UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL “OKUPAR, RESISTIR, INSISTIR”: Uma etnografia das práticas de ocupação urbana – Fortaleza/ Ceará. ANDRESSA LÍDICY MORAIS LIMA NATAL – 2012 ANDRESSA LÍDICY MORAIS LIMA “OKUPAR, RESISTIR, INSISTIR”: Uma etnografia das práticas de ocupação urbana – Fortaleza/ Ceará. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientadora: Profª. Drª. Elisete Schwade. NATAL – 2012 Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Lima, Andressa Lídicy Morais. “Okupar, resistir, insistir”: uma etnografia das práticas de ocupação urbana – Fortaleza / Ceará / Andressa Lídicy Morais Lima. – 2012. 195 f. - Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Antropologia, 2012. Orientadora: Profª. Drª. Elisete Schwade. 1. Antropologia urbana – Fortaleza (CE). 2. Etnologia – Fortaleza (CE). 3. Movimento Okupas – Fortaleza (CE). I. Schwade, Elisete. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BSE-CCHLA CDU 39(813.1) ANDRESSA LÍDICY MORAIS LIMA “OKUPAR, RESISTIR, INSISTIR”: Uma etnografia das práticas de ocupação urbana – Fortaleza/ Ceará. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientadora: Profª. Drª. Elisete Schwade. Aprovada em 14 /12/ 2012. BANCA EXAMINADORA ________________________________________________ Profª. Drª. Elisete Schwade – UFRN Presidente - Orientadora ________________________________________________ Profª. Drª. Mónica Lourdes Franch Gutierrez – UFPB Examinador Externo ________________________________________________ Profª. Drª. Lisabete Coradini – UFRN Examinadora Interna ________________________________________________ Profº. Drº. Carlos Guilherme Octaviano do Valle – UFRN Suplente As diferentes vidas que crescem em posições diversas do espaço social em que se construiu este desafio etnográfico: Aos meus interlocutores e amigos que abriram seu universo particular para que este trabalho pudesse acontecer e suas filhas nascidas no aconchego de uma Casa Encantada Ayan e Jam. As minhas meninas Vitória e Maria Alice, que trocam suas calcinhas e fraldas dividindo o espaço com livros e papéis. À memória do pluriativista Oirã, em solidariedade às vítimas do trânsito usuárias de bike e para pedir mais respeito e prioridade nas políticas públicas de mobilidade e de qualidade para uma boa vida. AGRADECIMENTOS Agradeço axs Torenianxs, que me acolheram dentro de sua ksa e por terem compartilhado histórias e convivência ao longo dessa jornada de trabalho e envolvimento. Os companheiros de vida e pesquisa com quem pude contar e que se tornaram meus amigos desde o dia em que decidi estudar as okupas Wagner Teixeira e Renato Maia, especialmente, pois esteve comigo durante esses oito anos de caminhada e sempre me motivou, além de proporcionar boas histórias que me auxiliaram na compreensão e importância desse modo de vida ativista para xs okupas. Minha orientadora Elisete Schwade, através de boas conversas e de suas boas aulas me guiou por um caminho para se trabalhar de forma ética e equilibrada diante das relações que são construídas em campo entre pessoas e os mais variados ambientes em que elas vivem. Aprendi a dividir ideias e compartilhar experiências através de leituras atentas e comentários generosos e pertinentes. Creio termos construído uma boa parceria ao longo dessa jornada. À Luciana Chianca por ter sido um exemplo de pessoa e antropóloga, com quem pude contar muitas vezes, ao compartilhar sugestões e dar impulso durante conversas de orientação no início desse caminho. À Pró-Reitora de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ter sido sensível a minha solicitação de ajuda de custo que foi fundamental para que eu pudesse permanecer em Fortaleza-CE durante os meses de pesquisa de campo, professora Edna Maria Furtado muitíssimo obrigada por todos os esforços em garantir essa pesquisa. Ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, lugar onde desabrochou minha vocação, lugar de vivências e de excelência na minha formação. Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social que oferece de modo exemplar uma formação para o exercício da reflexividade e do pensar e agir guiados pela antropologia. Aos meus professores todos admiráveis em suas singularidades e suas incontáveis contribuições. Francisca Miller por permitir diálogos formidáveis durante as aulas, Edmundo Pereira que fez minha cabeça coçar infinitas vezes, sem que tivesse um piolho - me fazendo pensar muito, Juliana Melo que fez uma leitura atenta de meu texto de qualificação. À Lisabete Coradini quem instigou minha escolha por tal tema de pesquisa ainda na graduação e durante o mestrado fez excelentes contribuições, sempre atenciosa. À Julie Cavignac pelos anos de formação, de antropologia pé no chão, por ter sido minha supervisora de estágio docente e por ter azucrinado meu juízo muitas vezes. Ao meu querido professor Carlos Guilherme Octaviano do Valle, que me fez escolher Antropologia e por ter me apresentado a minha vocação. Ao professor Luiz Fernando Dias Duarte pela calorosa recepção durante Missão de Pesquisa no Museu Nacional permitida graças ao convênio PROCAD Museu Nacional/UFRJ/PPGAS e UFRN/PPGAS em 2010. Ocasião em que pude fazer pesquisa de campo em okupas no Rio de Janeiro, bem como desfrutar de material bibliográfico do qual não dispunha na minha instituição e contar, sobretudo com as trocas e colaborações que seguiram dali com professores e colegas. Ao querido Márcio Moraes Valença por seu inesgotável empenho para que eu pudesse construir um texto interdisciplinar. Pelo curso de leituras sobre moradia e habitação. Também ao professor José Glebson Vieira que esteve de perto e de longe, com quem trabalhei e com quem discuti ética e pesquisa, muitas vezes. Aos queridos Adriano Aranha e Natacha Hart, competentes, atenciosos e presentes. Minha turma, meus amigos, amores, companheirxs de PP”GÁS”: Maíra Samara, Fabíola Araújo, Bruno Goulart, Julyana Vilar e Jô Fagner,. À Jaína Linhares uma amiga privilegiada, pois é também uma antropóloga com “A” maiúsculo, abriu as portas de sua casa durante meu exílio de campo em Fortaleza e me presenteou com os amigos Fabíola Costa e Marcos Melo, cuja alegria e me ofertaram em doses cavalares, assim como a compreensão e afeto em meus momentos de solidão e existência violada. Aos companheiros com quem tive a oportunidade de partilhar bons momentos dentro e fora da universidade que participaram de muitas maneiras desse processo, são eles: Lorena Moraes minha amiga querida, Claudia e Anália que me acolheram, Alire Cavalcante sempre presente, Diogo Moreno meu amigo de fé e mestre da alegria, Sté Campos e Tatiane Barros companheiras de vida, Gilson Rodrigues e Augusto Maux amigos do peito, Jonatas Isidoro e Julianna Azevedo amigos de longa data e parceiros de orientação, Fabiana Damasceno, Andressa Fernandes, Lucélia Stevenin, Yuri Duarte, Teane D’Ávila, Jeanne Bandeira e Tristan Loloum. Às minhas amigas queridas Ana Lílian Vieira e Silva, Adriana Melo e Renata Trigueiro cujos laços com o tempo têm fortalecido ainda mais. À Rosi Brocca, Erivaldo Teixeira, Bruno Prates e Breno Vilela pela generosidade. À minha família especialmente aos meus pais Maria José Morais Lima e José de Armatéa Morais Lima que nos deram muito mais do que sou capaz de retribuir. Por terem investido tudo que tinham para nos formar e garantir um futuro melhor. Conseguiram. Emociona-me nossa história de vida. Todo o meu respeito ao que fizeram por nós. Aos meus irmãos Alexandre, Lorena e Aedra Morais Lima por estarem juntos em todos os momentos de aperto e alegria. Eu os amo incondicionalmente. Ao meu marido Carlos Eduardo Freitas, por sustentar a leveza do meu ser e por dividir vida, paixão e honradez em momentos diversos. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes - pela bolsa que me permitiu cursar o mestrado com dedicação exclusiva à pesquisa durante esses dois anos. Permitiu-me uma vida acadêmica confortável financeiramente, em que pude usufruir de congressos, curso de idioma, cursos de extensão, pesquisa de campo, materiais de trabalho, equipamentos, compra de livros, e principalmente, por poder dividir despesas com minha família. RESUMO O objetivo dessa dissertação é compreender as relações construídas entre sujeitos que ocupam prédios em estado de abandono para revitalizá-los - chamados okupas, observando quais significados tais indivíduos constroem sobre a prática de ocupação e de que modo se organizam para a construção e manutenção de um projeto de vida coletivo. Tendo a Okupa Squat Torém, localizada no bairro de Fátima na zona sul da cidade de Fortaleza-CE, como lócus observado e através do método etnográfico, acompanhei as práticas sociais desse segmento urbano. Investi numa coleta de dados que revelasse o costume dos okupas e seus hábitos domésticos, dentro e também fora da okupa, dando relevo a situações de interação, a exemplo de ocasiões mais adequadas para observar a negociação constante e o requinte de sua astúcia para intervir na cidade. Dentre os objetivos dessa pesquisa, o principal é observar quais sentidos são atribuídos a prática da ocupação pelos okupas. Para isso, refletindo a partir das especificidades desse fenômeno urbano e dialogando principalmente com a tradição de pesquisas nesse campo da Antropologia, procurei abordar algumas questões relativas a prática da okupação e a organização do grupo, quais os princípios e os movimentos que esses interlocutores fazem com a cidade e de onde parte a sua prática em relação com as questões que fundamentam suas intervenções. A apropriação feita pelos sujeitos sobre o espaço urbano significa aqui compreendê-los como expressão cultural de uma série de valores coletivos, fruto da vivência e percepção dos próprios okupas. A intenção é mostrar como essa prática de intervenção e ação coletiva tem se apresentado na contemporaneidade e de que maneira minha etnografia pode contribuir para um diálogo sobre as práticas de mobilização e atualização da cidade considerando ainda a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth (2003) como uma categoria analítica útil para descrever as formas de reciprocidade vivenciadas pelos okupas. Palavras-chave: Antropologia Urbana – Etnografia – Movimento Okupa ABSTRACT The objective of this dissertation is understand the relationships built between subjects who occupy buildings in a state of abandonment to revitalize them - called okupas, noting which individuals construct such meanings on the practice of occupation and how to organize the construction and maintenance of a collective life project. Having the Okupa Squat Torém, located in the neighborhood of Fatima in the southern city of Fortaleza-CE, as locus and observed through the ethnographic method, followed the social practices of urban segment. I invested in a data collection revealed that the custom of okupas and their domestic habits, inside and outside of okupa, emphasizing the interaction situations, like most appropriate occasions to observe the constant negotiation and refinement of his cunning to intervene in the city . Among the objectives of this research, the main thing is to observe which senses are assigned to the practice of the occupation by okupas. For this, reflecting from the specifics of this urban phenomenon and talking mostly with the tradition of research in the field of anthropology, I tried to address some issues regarding the practice of okupação and organization of the group, which the principles and movements that make these contacts with city etc. The appropriation made by the subjects on the urban space here means understanding them as a cultural expression of a number of collective values, resulting from experience and perception of okupas like themselves. The intention is to show how this practice intervention and collective action has appeared in contemporary times and how my ethnography can contribute to a dialogue on the practices of mobilization and update of the city, considering the Theory of Recognition Axel Honneth (2003) as an analytical category useful to describe the forms of reciprocity experienced by okupas. Key-words: Urban Anthropology - Ethnography - Movement Okupa LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1: Bairro de Fátima em Fortaleza (CE), maio de 2011..................................................39 Figura 2: Okupa squat Torém no bairro de Fátima, Fortaleza (CE), maio de 2011.................41 Figura 3: Vista aérea da okupa..................................................................................................55 Figura 3: Mapa da região central e bairro de Fátima em Fortaleza-CE....................................57 Figura 4: Símbolo do Movimento Okupa/ Squat......................................................................58 Figura 6: (Re) construção da casa.............................................................................................72 Figura 7: A Okupa Squat Torém...............................................................................................72 Figura 8: As ruínas, pós desalojo..............................................................................................72 Figura 9: Fundos da Okupa.......................................................................................................75 Figura 10: Terreno que serve de abrigo aos usuários de crack.................................................75 Figura 11: Marquise onde dormem os usuários de crack..........................................................76 Figura 12: Mapa de localização da okupa.................................................................................77 Figura 13: Cartaz GIG.............................................................................................................125 Figura 14:Cartaz Mídia...........................................................................................................130 Figura 15: Cartaz Medicina e Anarquia..................................................................................139 Figura 16: Mapa de cartazes da okupa....................................................................................140 Figura 17: Cartaz da I GIG antivivisecção..............................................................................142 Figura 18: Oficina de comida..................................................................................................144 TABELAS Tabela 1: Custo de edificações habitacionais em Fortaleza......................................................50 Tabela 2: Mapa das okupas no Brasil.......................................................................................65 GRÁFICOS Gráfico 1: Demanda Habitacional Municipal estratificada por salários mínimos....................51 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .....................................................................................................................12 Saber Entrar..............................................................................................................................13 Campo observação....................................................................................................................21 Estratégia de pesquisa...............................................................................................................23 Outras práticas do espaço como formas de expressão..............................................................28 Quem são os okupas?................................................................................................................31 CAPÍTULO 1 – O ÍNTIMO COMBATE NA SELVA DE PEDRA .....................................39 Cidade.......................................................................................................................................47 A loira desposada do sol e o lugar do bairro de Fátima............................................................54 Definindo ocupação e também seus movimentos.....................................................................58 O movimento Okupa.................................................................................................................62 O surgimento da ksa..................................................................................................................69 CAPÍTULO 2 – A KSA PRATICADA E O COTIDIANO OKUPA......................................72 Morfologia social da okupa.......................................................................................................73 O tempo interno da ksa: Aquilo que lhe é cotidiano.................................................................82 Ksa pratikda..............................................................................................................................88 A horta - “Abaixo do concreto está a horta”..............................................................................89 A GIG – o espaço dos encontros festivos.................................................................................90 A barraca – Onde aparece as divisões......................................................................................93 A cozinha – a cozinha universal, as cozinhas são diversas.....................................................95 O Banheiro seco........................................................................................................................99 A compostagem.......................................................................................................................102 O tempo externo da ksa: O poder desejante dos corpos que inscrevem a cidade...................103 Mangueio de água...................................................................................................................103 Mangueio com malabares.......................................................................................................108 O uso das redes sociais- O espaço ampliado da ksa...............................................................109 CAPÍTULO 3 – OKUPAR, RESISTIR, INSISTIR.............................................................117 Movimentos sociais: pluralidade e intervenção para comunicação........................................117 Subcultura defensiva e pluralismo okupa...............................................................................121 As demandas e as novas formas de mobilização....................................................................138 Comida viva............................................................................................................................143 Over-complexity......................................................................................................................145 A luta por reconhecimento......................................................................................................147 As relações de reciprocidade...................................................................................................152 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................157 BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................163 ANEXOS................................................................................................................................168 Anexo 1 – Matéria CMI de 22/06/2010 Anexo 2 – Matéria CMI de 17/10/2010 Anexo 3 – Matéria CMI de 04/03/2011 Anexo 4 – Matéria CMI de 21/09/2011 Anexo 5 – Matéria CMI de 28/02/2012 12 INTRODUÇÃO O objetivo desta dissertação é compreender as relações construídas entre sujeitos que ocupam prédios em estado de abandono para revitalizá-los, observando quais significados tais indivíduos constroem sobre a prática da ocupação e o modo como se organizam para a construção e manutenção de um projeto de vida coletivo, tendo a Okupa Squat Torém 1 , localizada no bairro de Fátima na zona sul da cidade de Fortaleza-CE, como lócus observado. Incialmente gostaria de fazer nos próximos parágrafos um breve comentário sobre a motivação inicial do trabalho agora apresentado. Desde o primeiro semestre de 2010, venho acompanhando a construção do Okupa Squat Torém à distância, principalmente via redes sociais (Orkut e Facebook) e do jornal virtual CMI - Centro de Mídia Independente, que me forneciam a informação sobre a existência dessa experiência okupa. Consequentemente, essas mídias supracitadas tornaram-se minhas ferramentas de observação, pois utilizei esses canais de comunicação para observar as notícias atualizadas sobre as atividades do grupo e assim pude adensar dados preliminares a minha pesquisa de campo no ano seguinte. Entre o primeiro semestre de 2011 e primeiro semestre de 2012, estive em campo fazendo observação direta na ocupação supracitada. A maior parte pesquisa se deu na própria okupa, embora tenha realizado incursões empíricas também fora dela, precisamente: ruas, no comércio, na feirinha, na praça, na universidade, nos bares, nos encontros de capoeira, no centro da cidade, na praia e nas redes sociais virtuais. Nesses diferentes contextos de ação, foram realizadas conversas informais, cujo objetivo foi compreender o estilo de vida okupa e as diferentes relações tecidas no contexto complexo que é a cidade, através das suas cartografias pessoais, dentro e fora da ocupação. Além disso, houve muitas tentativas de entrevistas gravadas, porém impraticáveis. 