacional. (...) pretender a cidadania nesse caso é, e só pode ser, transformar o índio num marginal. (...). A história, tanto brasileira como de outros países, está repleta de exemplos que confirmam essa conseqüência fatal. Percebe-se, assim que o reconhecimento oficial da importância de se utilizar elementos indígenas (língua nativa, por exemplo) no processo de escolarização indica que existe a compreensão de que vivemos num país multiétnico, mas os encaminhamentos 159 O Estado formaliza para o Ministério da Educação, através do Decreto nº 26 de 24 de fevereiro de 1991 (BRASIL, 1991), a competência para coordenar as ações referentes à educação escolar para sociedades indígenas. Segundo Coelho (2001, p. 26), até então “as escolas das aldeias não estavam subordinadas à estrutura burocrática nacional. Um aluno de uma escola de aldeia precisava ter seus estudos revalidados para ingressar numa escola de branco". 140 tomados e os conteúdos a serem ministrados continuam mantendo uma perspectiva ambígua. A compreensão, na atualidade, de que o Brasil é um país multicultural não se efetiva completamente na atuação estatal, a qual coloca as línguas indígenas em status inferior frente à língua portuguesa. Em Brasil (1988, art. 210) vê-se que há predominância do ensino do português: “o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. O “também” do texto oficial indica a maior relevância/importância da primeira em detrimento da segunda. Vê-se que o reconhecimento legítimo da diversidade étnica está imerso a retrocessos explícitos, de modo especial quando se refere às sociedades indígenas. Portanto o paradigma da “pluralidade” defronta-se com o paradigma do Estado-nação. A formalização dos princípios que guiarão a política educacional indigenista, a partir dos anos 1990, ocorre com a elaboração da Portaria Intermisterial nº 559 de 16 de abril de 1991 (BRASIL, 1991a), dos Ministérios da Justiça e da Educação, que manteve a retórica da Constituição Federal de 1988 de respeito à diferença, na tentativa de camuflar sua ambigüidade. Nesta lê-se que constitui um dever do Estado: Art. 1º - garantir às comunidades indígenas uma educação escolar básica de qualidade, laica e diferenciada, que respeite e fortaleça seus costumes, tradições, língua, processos próprios de aprendizagem e reconheça suas organizações sociais; Art. 2º - Garantir ao índio o acesso ao conhecimento e o domínio dos códigos da sociedade nacional, assegurando-se às populações indígenas a possibilidade de defesa de seus interesses e a participação plena na vida nacional em igualdade de condições, enquanto etnias culturalmente diferenciadas. A mudança do órgão gestor oficial da educação escolar para “índios”, revela a vinculação dessa educação escolar “específica” ao sistema nacional de educação. Sendo assim, exige-se conteúdos mínimos, carga horária a ser cumprida e etc. Ocorre, como denomina Ferreira (2001, p. 32), uma “abertura condicionada”, mediante a qual elabora-se uma série de documentos. Dos documentos específicos produzidos sobre a educação escolar para “índios”, têm-se as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena (BRASIL, 141 1993, p. 9), que foi considerada sem precedentes na história das relações entre as populações indígenas e o Estado brasileiro, pois seria baseada em “regras multiculturais”. Em Brasil (1993, p. 9) lê-se as bases para a “formalização” do respeito à diversidade étnica e pluralidade dos indígenas, pois os direitos constitucionalmente reconhecidos, seriam o “instrumento essencial na implantação de uma política que garanta, ao mesmo tempo, o respeito à especificidade das populações indígenas (frente aos não- indígenas) e à sua diversidade interna (lingüística, cultural, histórica)”. Pelo menos oficialmente, as sociedades indígenas não mais estavam sendo percebidos como transitórios ou em vias de extinção. Mas as ambigüidades se sustentam. Uma base nacional comum de educação escolar pode ser positiva ou negativa para a comunidade atingida, já que altera valores de um lado, mas também sugere possibilidades de atuação em outros campos dentro e fora das aldeias. Ora o discurso volta-se para a autonomia das populações indígenas ora para sua adequação a conhecimentos alienígenas. Em Brasil (1993, p. 12) lê-se que o objetivo da escola na aldeia é: (...) a conquista da autonomia sócio-econômico-cultural de cada povo, contextualizada na recuperação de sua memória histórica, na reafirmação de sua identidade étnica, no estudo e na valorização da própria língua e da própria ciência – sintetizada em seus etno-conhecimentos, bem como no acesso às informações e aos conhecimentos técnicos e científicos da sociedade majoritária, e das demais sociedades, indígenas e não-indígenas. Esse discurso demonstra que as escolas nas aldeias deveriam significar um instrumento de auto-determinação e reafirmação étnica, mas também incentiva o valores externos que podem fragilizar o primeiro objetivo. Isto configura desafios que perpassam as escolas em aldeias e que são percebidos por D’angelis (1999, p. 22) nos termos que seguem: É preciso reconhecer que, sendo a escola uma instituição não indígena, surgida em contextos de sociedades radicalmente distintas das sociedades indígenas, criar hoje a “escola indígena” é ainda um desafio. O que temos conseguido são escolas mais, ou menos, indianizadas (por vezes, indigenizadas do que indianizadas). Na esmagadora maioria dos casos são tentativas de “tradução” da escola para o contexto indígena. A política educacional para “índios’, elaborada a partir de 1993, é formalizada pela Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), que destaca em dois artigos (78 142 e 79, grifos meus) as disposições sobre a educação escolar para sociedades indígenas. Estabelece: Art. 78 - O sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas intergrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I – Proporcionar aos índios, suas comunidades e povos a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas línguas e ciências; II – Garantir aos índios suas comunidades e povos, o acesso as informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-indígenas. Art. 79 - A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa. § 1º os programas serão planejados com a audiência das comunidades indígenas. § 2º os programas, a que se refere este artigo, incluídos Planos Nacionais de Educação terão os seguintes objetivos: I - fortalecer as praticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena; II - manter programas de formação de pessoal especializado, destinado a educação escolar nas comunidades indígenas; III - desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades; IV - elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado. Estes dois artigos colocam, com força de lei, a forma como a educação escolar para os indígenas deveria ser gerenciada, reafirmando parte do que é exposto nas Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, assim como alicerçando o que viria com a Resolução CNE/CEB160 nº 03 de 10 de novembro de 1999. Lê-se em Brasil (1999, art. 2º, grifos meus) que constituirão elementos básicos para a organização, estrutura e funcionamento das nas aldeias: I – sua localização em terras habitadas por comunidades indígenas, ainda que se estendam por territórios de diversos Estados e Municípios contíguos; II – exclusivo atendimento escolar a comunidades indígenas; III – o ensino ministrado nas línguas maternas das comunidades atendidas, como uma das formas de preservação da realidade sócio-lingüística de cada povo; IV – organização escolar própria Parágrafo Único. A escola indígena será criada em atendimento à reivindicação ou por iniciativa de comunidade interessada, ou com a anuência da mesma, respeitadas suas formas de representação. 160 CNE – Conselho Nacional de Educação / CEB – Câmara de Educação Básica / Ministério da Educação. 143 Os documentos aqui apresentados são marcados, em grande parte, pela retórica do “direito de escolha” dos “índios” (de decidirem sobre a introdução ou não da escola na aldeia). Analisar essa relação, que vem se constituindo desde o século XVI, apenas em termos de saber se os “índios” querem ou não a escola seria desconsiderar a histórica atuação do Estado brasileiro. Esse contexto tem influência na maneira como as sociedades indígenas atualmente representam os elementos que seriam da sociedade envolvente, assim como seu próprio universo. A problemática que se coloca refere-se à forma como estas populações passam a ser perceber. Mignolo (2003, p. 36), citando Ribeiro (1968, p. 63) coloca: Do mesmo modo que a Europa levou várias técnicas e invenções aos povos presos em sua rede de dominação... ela também os familiarizou com seu equipamento de conceitos, preconceitos e idiossincrasias, referentes simultaneamente à própria Europa e aos povos coloniais. Os colonizados, privados de sua riqueza e do fruto de seu trabalho sob a dominação colonial, sofreram, ademais, a degradação de assumir como sua a imagem que era um simples reflexo da cosmovisão européia, que considerava os povos coloniais racialmente inferiores porque eram negros, ameríndios ou “mestizos”. Mesmo as camadas mais inteligentes dos povos não-europeus acostumaram-se a enxergar-se e a suas comunidades como uma infra- humanidade, cujo destino era ocupar uma posição subalterna pelo simples fato de que a sua era inferior à da população européia. Este trabalho procura perceber a imersão dos “índios” na educação escolar também como parte do processo de construção de uma subalternização, iniciada no século XVI e que teve a base voltada para a educação escolar. Porém, não é possível considerar esse contexto apenas como produto dessa subalternização, mas também como mecanismos próprios acionados pelos “índios”. Essas duas possibilidades de compreensão atuam simultaneamente no deslocamento de “índios” para estudar fora da aldeia. Nas linhas seguintes me deterei à análise de alguns dispositivos legais dessa situação. Antes da Constituição de 1988, com o Estatuto do Índio (1973), a referência feita pelo discurso oficial era no sentido de não retirar os alunos índios de suas comunidade/famílias. Não havia nenhuma referência quanto ao tratamento a ser destinado àqueles que migravam. Sugere-se que estes só brincavam fora da aldeia. Nesse período, outro documento sobre esse assunto elaborado foi, como é colocado por Cunha (1990), a Portaria nº 788/N FUNAI, de 11/10/1982. 144 Na década de 1990 é sancionada a Portaria Interministerial nº 559/91 que explicita preocupações em oferecer a educação escolar aos “índios” sem que houvesse a necessidade destes se afastarem de suas aldeias. Define-se em seu artigo 8º: Determinar que, no processo de reconhecimento das escolas destinadas às comunidades indígenas, sejam consideradas, na sua normatização, as características específicas da educação indígena no que se refere a: d)funcionamento de escolas indígenas de ensino fundamental no interior das áreas indígenas, a fim de não afastar o aluno índio do convívio familiar e comunitário. Para os casos de migração o principio a ser respeitado está no artigo 9º da Portaria Interministerial (BRASIL, 1991a): Garantir aos alunos indígenas condições para a continuidade da escolarização nas demais escolas do sistema nacional de ensino quando não for oferecido o ensino de 2º grau no interior das aldeias. O dispositivo refere-se àqueles que migram por não haver na aldeia determinado nível escolar, mas que tipo de atenção há em relação aos demais? Essa falta de consideração perpassa os documentos posteriores sobre a questão. Além da Portaria Interministerial 559/91, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNEI (1998) e a Lei 10.172 de 09 de janeiro de 2001, que aprova a Plano Nacional de Educação, fazem referência aos “índios” que estudam fora das aldeias. A situação dos alunos indígenas que terminam o Ensino Fundamental Menor (até a 4ª série) nas aldeias e a inserção destes em escolas das cidades é colocada pelo RCNEI como um problema, pois afirma não haver possibilidade de respeito à diferença no espaço urbano, problema que não é exclusivo das escolas na cidade, já que também está presente em escolas nas aldeias, já que nestas encontram-se também de forma significativa agentes não indígenas despreparados para lidar com o universo diferente e complexo da aldeia. Lê- se em Brasil (1998, p. 14) que: Entendeu-se que oferecer subsídios apenas às fases que correspondem da 1ª a 4ª séries representaria um desestímulo para os alunos e professores indígenas. O ensino fundamental completo já é uma demanda de várias aldeias, como meio de evitar que alunos indígenas, ao terminarem a 4ª série, sejam obrigados a se transferirem para escolas mais próximas, na cidade, onde não são consideradas suas necessidades educacionais específicas. 145 Mesmo elaborada em um contexto que se afirma baseado no paradigma multicultural e de respeito à diferença, a Lei nº 10.172, de 09 de janeiro de 2001 (BRASIL, 2001, grifos meus), simplesmente fragilizou ideal assimilacionista, já que o ideal universalista ainda permanece. 2. Universalizar, imediatamente, a adoção das diretrizes párea a política nacional de educação escolar indígena e os parâmetros curriculares estabelecidos pelo Conselho Nacional de Educação e pelo Ministério da Educação 3. Universalizar, em dez anos, a oferta às comunidades indígenas de programas educacionais equivalentes às quatro séries do ensino fundamental, respeitando seus modos de vida, suas visões de mundo e as situações sócio-lingüísticas especificas por elas vivenciadas 11. Adaptar programas do Ministério da Educação de auxilio ao desenvolvimento da educação já existentes, como transporte escolar, livro didático, biblioteca escolar, merenda escolar, TV Escola, de forma a contemplar a especificidade da educação indígena, quer em termos do contingente escolar, quer quanto aos seus objetivos e necessidades, assegurando o fornecimento desses benefícios às escolas. Os termos sublinhados sugerem que os princípios multiculturais de respeito à diferença e às especificidades das sociedadess indígenas são pouco considerados na elaboração das diretrizes, já que disputam com proposições de “universalização” da educação escolar. Constatam-se, ainda, ambigüidades no discurso oficial, que se coloca como respeitando os modos de vida dos “índios” e, ao mesmo tempo, busca implantar programas, materiais e instituições que poderiam ser percebidos como estranhas às realidades desses grupos, sendo colonizadoras. O Estado parece tratar essas sociedades como mais uma parcela da sociedade brasileira, desconsiderando assim a relevância de suas autonomias, as quais são legalmente reconhecidas. Quanto aos “índios” que estudam fora das aldeias, a Lei nº 10.172 (BRASIL, 2001, grifo meu) expõe que é função do Estado favorecer a integração destes estudantes em escolas na cidade. 4. Ampliar, gradativamente, a oferta do ensino de 5ª a 8ª série à população indígena, quer na própria escola indígena, quer integrando os alunos em classes comuns nas escolas próximas, ao mesmo tempo que se lhe ofereça o atendimento adicional necessário para sua adaptação, a fim de garantir o acesso ao ensino fundamental pleno. 146 Percebe-se que os documentos citados apontam algumas modificações quanto à forma de atuação da política indigenista de educação escolar, mas que também demonstram um discurso imerso a contradições e ambigüidades. A relação destas sociedades com o Estado brasileiro não os impede de conservar, na medida do possível, línguas e modos específicos de vida em suas comunidades, mesmo se a manutenção dessas especificidades esteja relacionada a elementos de resistência acionados na dinâmica da própria aldeia. Ainda que se coloque como protetor das manifestações culturais específicas indígenas, o Estado nacional vem sistematicamente investindo, desde os primeiros contatos, para disciplinar essas sociedades. Percebo que a educação escolar para os “índios” vem sendo significada e atualmente utilizada, por eles, como “mecanismo” para, no campo político interétnico, dialogar e adquiri, na prática, os espaços e os direitos que exigem. Requer, portanto, reflexões sobre a forma como esse diálogo, entre sociedades diferentes, tem ocorrido. Enfatizando certamente os contextos diversos e os signos e lógicas que estão em jogo. 4.3.1 – A estratégia multicultural no Maranhão: aspecto legal Como característica do Brasil, viemos assistindo a processos de descentralização que são entendidos como delegação de responsabilidade para instituições mais locais. Na colônia assistiu-se a delegação de responsabilidade aos jesuítas quanto à educação escolar para as sociedades indígenas. Já no período imperial, foi determinado que cada província, junto com a Assembléia Geral e o Governo, cuidasse dessas populações161. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 22, afirma que “compete privativamente à União legislar sobre as populações indígenas”, mas no art. 24, alínea IX, aponta para certa descentralização na atuação, quando diz que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre educação, cultura, ensino e desporto”. Mesmo não se referindo especificamente às populações indígenas, o art. 24 aponta para a descentralização da educação pelos Estados. 161 Ato Adicional à Constituição do Império, de 12 de agosto de 1834, artigo 11, parágrafo 5º. (Cf. COELHO, 1990). 147 A atenção à educação escolar para os “índios”, mesmo que centralizada no Ministério da Educação (BRASIL, 1991), tem suas ações previstas para serem desenvolvidas pelas Secretarias de Educação dos Estados e Municípios, sendo que estas não podem agir de maneira completamente autônoma. Esse movimento caracteriza o que chamo de “descentralização centralizadora”, já que a política educacional desenvolvida para essas sociedades é marcada por iniciativas descentralizadas, mas submetidas a princípios nacionais que guiam tais ações. A “descentralização-centralizadora” é percebida em outras políticas, leis e portarias posteriores ao atrelamento da educação indigenista ao MEC. Como se lê no art. 5º da Portaria Interministerial MJ e MEC Nº 559 de 16/04/1991 (BRASIL, 1991a) caberia à União: Estimular a criação de Núcleos de Educação Indígena nas Secretarias Estaduais de Educação, com a finalidade de apoiar e assessorar as escolas indígenas. Parágrafo Único: Esses núcleos deverão contar com a participação de representantes das comunidades indígenas locais atuantes na educação, de organizações e não governamentais afetas a educação indígena e de universidades. A educação escolar para “índios” está vinculada ao Sistema Nacional de Educação – SNE, mas, também, segundo as Diretrizes Nacionais, é descentralizada através dos Estados e municípios. Isto caracteriza uma certa autonomia dos Estados e municípios na efetivação das políticas que são “nacionais”, mas não na sua elaboração. No Maranhão, em 1997, ocorreu a publicação das “Diretrizes para a Política Estadual de Educação Escolar Indígena/MA”, voltadas para o atendimento das sociedades indígenas deste Estado. As populações indígenas que habitam o território maranhense são: Tenetehara-Guajajara, Ramkokamekrá-Kanela, Apanyêkrá-Kanela, Gavião-Pukobyê, Krikati, Awá-Guajá e Urubu-Kaapóor. O órgão que conduziu a elaboração das Diretrizes Estaduais para o Maranhão foi a Secretaria de Educação – SEEDUC, que passou, em 1998, a ser denominada de Gerência de Desenvolvimento Humano – GDH. Atualmente (2009) voltou a ser chamada SEEDUC. 148 Quanto às “Diretrizes para a Política Estadual de Educação Escolar Indígena/MA” cabe frisar que, sob a égide do específico e diferenciado, estabelece como meta a efetivação de educação escolar no interior das terras indígenas, sem nenhuma referência à situação dos estudantes indígenas que se deslocam para estudar fora das aldeias. O disposto nestas Diretrizes demonstra que, também no nível mais localizado, há dificuldades operacionais de respeito à diferença, já que estas são elaboradas sem efetiva discussão das lógicas coloniais que ainda caracterizam a relação entre “índios” e “não- “índios”, o que é agravado pelo preconceito e discriminação mais evidentes em campos de interação mais próximos. È importante atentar que esses dilemas perpassam as ações de Gerências ou Secretarias Regionais, as que atuam no interior do Estado. Em nosso caso, em Barra do Corda – MA. 4.4 - A “Escola Timbira”: migrações contidas e incentivadas Como já colocado anteriormente, além dos professores “índios” que são contratados pelo Estado, na Aldeia Escalvado atuam também outros que, sob a auto-definição de “estagiários”, são mantidos pela organização não-governamental Centro de Trabalho Indigenista – CTI. O CTI é uma instituição que foi fundada no final dos anos 1970. Uma extensa citação de uma de suas fundadoras permite visualizar esse processo. O depoimento que segue foi decorrente de uma entrevista realizada no dia 24 de agosto de 2002 por Danielle Ferraro162 com Maria Elisa Ladeira. Então o CTI, aí nós saímos de lá, em 76 corridos, corridos pela FUNAI; em 76 a FUNAI não suportava mais essa grande revolução que foi colocar... inverter todas as ordens, todos os papeis, todas as ordens todos os papeis e... então, né? Nos saímos corridos, saímos corridos e iríamos fazer o quê? Né?... fazer o que? Chegamos de volta, em casa, não tinha nada o que fazer, eu não ia mais pra França, não tinha mais, não queria mais fazer... terminar o meu mestrado, eu queria continuar aquele trabalho que a gente tinha levado. E nesse tempo não tinha Ongs, não existiam... no começo não eram organizações não- governamentais, a gente falava sociedade civil sem fins lucrativos, não existia isso no Brasil, pelo menos não era uma coisa, assim visível, mas em 79... 76, 77 eu e Gilberto fomos fazer milhões de coisas... fomos fazer um filme, conseguimos um recurso, já num projeto extremamente arrojado, pra época 162 É integrante do Grupo de Estudos “Estado Multicultural e Políticas Públicas” e Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão – PPGCSo/UFMA. 149 também, que chamava-se: “Vídeo na aldeias”. – E depois foi um projeto que o CTI incorporou – antes de existir o CTI, que era um projeto pra fazer vídeos nas aldeias ensinar os índios, inclusive, a filmar e depois comentar tudo, pra ser passado, pra motivar essa discussão dos aspectos culturais, né? Mas não tinham vídeos no Brasil ainda, não era como os vídeos que tem hoje, não tinha, no Brasil tava começando a surgir. E nós viemos tentar vender a idéia aqui, em Goiânia, no CIMI (nome initel163) chamou, gostou do discurso e chamou; nunca esqueço, a gente veio pra Goiânia e... os bispos receberam a gente, sem dinheiro pra pagar passagem, éramos quatro. Eles escutaram, primeiro perguntaram: “qual era nosso interesse? Se nós éramos vendedores de vídeos? (initel) um pouco depois, muitos anos depois, como não conseguimos emplacar esse projeto, fizemos um filme que chama-se: “Conversas no Maranhão”, que documenta a demarcação da área dos Porquinhos, dos Canela, e a interrupção dessa demarcação, nós saímos em 77. Em 79 eu conheci um Alemão, conheci... aquelas coisas milagrosas, né? Eu tinha acabado de parir, tinha acabado de descansar, mesmo no hospital, meu filho não tinha nem 15 dias, apareceu um homem me oferecendo dinheiro, não era bem assim, mas era assim: tinha uma pessoa intermediária que tinha ficado encantado com meu trabalho de educação, das coisas que eu tinha contado, ela tinha contato na Alemanha, refugiada política chilena, e... falou e de repente lá (entrou) na minha casa, e me pegou de surpresa não sabia o que apresentar, se não nem faria de educação, porquê eu também achava que tinha outras coisas muito mais importantes pra resolver do que a questão da escola, mas ela me pegou ali de surpresa num sei o que, eu falei ... ela disse “olha eu vou dá x de dinheiro pra vocês” não me lembro quanto era, eu lembro que era 30, 30 num sei o que, não me lembro mais o dinheiro da época; era muito dinheiro pra nós, eu me lembro que era muito dinheiro, nós... Oba! Oba! “Mas não ta aí o dinheiro, vem através de uma outra entidade que vais repassar pra vocês e tal”. Ai nós nos juntamos, os Antropólogos, era um grupo de Antropólogos, que tinham participado dessas experiências e projetos em desenvolvimento que não tinham dado muito certo. Então...bom mais 79 então, com esse farto recurso que conseguimos nos juntamos, então éramos um grupo de 5 pessoas, mas na verdade a ata assinada por umas 10 pessoas e... era uma das primeiras entidades indigenistas, né? Inclusive o nome a gente não sabia que nome dar, Centro de Trabalho Indigenista, por que a gente não queria se confundir com a pesquisa, né? Nesse tempo já tinha desistido de fazer o mestrado e agente tinha aquela coisa do trabalho, mesmo do compromisso com as aldeias com as quais a gente tinha criado vínculo, também não era com o índio genérico. Justamente nessa época começa a surgir as comissões pró índio. Percebe-se que se por um lado havia a demanda por financiamento164, por outro a educação escolar para índios não era o alvo considerado o problema mais importante. É importante perceber que no contexto em que surge o CTI as prioridades referiam-se à questão da demarcação das terras indígenas no Brasil. Assim, no início não se enfatizava a educação escolar, perspectiva que foi sendo modificada juntamente com as alterações legais no trato das sociedades indígenas. 163 Refere-se a interrupções na gravação ou partes não entendidas. 164 Em 1993 o CTI recebeu apoio financeiro da Norwegian rainforest Fundation – NRF. 150 Neste sentido, a construção de uma escola diferenciada pelo CTI, a Escola Timbira, enquadra-se no em um momento posterior à própria ONG. Num momento pós-constituinte em que é assumido, oficialmente, pelo Estado um discurso de respeito à especificidade e diferenciação das sociedades indígenas. O início das atividades da Escola Timbira se deu como decorrência dos resultados da Reunião de Planejamento de 14 a 17 de março de 2000, realizada no Centro de Formação Timbira Pinxwyj Himpejxã, em Carolina - MA , da qual resultaram as diretrizes dessa “escola específica” para “índios” Timbira. Tem-se então por público alvo os Timbira do Maranhão e do Tocantins165. Dois pontos são importantes para entender o porquê de explorar a atuação do CTI quanto à educação escolar e o tema dessa dissertação: 1º - Tendo com público alvo também os “Timbira” do Maranhão, esta ONG estaria atuando diretamente frente aos Ramkokamkerá-Kanela166; 2º - Visando formar os alunos também nas séries de 5ª a 8ª, a Escola Timbira projetou diminuir a quantidade de estudantes indígenas que se deslocavam para estudar fora das aldeias. Para sua escolha por determinadas sociedades indígenas em detrimento de outros, a ONG parecia usar como justificativa a constatação de Nimuendajú (1944), o qual designou que estas populações constituiriam o que denominou “País Timbira”, pois compartilhavam várias características. Nimuendajú (1946) APUD CTI (2000, s/p) coloca que: os Timbira têm consciência de que são tribos de uma grande unidade étnica, cuja características mais importantes são, segundo eles, além da língua mais ou menos igual, sobretudo o sulco horizontal no cabelo, as rodelas auriculares, a aldeia circular e a corrida de toras. Porém não se desconsiderava a autonomia de cada uma das sociedades envolvidas. Lê-se ainda em CTI (2000, s/p) que: Uma aldeia (krin) Timbira é um grupo local autônomo, isto é, age politicamente e se apresenta frente as outras aldeias como unidade. Gerada por um processo de 165 MA – Apanjêkrá-Kanela, Ramkokamekrá-Kanela, Krikati, Pukobyê. TO – Apinayé e Krahô. 166 Sobre os contatos entre Maria Elisa Ladeira e Gilberto Azanha com os Ramkokamekrá, ver Crocker (1990, p. 46): “Gilberto Azanha e Maria Elisa Ladeira visitaram os canelas em 1974 e em 1985, quando ele visitou também os Apaniecras. Azanha estava estudando mitos e sus estrutura com Lux Vidal do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo em São Paulo e Ladeira estava estudando parentesco e transmissão de nomes”. 151 cisão que leva algumas famílias a se desligarem da aldeia-mãe, por razões diversas (em geral, por acusações de feitiçaria ou por fuxico das mulheres, a nova aldeia só alcança sua completa autonomia quando têm condições reais de realizar, sem concurso das demais, os rituais mais importantes do ciclo anual. Essa unidade do grupo local se manifesta ainda na chefia (o pa’hi, “chefe”, possui delegação dos grupos domésticos para decidir autonomamente sobre os interesses da aldeia) e na utilização exclusiva de uma porção do território para caça e coleta (o local de instalação de uma nova aldeia é em geral acertado com os membros remanescentes da aldeia original, de forma a não se sobrepor a seus territórios de caça, fonte constante de atritos entre as aldeias). Não existe nenhum outro poder acima das aldeias e que represente todas elas, como um conselho de chefes ou algo parecido. Tal diversificação pode ser um dos elementos para os diferentes resultados do ensino-aprendizado entre os estudantes dessa escola, pois percebi que, enquanto os Pukobyê, Kikati e Krahô, em geral, tinham mais facilidade em aprender durante as aulas, os demais tinham considerável dificuldade, salvo raras exceções. O grau de contato interétnico com “não-índios” e a maneira especifica das interações pode dar indícios dessa diferenciação, pois as populações indígenas citadas foram e são alvo de intensos contatos com a sociedade envolvente, os quais são datados mais explicitamente no primeiro quartel do século XIX. Estes contatos e suas conseqüências são resumidos em CTI (2000, s/p) da maneira que segue:  “os que tiveram contato com as fazendas de criação extensiva de gado (ficaram à margem da atividade pecuária que não necessita de muitos trabalhadores) foram os mais hostilizados por ocuparem terras necessárias à expansão desses estabelecimentos e por transformarem em alvo o gado que ocupou suas áreas de caça. Mas, por outro lado, são os que guardaram do modo de vida tradicional. É o caso dos Krahô, Ramkokamekrá, Pukobyê e Krikati;  aqueles que, habitando a floresta, se viram diante de uma frente extrativa de um produto de alto valor comercial, ao inserirem-se nesta atividade, modificaram rapidamente sua cultura. É o caso dos Parkateyê, que estabeleceram contato pacífico com os brancos, coletores de castanha-do-pará, somente por volta de 1955. Têm hoje sua cultura indígena muito mais modificada do que os Timbira que estão há quase dois séculos em contato com as fazendas de gado;  aqueles que puderam participar da extração de um produto de valor comercial mediano, garantindo-lhes um suprimento de artigos industrializados não muito grande, mas constante, mantiveram boa parte de suas tradições, mas não tanto como os que estão ao lado da atividade pecuária; é o caso dos Apinayé, que extraem o coco babaçu, embora os Timbira das vizinhanças do rio Gurupi que participam da extração do óleo da copaíba estejam numa situação diferente, e pouco conhecida”. Mesmo não alcançando todos os resultados almejados, a Escola Timbira constitui- se como uma instituição diferenciada de educação escolar indígenista. Seu funcionamento se dava em uma localidade denominado Centro de Ensino e Pesquisa Timbira Pinxwy 152 Himpeejx’a que fica a aproximadamente 20 km de Carolina (sul do Maranhão). Neste Centro se hospedavam e estudavam os “índios” assistidos por um período de aproximadamente quatro semanas initerruptas por semestre. Os prédios que constituem o Centro Pinxwyj (cozinha, sala de aula, secretaria e dormitório) eram dispostos de modo a forma um circulo. Com isso, buscava-se reproduzir o formato das aldeias “Timbira”. Geralmente os dormitórios eram ocupados obedecendo o pertencimento a uma aldeia ou a outra, ou seja, Krahô com Krahô, Krikati com Krikati, Ramkokamkrá com Ramkokamkekrá e assim por diante. A quantidade de alunos do sexo feminino era muito baixa, chegando a proporção de uma aluna para o montante de 9 alunos. Outra característica era o acompanhamento dos alunos diretamente na aldeia, tarefa que desempenhei na Aldeia Porquinhos (Apanjekrá-Kanela). As aulas aconteciam durante todo o dia, divididas em dois turnos: manhã e tarde. Durante a noite não era permitido aos “não-índios” continuar no Centro não-indígenas, a não ser em casos especiais. Os alunos e outros “índios” que lá se encontravam eram servidos com café, almoço e jantar, disponibilizados por meio de fila indiana. O cardápio tentava supri-los com mantimentos também existentes nas aldeias. Uma ocasião especial precisa ser mencionada. No 7º período da Escola Timbira presenciei uma situação que pareceu uma tentativa de respeitar as especificidades dos alunos. Um casal de alunos Apanjêkrá-Kanela, chamados Janari e Nelcina, estavam de resguardo pelo nascimento de seu primeiro filho, por isso a refeição de ambos foi diferenciada. Observe-se que o resguardo teve que ser obedecido, como deveria ser se estivessem na aldeia, tanto pelo pai como pela mãe. Quanto aos demais alunos da Escola Timbira não foi possível precisar com certeza, porém os Ramkokamekrá-Kanela que a cursavam já haviam tido algum tipo de experiência com escolas fora da aldeia, em Barra do Corda: Ivam Polgahtê, Edvaldo Pixan e Ivonete Kamprê, por exemplo. Há, por parte do “índios”, uma demanda cada vez maior pela instituição escolar, a qual passa a assumir um significado cada vez mais de “necessidade” para o trato com os “não-índios” (SÁ, 2006). Essa é uma constante observada entre os Ramkokamekrá-Kanela, principalmente entre aqueles que afirmam ser “representantes da comunidade na cidade”. Em julho de 2008, Ary Korampey (professor “índio”) afirmou ser ele o responsável por 153 trazer as informações da cidade para a aldeia, o que revela o quanto a escola está relacionada a uma função representacional (de liderança167) da comunidade indígena. Tal significado da escola sugere que muitos estudantes indígenas deixem suas aldeias, fazendo o deslocamento para cidades vizinhas em busca de uma outra educação escolar que qualificam como melhor. No cenário político de então, a aquisição de conhecimentos escolares passa a ser parte dos elementos que constituem os sujeitos indígenas. Diante dessa questão, que envolve demanda por escolas, repetência, evasão e falta de consideração dos aspectos sócio-econômicos indígenas na cidade, emerge a “Escola Timbira”, uma iniciativa diferenciada se comparada às demais formas de educação escolar destinada aos “Timbira”, tanto nas aldeias como fora delas. Como se lê em CTI (s/d, s/p, grifos meus), os objetivos da “Escola Timbira” seriam: Oferecer aos indios Krahô, Apinajé, Krikati, Pukobjê, Apanieká e Ramkokamekrá, que compõem atualmente a nação Timbira, uma educação escolar que possa transmitir conhecimentos que sejam adequados para encarar os desafios que os membros desta sociedade estão enfrentando em seu relacionamento com a sociedade nacional, que respondam às necessidades manifestas pelos índios e que contribuam para preservar e reforçar tradições sócio-culturais destes povos indígenas. De qualquer forma, mesmo sendo uma proposta de educação escolar diferenciada, a Escola Timbira ainda precisa obedecer parâmetros mínimos para sua concretização enquanto instituição reconhecida legalmente. Logo, a “Escola Timbira” teria que estar ligada a instrumentos formais do Estado168, pois para ser realizada efetivamente (tendo legitimidade para emitir certificados aos alunos) precisaria adequar-se a conteúdos mínimos nacionalmente reconhecidos como legítimos, se diferenciando em alguns aspectos da 167 “Esta política do SPI de preparo de lideranças não teve outros resultados que o reforço ou a legitimação do escolhido como liderança no trato com o branco. Não repercutiu no interior da comunidade. O aprendizado de uma habilidade escrita ficou, e continua em muitas aldeias, a cargo de missionários protestantes, já agora na língua indígena, até que a FUNAI passa a implantar nas aldeias um sistema de assistência, onde a escola é contemplada. Entretanto os Timbira continuaram analfabetos. Os que se destinguem, se alfabetizando, o fazem individualmente e com o intuito particular de conseguir salário, quer vindo a ser empregado da FUNAI, ou informante dos antropólogos ou monitor dos missionários” (CTI, 2000). 168 Segundo CTI (s/d, s/p), os órgãos parceiros do Centro de Trabalho Indigenista na realização da Escola Timbira são: Secretaria de Educação do Estado do Maranhão, Fundação Nacional do Índio, Ministério da Educação, Comissão de professores Timbira da Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira e o Grupo de Pesquisa Estado Multicultural e Políticas Públicas: as Políticas Indigenistas (UFMA). 154 “escola formal”: suas aulas realizam-se em módulos e é restrita a apenas alunos indígenas “Timbira”. Diante da preocupação da saída dos estudantes indígenas das aldeias para as cidades (onde o índice de repetência e evasão são muito significativos169), a “Escola Timbira” procurou contemplar os jovens indígenas com o ensino fundamental menor (1ª a 4ª séries) e o ensino fundamental maior (5ª a 8ª), através de dez módulos, que juntos somam uma carga horária de 3200 horas170. No período de minha participação nas atividades da Escola Timbira, a Grade Curricular era assim definida: 1. Estudos da Linguagem  Linguagem oral  Linguagem escrita  Sistema alfabético e ortografia  Leitura e escrita de textos pontuação  Análise lingüística 2. Matemática  Números e operações numéricas  Sistemas de medidas  Geometria  Introdução à estatística 3. Estudos da Sociedade e da Natureza  Cultura e diversidade cultural  Os seres humanos e o meio ambiente as atividades produtivas e as relações sociais  As diferentes formas de organização social  Processos históricos de formação social 169 Verificando-se também ali um índice acentuado de alcoolismo, prostituição e brigas (Ver SÁ, 2006). 170 Sobre a experiência do Ensino Médio da Escola Timbira não possuímos dados suficientes para um aprofundamento maior, porém soube, em 2008 por Augusto Nascimento (ex-funcionário do CTI), que no primeiro momento ela não atendeu a todos os alunos formados, devido a questões voltadas a recursos. 155 Para exemplificar os seus conteúdos, parece importante ressaltar que em muitos momentos os instrutores171 faziam referência a elementos das grandes cidades, o que indica, de certa forma, a construção de valores que poderiam ser conflitantes com os objetivos iniciais da Escola Timbira. Neste sentido a “Escola Timbira” não se diferenciava de outras no que se refere às violências simbólicas manifestadas através de parte das suas ações pedagógicas. Assim se referem Bourdieu e Passeron (1992, p. 21): A AP (ação pedagógica) é objetivamente uma violência simbólica, num primeiro sentido, enquanto que as relações de força entre os grupos ou as classes constitutivas de uma formação social estão na base do poder arbitrário que é a condição da instauração de uma relação de comunicação pedagógica, isto é, da imposição e da inculcação de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário de imposição e de inculcação (educação). Ao considerar os termos de Durkheim (1978, p.46), ainda pode-se perceber que: Bem longe de estarem em oposição, ou de poderem desenvolver-se em sentido inverso, um do outro – sociedade e indivíduo são idéias dependentes uma da outra. Desejando melhorar a sociedade o indivíduo deseja melhorar-se a si próprio. Por sua vez, a ação exercida pela sociedade, especialmente através da educação, não tem por objetivo, ou por efeito, comprimir o indivíduo, amesquinhá-lo, desnaturá-lo, mas ao contrário engrandecê-lo e torná-lo criatura verdadeiramente humana. Todavia, que “humanidade” seria essa buscada pela “escola”? Se por um lado individualiza os sujeitos na medida que o diferencia de seus pares, por outro o coletiviza, instrumentalizando-o para que ele se torne o representante de seus pares em outras situações de diferenciação e confronto. 171 Todos com terceiro grau completo. 156 5 – MIGRAÇÕES ALDEIA INDÍGENA-CIDADE: uma complexa rede de interpretações Situar os deslocamentos populacionais das sociedades indígenas (e seus segmentos) dentro de uma linha evolutiva é compreender muito pouco da sua dinâmica e da sua historicidade. Só a recuperação dos múltiplos eixos em que se movem e se concebem as culturas indígenas é que poderá permitir entender os movimentos migratórios como parte constitutiva destas sociedades. Guerras, deslocamentos sazonais, divisão de aldeias, medo de feitiçaria, a consecução de alianças matrimoniais, a busca por locais de troca mais favoráveis, etc são fatores de ordem cultural que evidenciam justamente a historicidade concreta das sociedades indígenas (OLIVEIRA, 1996a, p. 9, grifos meus). A citação precedente fornece elementos que indicam a complexidade do fenômeno que proponho analisar neste trabalho. Pois, sendo considerado constitutivo das sociedades indígenas também são intensificados pela situação de contato interétnico com “não-índios”. Neste sentido os movimentos migratórios envolvendo sociedades indígenas teriam determinadas características que ao serem percebidas adicionam critérios analíticos que ultrapassam as explicações superficiais que advogam serem estas o resultado simplesmente da situação de contato interétnico. É importante ressaltar que os grifos da citação servem para chamar a atenção para o fato desses processos migratórios serem operacionalizados por grupos ou indivíduos dentro de um contexto social maior, sendo influenciado por ele. Isso indica que, mesmo sendo importante a amostra, ou seja, o quantitativo de indivíduos que se deslocam, tratamos neste trabalho de compreender este processo pelas suas representações, já que estas envolvem tanto os indivíduos migrantes, como os mais “sedentários” física e culturalmente. Oliveira (1996a) destaca seis tipos particulares de movimentos migratórios em sociedades indígenas: migrações de trabalho, migração temporária, migração conduzida por instâncias e autoridades governamentais, migrações motivadas pelo tipo de organização social das culturas indígenas, migrações decorrentes de instituições e crenças dessas sociedades e movimentos messiânicos. Esses seis tipos se entrelaçam, mas pode-se evidenciar a predominância de algum deles em particular, dependendo da situação empírica sob análise. Os apontamentos até então sugeridos corroboram com a perspectiva de que não é suficiente pensar a migração de “índios” para cidades simplesmente como produto da situação de contato com “não-índios”. Certamente esse elemento não pode ser 157 desconsiderado, uma vez que se observa em campo uma certa “fetichização” da cidade, pelos “índios”. No entanto, em nosso caso particular de pesquisa, identifiquei que o atendimento à demanda indígena por determinados elementos da cidade (energia elétrica, certo nível de ensino, saneamento, atendimento à saúde, etc) não desestabiliza substancialmente o seu processo migratório, que pode-se caracterizar, segundo a classificação de Oliveira (1996a), como temporária, motivada por crenças e influenciada pela organização social do grupo e pela atuação estatal. É suficiente atentar que a intensificação de algum fenômeno só pode ser percebida efetivamente se houver algum tipo de mapeamento ou quantificação deste, para compara- lo. Mas neste caso, não há como comprovar que os deslocamentos de sociedades indígenas aumentaram ou diminuíram com a chegada dos colonizadores “não-índios”, apenas que esse contato culminou com uma redistribuição geográfica dessas sociedades, provocando também alterações em seus padrões culturais. Oliveira (1996a, p. 8) assim se expressa: Todas as culturas indígenas possuem uma história que antes da chegada dos brancos já as colocou em contato umas com as outras, instituindo redes de troca, com adoção e criação de elementos de cultura. Movimentos migratórios também ocorreram com intensidade, conduzindo sociedades indígenas para regiões com recursos ambientais muito diferentes dos existentes nos locais que anteriormente ocupavam. Entendido que constantes deslocamentos são elementos constitutivos das sociedades indígenas, pode-se inferir que a atuação do indigenismo oficial vem sendo, sob o pretexto do que Oliveira (1996a) chama de “pax colonial”, a de encapsular estas sociedades em espaços limitados. Essa atuação por um lado garante a posse de determinados territórios a essas sociedades, porém alimenta a popular idéia de que o lugar de índio é na aldeia, em contraposição ao lugar do não-índio, que seria a cidade. Nessa perspectiva é que pesquisas procuraram entender a situação de migração entre estes dois pólos distintos (aldeia-cidade), sendo que elas se dedicaram mais intensamente às “relações de trabalho” estabelecidas entre os “índios” que sem ter mais condições favoráveis para se manter na aldeia, se deslocavam em busca de trabalho na cidade. Como já expus, a pesquisa procura refletir sobre a situação dos “índios” que migram para centros urbanos com a finalidade de estudar. Neste sentido, se estar diante de um panorama que envolve questões que perpassam tanto as relações internas da sociedade 158 pesquisada, como o seu relacionamento com as alteridades. Porém, no que se refere a pesquisas sobre estudantes indígenas migrantes, há certa carência de trabalhos acadêmicos que se distanciam da dicotomia “etnografia da escola da aldeia” ou “da própria aldeia” versus ”pesquisas que centram o foco na atuação do Estado”. Sobre este contexto que pode- se chamar de “aflição bibliográfica”, coaduno com Paladino (2006, p. 7) ao expor parte dos dilemas que passou para construir sua tese: Na tentativa de encontrar bibliografia que tratasse da presença de indígenas nas escolas urbanas da rede pública, ou seja, no sistema não-diferenciado de educação, deparei-me com uma lacuna. Desde a década de 1980, vem constituindo-se no Brasil um campo de estudos sobre a escolarização das sociedades indígenas, o que abrange antropólogos, lingüistas e cientistas da educação, principalmente. Contudo, observo nesses estudos duas abordagens predominantes. Por um lado, os que centram seu foco na atuação do estado e das agências missionárias, nas ideologias que as orientam, nas metodologias e nas pedagogias implementadas com os índios, nos conhecimentos e nas condutas impostas, geralmente abordando-as como empresas monolíticas de dominação e desconsiderando a atuação dos índios, suas representações e contestações. Por outro lado, os estudos etnográficos que se reduzem a um recorte espaço-temporal fechado (uma escola numa área indígena determinada), deixando de lado os múltiplos atores, eventos, espaços e temporalidades envolvidos nas experiências escolares dos índios. A situação de migração que pesquiso entre os Ramkokamekrá-Kanela tem demonstrado que esse tipo de polaridade parece ser fictícia e que, ao contrário, elementos de diversas ordens devem ser considerados se é intento compreender essa complexa problemática. No entanto, é necessário que algumas ressalvas sejam feitas, pois as situações etnográficas são peculiares e diferentes entre si, o que leva à compreensão de que mesmo sendo possível esboçar certas comparações entre nossa pesquisa e as constatações de outras, é necessário discernir que trata-se de espaços sócio-culturais diferenciados e com agentes indígenas que lidam de maneira especifica com a situação experimentada na cidade. Passo então a tentar expor algumas peculiaridades da relação interétnica no espaço etnográfico dessa pesquisa. 5.1 – Barra do Corda: histórico de tensões interétnicas Parece ser um dos principais dilemas da Antropologia o desafio de se fazer “pesquisa em casa”, pois é patente a necessidade de exorcizar determinados preconceitos, o 159 que nem sempre é possível. Essa tarefa, como coloquei na segunda parte desse trabalho, tem toda uma pertinência, pois dá base para conclusões, comparações e constatações muitas vezes criadas pelo pesquisador, ou seja, pela forma de olhar do pesquisador. Esses dilemas perecem ser sempre recorrentes em situações de pesquisa em geral, porém podem ser agravados quando o pesquisador sempre fez parte da situação social que pesquisa, mantendo relações diretas com os agentes que por motivos diversos vieram a se tornar seus “interlocutores”. O reconhecimento da existência de certos preconceitos latentes ao pesquisador, antes de serem considerados negativos ou danosos, dá outras formas de compreensão do campo pesquisado. O desenvolvimento de um bom trabalho não estaria assim determinado simplesmente pelo estabelecimento de “boas relações” em campo ou pela necessidade de se fazer emergir uma falsa modéstia do pesquisador para com o pesquisado, onde o primeiro se furtaria de certos pensamentos e pré-noções em favor de uma objetividade impossível. Uma passagem, se bem compreendida, pode evidenciar bem a complexidade dessa situação. Na introdução feita por Raymond Firth ao clássico “Um diário no sentido estrito do termo” (MALINOWSKI, 1967, p. 31, grifo meu) lê-se: Quando Hortense Powdermaker me repreendeu por escrever a introdução, parte de minha resposta foi: “Ao ler os Diários, considerei-os fascinantes porque conhecia bem Malinowski. Outras pessoas que não o conhecem tão bem os acham agora desconcertantes, tediosos ou uma boa munição contra o mito de Malinowski. O que me chama a atenção é que, quando toda a poeira se assentar e tivermos partido, os Diários podem, com o auxílio dos materiais contidos em resenhas e comentários, ajudar a elucidar um pouco mais para as futuras gerações de antropólogos alguns aspectos da personalidade complexa de Malinowski. Isso pode significar mais no futuro do que significa hoje, embora já haja uma tendência distinta no sentido de tentar compreender o que um antropólogo produz a partir de sua personalidade e de suas relações com as pessoas que estuda. O que ainda necessita ser elaborado é que o antropólogo não precisa – embora em geral o faça – gostar do ‘seu’ povo para realizar um bom trabalho”. Fica patente que toda a discussão travada em no presente trabalho diz respeito às sociedades indígenas. Têm-se assim os dilemas do fato de o pesquisador ser de uma região onde as representações sobre os “índios” não são, em geral, positivas. Certamente que essas representações, além de outras, tem influência naquelas desenvolvidas pelo pesquisador. O que se torna necessário é tentar relativizá-las. 160 Essa breve apresentação, longe de ser um pedido de desculpa antecipado, é uma maneira de tentar amenizar o possível peso das interpretações que virão a seguir, ao tratar do contexto interétnico na cidade de Barra do Corda-MA. No atual caso de pesquisa tem nos preocupado a migração de estudantes indígenas Ramkokamekrá-Kanela para a cidade de Barra do Corda - MA. Esta cidade, como coloca Brandes (1994), foi fundada em 03 de maio de 1835 por Manuel Rodrigues de Melo Uchoa. Teve por primeiro nome a designação “Povoado Missão”, que foi elevado, pela Lei nº 343 de 31/05/1854, à categoria de “Vila de Santa Cruz da Barra do Corda”, culminou, em 28/06/1984 pela lei estadual nº 67, sendo elevada à categoria de cidade recebendo o nome de Barra do Corda. Atualmente localiza-se a aproximadamente 462 km de distância da capital do Estado do Maranhão, que em linha reta corresponde a 350 km172. Mapa 5 - Barra do Corda no Maranhão (In: Image:Maranhao MesoMicroMunicip.svg, own work) 172 “O território do município de Barra do Corda, o 6º do Estado em tamanho, com uma área de 14.058 quilômetros quadrados, está localizada na Zona Fisiográfica do Alto Mearim, Microrregião 039, limitando-se com os municípios de Joselândia e Esperantinópolis ao Norte; Mirador ao Sul; Tuntum a Leste e com Grajaú a Oeste. A sede está situada com as coordenadas geográficas entre 4º, 48’ 32” e 6º, 28’ 21” de Latitude Sul e entre 44º, 17’ 26” e 45º, 19’ 17” de Longitude W. Gr., distando da Capital do Estado 345 quilômetros rumo s.s.º em linha reta. Altitude de 81 metros. O clima caracteriza-se como tropical continental, com fases definidas: inverno e verão. A bacia hidrográfica é formada por pequenas lagoas, riachos e rios, sendo os mais importantes o Corda e o Mearim, que cortam o município” (BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, 1985, p. 31). 161 Barra do Corda, também conhecida como “Princesa do Sertão”, tem a maior extensão territorial dessa Microrregião, chegando a possuir uma área de aproximadamente 7.962,428 km² e uma população estimada em 80.000 habitantes173. Nesta cidade a relação entre índios e não-índios é intensa e nem sempre amistosa. No que se refere à pesquisa em particular é pertinente ressaltar um dado que pode indicar o inicio das relações interétnicas e tensas entre “não-índios” e os Ramkokamekrá- Kanela na área que hoje é Barra do Corda. Durante o mês de janeiro de 2009 foi realizado em Barra do Corda um curso de magistério para os professores que lecionam nas aldeias indígenas do Estado do Maranhão. Assim se encontravam nesta cidade diversos “índios”, inclusive aqueles que naquele momento lecionavam na Aldeia Escalvado: Ary Korampey Canela e Cornélio Piapit, os quais já haviam experimentado “estudar na cidade”. Em certo momento do curso, no qual eu participava como observador, discutia-se sobre a relação entre “índios” e “não-índios” em Barra do Corda. Neste momento Ary Korampey pediu a palavra e afirmou que “o pessoal de Barra do Corda não sabe agradecer nós [os Ramkokamekrá-Kanela]”. Tal afirmação causou surpresa naquele momento pelo fato de Ary não ter explicado o porquê de Barra do Corda “dever” algo aos Ramkokamekrá-Kanela. Ao conversar com ele particular e informalmente ele me explicou que o fundador de Barra do Corda só descobriu sua localização privilegiada e propicia à fundação de uma vila/povoado por causa deles [os Ramkokamekrá-Kanela] que conheciam a região e continuou dizendo que os Tenetehara- Guajajara só não tomaram a cidade de Barra do Corda dos “não-índios”, em 1901, porque estes tiveram a ajuda dos Ramkokamekrá-Kanela. Em seus termos destaco: “se não fosse nós [os Ramkokamekrá-Kanela] ninguém tinha achado esse lugar” e “se não fosse nós vocês [os não-índios] tinham perdido a briga com os Guajajara. É por isso que os Guajajara não gosta da gente”. Seu depoimento tinha uma intenção: que fosse reconhecido “nos livros” a atuação, segundo ele, decisiva dos Ramkokamekrá-Kanela nos eventos que envolvem a cidade de Barra do Corda. Posicionamento semelhante foi exposto por Raimundinho Paat-Tset (“Beato” – professor índio da Aldeia Escalvado) na tarde de 31 de julho de 2008, enquanto ministrava um curso de capacitação da Adeia Escalvado. 