1 É comum a grupos com perfil anarcopunk fazer uso de recursos para adulterar a grafia de certas palavras com o objetivo de destacar e intervir sobre a produção linguística, por essa razão costumam utilizar as letras K, Y e X. A partir de agora irei me referir a Okupa Squat Torém utilizando também os termos okupa e ksa. O uso das palavras okupa e ksa com a letra “k” e mais adiante alguns termos com “X” são marcas utilizadas pelo grupo. Destaco que a grafia é a mesma utilizada pelos meus interlocutores. A letra “K” é usualmente utilizada, assim como as letras “X” e “Y”. Ambas denotam uma fração de protesto que se insere no universo punk, dando relevo ao “K” e, quanto ao “X” e “Y”, trata-se de uma forma política de neutralizar o efeito de normatividade padrão em relação ao gênero. 13 Ao longo dessa jornada em campo, tentei estruturar uma rede de informantes, que possibilitassem o acesso aos meus interlocutores. Não apenas os moradores da casa ocupada, mas também e, sobretudos seus vizinhos e as pessoas com as quais eles tecem suas relações intersubjetivas, a fim de permitir um maior alcance das observações participantes. A maior dificuldade foi apresentada logo no início, quando ainda estava fazendo as pesquisas documentais. Antes mesmo de ir a campo, verifiquei quem eram os sujeitos que partilhavam das mesmas redes ou contatos em comum. Através dos contatos do grupo na cidade de Natal (RN), foi possível construir uma rede minha de contatos com o grupo de Fortaleza. Logo, percebi que a maior dificuldade não seria apenas acessar tais interlocutores da okupa Torém por estarem em outra cidade, mas também pelo fato deles não demonstrarem interesse por trabalhos de pesquisa a seu respeito, oriundos da universidade. De fato, o estudo para realização desta pesquisa recebeu alerta de outros pesquisadores da mesma área quanto aos obstáculos visíveis, mas isso, de certo modo, se traduziu também em estímulo necessário e interesse de investimentos etnográficos na okupa. Saber Entrar A descrição é um processo reflexivo de um componente metodológico utilizado nas Ciências Sociais, elaborado e refinado pela Antropologia e chamado etnografia. Em que se observa, descreve, analisa a sociedade, investigando em campo materiais referentes aos aspectos culturais possíveis de ser observados, levando em conta as diferenças existentes entre grupos humanos. Busca-se conhecer as relações sociais que compõem a vida social como um conjunto integrado, a partir de suas instituições até sua estrutura e organização. Desse modelo resultam muitas formas de análise e apreensão de contextos de interação que caracterizam a Antropologia e que foi consagrada por Malinowski (1978) quando firma o método etnográfico. Para essa pesquisa me sirvo das reflexões provocadas por Agier, quando afirma que “[...] não há duas antropologias, mas sim maneiras diferentes de fazer antropologia com objetos diferentes e, portanto, campos diferentes, maneiras de pesquisar diferentes” (AGIER: 2011) e continua “A reflexão que proponho não trata da cidade, mas da investigação urbana antropológica”. Para situar a pretensa pesquisa nos estudos de uma Antropologia Urbana, 14 porém sem perder de vista toda a envergadura adquirida durante o processo de refinamento do método etnográfico desde Malinowski (1978) produzido pela tradicional Escola de Chicago e por vários antropólogos dentre eles Becker (1996), Peirano (1995), Velho (1987; 1994; 2002), Velho e kuschnir (2003), Magnani (1988; 1996; 2000; 2002), Cardoso de Oliveira (2000) desenvolvo minhas contribuições sobre a prática da ocupação urbana e do movimento social de intervenção promovido pelos membros do Coletivo Torém que fazem do abandono, ponto de curiosa investigação, a partida inicial para a construção do projeto Okupa Torém. Encontro em Cardoso de Oliveira (2000) a sintonia que guia o fazer etnográfico, respeitados os atos cognitivos aos quais se refere “olhar, ouvir e escrever” preconizados e em sintonia com as ideias e os valores que emergem do campo de pesquisa que envolve a pesquisadora, sua profissão e suas situações de interação intersubjetivas, tendo a observação participante e a relativização marcos do fazer antropológico desta pesquisa atualizada sobre o urbano. A pesquisa de campo toma corpo quando resolvi inicialmente, entrar em contato com dois amigos, colaboradores da pesquisa, estudantes do curso das Ciências Sociais que me auxiliaram com as suas redes pessoais, por serem anarquistas. Os dois fizeram uma ponte entre mim e um amigo deles que é punk (um jovem tatuador), recém-chegado de Campina Grande-PB e ex-okupa que estava fixando residência em Fortaleza-CE, porém não na condição de okupa, pois estava indo trabalhar e morar com sua companheira, embora fizesse visitas frequentes a okupa. Esse percurso inicial revelou alguns códigos de conduta importantes compartilhados pelos meus interlocutores. Por exemplo, como estão envolvidos em uma atividade “ilegal”, os okupas que vivem entre idas e vindas pelas mais variadas capitais do país e também fora dele, desenvolvem não apenas formas de comunicação singulares, mas graus de afinidades e, em muitos casos, laços de amizade, assim como também de inimizade. Através de diálogos mais apurados dos envolvidos, percebi que existem conflitos na relação entre o pessoal do Ceará, da Paraíba e de Recife. Tendo em vista essa situação de conflito, procurei ter mais cautela durante a aproximação, a fim de gravar as tensões. Na situação vivida, pensei também que poderia evitar um prejuízo para mim na prática etnográfica. 15 A visita permitiu a compreensão da convivência diferente entre os participantes da realidade já conhecida 2 . Eu estava indo até lá para tentar desconstruir uma relação preestabelecida de antemão, claramente negativa para mim enquanto pesquisadora. Tentei estabelecer uma relação direta entre eles e eu, uma relação honesta e confiante com esse grupo, que pudesse tornar possível a realização de minha etnografia. No começo fui bem recebida por parte do grupo, estabeleci contato principalmente com as mulheres, que foram mais atenciosas com a minha aproximação. Enfrentei olhares arredios, dissimulados, carregados de fingimento e, não menos importante, outros de sinceridade marcante, uma sinceridade exposta de insatisfação com a minha presença rotineira. Tal situação, comum em contextos como esse, expressa um receio do grupo em saber quem está adentrando o seu ambiente íntimo, suscitando questões do tipo para que ou com quais intenções você está aqui? Assim, revelando uma repulsa imediata, um desdém e uma indiferença bastante significativa, percebia que tal resistência me apontava quem seriam meus interlocutores diretos, com quem eu poderia começar a manter uma relação em campo. Ou seja, não se tratava de uma impressão dirigida a mim gratuitamente. Tratava-se de sentimentos compartilhados já construídos com outras situações anteriores a minha chegada, sobretudo uma atitude reserva dos próprios interlocutores para preservarem a si mesmos de alguém desconhecido. Confesso que essa situação de mediação entre a chegada e a estadia em campo sempre foi um pouco tensa. Talvez porque conhecia pouco da intimidade de grupos anarcopunks e porque presenciava situações mais etnocêntricas em relação a intervenção que eles fazem. De como ela é percebida pelo seu entorno e por outras pessoas. Assumir, de certo modo, essa atitude de reserva, não chegava a ser blasé 3 , porque não se tratava de desviar ou ignorar aquilo que lhe é hostil. Ao contrário disso, trava-se sim, de posicionar-se de forma firme e altiva, ao querer saber de quem se trata e o sentido de estar lá para o grupo. Essa era a atmosfera de aceitação ou não do coletivo, e certamente eu temia não ser aceita, 2 Meu conhecimento do universo empírico foi acumulado na vivência etnográfica em pesquisa anterior de minha autoria. Sobre isso, ver Lima (2009). 3 Ver Simmel (1979). 16 principalmente pelas considerações já feitas 4 por informantes em relação a postura coletiva do grupo, quase sempre de oposição e resistência a universidade. Reproduzo abaixo a situação, “Oi, me chamo Andressa, sou amiga de Aiam, entrei em contato com vocês através de telefone, falei com a Ane 5 e com o Mulambo via email. Cheguei ontem aqui. Venho, como antecipei via email, trabalhando com pesquisa sobre squat, okupa. O Aiam me falou dessa okupa. Sou antropóloga, pesquisadora, e venho aqui procurá-los porque tenho interesse em desenvolver uma pesquisa sobre o grupo, sobre os modos de vida coletivo na okupa.” Nesse momento estava com Ane, Tassinha e Jon que foram receptivos a minha chegada. Os três conversaram comigo por algumas horas e nessa mesma ocasião me fizeram um relato, em tom de indignação, a respeito da situação em que uma pesquisadora fingiu-se passar por okupa. A mesma teria se aproximado do grupo, estabelecendo contato e frequentando a okupa, e até passou a ir morar na casa. Com sua barraca, seus objetos íntimos, passando a conviver no ambiente interno do grupo, fazendo parte de várias atividades, interferindo e se posicionando sobre o ambiente construído em paralelo a sua vivência na okupa. A “pesquisadora” escrevia diários de campo escondido do grupo, nunca revelara àqueles que lhe acolheram e depositaram generosa confiança, alheios, os seus verdadeiros interesses de estar ali. O relato foi feito por esses três okupas, enquanto tomávamos um café na mesa da sala-cozinha. O tom da conversa era de revolta, pela “atitude egoísta dela”, pela “mentira”, por “nos tratar como ratos de laboratório, fazendo anotações sobre cada um de nós, como se a gente fosse suas cobaias”. E, por essa razão, “não nos interessa, como já disse o Mulambo, que você pesquise a gente”. 4 Dispondo então de um contato mediado entre Aiam e Mulambo, além de Bingo que também colaborou no adensamento da rede nordeste, enviei um email para Mulambo, explicando que era pesquisadora e que já pesquisava sobre o Movimento Okupa há 7 anos, que soube da Okupa Torém e me interessava em realizar pesquisa em Fortaleza. A resposta veio alguns dias depois – nunca recebi resposta imediata, demoram dias, às vezes semanas para responder - então ele me escreveu e disse as palavras proferidas pelo grupo: Não, a nós não interessa divulgar nossa okupa em meio acadêmico. Mesmo assim fui ao campo tentar desfazer essa impressão e conseguir realizar a pesquisa, o que resultou numa boa aproximação e numa negociação clara sobre o que iria fazer e o que eles poderiam contribuir. 5 Neste trabalho respeito o anonimato de meus interlocutores e para preserva-los farei uso de nomes fictícios. 17 Ouvi suas indignações em silêncio, não expus nenhum juízo de valor sobre a situação. Também não procurei entrar em detalhes, ponderando sobre as questões éticas de conduta da “pesquisadora” que ruíram sobre mim. A verdade é que a minha forma de entrar em campo passou sempre por um risco assumido: encarar meus interlocutores e ouvir deles sua posição quanto a realização e coleta dos dados etnográficos. Sempre tentei seguir o Código de Ética do Antropólogo, atenta principalmente ao que constitui os “direitos das populações que são objeto de pesquisa”, principalmente os itens 1 e 2, que ditam: 1. Direito de ser informadas sobre a natureza da pesquisa e 2. Direito de recusar-se a participar de uma pesquisa. Ofereci de imediato às propostas as quais necessitavam para abrir um diálogo, com o objetivo de dispor minimamente de uma conduta ética com meus interlocutores e também com minha profissão. Tudo pode ser considerado um dado de pesquisa, porém a coleta de dados deve seguir um rigor de conduta de profissionais em exercício. Sobre a minha chegada para pesquisar, naquele primeiro momento de aproximação, procurei respeitar o direito de ser informado sobre a natureza da pesquisa, o que significa uma pesquisa antropológica, qual o objetivo em estar na okupa e a importância do convívio com o grupo. As experiências do grupo poderiam sugerir os benefícios e os limites da prática etnográfica ao terem o direito de recusarem a participar da pesquisa. Certamente isso me custou empenho e destreza para aproximar, coletar e escrever. Os materiais coletados em campo, sempre muito negociados, não facilitavam minha escrita, pois estava sempre negociando, colhendo informações distorcidas, vagas. Algumas vezes me sentia envergonhada por estar lá, me perguntava como chegaria ao final da pesquisa com tantas dificuldades, tendo que ouvir tantos “nãos” ou como participar de forma mais intensa do cotidiano. Me preocupava se essa era apenas a reação inicial e tinha medo que ela não mudasse mais tarde. Com os passar dos dias, o convívio sendo intensificado, finalmente conseguiria tornar essas barreiras metodológicas transponíveis. Uma situação constante ao longo dessa pesquisa foi essa sensação de fracasso em relação a permissão para realizar a pesquisa. Embora me permitissem conviver, estar lá, o tratamento diferenciado existiu, isso é fato, e ele era constrangedor inicialmente. Depois foi sendo substituído por ocasiões pontuais de 18 constrangimento. Por exemplo, uma situação em que estava numa GIG 6 , num sábado na okupa, conversava na roda com alguns okupas. Nesse episódio um punk convidou a todos para uma feijoada na sua casa, a ser realizada na semana seguinte. Durante a sua fala de convite, referiu-se a mim dizendo: “menos você!”. Num tom debochado, sorrindo alto, completou: “tirando uma onda com a antropóloga”. Eram esses contextos que revelavam que estava participando daquele cotidiano e que estava sendo integrada aos poucos. Meus interlocutores têm todo o direito de recusarem ter suas vidas expostas ou envolvidas por uma pesquisa. E eu tenho o dever de respeitá-los. Ao ouvir a resposta negativa deles de que eu não poderia realizar a pesquisa, pensei sobre quais formas e quais os recursos que poderia utilizar para dar continuidade a realização do meu projeto. Alguns colegas insistiram em considerar a opção de “fazer uma etnografia às escuras”. Outros colegas sugeriram que eu me “inspirasse” em Norbert Elias e criasse nomes fictícios para toda a pesquisa - sendo os nomes aos quais me refiro neste trabalho todos fictícios. Talvez assim, poderia convencer meus interlocutores de que eles teriam garantidos a preservação de sua intimidade através do anonimato. Ao expor tal argumento, não houve aceitação, alguns ficaram divididos, outros se sensibilizaram com as ideias as quais apresentei sobre o que eu já conhecia do movimento, à respeito das okupas. Falei que havia tido contato em pesquisa anterior, mas o ranço da resistência estava latente. Com a permissão autorizada para frequentar a okupa, passei a frequentá-la em dias alternados, sempre com o cuidado de não me antecipar com ligações telefônicas, avisando sobre a visita. Procurei criar um ambiente favorável de oportunidade a fim de me conhecerem e perceberem ao longo do tempo como eu poderia contribuir e desconstruir costumes e modos de agir sobre a relação: interlocutores e antropóloga. Ou ainda como questionar a postura que eles assumiram diante da pesquisa. Entre idas e vindas, fui “chegando como quem não quer nada”. Claro, nunca omiti o fato de está em campo realizando pesquisa e quando falava em entrevistas, era o suficiente para o silêncio se fazer presente como um eco. No encontro inicial, tomei nota e passei a fazer a mesma investida em momentos oportunos, pois o incomodo que aparecia nesses contextos, me intrigaram. Com isso, enfrentava o que era permitido e o que não era. Para eles, eu estar lá, conversar abertamente sobre diversos assuntos, sem a presença de um gravador, era 6 Apresentação de bandas em encontros coletivos de grupos anarcopunks. Não tem por finalidade o lucro, mas a diversão, a troca de experiências, promover uma vivência coletiva e reunir recursos em favor da manutenção dos coletivos (grupos) que estão fazendo alguma atividade e necessitam de suporte material. 19 permitido. Mas bastava eu mencionar o uso de um gravador, toda a atmosfera fluída de conversas generosas sobre variados assuntos, parecia perder-se dentro de um fosso. A começar, pela atitude imediata de sair de cena, levantar e ir para outro cômodo, mudar de lugar e me deixar sozinha. Em outros momentos foi possível animar conversas informais variadas, bastava apenas eu não falar em gravador. Em certa medida o que eu perguntasse e sobre o assunto que propusesse, sentiam-se à vontade. Pois era o limite que eles impunham e eu respeitava, não “forcei a barra”. Com o passar do tempo, recebi permissão para fotografar. Sempre de modo discreto, e durante a pesquisa pude realizar gravações de vídeos durante uma GIG na okupa. Embora não tive tempo de passar esse material para o computador, pois fui assaltada na saída da okupa indo para universidade. Esse evento ficou marcante por se tratar de uma sensação de insegurança duplicada. Como estava sempre negociando a pesquisa, muitas vezes sentia-me distante dela e insegura se concluiria meu trabalho com êxito. Ter sido vítima de uma situação de assalto nas proximidades da okupa, foi, durante dias motivo para não querer voltar para o campo. Entrei numa rejeição assumida, sabia que não deveria ser como estava sendo. Me ausentando do cotidiano da casa, eu poderia perder os laços que haviam sido feitos. Embora tenha reconhecido o ônus dessa minha atitude, sabia o que temia, necessitava de um pouco mais de impulso. Tomei a prática da escrita do diário de campo e durante esse período escrevia sobre as sensações que eu sentia, o medo de ouvir um não, o olhar desencorajador de alguns okupas, a ansiedade por coletar os dados e concluir a pesquisa, os temidos prazos da Capes. Traços de uma situação que me fragilizou, que me desafiou e que foi preciso enfrentá- la. Levei um mês para retornar ao campo. Sentia-me encabulada na volta, por ter ficado tanto tempo distante e meus interlocutores deduzirem que não queria estar lá. Então na volta eu contei o que havia acontecido em relação ao assalto e todos foram solidários a meu constrangimento. Senti que nesse momento havia aberto uma nova possibilidade de diálogo e aproximação, pois me senti acolhida e bem vinda. Então ficou evidente que numa relação estabelecida com esse grupo okupa, o tempo seria determinante. Sendo esse tempo um marcador de meu envolvimento com os okupas e do envolvimento deles comigo. Uma vez que as formas de comunicação que se estabeleceram nessa jornada foram peculiares, ressalto o grau de afinidades e em alguns casos, os laços de amizade. Como estão envolvidos coletivamente e de forma intensa com o projeto da casa, desenvolvem formas de se relacionar e colaborações que atravessam o horizonte da okupa. O 20 que inicialmente me pareceu hostil, com o passar do tempo, não seria determinante nem duraria a pesquisa inteira. Através da leitura atenta dos códigos de permissão dos okupas, aprendi a diferenciar o “seja bem vinda” como uma maneira de abrir as portas para minha entrada, do “venha como amiga”, que me trouxeram inquietações significativas e amadurecimento para compreender os sentidos de aproximação que seriam mediados nesse contexto. Isso não era uma rejeição a minha pessoa, era um modo de entendimento sobre alguém que estava chegando. Após contato real, finalmente perceberam o que significava estar lá, colaboraram com a pesquisa. Senti-me próxima dos meus interlocutores de tal modo que acreditei que eles me tratavam como uma amiga, por muitas vezes. Não sei se foi ingenuidade, carência ou se fui afetada pela situação de pesquisa de modo similar ao que nos revelou Alba Zaluar e sua “afetiva” relação com seus interlocutores da Cidade de Deus7. Imaginei por um período razoável de tempo que eu estava sendo “considerada” amiga, contudo não demorou muito para perceber que de fato, eu não estava passando da condição de antropóloga para a condição de amiga. O que estava nas entrelinhas era um pacto velado de silêncio, um acordo tácito de obrigações em que, eu por ser “amiga”, deveria cumprir, deveria saber guardar um “segredo”. O “ser amiga”, nesse caso, implica, uma comunicação preservada sobre a okupa e sobre meus interlocutores na ordem afetiva. Para eles, isso significava preservá-los. Para meus professores leitores, significava militância. E para mim essa relação significava uma postura ética. Porém, em outro momento mais tarde, constatei que se tratava de um pouco de tudo isso. Durante minhas conversações particulares, permitidas graças ao olhar o qual lancei sobre aquela circunstância da vida, me deixei aproximar e enxergar o outro com uma disposição acolhedora por várias vezes: “fazer de seus problemas os meus”, numa disposição atípica de compreender e tomar para si uma causa, de relaxar por um momento. E assim assumir uma postura militante, tão cobrada de mim, sempre atenta ao “distanciamento” e a “vigilância epistemológica” 8, enfim, que não comprometesse os limites de um rigor científico na coleta e análise dos dados. Todavia me deixava envolver pelo exercício político da intervenção anárquica, pela atmosfera daquilo que parecia paradoxal. E, sobretudo, me deixava levar pelo real cotidiano o qual me toca. 7 Ver Zaluar (1985). 8 Ver Bourdieu (2002). 21 Nesse instante, por mais que já estivesse em campo infinitas vezes, por mais que soubesse que estava ali para uma aproximação interessada (de tomar notas para uma pesquisa dissertativa), por mais que soubesse dos procedimentos de coleta etnográfica e ainda assim tivesse organizado meu cronograma de trabalho com trato refinado e apurado sob o rigor metodológico e ético imputados a mim, eu me permiti ao essencial naquele momento: deixar- me levar despretensiosamente pelas falas dos meus interlocutores, por suas ansiedades, suas demonstrações de aversão a minha presença enquanto pesquisadora, por seus desabafos, por capturar suas dores e compartilhar sorrisos e ansiedades. Eu simplesmente os admirei, passei a conviver com eles até perceber que havia um sentido atribuído além do interesse de uma etnóloga urbana. Há um sentido próprio de cada um, presente nessa circunstância social. Estar ali para mim significou “ocupar um lugar e ser afetada por ele” (FAVRET-SAADA, 2005). Além disso, significou perceber que havia um sentido próprio atribuído por eles a Ksa, e tal sentido só foi possível perceber quando eu passei a fronteira simbólica de antropóloga à amiga. Campo de Observação Considerei as práticas de intervenção urbana dos meus interlocutores na sua vida cotidiana e investi numa coleta de dados que revelasse o costume dos okupas, seus hábitos domésticos ou não, dentro e também fora da okupa. Procurei dar relevo às situações de interação como ocasiões mais adequadas para observar a negociação constante e o requinte de sua astúcia nos jogos dos passos que moldam o espaço (CERTEAU, 1994). O caminho escolhido possibilitou ver o cotidiano de meus interlocutores. Além do limite de um espaço recortado – a ksa okupa – nos lugares e nos contextos exteriores onde esses interlocutores revelam identidades múltiplas. Mas que possuem um código simbólico singular, que lhe confere sentido a relações que eles estabelecem entre si e dentro da okupa, como grupo autodenominado anarcopunk 9 . Os códigos simbólicos priorizam as anotações relativas ao diário de campo, repleto de minúcias, que nos causam surpresa quando voltamos a elas no momento de finalização do texto dissertativo. Isso porque revela tamanhas armadilhas e falsas pistas que atravessaram 9 Junção do movimento anarquista e de características do movimento punk, ver Caiafa (1985). 22 meu olhar ao tentar depreender os códigos, que muitas vezes provocam múltiplas leituras sobre uma mesma situação. Num primeiro momento, tudo era estranho a tal ponto que, ao retomar meu diário, estranhei uma descrição sobre o olhar que Gil, um dos participantes da pesquisa, havia me negado. Alimentei uma falsa ideia de que ele estava tão incomodado com minha presença na casa, que me dirigia um “olhar atravessado”. Naquele momento inicial da pesquisa isso poderia ser verdade e fazer algum sentido. Entretanto, quando voltei a ler recentemente não consegui fazer a mesma leitura de antes. Cheguei a conclusão de que ele apenas poderia estar de mau humor naquele dia, ou talvez não tivesse sequer percebido minha presença. O principal desafio na construção de uma etnografia, na observação participante, se esboça na aproximação com os interlocutores, a fim de perceber e saber diferenciar seus códigos simbólicos. De tal modo a ultrapassar a barreira da superficialidade, apostando que sempre há interpretações plurais sobre uma mesma situação. Cabe ao etnógrafo considerar sempre a prerrogativa de que ao pensar que (ele) já sabe como são realmente as coisas, descobrir outra maneira de olhar para elas. Pois para obter uma informação segura sobre esses códigos, é necessário investir numa interação gradual e saber, na verdade, diferenciar os códigos e ações como as piscadelas densamente observadas e interpretadas por Geertz (1998). Ganhar a confiança de um interlocutor significou sentir confiança, ter esperança de que meus interlocutores podiam confiar em mim. A trajetória de pesquisa, por ter conseguido penetrar o universo das okupas em alguns contextos nacionais por ter feito pesquisa em Natal- RN, Porto Alegre-RS e Rio de Janeiro-RJ (LIMA: 2009), revelava um sentimento de pertença para todos os envolvidos, inclusive para mim, constituindo um nódulo de pertencimento e um laço de afeto, além do interesse científico. Não demorando muito para eu perceber que os corpos okupam lugares de intervenção e que eu, enquanto antropóloga, não existo sem um corpo, de tal maneira que ele demonstra a capacidade de ser múltiplo e agente do ambiente construído. Seja para fins científicos - sem perder de vista a objetividade da pesquisa - seja para o convite a mistura e ao envolvimento nas dinâmicas e subjetividades. 23 Estratégia de pesquisa A escolha do campo vem marcada por uma densa pesquisa preliminar, com levantamento de dados e informações sobre o tema, criando um filtro de informações numa conta de e-mail que existe há mais ou menos cinco anos, que divulga diariamente notícias publicadas em diversos jornais da internet sobre ocupação, okupas e movimento de luta por moradia. Sempre que há alguma matéria com essas palavras, um e-mail é gerado e enviado para o meu endereço com o link dessas matérias. Constituindo, por dia, de três a oito matérias. Com a visualização dessas matérias, passei a observar a incidência cada vez maior ao longo dos anos do Movimento Okupa. Embora não ultrapasse o número de e-mails enviados com a marcação movimento de luta por moradia. Logo, minha ideia inicial de observar os dois movimentos veio dessa interlocução. Os jornais me traziam matérias normalmente com conteúdos tensos, envolvia sempre o desalojo ou algum evento que marcava um tipo de agressão. Não houve ao longo desse tempo nenhuma matéria sobre legalização de uma ocupação, fosse ela promovida pelo Movimento Okupa ou pelo Movimento Sem-teto. Visto isso, passei a observar onde era mais recorrente a prática da ocupação por região e município. Nesse mapeamento preliminar, destacou-se a região sudeste, em particular, a cidade de São Paulo. Os vários segmentos de ocupação, tanto okupas quanto ocupações 10 estavam fervilhando nessa região. Então filtrei ainda mais as informações para saber, no nordeste, onde estavam as okupas. Há um fato interessante nessa pesquisa, os e-mails que me são enviados pelo provedor não filtram informações de sites como CMI – Centro de Mídia Independente, um dos mais importantes veículos de comunicação virtual da mídia alternativa. Mas isso eu só perceberia depois de muito tempo. Então, mesmo recebendo os e-mails, visitei diariamente o CMI, por ter reconhecido o site como um rico espaço de informações sobre a pesquisa a respeito das okupas. Encontrei matérias atualizadas sobre o Movimento Okupa no Brasil, em que pude tomar conhecimento a respeito da ocupação de uma antiga fábrica de cera de carnaúba, a Okupa Squat Torém. 10 Sempre que usar o termo “ocupações” desse modo estarei me referindo ao fenômeno das ocupações sem-teto de modo mais amplo, sem especificar um segmento, mas não incluindo as okupas, por entender que estas têm singularidades que serão apresentadas ao longo dessa pesquisa. 24 Depois disso, passei a procurar cada vez mais em blogs sobre anarquia, punk e okupa. Pedi algumas sugestões a Aiam 11 , Boca 12 e Bingo 13 , com intuito de mapear, conhecer e estruturar os rumos do campo etnográfico. Os três informantes privilegiados foram sempre colaborados de peso e incentivadores desta pesquisa. Conversei com cada um deles isoladamente e falei do meu interesse em continuar a pesquisa sobre as okupas. Entretanto não sabia qual dos grupos pesquisar, qual seria o mais viável, quais eles conheciam e se poderiam mediar o contato com os moradores. Inicialmente, sabia de duas cidades próximas e duas cenas do Movimento Okupa bem distintas. Uma delas, Fortaleza – CE, e a outra, Campina Grande – PB. Os primeiros passos foram no intuito de realizar pesquisa entre as duas cidades. Comecei a investigar o grupo, as notícias, qual o coletivo que estava envolvido no projeto, quem eram as pessoas, se havia alguém que já conhecia ou que pertencesse a rede de Aiam ou de Bingo. Por sugestão dos dois, o grupo de Fortaleza foi a opção mais viável, por ele ter mais tempo de ocupação e pela organização do grupo, em termos de eventos e redes acionadas. Com notícias constantes sobre a okupa, estrategicamente seria bem vinda pelo grupo, pois nessa época o grupo estava festejando um ano de ocupação. Aiam fez algumas ressalvas sobre o coletivo Torém. Sendo ele um interlocutor e informante da minha pesquisa, além de também um pesquisador, me deu pistas mais seguras e dicas sobre o grupo. Indicou sites e contatos para que pudesse chegar lá. Além disso, foi muito honesto ao me dizer que o grupo pertencia a uma corrente conhecida entre eles como “anarcoprimitivista14”. Que talvez eu encontrasse as mesmas dificuldades que encontrei ao 11 Atualmente Aiam (42 anos) faz doutorado em Ciências Sociais, nos conhecemos na UFRN, quando cursamos a graduação em Ciências Sociais, além disso, foi ele quem me apresentou o Movimento Okupa. Figura (re) conhecida da cena anarcopunk (construindo e acompanhando várias gerações anarcopunks desde 1980) não só de Natal-RN, mas do Brasil, adensando redes com alguns países da América Latina e Europa. Sempre um amigo, interlocutor e informante privilegiado, foi através da generosa colaboração dele que consegui acessar algumas redes do movimento e ser bem recebida nas okupas onde realizo investigações. 12 Boca (24 anos) atual membro do coletivo cosmopolita de Natal-RN, foi estudante de graduação em Ciências Sociais da UFRN, mas de turmas posteriores a minha e a de Aiam, faz parte de uma geração mais atual do movimento, estabeleceu várias conexões e fez expedições a okupas no eixo, sul-sudeste. Atualmente cursa graduação em Direito numa universidade particular e continua fazendo intervenções junto com seus “compas” em Natal-RN. 13 Bingo (26 anos) concluiu a graduação em Ciências Sociais na UFCG discutindo o Movimento e a Cena Punk no nordeste, fez parte de um coletivo okupa na mesma cidade, vindo morar em Natal-RN para cursar o mestrado em Antropologia Social no PPGAS/UFRN. Parceiro de amizade, disciplinas e de etnografias subversivas, trocamos muitas informações sobre o contexto okupa em que ele esteve presente. Atualmente discutimos sobre nossas pesquisas, eu com o Movimento Okupa e ele com os Vegans. 14 Anarcoprimitivismo é ateísmo, descrença total perante os deuses da civilização. Atitude profundamente iconoclasta contra os grandes totens do mundo moderno. Manifesto pela destruição, pela recusa da especificidade humana dentre as demais formas de vida. Uma escolha para a radicalização no processo de 25 tentar pesquisar um grupo em Porto Alegre-RS, por que eles também seguiam essa linhagem política de negar a evolução da civilização, tentando viver de forma mais primitivista. Por outro lado, Boca sempre sugeriu que voltasse para a região sul, pois Santa Catarina e Rio Grande do Sul estavam no palco de intervenções. Que além das okupas já conhecidas por mim, estavam aparecendo novas formas de ocupação. Ele tinha contato com esses novos okupas e seria fácil estabelecer um contato, o que seria interessante ver os novos arranjos naquela região. Os primeiros contatos com Aiam, Boca e Bingo, me fez pensar sobre as articulações das redes dentro do circuito okupa. Pensando do ponto de vista analítico, há um jogo de articulações que determina a afinidade por segmento okupa, ficando para mim mais evidente a partir das redes de Aiam e Boca. Já a fala de Bingo me ajudou a redimensionar o foco e a hipótese inicial. Projetado sobre a esfera da moradia, quando falara sobre a experiência da okupa em Campina Grande- PB. A proposta inicial de ocupação passava a mudar, o grupo anarcopunk que estava à frente dela estava se fragmentando e aos poucos saindo do espaço. Assim, o grupo e as marcas de movimento “original” vão sendo substituídas por outros grupos – a maioria de universitários que passaram a ocupar esse lugar para moradia, uma vez que a havia problemas de residência universitária sofrida por eles. Embora eu tenha articulado como possibilidade etnográfica a cidade de Campina Grande-PB - através das notícias publicadas no CMI e da análise decomposta dos três discursos - a escolha do campo foi pela Okupa Squat Torém, uma vez que o processo de manutenção desse espaço no nordeste é novo e me causava mais curiosidade. Passei cada vez mais procurar notícias veiculadas na mídia alternativa sobre essa okupação. Retomei os contatos com Aiam através de e-mails, onde eu pedia que ele me sugerisse algum contato preliminar antes de ir até Fortaleza. Devido a experiências anteriores, eu já conhecia algumas práticas de grupos com perfil anarcopunk e de suas atitudes de reserva diante de pesquisadores, principalmente de universitários – a menos que fosse apresentada por alguém que tivesse “moral” dentro da rede do movimento – poderia chegar até lá. Nesse descoberta do que é essencial para a manutenção da vida na Terra, questionando a evolução da civilização. Ver: Acesso em 08 de maio de 2010. 26 sentido, Aiam com uma carreira 15 construída, foi interlocutor privilegiado para que pudesse entrar em contato com Mulambo em Fortaleza-CE. O resultado final dessa escolha foi que em meio a dúvidas houve um novo processo nesse caminho: a mudança de orientação. Isso marca e delineia as formas e escolhas que cheguei ao que hoje é minha pesquisa. A confirmação da escolha do campo foi definida por dar relevo ao tempo que estavam ocupando e também pela experiência de parte de seus moradores com outras okupas. Com efeito, o Movimento Okupa é um desafio para estudo etnográfico. Pela resistência à pesquisa, a minha entrada e vivência dentro da casa, a continuidade da pesquisa a cada momento de negociação, a abertura para uma fala e para uma conversa informal. Sem dúvida, essa foi a principal dificuldade com a qual me deparei. Falando em termos metodológicos, isso é perceptível na fala e no comportamento de Jon comigo (descrito no capítulo 3). Por mais que ele me levasse para recolher o material no lixo e conversasse um pouco, ainda hesitava em falar, tentava me ignorar. Em suma, não queria se comprometer diante do coletivo e também não queria deixar de falar sobre suas experiências e suas ideias, o que revelava uma contradição. Depois de certo tempo isso virou uma constante com todos eles. Isto é, hora falavam abertamente e sentiam-se a vontade na minha presença, hora me percebiam como pesquisadora e silenciavam instantaneamente. Sempre encontrei dificuldades em campo para coletar entrevistas com os interlocutores okupas. Muito diferente de outros interlocutores de pesquisa diferentes 16 . E por conta disso, passei a refletir e questionar porque era tão dificultoso esse processo de pesquisa junto a esse contexto? Utilizei vários processos para fazer com que pudesse coletar pessoalmente dados sociais, na expectativa de que essa experiência me desse uma dimensão mais viva dos problemas encontrados na coleta dos dados e transformação desses dados através de sua análise. Eventualmente adotei medidas mais ousadas, como chegar sem avisar, me oferecer para ir aos lugares, oferecer auxílio material para realização de atividades ou diante de algum contexto específico que necessitasse financiamento. Eu tentava ser útil e 15 Ver Becker (1970). 16 Como os usuários de crack, que pesquisei simultaneamente para a Fundação Oswaldo Cruz. Num primeiro momento participei da pesquisa em Fortaleza-CE, em seguida de volta a Natal-RN fui convidada para assumir a Supervisão Local e finalizar os trabalhos. Outra experiência simultânea de pesquisa foi a Coordenação do Lote 28 – PI e elaboração de laudo antropológico em Comunidades de Remanescentes de Quilombo com fins de titulação. 27 mostrar que estava lá não só pelo interesse em realizar a pesquisa, mas mostra-lhes de fato o que motivou a estudar as okupas 17 e quanto isso foi difícil. Tudo valia muito para mim, visto que fui tomada por um interesse em conhecer outra realidade social. O mesmo interesse motor para fazer Ciência Social. Foi difícil, pois para investir nesse projeto inicial, ainda na graduação, tive de abdicar de minha vida em Natal-RN e tentar realizar uma pesquisa sem financiamento em Porto Alegre-RS. No mestrado, novo contexto em que as condições financeiras são melhores, em que a maturidade teórica também mudou, os investimentos são os mesmos de alcançar o êxito. Não se trata apenas de investir no meu aprimoramento profissional. Mas um investimento pessoal, motivador para viver as experiências coletivas. Ficar nos laboratórios e bibliotecas ou salas de estudo, nunca me deram tanto gozo quanto pôr os pés no mundo, ver ao vivo como é a experiência de um instante, do fluxo social em situação de pesquisa. De fato, nessa atitude valeu até aqui todos os investimentos que fiz, bem como todo ato destinado a tornar meu objetivo possível, sabendo que esses sentimentos só fazem sentido se a pesquisadora for movida por um frisson etnográfico. Como dei início a tal projeto? Certamente não foi por ter julgado fácil a interlocução com esse grupo ou o uso da observação participante. Longe disso. Certo dia, por sugestão de Ane, numa manhã de sábado iria apresentar minha pesquisa (ou o projeto) para os okupas e quem mais estivesse na ksa, para em seguida negociar a realização da mesma. Passei o dia inteiro nas atividades conversando com todos, até perceber certa inquietação de Gil subindo e descendo as escadas como se estivesse preocupado em resolver alguma situação emergencial. Nessa mesma ocasião Eri Teixeira 18 me acompanhou e também percebeu a inquietação entre outros membros do grupo. Então perguntei se havia algum problema a Ane e Gil. Eles então revelaram que o data show que iriam usar para exibição dos vídeos das atividades do dia estava quebrado e que não conseguiram outro, comprometendo a atividade. Eri então sugeriu que ele poderia conseguir o equipamento com o irmão dele, bastaria apenas alguém ir buscar. Prontificamos-nos a resolver o problema e trazer o equipamento que estava do outro lado da 17 Na segunda pesquisa de campo em 2006 com grupo okupa N4 em Porto Alegre-RS diante das dificuldades necessitei emergencialmente a sair da minha cidade, da minha casa, largar bolsa de pesquisa que me mantinha para trabalhar no comércio em outra cidade, porque a primeira experiência okupa que acessei foi em Natal-RN com a Casa Viva, mas ela foi desalojada antes de adensar a pesquisa, achei que não poderia prosseguir com esse projeto sem conviver com uma realidade okupa, então parti para Porto Alegre-RS com essa motivação e com essas condições materiais limitadas. 18 Amigo do Ceará, que conheci durante a I Semana de Humanidades da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, realizada e Mossoró em 2011 em que coordenei um GT em que ele apresentou uma comunicação. 28 cidade, mas eles desistiram do equipamento por julgarem inviável nosso deslocamento e para não prejudicarem as atividades. Fariam um som, abririam para debate sobre a situação da okupa. Os visitantes que estavam lá e que faziam parte do coletivo de imprensa alternativa CMI conduziram as atividades e foi o destaque durante o dia, assim o que seria um momento em que iria falar da pesquisa para o grupo, não aconteceu. Tudo isso acabou ficando para outro momento. Ane se dirigiu a mim, justificando que devido ao problema com o equipamento, as atividades ficaram comprometidas, entendi que seria melhor para eles deixar para outro momento a minha apresentação. Efetivamente, minha apresentação aconteceu semanas depois, apenas com três moradores, numa quarta-feira e todos se mostraram pouco interessados com a pesquisa. Em decorrência dos obstáculos enfrentados no processo da pesquisa, a responsabilidade aumentava, todo cuidado era necessário, visto que o habitus de pesquisadora poderia ser latente e comprometer os laços construídos até aquele momento. Outras práticas do espaço como formas de expressão Existem muitos grupos e pessoas que fazem intervenções sobre a cidade, cujos participantes buscam alternativas para viver em sociedade e estabelecem formas de interagir diferenciadas, expressam indignação, revelam suas insatisfações e anseios por uma cidade em que caibam seus habitantes e sua diversidade. Esta pesquisa trata de uma dessas formas organizadas de protesto e intervenção: a okupa. Como há vários segmentos de ocupação urbana e intervenção, é importante ressaltar a importância particular do sentido de okupar, diferenciada do que significa “invadir”, o que explicita os mais diversos usos e protestos que o grupo okupa faz com a cidade. As possibilidades de definição indicadas pelas palavras “ocupar” e “invadir” esboçam possíveis abordagens acerca das concepções variadas que parecem cruzar-se. Baseadas tanto no senso comum quanto na experiência cotidiana do mundo okupa. O termo ocupar 19 sugere 19 Segundo Aurélio B. Holanda ocupar seria “estar ou ficar na posse de, [...] tomar ou encher (algum lugar no espaço), preencher, empregar, aproveitar [...]”