173 Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Barra_do_Corda. 162 (...) o povo da Barra do Corda conhece bem os índios Canela, inclusive os mais idoso que mora lá na década de 1950 pra cá ou até 1940 tem pessoas ainda, mas como você acabou de colocar, que é por falta de educação que estas pessoas não entendem que os índios participou deste evento com religioso. Então, o religioso tem todo o direito de colocar no livro didático pra apresentar os índios Canela, que eles também os índio que lutou a favor da Barra do Corda eu acho que isso; nem os representantes da Barra do Corda ali, pode ser o prefeito, pode ser o deputado, o vereador ninguém estuda sobre os índios. Tudo é pra ele mesmo como eles falam muito só dos projeto, não fala nada sobre a cultura indígena que também atua dentro da Barra do Corda. Eu acho que ninguém não tinha experiência para trabalhar com isso, seria uma pessoa de fora se fosse um americano, se fosse uma pessoa que se dedica mais no trabalho da antropóloga e pode aprofundar mais um pouco a história do povo Canela. A história da Barra do Corda. Por que a Barra do Corda hoje tem muito tempo quem vive lá sempre descriminando os índios, sempre, nunca decide, nunca se empenha para se declarar mais ao povo indígena, sempre não, é só Barra do Corda que lutou contra Alto Alegre é só Barra do Corda, então acho que por ai ninguém não entende. Até que chega ao ponto, chega a ameaça, os próprios fazendeiros da Barra do Corda querem talvez algum dia tomar a nossa terra, nossa reserva talvez um dia pode acontecer, porque na história não tem lembrança, não tem como lembrar o povo Canela que ajudou Barra do Corda e fez tranqüilizar o povo da Barra do Corda que eu sei bastante bem que eu vi história demais, mas no livro didático eu nunca vi história dos Canela, nem um guerreiro que ficou contra os parentes. Tem sempre os parentes que tá no livro com a matança de criança, com a matança dos padres, acho que só isso ai que até agora ta aparecendo. Todavia, se não estão em livros didáticos, pode-se localizar referências a esses momentos e suas devidas considerações em outros tipos de produção. Em Ferreira (1959, p. 68) lê-se que; Imbuído de grande civismo, com todos os sacrifícios, inclusive da própria família, Melo Uchoa embrenha-se na mata, onde permanece por muito tempo sem dar noticias à família, acompanhado do seu escravo e, mais tarde, por alguns índios canelas, chamados “mateiros”. Melo Uchoa certamente margeando o rio Corda até a sua embocadura, veio ter ao local que escolheu para ser fundada a nova cidade. Citando Willian H. Crocker, Brandes (1994, p. 37), em seu livro intitulado “Barra do Corda na história do Maranhão”, registra que os, como denomina, “Canela”: De fato, participaram nas batalhas da Balaiada (os historiadores maranhenses não registraram os fatos), lutaram contra os Gamelas (1850) e participaram no combate aos Guajajaras, que culminou com a prisão do chefe Caboré, na denominada Hecatombe do Alto Alegre. Percebe-se assim a atuação dos então Ramkokamekrá-Kanela na configuração social da atual cidade de Barra do Corda, com a qual vem mantendo intensas relações. As 163 relações se dão em diversos níveis, pelos quais perpassam também aspectos que contribuem para as representações que estes “índios” fazem da cidade. A dinâmica da relação entre “índios” e “não-índios” na cidade de Barra do Corda se dá de maneira constante, intensa e diversa, principalmente por ocasião de dois eventos históricos ainda muito lembrados pelos agentes. Tratam-se dos já mencionados “Evento de Alto Alegre” e “Massacre dos Índios Canela”, respectivamente datados no início do século XX (1901) e segunda metade do mesmo século (1963). Pelo que observei as representações correntes sobre os “índios” da região variam muito, principalmente por causa desses eventos. Há por parte dos “não-índios” uma tendência a manter durante a primeira metade do século XX uma relação mais amistosa com os Kanela, já que estes teriam prestado serviço ao “não-índios” em 1901, atuando contra os Tenetehara-Guajajara174. Esta sofreu mudanças decorrentes dos movimentos ocorridos entre os Kanela nos anos 1960 e que teve por conseqüência o seu deslocamento, mesmo que temporário, da região que ocupavam. É importante fazer essa contextualização justamente para deixar claro que não se trata simplesmente da relação entre indivíduos “índios” e “não-índios”, mas também de sociedades indígenas diferentes, que vêm atuando de maneira peculiar no contexto histórico da região, o que gera múltiplas a construção de variadas representações e formas de caracterizar a relação de contato interétnico. A alteração nas representações sobre os Kanela feitas pelos “não-índios” da região de Barra do Corda decorrente do “movimento messiânico de 1963” teve implicações quanto às relações desses “índios”s com os indivíduos na cidade, o que pode ter tido influência nos deslocamentos para estudar fora da aldeia nesse período. Raimundinho Paat-Tset (“Beato” – professor índio da Aldeia Escalvado), em julho de 2008, assim se expressou: (...) na época quando eu entrei lá na cidade eu achei que foi uma das pessoas que primeira vez entrando lá no mundo co cupê. Porque na época todo mundo não quer entrar lá na cidade. Não importa se você tem fábrica, tem açúcar, café, se você tem tudo lá, mas ele não importava sabe, só fazia mais alimento básico, farinha, mandioca, inhame, batata, os que consigo aqui dentro (da aldeia) né. Então, quando eu parti pra lá tentando buscar alguns conhecimentos porque ameaça foi tão grande, acaba a raça dos povo indígena, aqui foi tão horrível, todo mundo comenta. Eu não sei se tu alcançou a época que teve a revolução, você ainda garoto (...), e aí ninguém se interessou por isso, até próprio Aristides e 174 Lê-se em Carreiro (2000, p. 85) que “a relação entre brancos e índios Ramkokamekrá (Canela), naquela cidade, é mais amistosa do que os Tenetehara (Guajajaras), pois os Canela preservam seus ‘hábitos externos’ mais do que os Guajajara”, 164 Raimundo Roberto tinha medo de entra na cidade, porque lá todo mundo tem medo do outro, ninguém sabe quem é bom, quem é ruim. Ai eu, já eu como criança eu entrei lá no meio, não sei se vou escapar, se vou voltar, porque o mundo lá é tão diferente que a nossa, você não morre de cobra, não morre de onça, mas própria gente mata outro, acaba com a vida do outro. Então, eu fiquei ali, naquele ponto ali, sempre como amigo de todos, todo mundo me conheceu como estudante, então eu sou amigo de todos. Eu não sei se os outros fala mal de mim ali atrás, mas na minha frente eu acho que todo mundo conheceu como Kanela que estuda na Barra do Corda, isso que passou por mim. Desse modo, há ainda hoje em Barra do Corda por parte dos “não-índios” a idéia de que os Kanela, teriam preservado mais sua cultura e seus costumes que os Tenetehara- Guajajara. Essa visão geral foi ilustrada por Ferreira (1959, p. 75) ao afirmar que “os canelas ainda conservam alguns dos seus costumes primitivos, enquanto que os guajajara perderam as suas tradições”. Aqui não se trata de concordar ou não com essa constatação, mais apenas de demonstrar que esse tipo de representação ocorre e que é também reproduzida pelos próprios “índios”. Tem-se assim uma representação mais geral que pode ser decorrente da proximidade física dessas diferentes sociedades indígenas com o meio urbano, o que tem que ser diferenciado da proximidade que ambos mantém com os processos de “urbanização”. Ao citar Wirth (1979, p. 93-94) Paladino (2006, p. 158) atenta para a diferenciação entre proximidade com o/um “meio urbano” e com o que denomino “urbanização”, que poderia ser refletida pela aquisição de determinados elementos que a priori não seriam considerados como fazendo parte da aldeia: A urbanização já não denota meramente o processo pelo qual as pessoas são atraídas a uma localidade intitulada cidade e incorporadas em seu sistema de vida. Ela se refere também àquela acentuação cumulativa das características que distinguem o modo de vida associado com o crescimento das cidades e, finalmente, com as mudanças de sentido dos modos de vida reconhecidos como urbanos que são aparentes entre os povos, sejam eles quais forem que tenham ficado sob o encantamento das influências que a cidade exerce por meio do poder de suas instituições e personalidades, através dos meios de comunicação e transporte. Neste sentido, a constatação de Paladino (2006, p. 158) de que “a concepção da aldeia como um espaço fechado com nenhum ou escasso relacionamento com a cidade não se sustenta no caso dos Ticuna” parece próxima da que tenho observado entre os Ramkokamekrá-Kanela. As considerações sobre a cidade de Barra do Corda, mesmo esta não reunindo todas as características das grandes cidades brasileiras, são importantes, já que é marcada pela 165 heterogeneidade de sua população, principalmente no que se refere à presença significativa de “índios”. 5.2 – Do atendimento logístico: diversidade cultural e estudantes indígenas migrantes em Barra do Corda A educação escolar que é oferecida na cidade de Barra do Corda pode ser apontada como um dos elementos que, no geral, contribui para a saída de “índios” de suas aldeias em direção àquela cidade. Assim, a “escola” aparece com significativa influência neste contexto, sendo importante elemento propulsor das migrações aldeia-cidade. Entendo que essa justificativa é apenas a mais diretamente acionada pelos agentes, pois outras, de outras ordens, também agem, como veremos adiante. O processo de deslocamento de estudantes indígenas para centros urbanos, também pode ser relacionado às demandas criadas pelos “processos de urbanização” que ocorrem nas aldeias e tem sua dinâmica significada principalmente pela atuação das sociedades indígenas envolvidas, as quais a partir de seus repertórios próprios atuam na situação de contato. Mesmo assim, tem-se que considerar que na situação que investigo em Barra do Corda verifica-se a intensa relação entre “estudar na cidade” e “ser alguém na vida”, tanto por “índios” como por “não-índios”. Nesse campo, as discussões que passam a ter relevância para os agentes envolvidos dizem mais respeito às questões logísticas e assistenciais que outras de cunho mais étnico, pelo menos explicitamente. Mesmo assim, em Barra do Corda, contrariando determinações legais175, as ações do Setor de Educação Indígena176 da Secretaria de Educação Municipal177, não toma como uma de suas atribuições a manutenção dos “índios” que estudam nessa cidade. Como afirmam seus funcionários178, “este setor é responsável apenas pela educação escolar das 175 O Plano Nacional de Educação de 2001 coloca que é dever do Estado a atenção aos indígenas que estudam fora de suas aldeias. 176 Este setor tem a obrigação de atender os Ramkokamekrá-Kanela, os Apanjêkrá-Kanela e os Tenetehara Guajajara. 177 Atualmente localiza-se no bairro “Centro” da cidade de Barra do Corda – MA. 178 Para algumas informações considerei por bem não citar o nome do informante, por questão de sigilo, diferentemente de outras situações em que tive aberta permissão do informante. Para maiores detalhes sobre a atuação destes agentes em Barra do Corda. Ver Sá (2006, p. 47 – 63) 166 aldeias”, e acrescentam: “não tem como dar conta nem das escolas da aldeia, imagina se fossemos se preocupar com esses que vem pra cidade, esses nem querem mais ser índios”. Percebe-se assim um diagnóstico dos funcionários que coadunam com parte das representações da população local. Mas não só. Estes também acusam o Governo do Estado pela falta de pessoal para trabalhar com os “índios”, pois como “são muitas as aldeias, não tem como quatro funcionários dar conta”. De modo geral, os gestores atuam inspirados no paradigma da “igualdade”. Uma das gestoras afirmou que “os índios têm que ter aquilo que os não-índios têm, porque isso é bom. A forma como vivem é desumana”. A afirmação revela compreensão superficial do “humano” e do “bom”, associados aqui de modo equivoco aos valores e padrões de vida dominantes dos “não-índios”. Problematizando essa discussão, Semprini (1999, p. 93) lembra como o paradigma da igualdade se mostra perverso, pois: (...) alimenta a utopia universalista e sua busca legitima as necessidades liberais. Os defensores da diferença objetam que a igualdade – assim como o universalismo – nada mais é que um grande equívoco. Ela não engloba o conjunto dos cidadãos porque exclui vários indivíduos ou grupos, que não tem acesso equalizado ao espaço social como os demais. Além disso, ela é somente uma igualdade ilusória, pois mesmo quando está estendida a todo o corpo social, ela refere-se apenas aos direitos formais, administrativos, legais do indivíduo e não se aplica às desigualdades econômicas, culturais ou sociais. O respeito à diversidade étnica das sociedades indígenas envolvidas nos processos de educação escolar não pode abster-se dessas demandas que, mesmo consideradas exteriores, são necessárias à sua atuação nas relações que desenvolvem com a sociedade envolvente. Neste sentido, é pertinente atentar para um aspecto que identifiquei entre os Ramkokamekrá-Kanela. Estes, por vezes, também outorgam importância à educação escolar que, se distanciando do respeito à diversidade, ensinariam, sobretudo, as estratégias para que esses sujeitos melhor se expressassem frente aos “não-índios”. Para o caso dos Ticuna, Paladino (2006, p. 126) comenta: (...), alguns relatos apontam para a valorização dos professores de “antes” que eram “exigentes”, que lhes impunham expressar-se bem em português, que se mostravam atentos aos seus erros e os corrigiam para que escrevessem bem, e os opõem aos atuais que não “exigem” o bom desempenho do português. Isso o vinculam a um desinteresse dos professores e a uma nova modalidade de ensino e 167 de compromisso com seu papel que é percebido como de menor qualidade com respeito ao passado. De forma diferente, professores das escolas das cidades da região que têm alunos ticuna me explicaram sua condescendência em relação ao desempenho daqueles com o português, em base da sua compreensão da dificuldade que representa a aprendizagem de uma língua tão diferente da materna. Também responde, segundo me informaram, a uma diretiva enviada pela SEDUC para as SEMEDs quanto à forma de avaliar as produções dos alunos indígenas nas escolas da rede pública, no sentido de que foram orientados para considerar o conteúdo e não a forma que escrevem os alunos indígenas. Devem, assim, avaliar o que estes tentam ou querem comunicar e não como o fazem, respeitando os erros e não corrigindo a gramática dos textos produzidos por eles. Se essa diretiva foi feita para contemplar a diversidade dos alunos que freqüentam as escolas urbanas da região, não são consideradas as suas expectativas nem as dos parentes a respeito de “querer aprender bem o português”. No “1º Fórum Sobre a Educação Escolar Indígena Canela”, realizado na Aldeia Escalvado em dezembro de 2004, as preocupações voltaram-se para os problemas da falta de assistência econômica na cidade para que os estudantes pudessem se manter. Duas falas são ilustrativas: “por causa da falta de poré179 apenas um dos estudantes Apanjêkrá permaneceu na escola da cidade até o final do ano” (Nelton Apanjêkrá) e “só metade dos Kanela terminou o ano” (José Pires Canela - liderança Ramkokamekrá-Kanela). Atento que questões em torno da “assistência precária” na cidade aos estudantes indígenas serão recorrentes até o final deste trabalho, porém serão analisadas sob diferentes óticas, já que se tratam de um elemento entre vários a serem considerados. Na relação interétnica que se estabelece no contexto migratório aldeia-cidade, além da dificuldade logística, a qual expõe os estudantes indígenas a inúmeras situações de constrangimento, há as diferenças culturais, que acirram os mecanismos da interação. Diante da omissão da Secretaria de Educação Municipal de Barra do Corda – MA, os “índios” que estudam fora das aldeias recorrem a outras instâncias para sua manutenção. Durante muito tempo em Barra do Corda os “índios” da região foram assistidos pelos núcleos da Fundação Nacional do Índio instalados na cidade. Essa situação sofreu alterações com a retirada de funcionamento, em 2007, de parte dessas instituições. Antes dessas alterações, a conjuntura da FUNAI local poderia ser desenhada da maneira que segue180: 179 Termo utilizado para se referir a dinheiro. 180 Ver Sá (2006, p. 66-68). 168 Em Barra do Corda, localizam-se três núcleos da FUNAI: “Núcleo de Apoio Local Mardônio Amorim Pompeu - NALMAP”, “Núcleo de Apoio Local da Funai - NALF” e “Núcleo de Apoio Local de Kanela - NALK”. Aos dois primeiros núcleos estão jurisdicionados os Tenetehara-Guajajara e ao terceiro os Ramkokamekrá-Kanela e os Apanjêkrá-Kanela. O “NALK” localiza-se no centro da cidade, próximo ao Sítio Maranata e é chefiado, atualmente, por um “não-índio” chamado Raimundo Martins Franco. São jurisdicionados a este núcleo os povos Ramkokamekrá-Kanela e Apanjêkrá- Kanela. A Srª. Maria Lúcia Rocha de Araújo (“não-índia”) é a responsável pelas questões referentes à educação escolar desses povos. O “NALMAP” localiza-se no Bairro Trezidela e é chefiado por um indígena Tenetehara-Guajajara chamado Oswaldo Guajajara. Este núcleo responsabiliza-se pelo atendimento de uma parcela do povo Tenetehara-Guajajara daquela região, incluindo os indígenas que estudam na cidade de Barra do Corda. O “NALF” localiza-se no centro da cidade e é chefiado por um Tenetehara- Guajajara chamado Dilamar Pompeu. Presta atendimento à outra parcela do povo Tenetehara-Guajajara da mesma região. A Srª. Erismar Constâncio da Cruz (índia Timbira) é a responsável pelo setor de educação escolar deste núcleo. Diferente dos Ramkokamekrá-Kanela e Apanjêkrá-Kanela, os estudantes Tenetehara-Guajajara não possuem “casas de estudantes” em Barra do Corda, mas contavam com parentes já instalados na cidade. Essas hospitalidades, geralmente, são zonas periféricas e marginalizadas pela população de Barra do Corda. O que era comum aos três Núcleos dizia respeito ao fornecimento de material didático e fardamento escolar, ainda que de forma precária. Outra instância oficial que foi criada em Barra do Corda e que também poderia assistir esses estudantes migrantes foi a chamada “Secretaria Municipal de Assuntos Indígenas”, a qual nunca chegou a funcionar satisfatoriamente. 5.3 – Estudantes indígenas migrantes: representações e identificações Pra eu estar nesta mesa, eu tenho a consciência e a convicção de que sou fruto de todos os processos e somatórios das experiências vivenciadas pelos meus, pelos nossos avós que se fizeram marchar em prol de suas sobrevivências, em nome da catequese, da civilização e da própria negação da identidade étnica. E hoje estou aqui falando a língua do colonizador para estabelecermos uma interlocução entre nós, os índios e não-índios (TAUKANE, 1998, p. 30). A citação precedente configura bem a discussão que tratarei agora, pois refere- se ao desafio de os “índios” apreenderem os códigos dos “não-índios” e ao mesmo tempo manterem-se como sociedades específicas. Antonio Cacrose Canela181, em julho de 2008, 181 É indígena Ramkokamekrá-Kanela e chefe do setor de atenção à saúde desta sociedade. Durante muito tempo estudou em escolas na cidade de Barra do Corda – MA. 169 sintetizou este dilema ao dizer que “é necessário aprender as coisas do branco, mas não do jeito que eles querem”. Na cidade de Barra do Corda pode-se perceber que a escola, mesmo entendida como uma instituição que tem “o poder de fazer crer” (BOURDIEU, 1989), não consegue impor seus valores de forma hegemônica e unilateral aos “índios”, pois há resistências por parte destes. Ao reivindicar práticas pedagógicas nos moldes da “escola regular”, os “índios” também buscam se munir de meios para resistir e manter suas alteridades. Uma de suas motivações para estudar fora da aldeia está associada à busca por condições de atuação no espaço interétnico urbano, o que se converteria em favor de sua comunidade. Segundo Ivam Polgatê Canela, a escola pode ser um veículo para “auto-determinação” dos “índios”, pois pode abrir possibilidades e estratégias para que cada sociedade (re)crie à sua maneira formas de educação que mais se coadunem às suas demandas. Quando Ivam Polgatê afirma que “só depois de aprender a escrita de vocês é que posso fazer uma escrita diferente, nós índios somos diferentes”, expressa que há a “necessidade” de educação escolar, que mesmo imposta por um Estado-Nação, é re(significada) e passar a ser percebida como uma alternativa de se afirmar frente a alteridade. Por parte de “não-índios” diretamente ligados à questão escolar na cidade (diretores de escolas, por exemplo) é possível observar a negação da existência de estudantes indígenas na cidade. Em contrapartida, reconhecem a existência de sujeitos que são identificados como “diferentes” do restante da população, porém não seriam reconhecidos como “índios”, já que estes estariam nas aldeias. Essas tensões nas representações e definições já foram observadas em Barra do Corda por Carreiro (2000, p. 81-82): Os elementos culturais podem entrar no processo de definição, mas eles não são o determinante. Isso remete-nos a pensar no caso dos vários grupos indígenas, que vivem no Maranhão, muitos deles no centros urbanos, já há muitos anos tendo contatos com a dita “cultura branca”. Esta é, por exemplo, a situação de Barra do Corda, onde se vêem, todos os dias, índios em supermercados, lojas de roupas, clubes de dança, bares, festas, etc., em suma, vivendo como se fossem partes da dita “sociedade branca”. Para muitas pessoas daquela cidade, com as quais tive oportunidade de conversar, a explicação corrente usada pelos moradores, é: ‘eles não são mais índios, não possuem mais a cultura do índio’. Os estudantes indígenas em Barra do Corda, por vezes, tentam camuflar sua “identidade indígena”, já que afirmam que na cidade “tem que obedecer a lei do cupê”. Um 170 caso que presenciei é ilustrativo. Cristiano Apanyêkrá, ex-estudante indígena em Barra do Corda, durante a realização da “Punga” (2006) negou ser “índio” diante do insulto de um dos seguranças (“não-indígena”) do evento que afirmou: “cachaça é coisa de índio”. Nesse contexto, Cristiano afirmou: “eu sou branco”. No mesmo evento, quando ocorreu um princípio de confusão182 entre “não-indígenas” este disse: “quem briga, se a briga é de cupê, cupê resolve”. Percebe-se que a “fronteira” é acionada dependendo da situação e das possíveis conseqüências da identificação. No exemplo citado, seria “negativo” ser associado a cachaça, já no momento posterior se torna “positivo” não ser associado a brigas. O estereótipo local acerca do que seria o “índio verdadeiro” refere-se àqueles que mantêm-se nas aldeias. Assim, a definição, feita por alguns “não-índios”, de “índio verdadeiro” não englobaria aqueles se deslocam para os centros urbanos. Os locais de Barra do Corda afirmam que os estudantes indígenas são “integrados”, o que equivaleria a dizer que “não são mais índios”. Porém, não são considerados iguais aos sujeitos não-indígenas. Neste ínterim, é importante ressaltar que mesmo ao enquadrar, inconscientemente, os “índios” nas etapas sugeridas por Ribeiro (1982) e reproduzidas no Estatuto do Índio (1973), onde teríamos desde “índios isolados” até “índios integrados”, não o tiraria a sua “indianidade” ou sentimento de pertencer a uma sociedade especifica. Atente-se que o termo “índio” permanece. Apontamentos da suposta “perda da indianidade” dos “índios migrantes” também aparecem em discursos de outros funcionários das escolas, que advogam que estes sujeitos “já não são tão índios, a não ser na aparência, pois já estão sem vergonha, igual aos brancos”. Esta representação do “índio” perder sua identidade na cidade parece associada à imagem do “bom selvagem”, sendo que, fora desse estereótipo o “índio” deixaria de sê-lo. Morar na cidade é, geralmente, entendido como uma negação da “indianidade”, que é em parte uma idéia incorporada pelos próprios “índios”, que, não só nas aldeias, mas principalmente na cidade, passam por momentos de tensão, momentos liminares em que se busca flexibilizar seu “ethos indígena”. Esta atuação ocorre em diversos momentos, principalmente diante de conflitos abertos. 182 Um “não-índio” conhecido de Cristiano estava envolvido. 171 As interdições da BR 226, por parte de alguns Tenetehara-Guajajara, são episódios nos quais fica evidente a “fronteira” entre “índios” e “não-índios” em Barra do Corda, é quando o “conflito” aflora. O resultado é o aumento da discriminação negativa em relação aos indivíduos associados aos “índios”. Quanto aos estudantes indígenas migrantes, geralmente retornam para as aldeias em momentos mais tensos. A reprodução na escola da discriminação negativa e as possíveis represálias, conseqüência da exacerbação do preconceito são apontadas, pelos Ramkokamekrá-Kanela, como uma das causas da desistência, evasão e repetência escolar na cidade. Mesmo sem ter participação nos episódios da BR 226, os Ramkokamekrá-Kanela relatam sofrer retaliações, pois os regionais nesses momentos distinguem menos ainda os “índios” da região. A relação entre “índios” e “não-índios” é muito complexa e acirra-se quanto mais próximos estão um do outro, como em Barra do Corda, onde essa “fronteira” é erguida também nas mais variadas relações do cotidiano. Nas escolas, onde há uma proximidade mais intensa entre “índios” e “não-índios”, é o lugar em que mais se evidencia as clivagem. A disposição dos alunos na sala de aula demonstra isso, pois geralmente os estudantes indígenas ficam reclusos em um dos cantos da sala. “Os cupê não se aproximam dos índios”, afirmou Hélton Antwá Canela. As observações que fiz em salas de aula de escolas em Barra do Corda onde estudavam os Ramkokamekrá-Kanela demonstraram que as conversações também, geralmente, só ocorrem intra-índios, o que provoca certa indignação por parte de alguns professores que, pressupondo que estão zombando deles, os “estimulam”, forçosamente, a falar em português. Ora, os “índios” resistem a falar em português quando estão apenas entre eles, pois mesmo sentindo a necessidade de aprender o português, têm consciência de que a língua materna é o elemento que os caracteriza e os evidencia como diferentes etnicamente. Falar a língua materna entre o que chamam de “parentes” é prerrogativa dos Ramkokamekrá-Kanela na cidade, foi o que afirmaram. Outros momentos tornam explícita a segregação dos estudantes indígenas na cidade. Quando os docentes pedem que os alunos formem equipes para trabalhos em grupo, os “índios” precisam se agrupar entre si, pois os “não-índios”, geralmente, os rechaçam. Segundo Elias Pený Canela, nestes momentos o distanciamento se manifesta de forma mais evidente, já que não são aceitos para formar equipes com os “não-índios”. Essa aversão é 172 entendida de maneira peculiar: para os Ramkokamekrá-Kanela os “não-índios” não aceitam a presença dos “índios” nos grupos por preconceitos, já representam a sua “recusa” de interagir e formar grupo apenas com os “parentes” como forma de “manutenção cultural”. É corriqueiro entre os jovens, principalmente, no período escolar, pôr “apelidos” uns aos outros. Em Barra do Corda, os “índios”, invariavelmente, são denominados “cumedor de sapo”, “caboco” ou “cumpadi”. O ato de “apelidar” desta maneira não é direcionado a um sujeito específico, mas trata-se de um termo que serve para depreciar e estigmatizar os sujeitos das sociedades indígenas. Cabe distinguir, nesse caso, as categorias que são utilizadas pelos “não-índios” para se referirem aos índios em momentos de trégua: “caboco” e “cumpadi”, diferentemente daquela que é utilizada nos momentos de conflito aberto: “cumedor de sapo”. Outras são utilizadas corriqueiramente para se referir ao grau de indianidade: aos Apanjêkrá-Kanela referem-se como “índios de verdade” em contraposição aos Tenetehera- Guajajara que já teriam “perdido a cultura”. Os Ramkokamekrá-Kanela são então assim identificados como prestes a perder a cultura, mas que ainda a mantém. Essas representações perpassam o universo indígena de modo a influenciar as suas próprias. 