. 29 estar ou ficar em posse de alguma coisa, preencher, aproveitar algum lugar no espaço. Percebe-se aí uma possível definição, ou pelo menos um entendimento que parece dar conta dessa prática observada de conquista de espaço. Variavelmente o termo invadir 20 expressa algo hostil, revela uma resistência numa disputa de espaço que exige que haja alguém a ser dominado, que possa estabelecer uma relação forçosa, insistente e que, por fim, faça uso de uma violência contra outro para entrar no espaço interno. Assim, okupar com “k”, significa “ocupar” um espaço vazio, praticar uma forma de expressão sobre os espaços sem função social (vazios, em estado de abandono). Enquanto ”invadir” sugere forçar um domínio sobre um espaço ocupado. Existe, portanto, uma diferença semântica nas duas ações: a primeira abordagem estaria voltada para uma filosofia da okupação, uma aproximação de indivíduos, interações possibilitadas pela ocupação e vivência coletiva, numa relação mútua. De modo inverso, o segundo termo se apoia em variáveis institucionais, indicando a relação hostil entre as partes. Para os okupas, o termo okupação aparece com duplo sentido e está mais próximo do termo “ocupar” acima descrito. Porém esse sentido não está limitado a apropriação do espaço para uso comum do coletivo, mas assume também um sentido de atividade ou trabalho, ali desenvolvido. Portanto, quando se fala de okupação, significa mobilização com sentido de expressão valorativa da intersubjetividade desses okupas. E suas formas não elementares de apropriação do espaço sob o lema punk: Faça você mesmo! 21 Nesse sentido, chamar um okupa de invasor, marginal, criminoso ou vagabundo, é imediatamente acionar as etiquetas da normalidade e moralidade do grupo socialmente “estabelecido” (ELIAS & SCOTSON, 2000), ancorado na ideia sobre o que é “justo e injusto, verdadeiro e falso, normal e patológico, bem e mal” descrita por Cusson (1995). A okupação de imóveis que não cumprem com sua função social é feita para fins de moradia e de centro cultural. Nesses espaços são desenvolvidas ações libertárias com interesses sociais de estabelecer um uso do espaço e com propostas para revitalizá-lo. O artigo 1276 do Código Civil diz sobre as propriedades vazias e abandonadas que sejam revertidas para o poder público municipal. O que garantiria a expropriação de propriedade e desapropriação a partir dos dispositivos legais relativos ao abandono 20 Segundo Aurélio B. Holanda invadir seria “entrar à força ou hostilmente em, [...] tomar. Dominar”. 21 “Do it yourself”. 30 presumido. Na Constituição Brasileira, o capítulo reservado à ordem econômica e financeira, tanto o direito de propriedade como a sua função social são submetidos a um objetivo expresso: assegurar a todos existência digna, em conformidade com os ditames da justiça social (artigo 170, caput e incisos II e III). A função social está ligada a um objetivo maior: alcançar a justiça social, entendida esta como a necessidade de uma igualdade de repartição de riquezas. No entanto a okupa permite se responsabilizar e tomar para si à construção de um espaço cultural e/ou de uma moradia. Que articule em um mesmo espaço a possibilidade em curto prazo para resolver problemas derivados da ausência do Estado. Como garantir, por exemplo, políticas públicas culturais para juventude e oferecer alternativas diante da delinquência, marginalidade, falta de moradia, falta de um espaço público para atividades culturais. A okupa não só se habilita como toma para si a responsabilidade de atuar com transformações sociais sobre estes espaços, mas em um contexto mais amplo, favorecer inclusão dos jovens, o que implica também combater o uso de drogas, como o crack 22 que era utilizado pelo grupo de homens que habitavam parte do terreno em que estava construída a okupa. A reconstrução temporária desses “espaços praticados” consegue resultados absolutamente impossíveis de compreensão. Pelo menos sem que haja disponibilidade de aceitação, ou dito de outro modo, uma relativização ao que está fora da regra, do padrão normativo. Havia uma dificuldade inicial de aceitação por parte dos usuários de crack e também dos moradores da vizinhança. A revitalização passa por padrões desconhecidos por estes vizinhos, em que os usos de materiais alternativos ou do próprio lixo reciclado são estranhos a eles. A peça onde dormimos e realizamos todas as atividades domésticas, é a peça mais preservada, porém tem algumas infiltrações no teto. Da mesma forma os telhados e as aberturas, o abandono deve ter destruído o piso que era lá embaixo estava cheio de lixo e com muitos buracos, então nós preenchemos com cacos de telha e uma camada fina de areia e, finalmente, tijolos maciços que encontramos nos escombros. Tarefa lenta e artesanal, que ainda não está concluída. Assim também acontece com as outras partes da okupa, vamos reconstruindo buscando alternativas ecológicas e econômicas, experimentando e desconstruindo os conceitos estabelecidos de como construir, com que material construir e qual a função de uma construção. Okupar. Mais de uma razão, mais de um significado. (Gil, Janeiro de 2012). 22 Dentro das okupas que percorri, em anos de pesquisa de campo, não presenciei consumo de drogas ilícitas por nenhum okupa. Existe uma discussão e uma recusa ao consumo de drogas, essas não fazem parte do seu cotidiano, embora dividam opiniões de seus frequentadores e possíveis consumidores que passem por elas. 31 Na okupa, pensei encontrar a possibilidade de um projeto atingir uma problemática social, através de uma movimentação alheia às condições institucionais estabelecidas, utilizando arte e ações coletivas como instrumentos de intervenção social. Quem são os okupas? O fluir dos plurais difunde o prazer sob as formas eXtremas das diferenças. Canevacci (2006) em tom poético e subversivo me fez refletir sobre meus interlocutores, precisamente em tomá-los como um grupo de jovens anarquistas, punks, que curtem rock, que carregam no corpo tatuagens, pircings, moicanos, coturnos, ademais, todas as marcas de uma identidade devassada há muitos anos. As várias pesquisas me deixaram reticente sobre o que realmente pode insinuar uma identidade coletiva. Por isso, já aviso ao leitor interessado nesse trabalho que não encontrará um perfil modelar do que é ser okupa nos anos 2000, pois esse não é meu principal objetivo. Embora tenha encontrado esses marcadores de uma identidade plural e de uma subcultura jovem anarcopunk, para mim, identidades coletivas e individuais passam mais por marcadores simbólicos e autodefinições. Significa considerar o que eles identificam como sua identidade coletiva: torenianx, okupas, anarcopunks. Essa apreciação estética 23 , muitas vezes, ficava comprometida, visto que nem todos os okupas do grupo traziam esses marcadores de identidade tão definidos, a exemplo da indumentária punk, descrita por alguns pesquisadores. Venho trabalhando nessa pesquisa por curiosidade em conhecer as formas de existência coletiva. A partir da experiência okupa em Fortaleza, tomei conhecimento de informações pessoais que chegaram a mim em um dia qualquer. Quando encontrei um velho amigo que parou num breve encontro de corredor no CCHLA, me relatou sobre a existência de um grupo anarcopunk que estava com uma okupa em Fortaleza. Nessa ocasião ele me 23 A minha monografia (Lima: 2009) apontei essas questões mais gerais sobre artefatos culturais de uma cultura anarcopunk, já investigados. Naquela época eu pude encontrar em Caiafa (1985), Restrepo (2005), Canevacci (2006), Gallo (2008) e Rudy (2009) alguns dos pesquisadores que se debruçaram com maior intensidade sobre as características de uma identidade punk. 32 disse: “alguns desses okupas já circularam no sul e sudeste. “Você pode conhecer alguém de lá? Não tá sabendo disso?”. Com essa narrativa apressada, porém instigante, encerrando nosso encontro com um abraço, parti em seguida, na direção de uma leitura mais esclarecedora do CMI. De modo paralelo, uma indagação/ investigação foi se colocando para mim, sobre o grupo, afinal porque circulam pelo Brasil okupando? Após situar a abertura desse tópico que faz referência a Canevacci (2006), recupero toda a bibliografia que acessei sobre identidade punk e a forma como se deu essa pesquisa, a fim de tentar desconstruir um pouco esse mito que circula no universo das pesquisas com juventude e punks. Quase sempre insistentemente pautadas na estética e na música, o que acaba por deixar lacunas sobre a reflexividade desses sujeitos múltiplos, disformes, globais, plurais ou pluriativistas (conceito que emerge dessa situação de pesquisa, que chamo a partir dessa experiência de campo e que tratarei no capítulo 3). A minha principal interlocutora nessa pesquisa, chamada Ane (22 anos na época), desempenhou uma função importante de mediar minha entrada na okupa e situar a minha presença enquanto pesquisadora, antropóloga e amiga de amigos de outros “rolê”, como ela mesma diz. Uma jovem de estatura baixa, morena, cabelos castanhos, olhos amendoados, cujo corpo destacava-se a barriga de 7 meses de gestação. Usava cabelos trançados, com tranças bem finas, e tinha olhos sempre delineados com lápis preto de forma discreta. Usava sempre um anel de coco no dedo médio da mão esquerda e uma pulseira de macramê no braço direito. Não aparentava ter nenhum pircing e nem tatuagem. Circulou por muitas experiências okupas, conhece muitas pessoas em comum comigo, nas redes por onde circulamos em comum, curiosamente, sem nunca termos nos conhecidos nesses percursos comuns. Talvez o que tenha proporcionado tamanha afinidade e conversas apuradas tenha sido essas experiências compartilhadas, quando passamos a revelar uma para outra um pouco de nossas trajetórias, nossas histórias, quem conhecíamos, de onde vínhamos, como foi a experiência em cada uma das situações experimentadas, com quem falamos, por onde circulamos. Enfim, tínhamos assuntos em comum, pois tínhamos tido trajetos convergentes, embora com propósitos diferentes. Junto com ela, nesses trajetos okupas, estava presente Zeta, 24 anos. Uma jovem de nariz afilado, com longos dreads enrolados na cabeça, que deixava sempre a mostra algumas 33 das partes de suas várias tatuagens. Com um pircing metálico na língua, um alargador de cor preta na orelha esquerda, diferenciava-se de Ane. As duas eram okupas, anarcopunks, grávidas e mulheres que participavam de atividades em comum, (a prática de capoeira angola no mesmo grupo, por exemplo). Também vinham de uma cidade na zona metropolitana de Fortaleza, estudaram na mesma escola até o ensino médio, não tendo até momento dessa pesquisa curso superior. Muito brincalhona Zeta puxava conversa sempre, perguntava por um amigo meu que ela conhece, e isso permitiu maior aproximação, pois tínhamos algo a compartilhar. Assim, foi sendo tecida uma teia de afeto, a disposição para conversar, nessas ocasiões falávamos sobre minhas experiências de pesquisa, nossos amigos em comum, sobre a okupação, até que perguntei: a okupa serve como moradia e espaço cultural? (abaixo há uma fala de Zeta, para situar esse nível de envolvimento). Sim. Nossa proposta com este espaço é garantir um canto para a vivência libertária, obviamente, num sentido fraco, já que viver isso plenamente numa cidade é muito difícil, e divulgar as ideias e a cultura libertária. Basicamente, nossa intenção aqui é criar espaços que rasguem com a malha da ordem sistemática da sociedade e propiciem o florescimento da anarquia. Assim como a galera fez em Campina, estivemos lá, foi onde conheci o Bingo. Sempre de um jeito bem-humorado, ela falava e perguntava o que queria, pois se sentia a vontade para fazer perguntas, assim como eu, fazia o mesmo. Por um momento, ela me deu uma sensação de sensibilização que talvez eu já tivesse proporcionado a ela anteriormente, diante de interrogações ou depoimentos que pudessem causar certo conforto. Fui percebendo nesses momentos que a sequência de “nãos” que recebida, era pontual. Em outras ocasiões, como essa descrita, o “não” desaparece. Continuamos conversando, intercalei um pouco nosso diálogo com a chegada de Ane. Esta me ofereceu um café e voltamos a falar sobre a okupa. Dessa forma, flagrei um pouco das relações negociadas em campo entre antropóloga e interlocutores, assim como também da herança de seus informantes. Com outra questão e uma xícara de café, prossegui. Apresento o diálogo em texto abaixo: Antropóloga: Como você enxerga o momento em que está a Torém agora, de como ela era antes quando vocês chegaram aqui? Zeta: Muita coisa melhorou desde que okupamos a ksa, tanto a estrutura física, quanto as relações dentro do espaço. Quando okupamos, era uma casa caindo os 34 pedaços, passamos esse tempo todo até agora sem energia elétrica e com poucos recursos para a reforma da casa, mas agora a gente já tem luz solar com ajuda da bateria, não ilumina tudo, mas já é uma ajuda, porque nesse período todo só tínhamos acesso a luz nos finais de semana porque o vizinho cedia para gente. Desde essa época, dormimos em barracas dentro da ksa. Quando chove, não tem jeito de fazer nenhuma atividade. O pátio era cheio de entulho e lixo, muitas pessoas colaboraram pra melhorar o espaço nesse sentido, temos muitos compas que colam aqui e dão uma mão pra gente. Mas tocamos as atividades na medida do possível. Com o tempo, a galera de fora ficou sabendo e uns conhecidos fora daqui e mais pessoas que passavam pela cidade apareciam por aqui por curiosidade e para conhecer e okupar, ter um pouco dessa vivência que nós tivemos na Flor e no Bosque. Essas pessoas quase sempre contribuem para incentivar e aos poucos tudo foi tomando forma. Hoje a nossa situação já é bem diferente. Melhor claro! Com a notícia da gravidez de Ane e, em seguida, também a de Zeta, os planos do grupo em se manter junto, investindo em um projeto de vida coletivo continuaram. Mas muitas eram as expectativas nesse sentido e por isso elas não se deixavam desviar de suas vivências. Todos continuavam fazendo suas atividades dentro e fora da ksa. O número de pessoas aumentou, começaram a aparecer mais moradores e visitantes, mais atividades com grupos de fora da okupa. E uma intervenção cada vez mais frequente na cidade. Nesse período, o grupo obedecia à pauta de reivindicações que apareciam, a exemplo da luta pela Humanização do Parto e do direito à moradia, duas pautas importantes que trouxeram pessoas externas para o ambiente interno da ksa. Ali existia uma discussão, sempre a partir de uma intervenção considerada por elas “menos agressiva” sobre os corpos da mãe e da criança. Os companheiros das duas moças, pais das crianças, passavam menos tempo na ksa, pelo menos durante os dias em que eu estava lá, percebi. Demorei a conhecer o companheiro de Zeta, chamado Floca (22 anos). Ele sempre estava afastado de onde eu me encontrava. Em silêncio, conversava pouco, me cumprimentou algumas vezes, mas “não me olhava de cara feia”. Ao contrário de Gil - 24 anos na época e que sempre deixou claro para mim, que não me queria por lá. Mas sempre fui um pouco insistente e tornava a voltar, até que ele foi se acostumando comigo. Chamou-me para conversar, me ofereceu tapioca, café, água e me convidou para atividades do grupo. Demoraram uns dois meses para ele me cumprimentar, sempre falava e ele nunca respondia. Os dois okupas tinham um perfil muito parecido: de cor branca, usavam barba, tatuagens, dreads, coturnos, calças skinny, pircing no septo. Floca tinha um alargador em forma espiral na orelha esquerda. Como estavam sempre fora quando 35 estava na ksa, não tivemos muita aproximação. Diferentemente, Gil na conclusão da pesquisa se aproximou de mim e permitiu dialogar com ele, o que foi um momento feliz de aproximação e aceitação. Diferente de Jon, que tinha 28 anos na época e Beto com 42 anos, Gil e Floca foram receptivos com a minha chegada à ksa, mesmo resistindo à pesquisa por haver esse bloqueio coletivo do grupo em relação à pesquisa para universidade. Mas de alguma forma, eram mais interativos com a minha presença constante. Logo que cheguei, encontrei o Jon, foi ele quem abriu os portões da Torém para minha entrada. Em seguida, junto com Tassinha, sua companheira que tinha 21 anos e ainda morava na ksa, me convidaram para circular pela cidade. Fomos, nós três, caminhar no centro, no bairro, na praia e eles se mostrando afeitos a minha presença. Jon e Tassinha têm um vasto conhecimento agroecológico, proporcionaram boas trocas de experiências e intervenções na construção do espaço, atendendo as necessidades. Jon é um “artista nato”, sempre está tocando violão com Ane e Gil. Além disso, costumava discutir textos com Tassinha, fazendo artesanato com Beto ou produzindo stencil com Jaga, enquanto este último está dentro de ksa. Pois ele sai junto com os outros diariamente para maguear no sinal com malabares (falarei mais sobre essas e outras atividades do grupo nos capítulos 2 e 3). Enquanto Jon se pinta com pankake, batom vermelho e põe nariz de palhaço, Beto é o tipo punk que carrega sobre si todos os caracteres de indumentária punk, exceto uma boina preta de crochê (uma marca própria dele). Moreno de pele queimada do sol que toma o dia inteiro, caminhando na praia mangueando, expondo artesanato, ou durante os dias que trabalha como pedreiro, Beto tem muitos acessórios sobre seu corpo e usa um colete coberto de tachas e spikes. Além dos okupas citados acima, há também Jaga, 22 anos, loiro, moicano e com dreads. Corpo tatuado e com pircing no septo, uma musculatura bem definida, resultado da prática de jiu jitsu, segundo ele, para “se defender dos carecas”. Jaga chegou para morar na ksa após a saída de Tassinha 24 . Responsável pela tarefa que era dela, de fazer a vigília da ksa, 24 Tassinha confidenciou algumas vezes sentir-se diferenciada, porque não seguia a dieta vegana de forma tão radical. Ainda estava “se acostumando” e se dizia “excluída” por algumas vezes nas discussões dos textos, haver confrontos de ideias e a sua opinião ficar de fora. O pessoal não dava ouvidos, enfim houve um conflito na minha ausência. Ane e Jon disseram que ela foi embora por ter passado no vestibular para agronomia num polo do interior do estado do Ceará. Nunca mais tornei a vê-la, embora tenha estabelecido um bom diálogo e aproximação. Evidentemente, fiquei feliz por ela ter passado no curso, uma vez que ela já havia confidenciado que gostaria que isso acontecesse. Embora lamente não voltar a vê-la ou saber notícias. De modo geral, esse 36 determinada entre eles a partir das necessidades de sair para mangueio. Nessas circunstâncias, existem conflitos sobre o revezamento (embora na fala dele não existissem), na fala de Tassinha essa reclamação soou algumas vezes e a mesma via Jaga nitidamente assumir essa função. Embora eu nunca tenha visto ou ouvido nenhum relato em tom de reclamação de sua parte. Nilo e Mulambo são anarcopunks e frequentavam a ksa. O primeiro, nascido em Brasília, herda de lá a afinidade com a cultura punk. Faz parte da cena local e foi quem desenvolveu uma relação de amizade comigo. Jovem, moreno, de cavanhaque, cabelos encaracolados, sempre com a indumentária punk, me ofereceu um vasto repertório de músicas e vídeos sobre a cultura punk. Estava sempre colaborando comigo, dando incentivo, se posicionando a favor. Embora não fosse okupa, tinha uma afinidade com o pessoal, pois mantinha uma relação de amizade com eles e defendia em certa medida a pesquisa. Durante nossas conversas sobre minha pesquisa, Nilo sempre justificava que eu poderia dar uma “boa visibilidade para a ação do coletivo”, que ao invés “das pessoas só ouvirem um lado da moeda, poderiam ouvir a outra”. Mesmo assim ele nunca me deu uma entrevista. Dizia ele: “por respeitar a decisão do coletivo da okupa, não posso colaborar com entrevista. Se fosse sobre outra coisa, eu falaria numa boa”. Por conta disso, não voltei a insistir e continuamos mantendo contato. O Mulambo, figura icônica do movimento okupa em Fortaleza, de idade até hoje desconhecida por mim, realizava muitas brincadeiras comigo, de ficar me zoando, me chamando de “a pesquisadora” ou a “amiga de Aiam”. Sempre me tratou bem, foi quem me apresentou para os okupas antes da realização da pesquisa e foi também quem me alertou sobre os possíveis conflitos que teria que enfrentar internamente para realizar a pesquisa. Ele é negro, com várias tatuagens, dreads longos, tem uma filha que mora com a sua esposa no estado do Maranhão e de tempos em tempos, esposa, filha e o próprio Mulambo se revezam entre os estados. Participa intensamente das atividades da okupa, sempre ofereceu apoio ao coletivo e tem o papel de conectar a nova geração com as gerações anteriores através da manutenção das redes, produzindo fanzines, tatuando os compas. É alguém que participa da cena anarcopunk na região nordeste há muitos anos e, assim como Aiam, mantém relações e participa das novas ações movidas por anarcopunks. episódio revelou um pouco do conflito interno da casa, mas infelizmente não pude me deter pela própria ausência de informações com a saída dela. E por quase ninguém voltar a falar nela, apesar das minhas insistências na forma de perguntas a seu respeito. A única notícia foi sobre sua aprovação no vestibular e se isso procede ou não, não foi possível verificar nesse momento. 37 Assim, os meus principais interlocutores nessa pesquisa são estes. Embora hajam muitos outros que passaram e contribuíram, contudo são estes o grupo de interlocutores com os quais tive mais contato. Alguns de forma limitada, mas que revelaram um pouco das negociações, tensões e limites do campo, além do tipo de relação que foi construída, com quem adensei as redes de contato. Conforme procuro demonstrar, na sequencia dos capítulos, essas negociações, estratégias e métodos do improviso vão oferecer um pouco do universo pluriativista de uma identidade subversiva que não cabe nos moldes e modelos de identidade fixas. Mas que são plurais e dialógicas. Comigo, com a pesquisa, com as pautas e reivindicações, individuais, mas também coletivas. Universos juvenis dilatados, que não se fixam nas idades, mas no modo de vida jovem, ou pelo menos, do que se entende como ser jovem. Feita essa apresentação dos meus interlocutores, dessa pesquisa, o objetivo, as estratégias metodológicas e o tipo de metodologia que utilizei, é preciso dizer algo mais sobre a organização social deste texto como um todo. No primeiro capítulo, me proponho a fazer uma descrição macro espacial sobre a cidade e urbano (Simmel, 1979; Velho, 1987; Sassen, 1991; Certeau, 1994; Magnani, 1996; Castells, 1999; Harvey, 2002; Daves, 2006), localizando onde meus interlocutores estão inseridos e o que significa uma okupa situada em Fortaleza-CE. Aqui apresento as principais características que marcam esse lócus de observação como um lugar de extrema sedução, porém, também por sua importância imobiliária e de comercialização de edifícios verticais. Também, no mesmo capítulo, segue a apresentação de um repertório de ocupações, algumas tipologias e o surgimento das okupas onde apresento um mapa de várias experiências okupa no Brasil. O segundo capítulo diz respeito ao trabalho de campo, os modos os quais tentei superar o desafio de realizar uma pesquisa com um repertório de interlocutores. Nesse momento, coloco em exposição uma série de dificuldades, como por exemplo, a precisão das informações, a penosa conquista dos meus sujeitos de pesquisa, as garantias éticas de preservação do anonimato e o respeito ao código de ética da ABA. Ainda nesse momento, contemplo os circuitos percorridos, as formas de fazer e viver em coletividades, os diferentes interlocutores, a vivência e prática da okupa, seus diálogos com outros grupos e as maneiras de fazer ou okupar. 38 No terceiro capítulo, procurei abordar algumas questões relativas à prática da okupação e a organização do grupo, quais os princípios e os movimentos que esses interlocutores fazem com a cidade. E o ponto de partida de sua prática em relação com as questões que fundamentam suas intervenções. A intenção é mostrar como essa prática de intervenção e ação coletiva tem se apresentado na contemporaneidade e de que maneira minha etnografia pode contribuir para um diálogo sobre as práticas de mobilização e atualização da cidade, considerando ainda, o aporte da Teoria Crítica e Teoria do Reconhecimento, tal como desenvolvida por Axel Honneth (2003) e Jürgen Habermas (1987). Na categoria reconhecimento, acredito encontrar chave analítica útil para descrever as formas de reciprocidade vivenciadas pelos okupas, somada a ação coletiva e a importância histórica dos Novos Movimentos Sociais (Melucci, 1980; Touraine, 1983; Habermas, 1987) num contexto de intervenção e mobilização coletiva na cidade. 39 CAPÍTULO 1 O ÍNTIMO COMBATE NA SELVA DE PEDRA Essa pesquisa caminha sobre a cidade, ela não contempla a cidade como o foco, nem tampouco o bairro de Fátima, sobre o qual os inúmeros grupos se desenvolvem dentro ou em volta dele. A cidade é aqui um lugar que nos permite observar as inúmeras formas de agrupamento e a diversidade com que os sujeitos se agrupam sobre ela. A apropriação feita pelos sujeitos sobre o espaço urbano significa aqui compreendê- los como expressão cultural de uma série de valores coletivos. Portanto, a Okupa Squat Torém é um espaço, um lugar praticado (Certeau, 1994), em outras palavras, ela é fruto da vivência e percepção dos seus próprios habitantes – os okupas. Figura 5 - Bairro de Fátima em Fortaleza (CE), maio de 2011. 40 A cidade-conceito, pensada a partir de Certeau revela um lugar de transformações, objeto de intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos: ela é ao mesmo tempo a maquinaria e o herói da modernidade (1994, p. 174), ela não revela apenas o uso estratégico para ação contínua da economia, a ação dos especuladores imobiliários, por exemplo, ou dos investidores do setor da construção civil, a abordagem sob esse conceito de cidade revela ou macula fatos interessantes sobre os grupos institucionais públicos e empresariais privados, nos colocando à revelia de seus interesses. Tal conceito é muito mais revelador, pois ele nos conduz a prática do cotidiano urbano, quando a racionalidade e operacionalidade com a qual se projetou a cidade moderna passa a se degradar, afetada por seus agentes que tomam para si a tarefa de reinvenção do seu lugar, de reinventar a sua cidade. Desse modo, a okupa é um lugar por onde passa, de modo peculiar, essa reinvenção da cidade. Logo, o conteúdo afetivo atribuído a cidade pelos okupas é tão importante quanto as suas operações funcionais para construção de um cotidiano urbano. Mas cabe a etnografia reter a investigação de uma expressão cultural, de uma forma material e dos seus valores é fundamental para o entendimento de uma intervenção urbana, como a proposta pelos okupas. Isto é, a cidade só tem sentido por obra da apropriação e transformação do espaço pelos sujeitos que nela vivem. Logo perceber a okupa é observar o seu modo de inserir-se no espaço urbano, é capturar o sentido que lhe é próprio e permitido pela relação construída com o lugar e com a ideia dele. Dito de outra maneira é dar relevo a transformação do espaço que é feita a luz das ideias desse movimento anarcopunk, aos valores e códigos que o movimento possui e constrói levando em conta o espaço e as condições que já existiam nele. Assim, seus valores e usos coletivos estão expressos na materialidade do espaço praticado, na construção da ksa, no seu estilo de vida que empresta novos significados a um prédio abandonado e por isso agrega diversas manifestações que compõem a cidade. Dentre os objetivos dessa pesquisa, o principal é observar quais sentidos são atribuídos a prática da okupação pelos okupas - sujeitos interlocutores diretos dessa pesquisa – refletindo a partir das especificidades desse fenômeno urbano dialogando principalmente com a tradição de pesquisas nesse campo da Antropologia. 41 Figura 6 – Okupa squat Torém no bairro de Fátima, Fortaleza (CE), maio de 2011. Para clareza e entendimento desses objetivos, é importante frisar que tomo a cidade como o lugar das práticas desses interlocutores, o substrato social de um contexto de observação, a cidade aqui não será discutida enquanto objeto de análise, mas como o contexto de interação onde se desenvolvem as atualizações desses sujeitos sociais e que permitem a cidade o lugar de sua intervenção. Estou falando de uma etnografia na cidade e não da cidade, uma notável diferença sobre a prática da pesquisa etnográfica em contexto urbano que produziu tais diferenciações como sugere Magnani (1996; 2002) e Frúgoli (2005) por trazer a dimensão etnográfica como experiência prática e uma totalidade junto aos deslocamentos. Assim, a presente pesquisa permite observar a construção histórica de uma intervenção urbana e as teias afetivas que os okupas atribuem a sua cidade. Situada na perspectiva dos estudos de antropologia urbana e da cidade, onde o estudo deste meio nos coloca diante de uma antropologia da cidade, entendida como “o contexto que abraça a existência de vários fenômenos sociais” (Velho, 1987; Magnani, 1996). O texto pretendido como trabalho final aponta para uma discussão pontual sobre a cidade considerando como eixo central a produção atualizada da cidade-global (SASSEN, 1991), sem deixar escapar o contexto em que esse fenômeno teve origem: o processo de 42 industrialização. O fenômeno das okupas no cenário urbano, isto é, a ocupação de casas abandonadas dentro da cidade, tem dois apelos inicias, a saber, no ponto 1. Porque esses imóveis estão destinados ao abandono? 2. Porque esses sujeitos ocupam esses imóveis? Para essa pesquisa me interessa responder de imediato a essas duas questões para adentrar o universo desses sujeitos em maior profundidade. 1. Atendendo a construção da cidade-global (SASSEN, 1991) dos grandes investimentos, há um interesse por parte de investidores do setor imobiliário para que os imóveis que estão localizados em bairros cuja oferta de serviços e equipamentos urbanos sejam fartos fiquem ociosos. E esses investidores terão garantido a especulação desses imóveis, isto é, espera-se que tal imóvel atinja o máximo possível de valor de compra de acordo com os investimentos sobre as condições do bairro em que ele esteja situado a mercadoria de grande valor nesse caso é a terra, não o que está construído sobre ela, é por essa razão que os imóveis são deteriorados, pois os compradores desses imóveis são as construtoras de imóveis verticais que colocarão os velhos imóveis abaixo. 2. As okupas têm perturbado essa lógica do mercado imobiliário, através da okupação desses imóveis ociosos, fator importante de contestação praticada na rua para deslegitimação ao menos do pensamento econômico desse mercado imobiliário local, que tem ajudado a pautar a segregação urbana, na medida em que permite o abandono em face do déficit habitacional que atinge nosso país, portanto são ações isoladas, mas conectadas gerando verdadeiras batalhas com os proprietários e confrontos com a polícia. De fato, qualquer forma de resistência “anticapitalista e antiautoritária” ganhou força com a juventude anarcopunk e isso fica evidente no quadro de ocupações realizadas por grupos libertários que construí ao longo dessa pesquisa. Basicamente essas ações coletivas são organizadas por grupos de afinidade de forma autogestionária, isto é, não hierárquica, não burocrática e autônoma. Partindo de alguns autores como Simmel (1983) para pensar o modo de vida urbano que estava emergindo junto ao processo de industrialização, bem como Wirth (1983) e Park (1983), que traduzem um modo de fazer pesquisa em contexto urbano pioneiro, levando alguns questionamentos sobre o que é cidade que são úteis para minha compreensão sobre a cidade de Fortaleza-CE em contexto de pesquisa. 43 O marco para o aparecimento do movimento okupa, entendido aqui como um “fenômeno urbano”25, também conhecido como squat26 é a Europa dos anos 1960, frente ao processo avançado de gentrificação fruto do processo de industrialização, em que estava emergindo um novo modo de vida urbano em que a prioridade era o desenvolvimento dessa cidade urbana, onde os indivíduos não eram os protagonistas e por essa razão, eram empurrados para longe dos centros das cidades para viverem de forma precarizada, como podemos observar com riqueza de detalhes na genealidade das descrições cuidadosas e atentas feitas por Engels (1988) nesse período. A desagregação da humanidade em células, das quais cada uma tem um princípio de vida próprio e um objetivo particular, esta atomização do mundo, é aqui levada ao extremo. Disto resulta também a guerra social, a guerra de todos contra todos, é aqui declarada abertamente. Tal como o amigo Stirner, as pessoas não se consideram reciprocamente senão como sujeitos utilizáveis; cada um explora o próximo, e o resultado é que o forte pisa o fraco e que o pequeno número de fortes, quer dizer, os capitalistas, se apropriam de tudo, enquanto que ao grande número de fracos, aos pobres, não lhes resta senão a própria vida, e nada mais. E o que é verdade em Londres [...] é verdadeiro para todas as grandes cidades. Em toda parte, indiferença bárbara, dureza egoísta, de um lado, e miséria indestrutível, por outro, em toda parte guerra social, a casa de cada um em estado de sítio, em toda parte pilhagem recíproca com cobertura da lei e tudo com um cinismo e uma franqueza tais que não nos assustamos com as consequências do nosso estado social, tais como aqui nos aparecem na sua nudez e que já nada nos espanta, exceto que este mundo louco ainda não tenha se desmembrado (ENGELS, 1988, p. 36-37). O ato de ocupar antigas fábricas que fechavam por falência ou que sofreram incêndio, por exemplo, deixando esses espaços ociosos e pessoas cada vez mais carentes de espaço para moradia, é uma realidade de décadas atrás que ainda permanece - dada suas especificidades históricas, bem atuais. A ocupação aparece como uma alternativa diante desse contexto, porém, tanto nesse contexto - em que Engels (1988) retrata a situação da classe trabalhadora com o desenvolvimento da indústria na Inglaterra - quanto agora - em que aparecem jovens libertários produzindo zonas de intervenção sobre o espaço urbano frente a influência do capitalismo sobre o modo de vida atual - se reivindica o direito à cidade, sobretudo ao usufruto de sua estrutura física e questiona-se a especulação imobiliária, produzindo uma estratégia de atuação política autônoma que intervém sobre os espaços abandonados como 25 Quando classifico o movimento okupa como um “fenômeno urbano”, desejo ressaltar que o mesmo constitui um movimento social que emergiu nos espaço urbano da cidade. Além disso, esse mesmo espaço urbano configura o lócus de ação político e estética do movimento. 26 O termo squat para os okupas - em inglês significa espaço invadido - designa espaços que estão em estado de abandono e são reestruturados para promover uma utilização social enquanto unidade habitacional. 44 forma de cessar ou diminuir a carência por moradia àquela época e atualmente não só pela moradia, mas por outras demandas atuais apresentadas. Além da pauta de reivindicação por moradia, a construção de um espaço cultural libertário representa a vivência coletiva autônoma sem intervenções estatais, propõe um espaço de coletividade que tem raízes intelectuais no Movimento Anarquista e no Movimento Punk cuja identidade juvenil é a tônica dessa ação coletiva. Uma okupa se pretende ser um espaço cultural libertário, isto é, primeiro é uma ocupação de um local em que o grupo irá habitar, fará uma reconstrução do espaço físico e abrirá as portas para atividades coletivas destinadas a comunidade. A okupa é um lugar do ilegal como estilo de vida, um lugar onde autonomia e a autogestão coletiva caracteriza um modo de vida, assim: O que esses autônomos valorizavam e desejavam, era a liberdade para os indivíduos que escolhessem outros com os quais pudessem dividir afinidades, e unir-se com eles para sobreviver e preencher todas as necessidades e desejos coletivamente (Maia, 2005, p. 2). Ao construir uma rede de relações tendo a okupa como o espaço sobre o qual tal rede se organiza significa perceber os usos e valores sob o entendimento dos okupas e sobre o que lhe é atribuído ao espaço sob qual estão intervindo, é tomar a consciência desses sujeitos como um entendimento atualizado da cidade. Para Simmel (1979) esse é o sentido adquirido pela vida na metrópole, marcada por transtornos para acomodar seus acontecimentos – múltiplos, descontínuos, acelerados, inesperados – em que a razão estaria sobreposta à emoção. Nos aproximar do ritmo frenético e tenso instalado atualmente nas metrópoles já não seria nenhuma novidade. Mas observar e conhecer uma reação diferente exposta na dinâmica urbana pode nos permitir melhor “enxergar” um diferente “tipo metropolitano de homem”. Atualizado, cuja reação enérgica é o meio de resolver, ou pelo menos, de questionar sua existência em um mundo urbano, onde se produz conflitos e onde se revelam portas de entrada para uma forma diferenciada de reivindicação. O que está em jogo é a compreensão positiva do seu comportamento, reivindica-se reconhecimento (HONNETH, 2003), que lhe é recusado. 45 Assim, o grito de protesto, o lema “do it yourself” (Faça você mesmo) imprime um sentido próprio às questões de autonomia e autogestão que o grupo se propõe a ter, de procurar por si mesmos resolver suas demandas, isto é, procurar um lugar que possa abrigar o coletivo, onde esses sujeitos possam construir um “viver junto” ou uma “vida em comunidade” nas palavras deles. Com o passar do tempo, em campo, percebi que o protesto por moradia, não era o sentido que agregava o grupo ou que mobilizava sua intervenção somente, a luta por moradia assume outro sentido, por exemplo, uma forma de vida diferente da qual esse sujeito okupa tem em convivência com sua família. Há um endereço, um lugar em que estão roupas, calçados, livros, objetos, afetos, desafetos, intimidades, memórias, hierarquias, normas, uma família, que atendem a um padrão que foge as formas de classificação criadas pelo grupo para viver a margem dessas normas pré-estabelecidas socialmente. O estilo de vida okupa, do improviso, que sai de casa para se aventurar entre amigos e contestar as normas e padrões que regulam a vida em sociedade, é um caminho que foi aparecendo, na medida em que o tempo e as conexões fora da casa iam aparecendo nos diálogos. Não estar na okupa, não amanhecer o dia na okupa e chegar depois repetidas vezes de forma alternada entre os membros da casa, foi me intrigando, pois queria saber onde estavam, se demorariam, queria fazer perguntas, mostrar material, discutir ideias, saber as últimas ameaças do conflito com os proprietários, mas quando da minha chegada à okupa, muitos não estavam lá. Onde estavam? Foi assim, que passei a perceber que havia um lugar do endereço fixo, onde ficam as coisas pessoais, tudo aquilo que você não leva no caixote da bicicleta. Há realmente esse lugar, a casa dos familiares, sua antiga ou provisória casa. Diante do que foi dito até aqui, nesta pesquisa de investigação da Okupa Squat Torém, são dois os problemas que me guiam: 1) quais são as motivações do grupo que insere na disputa por espaço de moradia? 2) a moradia é o que consolida o projeto de vida coletivo desse grupo okupa? Foi observando o cotidiano e dialogando com meus interlocutores, na casa ou fora dela, nos encontros combinados fora dali que essas questões foram emergindo, mas principalmente nos momentos de reflexão sobre os dados quando escrevia meus diários de campo, onde apareciam as aflições e as dúvidas, as dificuldades de permanência e produção sobre as condições em que estava acontecendo à pesquisa contando um pouco desse contexto, do que acontecia me colocava questões sobre a trajetória e as diferentes redes de sociabilidade por onde esses interlocutores circulavam que me auxiliaram a chegar a essas questões. 