5.4 – Os Ramkokamekrá-Kanela e as experiências na(da) cidade: trajetórias e representações Observei que as experiências na(da) cidade entre os Ramkokamekrá-Kanela foram intensificadas pela presença de determinadas agências estatais, principalmente no início do século XX. Destaco nesse momento a atuação do SPI183 e da educação escolar promovida por este órgão, que teve importante papel na atual configuração das relações dessa sociedade indígenas com os “não-índios”. É deste período que datam as primeiras informações sistematizadas das experiências de educação escolar formal para os Ramkokamekrá-Kanela, tanto nas referências de pesquisadores como nas lembranças dos “índios”184. 183 “O Serviço de Proteção aos Índios está representado em Barra do Corda por intermédio de uma Ajudância, cujo início de atividade data, aproximadamente, de 1920” (FERREIRA, 1959, p. 75). 184 Ver Crocker (1990). 173 As informações que obtive sugerem que foi durante a atuação das escolas mantidas pelo SPI que os Ramkokamekrá-Kanela intensificaram suas relações no palco citadino. Alguns personagens indígenas que vivenciaram esse momento merecem ser lembrados, já que foram alunos das professoras Nazaré e Risalva185 e estabeleceram relações diretas com “não-índios” fora da aldeia. Começarei fazendo alguns indicativos sobre Kaapêltùk. Este além de ter sido aluno da professora Nazaré, ainda durante a escola de “cavaca”, também teve experiência de trabalho fora da aldeia em uma estada numa “fazenda modelo perto de São Luís em 1949 e 1950” (CROCKER, 1990, p. 59). No entanto, essa experiência de trabalho fora da aldeia não durou muito, se comparado a outras experiências de trabalho na aldeia e em cidades mais próximas, como afirmou Raimundo Roberto186 em julho de 2008,. Como coloca Crocker (1990, p. 51), Kaapêltuk foi o primeiro Ramkokamekrá- Kanela a trabalhar para o SPI, em 1938. É digno de nota que seu filho, Raimundo Roberto Kaapêltùk, teria sido o primeiro “índio” da sociedade indígena pesquisada a ser lotado como professor em escolas na Aldeia Escalvado, na década de 1970 Maranhão (2008, p. 05). Esse momento é marcado pelo pagamento de salários aos Ramkokamekrá-Kanela, o que teve como conseqüência a ida periódica de parte deles a Barra do Corda para receber seus pagamentos. Na medida em que aumentava o número de funcionários indígenas das instituições estatais, o trânsito aldeia-cidade também se expandia. No entanto, o aumento progressivo do deslocamento para a cidade não deve ser considerado único determinante para o que poderia ser chamado de “processo de mudança” dessa sociedade”. Essa observação é feita por Crocker (1990, p. 51 e 60): Considerando o grande contato com Barra do Corda desde 1940, é de surpreender que os Canelas não estejam mais aculturados. A posição do chefe Kaapêltùk me lembra a situação do líder dos Maias, Don Eustacio Ceme (segundo Robert Redfield, 1941). Ele podia escolher entre as influências vantajosas e destrutivas da aculturação para proteger os Maias e ajudá-los a florescer. O trabalho desempenhado para as instituições estatais pelos Ramkokamekrá-Kanela de então, fez com que diminuísse a produção e comercialização de artesanatos, atividade 185 Ver a quarta parte deste trabalho. 186 Foi aluno da professora Risalva. 174 que posteriormente foi incentivada tanto pelo SPI, e depois pela FUNAI. Crocker (1990, p. 56) assim se refere: No início dos anos 80, a FUNAI abriu uma loja no posto do Escalvado, onde trocavam produtos por artesanatos. (...). Nos anos 70, o Kaapêltùk mais jovem e Kaprêêprêk eram concorrentes na venda de artesanato e em 1979 todo mês a FUNAI comprava uma carga de caminhão de artesanato dos Canelas. À pesquisa que desenvolvi, outra personalidade Ramkokamekrá-Kanela merece menção, Satú Canela. Ele saiu da Aldeia Sardinha, para onde esta sociedade havia sido deslocada em 1963, para morar com uma família de norte-americanos no Rio de Janeiro- RJ. Seu retorno para a Aldeia Escalvado se deu “entre 1979 e 1984” (CROCKER, 1990, p. 57) depois de ter sido dispensado de uma escola da Força Aérea Brasileira - FAB e porque a família com que foi morar partiu para sua terra natal. Em minha estada no Rio de Janeiro em dezembro de 2008 pude conversar com Eunice Cariry (chefe da Casa do Índio do Rio de Janeiro – RJ) sobre a experiência de Satú nesta cidade. Ela então fez o seguinte relato187: (...) o Satú foi o seguinte, o Satú ele veio com o doutor Noermilson e a equipe dele, que era da Unidade Sanitária aéreas (trabalho no controle de tuberculose). Então o Satú veio, depois o Satú não quis voltar. Não quis mesmo, tava rapazinho, não quis voltar. Aí ele foi morar na casa de uma senhora americana, que trabalhava com quadros, artista plástica, esse pessoal da sociedade (...). Mas ele não queria voltar, aí falaram comigo, que ele ficasse cá pra estudar, pode ficar pra estudar, mas era importante que ele voltasse, mas ele não queria. Então houve um índio também do Maranhão, um Guajajara, eu esqueci o nome dele agora no momento, ele foi cabo da aeronáutica (...). Aí ele (Satú) botou que queria ser da aeronáutica também, aí eu falei, mas escutar, é que ele já ta mais aculturado. Não, mas ele quis. Aí como eu conhecia muita gente, arrumei pra ele entrar na aeronáutica. Ele entrou, mas não ficou muito tempo não. Um dia o tenente ligou pra mim e disse, “ó Dona Cariri a senhora tem que vir aqui”. Aí eu cheguei lá e Satú tava com um calçolão maior do que ele, sabe que eles botam no soldado aquele short azul marinho! Aí eu disse, “Satú o que que ta havendo, o que que houve”. “Não, é sargento implicante, fica só mandando eu fazer as coisas. Eu digo vai você que fica aí sem fazer nada, quer que eu varra, quer que eu faça, eu não vou fazer nada”. Aí eu disse: “Sargento, não dá. Vamos dar um jeito de dar uma baixa nele, sem precisar exclui-lo, nem prejudicá-lo”. Eu digo, “então o Satú tem que sair das Forças Armadas”. “Não, mas eu não quero sair”. Curupi é o nome do índio que era Cabo. “Curupi é Cabo. Porque que eu não posso ser cabo também?”, (...). Eu sei que depois ele saiu e apareceu por aqui o Doutor Sérgio Pereira, que era a segunda pessoa do Doutor Miranda, segunda pessoa do Doutor Noel Nútel. “Não, você viaja, porque você vai se dá bem”. Eu sei que ele foi, se encargou lá. Eu vim vê-lo muitos anos, agora tem o que, tem um ano. Depois que veio aqui um rapaz estudante de antropologia ou é da fluminense [Rafael Pessoa]. Aí trouxe ele aqui, eu fiquei tão feliz de ter encontrá-lo, ele também ficou. Dei umas coisas pra ele levar, pra presente da 187 Gravado e transcrito por mim. 175 esposa. Dei perfume porque ele sempre foi muito cheiroso, muito caprichoso na, sempre gostou de andar arrumadinho. Mas o Satú foi só isso, não teve. Ele não ficou muito tempo na casa. Foi em 1968, ele ficou 69, 70. Ele era muito independente. Ele não era, o pessoal usava muito um negócio de tutelado, coisa que eu não gosto, ele não era totalmente tutelado, dependente da casa, justamente porque ele tinha esse emprego com essa mulher americana. E ele só veio pra cá depois que essa mulher foi embora pros EUA e ele não quis ir junto (...). Isso é coisa de quase trinta e poucos anos atrás. A Casa do Índio fez 40 anos agora no dia 22 de novembro. (...). ninguém melhor do que o índio, quando o índio não é ambicioso, para cuidar do próprio índio (...)188. Conforme Crocker (1990, p. 57), depois de ter retornado para a aldeia, Satú “por conhecer aritmética e saber ler e escrever, foi empregado pela FUNAI como assistente da professora Rizalva”. A relevância das informações que dispus baseia-se principalmente em seu alcance para se compreender que depois de uma etapa fora do que seria o cotidiano da aldeia (ou na escola mantida pelo SPI ou em uma escola da FAB) há uma reintegração do sujeito em uma função que, além de beneficiá-lo individualmente, serve para que o agente ocupe posições que passam a ser reconhecidos como legítimas e importantes pela comunidade. A experiência na(da) cidade e a educação escolar sobressaltam-se como elementos pertinentes para compreender parte das representações dos Ramkokamekrá- Kanela sobre os indivíduos que de alguma maneira se distanciam ou são distanciados do convívio cotidiano intra-aldeia. 5.4.1 – Entendendo a migração aldeia indígena-cidade entre os Ramkokamekrá-Kanela Há diversas tentativas de explicar a saída da aldeia indígena para a cidade: educação escolar, curiosidade em conhecer a cidade, relações comerciais, atendimento hospitalar de alta complexidade, participar de festas de branco, trabalho etc. Todavia, entre os Ramkokamekrá-Kanela é evidenciado explicitamente que a motivação principal para esse processo migratório refere-se à educação escolar, que geralmente é associada à falta de determinado nível escolar na aldeia. Ricardo Kutokre Canela, em julho de 2008 (grifos meus), destacou essa motivação, mas sem percebe-la como exclusiva. 188 Não foi possível aprofundar as informações sobre as seguintes personalidades: Doutor Sérgio Pereira, Miranda e Noel Nútel. 176 Iniciam-se a minha vida escolar na cidade de Barra do Corda desde 2000 que a escola não tende o Ensino Fundamental. Essa época caçava, trabalhava lucrava meu suor ao sustento para minha família. Certo dia descobrir que ainda não é tarde para estudar na cidade. Sentei e conversei com a família que todos diz: Sim. Pode: fomos todos a cidade para melhorar condições de vidas, E em Barra do Corda fiz tudo que a escola precisa: documentos e estórico escola. Tudo que eu queria seriam tão fácil, mas não foi assim: pois, comecei a pagar, alugueis, alimentação, uniformes e material escolar. Mesmo com toda minha vontade de alcançar um sonho de ser “Doutor”, me esforcei e levei 4 anos de estudo. Lembro que a educação me transformou em ‘cidadão’ de ser o professor na Aldeia. Contribuindo o meu saber para as crianças serem felizes ao mundo futuro189. Esse discurso coaduna algumas informações que colhi nas escolas, em Barra do Corda, no ano de 2005 e que demonstram que Ricardo Kutokre havia estudando na escola Dom Marcelino Milão desta cidade. Estas informações acusam que aproximadamente cinco Ramkokamekrá-Kanela, em um nível escolar que tinha na escola da aldeia, já estudava na cidade. Mesmo se essa amostra é pequena, ela revela que a falta de determinado nível escolar na aldeia não é o único motivo para migrar para estudar fora dela. Essa justificação não seria a única relacionada ao processo migratório. Nesse percurso existem também motivações de cunho mais simbólicas, que relativizam a idéia de que “ir para a cidade” tenha exclusiva motivação na situação de contato interétnico. Se a migração aldeia-cidade, entre os Ramkokamekrá-Kanela, é para prover-se, prover a família e prover a comunidade de assistência ou benefícios que lhes faltam e que são considerados necessários para a sociedade como um todo, o discurso dos indígenas migrantes de “chegar a ser gente” merece mais atenção. Independente do percurso adotado, “chegar a ser gente” na deve ser entendida apenas como uma valorização dos comportamentos dos “não-índios”, o que igualaria “ser gente” a “não ser índio” (“ser civilizado”), mas expressa uma estratégia dos Ramkokamekrá-Kanela para ajudar a comunidade. Neste sentido, “ser gente” não destoaria de “ser índio” (de pertencer a uma sociedade específica), pois o que está em jogo é a potencial ajuda que será prestada. Para compreender sua posição como “mediador” traço o seguinte paralelo: Se em outros momentos o sujeito indígena que ia para a mata caçar ou guerrear para prover e defender a comunidade era entendido como “guerreiro”, 189 Este depoimento escrito pelo agente indígena em questão indica outros elementos importantes, como o retorno e as dificuldades na cidade, os quais serão trabalhados progressivamente. Optei por não recortar a enunciação dos informantes para não descontextualizar em excesso parte de seus discursos. Além disso, essa alternativa poderá dar ao leitor uma idéia de suas trajetórias. 177 este não deixava de ser índio mesmo tendo tido uma preparação corporal diferente dos demais. Tal comparação poderia se estender àqueles indígenas que deixam a aldeia para estudar na cidade, sendo que agora o “provimento” se dá por outras vias, os agentes e as “guerras” são outros. No entanto, o que se deve perceber é a idéia de que este sujeito indígena, mesmo se diferenciando de outros sujeitos de sua comunidade, é considerado como legítimo para atuar em um campo inescapável aos indígenas atualmente: o campo interétnico. Estes sujeitos passariam a ser inclusive elementos significativos para compreender a dinamicidade dessas sociedades. Oliveira (1968, p. 30-31), ao dissertar sobre como a sociedade Terêna significa o “herói guerreiro” ou “xuna-xati”, coloca: (...), a existência do xuna-xati, como mecanismo de ascensão social (através da ampliação do mercado matrimonial ou da integração ao grupo tribal dominante), bem como a elevação política (“Chefe de Guerra”), criava na antiga sociedade Terêna uma série de expectativas, partilhadas por todas as camadas da população. O status de herói guerreiro passava a ser almejado igualmente pela população masculina em seu conjunto, dando ao xuna-xati uma função altamente integradora no grupo local, através da correspondência e ajustamento dos papéis guerreiros e dos direitos sociais adquiridos. Por outro lado, estimulando a eficiência e a bravura nos combates, a sociedade Terêna preserva-se a si própria. Certamente que as experiências que os Ramkokamekrá-Kanela tem e tiveram com a educação escolar na aldeia exerce influência sobre seus referenciais e suas demandas, o que pode aguçar de maneira considerável suas curiosidades sobre o que denominam “vida dos brancos”. Ricardo Kutokre (07/2009, grifos meus) assim escreveu: Desde que a nossa professora Risalva esteve aqui, me falaram que eles falaram dela também, foi muito bom, foi muito bom pra mim até que ela me esforçou, até que ela me deu esse caminho, pra alcançar esse sonho de ser professor hoje, eu orgulho muito de educar as crianças principalmente na parte da leitura e a escrever também. E por que eu fui fazer isso? Pois, todos homens, todos os humanos tem que sofrer, tem que fazer aquilo, acreditar em sim mesmo e realizar o que é preciso. Mas não há como considerar que apenas a escola tem esse poder. Outras vias de acesso intercultural também agem, como percebem também os professores “não-índios” da Aldeia Escalvado. Em um texto produzido durante a capacitação que ministrei em julho de 2008, Ediana Maria Leite Rodrigues (nativa de São Luís – MA, professora de inglês e meio ambiente) afirmou (grifos meus): 178 O que observo muito durante as aulas, é que muito dos alunos, tem uma certa curiosidade pela forma de vida dos brancos, influenciado pela televisão etc. Por isso eles procuram ao chegar na cidade mudar sua forma de comportamento. Ao observar a convivência entre índios e não índios na Barra, é que há muito pré-conceito em relação a eles em conseqüência de fatos históricos já passados e que mancharam a imagem dos mesmos. Na aldeia procuro passar informações que possam favorecer o seu desenvolvimento, mas sempre buscando formas que visem a preservação da sua cultura, para garantir a sobrevivência do seu povo. A informação de Ediana de que a mudança de comportamento se daria principalmente na cidade, é confirmada por outros agentes que dizem que na cidade “tem que respeitar a lei do cupê”. Esta idéia é contra-balanceada pelo discurso da professora Maria do Perpetuo Socorro Feitosa da Silva - “Socorrinha”190 - nativa de Barra do Corda que percebe como “negativa” a experiência na(da) cidade vivenciada pelos Ramkokamekrá-Kanela. Seu texto diz: No meu ponto de vista Os índios não deveria sair da aldeia para estudar na cidade. por quê? Quando um michê – sai da Ari que vai para a cidade. Quando retorna muitos deles tem vergonha de ser mehê. Não corta o cabelo (foj falam na gíria ando como os kupê e agem como os Kupê. Na minha opinião como Doente no dia-a-dia na sala de aula, ao receber os estudante que vêm da cidade e retorna a sala de aula. O aluno chegar mais atrazado nos estudos, ficam tirando os outros alunos de Sitonia, e ficam se achando mais inteligente que os de mais, na hora da aula de arte eles não valorizam a arte e a cultura deles; Muitos ficam criticando e dizendo que o estudo na cidade e melhor, mais como sempre eles voltam, mais não por vontade própria e ssim por passarem necessidade e fome na cidade. (história que ouvir outros contarem) Obs: nunca estudei com canela mais comvivo com os, muitos tempo. Essa percepção é compartilhada por outros professores, principalmente aqueles que são nativos de Barra do Corda, como Erlane Ribeiro Freitas, que afirma não ver “como uma coisa boa essa saída dos índios pra cidade, pois são muitas dificuldades que eles enfrentam, como alimentação” (julho/2008). A referência à dificuldade logística dos Ramkokamekrá-Kanela, quando estão em Barra do Corda, como justificativa para não ser de acordo com a migração aldeia-cidade pode camuflar elementos latentes de “repulsa” e preconceito frente às sociedades indígenas. Estes elementos são partilhados, de maneira diversa, por parte dos “não-índios” desta cidade. 190 Esta professora não-índia dá aula na Aldeia Escalvado a bem mais tempo que Ediana Rodrigues. 179 Neste caso, o nativo de Barra do Corda tem uma versão diferenciada dos discursos dos professores nativos de São Luís, em geral, os quais mantiveram um outro tipo de contato com as sociedades indígenas e que expressam sobre eles opiniões a partir de um contexto mais distanciado. Ediana Rodrigues, de São Luís, se expressa da seguinte maneira sobre uma possível descaracterização dos estudantes indígenas migrantes: Não necessariamente deixam de serem índios, mas as constantes convivências e interferências dos não-índios vem influenciando na mudança do comportamento dos mesmos. Isso se dá em relação à aquisição de certos bens materiais, nas mudanças de comportamento (a maneira como as mulheres passam a se vestir, por exemplo) e também devido à interferência governamental na questão do assistencialismo. 5.4.2 – De quem sai, de quem fica e de quem volta: algumas explicações êmicas A saída para estudar na fora da aldeia é percebida pelos Ramkokamekrá-Kanela de maneira diversa, porém sempre evidenciando três etapas: a saída da aldeia, a estada na cidade e o retorno físico para a aldeia ou dos conhecimentos adquiridos. Para iniciar nossa análise dessas etapas destacarei o texto de Raimundinho Paat-Tset191 (julho de 2008): Ao seguinte: Os índios Canelas deslocando para estuda na cidade, não modifica, experiência, ampliar o conhecimento através da educação. Mostra ao povo que conheceu outra cultura, mostrando que os índios condição de aprender tudo que homem branco faz a sua própria a mão. Porque isto significa para os jovens que tem habilidade para aprender. Os Canela sempre foi o verdadeiro povo que gosta mais de ficar tranqüilo. Os Canelas teve tanto experiência de desenvolver a cultura. Educação no mundo é importante para todos os homens na terra. Por isto o governo ajuda estudante indígena na sua própria residência. O retorno para a aldeia é bom para família para a comunidade. Porque a cidade não é aldeia. Na aldeia tem tudo para viver. Sempre índios que sai é para preparar a sua sobrevivência, ampliar o conhecimento, para quando retornar ao povo sempre lembrando que o povo precisa de uma pessoa de muita formação. A pessoa que aprendeu ler escrever é para ajuda o povo a cumunicar, facilitar ao povo indígena a dificuldade. Porque tudo hoje depende dec pessoas. Muitos índios novos que aprender matemática. Para conferir a quantidade de riqueza no futuro. Na transcrição tenta-se demonstrar que é presente a representação de que o deslocamento age como ampliador da experiência dos indivíduos, e não como fator 191 Estudou em Barra do Corda na década de 1970 e hoje é professor da Aldeia Escalvado. 180 desagregador deles. Sair, conhecer e retornar estão estritamente relacionados e atuam de diferentes maneiras dependendo da trajetória e do contexto histórico dos sujeitos. De certa maneira, a condição de estudante indígena migrante na cidade configuraria uma situação semelhante às etapas que Van Gennep (1960) conceituou de “rito de passagem”. Em relação ao caso da migração de estudantes Ticuna, Paladino (2006, p. 243) coloca: A formação escolar na cidade encontra paralelismos com traços que Van Gennep (1960) identifica como etapas, seqüências ou períodos de um ciclo ritual que o indivíduo atravessa a fim de mudar seu status ou sua posição social: uma fase inicial de separação do seu status anterior ou de um conjunto de condições culturais, através da mediação de ritos preparatórios; uma fase liminar ou de margem durante a qual está sujeito a estritas proibições e regras e possui características ambíguas (que têm poucos dos atributos do passado ou do estado futuro); finalmente, a reintegração na comunidade ou a agregação a ela, já com seu novo status social. O período de estudos na cidade envolverá para o indivíduo tanto um distanciamento físico dos parentes, como um afastamento de atividades cotidianas e rotineiras que praticava na aldeia. Assim, viverá uma condição transitória que, (...), possui características próprias e são, em certo sentido, distintas daquelas que viveu no passado e das que experimentará no futuro. Entre elas, considero importante destacar o tempo livre, a liberdade e a autonomia que goza durante esse período na cidade, sendo possível transgredir certas regras e valores, especialmente as que dizem respeito ao relacionamento com o sexo oposto, o consumo de álcool e a participação em festas. A liberdade que os Ramkokamekrá-Kanela supostamente vivenciariam na cidade é contra-balanceada pelo que chamam de “sofrimento” decorrente da situação de migração. Semelhante ao que Vladimir Rodiporo afirmou: “ter ficado mal e sofrido muito quando foi estudar na cidade”, Armando Prefet (julho de 2008, grifos meus) desenvolve textualmente uma argumentação que sugere haver a necessidade da nostalgia durante o processo migratório: Quando eu sair da minha aldeia pra estudar na cidade de B. do Corda, eu chorei de saudade da minha família saudade da minha aldeia Escalvado. Eu mim interessei esforcei, sempre fiz ensino médio completo; por uso, que tem meu histórico dentro da minha aldeia, sobre a energia; a luz iluminando toda rua da aldeia. eu mim orgulho agora sou o professor índio, trabalhando cumprindo meu deveres com honestidade sinceridade pra meu povo, amostrando minha experiência para crianças adolescentes, aprender a trazer alguma coisa boa que serve para comunidade. nós professores indígenas temos que organizar nosso trabalho individual, ser profissional; Desenvolver ampliar escola na aldeia; B. do Corda, e minha vida, eu gosto amo minha cidade, lá tem muitos meus amigos (as) formados profissionais, que falam conversam comigo. Só álcool que destrói a vida de estudante canela na cidade: professor Armando. 181 O sofrimento de que falam os Ramkokamekrá-Kanela sugere também uma relação entre este e o fortalecimento do corpo, para que os indivíduos migrantes possam lidar com as funções que possivelmente ocuparão em um momento posterior, ou seja, quando forem dar o retorno para sua comunidade. Paladino (2006, p. 119) assim se expressa: (...) ao mesmo tempo em que o estudo é apresentado como uma alternativa ao sofrimento da roça (trabalho representado com pesado, duro e cansativo, que exige força e submissão do corpo a certas adversidades, como as climáticas e as ambientais), ele é também representado como um sofrimento e sacrifício. Durante o período de estudo na cidade, o indivíduo sofre pelo fato de passar fome, por não falar bem o português e por estranhar certos costumes; também pelo afastamento dos parentes e pela falta de conhecidos e amigos para visitar e com quem passear na cidade, ou seja, pela interrupção de um tipo de sociabilidade à qual estão acostumados. Armando Prefet (julho/2008, grifos meus) ainda sugeriu que o “sofrimento” deve ser uma exigência e um critério obrigatório – um rito de passagem - para conseguir um emprego na aldeia. Eu, Cacrosi e o Jaldo e os outros meus amigos que já estão de serviço, servidores, né, funcionário nós porque sofremos, eu senti o passado porque a gente vê a história que vocês perguntam pra gente uma pergunta boa que vocês perguntam pra gente. Eu vejo muito amigo meu que começou a estudar aqui primeiro no colégio, eu vejo Beato que nesse tempo já era assim quase maduro, eu vejo Beato levando o caderno dele e ficando aqui né eu pensava que eu não acompanhava ele não, mas acompanhei eles e meu pai falou pra mim que a gente tem que ir na cidade né, trazer alguma coisa(...). (...) eu já lutei, já sofri pra conseguir ter a força da minha comunidade e graças a Deus o povo escolheu os professores pra ser assim como agora né e graças a Deus deu certo pra mim. Para alguns teve sorte que sempre ganhou a nota boa (...), nós entramo né e tem muito meus amigo que participo da escola pra ser professor (...), mas tem a mulher que ela chorou porque ela não pude entrar diz que é criança ainda e tem muito meu parente também que pensando que entra uma vez ser professor né. Tudo que a gente quer antes tem que se preparar pro objetivo. Se passar que possa entrar. A descrição que Raimundinho Paat-Tset (07/2008) faz de sua experiência também dá sugestões sobre esse contexto de “sofrimento” que envolve os estudantes Ramkokamekrá-Kanela migrantes. (...) eu me lembro bastante que, quando eu comecei estudar e meu estudo quando terminou aqui ai meu chefe me disse que eu tenho condição de ficar na cidade ai eu fiquei no começo, comecei logo pensar, porque pra ir pra cidade eu como estudante índio que ainda não tem experiência não tem conhecimento não tem a língua pra falar. Ai comecei pensar, eu já tava sabendo todas as coisas que a professora escrevia eu lendo e conversando com ela, ela me ensinando alguma coisa, então comecei entender assim, ai comecei a pensar, não, eu vou na Barra, vou estudar na Barra, sozinho. Ai cheguei lá na cidade, o administrador falou 182 que tem recurso pras pessoas que querem estudar na cidade ai eu fiquei lá. Eu fiquei na rede no corredor, não tinha alojamento eu fiquei no escritório, ai passei uma semana no escritório, ai pai chegou lá e mandou para outro lugar fiquei em outro lugar fiquei pra estudar. Mesmo que eu saia sofrendo, né tanta coisa que vem de necessidade, não tem dinheiro, não tem roupa nova não tem toalha, não tem escova nada e ai a gente enfrentou a crise que a época foi tão difícil pra pessoa que luta pra a educação, sempre na época foi tudo difícil quem interessava saia, mesmo que você interessa, mas você sofre, eu cheguei nesse ponto, ai de repente eu aprendi um pouco; eu sei que acabou o convênio e o mais triste que eu ainda encontrei que acabou o convênio, quem que apóia isso? não tem ninguém que apóia. O sofrimento se daria tanto por questões mais simbólicas relacionadas à distância da família e de uma forma de sociabilidade específica e também por questões mais objetivas, de logística. A carência de meios para manutenção na cidade expõe os estudantes Ramkokamekrá-Kanela a situações de constrangimento, quando não dispõem de determinadas vestimentas para as aulas, e de vulnerabilidade, quando na falta de mantimento são obrigados a se “prostituir” para conseguir dinheiro. Esses são elementos que potencializam retornos constantes para a aldeia. Raimar Ronkrainon (julho/2008) sobre a situação de precariedade expõe: (...) eu acho que tudo que Beato falou nos todos sentimos porque quem inicia de estudar na cidade situação vem sempre precária que, quando eu comecei estudar lá, eu não tive nenhum recurso para eu me manter lá, comprar roupa, comprar sapato, pra tudo, materiais, nós sentimos muito porque nos estudante ficava sozinho, não tem nenhum recurso para a gente fazer tudo, eu senti muito também estas coisas que aconteceu, mas quando deu quatro anos depois melhorou um pouco. Até pra mim concluir sétima série. Aconteceu um problema comigo ai eu vim pra cá, eu torci o tornozelo, saiu do lugar, eu tive eu vir pra cá. Acerca da vulnerabilidade que ficam expostos na cidade, a questão da “prostituição” ganha relevo. Esta, juntamente com o “alcoolismo”, é apontada como um dos principais problemas fora da aldeia. Crocker (2007) no email que me enviou, ao falar sobre os mulheres Ramkokamekrá-Kanela na cidade em 2003, coloca: (...) uma mulher aprende a dar-se muito cedo, nas festas, (...). Mas certamente há uma série de mulheres que dão-se quando estão sedentas de civilizados. Existem alguns na categoria que amam a faze-lo e, em seguida, outros que só o fazem quando eles estão famintos, dos antigos provavelmente só fazem quando eles estão famintos, mas os mais jovens provavelmente fazê-lo apenas para a diversão e fazer um pouco de dinheiro. Uma outra justificativa que poderia ser utilizada para explicar a migração aldeia indígena-cidade é a fuga dos trabalhos considerados “pesados” executados na aldeia. Entre 183 os Ramkokamekrá-Kanela esta também é acionada, porém com menor freqüência. Pode ser que a realidade com que se defrontam na cidade influencie essa diferença em relação aos Ticuna, pois em Barra do Corda a maioria dos Ramkokamekrá-Kanela é admitida como trabalhador braçal, como para a capina de terrenos, por exemplo. Levar algum benefício para a comunidade e defendê-la na situação de contato interétnico seriam outras formas de compensação da migração para a cidade. Ary Korampej (julho de 2008) se manifestou da forma que segue: Então não aqui no campo (...). Então pra nós é assim, essas pessoas que vão pra cidade, estudar, estudar e estudar, e aprendem tudo aquilo que é importante pra comunidade, essa pessoa não vai deixar de, de, de, esquecer o povo, ele tem que trazer alguma novidade boa pra comunidade. No caso como, comigo, quando eu estudava aqui, eu nunca tinha pensado que eu ia estar na parte de educação como professor. Eu num sabias, ai foi indo, foi indo, de repente (...) foi uma novidade muito boa que eu trouxe para a comunidade, consegui trazer escolas, consegui trazer os professores não-indígenas. Consegui contratar os professores bilíngüe, até é eu que to atuando. A defesa dos direitos indígenas e a exigência de não esquecer da comunidade é ilustrada pelo discurso de Vladimir Rodiporo, que ao falar de sua trajetória chamou a atenção para os conselhos de “Seu Riba”192, que dizia para eles: “não podem esquecer a nossa cultura a própria cultura nossa”, pois é necessário “aprender as coisas pra defender nossos direitos que a gente precisa”. É certo que a vida na cidade é percebida como diferente daquela da aldeia. Os principais problemas apontados dizem respeito dizem a questões logísticas, seguida por questões de preconceito. Nas conversas que mantive com os Ramkokamekrá-Kanela durante a pesquisa foram recorrentes as expressões: “quando eu morava na cidade era muito difícil, faltava muito dinheiro” (Reginaldo Uhko) e “a escolha pode ser na cidade ou na aldeia, (...), o que, que vai dá dificuldade para estudante é o recurso para se manter na cidade” (Raimar Ronkrainon). Esse tipo de depoimento é geralmente percebido entre aqueles Ramkokamekrá-Kanela que migraram e passaram a estudar na cidade, tanto na rede pública como na particular, sendo que entre os Ramkokamekrá-Kanela da Aldeia Escalvado prevalece a primeira modalidade. 192 Indígena que mora em Barra do Corda desde os anos 1980 e que é casado com uma índia da Aldeia Escalvado. Muitos estudantes migrantes se alojam em sua casa. 184 Vanildo Kukran (julho/2009), textualmente, adiciona outro tipo de problema, o da língua: A vida em Barra do Corda era muito bom, mas eu não sei a falar bem com o Kupêm. quando eu entrei na Escola eu comecei a entender algumas palavra do Kupêm era muito difício pra mim eu era criança de 10 anos. eu tinha medo de falar. por que eu têm medo de falar errado. Em 1994 eu merei a Estuda na Escola particular , quem pago era o meu pai. Nome do Escola e Colégio Nossa Senhora de Fátima. Quando eu entrei na sala eu fiquei muito adimirado. Porque tem muito menina bonita. Nas aulas que presenciei na escola Dom Marcelino de Milão os Ramkokamekrá- Kanela só se falavam, entre eles, na língua materna, o que é tomado como afronta pelos professores. Ao ser interrogado, Helton Antwá (2005) disse que se deixar de falar a língua perde-se a cultura, por isso “quando tem só índio tem que falar na língua”. Diferentemente do que percebeu Paladino (2006), em relação à representação da língua Ticuna pelos estudantes na cidade, os Ramkokamekrá-Kanela não nomeiam a sua por “gíria”, mas sim por “língua”. Na cidade, além da especificidade do uso da língua, há as questões relacionadas ao diacrítico físico. Como já expus anteriormente, na Aldeia Escalvado é comum os indivíduos usarem o cabelo cortado na região das têmporas. Na cidade estes sentem a necessidade de não cortar o cabelo dessa forma, pois assim estariam desrespeitando o que chamam de “lei do cupê”. Vladimir Rodiporo (julho/2008, grifo meu) assim se expressa: lá na Barra eu deixava o cabelo crescer, deixava o sobrancelha crescer, até hoje eu to arrancando ta nascendo eu to arrancando, mas quando eu tava na Barra eu não arrancava não, deixo pra crescer, sendo cupen, mas quando eu chego aqui a mãe, fala: oh! Tem que arrancar, você corta cabelo, você vai se pintar, não vai usar camisa, você vai correr com a tora, obrigado pra mim fazer isso, esta é a cultura. Acredito que Rodiporo, ao expressar “sendo cupen”, quis sugerir que na cidade tenta-se viver como “cupê”, já que não se deixa de ser “mehin”. Ser e viver são termos diferentes, pois se pode viver como cupê, mas não ser cupê. No limite há a representação, como coloca Lasmar (2005, p. 147), de que “viver como índio seria viver na comunidade, e viver como branco, viver na cidade”. Acrescenta ainda (p. 191) que: Com a ampliação das possibilidades de inserção da população indígena no mundo dos brancos, a vida na cidade se abre como uma alternativa de 185 experiência social fora da comunidade. Um toque de imprecisão caracteriza, pois, a identidade dos índios que vivem em São Gabriel. Eles se percebem índios, por vínculos genealógicos que os conectam espiritualmente ao mundo ancestral por intermédio da posse de uma alma/nome, mas na qualidade de índios que, em certa medida, vivem como se fossem brancos. (...), o ponto importante é que, mesmo vivendo entre brancos, como branco, mesmo estando aberto a um devir branco, na se deixa nunca de ser índio. Sobre a indianidade entre os Ramkokamekrá-Kanela, o discurso da professora não- índia Lilia Rosania Ramos Santos (julho/2008) faz referencia a uma certa irredutibilidade identitária: “uma vez índio sempre índio”. Este posicionamento é reafirmado no discurso do professor “não-índio” Édson Lima do Nascimento (“Seu Édson” - julho/2008): Aqueles meninos querem se destacar, como diz um dizerzim popular, ‘ele se acham, ele ta se achando pelo fato de está na cidade’. Acha que ta competindo na sociedade do outro que é o não-índio. Ai ele chega na casa dele que é a aldeia e ele se acha o tal diante daqueles que aqui moram, estão morando. Mais logo cai a ficha dele, que o índio é sempre índio, nós temos um exemplo muito recente, o Ari, que acabou de vir aqui, saiu daqui, quando o Ari quer ele força a barra, ele força a barra que a gente sente que ele não é o que ele ta querendo dizer que é. Querendo se igualar a nós em conhecimento técnicos lá fora, lá de fora. E quando ele quer também ele se transforma no índio, ele entrou aqui um índio puro, um índio idêntico um primitivo e saiu como índio hoje daqui. Acontecia com Ari, então eles tentam atéeee onde não conseguem mais, mas por mais elevado que esteja o grau de conhecimento técnico deles não podemos esquecer que é sempre índio, ele é sempre índio. A citação alimenta a discussão sobre o retorno dos Ramkokamekrá-Kanela para a aldeia nos diversos momentos de sua trajetória de migrante na cidade. Como foi informado por Cornélio Pijapit (professor indigena da Aldeia Escalvado), na aldeia também é feita uma separação entre os “bons” e os “maus” estudantes da cidade. Os “bons” seriam aqueles que prestam conta no pátio de sua experiência na cidade e retomam as atividades exigidas da aldeia, como a corrida de toras e as reuniões no pátio193. Os “maus” alunos seriam os que mantêm maior envolvimento com bebidas alcoólicas e com brigas. As notas tiradas nas escolas da cidade não são o ponto considerado mais relevante. A punição que os “maus” alunos teriam seria a proibição de retornar para a cidade, o que se daria diferentemente em relação aos “bons” alunos que continuariam sendo incentivados. Durante as minhas experiências de pesquisa na Aldeia Escalvado não foi possível presenciar nenhuma dessas reuniões de “punição”, no entanto algumas informações sugerem que durante o período em que há o retorno físico para a aldeia, os estudantes 193 Essas atividades obedecem rigidamente as divisões etárias e posição social dos sujeitos, migrantes ou não. 186 Ramkokamekrá-Kanela passam por um período temporário de “aversão/repulsa” em relação ao cotidiano da aldeia, o que diminui progressivamente entre parte deles. O discurso de Édson Lima do Nascimento (julho/2008) é ilustrativo: (...) este vai não vai, eles vieram agora, nos primeiros dias tiveram deles, aqueles que se sentem, que se sentiam mais elevados não queriam comer a comida feita em casa que a comida feita na aldeia é diferente da comida que eles comiam lá na cidade, e as vezes iam na casa do vizinho ver se tinha alguma coisinha diferente, pra aquele índio, aquele filho, pra aquele parente comer, porque ele rejeitou aquela comida típica daqui da aldeia. Já agora não, você pode ficar em qualquer casa que tenha um índio desses recém vindos lá da cidade já ta comendo o que aparece até berubu194 frito que eles não estavam mais comendo quando vinham só a passeio. A razão que eles não estavam mais gostando daqui da aldeia. Porque a aldeia é um ponto de passeio, um turismo para eles, pra vir no final de semana jogar bola período de férias passavam uma semana aqui, voltavam para lá. Mas é só chegar arrancar a camisa que a gente ver que ele voltou a ser o índio. Como coloca Paladino (2005, p. 131) sobre os Ticuna, “não importa onde more, que trabalho seja desempenhado ou que acesso à tecnologia moderna se possua, pois tais fatores não definirão a identidade das pessoas”. Considerando ser pertinente a idéia de que ao migrar para estudar na cidade não se deixa de ser “índio”, é importante refletir sobre a atuação potencial deste estudante migrante e as representações que envolvem sua trajetória. Acredito que o exposto demonstra haver certa preocupação quanto à ajuda que se deve prestar à comunidade, o que sugere que há seleção dos estudantes indígenas que migrarão. Sendo a escolha influenciada por atitudes prévias desses sujeitos, como o interesse pela escolha, a proximidade com os “não-índios” da aldeia e a curiosidade por aprender aquilo que é novo e que possa ajudar a sociedade como um todo. Tal ajuda se dá também pela capacidade de selecionar entre os elementos novos aqueles que os seriam positivos. Em julho de 2008, Armando Prefet afirma: Tudo que eu vi lá na cidade eu não posso amostrar aqui para o meu povo não, por que, a gente lá em vez de a gente lá, em vez da gente só estudar matemática, química, física, biologia e inglês a gente quando a gente perde o controle da vida eu, quando eu era estudante eu pesava eu trago muitas coisas boas do não indígena, tecnologia que a gente como, bem aqui. Neste sentido, pode-se perceber que o retorno é marcado pela expectativa da “mediação” a ser exercida pelo individuo que passou pela etapa liminar do rito de passagem 194 Comida típica dos Ramkokamekrá-Kanela, composta de massa de mandioca recheado por carne (de caça ou de gado), que é envolvida por folhas de bananeiras e assada em brasa. 187 da migração. O principal produto da função de “mediação” proveniente da situação de migração de estudantes Ramkokamekrá-Kanela para a cidade seria a representação da possibilidade de mediar a relação de sua comunidade com os “não-índios”. Essa é a função que os atuais professores “índios” da Aldeia Escalvado representam como sua. É sabido que em Barra do Corda há um problema referente aos cartões de aposentadoria ou pensão dos índios. Por escassez de dados não entrarei nessa questão, mas cabe ressaltar que “estudar na cidade” é representado pelos Ramkokamekrá- Kanela como possibilidade de não mais serem enganados por “não-índios” locais nas transações monetárias/comerciais e também poder nutrir de “conhecimentos” aqueles que permaneceram na aldeia. Parte do depoimento de Armando Prefet (julho/2008) é ilustrativo: (...) nós que somos professores vamos ajudar o nosso povo que, desse jeito assim não vai pra frente não (...). Vejo que tem muito indígena que o não-indígena, comerciante sempre engana né, no negociação. As vezes, vai comprar as coisas de 50 aí tira as coisa de 40 né, e 10 reais não tira não. Isso que a gente tem pena do índio que não se interessa em aprender matemática, português, outras coisas que existe dentro da educação. Tem-se assim mais um fato que sugere que a migração aldeia indígena-cidade não pode ser compreendida como uma iniciativa individual. A coletividade tem atuação direta no processo, pois ela precisa concordar com a saída. Na cidade, a assistência logística dos Ramkokamekrá-Kanela, diante da escassa atuação das instituições responsáveis, se dá também pelos benefícios recebidos pelos pais ou outros parentes, além dos produtos das roças que fazem na aldeia. Em Paladino (2005, p. 118) lê-se: (...), apesar do deslocamento para a cidade com fins de estudo ser em muitos casos um fenômeno individual, o grupo de parentesco está sempre presente, seja outorgando um suporte direto (em alimentos e/ou dinheiro), seja um suporte indireto (integrando-os a vínculos e redes que lhes facilitarão a moradia na cidade). Pode-se ainda acrescentar o grupo de parentesco resguarda um espaço para o estudante migrante no corpo social da aldeia diante dos retornos esporádicos, o que pode facilitar sua (re)inserção ao meio. Ao considerar o retorno para a aldeia é o momento físico que finalizaria o rito de passagem, é necessário perceber que existem outras formas de retorno, mais envolvidos com a função de “mediador” que lhes é exigida: ser professor na 188 aldeia e repassar os conhecimentos adquiridos, ser Agente Indígena de Saúde - AIS e mediar a relação dos conhecimentos médicos ocidentais e tradicionais, ser representante de alguma organização e intermediar a relação com agências institucionais do Estado, etc. Seguindo esse raciocínio, os estudantes indígenas Ramkokamekrá-Kanela que se deslocam para estudar fora da aldeia são potencias “mediadores” entre sua comunidade e o que chamam “mundo dos cupê”, numa função que seria desempenhada também pelos professores ‘índios” da Aldeia Escalvado. Neste sentido, pode-se dizer que a função de “mediação” estaria diretamente vinculada à instituição escolar e suas conseqüências, mas não só. Outros sujeitos, como o pajé, também vivenciam, ou são representados, essa função, pois seriam os “mediadores” entre a comunidade e outra forma de alteridade, o sobrenatural. Neste sentido, Paladino (2006, p. 244), ao analisar o trabalho de Collet (2006) sobre a escola Bakairi, sugere: Ambos os papéis são tratados como “mediadores”: no caso do pajé, como mediador com o “mundo dos iamyra” (espíritos que habitam o fundo dos rios responsáveis pela provisão das condições de aquisição do alimento), e no dos professores, como mediadores entre o “mundo dos karaiwa” (os brancos) e a sociedade Bakairi. A finalidade para esta autora [Collet] de ambos os tipos de formação (a do xamã e a do professor) é a obtenção de fartura e a atuação em “defesa do parentesco”. Nessa pesquisa não identifiquei nenhum paralelo entre a experiência na(da) cidade e um ritual de iniciação específico dos Ramkokamekrá-Kanela195. Todavia, sugiro que o fato de ambas as situações culminarem com indivíduos que atuarão como “mediadores sociais” e que passaram por um certo “rito de passagem” denota sua relação. Assim como um ritual de iniciação, a experiência da cidade pode adquirir uma significação no ciclo de vida da pessoa Ramkokamekrá-Kanela. Se a doação de nomes ou o casamento propicia no nível comunitário o estabelecimento e crescimento das relações de alianças e barganhas, estudar na cidade é entendido como expressando uma possibilidade de acessar certos conhecimentos e experiências consideradas necessárias e reconhecidas para a atuação no campo interétnico. Ajudar outros indígenas a atuar nesse campo sem que sejam enganados também é colocado como preocupação dos estudantes que estudaram (estudam) fora da aldeia. 195 Para conhecer algumas fases dos ciclos de iniciação dos Ramkokamekrá-Kanela (Ketuayé, Pepyé e Pep- kahák) ver Nimuendajú (2001) e Oliveira (2008). 189 Durante o tempo em que estudam fora da aldeia, os Ramkokamekrá-Kanela não deixam de participar das festividades da aldeia, porém sua atuação se dá com menos intensidade devido ao calendário escolar. Como informaram parte dos funcionários das escolas, “nós não colocamos falta neles quando vão para a aldeia participar de algum ritual”. De qualquer forma, essa instabilidade da sua presença nos rituais na aldeia tem influência no aprendizado dos “índios”, pois eles passam a se dedicar à aquisição de outros conhecimentos que podem fragilizar sua formação nos valores da aldeia. Com o retorno para a aldeia, geralmente os estudantes Ramkokamekrá-Kanela migrantes assumem as funções de professor, servente ou agente indígena de saúde na aldeia. Todavia, estudar na cidade pode gerar outras formas de retorno. No caso de Roberto Tunne, que estudou em Barra do Corda, o retorno se dá pelo serviço que ele presta como Chefe de Posto da FUNAI da Aldeia Escalvado. Neste caso o retorno não seria simplesmente físico para a aldeia, já que o mesmo passa a maior parte do tempo em Barra do Corda ou viajando. Enquanto Chefe de Posto, na prática, sua função consiste em dirigir o carro do posto (uma Toyota) no translado aldeia-cidade. Essa função é importante, já que não há outro tipo de transporte que mantenha certa regularidade nesse percurso196. Vimos que a função de professor assumida pelos indígenas da Aldeia Escalvado é significada também como positiva, pois teria condição de relacionar os conhecimentos da aldeia com os da cidade. Por outro lado, eles são criticados por parte da comunidade por faltarem muito e apresentar fragilidades de conhecimentos no ensino do português. Diversos foram os apontamentos dos Ramkokamekrá-Kanela advogando que o retorno para a aldeia se dá principalmente devido às instituições do matrimônio. Isso se dá quando se casam enquanto ainda estudam na cidade ou quando nascem os filhos, provocando, nesse caso, um retorno definitivo. Outro tipo de retorno se dá quando são “convocados” para ajudar a família na roça da aldeia (retorno de duração menor)197. Os casos se relacionam, pois tratam de uma busca por provimento familiar, como disseram Vanildo Kukran e Eduardo Karapê, em julho de 2008: 196 Os transportes utilizados por pesquisadores e pelos funcionários das instituições que os assistem são outras alternativas de deslocamento aldeia-cidade utilizados pelos Ramkokamekrá-Kanela, no entanto a sua periodicidade é instável. 197 Os constantes retornos para ajudar a família na roça da aldeia também são apontados pelos estudantes Ramkokamekrá-Kanela migrantes como indicativo de seu baixo rendimento na escola. 190 Fia a 2ª série lá, a primeira eu fiz no Pio XI. Fia alfabetização, 1ª. A segunda eu foi lá pro colégio Nossa Senhora de Fátima. Terminei o terceira, a quarta, quinta série. Quem pagava lá era Doutor Willian Crocker, a mensalidade, cada mês ele paga. Foi como Eduardo falou, teve um krarézim (filho), aí vei pra cá. Estuda de tarde e trabalha de manhã. Vendia o boi na rua (Vanildo). Foi isso, isso ai a gente desistiu por causa de um casamento daqui com a índia, ai me transferi novamente pra cá retornei ai desisti de estudo meu, mas foi muito bem lá na cidade. Eu estudava a tarde e a noite a gente dormia procurar jantar estudar o texto para manha. Hospedava perto do clube que chama cadilac (Eduardo). No momento seguinte ao depoimento de Vanildo, Armando Prefet explicou parte de uma conversa que traçaram na língua materna. Disse que falavam que seus retornos coadunavam com as justificativas expostas. Ou seja, estabeleceram laços matrimoniais ou tiveram filhos, o que implicou no dever de manter esses outros sujeitos e essa nova situação social. Ainda seguindo a lógica dessa explicação do retorno vê-se, como afirmam os estudantes Ramkokamekrá-Kanela migrantes, certa dificuldade em “arrumar mulher na cidade, o que os faz voltar para a aldeia, pois “na aldeia é mais fácil”. Em outras situações, o retorno para a aldeia se dá como decorrência de algum ato cometido na cidade que transforma o indígena migrante em persona non grata. Hélton Antwá, que estudava em Barra do Corda em 2004 e prestava serviço como estagiário no NALK, foi obrigado, como afirmou Ary, a retornar para a Aldeia Escalvado em 2006 após ter, supostamente sob o efeito de bebida alcoólica, quebrado parte do material permanente da instituição onde estagiava. O consumo de bebida alcoólica é um dos elementos frequentemente apontados como um problema na situação migratória, já que os estudantes ficam mais livres para consumir. Como se sabe, é proibida a comercialização de bebida alcoólica no interior das aldeias198, mas também há esse consumo na Aldeia Escalvado. Sobre a relação de sociedade indígenas e bebidas alcoólicas, Ferreira (2004a, p. 93) assinala: O fenômeno do uso de bebidas alcoólicas entre os Mbyá-Guarani situa-se no interior de uma cultura do contato (Cardoso de Oliveira 1976) produzida durante o processo histórico de contato interétnico. Ao consumo de álcool se agrega um conjunto de práticas e significados que articula as concepções e o estilo tradicional do grupo aos elementos da sociedade ocidental incorporados a esse universo (alimentos, músicas, bebidas alcoólicas etc), formando uma “cultura do beber” específico. 198 Ver Lei 176237. 191 No caso dos Ramkokamekrá-Kanela, o consumo de bebidas alcoólicas parece estar mais relacionado aos contatos mais intensos que eles vem mantendo com a cidade. Quando estão na cidade, a explicação seria a saudade que sentem da família e da sociabilidade da aldeia. Até julho de 2008, as funções ocupadas na Aldeia Escalvado por “índios” que estudaram na cidade eram: merendeiro, auxiliar de serviços gerais (zelador), agente indígena de saúde, professor, chefe de posto e cargos relacionados às “organizações indigenistas”199. O quadro de elaborei organiza parte dessas informações: QUANTIDADE FUNÇÃO NOME 1 Chefe de Posto Roberto Tunne. 2 Auxiliar de serviços gerais (zelador) Vladimir Rodiporo Canela Raul Kupako Canela. 1 Merendeiro Reinaldo Minkrô Canela 6 Agente Indígena de Saúde Beto Kokoro Canela Eduardo Karapê Canela Valdemar Cuukjêt Canela (“Yôhyô) Azevedo Kokruko Silvério Iromkró José Wôôpoc Babao 10 Professor Ari Korampey Canela Ricardo Kutokre Canela Jaldo Komopat Canela Jaldo Cothy Canela (“Canoy”) Reginaldo Uhoko Canela Armando Prefet Kapelikó Canela Raimundinho Paat-Tset (“Beato”) Raimar Ronkrainon Canela Vanildo Kukran Canela Cornélio Pijapit. Quadro 4 – Atividades desenvolvidas200 na Aldeia Escalvado por indígenas que estudaram em Barra do Corda (julho/2008) Dos nomes citados no quadro acima, ainda estudavam em Barra do Corda em 2004 os seguintes: Vladimir Rodiporo Canela, Reinaldo Minkrô Canela, Beto Kokoro Canela, Ricardo Kutokre Canela, Reginaldo Uhoko Canela, Armando Prefet Kapelikó Canela, Raimar Ronkrainon Canela e José Wôôpoc Babao. 199 Associação de professores, por exemplo. 200 Não dá para afirmar que o grau escolar é determinante na aquisição de certa função, tem influencia formal (para o Estado), mas depende mais do grau de responsabilidade com que vivenciou a experiência citadina. 