46 Observando que nas últimas décadas os investimentos públicos, tanto os orçamentos e financiamentos na produção de moradia tem crescido. Incluindo as faixas de renda de zero a três salários mínimos 27 , o acesso a moradia tem sido facilitado por esses investimentos e isso permite deduzir que a moradia não constitui o elemento central dos conflitos para meus interlocutores, ou pelo menos para esse grupo. As demandas são plurais, não se trata apenas de um teto sobre o qual irei pousar meu corpo, mas também uma forma de acessar outros direitos como saúde, educação, trabalho, meio ambiente. Não se trata apenas de ter a posse da casa, seus questionamentos incluem na pauta a humanização do parto, a medicina alternativa, o fim de pesquisas científicas com uso de cobaias, ou seja, uma emancipação animal, o uso da bicicleta como um meio de transporte não poluente, mas que seja seguro. Assim, a produção social do espaço urbano, numa análise histórica, me permite observar como novos espaços são construídos à luz das cidades-globais (SASSEN, 1991). Além disso, também como se configura a contraprodução desses espaços feita pelos okupas, porque é a partir das mudanças produzidas nessa configuração espacial global, que meus interlocutores vão intervir. A investigação antropológica dessa okupa me permite insistir na questão: a moradia é uma reivindicação coletiva desse movimento? E, hipoteticamente não sendo, porque tal movimento não se encaixa na “luta por moradia” na atualidade? Respondendo a tais questões ao longo da minha observação, outra pergunta permaneceu insistente em minhas reflexões antropológicas: o que os okupas revelam sobre a questão da moradia? É importante ressaltar que os modos como são construídas as okupas em determinados espaços transformam e provocam efeitos. Através de trocas e da construção social dos conflitos em torno da materialidade do espaço. Não obstante, a articulação entre indivíduo e espaço, nesses níveis mencionados acima, serve de base para um exame do processo de construção de identidades sociais e políticas a partir da presença dos okupas no meio urbano. Existem vários tipos, formas e concepções diferentes de ocupação. Sobre isso, venho me dedicando ao estudo detalhado do Movimento Okupa há oito anos. Iniciei tal empreendimento científico ainda durante a graduação em Ciências Sociais e seu produto foi a monografia “Squat: espaço de sociabilidade e (re) invenção do social28” (LIMA, 2009). E o 27 Possível a partir do Programa do Governo Federal Minha Casa Minha Vida. 28 A pesquisa durante a graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no período que se inicia em 2005 quando do primeiro contato com o tema, através da okupa Casa Viva localizada no bairro de Petrópolis na cidade de Natal – RN até 2008 quando estava fechando o campo etnográfico com a 47 resultado daquele estudo incitou mais questionamentos do que poderia respondê-los no curso da pesquisa e produção do texto final. Ademais, suas descobertas e questionamentos me serviram de fio condutor para investir em um novo projeto. Com melhores condições em termos de financiamento e, sobretudo, com maior rigor que me permitiu entrada no mestrado em Antropologia Social – PPGAS/ UFRN -, o que tornou esta pesquisa atual possível. Cidade Considero a concepção sobre cidade-conceito a partir de Certeau (1994), definida como “lugar de transformações e apropriações, objeto de intervenções, mas sujeito sem cessar enriquecido com novos atributos: ela é ao mesmo tempo a maquinaria e o herói da modernidade” (p. 174), mas sozinho esse conceito não dá conta desse contexto caracterizado por um processo constante de requinte e modernidade exigidos para uma cidade contemporânea global, logo refletir sobre a cidade contemporânea é conhecer também como, por quem e para quem ela feita. A cidade contemporânea tem entre suas características principais a renovação da produção do espaço a partir da competitividade, ela é fruto do contexto econômico da Europa do pós-guerra. Neste sentido podemos entendê-la como um produto gerado a partir do capitalismo com impulsos da globalização, processo pelo qual ela torna-se um centro permanente de capital. Tais características de uma cidade contemporânea são frutos de movimentos como Toyotismo, Fordismo, Pós-Fordismo e Teoria de Espaços de Fluxos com Castells (1999). Podemos encontrar traços dessa teoria de Castells (1999) aplicados a realidade da capital Fortaleza-CE, como uma das principais características da cidade contemporânea em que a presença de empresas transnacionais vem permitindo altos investimentos que produzem efeitos sobre a vida metropolitana, como a gentrificação e a especulação imobiliária. Ao experiência da okupa Flor do Asfalto localizada no bairro da Gamboa, zona portuária da cidade do Rio de Janeiro – RJ, entretanto nesse percurso o principal grupo observado na pesquisa foi a okupa N4 localizado no bairro de Humaitá em Porto Alegre-RS, cujo campo desenvolveu-se por um período de 12 meses, entre julho de 2007 e julho de 2008. 48 incorporarem mercados globais observa-se que tais cidades procuram adentrar o circuito das cidades globais (SASSEN, 1991), isto é, entrar no circuito de expansão do setor internacional da economia urbana. Nessa teoria Castells (1999) nos aponta para a existência de um fluxo de capital para determinados nós, ou seja, ao identificar a presença destes nós, teremos um terceiro elemento aparente os operadores dos nós. Será através destes que os fluxos serão direcionados para atrair os investimentos financeiros. Dentro das cidades globais há grandes corporações e junto com elas há uma maior concentração de grandes capitais, mercado, profissionais que serão responsáveis pela criação e manutenção das chamadas elites locais. Estas por sua vez, organizam os investimentos dos espaços de fluxo, materializando o fluxo a partir do produto neste caso a cidade. A chegada de investimentos favorece a produção de espaços na cidade como alavanca aos mercados, estes passam a inventar espaços dentro da cidade para atender aos interesses de possíveis investidores para sua cidade. A construção do “Acquário Ceará”29 de Fortaleza, obra cujo investimento está orçado em 250 milhões de reais, é um dos produtos culturais para atrair investimentos de corporações internacionais, produzindo assim um espaço cultural destinado à diversidade de investidores que operam no fluxo global da economia mundial, como a indústria da construção civil, grandes empreiteiras, arquitetos de grife, setor hoteleiro, só para citar alguns. Ora, o que caracteriza a produção de uma cidade global para Sassen (1991), não é a apenas a presença de corporações, órgãos internacionais ou uma eficiente infraestrutura de telecomunicações, mas, sobretudo a permissão para novas práticas culturais específicas cuja produção está ancorada num discurso sobre a diversidade. Embora as cidades com grande fluxo de negócios globais apresentem um importante sistema econômico global, entre as principais características de uma cidade global está o impacto que ela pode causar em nível mundial pelas suas relações sócio - econômicas, por isso as práticas dos sujeitos e o 29 Passei a perceber o quanto esse projeto estava na agenda de discussão dos Movimentos Sociais quando das diferentes manifestações e intervenções visuais na cidade, muitas denúncias sobre o que deveria ser prioridade e as diferentes opiniões. Os okupas também estavam a frente dessas mobilizações, produziram intervenções com stencil na cidade, participaram das manifestações organizadas pelo Movimento “Quem dera ser um peixe” movidas por alunos UECE (Universidade Estadual do Ceará) e as discussões na okupa tornaram-se frequentes por acirrar os impulsos de revolta contra a política capitalista do Governo do Estado, provocando uma resistência anticapitalista e antiautoritária que anima a cidade com formas diversas de manifestação. A população comenta essa obra por todos os lados, as matérias exibidas são constantes sobre o assunto. Detalhes sobre o Projeto Acquário Ceará podem ser visto em: < http://aquarioceara.blogspot.com.br/ >, < http://www.youtube.com/watch?v=vcUWtLIZaiY >. 49 cosmopolitismo são importantes, porque estão relacionados a contribuições do crescimento global, não só econômico, no entanto social e cultural, isto é considera-se o quanto a população dessas cidades está marginalizada e (des) conectada dos fluxos globais. O Projeto “Acquário Ceará” que mencionei acima é um exemplo desse modus operandi da economia local conectada aos fluxos da economia global. Espaço com estas características tem alterado ambientes urbanos permitindo aos gestores investimentos na infraestrutura e embelezamento da cidade junto com a produção de edifícios e/ ou monumentos de relevo, aparecendo assim à arquitetura icônica, caracterizada por sua dimensão e impactos visuais o que garantiria a visibilidade desta cidade, tornando-a o 2º destino turístico do Nordeste 30, os efeitos dessa caracterização de cidade global é em primeira ordem o processo de gentrificação. Esse caso específico é bastante revelador de como meus interlocutores se conectam com a cidade através da luta por moradia. Se inicialmente a okupa aparecia como um espaço de encontros de uma vida íntima fechada em suas práticas anarquistas, discutindo os problemas da cidade entre si, com esse Projeto do “Acquário Ceará”, percebi que meus interlocutores estavam mais atentos às demandas da cidade, eles questionavam o valor orçado para o projeto, por considerar absurdo frente a demandas sociais mais urgentes que esse recurso poderia ser utilizado, como sanar o déficit habitacional do município. O setor turístico tornou-se o principal interlocutor entre a Loira desposada do Sol e seus possíveis investidores, promovendo um marketing urbano entorno da possibilidade de transformação e potencial econômico para catalisar o processo de cidade pacata à cidade dos nós com algum requinte de arquitetura de grife, a exemplo teríamos o “Acquário Ceará”- considerando aqui o marketing do gestor, passando por reformas urbanas que atentem para o embelezamento da cidade, investindo em infra-estrutura como ruas asfaltadas, duplicadas, iluminadas, sinalizadas e “bonitas”, água, luz, telefone e em atrativos como animação e centros históricos, criação de espaços VIP’s, calçadão, grandes supermercados, dito de outro modo "O aquário vai inserir internacionalmente o Ceará. Em algum momento do mundo, Paris construiu sua Torre Eiffel" como explica o secretário de Turismo, Bismarck Maia 31 . 30 Matéria de impressa virtual, disponível em: Acesso em: 20 set. 2012. 31 Entrevista disponível em: 50 Os okupas inserem-se nessa discussão quando ocupam o espaço urbano com a intenção de transformar a cidade, seu objetivo inicial é questionar a forma de organização social vigente, que concentra o capital entre uma parcela reduzida da população, cujo crescimento econômico da cidade provoca um desorganizado crescimento urbano, isto é, privilegia-se o tráfego de veículos em detrimento dos pedestres ou ciclistas tornando o trânsito caótico e um sistema de transporte público deficiente, empurram-se os pobres para as franjas da cidade, onde a oferta de equipamentos públicos é escassa, aumenta a especulação imobiliária e a falta de moradia acompanha esse crescimento, uma vez que o custo das edificações é uma crescente e a parcela que necessita de moradia fica cada vez mais distante do acesso à moradia própria por ser um bem cada vez mais caro, como podemos observar na tabela abaixo: ANUÁRIO ESTATÍSTICO DO CEARÁ – 2010 ÍNDICES, PREÇOS E CUSTOS PREÇOS E CUSTOS Tabela 37.2 Custo de edificações habitacionais em Fortaleza - Posição em Dezembro - Ceará - 2009- 2010 Projetos Custo unitário básico de construção (R$/m 2 ) 2009 2010 B aixo N ormal Al to B aixo N ormal Al to R -1 (Residencia unifamiliar) 7 14,12 8 10,02 1. 029,00 7 41,93 8 57,74 1. 091,31 PP -4 (Prédio popular) 6 64,79 7 75,71 - 6 93,72 8 02,73 - R -8 (Residência multifamiliar) 6 38,95 6 83,08 8 47,25 6 58,83 7 08,85 8 80,64 R -16 (Residência multifamiliar) - 6 56,12 8 81,90 - 6 83,92 9 18,33 CAL - 8 (Comercial andares livres) - 7 99,93 8 50,17 - 8 18,36 8 73,84 CSL - 8 (Comercial Salas e lojas) - 6 94,50 7 53,28 - 7 70,87 7 73,14 CLS - 16 ( Comercial salas e lojas) - 9 24,70 1. 003,28 - 9 49,19 1. 032,42 Fonte: Sindicato da Indústria da Construção Civil do Ceará (SINDUSCON-CE). Observa-se que a construção do m² de um prédio popular em 2010 varia entre R$ 693, 72 para o custo mais baixo e R$ 802, 73 para um custo normal, isso significa dizer que a . Acesso em 14 mar. 2012. 51 Demanda Habitacional Total para o município de Fortaleza/CE, que possui 2.141.402 habitantes e 527.905 domicílios, segundo o Censo 2000, é de 109.102 novos domicílios, concentrada na faixa de renda de 0 a 5 salários, que compreende uma amplitude de renda maior, ou seja, o déficit habitacional tem uma variável de renda que não é considerada nas políticas habitacionais, pois ao mesmo tempo uma pessoa que não recebe um salário mínimo é desconsiderada do público alvo para financiamento e acesso a casa própria, diante de uma pessoa que recebe entre 3 e 5 salários mínimos. Além disso, o salário mínimo em 2010, ano da pesquisa encomendada pelo SINDUSCON-CE, era de R$ 510,00 (Quinhentos e dez reais) inferior ao valor da edificação por m² no mesmo ano. A produção de ilhas nas franjas da cidade é uma consequência desse processo de investimentos isolados para uma população reduzida, na qual os indivíduos são isolados dos centros da cidade, que dispõem de uma oferta maior de serviços e equipamentos públicos (escolas, unidades de saúde, instituições públicas, áreas de lazer etc.) isso sinaliza o quanto a moradia e a exclusão social distanciam-se uma da outra e o quanto a agenda de mobilizações políticas na capital cearense está fervorosa diante da pretensa inserção nos fluxos da economia global, revelando o contexto sobre o qual os okupas protestam, ainda que a moradia não seja ou não parece ser o pleito principal desse grupo, mas revela a via sobre a qual esses interlocutores dialogam com as instituições políticas e revelam suas insatisfações, percebendo que: 52 O direito a cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direitos à liberdade, à individuação na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante), o direito à apropriação (bem distinto do direito a propriedade) estão implicados no direito à cidade (LEFEBVRE, 2001, p. 134). Assim, a cidade como destino turístico garante diversão e entretenimento aos investidores tanto pela sua qualidade natural quanto por sua vida noturna, enquanto o projeto de revitalização do bairro do centro torna a própria história do bairro importante, guarda sua memória de desenvolvimento, o traço de um lugar obsoleto, mas não garante o direito a uma atividade participante, ou inclusiva da população de baixa renda. A Cidade de Iracema teve que mudar para se adequar a nova economia cultural construindo espaços de conforto e investimentos para as novas elites locais fruto dessa característica da cidade contemporânea, que precisa criar sua marca - isso é identidade cultural - e atrair investimentos na medida em que projeta a imagem do lugar bom para se viver, com qualidade de vida, em que estão presentes bons circuitos gastronômicos, imobiliários e indumentários, ou seja, buscar novos investimentos, projetar a imagem do lugar bom para se viver, para se vestir, para se morar, um nicho de investimentos em vários segmentos, que estão no rol dos investimentos de grandes marcas internacionais. A globalização ajuda no processo de disseminação da informação atraindo fluxos de investidores e ampliando a criação e circulação de mercadorias, na realidade é um complexo de fatores que são acionados para projeção de uma cidade global, ou pelo menos de uma cidade que esteja no circuito dos fluxos. Essas escolhas podem acentuar as desigualdades como sinalizou Mikes Daves (2006) com o caso de Dubai 32 , considerada o maior canteiro de obras do mundo, e por essa razão também considerada o maior centro do comércio do oriente Médio e Sul da Ásia, protagonista de um mercado imobiliário que todos os seus projetos são assinados por arquitetos de grife, um novo ícone do urbanismo imagético, porém acentua as desigualdades na medida em que exagera na exploração do trabalhador através da espoliação do trabalho de imigrantes mal remunerados para se tornar um grande centro do comércio internacional. Considerando ainda a especulação imobiliária a partir de Jamerson tomemos os impactos quando a cultura é que vira mercadoria na era pós-moderna, que ajuda na produção 32 O exemplo dessa cidade é útil nesse contexto por estabelecer os critérios de produção das cidades na atualidade, ao estabelecer escalas e hierarquias para entrar no circuito global das cidades-globais ver Sassen (1991). 53 dessa cidade-mercadoria cheia de atrativos e (in) convenientes, entrando na vida econômica que abriga em suas etiquetas o pano de fundo da cultura, a exemplo disso é ter em mente que esses mercados tendem para concentrações espaciais, interessa para o caso estudado, observar a produção dessa cidade macroinvestidora e seus efeitos na dinâmica espacial do bairro atualmente caracterizada pelo processo de verticalização, isso permite uma inflação dos preços em termos de ocupação do solo urbano, e numa lógica perversa até os moradores que queiram permanecer no seu bairro de origem encontram condições desfavoráveis materialmente para consumir seus serviços básicos. David Harvey (2002) observa que o capitalismo está sempre em crise e que por esta razão, ele precisa se reinventar através de sua transformação espacial, o que gera movimentos e transformações para o circuito imobiliário e acentua o capital quando ele está em crise resolvendo o problema do capital através do movimento espacial, podemos equacionar as noções apuradas da globalização da seguinte forma: DESENVOLVIMENTO GEOGRÁFICO DESIGUAL + JUNKSPACE (lixo terrestre edificado) = COSMOPOLITISMO E POBREZA Nos últimos anos Fortaleza-CE, por exemplo, tem sido protagonista de um processo de crescimento que abraça várias perspectivas que configuram a cidade, quando sugere que o crescimento imobiliário que tem sido visto e acompanhado tende a produzir e vender a falsa ideia de desenvolvimento econômico, potencializando o protagonismo de uma cidade metropolitana que tem se destacado por seu crescimento urbano, por isso tem gerado novos vetores de desenvolvimento urbano, entrando em cena noções de embelezamento, enobrecimento, revitalização do centro histórico para originar espaços de visitação, 54 empurrando a população indesejada para longe desses espaços, acentuando as lacunas e produzindo espaços para as elites que comandam os espaços de fluxos localmente. No setor imobiliário, há alguns anos acompanhado a expressão de investimentos econômicos nacionais e internacionais em Fortaleza-CE constata-se a transformação do que era caracterizada como um cenário de belezas naturais, possuidor de uma qualidade de vida, lugar tranquilo de praias belas e clima agradável, alcançando por isso o pseudônimo de Loira Desposada do Sol, ao que tem sido substituído aos poucos por cidade das torres com ajuda de pacotes de isenção fiscal que passam a atrair cada vez mais investidores que aquecem a economia e fazem da cidade um potencial de investimentos. Assim, a cidade contemporânea se transforma, informa e deforma a partir dessa conexão entre city branding e atração de capital financeiro, considerando os efeitos desse atrativo a finançopanorama transnacionacional à lá Appadurai (1990) para uma cidade que tem entre suas principais características ser ainda a Loira Desposada do Sol. A Loira Desposada do Sol e o lugar do bairro de Fátima A caminhada pela Rua Dom Sebastião Leme, no bairro de Fátima em Fortaleza-CE trouxe naquele momento breves insights sobre a okupa squat Torém, presente no seu cenário, composto expressivamente por um vazio urbano, casas derrubadas em sequência, demolidas para construção de edifícios residenciais de luxo e expressiva verticalização do bairro, percebida em enormes esqueletos de cimento erguidos sobre aquela rua que na outra ponta traria uma curiosa casa. O primeiro percurso pelas ruas do bairro permitiu verificar um traço singular sobre a transitoriedade entre a paisagem horizontal dando passagem para uma verticalização, com muitos edifícios construídos e outros tantos em construção. O bairro de Fátima é caracterizado por ser um bairro tradicional, de classe média e que tem aos poucos sofrido investidas da especulação imobiliária. A paisagem composta por muitas demolições divide o espaço com edifícios grandiosos e cheios de estilo, carregando marcas de grandes construtoras nacionais e internacionais. Entre as casas tradicionais e os edifícios novos, está a Okupa Squat Torém, os termos okupa e squat designam espaços que estão em estado de abandono e são reestruturados para 55 promover uma utilização social enquanto unidade habitacional e criação de um espaço cultural libertário anarcopunk, que vem a ser espaços autogestionados que são ocupados para transformação em Centros Sociais com características anarquistas, com atividades expressivistas com eventos musicais, atividades coletivas de apropriação do espaço através da arte como stencil, grafite, amostra de material anarquista, vídeos, apresentações artísticas, ou seja, atividades culturais de uma cultura libertária que produz choque cultural, contesta as práticas urbanas de desenvolvimento ao reapropriar-se de espaços ociosos para a prática dessas atividades. Figura 7: Vista aérea da okupa. Fonte: @2011 Google – dados cartográficos. Portões de ferro, cadeados, ferrolhos, fazem a segurança da ksa-okupa-Torém localizada no bairro de Fátima em Fortaleza-CE. A Rua Dom Sebastião Leme abriga um conjunto de casas antigas misturadas com edifícios verticalizados de classe média. Uma das principais características do movimento okupa é seu caráter político de intervenção espacial a fim de se por contra o capitalismo. Neste sentido, os okupas ocupam as áreas onde os ricos têm interesse de morar, (re) construindo intensamente o espaço para moradia do grupo com o objetivo de transformar o espaço em centro cultural, dando ao esqueleto morto de uma fábrica 56 em ruínas marcas e etiquetas de uma posição política de um grupo anarcopunk. A busca por esses lugares não é dada de forma aleatória, verifica-se que o local ideal para efeito de ocupação é marcado por seu valor diante da especulação imobiliária, a fim de causar prejuízos na economia imobiliária. O bairro de Fátima nesse sentido estaria totalmente de acordo com a pretensão do movimento, uma vez que, é atualmente na capital cearense o reduto de empreendimentos arrojados construídos com a finalidade de constituir residência, mas para um público que possa pagar por sua localização, e esse público alvo não é certamente o grupo que está okupando a antiga fábrica de cera de carnaúba a qual estava em ruínas até bem pouco tempo atrás à Rua Dom Sebastião Leme. É interessante pensar como acontece a produção do espaço urbano, observando de perto o bairro de Fátima como um objeto de produção de interesses convergentes no sentido do que o bairro oferece, e porque ele atrai esses moradores. Há muitos atrativos no bairro como menciona Ane: Não quero sair daqui, aqui é perto de tudo, é central, a gente pode dar role e chegar com facilidade, estamos perto do centro, mas se tivermos que sair que pelo menos eles ofereçam um lugar tão bom quanto esse. Mas o que vai acontecer é que eles vão querer mandar a gente para longe daqui, tipo... Oferecer uma grana que dá pra comprar uma casa num bairro distante, nunca por aqui pelo centro. O bairro de Fátima fica localizado na zona sul, parte central de Fortaleza – CE, fazendo parte da Secretaria Executiva Regional IV (uma das 6 sub-prefeituras – SER’s) sendo a única que faz fronteira com todas as outras secretarias, logo do ponto de vista político e econômico é uma ótima localização. 