192 Outros estudantes Ramkokamekrá-Kanela em 2004 já ocupavam ou passaram a ocupar outras atividades. Destaco a função de “estagiário” no NALKe de “diarista”201. Esta última, como se lê em Crocker (2007), passou a ser exercida também por Ângelo Karampej Canela e Fabiana Tehtê Canela, que estudavam em Barra do Corda tanto em 2003 como em 2004. Lê-se em Crocker (2007), sobre Ângelo Karampej: “é claro que ele recebe 100 com Crocker, ou receberá, porque ele é um de meus diaristas. Isso é bastante significativo”. Sobre Fabiana ele diz: “ela é uma das minhas novas diaristas”. Observei que, com exceção de trabalhos remunerados prestados às instituições que trabalham diretamente com os “índios”, os estudantes na cidade de Barra do Corda não tem uma atuação muito estável em outras ocupações citadinas. O chamado “bico” é a opção que estes estudantes encontram na cidade, a qual é sempre relacionada a tarefas manuais, como expressa Armando Prefet (julho/2008): Que lá não é como daqui não, mão pra lá mão pra cá, as vezes a gente procurava servicinho pra gente ganhar real pra lá no colégio merendar, as vezes pergunta na rua se alguém queria aceitar nós para trabalhar, as vezes algum branco que queria ajudar nos arruma um trabalho pra mim a gente trabalhava. Em 2003 Willian Crocker também identificou essa situação, a qual envolve estudantes indígenas, trabalho na cidade e preconceito. Crocker (2007) coloca: Então eu perguntei-lhe sobre o que é chamado trabalho de bico, que é “pequena obra” do lado, só pequenos postos de trabalho que você pode pegar, por isso ele faz alguns pequenos trabalhos de Ivã, um branco na área Incra. Ele limpa seu estaleiro três vezes, limpa em agosto, mas não freqüentemente. (...). Há um preconceito contra os índios, não tanto contra os Canela, contra os índios, em geral, por isso é muito difícil para elas para obter o emprego. A situação dos Ticuna difere sensivelmente da dos Ramkokamekrá-Kanela quanto à questão do trabalho na cidade. Como coloca Paladino (2006, p. 167): Não há fontes importantes de trabalho, apenas existem algumas serrarias e olarias onde alguns Ticuna se empregam, enquanto outros trabalham nas roças de moradores da cidade que possuem terras na periferia. As cidades proporcionam principalmente cargos na administração pública – os quais são muito desejados e disputados pelos Ticuna – em órgãos voltados para a assistência indígena, como a Administração regional da FUNAI, o DSEIAS202, 201 Sujeitos que recebem pagamentos de Willian Crocker para mantê-lo informado sobre o cotidiano da Aldeia escalvado. 202 DSEI significa Distrito Sanitário Especial Indígena. Para uma discussão mais especializada da atuação dos DSEI’s no Maranhão sugiro o trabalho de Cruz (2008, p. 161-194). 193 as prefeituras. Também alguns ocupam cargos políticos, como o de vereador nas Câmaras Municipais. Além das atividades descritas anteriormente, que são todas remuneradas, parte dos Ramkokamekrá-Kanela que tem ou tiveram uma experiência mais intensa na cidade dedicam-se a pequenas atividades comerciais na aldeia. Estas são feitas sem grande constrangimento por parte da comunidade, já que alguns produtos são demandados e não há um comercio formal atuando na aldeia. Por envolver a aquisição substancial de dinheiro, segundo nos foi informado tanto por indígenas (Raimundo Nonato Koire) como por não- índios (Eliane – ex-enfermeira da Aldeia Escalvado), os sujeitos que desenvolvem essas atividades estão sendo geralmente “escolhidos” para promover as “festas de índio”, já que sempre é necessário comprar muitos mantimentos. Provavelmente, como resultado da densidade populacional dos Ramkokamekrá- Kanela e do envolvimento com a educação escolar da cidade há também uma certa atuação de indígenas no contexto político mais localizado, ou seja, no atual município de Fernando Falcão203, no qual um indígena geralmente é eleito para a Câmara dos Vereadores204. Ressalto que existe um significativo eleitorado na Aldeia Escalvado, via a posse de “título de eleitor” pelos seus indivíduos. Esse eleitorado pode justificar a arregimentação política de alguns Ramkokamekrá-Kanela para compor chapas eleitorais. Cabe atentar que também é prerrogativa certa experiência em escolas na cidade. Na Aldeia Escalvado as funções de técnico de enfermagem e professores das séries do ensino fundamental maior205, assim como de diretoria e secretariado, são ocupadas por “não-índios”. Dessa forma, as funções a serem ocupadas por “índios” nas instituições de educação escolar e de saúde na aldeia, entre outras, necessariamente demandam experiência de vida escolar na cidade, seja para adquirir conhecimentos (mérito), seja para a construção do corpo passando por sacrifícios e sofrimentos, o que lhes daria legitimidade e reconhecimento frente à comunidade. Neste sentido, “se formar” não seria o único critério para ocupar um cargo, pois atribui-se também muita importância ao fato do sujeito ter 203 Eleitorado de aproximadamente 5.000 indivíduos. Este quantitativo não é oficial, pois corresponde a uma aproximação que fia do numero de votantes da ultima eleição. 204 Na última eleição da Aldeia Escalvado foram candidatos Antonio Kakrose e Severo Ronkor, sendo o último eleito. Raimundo Nonato Koire, que também estudou em Barra do Corda, já foi eleito vereador em uma outra eleição. 205 Apenas um indígena dá aula nesse ciclo. Trata-se de Cornélio Pijapit que dá aula também para a 6ª série. 194 vivenciado uma experiência citadina singular, diferenciando-se dos demais. Sobre o caso dos Ticuna, Paladino (2006, p. 270) diz que a representação feita sobre a relação “estudar na cidade” e “ocupar um cargo” se expressa no que segue: (...), os que estudam em um meio não-indígena “merecem um cargo”, pelas dificuldades, por causa das lutas e dos sacrifícios que tiveram que enfrentar. Dessa forma, mais do que as habilidades e os conhecimentos adquiridos durante o estudo na cidade, o que conta é o capital simbólico que acumularam com seu esforço e sofrimento. É patente que um dos critérios para ocupar um cargo na área da saúde ou da educação na Aldeia Escalvado é o conhecimento escolar, porém este não é o único. Nessa definição também estão relacionadas questões de parentesco, pois esta instituição e as relações de poder internas à sociedade indígena em questão são observadas na seleção dos indivíduos que, depois da migração, ocuparão parte dos cargos na aldeia. A seleção para professor das aldeias, no contexto maranhense, não obedece apenas critérios meritocráticos, pois os indivíduos têm que ser apoiados/aceitos pela comunidade indígena, o que implica em reconhecer também suas com os membros da aldeia. Esta situação provoca constrangimentos ao Setor de Educação Indígena da Secretaria de Educação do Estado do Maranhão, pois fica impossibilitada de lotar certos indivíduos que mesmo tendo sido aprovados nos seletivos não são aceitos pelas aldeias. Recentemente, em julho de 2009, não foi possível, no Setor de Educação Indígena da Secretaria de Educação do Estado do Maranhão, ter acesso aos nomes dos professores que haviam sido aprovados no último seletivo dá aula na escola da Aldeia Escalvado. A justificativa do gestor foi que não havia ainda ocorrido a divulgação oficial e por isso não podia dispor a informação. No entanto, em conversa informal em Barra do Corda com Edjane Soares Silva (professor/secretário não-índio da Aldeia Escalvado), fui informado que o irmão de Ari Korampey, Ângelo Carampej havia sido selecionado no último seletivo (2009). Configura-se assim um cenário para questões referentes à possível influência de parental no processo. Como disse nosso “interlocutor”: “ele [Ari Karampey] tentou até que conseguiu colocar seu irmão”. Por ser um dos indivíduos que tem uma trajetória peculiar e uma atuação diferenciada na aldeia, e fora dela, principalmente frente às agências estatais, Ari, poderia se utilizar de sua influência nessa seleção para ocupar cargos na aldeia. Não se trata aqui de 195 questionar a legitimidade ou as condições de Ângelo Carampej assumir o cargo de professor, mas de refletir sobre os critérios que estão em jogo nesses processos. No censo que levantei em 2004206 o nome de Ângelo Carampej consta como um dos Ramkokamekrá- Kanela que estudavam em Barra do Corda, no Complexo Educacional Dom Marcelino (1ª Ensino Médio), assim como outros oitos alunos no mesmo nível escolar. Em um encontro que tive com Evandro Kapreprêc (maio/2009), em Barra do Corda, soube que ele também havia sido selecionado no último seletivo, porém destaco que o mesmo ainda estudava em Barra do Corda em 2008. Que critérios estariam em jogo nessas “escolhas”? Não foi possível investigar profunda e especificamente a possível relação entre parentesco e ocupação de um cargo na aldeia207, no entanto deve-se considerar a possibilidade de favorecimentos que relacionariam os Ramkokamekrá-Kanela “escolhidos” para ocupar estes cargos com as suas relações com as lideranças na aldeia, assim como com as agências institucionais do Estado. Esta flexibilidade ou arbitrariedade seletiva, que outorga também poder de decisão à comunidade, é evidente, entre outros fatores, desde a “escolha” dos Ramkokamekrá-Kanela que estudarão fora da aldeia, já que há a necessidade da aprovação do que chamam “Conselho Indígena”. 5.5 – Até junho de 2008208: para uma contextualização mais recente da presença de estudantes Ramkokamekrá-Kanela em Barra do Corda Como sugerido em outros momentos do trabalho, privilegio também o discurso de agentes que não são Ramkokamekrá-Kanela, mas que estão envolvidos com suas questões, principalmente com a temática da migração para estudar na cidade. Neste sentido é importante atentar para o discurso do ex-administrador do NALK e que é atualmente (2009) vice-prefeito de Fernando Falcão, chamado Raimundo Franco, que em janeiro de 2008, informalmente, disse-me: 206 Ver Anexo 1. 207 Outras formas de acesso a cargos de professor na Aldeia Escalvado, além da experiência fora da aldeia, são a formação nos cursos de “Magistério Indígena” promovidos pela Secretaria de Educação do Estado do Maranhão (COELHO E SOARES, 2008, p. 85-105) e a arregimentação feita pelo Centro de Trabalho Indigenista – CTI. Pode-se afirmar que essas três experiências, geralmente, fizeram parte da trajetória dos atuais professores índios da Aldeia Escalvado. 208 O título inusitado tenta explicar que a maioria dos dados a serem expostos são referentes um período específico, o qual antecede o retorno em massa dos estudantes Ramkokamekrá-Kanela para a aldeia em junho de 2008. 196 ... os estudantes Ramkokamekrá se deslocam para estudar em Barra do Corda devido ao baixo nível escolar dos professores que lecionam na aldeia, pois atualmente há ensino fundamental maior na aldeia Escalvado209, mas a migração da aldeia para a cidade continua do mesmo jeito. Percebi que antes de conversarmos, esse “interlocutor” estava em reunião com um “índio”, pai de um aluno da aldeia, e ele estaria descontente com a “maneira solta” da escola de lá. Neste sentido, o discurso dele, que tem conhecimento de que a FUNAI não é mais (oficialmente) responsável pelas questões da educação escolar para sociedades indígenas, pareceu pauta-se nas reclamações informais que continua recebendo dos “assistidos”. O “baixo nível dos professores na aldeia” teria implicações no desejo de mandar os filhos estudarem na cidade e aparentemente decorre da exigência indígena, legalmente reconhecida, de ter professores também “índios” em suas escolas. A equiparação na quantidade de professores “índios” e “não-índios” na Aldeia Escalvado (pelo menos no que se refere aos que lecionam no Ensino Fundamental Menor) pode explicar as críticas do “baixo rendimento” dirigida sobretudo aos “índios”, pois os pais dos alunos avaliam comparativamente a atuação dos professores “índios”, os quais, como vimos, são selecionados por critérios diferenciados e respondem a uma expectativa muito mais pautada no “esforço iniciatório” da experiência citadina do que nos seus méritos escolares. Assim, eles deixariam “a desejar” quanto ao domínio de certos conteúdos. A incerteza sobre as aulas na aldeia também é elemento considerado no contexto do processo migratório, pois tanto os “índios” como os professores não-índigenas da Aldeia Escalvado afirmam que é melhor estudar na escola da cidade do que não estudar. Como observou Ari Karompey (maio/2008), “eles vem pra cidade porque não querem perder o ano letivo”. A instabilidade do processo de seleção dos professores que darão aula nas aldeias no Maranhão promove assim o descrédito dos professores que atuam nas aldeias, já que a “falta” do contrato é associada ao professor não querer dá aula. Essa situação promove a escola da cidade em detrimento daquela da aldeia: pelo menos naquela há “aula normal”. 209 Implantado em 2006 (ver MARANHÃO, 2008, p. 5). 197 Ter “aula normal” significa vivenciar uma rotina escolar210 que tem valor simbólico de um “rito de iniciação”, considerado necessário ao fortalecimento do corpo. Como já observado, o discurso de Raimundo Franco (janeiro/2008) sugere que a proporção de Ramkokamekrá-Kanela estudando fora da aldeia não varia de forma considerável. Esta informação pode ser verificada quando comparamos os dados quantitativos de 2004 e 2008, que alcançam respectivamente a quantidade de 53211 e 67. Esta variação mínima corrobora com o posicionamento de Edjane Soares (professor “não- índio” - fevereiro/2008): No que diz respeito aos alunos que migram para estudar em Barra do Corda, não há diminuição, nem mesmo com a implantação do ensino fundamental maior na aldeia. Eles [os Ramkokamekrá-Kanela] não confiam na escola da aldeia, já que ninguém sabe quando começa, quando termina ou se termina. O quadro abaixo apresenta o levantamento sobre os Ramkokamekrá-Kanela que estudavam em escolas fora da aldeia, ou seja, na cidade de Barra do Corda – MA em junho de 2008212. Nº Nome Local de residência P213 Nascimento Filiação BC 2004214 1 Celso Cohham Canela Casa de Severo215 X 15/09/1983 Severo Ronkor e Helena Krytkwýj X 2 Eduardo Pronuci Kanela Casa de Severo 3 Misael Krotô Kanela Casa de Severo X 13/03/1992 Severo Ronkor e Helena Krytkwýj 4 Franci Krekré Kanela Casa de Severo 5 Abraão Kapreprec Casa de Adriana Konykrê216 19/03/1982 José Augusto Karampej e Vitória Korroc X 6 Daniel Catõc Casa de Adriana 17/02/1990 Antonio Tunicô e Maria Castela Pijapit X 210 Ficar sentado na sala de aula por várias horas, ter aula todo dia, etc. 211 Ver Anexo 1. 212 Como nas instituições que trabalham com educação escolar e sociedades indígenas não há uma sistematização sobre os Ramkokamekrá-Kanela que estudam em Barra do Corda tive que elaborar nosso próprio quadro. Este foi produto de diálogos com diversos agentes (índios e não-índios), em diversos lugares (aldeia e cidade) e em diversos períodos da pesquisa de campo. Algumas informações importantes não estão no quadro, como em que escolas cada um estuda, essa alternativa devesse a regularidade das instituições de ensino para onde se dirigem na cidade. A ausência dessa informação no quadro não significa que não serão trabalhados dados sobre o assunto. 213 Alunos cujo se sabe que o pai teve alguma experiência escolar fora da Aldeia Escalvado. 214 Indivíduos Ramkokamekrá-Kanela que em 2004 estudavam em Barra do Corda. Ressalto que a quantidade de estudantes Ramkokamekrá-Kanela em Barra do Corda nesse período era de 51 indivíduos. 215 Rua Professora Safira, bairro Nossa Senhora das Dores. 216 Rua Fortunato Ribeiro, nº 61, bairro Nossa Senhora das Dores. 198 Konykrê 7 Amarildo Jônhkrin (Powei) Canela Casa de Adriana Konykrê X 25/01/1994 Ricardo Cuhtakré e Arlene Turnkwyi 8 Eliene Katoto Canela Antonio Tunicô e Maria Castela Pijapit 9 Amaury Parkum Canela Casa de Adriana Konykrê X 11/12/1996 Ricardo Cuhtakré e Arlene Turnkwyi 10 Normar Tamim Casa do Estudante 09/09/1992 Mirandinho Minkrô e Lindalva Kraxy 11 Cleide Iromikoi Canela Casa do Estudante217 02/06/1988 José Karotio Canela e Joana Korene Canela 12 Ivonete Kamprê Casa do Estudante X 24/06/1977 Getúlio Cohtete e Luzia Amidipen 13 Eliene Jahtop Casa do Estudante X 19/08/1990 Severo Ronkor e Helena Krytkwýj 14 Fabiana Tehtê Casa de José Ribamar218 30/10/1986 Eliza Kaiarij 15 Silvana Pyhkwyj Canela Casa de José Ribamar 19/05/1992 Marinho Kpupkin Canela e Zilda Tegurá Canela 16 Jaceline “Babau” 17 Arlene Kroitxene Casa alugada219 X 14/04/1988 José Gregório Paltói e Kruguie 18 Poliana Kwympê Casa alugada X 23/04/1990 José Gregório Paltói e Kruguie 19 Jurema Kuprô Casa alugada X 30/07/1995 José Gregório Paltói e Kruguie 20 Adélia Cupjê Casa própria220 X 09/07/1991 Antonio Kacrose e Aldener Koire 21 Sara Wôôkwýj Casa própria X 20/07/1995 Antonio Kacrose e Aldener Koire 22 Ruth Parkrit Casa própria X 20/07/1995 Antonio Kacrose e Aldener Koire 23 Oziel Iromcukre Casa do Estudante 06/05/1986 Raimundinho Krôôtô e Maria de Lourdes Koró X 24 Evandro Kapreprêc Casa do Estudante 01/04/1987 Majo Jepej e Carminha Prûmkwýj X 25 José Nildo Portyj Canela Casa do Estudante X 03/05/1992 José João Wôôpôc Canela e Patrícia Pukine Canela 26 Jacelina Jôkrá Canela Casa do Estudante X 03/06/1998 José João Wôôpôc Canela e Patrícia Pukine Canela 27 Valdo Kni pót Canela 17/04/1993 Ademir Krodor e Regiane Krin-kó Canela 28 João Batista Abii Canela 04/04/1991 Paulo Ractoo Cot 217 Rua João Pinto, s/nº, bairro Nossa Senhora das Dores. 218 Bairro Nossa senhora das Dores. 219 Bairro Nossa Senhora das Dores. 220 Bairro Altamira Dois. 199 Canela e Marizete Hôlaalac Canela 29 Silas Parkô Canela X 09/09/1992 Satú Canela e Risinete Cuhtoo Canela 30 Josely Cumâkhêj Canela Casa alugada221 24/04/1991 Manoel Tomas Kut- Kut Canela e Claudete Gruguinon Canela 31 Zezico Krotôi Canela Casa do Estudante 03/07/1984 Antônio Tunikô e Daci Athu-Koi 32 Jailson Kenpej Casa do Estudante 02/09/1990 33 Tafarel Poxy Casa de Estudante 18/08/1989 34 Flauklins Ryjipry Casa do Estudante 05/08/1988 João Caçar e Maria Kenekwýj 35 Adão Jit Canela Casa do Estudante 08/12/1990 Luís Liu Kroprei Canela e Dona Mariinha Kunikrê Canela 36 Romaro Hamren Casa do Estudante X 02/08/1980 José Cadete Racrit e Merci Klyhkwýj 37 Dionaldo Parry Canela Casa do Estudante 01/11/1988 José Rolino Mããxy Canela e Lili Krainon Canela 38 Jorge Iacrat Canela Casa do Estudante 20/06/1988 José Maria Iko Canela e Nicolete Pukoi Canela 39 Dermivaldo Casa do Estudante 40 Jair Rotokoto Canela Casa do Estudante 05/10/1985 Acrísio Pokane e Rosalina Kukoi 41 Anacleto Cacró Canela Casa do Estudante X 06/12/1990 Ângelo Korampey Canela e Vera Lúcia Roroc Canela 42 Jaldo Krahkjê Casa do Estudante 28/10/1991 Majo Jepej e Carminha Prûmkwýj 43 Norman Casa do Estudante 05/05/1992 Mirandinha Minikrô Canela e Lindalva Krotoi Canela 44 Jaime Canôj Canela Casa do Estudante 12/05/1990 Venusia Prunkoi Canela 45 Ilário Casa do Estudante X 46 Ronaldo Casa do Estudante 47 Lênio Casa do Estudante 48 Valmer Casa do Estudante 49 Dário Kaapej Canela Casa do Estudante 30/06/1990 Juvenal Palikré Canela e Carmen 221 Rua Alberto Falcão, nº 47, bairro Cohab. 200 Popikoi canela 50 Leonel Casa do Estudante Hogo Pogahtwy e Joana Amidigaron 51 Josuel Hehtýj Casa do Estudante 04/07/1986 X 52 Reginaldo Casa do Estudante X 53 Delto Casa do Estudante 54 Edimar Ronkwýj Casa do Estudante 02/02/1984 X 55 Alfredo Rodipôro Canela Casa do Estudante 02/05/1984 José Viajante Wakai Canela e Delaide Karapó Canela X 56 Vanaldo Kranre Casa do Estudante X 22/08/1983 Aristides Kaaprêprêc e Alderina Rakahtýj 57 Virgílio Jepej Casa do Estudante 04/03/1986 Clementin Pawahtêc e Lúcia Jatkré 58 Júlio César Krãhguron Canela Casa do Estudante 04/07/1991 Antônio Palutoi Canela e Maria Dalva Võkoi Canela 59 Júnior Ironkró Canela Casa alugada222 X 21/01/1992 Euclides Gomes da Silva e Engraça R. Pukoi Canela 60 Marcio Pryntap Canela Casa do Estudante X 05/12/1991 Hildo Cleclete Canela e Valéria Tigre Canela 61 Eduardo Filho Junkrainó Canela X 23/08/1992 Eduardo Kapi Canela e Ana Maria Kalén- Koi Canela 62 Isac Rôcrow Canela 28/11/1990 Adriano Popit Canela e Elizabete Krinon Canela 63 Edson Katud-Kó Canela 02/04/1984 Cristiano Iantê e Eurides Iagãn Canela 64 Jailson Kempii Canela X 02/09/1990 Jaldo Komopat Canela 65 Rodrigo Cuhtyy Canela X 22/05/1988 Ildo Cleclet Canela e Valéria Tigre Canela 66 Valmer Ahgukré Canela Casa do Estudante 15/11/1991 Valter Kodetete Canela e Claudina Oropó Canela 67 Raimar Thuaré Casa própria X Aristides Kaaprêprêc e Alderina Rakahtýj Quadro 5 – Estudantes Ramkokamekrá-Kanela em Barra do Corda até junho de 2008223 Percebe-se que a saída para estudar fora da Aldeia Escalvado ocorre tanto entre os homens como entre as mulheres. No entanto, há diferenças. Enquanto os homens são incentivados a estudar fora e se representante da família e da comunidade, as mulheres não 222 Rua Haldem Martins Jorge, bairro Altamira. 223 Algumas informações que completariam o quadro não foram possíveis conseguir. 201 são com a mesma intensidade. A lógica organizacional dos Ramkokamekrá-Kanela pode ajudar a entender essa questão, pois nos matrimônios que sai da casa materna é o marido e não a mulher, passando a habitar um lugar diferente, a casa dos sogros: são uxorilocais. Assim, Nesse sentido, haveria uma diferença de papeis sociais, onde os homens seriam os sujeitos legítimos do trânsito e do estabelecimento das alianças com um outro grupo. Para os homens, se casar implica em deixar a casa materna, o que pode ajudar a lê a saída da aldeia para estudar da seguinte forma: estudar na cidade implica “deixar” a sociedade materna em busca de novas alianças. Um ponto a ser considerado é que entre os Ramkokamekrá-Kanela, quando nasce os filhos do casal o esposo passa a morar em uma casa diferente da dos sogros, atrás da deles, o que diminui suas obrigações com esta casa. De modo análogo, ao estudar na cidade, os “índios” se adequar a uma série de obrigações diferentes, da escola e da cidade. Ao adquirir os conhecimentos necessários ou ao “se formar”, estas obrigações são suspensas ou diminuídas, pois há o retorno. A “mediação” é o que estão em jogo nesses sistemas de interação: matrimonio e migração para a cidade. Sendo assim, o distanciamento ou o que chamei “afinização do consangüíneo” passa a ser necessário à manutenção das relações entre indivíduos, famílias e sociedades. As formas de moradia na cidade também revelam as peculiaridades desse processo: existem estudantes que ao chegarem na cidade se alojam na chamada “Casa do Estudante” ou “Padaria”224. Outros vão para casa de familiares (“particulares”), as quais são próprias ou alugadas225. Segundo os “interlocutores”, essa diferenciação decorre do poder aquisitivo dos parentes: os mais abastados residem em “casas particulares”, os manos na “Casa do Estudante”. Ela também depende da condição objetiva do estudante migrante trabalhar ou não na cidade. As “casas particulares” - com exceção da de Antonio Kakrose e de Josely Cumâkhêj Canela - são bem próximas da “Casa do Estudante”. A “Casa do Estudante” é composta por três estruturas físicas, não conjugadas (foto 6), onde moram misturados tanto homens como mulheres. Há uma televisão e um aparelho de dvd de propriedade particular de Edimar Ronkwýj, mas são utilizados por todos. A 224 Neste local funcionou anteriormente uma padaria financiada por Willian Crocker para que os Ramkokamekrá-Kanela na cidade pudessem melhor se manter. A iniciativa não teve sucesso e passou a servir como mais um cômodo da “Casa do Estudante”. 225 A presença nessas de parentes que não estudam sugere haver o acompanhamento de parte da família. 202 geladeira, a mesa e o fogão de barro (foto 8) também são usufruídos por todos. A existência de um banheiro com ducha (foto 7) fora da casa não pareceu incitar os moradores a se banharem nele: geralmente banham-se à beira do tanque. Mesmo com vizinhança “não- índia”, alguns estudantes se trajam semelhante á aldeia, ou seja, freqüentemente algumas mulheres não cobrem a parte superior do corpo, usando apenas o que chamam de “pano”226. Raramente eles permaneciam diante da casa, preferindo reunir-se no quintal. Essa situação também foi observada nas “casas particulares”. Foto 6 – “Casa do Estudante” em agosto de 2008227. Foto 7 – Banheiros Foto 8 – Fogão de Barro No período da pesquisa, a organização dessa casa se dava por meio da fiscalização geral de Ari Karompey, lotado oficialmente como professor do Centro de Ensino General 226 Pedaço de chita que as mulheres usam em volta da cintura. 227 Trata-se de uma foto-montagem minha, já que não era possível tirar a foto de todo a fachada. O estado de depredação lastimável decorre da briga de junho de 2008 e sucessivos arrombamentos. 203 Bandeira de Melo. Na esfera cotidiana, eleito por eleição direta, Oziel Iromcukre assumia essa atribuição. Nessa casa havia um quadro de atividades a serem cumpridas pelos moradores, referente à sua limpeza, que reproduzo aqui: Segunda Terça Quarta Quinta Sexta Sábado Tafarel Franklins Adão Romaro Dionaldo Zezico Jorge Dermivaldo Jair Anacleto Evandro Jaldo Normar Jaime Eduardo Filho Flavio Ronaldo Lenio Valmer Dario Leonel Josuel Reginaldo Jailson Delto Oziel Edimar Alfredo Vanaldo Virgílio Quadro 6 – Relação de Limpeza da “Casa do Estudante” O quadro de limpeza acima diferencia esta casa das “casas particulares”, pois nestas últimas quem faz o trabalho doméstico são as mulheres que acompanham os esposos. Nessas casas sempre há alguma mulher, que é responsável pelos afazeres domésticos. Na “Casa do Estuidante”, como informou Oziel (junho/2008), também ocorre a contratação de serviços de faxina das estudantes mulheres que lá residem e que não são inseridas no quadro de limpeza. Nesta casa as índias não teriam responsabilidade com a coletividade, mas apenas com sua família ou seu esposo, o qual tem que concordar antes que ela faça algum serviço228, remunerado ou não, para outrem. As “casas particulares” podem ser “próprias”, como é o caso das casas de Roberto Tunne, “Seu Riba”, Antonio Kakrose, Adriana Konikrê e Servero Roncor, ou “alugadas”, como as demais. A partir da observação da “casa particular” que tive maior inserção, a de Adriana Konikrê, pode-se fazer as seguinte consideração: estas têm uma dinâmica mais próxima daquela da aldeia, pois geralmente as mulheres são responsáveis por todas as atividades do lar: limpar, cozinhar, cuidar das crianças, etc. No início do mês de junho de 2008, a sogra de Abraão (meu pai cerimonial na aldeia), disse que Karina (minha mãe cerimonial na aldeia) “tá na cidade é pra cuidar da casa e dos parentes”229, o que demonstra a função representada para a mulher nessas moradias. 228 Lavar roupa, por exemplo. 229 Referia-se aos outros Ramkokamekrá-Kanela que estudavam na cidade e que moravam na casa. 204 As “casas particulares” (fotos 9, 10, 11 e 12) respeitam o padrão do Bairro Nossa Senhora das Dores230, sendo compostas de dois a quatro pequenos cômodos. Foto 9 – Casa de Severo Roncor Foto 10 – Rua da casa de Severo Roncor Foto 11 – Casa de Adriana Konikrê Foto 12 – Rua de uma casa Alugada231 Essas moradias também são locais de comercio de artesanato, trazido da aldeia ou confeccionado lá mesmo, o que equilibra a relativamente a situação de contato dos Ramkokamekrá-Kanela pelo menos no Bairro, onde dividem com os “não-índios” os problemas de infra-estrutura local. 230 Souza e Repetto (2007, p. 16), sobre os indígenas da cidade de Boa Vista (RR), coloca: “Constatamos na pesquisa que muitos dos indígenas moram nos bairros periféricos, que surgiram de invasões e que não dispõem de infra-estruturam e nem de saneamento básico adequados para oferecer às mínimas condições de vida. (...), ao chegar à cidade, se alojaram [os indígenas] em casas de parentes e amigos. Geralmente essas pessoas vivem em dependências alugadas, devido às dificuldades em adquirir uma casa própria no contexto urbano”. 231 A quinta casa da esquerda para a direita. 205 Durante a minha estada em Barra do Corda, mais precisamente no dia 28 de maio de 2008, fui convidado232 por Ari Karompey para participar de uma reunião que se realizou na “Casa do Estudante”, e que trataria dos seguintes pontos: recurso destinado pela FUNAI aos estudantes da cidade, alcoolismo, transporte escolar, higiene, festas na cidade, brigas, educação, esporte e lazer, diferença cultural e direitos/deveres dos estudantes. Destes apenas foi tocado em três itens: recurso, bebida e direitos. O desfecho da reunião pode ser sintetizado através do discurso de Ari Karompey, já que os demais participantes pouco ou nada falaram: “muitos estudantes vem para a cidade não pensa só na cultura do não-índio, mas para reforçar a sua identidade”. Tem-se sugerida a importância da alteridade para o auto-reconhecimento. O tema do alcoolismo na cidade é também muito presente e foi discutido naquela reunião nos seguintes termos: “este problema é de todos nós”, lembrando aos estudantes da cidade que eles “não estão de férias, mas vieram para fazer um bem para a comunidade” (Ari Karompey, maio/2008). A questão dos direitos referia-se apenas a aprenderem a fazer projetos. As críticas dos Ramkokamekrá-Kanela sobre sua situação na cidade estiveram voltadas para a atuação (falta de atuação) do NALK. Segundo os participantes daquela reunião, este órgão não os ajudava, “apenas pagava a energia e a conta de água”. Acusavam de a FUNAI deixá-los passar fome na cidade, “pois não dá comida, só o materialzim do colégio”. Percebe-se que ainda há a representação da FUNAI como órgão tutor para todos os assuntos referentes aos indígenas, mesmo diante de todas as mudanças políticas já ocorridas. Assim como existem as dificuldades logísticas da assistência, também existem as dificuldades escolares percebidas nos discursos dos Ramkokamekrá-Kanela e também durante as aulas em salas de escolas em Barra do Corda. Geralmente os Ramkokamekrá-Kanela estudam em Barra do Corda no Dom Marcelino de Milão, Maria Safira, Maria Emídia, Edson Lobão, que são escolas publicas e localizam-se no Bairro Altamira, próximas das casas dos Ramkokamekrá-Kanela já mencionadas. Raramente estudam em escola particular. Os casos que conheci referem-se ao 232 Havíamos nos encontrado na FUNAI uma semana antes. 206 de Roberto Tunne, Vanildo Kukran e Raimar Thuaré, que tiveram ou tem experiência escolar no Colégio Nossa senhora de Fátima233. Na escola Dom Marcelino de Milão, onde presenciei algumas aulas juntamente com os alunos Ramkokamekrá-Kanela percebi que não mantém contatos constantes com os outros alunos não-índios. Nas salas observei que eles ficam restritos a um canto da sala e quase não se manifestam, a não ser para responder “presente” durante a chamada. Esse comportamento faz com que os mesmos sejam representados pelos professores como “bons alunos”, pois não “atrapalham a aula”. O incômodo que existe, e que, como já vimos, se estende aos demais não-índios em Barra do Corda, é o fato deles se comunicarem na língua materna. A dúvida sobre o que falam às vezes provoca uma repressão do professor. Isso ocorreu precisamente numa aula de matemática que presenciei em maio de 2006 (1º ano B do Ensino Médio - vespertino) onde dois Ramkokamekrá-Kanela dialogavam. Sob a justificativa de que na sala de aula tinha visita, eu, eles teriam que falar só em português. As diferenças desses alunos são percebidas pelos funcionários das escolas na cidade, porém o tratamento diferenciado de que falam é “ajudar o índio a se desenvolver”. Neste sentido, a “diferença”’ é ainda percebida como algo a ser superado, algo transitório. Em outras situações, que podem ser confirmadas pelas notas dos estudantes indígenas na cidade234, percebe-se haver certa condescendência por parte dos professores na cidade, suposição confirmada pelo professor Edson Lima (julho/2008, grifos meus), que dava aula na Aldeia Escalvado até julho de 2008 e que já deu aulas no Dom Marcelino para estudantes Ramkokamekrá-Kanela. (...) como vizinhos são bons vizinhos e com relação à escola eu tive alunos na escola lá em Barra do Corda, inclusive no Dom Marcelino na época que eu trabalhei tive dois alunos índios inclusive daqui, e tive lá no (? Lazaro) onde eu trabalhei em 2005 vários daqui também, quanto a participação deles na escola é regular, é regular, é aquela participação boa, mas deixa a desejar um pouquinho; a parte melhor é essa que você relatou sobre o comportamento e a assiduidade, eles são assíduos, eles freqüentam bacaninha, também chegam ali pro seu cantinho e acabou sendo uma pessoa que saiba fazer uma forma de investigação, pra fazer com que eles se sintam à vontade, uma certa estimulação. Às vezes houve um falar alguma coisa citar algum exemplo, pelo menos de algo próprio deles, mas caso contrário eles passam o ano todinho naquela sala de aula e respondem pra professora ou para o professor somente “presente”. Acabaram? 233 Raimar Thuaré (maio/2009) informou-me que o pagamento das mensalidades dessa escola, assim como no período de seus irmãos Roberto Tunne e Vanildo Kukran, é feito pelo pesquisador Willian Crocker. 234 Os Ramkokamekrá-Kanela geralmente tem a mesma nota e o mesmo numero de faltas, o que gera dúvidas quanto a isonomia do tratamento. 207 Acabaram de copiar?’ Eles ficam olhando um pro outro e esperam um não índio falar: “acabamos”. Porque ele mesmo não quer dizer nada. Ai fica a dúvida que não aprende português lá fora, por quê? Porque ele não procura se expressar, ele não entende, ele não pergunta, ele tem medo de perguntar. O português pro índio é sempre assim, da forma que nos vemos o Ari que ele tenta o máximo até que acaba nadando no seco com relação ao português. Nós vimos também o exemplo clássico que estudou em escola particular, morou a vida praticamente lá fora, o Roberto, mas ele em português é regular, pelo menos o pouco que se ouve falar é regular e... e assim eles andam, o andamento deles na escola não é dos melhores, ai passam de ano, passam de série porque muita coisa hoje conta se fosse como o estudo da antiguidade, digamos de vinte anos atrás não passariam a metade, não passariam de série. Se ele tem freqüência, se a freqüência dele é razoável a boa, então tem de passar, porque senão vem uma força superior chega vai nos botar lá em baixo. É aquela coisa, então leva pra frente lá quem pegar lá adiante da um jeito de empurrar pra frente também é parecido com isso, é o desempenho deles lá na cidade o que diz respeito aos índios. O quadro 5 também demonstra certa relação entre os estudantes Ramkokamekrá- Kanela de hoje e o fato de seus pais terem tido algum tipo de experiência escolar na cidade. Não se trata aqui de considerar que filho de migrante será migrante, mas sim de perceber que ao estudar na cidade o indivíduo tem maior possibilidade de conseguir ocupar uma posição cuja remuneração possa manter seu filho, caso este tenha o interesse de estudar fora da aldeia. Como expus, a assistência faz parte das questões-chave da vida indígena na cidade. Tanto aqueles que habitam a “Casa do Estudante” como as “casas particulares” recebem ajuda dos pais, seja pelos produtos da roça ou pelos benefícios estatais. As dificuldades de manutenção na cidade contrastam com o ideal de “boa vida” que a cidade, assim como é representada, poderia oferecer. Porém, essa adversidade não é percebida como justificativa para desistência. Ao contrário, alguns se interessam em cursar uma universidade e poderem fazer pesquisas em suas aldeias, como para Evandro (maio/2008) que perguntou-me sobre a forma de ingressar numa Universidade. Os discursos dos Ramkokamekrá-Kanela, em geral, corroboram com muitas das informações que mencionei anteriormente. Mas cabe acentuar o texto de Júlio César (julho/2008), que exemplifica como as preocupações dos estudantes Ramkokamekrá- Kanela migrantes não se alteram substancialmente: E minha vida em Barra do Corda. Eu quero aprender muita coisa com o branco quando eu pense na minha família ninguém saber porque eu estuda em barra do corda eu quero aprender mas as vez mas tarde eu vou me forma e ajudar família o povo. 208 Finalizando esta parte do trabalho para passarmos às nossas apreciações finais, acredito ser de grande pertinência mencionar professor “índio” da Aldeia Escalvado que, além de expressar a complexidade da relação interétnica em Barra do Corda, aponta para os desacordos que atuam no campo intra-étnico, os quais, conforme percebo, são diluídos quando o contexto social envolve uma agência mais distanciada, como um cupê ou a cidade. Jaldo Cothy (julho/2008) assim se expressou sobre o acontecido de junho em Barra do Corda e parte de seus desdobramentos: (...) até eu já sei o cara lá procurando pela maconha, aí o índio falou pra ele que não tem, num usa, aí o cara jogou um copo de cachaça na cara do índio, aí o índio derrubou ele, ele tava fraco né, e ele tava sem nada, sem faca, aí só que deu certo e nós saímos de lá deles. Isso que eu vim percebendo que o jovem, o próprio jovem canela vem atrás disso, atrás de uma coisa que não serve pra eles mesmos. O outro que tava lá querendo estudar, querendo aprender alguma coisa prejudicou a vida dele lá. É, em vez de terminar esse meio do ano e esse que tava lá querendo só daquele jeito, só quer beber cachaça, só quer andar lá pra festa, pronto acabou, atrapalhou todos eles, meu filho tava com eles lá, agora tá prejudicado nesse ano, agora vai continuar 7ª série de novo aqui, agora eu não deixo mais ele ir, junto com eles, eu não sei se futuramente um colega dele que não bebe cachaça, que não fuma maconha, que não fuma até fumo eu posso deixar junto com ele, esse é minha intenção pra ele. Portanto, se entre os Ramkokamekrá-Kanela há desacordos quanto aos desdobramentos coletivos de uma briga individual – inicialmente – onde todos sofreram as conseqüências (retorno em massa para a aldeia e quase perda do ano letivo), quando os mesmos são colocados diante de “não-índios” haveria uma certa diluição dessas diferenças, pois nesse caso considera-se não só o evento em si, mas também as relações de sociabilidade que o antecedeu. 209 6 – PARA CONCLUIR, INQUIETAÇÕES: uma leitura da relação com a alteridade a partir da narrativa sobre Awkê No presente trabalho, optei por concluir expondo uma leitura da migração aldeia indígena-cidade a partir da narrativa do “herói cultural” dos Ramkokamekrá-Kanela: Awkê. Os eventos históricos e as demandas que possivelmente justificariam as iniciativas de sair da aldeia, como entendo, só explicam em parte este processo, pois as motivações para “buscar a cidade” sugeridas por nossos “interlocutores” indígenas são relativizadas pelas suas próprias atuações. Viu-se nas páginas anteriores que o atendimento a uma certa demanda, como a instalação na aldeia de um determinado nível escolar, não é suficiente para reduzir a saída da aldeia, pois migrações de segmentos de populações indígenas não são um fato recente. Sendo assim, se as justificativas explícitas são parciais pelo próprio desfecho que tomam quando do atendimento de suas demandas, uma via a se considerar é enveredar pelos caminhos da análise de narrativas-míticas e sua potencial relação com a nossa problemática. Tratar esse tema envolvendo narrativas dos Ramkokamekrá-Kanela requer confrontar uma diversidade de versões, as quais nem sempre se coadunam completamente. Em relação à migração para estudar na cidade, que estabelece a relação mais direta dos Ramkokamekrá-Kanela com a alteridade, a narrativa sobre Awkê pareceu a mais próxima, pois explicita um contexto em que são encontrados diversos elementos relacionados com o que discuto nos capítulos precedentes: escolhas, relação com a alteridade, sofrimentos, distanciamento, retornos etc. Dos elementos acima, o distanciamento e o retorno são indispensáveis para compreender a problemática, já que para experimentar (n)a cidade, como percebe-se entre os Ramkokamekrá-Kanela, é necessário se aproximar dela. No entanto, não se pode distanciar muito da aldeia ou do campo simbólico desta, pois há constantemente a expectativa do retorno. A instabilidade percebida nas versões235 sobre Awkê demonstram certa flexibilidade nas narrativas, que se transformam mediante situações novas que aparecem, porém não morrem. Como expõe Lévi-Starus (1993, p. 261): 235 Ver Anexo 2 e a narrativa que expus na terceira parte desse trabalho. 210 Sabemos, com efeito, que os mitos se transformam. Estas transformações, que se operam de uma variante à outra de um mesmo mito, de um mito a um outro mito, de uma sociedade a uma outra sociedade com referência aos mesmos mitos ou a mitos diferentes, afetam ora a armadura, ora o código, ora a mensagem do mito, mas sem que este deixe de existir como tal; elas respeitam assim uma espécie de principio de conservação da matéria mítica, em função do qual de qualquer mito sempre poderá sair outro mito. A persistência dessa narrativa corrobora para a percepção de que há orientações destas nas performances migratórias dos Ramkokamekrá-Kanela. A lembrança que deve ser mantida sobre “Awkê” é colocada discursos de Jaldo Cothy (professor “índio” da Aldeia Escalvado – julho/2008, grifos meus), o qual é representativo das preocupações de outros indígenas. O que ele conhecia, o que ele viu aquele comunidade que vivia com pobreza ou então até com condições de vida que não é bem agradável pra ele. E, eu acho que por causa disso que ele depois que eles fizeram maldade com ele, mas ele não, assim, quer vingar por causa disso, mas ele continuou sendo filho daquele povo e pra mim, é alguma coisa lembrou desse continuar, escolher alguma coisa aqui pra frente, principalmente ainda aqui por aqui esta história nós estamos lembrando, mas o restante do povo Canela nem liga a palavra dele o que ele dizia, só ouve a lenda e depois deixa por ai. Aqueles Ramkokamekrá-Kanela que não se interessam pela narrativa sobre Awkê são criticados. Por ser visto pelos “índios” como aquele que “ajuda” a comunidade, Awkê seria um modelo para os Ramkokamekrá-Kanela que experimentam processos de distanciamento da aldeia natal. Se, como coloca Crocker (1978), é possível estabelecer um paralelo entre mitologia e outras manifestações da vida dos Ramkokamekrá-Kanela, então migrar para estudar na cidade não poderia ser considerada apenas por questões de organização social e influência externa. Deve-se considerar ainda outras instâncias adquiridas nos processos de construção da pessoa pela herança social que compartilha. Segundo Fernandes (1976, p. 296): (...) em todas as sociedades, as gerações novas sempre recebem, na herança social, que lhes é transmitida, soluções para situações sociais que constituíram problemas no passado, e situações sociais para as quais não foram descobertas soluções, e que constituem, por sua vez problemas sociais a serem enfrentados. Considerando as narrativas sobre Awkê como herança social dos Ramkokamekrá- Kanela, cabe assinalar que esta tem influência na resolução de suas situações sociais 211 A interpretação que esta narrativa recebe de alguns pesquisadores é que Awkê instauraria uma situação de dependência dos “índios” frente aos “não-índios”. No entanto, esta interpretação parece incompleta, pois a narrativa, ao assinalar a mudança, também instauraria a própria dinamicidade nas sociedades indígenas que a compartilham. A rigidez da situação de dependência é relativizada pela possibilidade de mudança, de transformação, a qual é representada pelo próprio Awkê, que tendo nascido “índio” teria passado por diversos processos de distanciamento até chegar a representante de sua sociedade na relação com a alteridade. Assim sendo, tem-se Awkê passando a viver com(o) o inimigo. Antes de prosseguir na análise da narrativa, que se encontra em diversas versões verificáveis no Anexo 2, é importante atentar para a versão colhida em 1975 e expressa por Crocker e Crocker (1994, p. 22): Two by two the Indians and Christians [backlander/civilizados] were called to gather together. And when the Indian saw the shotgun – the Devil… - fully loaded, he thought that the shotgun was hostile and threatening. “It has its mouth open. It has a mouth. I’m afraid.” Awkhêê ordered the Christian to pick up the shotgun and fire it to show the Indian. The Christian picked up the shotgun and fired, and the Indian fell to the ground. He felt is back and the pain spread all over his body. The lead balls had not hit him; it was just the blast from the explosion which hurt him. The magical powers of the shotgun had penetrated the Indian’s body. The stupid Indian had felt pain without having been shot. The Christian had shot without aiming and the Indian had fallen to the ground in pain. When the Indian had recovered from the pain, he said: “We don’t need this shotgun. It is wild; it has powers that we don’t need.” So Awkhêê ordered the Christian to pick up the bow and arrow, but the Christian did not know how to shoot the arrow from the bow. Awkhêê ordered the Indian to pick up the bow and arrow and shoot it. The Indian did so and shot off the arrow, which traveled through the air noiselessly. The Indian liked the bow and arrow and spoke of receiving them. It was exactly this that Awkhêê did not like, and he became really angry with the Indian. Right then and there he ordered the Christian to take the shotgun and the Indian to take the bow and arrow… [Awkhêê] spoke in the Indian language. “It is because of this that you are going away and will roam aimlessly through the world. You will travel around in the forests (dry brush) scratching and tearing your bodies, and doing little of significance. You will live any which way, any way you can, traveling throughout this world. Leave now! I’m very angry with you…. The great-grandfathers came walking here in the forests, doing pointless things, just like animals, traveling without direction. It seems it was at this time that the Indians came here, eating rotten wood…. This was the story that the old men always told there in the middle of the plaza…. I think the story goes like this and I never heard it told differently. Others told it way I just Finished telling it. So, it is only like this, the story of Awkhêê. 212 O lugar de origem de Awkê pode ser assinalado pelo fato dele ter dado a primeira possibilidade de escolha aos “índios”, em detrimento dos demais, que só ficaram com os elementos considerados sinônimos de “desenvolvimento” por que os primeiros recusaram. Outro ponto importante é que Awkê, conforme as narrativas, falava a língua indígena, no entanto sua performance o diferenciava de seus pares. Assim, se há uma prerrogativa individual para o distanciamento, marcada pela diferenciação, esta só se efetiva pela condescendência da coletividade. Segue uma recente versão sobre a narrativa de Awkê, colhida em julho de 2008 e relatada para mim por Ivam Polgatê236: (...) aqui os contador de história contam. Aqui é o aldeia e nesta aldeia tem uma casa da mãe do Awkê... eles moravam nessa aldeia, aldeia dos... e daí a mãe de Awkê saía quando ela tava gestante ele saía para, o brejo, pra banhar no brejo, ele saía da barriga dela para transformar em animais para assustar os outros colegas, então isso que ele veio fazendo desde que ele tava dentro da barriga da mãe dele e ai que os avós e os mais velhos lideranças se reuniram para fazer alguma coisa com Awkê. Até quando Awkê nasceu e já tava crescendo, crescendo, vieram os mais velhos e outras autoridades combinaram para fazer alguma coisa com Awkê, e o que eles fizeram? Eles combinaram fazer um plano, eles fizeram um plano, reuniram entre eles mesmos para fazer alguma coisa com Awkê pra poder parar de fazer isso, de assustar os próprios parentes. E ai o que eles queriam fazer, eles queriam levar Awkê pra este altiplano de uma serra, eu dei um exemplo da serra de mesma altura. Em cima dessa serra tinha muitos, assim, tinha muito animais, tinha um mato para eles caçar lá. Então, eles construíram um plano para levar eles em cima dessa serra, quando eles chegaram lá, eles, é, assim mandaram um cachorro para caçar caça. Dai cada qual... eles pagaram (...), eles queriam achar uma maneira enganar o Awkê para poder matar ele. Então, como é que eles fizeram, eles mandaram Awké para ficar próximo do relevo da serra e ele foi lá para ficar no lugar para esperar cachorro, cachorro, trazer o animal, assim cachorro vai latindo atrás do animal, pra ver se ele conseguia matar o animal, em vez de fazer isso ele mandaram pra ficar próximo do relevo, daí as lideranças empurraram ele e virou uma coisa assim vento, não tinha um nome não, ai virou uma folha seca e foi virando, virando e desceu lá no chão e lá ele se tornou normal. Ele foi lá e chegou lá na casa dele e o que aconteceu? ele sabe que tem muito poder, ele fez a estrada desaparecer e aí os avós dele não conseguiam achar a estrada (...) e daí eles ficaram com fome e muita sede, eles não conseguiram achar estrada para ir para a aldeia, eles passaram muitas horas, muitas horas caçando a estrada, daí já que ele tinha muito poder a mãe de Awkê falou para ele fazer a estrada de novo pra os avô dele retornar para a aldeia. Pra mãe do Awkê dar para os avós a comida, pra eles comer e se fortalecer, porque eles.. o Awkê fez isso com eles e eles gastaram muitas horas procurando a estrada para vê se achava a estrada para chegar mais cedo lá na casa. Em primeiro lugar eles fizeram isso, em segundo lugar eles fizeram um plano de novo para levar ele lá e levaram ele pela segunda vez na serra, eles fizeram um fogo, um grande fogo e entre os avós dele ficaram fumando cigarro, fazendo uma coisa assim e daí um avô dele chamou ele e falou para ele: Awké, vai buscar um fogo pra mim acender cigarro. 236 Foi contada a Ivam pela sua avó Maria Josefa. 213 Quando ele foi pegar o fogo, uma brasa de fogo assim, quando ele foi pegar e dai um foi atrás e empurrou ele em cima do fogo e ai todos os avôs dele pegaram uma lenha, um pau pra botar em cima dele pra poder segurar Awkê no fogo. E lá Awkê tava achando um jeito, mas não tinha; e eles seguraram ele com um pau e todos eles seguraram ele com um pau em cima do fogo e lá eles botaram em cima mais a lenha e ele se acabou fogo, fogo acabou com Awké. E antes de acontecer isso ele já comentava com a mãe dele, falando assim para ele, mãe eu já estou sabendo o que os avô estão querendo fazer comigo e se eles fizer isso comigo vai lá onde eles vão fazer o fogo e lá você vai assar minha cinza e esta minha cinza você vai juntar tipo Cruzeiro do Sul. E aquele montinho pra fazer o Cruzeiro do Sul no chão. E ai quando aconteceu isso com ele a mãe dele foi lá e fez do mesmo jeito que ele mandou fazer. E com alguns tempo, três dias por ai, a mãe dele foi lá no lugar que eles queimaram Awkê e viu que tava só as cinzas que eles queimaram Awké mesmo e ai ela pegou as cinzas de Awkê e separou num montinho fazendo tipo um Cruzeiro do Sul. Daí a mãe dele fez isso e ele saiu pra aldeia de novo, foi pra aldeia e com uma semana por ai assim, com cinco dias por ai assim. E ela retornou para lá, ele foi pra lá de novo pra ver o que aconteceria com (?) do Awké. Quando ela chegou lá ela viu um monte de gado que, naquela época eles não sabia que tipo de animal que era naquele tempo e estas cinzas de Awké se transformou em gado. E assim aconteceu isso, quando Awké chegou lá e viu que as cinzas de Awkê se transformou em gado e tinha muito gado e naquela época ele não sabia este nome de gado e que surgiu primeiro. Daí a mãe de Awkê viu que tinha um monte de gado e voltou pra casa e lá na aldeia ela contou pros outros e os outros, outras pessoas que se reúne no meio do pátio, uma dele falou assim: será que ela ta falando a verdade? Vamos mandar uma pessoa para chegar onde ta o Awkê pra ver o que aconteceu. E ai eles mandaram uma pessoa e uma pessoa foi lá e viu que era verdade, ele viu que tinha um monte de animal, só gado mesmo, de uma altura muito grande e ele ficou com medo voltou com medo e ele chegou lá na aldeia contando pra comunidade e eles pensavam que o gado era uma coisa que vai acabar com os índios, eles ficaram muito assustado porque primeira vez que eles viram um gado, ai com medo do gado comunidade saíram para não sei que lugar não sei para onde eles saíram e a mãe do Awkê foi lá, eu sei que com esse problema a mãe de Awkê já tava sabendo que tudo isso vem pela evolução do Awkê. Daí a mãe de Awkê chegou lá de novo onde tava um monte de gado e ele tava com si mesmo andando, andando no meio do gado, ele tava atravessando o gado que tinha um monte de gado passando no meio dos gados e os gados ia se afastando, se afastando para a mãe de Awkê chegar lá onde tava Awkê quando a mãe do Awkê chegou lá e Awkê já se transformou em branco né, e aí a mãe de Awkê chegou lá e tinha uma casa de telha, monte de animais, galinha, porco, bode, outros animais gado em volta da casa e ela viu assim, tinha muitas pessoas cozinhando e tinha uma pessoa sentada próximo dela e ela aproximou e ela tinha um pouco de dúvida ainda, e ela perguntou: quem são estas pessoas ? e próprio Awké falou pra ela: mãe você não me conhece? sou eu mesmo, eu sou eu mesmo, eu to por aqui agora, morando por aqui. E ai a mãe soube disso e lá conversaram. E Awkê ficou com a mãe dele, com a mãe dela para morar com ele, e daí que a história veio começando, depois a mãe dela(...). (...) eles também provocaram ele bastante e queriam ficar com alguns animais, ficar com a casa dele, ficar com rádio tudo. E o Awkê ficou com medo de acontecer alguma coisa com ele e foi embora. E até hoje em dia ficou essa história de, ele saiu lá pra não sei aonde, pra morar em baixo d’agua, não sei onde é não. E até hoje a gente não vê mais, e as pessoas que falam que ele mora ainda, não sei se é nos Estados Unidos, mas as pessoas sempre falam que ele mora. E assim que é a história começou. E tem muito não sei lembrar. 214 É importante ressaltar que Ivam Polgathe já teve experiência tanto em escolas da cidade, quando morou e trabalhou em Barra do Corda, como na “Escola Timbira”, o que não provocou seu esquecimento total das histórias que ouvia. Seu relato pode ser visto como evidenciador das características que justificariam a relação que estamos tentando traçar entre narrativa-mítica e migração aldeia-cidade. Ela agrega a questão do distanciamento, tanto social como físico; do sofrimento, representados nos momentos em que se tenta matar Awkê; da ajuda prestada pela família e do retorno, junto a qual a priori ele fica deslocado para depois ser reintegrado em favor da comunidade. O sofrimento durante o processo migratório, como aparece em diversos discursos, é sempre retomado pelos Ramkokamekrá-Kanela que estudaram e estudam fora da aldeia. Nas narrativas Awkê é quem sofre em diversos momentos decorrente de suas diferenciações. O distanciamento que aconteceria com Awkê, já que tentam matá-lo e abandoná-lo, ocorre de maneira bem mais “branda” com os estudantes da cidade. Quando estão na cidade há, evidentemente, um distanciamento físico, o qual também é sentido em outros momentos. No interior da Aldeia Escalvado existem determinadas atividades que corresponderiam àquelas a serem cumpridas por determinados sujeitos em certa faixa de idade ou outra classificação. Alguns indivíduos não se dedicam tanto a essas atividades, o que os diferencia dos demais, culminando com seu relativo distanciamento. Em julho de 2008 (grifo meu), Armando Prefet coloca: Em vez de aprender cantigo aqui do antepassado, educação me separou assim porque eu tenho certeza que, que eu aqui na aldeia eu sei só cantar três cantiga do Wütü, que eu posso cantar e o resto, que, em vez deu ser caçador, mas eu falo a verdade, eu nunca, eu sou índio, mas eu nunca matei veado, nem ema, nem alguma caça que, eu já matei alguma caça e é cacinha pequena, mas pra eu ser caçador profissional disse que eu já. O pessoal já me separou porque eu não me interessei ser assim caçador, ser guerreiro, ser pajé, corredor, isso me separou, mas eu tem certeza se eu me interessar, eu acompanhando os velho, perguntando, os velho me ensinar, se eles fazem o escrito, escrevendo pela nossa fala né o cantigo, eu acho que eu posso ser cantor ou, mas isso é muito difícil pra mim. Uma observação rápida da versão do “Mito de Awkê” relatada Silva Junior (2006)237 denuncia o seguinte quadro: 237 Ver anteriormente a terceira parte desse trabalho. 