57 Figura 8: Mapa da região central e bairro de Fátima em Fortaleza-CE. Fonte: @2011 Google – Dados cartográficos. A questão fundiária urbana sustenta a discussão sobre acesso a moradia e planos habitacionais, tendo como pano de fundo disputas jurídicas efervescentes, acordos, ameaças, interferências das forças coercitivas do Estado. Nesse caso específico, podemos verificar essa tensão exposta na matéria abaixo: Nos últimos dias, a ocupação sofreu mais algumas ofensivas: foi aberto um TCO (Termo Circunstanciado de Ocorrência) na delegacia da Polícia Civil onde acusam os ocupantes de "esbulho possessório e usurpação", ou seja, nesse documento relatam que eles (antigos "proprietários") estavam morando dentro do espaço e que o Coletivo Squat Torém os tirou de lá, para isso, derrubaram um muro para tal. Tal denúncia não é apenas inverídica e imoral, como também atesta o tipo de política e jurisdição que seguem. A esse fator se agrava mais ainda as ameaças psicológicas e "toques" que veem sendo dado por parte da Polícia Civil. Segundo os ocupantes, alguns policiais civis disseram que a qualquer hora se poderia forjar um flagrante para tirá-los de lá. (http://www.midiaindependente.org/). É importante situarmos não só a localização e características gerais do bairro, mas também observarmos quais as tensões que estão sendo expostas nesse período de ocupação (1 ano e 3 meses). Apresenta-se nessa matéria de forma parcial a situação, no relato dos 58 moradores com os quais tive contato, as falas seguem nessa mesma direção e o processo continua correndo, mas isso será discutido com maior densidade na medida em que a produção textual for avançando na análise antropológica do processo e com o adensamento do campo de observação, por hora apresentamos apenas um dos desdobramentos aparentes que requer maior acuidade na observação. Definindo ocupação e também seus movimentos Figura 9: Símbolo do Movimento Okupa/ Squat. O conceito de ocupação não é um conceito simples, ele assume diferentes significados sendo utilizado pelos movimentos sociais, de modo geral, como ação de apropriar-se de imóveis - propriedades públicas ou privadas - em desuso para fins de moradia. O que está sendo pleiteado nessas situações é o uso de parte de um terreno, prédio público ou privado, residência que estão em situação de abandono e podem ser utilizadas como unidade habitacional para abrigo de pessoas, famílias ou grupos sociais que estão buscando acesso à sua moradia. Existem vários tipos, formas e concepções diferentes sobre ocupação, o fenômeno da ocupação urbana contempla a ocupação e apropriação de imóveis na condição de abandono, porém a intervenção desse tipo de ocupação tem como objetivo preliminar a busca por sua moradia, utilizando a ocupação como uma via por em que tais moradores possam ter a posse desse imóvel, sem necessariamente adquiri-lo através de uma transação econômica de compra e venda, porque no bojo de suas reivindicações estão o direito a moradia como um direito constitucional, sendo assim tal ocupação para esse contexto significa ter posse desse imóvel. Para Deminicis (2009), as ocupações urbanas são literalmente os espaços de expressão, afirmação e reavaliação das identidades populares urbanas e a criação de identidades 59 coletivas específicas. O substrato de tal definição aparece da seguinte maneira: ocupar, resistir e garantir, como princípios e ações estratégicas para que esse Movimento Social possa alcançar o seu objetivo. Entretanto para Aquino (2008, p.29): A prática da ocupação de prédios abandonados tem por objetivo pressionar o poder público a atender as famílias do movimento [MSTC – Movimento Sem-teto do Centro/ SP] por algum programa habitacional para a população de baixa renda, seja pela transformação desses imóveis em moradia para essa população, seja pelo atendimento por outras vias. Em relação ao Movimento Sem-teto, é um tipo de ocupação urbana, cujo objetivo é que o problema da Moradia seja sanado através de políticas habitacionais que deem condições de moradia adequada para essa fração da população que está vivendo ilegalmente e em condições de precariedade numa ocupação urbana, quando o que elas almejam é a sua casa. A principal diferença entre os tipos de ocupação se dá naquilo que se identifica como o caráter instrumental, isto é, a condução, intervenção e/ou comando dos partidos políticos sob a ação estratégica desse levante ocupa urbano, de maneira geral. Os casos das ocupações do Rio de Janeiro, observadas por Deminicis (2009), é a luta e resistência para garantir a posse de um imóvel que tem entre suas características na vida interna da casa o pensamento libertário. Diferente dessa realidade explorada na descrição de Deminicis (2009) a situação do MSTC exposta com refinamento e densidade etnográfica sobre as ocupações do centro São Paulo realizadas por Aquino (2008), nos mostram grupos que estão expostamente instrumentalizados por partidos políticos cujo objetivo é o de garantir a moradia e a posse individual do imóvel. Ao contrário desses movimentos os okupas não utilizam o termo “garantir”, sua insígnia é “Okupar e Resistir” que reivindica o direito a cidade, mas não apenas usufruir da estrutura física dela, busca-se intervir para protestar frente a pobreza, o desemprego, a carência de moradias e sobretudo a especulação imobiliária, problemas que afetam esses interlocutores. Quanto aos Quilombos Urbanos caracterizam-se por demandas de afirmação étnica em relação ao território dentro da cidade, além de pleitear condições de moradia adequadas, estão expostos a uma luta por reconhecimento no âmbito da identidade. A questão aparece tanto em relação a disputas e ocupação do espaço urbano quanto no tocante a questões simbolicamente envoltas do auto-reconhecimento e da etinicidade. Vê-se que além de 60 reconhecer os quilombos urbanos a partir de sua identidade étnica, amplamente discutida e em situações de comunidades negras rurais, esse tipo de ocupação vem considerar os mesmos conceitos empregados no âmbito do reconhecimento para essas situações ponderando o ambiente urbano como lugar fragmentado que incorpora as dimensões do processo de uso e ocupação do solo urbano a partir do crescimento das cidades, como assevera Marques (2006): A política dos remanescentes de quilombos, então, vem garantir o direito de permanência de comunidades negras envolvidas em disputas fundiárias, de especulação imobiliária em solo urbano, de gentrificação, de segregação das populações pobres. Agindo na garantia dos direitos desses grupos, impedindo sua desagregação, interfere nesses processos, tornando possível a persistência dos traços visíveis da desigualdade patente em nosso meio social. Ações que vem se incluir nas próprias formas de gestão do espaço da cidade, e na garantia da multiplicidade urbana face à homogeneização de certos nichos e suas características populacionais (MARQUES, 2006, p. 89-90). O que, de certa forma, vem corroborar com aquilo que se organiza como movimentos instrumentalizados, nesse caso, existe uma organização a partir da associação de moradores, todavia não há aparelhamento por parte de partidos políticos sobre tal ocupação, sua organização passa por interferências do Movimento Quilombola como observado por Marques (2006), não por agenciamentos de partidos políticos tão bem definidos, como o caso exposto por Aquino (2008). Ainda compreendem tipos de ocupação a Posse e o Santuário. A primeira delas refere- se a um tipo de ocupação feita por jovens ligados ao Movimento Hip Hop, em que a priori se aproxima, em certa medida dos okupas, visto que os aspectos ressaltados nesse tipo de ocupação são a intervenção artística, corte geracional, e a proposta de intervenção urbana onde a moradia não é o que está em jogo, entretanto o direito à cidade, voltado para intervenção urbana cujo tempo tem de curta duração. A posse significa “ações coletivas bem definidas de conscientização política e exercício de cidadania” 33 o lugar do movimento hip hop, constituído de uma linguagem artística da música (rap), dança (brake) e arte plástica (grafite) uma forma de luta contra a repressão social, a posse é o lugar que congrega essa junção de sujeitos para práticas de intervenção. 33 Ver Santos em: < http://www.forumafrica.com.br/JaquelineSantos.pdf > Acesso em 7 ago. 2012. 61 O Santuário 34 por sua vez, uma forma de ocupação cuja gênese é desconhecida, tem caráter expressivista, assim como a Posse e a Okupa, sendo esse tipo de ocupação feita por grafiteiros com o objetivo de treinar e desenvolver suas habilidades (os traços, riscos) para a intervenção sobre a cidade, é um espaço intermediário entre a ideia e a prática do grafite, em que o exercício de linhas, traços, desenhos e formas são treinados, elaborados e definidos para que assim tais agentes possam imprimir suas marcas de intervenção no ambiente da cidade polifônica 35 . Falar sobre ocupação é falar de forma abrangente sobre a ação de apropriar-se de um espaço sem problematizar aqui o motivo ou a explicação para o ato de ocupar. Mas o que interessa, nesse momento, ao traçar uma linha que atravesse estas diferentes formas de ocupação é a compreensão de um espaço em que a interação tem que ser mais intensa, priorizando os motivos que levam os indivíduos a juntarem-se em grupos e ocuparem espaços de formas diversas. O Movimento Okupa é o que interessa nesse ambiente polifônico que é a cidade, são múltiplos os grupos e as maneiras de agir sobre esse ambiente urbano socialmente construído. A okupa é uma forma de ocupação urbana, não instrumentalizada, expressivista por usar de suas habilidades artísticas como elementos de construção de um novo ambiente coletivo, cuja moradia embora apareça como foco de sua ação coletiva, durante observação, percebe-se que tal reivindicação não é o que sustenta a coesão do grupo, porém o que pode explicar a fluidez e densidade de agentes como os nômades anarcopunks, que passam pela okupa, ficam apenas um tempo provisório dedicando-se ao difícil artesanato da ocupação, depois seguem viagem até o a próxima okupa, e assim por diante. Os okupas são aqueles que investem no projeto coletivo desde a sua elaboração até a realização da entrada no prédio, sendo estes os verdadeiros artesãos desse ambiente construído, são eles que enfrentam dificuldades materiais, mas, além disso, tentam ultrapassar os limites impostos pela legislação, para permanecerem nesse lugar. 34 Tal conceito apareceu durante a banca de defesa de monografia do Curso Ciências Sociais/ UFRN da discente Claudia Vasconcelos (2009) em que fui membro da banca. A autora apresentou essa categoria, mas não problematizou, embora tenha sido discorrido ao longo de suas impressões de campo a gênese dessa categoria não aparece ao longo do texto e posteriormente, durante minha pesquisa também investiguei sobre esse tipo de ocupação, mas não obtive sucesso. 35 A respeito do conceito de cidade polifônica ver Canevacci (1993). 62 O Movimento Okupa Postulado antes que o Movimento surge no final da década de 1960 na cidade de Londres, na Inglaterra. As squatts surgem com jovens de classe operária e de classe média viverem buscando formas alternativas de vida e uma posição marginal diante de uma sociedade de consumo. Dessa maneira, os Centros Sociais Okupados e Autogestionados surgem em terras argentinas e no ano 1996 na cidade de Rosário, com o “Centro Kultural Independiente”. A chegada do Movimento Okupa na América Latina acontece nesse período, início da década de 1990, consoante registro de Palacius: En la Republica Federal Alemana, El movimiento tuvo un gran auge durante La década de los ochenta, principalmente en la Berlín del oeste. Luego de la caída del muro en 1989, El gobierno de la Alemania unificada emprendió una feroz campaña represiva hacia los Centros Sociales Okupados y Autogestionados (tal es el termino com el que se los conoce en la mayoría de los países de lengua latina). Esto derivo em los violentos desalojos berlineses de 1990, en donde punks y policías militarizados protagonizaron enfrentamientos em las calles que llegaron a durar semanas. Es que la “Nueva Alemania” necesitaba limpiar su capital de estos hijos descarriados del Estado de Bienestar, si quería mostrar a Berlín ante el “mundo civilizado” como la “capital cultural del siglo XXI”. (Publicado em Indymedia Argentina sábado 13 de Julio 2002 por Manuel Palacius). O Movimento Okupa não tem entre suas características uma uniformidade ideológica, existem princípios que fundamentam a prática da vivência coletiva libertária, amparada pelo Anarquismo, mas certamente com o passar dos anos, as próprias mudanças ocorridas na esfera pública da cidade-global (SASSEN, 1991), altera as condições de vida urbana, e as demandas surgidas com o protesto Londrino, são atualizadas, conforme a própria atualização da cidade, ganhando novas leituras num processo contínuo com compartilhamento de informações, percepção e identificação de novas ideias, sobretudo num contexto em que as mídias e tecnologias do século XXI são cada vez mais acessíveis e dinâmicas, onde a comunicação é a chave mestra para movimentos okupas, pois estão sempre conectados em rede. Porém foi através de pesquisa documental em um jornal argentino que consegui datar a primeira okupa da América Latina. Este “galpón okupa”; que funciono en un prédio abandonado por la antigua empresa estatal Ferrocarriles Argentinos; brindo, además de alojamiento a una nutrida 63 comunidad de artistas alternativos, talleres gratuitos, exposiciones y conciertos. Resistió, durante casi dos años, a siete intentos de la desalojo, no pudo com el octavo. El 29 de junio de 1998, los okupantes recibieron uma orden de desalojo del juzgado Nacional de primera Instancia em lo Contencioso Administrativo, a cargo del Dr. Sergio Gustavo Fernández, que respondía al Ente Nacional de Administracíon de Bienes Ferroviários (ENABIEF). El desalojo se llevo a cabo el miércoles 15 de julio de 1998. Una vez que en Rosário había comenzado la feria judicial. De esta manera las autoridades se asseguraban de que los damnificados no pudieran ejercer ningún tipo de acción judicial con el fin de detener el desalojo. Según nos cuenta Ringo, uno de aquellos okupantes, los médios corporativos de comunicación se habían encargado en las semanas previas al desalojo a crear uma Espectacular campaña mediática sobre “los okupas de Rosário”. (Publicado em Indymedia Argentina sábado 13 de julio 2002 por Manuel Palacius). No Brasil, o Movimento Okupa aparece no eixo sul, no estado do Paraná em 1989 de acordo com Maia (2006), o espaço foi ocupado por um grupo punk de Curitiba, com o objetivo de transformar o imóvel numa okupa, cuja organização de caráter autônomo manteve o espaço até meados de 1992, quando acontece seu desalojo. Ainda nos anos 1990, na cidade de Juiz de Fora-MG, foi ocupada à antiga casa que pertencia a Anita Garibaldi – uma das líderes da Revolução Farroupilha – tendo a okupa recebido o seu nome: A casa de Anita. Tal okupa organizou uma biblioteca destinada ao público aberto, sua principal atividade. É comum entre as okupas, haver a construção de bibliotecas 36 , pois a expansão das okupas passa também pela expansão de uma cultura anarquista, portanto levar livros, autores, militantes, sites, todo tipo de material que conste e propague a cultura punk e as ideias libertárias é fundamental para os sujeitos que estão praticando a okupação. Somente em 1993, após construção de um edifício próximo a okupa, sua estrutura física passou a apresentar rachaduras, comprometendo-a. O governo ofereceu ajuda para manutenção, os okupas saíram da casa, esperando voltar após o reparo, o que não aconteceu, porque a prefeitura descumpriu o acordo devolvendo o imóvel para a Associação Beneficente Ítalo-Brasileira Anita Garibaldi, que funcionou anteriormente nesse mesmo espaço, deixando os okupas sem teto (MAIA, 2006). De acordo com Maia (2006), em 1993, o Movimento anarcopunk de Florianópolis-SC decidiu ocupar uma casa que pertencia a polícia e que ficava próxima da ponte Hercílio Luz, porém tal empreendimento não passou dos três meses de ocupação, sendo desalojada pela prefeitura. 36 Digo que é comum por ter visto atividade na Casa Viva – RN, N4 – RS, Bosque – RS, Casa Rosa – RS, Flor do Asfalto – RJ, Torém – CE e Taboca – RN. Menciono essas okupas, pois foram elas que visitei e onde encontrei essa prática. 64 Mas em 1995 há uma nova ocupação em Curitiba, surgindo o Squat Kaasaa, uma das principais referências sobre a prática da ocupação no Brasil, porque havia muitas atividades propostas pelo grupo desde a tradicional biblioteca, até sala de serigrafia, estúdio para ensaio de bandas punks e uma cooperativa de fabricação de fraldas. Contudo os relatos sobre essa okupa provocou conflitos internos ao grupo, que culminou numa saída de parte desse grupo e que muitos punks deixaram de frequentar o espaço, e a okupa foi rechaçada nacionalmente, assim o espaço “perdeu” a referência squatter se contrapondo as propostas iniciais de autogestão, autonomia e anti-hierarquia, mas continua existindo tal ocupação. Em seguida aparece a Squat Payoll, em Curitiba-PR com o objetivo de “levar adiante a resistência squat e a contracultura punk” (MAIA, 2006). Porém o squat alcançaria o desalojo em 1999, após várias investidas e ataques de grupos skinheads nazifacistas, em que um dos moradores foi esfaqueado pelas costas, batidas policiais para inibir o grupo. Depois de saírem da okupa, continuaram ocupando junto a sem-terras no centro de Curitiba-PR, no entanto logo em seguida saíram para tentar ocupar um novo prédio, Squat Sobrado. O grupo não obteve sucesso, tendo pouco tempo no espaço e foram desalojados. Com o desalojo, continuaram com o projeto de viver em coletivo, mas em uma casa alugada. Situação semelhante vivida na Okupa Squat Torém, o grupo continua investindo num projeto de vida coletivo, embora não vivam mais numa ocupação, mas numa casa cedida pelo Projeto Emaús. Isso é interessante, pois constata-se que embora aconteçam os desalojos e de imediato, os coletivos não ocupem imóveis, eles tendem a permanecerem juntos ao mudarem-se para outros coletivos que podem ser punks ou não, como foi o caso dos okupas do Payoll, e os Torenianx. O Rio Grande do Sul tem histórico de okupas, cuja comprovação acentua-se pesquisa na monografia que foi realizada com a Squat N4 e Squat Bosque. Na verdade o grupo que começou a N4 se dispersou e uma parte do grupo que ocupava a Casa Rosa, em Porto Alegre, teve a ideia de mudar para esse espaço que estava sendo aos poucos desocupado e fizeram uma nova okupa que chamaram Bosque. A região sul, se destaca frente as demais regiões do país nessa prática, pois os três estados que compõem essa região tem pouco mais de 50 % desse tipo de intervenção. Os demais 50 % de Squats/ Okupas mapeadas estão distribuídas de acordo com a tabela abaixo. 