215 Duas tentativas de matar Awkê Distanciamento e sofrimento Awkê não é nem civilizado, nem é índio. Deslocado/liminaridade Mãe se arrepende (de joga-lo fora) e o cria Reintegração Parentes (índios) abandonam a aldeia Distanciamento Awkê tenta favorecer os índios no momento da escolha (entre espingarda e flecha) Manutenção da identidade étnica Awkê oferece a espingarda e o gado aos parentes índios Preocupação A comunidade renuncia a proposta de Awkê Medo da mudança “Awkhê disse que tinha oferecido o melhor para eles, mais os mesmos não queriam nada: “vocês viverão todo tempo do mesmo jeito, sem nada, em vez de vocês ficarem com a espingarda. Arco não vai levar vocês pra frente, agora espingarda vai levar, vocês terão mais rendas, agora vão ficar desse jeito sem recursos nenhum!” Assim ficamos morando dessa maneira!!” Configura-se um situação que exige um “mediador” Quadro 7 – Uma síntese do percurso de Awkê A renúncia à proposta de Awkê, que configuraria o desejo da comunidade em manter suas especificidades, pode ser aproximada à situação de recusa de parte dos “próckmam” (lideranças) da Aldeia Escalvado. Como colocou Hélton Antwá (2005), “os mais velhos não querem se alfabetizar, eles são índios de verdade”. E continuou, “por isso é que tem que ter os estudantes da cidade, para ajudar a comunidade”. Como é relembrado por Raimundinho Paat-Tset (professor “índio”, julho/2008), Awkê não gostou da escolha que os “índios” fizeram. Antigamente, ninguém no mundo sabia usar as coisas, após era tudo natural. A natureza entre os índios eram combinado. Existia tudo para se proteger do mal e do bem; Após o século, séculos apareceu o homem herói chamado Awkê. Awkê, queria para os indígenas escolher e pegar espingarda. Mas os Canelas compreende que é tão diferente, não fácil pegar esta espingarda. E depois mostrou arco e flecha e eles olharam e gostaram. O Herói Awkê não gostou a idéia de flecha e arco. Mesmo se algum professor “índio” denuncia a falta de motivação para os estudps dos alunos da aldeia, todos consideram importante aprender as coisas da cidade para não deixar “os parentes” serem enganados, que reforçará sua posição de “mediador”238 nos assuntos externos à aldeia, enquanto escolarizados. É neste sentido que a saída da aldeia não traria univocamente um processo de “perda da cultura”, pois a “cultura” é possível justamente nessa relação com a alteridade, 238 Como já exposto no terceiro capítulo, a “mediação” é exercida também por outros agentes sociais na aldeia diante de outras instituições: o sobrenatural, outros segmentos residenciais, etc. 216 experimentada também na cidade. A distância entre a aldeia e a cidade, física e simbolicamente, não traria implicações substanciais às representações que os Ramkokamekrá-Kanela fazem sobre o que é “bom” ou “necessário” para que continuem sendo uma sociedade diferenciada. Eduardo Karapê Canela (julho/2008) assim se expressa: Não para deslocar para estudar não deixar de ser índios para viajar não deixar de ser índios, para fazer consulta medico não pode deixar de ser índios, para resolver algum negocio e não pode deixar de ser índio, se fosse como cantar não pode deixar de ser índio, se fosse o índio Prefeito não pode deixar de ser índio por que é lei. Se o índio fosse o Delegado tem que ter sempre índio, para ser doutor, tem que ser sempre índio, para ser dentista tem que ser sempre índio e falar nossa idioma e usar nossa pintura, as danças e a nossa cultura. Um ponto estruturante que pode-se adiantar dessas situações é a “recusa a priori de algo externo”, para em seguida “reconhecê-lo como necessário”. Na narrativa, a “condenação” de Awkê de que sua sociedade “materna” viveria eternamente nas matas e florestas é seguida pela “doação” de Awkê como “pai” ou ”mediador” na relação interétnica de então. Os deslocamentos para estudar em centros urbanos, por parte de alguns Ramkokamekrá-Kanela, podem ser compreendido como possibilidade de reeditar a escolha ancestral, onde a escola atuaria como “lugar de aprendizado” e formação corporal, através de suas dinâmicas de disciplinamento. A passagem por determinados “ritos” (e a escola poderia ser considerada atualmente como um deles) que envolvem distanciamento, sofrimento, retorno e ajuda, presentes também nas narrativas, é verificada na trajetória dos estudantes Ramkokamekrá-Kanela. Sendo, atualmente, a migração aldeia indígena-cidade uma das práticas sociais regulares: entre os Ramkokamekrá-Kanela, pode-se inferir que há uma busca constantemente para significar essa performance. Neste sentido, a base da manutenção étnica seria o contato com a alteridade, pois através dessa se viabilizam outras leituras significantes das suas especificidades. Em Barra do Corda, por exemplo, os Ramkokamekrá-Kanela afirmam haver muita violência, “não tem calma do jeito da aldeia”, o que relativiza o desejo de experimentar a cidade, porém não o desejo de interagir com indivíduos externos à sua sociedade, vivendo como eles ou tornando-se eles. 217 O retorno para a aldeia é marcado, como se percebe, por iniciativas da comunidade indígena para re-adaptar o estudante (des)locado ao cotidiano da aldeia. Neste contexto, a categoria “mediador” (SILVERMAN, 1977) parece capaz de caracterizar a função desse indivíduo, que foi distanciado/afinizado e que retorna ao lugar de origem, posteriormente à experiência, tendo condições de “mediar” as relações interétnicas. Esta seria uma prova apresentada pelos estudantes Ramkokamekrá-Kanela à comunidade, tornando-se a partir de então legitimado em um outro status social. Ao migrar para estudar na cidade, os Ramkokamekrá-Kanela passam por um processo de distanciamento do cotidiano da aldeia, o que o aproxima da rotina da cidade. Os dilemas dessas experiências são ilustrados no modo que lidam com a tensão entre a “necessidade de adquirir conhecimentos dos brancos” e o “medo de perder a cultura”. Na versões das narrativas, Awkê é um agente interno ao grupo indígena que progressivamente vai se tornando “diferente” dos demais, quando é submetido a distanciamentos (físicos e simbólicos). Depois, quando ele é “significado” como aquele que vai ajuda-los, ele se torna “necessário”. A experiência dos atuais professores “índios” da Aldeia Escalvado, os quais estudaram fora da aldeia em outros momentos, ilustra essa trajetória. Acredito que o “fetiche” que há em relação à cidade não interfere de maneira substancial no que os Ramkokamekrá-Kanela aprenderam e nutrem como valores comunitários a serem sempre lembrados. As motivações para essa certa irredutibilidade são diversas, mas que podem ter suas marcas mais profundas evidenciadas a partir de seus processos próprios de sociabilidade, que antecedem aqueles com interferência mais intensa da educação escolar. Neste sentido, a migração para estudar fora da aldeia não seria tão desagregadora, pois já se teria construído no individuo as bases referenciais que ele utilizará para ler suas experiências. Finalizando esse trabalho, utilizo a frase que deu origem ao seu titulo, proferida por Ricardo Kutokre (julho/2008), que sinaliza para as questões que apresentei até então: “Nunca deixamos de ser índio, com todo respeito na sociedade não-indígena”. 218 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Maristela Oliveira de. Sentidos de la Antropologia, antropologia de los sentidos (resenha). GIOBELLINA BRUMANA, Fernando (autor). Cádiz: Universid, Servicio de Publicaciones. 2003. AZANHA, Gilberto. A Forma Timbira: Estrutura e Resistência. 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Image:Maranhao MesoMicroMunicip.svg, own work. 229 ANEXO 1 NOME DO ALUNO ESCOLA SÉRIE PÚBL/ PART 1 Ricardo Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 7ª e 8ª Pública 2 Oscar Cogoxê Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 7ª e 8ª Pública 3 Silvano Kocjo Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 7ª e 8ª Pública 4 Celso Korrame Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 7ª e 8ª Pública 5 Élson Vopoc Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 7ª e 8ª Pública 6 Domingos Augusto Contil Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 7 Daniel Kakoro Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 8 Otávio Parutoi Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 7ª e 8ª Pública 9 Edimar Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 10 Ivaldo Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 11 Flávio Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 12 Hilário Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 13 Demir Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 14 Gilberto Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 15 Josuel Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 16 Maciel Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 17 Marinaldo Koopel Canela Municipal Maria Hermidia Brandes Caldas 5ª e 6ª Pública 18 Helton Antuw Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 1º Pública 19 Jenival Catut Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 1º Pública 20 Angelo Karampei Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 1º Pública 21 Beto Kakoro Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 1º Pública 22 Ricardo Cutakre Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 2º Pública 23 Edval Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 1º Pública 24 Danilo Porutor Kanela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 1º Pública 25 Armando Prefete Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 3º Pública 26 Edson Katongo Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 8ª Pública 27 Vladimir Rodiporo Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 7ª Pública 28 Abraão Kapreprê Canela Complexo Educacional Dom Marcelino (Estadual) 6ª Pública 29 Oziel Iromicukre Canela Caic (Estadual) 6ª Pública 30 Fabiana Tehtê Canela Caic (Estadual) 6ª Pública 31 Alcides Ikrin Canela Caic (Estadual) 6ª Pública 32 Reinaldo Minkrô Canela Caic (Estadual) 5ª Pública 33 Antonio Cacrose Canela Caic (Estadual) 2º Pública 34 José João Woopoe Canela Caic (Estadual) 2º Pública 35 José Tatac Carlos Canela Caic (Estadual) 2º Pública 36 Raimundo Nonato Koire Canela Caic (Estadual) 2º Pública 230 37 Marcelo Kaaré Canela Caic (Estadual) 2º Pública 38 Luciano Kêcxy Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 39 Edelson Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 40 Raimar Konkaino Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 41 Evandro Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 42 Genival Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 43 Marcelo Anvu Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 44 Alfredo Rodiporo Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 45 Almir Jarí Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 46 Celso Krokro Canela Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 47 Gilmar Jaré Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 48 Nicolau Tigoprá Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 49 Rocina Jirot Municipal Maria Safira da Silva 5ª e 6ª Pública 50 Santiago Krape Canela Municipal Maria Safira da Silva 6ª Pública 51 Reginaldo Uhko Canela Municipal Maria Safira da Silva 7ª Pública 52 Hilton Pinloc Canela Municipal Maria Safira da Silva 7ª Pública 53 Nilton Thukô Canela Municipal Maria Safira da Silva 8ª Pública 231 ANEXO 2 Versão da narrativa sobre Awkê por Nimuendajú (1944): “Uma rapariga do pátio de nome Ancukwëi estava grávida. Certa vez quando ela, em companhia de muitas outras, estava tomando banho, ouviu de repente o grito do preá. Admirada, ela olhou para todos os lados sem descobrir de onde o grito partira. Logo depois ouviu-o novamente. Voltando para casa com as outras, ela se deitou na cama de varas (jirau) quando o grito se fez ouvir pela terceira vez, reconhecendo ela agora que ele partira do interior do seu próprio corpo. Depois ouviu a criança falar: “Minha Mãe, tu já estás cansada de me carregar?” “Sim, meu filho-respondeu ela-saia!” “Bom-disse a criança-em tal e tal dia eu sairei”. Quando Amcukwëi começou a sentir as dores do parto ela foi só para o mato. Deitando folhas de pati no chão, disse: “Se fores menino eu te matarei, se fores menina eu te criarei”. Então nasceu um menino. Ela cavou um buraco, sepultou-o vivo e voltou para casa. Sua mãe, vendo-a chegar, perguntou pela criança e quando soube o que Amcukwëi havia feito, ralhou com ela: Que tivesse trazido o menino por que ela, avó, o criaria; e quando ela foi lá, desenterrou a criança e depois de lavá-lo a trouxe para casa; Amcukwëi não quis dar de mamar, mas a avó o amamentou. Mas o pequeno Auké se levantou e disse para sua mãe: “Então não me queres criar?” Amcukwëi muito assustada respondeu: “Sim, eu te criarei”. Auké cresceu rapidamente. Ele possuía o dom de transformar-se em qualquer animal. Quando tomava banho ele se transformava em peixe, e na roça assustava os seus parentes em forma de onça. Então o irmão do Amcukwëi resolveu matá-lo. Estando o menino sentado no chão, comendo bolo de carne, ele o bateu por traz com o cacete, enterrou-o por trás da casa. Pela manhã seguinte, porém, o menino, cheio de terra, voltou para casa: “Avó-disse ele- por que me matastes?” “Foi teu tio que te matou, porque andas assustando a gente”. “Não-prometeu Auké, - eu não fiz mal a ninguém”. Mais logo depois, brincando com as outras crianças, transformou-se novamente em onça. Então seu tio resolveu desfazer-se dele de outra maneira: chamou-o para ir com ele buscar mel. Eles passaram duas serras. Chegando ao cume da terceira, ele agarrou o menino, atirando-o do abismo. Mas Auké transformou-se em folha seca, desceu vagarosamente em espirais até o chão. Ali ele cuspiu e de repente se ergueram em redor do tio dele rochedos íngremes dos quais esse debalde procurou uma saída. Auké voltou para casa dizendo que seu tio vinha 232 atrás dele. Como depois de cinco dias ele ainda não tivesse voltado, Auké fez desaparecer outra vez os rochedos e então finalmente o tio conseguiu voltar: ele estava quase morto de fome. Logo, porém, concebeu outro plano para matar Auké: sentando-o numa esteira deu-lhe comida, mas Auké disse que bem sabia o que ia fazer com ele. Depois o tio o derrubou pelas costas com o cacete e lhe queimou o corpo. Todos abandonaram em seguida a aldeia, mudando-se para um lugar longe. Amcukwëi estava chorando, mas sua mãe disse: “Por que estas chorando agora, Tu mesmo não o quisestes matar?”. Algum tempo depois Amcukwëi pediu aos chefes e conselheiros que mandassem buscar a cinza de Auké, e estes mandaram dois homens à aldeia abandonada para ver se ainda a encontravam. Quando os dois chegaram ao lugar, descobriram que Auké se tinha transformado em homem branco: tinha feito uma casa grande e criado negros de âmago preto de certa árvore, cavalos de madeira do bacuri e bois de piquiá. Ele chamou os dois enviados e mostrou-lhes a sua fazenda. Depois mandou chamar Amcukwëi para que morasse com ele”. Versão da narrativa sobre Awkê por Harald Schults (1950) apud Azanha (1984): “Uma mulher andava grávida há bastante tempo. Mas o menino Auké passava poucos dias na barriga da mãe. Todo o dia, ele saia da barriga e se transformava em paca, preá. E, quando o dia ia amanhecendo, ele voltava para a barriga da mãe outra vez. Como a barriga da mulher já estava muito grande, o Auké dizia para ela: “Você já tem muitos dias que está assim. Não sei em que mês você vai parir”. Ao que a sua mãe respondia: “É, eu já estou assim há muitos meses, mas deixa estar que algum dia eu vou parir, aí eu fico boa para caminhar”. Depois de algum tempo, Auké nasceu. Ele nasceu de noite e, quando o sol subiu um pouco, já estava rindo. Quando o sol subiu mais um bocadinho, já estava engatinhando. E mais um pouco ele já estava caminhando e correndo e caindo. E mais um pouquinho, já estava grandinho e, quando o sol ficou mais alto, Auké já era rapaz. Quando as mulheres da aldeia resolveram ir ver o Auké e partiram na sua direção, trazendo nos braços os seus filhos, ele corre e fica nos braços de sua mãe, molinho como os outros meninos que vieram para vê-lo. Quando as mulheres saem, ele volta a caminhar. Quando de uma outra casa outra mulher vem visitá-lo com um menino já grandinho, então Auké vira 233 do tamanho daquele menino. Quando é um homem já de idade que o vê de longe, o Auké fica sentado com barba preta, homem grande, esperando o outro que vem em sua direção. Quando vem um velho, usando um bastão para caminhar, de cabelo branco, então o Auké fica velho também, esperando. Com isso, a mãe e o pai do Auké ficaram com medo. A mulher, então, falou para o marido: “Como é que nós vamos fazer com este menino? Por que ele está fazendo de todo o jeito, virando todas as coisas. E eu estou com medo deste menino”. “ Quando a gente vê, este menino vai indo assim e daqui a pouco perde nós (Auké poderia matar toda a aldeia. Cf. nota de H. Schultz, p. 87 nota 116 – RM), porque esse menino é muito sabido”. Aí, o pai de Auké falou para sua mulher: “Não sei, quem sabe é o avô dele. Preciso conversar com o avô dele, porque ainda tem avô”. Veio então o pai da mulher. O marido dela falou para o sogro: “Como é que nós vamos fazer com seu neto? Por que a mãe dele está com muito medo. Eu queria saber com o meu sogro, por que não está vendo que seu neto está fazendo de todo o jeito e ninguém sabe? Seria bom que você desse um jeito; porque você é o avô dele”. Ao que o avô respondeu: “É, deixa estar que eu vou fazer alguma coisa com ele”. A essa altura, toda a aldeia já sabia que o Awkê tinha aquelas coisas e todos estavam com medo. Com isso, o avô disse: “Deixa estar, nós vamos caçar com ele e eu vou matá-lo. Porque é meu neto, mais ainda vou ver como”. De manhã, o Auké estava brincando no pátio e o avô o chamou e disse: “Auké, leva um tiçãozinho para fazer fogo no meio do caminho. Daqui a pouco, nós saímos todos para caçar naqueles matos pra ver se matamos alguma coisa”. Auké levou o fogo, após andar um pouco, colocou o fogo no local indicado. Após ter feito isso, continuou brincando. Quando os índios chegaram, o avô conduziu Auké para uma serra muito alta. Ficando na beira do abismo, disse para Auké: “Lá embaixo é limpo, tudo fica pequeno, é bom olhar para baixo”. O menino ouviu e pediu para o avô: “Deixa eu também olhar lá embaixo”. Enquanto o avô o empurrava, Auké falou: “Oh! Meu avô, não faça isso comigo”. Mas o avô já o havia atirado. Entretanto, quando Auké caiu um pedaço, foi virando folha seca que desceu para o chão em espirais, devagarzinho. E, quando chegou no chão, virou outra vez menino e foi embora para a aldeia. O avô, porém, exclamava; “Oh! Por que fiz assim com meu neto? Estou com pena, meu neto morreu”. Enquanto o avô dizia isso, seu neto já estava na aldeia, vadiando. 234 Quando a mãe de Auké o viu no pátio da aldeia, disse; “Meu filho chegou primeiro que o avô dele. Quando dá fé, não o mataram não, porque o avô disse que ia dar um jeito nele”. Logo depois, o avô também chegou e, vendo seu neto, disse: “Ah! o meu neto não morreu não, e eu pensei que ele tivesse morrido, porque eu o joguei em um abismo”. De noite, enquanto Auké andava fora de casa, o avô foi até onde estava sua filha e contou a história para ela: “Este Auké é muito sabido, eu não sei como fiz, pois o atirei do alto em um abismo”. Aí a mãe de Auké falou ao pai: “É, nós todos sabemos o que aconteceu com este Auké, mas ninguém vai dar jeito nele. Você vai dar jeito nele”. Ao que respondeu o avô: “É, deixe estar, amanhã vou caçar jeito com ele outra vez”. No dia seguinte de manhã, o avô mandou Auké fazer fogo outra vez. Levou-o em seguida para o mesmo local e atirou-o outra vez no abismo. Mas Auké transformou-se em folha de chichá e desceu vagarosamente para o chão. Depois voltou para a aldeia, onde sua mãe ao vê-lo exclamou: “Oh! O avô não falou que ia caçar um jeito com ele? Pois ele veio de novo”. E quando o avô avistou o menino no meio do pátio com os outros índios, disse: “Ora, mas este meu neto é assim, como é que vou fazer com este meu neto? Porque ele é muito sabido, é difícil de dar um jeito nele”. Aí o avô falou para a mãe de Auké: “Pode deixar, agora vou experimentar com o fogo mesmo, vou mandar fazer fogo e vou botar Auké dentro do fogo e venho logo contar para você”. Quando o dia amanheceu, ele tornou a falar para o Auké: “Auké, você vai fazer fogo lá onde nós nos reunimos pela primeira vez”. O menino levou um tição e o avô o acompanhou. O avô então disse: “Agora você faz um fogo bem grande. Bota bastante pau pra ver se o fogo faz barulho, pra ver se nós matamos alguma coisa logo”. Auké chegou primeiro no local e fez o fogo. Os índios todos foram atrás. Quando o fogo estava bem alto, pois Auké o fez segundo as instruções do avô, e outros índios haviam chegado, o avô disse: “Vamos embora agora, pois está chegando meio-dia”. E ficou bem perto do fogo. Quando Auké viu seu avô perto do fogo, quis fazer o mesmo. E quando ele se aproximou da fogueira, os índios o pegaram pelo braço e o atiraram no fogo. Auké começou a gritar: “Oh! Meu avô, você não faz isso comigo. Eu não fiz nada com você”. Mas o avô também ajudou a colocar o menino dentro do fogo, onde ele gritou e chorou até morrer. Então o avô disse para os outros índios que eles deviam caçar e depois voltar para a aldeia correndo com 235 toras. Quando chegaram na aldeia e não viram Auké, o avô disse: “Oh! o meu neto agora morreu mesmo dentro da fogueira, porque eu fiz assim com o meu neto?”. Depois de três dias, a mãe de Auké falou para seu marido: “Vamos lá na cinza do nosso filho, para ver se ainda ficou alguma cousa para nós queimarmos direito”. Saíram para onde estava a cinza do menino, mas, quando estavam próximos do local, começaram a ouvir barulho de gado, peru e angolista (galinha da angola). Pararam e ficaram ouvindo. O marido disse: “Isto é nosso filho”. “Vá ver que ele não morreu”. “Vamos voltar daqui, porque nosso filho está fazendo barulho”. Chegando à aldeia, os pais de Auké contaram a história para os outros índios e finalmente eles foram até o local e verificaram que a história era verdadeira. Voltaram e contaram para todos. O avô resolveu ser o último a ir. Quando chegaram, viram no lugar das cinzas uma casa grande com telha. Auké viu o seu avô e chorou com muita saudade e com pena do povo da aldeia. Abriu a porta da casa e deitou na rede chorando. Depois de algum tempo, saiu e chorou de novo. Ele não podia ver o seu avô. Depois mandou todos entrarem dizendo que já havia mandado sua mulher preparar comida para todos. Mas o avô ficou com medo de entrar na casa. Como recusasse, Auké mandou que os índios ficassem no terreiro. E foi falar com eles. Disse: “Olhe, meu avô. Eu vou lhe avisar. Quando nós formos comer, quando se puser as coisas fora, arco, arma de fogo, cuité239, prato, você apanha primeiro as armas de fogo e o prato, que é camarada da espingarda”. Então, a mulher de Auké botou a comida, mas os índios recusaram a comer dentro da casa. Tinham medo de entrar na casa e Auké fechar a porta. Quando os índios começaram a comer do lado de fora, Auké entrou e chorou muito. Quando terminaram, Auké chamou o avô para passar com ele um dia. O avô ainda recusou dizendo que não podia dormir ali, tinham de dormir do lado de fora. Foram então embora para a aldeia, e Auké pediu que no dia seguinte viessem trazendo o povo todo, inclusive seu pai e sua mãe. Quando os índios saíram, Auké ainda chorou com pena do povo todo. Depois de três dias, os índios chegaram outra vez à casa de Auké. Ele falou com sua mãe dizendo que não tinha morrido e mandou preparar comida para o povo todo. Quando a comida estava pronta, Auké convidou os índios para comerem dentro de casa, mas os pais e o avô de Auké recusaram. Quando acabaram de comer, Auké foi buscar o arco, o cuité e o 239 De acordo com Ferreira (2001a) “cuité” é o mesmo que “cuia”, que é um vaso feito do fruto da cuieira maduro esvaziado do miolo.. 236 prato. Colocou a espingarda e o prato bem perto um do outro. E o arco e o cuité mais afastados. Chamou todo o povo e disse: “Agora, meu avô, você apanha estes dois” e ofereceu a espingarda e o prato. Mas o avô apanhou o arco e o cuité, porque ficou com medo de apanhar a espingarda. Auké então mandou que seu avô atirasse com a espingarda. O avô recusou. Auké insistiu dizendo: “Eu quero que você fique com este. Pra cristão não quero entregar, porque estou mesmo com pena de vocês todos. Por isso não posso entregar a arma para os cristãos. Eu quero que vocês fiquem cristãos como eu”. Mas, mesmo assim, o avô se recusou a atirar. Auké então saiu, levando a espingarda e chorando: “Eu bem que queria que vocês ficassem com a espingarda, eu queria que vocês ficassem como eu, não ficassem nus”. E depois, Auké encostou na parede e chorou, chorou. Depois de algum tempo, Auké saiu de casa com o arco e perguntou: “É este que vocês querem?”. E os índios ficaram alegres, respondendo: “É, nós ficamos com o arco e a flecha”. Vendo isto, Auké chorou outra vez. Depois de algum tempo, saiu de novo e, chamando um homem negro, falou para o seu avô: “Você quer ver, ele atira certo”. E, quando entregou a espingarda para o negro, ele atirou longe e logo disse: “Isto é bom. Agora vou ficar com arma de fogo”. Quando Auké ouviu isto, chorou de novo. “Oh! – disse – vocês bem que poderiam ter ficado com a arma de fogo, eu tenho pena de vocês”. Depois Auké saiu e falou para o povo todo: “Pois aí está. A espingarda o negro já atirou. Ele também vai ficar com o prato; vocês que atiraram com o arco e flecha, ficam com o cuité”. Os índios então pegaram a cuia, sendo o primeiro o pai de Auké. Em seguida, Auké levou os índios para a beira do rio dizendo que, quando eles morressem, iriam afundar com uma pedra. A alma não subiria para o céu. Depois, jogando uma coisa embrulhada em folhas e que boiava, disse: “Estão vendo, nossa alma, quando morre, faz assim, sobe para o Céu”. Fez uma Santa e deu para sua mãe, recomendando que ela não mostrasse para ninguém. E mostrou muita coisa para os índios. Depois disse para seu avô: “Se vocês tomassem conta de mim, eu virava todas as coisas”. Deu ainda um caldeirão para sua mãe e presentes para os outros. E, na despedida, abraçou a todos chorando muito. Disse: “Eu fico com muita pena de vocês. Porque o certo é como eu estou dizendo para vocês, mas vocês não querem acompanhar. Agora, eu sou o pai de vocês todos. Vocês agora me chamam de pai. Podem me chamar onde vocês quiserem. E, quando alguém quiser vir, vem, porque eu dou alguma coisa e não esqueço de vocês, porque vocês são filhos de todos nós”. Os índios 237 voltaram para a aldeia. Se os índios tivessem queimado Auké, hoje seriam iguais aos cristãos”.