65 SQUAT MUNICÍPIO ESTADO DURAÇÃO INÍCIO SITUAÇÃO ATUAL 1. Squat A1 Santo André São Paulo 1 ano 2010 2011 2. Squat Alvorada Libertária Maringá Paraná Desalojada 3. Squat Bosque Ibirapijuka Porto Alegre Rio Grande do Sul 6 anos 2006 Resiste 4. Casa da Resistência Feira de Santana Bahia Desalojada 5. Squat Casa 24 Rio de Janeiro Rio de Janeiro Desalojada 6. Squat Flor do Asfalto Rio de Janeiro Rio de Janeiro 5 anos 2007 Resiste 7. Squat Guamirim de Maio Lajes Santa Catarina Resiste 8. Squat J13 Curitiba Paraná 5 anos 2007 Resiste 9. Okupa Kasa Atasana Rio Grande Rio Grande do Sul Desalojada 10. Squat kasarão Joinville Santa Catarina Resiste 11. Squat Korr-Cell Blumenau Santa Catarina 6 anos 2006 Resiste 12. Squat kurui’ra Joinville Santa Catarina Desalojada 13. Squat Pântano Revida Aracruz Espírito Santo 3 anos 2009 Resiste 14. Okupa Squat Torém Fortaleza Ceará 1 ano e 11 meses 2010 2012 15. Squat Taboca Natal Rio Grande do Norte 1 mês 2011 2011 16. Squat Timothy Leary Campinas São Paulo 1 ano 2011 Resiste 17. Squat 171 Pelotas Rio Grande do Sul 2 anos e 9 meses 2009 Resiste 18. Cine São José Campina Grande Paraíba Resiste 19. Casarão Florianópolis Santa Catarina 3 anos 1989 1992 20. A Casa de Anita Juiz de Fora Minas Gerais 3 anos 1990 1993 21. Kaasaa Curitiba Paraná 17 anos 1995 22. Payoll Curitiba Paraná 2 anos 1997 1999 66 Tabela 2: Mapa das okupas no Brasil. A trajetória das okupas no Brasil vem deixando suas marcas e produzindo uma dinâmica diferenciada sobre as práticas de intervenção urbana na cidade. A contracultura punk vem inscrevendo suas narrativas urbanas e se parece uma ação tímida, depois de aprofundar os casos recolhidos dificilmente afirmaria que esse tipo de intervenção é pontual e tímido. Mas as formas de chegar, entrar, escolher o lugar exato para uma experiência okupa é algo 23. Squat Fábrica Caxias do Sul Rio Grande do Sul 3 meses 1996 1996 24. Squat (Movimento Punk ocupa uma casa que pertencia a polícia) Florianópolis Santa Catarina 3 meses 1993 1993 25. Squat Taturana (atual Casa Reciclada) Atibaia São Paulo 12 anos 2000 2012 26. Squat Pomba Negra (depois Fabrica Okupada) Campinas São Paulo Meses 2001 2001 27. Squat Refugo (Casa de Vidro) Campinas São Paulo Meses 2001 2001 28. Squat Intruzo (Improviso) Campinas São Paulo Meses 2001 2001 29. Squat Teimosia Porto Alegre Rio Grande do Sul 1 ano 2004 2005 30. Casa do Estudante Salvador Bahia 10 meses 2003 2004 31. Squat Elteni Uberlândia Minas Gerais 2 semanas 2005 2005 32. Squat Casa das Pombas Brasília Distrito Federal Meses 2007 2007 33. Dandara São Paulo São Paulo Meses Desalojada 34. Guaiana São Paulo São Paulo Desalojada 35. Resist Rio Grande do Sul Desalojada 36. Colina Rio Grande do Sul Desalojada 37. Chalé Paraná Desalojada 38. Getúlio Paraná Desalojada 39. Sobrado Paraná Desalojada 40. Mansão Paraná Desalojada 41. Corcel Negro Santa Catarina Desalojada 67 curioso, mas não é motivo de divulgação, pois se sentem coagidos e vítimas de violência e perseguição como relatam os okupas da Squat Torém, sempre mantendo uma atitude de reserva e uma resistência quanto à etnografia. O texto do diário de campo comprova uma etapa do trabalho, pois ele mostra como cheguei a okupa Torém e é muito revelador das negociações que foram feitas durante a pesquisa para que eu pudesse estar lá e conhecê-los, revelando os limites da etnografia e a importância do relato e do trabalho de campo para pensar as práticas desses sujeitos. Diário de campo, 16 de maio de 2011. Casa de Luxo: Espaço, território e aconchego. “Fortaleza, Bairro de Fátima, Dom Sebastião Leme, número 345. Quem bate palmas, espera que abram a porta enquanto ler imagens tão belas quanto as que você pode admirar, parafraseando uma das falas expostas na parede frontal da Ksa Torém que nos recebe com a insígnia do movimento okupa, uma bandeira preta no alto da ksa, com o emblema okupa em branco e a seguinte epígrafe: Você pode criar coisas tão belas quanto as que sabe admirar! A chegada provoca uma série de perguntas e reações distintas, mas a que me chamou mais atenção foi sem dúvida a bandeira negra com o símbolo da okupa, diante de mim, imponente no alto da casa, deixando escapar com cuidado aquele cruzamento de móveis que passava na minha cabeça quando olhei para a casa, e diminuía o passo até chegar a ela, pois parecia que estava concretizando o campo de pesquisa, aqui sendo extremamente rasa no materialismo, para dar ênfase ao campo que me escapava como uma poeira. Aos poucos a cabeça vai baixando, os olhos salteiam entre um olho que vê e um que é visto, são vários olhos pichados na parede principal, como se eles estivessem todos me olhando, mas na verdade eles representam para mim a visão da rua, do mundo, a visão de quem quer enxergar o que há por trás daquelas paredes coloridas, com a frase tão questionadora quanto afirmativa, uma bandeira negra, duas faixas curiosas. Numa delas você lia algumas atividades que eram desenvolvidas ali como: Aqui funciona biblioteca, serigrafia, horta orgânica, videodebates, oficinas e outras coisas. Apoie essa iniciativa, precedida de um aviso importante: Estamos cumprindo com a função social deste espaço. 68 Mas a sensação de inacabado é permanente e à medida que avançava em direção ao miolo da casa, observava os traços refeitos do espaço, os tijolos novos sobre a estrutura em ruínas que apresenta marcas do tempo e do abandono. Abre-se uma porta e diante dos olhos um grande pátio cheio de plantas, umas árvores altas de folhas largas, que competem em altura com prédios dos arredores, que saberia depois que são a razão do nome da okupa, uma planta cujo nome é Torém, que entre ruínas e concreto sobrevive tão magnânima que batizou a ksa. Muitas hortaliças estão dispostas em duas colunas laterais, uma espécie de jardim suspenso, divididos em duas partes uma sobre a outra, que estão coladas na parede do lado direito de quem entra na casa e que delimita a área do prédio, do outro lado estão os torens e ao fundo na parede pintada de amarelo, com inscrições em vermelho: Abaixo do concreto está a horta acompanhado do símbolo anarco, uma letra “A” circulada. Em cada canto um ponto, cada detalhe exposto vem carregado também por essa marca, uma espécie de impressão, denotando assim uma identidade grupal junto ao Movimento AnarcoPunk. Quem abriu as portas para mim foi Jon, um rapaz jovem, magrinho de olhar tímido que foi desde sempre muito receptivo, perguntei se a Ane estava, pois falei com ela ao telefone, era o único contato que eu tinha e havia combinado de ir até lá, mas cheguei sem avisar, numa visita mais improvisada, contando com o acaso e com a aquela ideia de simpatia a primeira vista, para tentar desfazer o nó, de não poder realizar a pesquisa. Mas isso é outra história, para mais adiante. Por hora vamos entrar em casa e conhecer o que tem por lá e quem esta por lá... Ao lado da horta temos um espaço que é utilizado para os vídeos debates, perguntei por que haviam escolhido aquele lugar para isso, pois corresponde à garagem, a resposta veio rápida: aqui o acesso a rua é imediato, quem tiver passando e ver o que está acontecendo pode só parar e olhar e de repente, entrar, parar ficar, voltar... É mais convidativo, além disso, como os vizinhos não sabem exatamente do que se trata, esta uma forma de mostrar alguma coisa que estamos fazendo. Entre plantas e azulejos, terra, pinturas, desenhos, poeira...” Esse é o momento em que conheço parte do grupo, quando tenho o primeiro contato, portanto é um fragmento importante de como foi a minha aproximação e a partir dela como 69 pude observar as aproximações que esses okupas fizeram com o bairro de Fátima, os seus vizinhos e também comigo. Comecei a situar minhas questões sobre o que é ser okupa? Ou como eles se inscrevem no bairro, na cidade, no urbano? O surgimento da Ksa Uma ksa okupa nasce de um espaço ocioso no meio urbano, isto é, ela é fruto de um processo conhecido como especulação imobiliária, em que os okupas - pessoas que constroem e mantém a okupa – em sua maioria jovens, passam a observar a composição do espaço urbano e suas lacunas, atentos aos prédios abandonados e em processo de degradação, pois são essas ruínas do ambiente urbano que exercem atração desse grupo. Cada ksa é feita a partir de uma relação preliminar com o ambiente sobre o qual ela será reconstruída, esses moradores percorrem vários caminhos, em suas jornadas diárias de trabalho, passeio, no seu ir e vir dentro do espaço urbano, estudam o espaço que atenda a alguns requisitos para ser uma okupa. Para existir uma okupação, é necessário primeiro existir uma especulação, um abandono e uma movida. O lugar da okupa possui algumas especificidades, como por exemplo: ser um espaço vazio (que está se deteriorando, ociosamente para especulação imobiliária), cujos proprietários possuem outros imóveis e que detém dívidas com o Estado que não foram sanadas (IPTU, água, luz, dívidas trabalhistas etc). É a partir de tais características preliminares sobre o espaço que só é possível observar ou não a existência delas com um estudo detalhado. Em seguidas observações no espaço, colhendo informações sobre o proprietário, movendo um grupo para então agir, pois serão sobre tais bases que juridicamente a okupação desse espaço, para fins sociais, passa a ser viável, uma vez que a função social que os imóveis têm de cumprir de acordo com a Constituição Federal de 1988 não está sendo cumprida. Assim, os okupas em suas jornadas pela urbis, a pé ou de bicicleta, circulam pela cidade atentos as tais ruínas que estão compondo a paisagem urbana, são elas que darão 70 abrigo ao seu projeto de vida coletivo e foi assim que começou o projeto Okupa Squat Torém, surgida em 14 de março de 2010, quando juntos um grupo composto por 17 pessoas, jovens em sua maioria - tendo um idoso e uma criança - okuparam as ruínas de uma antiga fábrica de cera de carnaúba, que esteve vazia por 15 anos após um incêndio que afetou o prédio. Eles entraram no prédio pelos espaços abertos, havia algumas portas e janelas lacradas o que impedia o acesso ao prédio não era apenas o lixo e o mato. O grupo não entrou no prédio no turno da noite, como tem acontecido na maioria dos relatos sobre ocupação. A entrada no espaço é cautelosa e por vezes forçosa ao ponto de quebrarem-se cadeados ou grades. Nesse caso, a apropriação foi a luz do dia, inaugurando de início uma limpeza coletiva que contou com colaboração de alguns amigos do grupo e simpatizantes do Movimento Okupa, assim Ane me relatou em nossa encontro. A ksa assume antes de tudo um lugar comum a um grupo, um lugar de convivência e um lugar de projeto, cada um dos moradores tem suas particularidades, mas unem-se na construção de um projeto de vida coletivo para a existência do lugar da intersecção de um grupo anarcopunk, que tem entre suas características o modo de vida coletivo, a anarquia como norte, a autogestão como estratégia de manutenção e feitura da ksa. Desde os materiais utilizados para reconstruir a ksa, quanto para manter os okupas são reutilizáveis, não desperdiçar nada e de reaproveitar o máximo que puder tudo pode ser refeito, são elementos centrais do estilo de vida desse grupo. Foram utilizados objetos de limpeza doméstica, trazidos pelos próprios okupas e alguns doados por vizinhos como pás, vassouras, baldes, sacos de lixo, e quanto à água usada para esse fim, ela vinha de uma fonte que fica na Praça de Fátima, próximo a ksa. O dia foi de limpeza completa, muito trabalho a ser feito, para que aquele ambiente antes utilizado para depósito de lixo, desova de corpos, refúgio para ladrões e abrigo para focos de dengue e animais peçonhentos pudesse abrigar um projeto de vida coletivo, e pessoas pudessem morar nesse lugar. Coletou-se muito lixo, capinou-se o dia inteiro para limpar aquilo que chamaram Espaço Cultural Libertário. Esse projeto de ksa foi moldado e construído por seus moradores, mas conta-se com a colaboração de quem sentir-se a vontade para se aproximar e oferecer apoio. Essa limpeza e entrada no espaço feita no início contou com várias pessoas que colaboraram para isso, porém mais tarde, já em campo percebi que não eram as mesmas pessoas que estavam lá morando 71 quando cheguei para dar inicio a minha pesquisa um ano depois de estarem okupando. À medida que avançava na pesquisa, me aproximava mais do cotidiano da ksa e fui percebendo que o trânsito de pessoas que passam por ela é fluído e que esse fluxo tem implicações sobre o cotidiano da ksa. 72 CAPÍTULO 2 A KSA PRATICADA E O COTIDIANO OKUPA Figura 6: (Re) construção da casa. Figura 7: A Okupa Squat Torém. Figura 8: As ruínas, pós desalojo. 73 Morfologia Social da Okupa Após relato, é importante é importante situar que a pesquisa não começa nessa chegada, eu já estava em campo quando fiz os primeiros contatos através de telefone e e-mail, através de diálogos com informantes privilegiados que obtive durante os meses que antecederam minha chegada à okupa. Para minha surpresa deparei-me com uma situação atípica em relação as okupas - ou pelo menos em relação aquelas com as quais tive contato - a divisão territorial do espaço o(k)(c)upado. Para mim esse momento é o marco da entrada em campo: quando avistei de imediato as marcas temporais expostas na estrutura da casa, quando vi os destroços, as ruínas de uma grande estrutura em formato retangular, sem portas, janelas, piso. Existia um buraco no chão, onde se via uma água turva infestada de baratas, era um poço que ficava ao lado esquerdo da marquise de menos de um metro onde havia objetos íntimos de uso coletivo como mochilas, roupas amontoadas, sapatos velhos molhados, alguns chinelos de dedo arrebentados e abrigo para colchões velhos, rasgados, amarelados e molhados da chuva que acabava de cair. Sobre o chão muito mato e lixo, atentei de imediato para as latas de cervejas e refrigerantes cortadas e abertas, palitos de fósforos, estruturas que pareciam cachimbos, feitos de material plástico, isso dizia para mim que possivelmente eu estava diante de uma cena de uso de crack 37 , mas continuei observando o lugar. Troquei algumas palavras com dois moradores, que ao me apresentar como antropóloga e dizer que estava ali por motivo de pesquisa passaram a contar seus infortúnios e apresentar o local que consideram ser sua casa. 37 Como mencionei na introdução estive vinculada a uma pesquisa sobre “O Perfil dos Usuários de Crack nas 26 Capitais Federais e Distrito Federal”. Essa pesquisa iria me auxiliar nas minhas investidas de campo, reflexões metodológicas e trato dos dados coletados. Fui observadora e recrutadora de usuários, era a única pesquisadora do sexo feminino na equipe de campo dessa pesquisa no Ceará, haviam preconceitos e desafios postos nesse trabalho que me faziam perceber minhas limitações quanto a minha pesquisa com os Okupas. Acreditava que a pesquisa com usuários de crack fosse mais difícil, que implicaria mais negociações e confesso que antes de aceitar ao convite de minha colega e amiga Jaína Alcântara Linhares, pensei muitas vezes, pois se estava passando dificuldades em campo com os okupas para fazer a pesquisa, os usuários de crack deveriam (imaginei) ser mais difícil de negociar. Grande pré-conceito meu, ao contrário disso, ao aceitar a proposta, descobri o quanto os usuários de crack necessitavam de “ouvidos”. Emprestava generosamente os meus e com bastante curiosidade e atenta para ouvir seus anseios, seus desabafos e suas histórias, foi nessa altura também, que repensei as estratégias de pesquisa e coleta de entrevistas com os okupas, reavaliei e deixei eles bem tranquilos, para falarem sobre o que quisessem, não perguntava mais tanto, falava da pesquisa com os usuários de crack e passei a mediar a relação entre os okupas e os usuários de crack na divisão espacial do território urbano de suas ocupações. 74 Guiaram-me entre os entulhos enquanto pisávamos com dificuldades entre latas, garrafas, papelões, caixotes, tábuas velhas, tijolos amontoados. Estavam me levando para ver o espaço onde residiam, e dividiam a moradia e, sobretudo mostrando as condições de sua habitação. O poço com a água turva cheio de baratas foi o primeiro a ser exibido, mostraram os colchões molhados da chuva, as marquises rachadas que poderiam vir abaixo a qualquer momento, falaram de sua vontade em mudar dali para outro lugar, mostravam facilidade em comunicarem-se comigo por depositarem em mim alguma esperança em mudar aquelas condições e aquele status de abandono no qual viviam. Eles me confundiram com um agente do governo que poderia lhe oferecer uma casa ou um “tratamento para deixar a pedra”. Todos ali estavam dispostos a falar, reclamar da vida injusta com a qual eram tratados e de uma situação tensa de conflito aparente com os moradores do outro lado da casa, os okupas. Um dos okupas me acompanhou em outro momento até esse lado da ocupação, quando fui gravar um vídeo com os usuários, mas alguns okupas não esconderam o fato de não terem aprovado a aproximação, justificando que os usuários de crack já haviam “vacilado” entrado na ksa, roubado e ameaçado, que não queria mais nenhum tipo de aproximação. Eu silenciei um pouco, ouvi o que tinham a me dizer e os demais okupas que apoiaram a iniciativa interferiram ao ressaltar que estavam diante de um novo momento, lembrando que essa situação foi no momento inicial e que agora tinham a oportunidade de desfazer mal entendidos, até porque o vídeo proposto dava relevo as formas de ocupação e as condições em que os moradores se encontravam. Não tive nenhum problema de aproximação com esses usuários, mas lamento profundamente o fato de ter sido assaltada dias depois e terem levado o meu celular onde os vídeos estavam armazenados, restando apenas alguns relatos e umas fotografias de não tão boa qualidade. 75 Figura 9: Fundos da Okupa. Figura 10: Terreno que serve de abrigo aos usuários de crack. 76 Figura 11: Marquise onde dormem os usuários de crack 38 . Desse lado da ocupação em que estávamos, onde habitavam os usuários de crack, via- se que todas as portas e entradas no ambiente interno do prédio estavam bloqueadas por tijolos novos que nitidamente diferenciavam-se dos velhos, era a fronteira entre duas práticas de ocupação, entre dois grupos urbanos estigmatizados, entre duas realidades que dividiam o mesmo terreno, mas não o mesmo modo de habitá-lo, aqueles tijolos fronteiriços ditavam a circulação e usos do espaço entre os grupos. Havia um lado com uma escada que dava acesso ao andar superior do prédio, estava bloqueada por tijolos e cimentos recém-postos e na parte inferior vários sacos de areia foram amontoados uns sobre os outros de maneira que não havia brecha entre eles que pudesse alguém passar, era uma porta bem larga, com aproximadamente três metros de largura e era também assumidamente uma fronteira real de divisão de um espaço físico e social. Como me aproximei primeiro do lado da casa que era ocupado pelos usuários de crack, depois de chegar próximo e conversar com eles percebi que estava diante de outra forma de ocupação, não eram os okupas que eu estava procurando, eram outros ocupas que achei no meu itinerário de pesquisa, eles eram os usuários de crack, que moravam ali bem antes dos okupas chegarem e que dividiam o terreno. 38 Estrutura semelhante que há dentro da okupa, onde é cultivada a horta. 77 De acordo com a fala de Piu Piu, um dos moradores e usuário de crack, fazia mais de três anos que moram lá, eram ao todo 4 moradores e eles eram todos da mesma família. Esses moradores, também usuários de crack deixaram a casa onde moravam com o resto da família (pai e mãe e demais irmãos) e foram morar na rua, uma vez que poderiam viver mais a vontade para consumir a substância, viver ao seu modo sem causar prejuízos ou importunar a família e sem provocar mais conflitos. O surpreendente nesse relato é que são os próprios irmãos que tomam a iniciativa de sair de casa e morar na rua, após terem vivenciado vários conflitos com a família, e são eles quem tomam a consciência de que o ambiente familiar já não era mais o lugar adequado para eles, as falas são de preocupação com a mãe, o sofrimento que ela passou e passa e que eles dizem que o “vício” é maior do que eles, que “não adianta tá em casa para quebrar tudo e fazer confusão”. Os dois grupos que ocupam esse terreno, demarcaram uma fronteira física e simbólica entre eles, conforme foto abaixo: Figura 12: Mapa de localização da okupa 39 . 39 Fonte: http://maps.google.com.br/maps?q=bairro%20de%20f%C3%A1tima%20fortaleza%20ce&hl=pt- BR&rlz=1I7GGLS_pt-BR&prmd=ivnsmfd&biw=1259&bih=561&um=1&ie=UTF-8&sa=N&tab=wl 39 78 A partir do mapa, tenta-se imaginar uma divisão, cuja área exata do terraço, não se sabe, até insisti algumas vezes, mas eles tinham uma noção muito vaga do tamanho do espaço, porém dar para observar com o mapa a divisão territorial. Toda a área dentro do recorte em vermelho corresponde a área total da fábrica, esse é todo o território. Retalhado em amarelo vê-se o espaço do terreno que é ocupado pelos usuários de crack, coberto por folhas das árvores, não há nenhum estrutura de teto apenas as marquises de menos de um metro encostadas na parede lateral, sentido norte do mapa, e o traçado verde até chegar a linha vermelha onde fica a marcação do número da casa com a letra “A” corresponde ao espaço okupado pelos torenianx. É notável a distinção ao olharmos para a estrutura das duas ocupações uma mais degradada, em que o acumulo de lixo chama atenção e a disposição espacial dos moradores é limitada a divisão do mesmo ambiente onde todos dormem e acomodam seus pertences como podemos observar na figura 3. Do outro lado da ocupação encontramos os okupas a estética diferenciada, observo a entrada composta por tijolos novos, recém-postos junto aos velhos, e no alto uma janela grande que ao olharmos debaixo, visualiza-se muitas colagens coloridas nas paredes e uma frondosa árvore chamada torém é o limite entre uma ocupação e a okupa. Do lado de lá, chegamos à ksa torém, quando do encontro com um vasto jardim, onde havia muitas hortaliças, plantas medicinais, vegetais, frutas, local em que fui recebida por Ane, uma de minhas interlocutoras, o local chamam-se horta, cuja manutenção é feita pelo grupo, a ksa me foi apresentada por Ane, sempre destacando as singularidades dessa okupação. 79 A ksa assume vários sentidos, desde a função habitacional que no discurso okupa foi o que motivou inicialmente esse projeto, quanto à função associativa de cultivar um local para facilitar o encontro do grupo, ou a chegada de novos okupas, devido ao trânsito intenso, que marca o cotidiano da ksa. Importante destacar que por está situada próximo ao centro da cidade favorece o fluxo de pessoas que passam pela okupa, há muitas chegadas e partidas por diversas pessoas, tanto okupas quanto anarcopunks que moram nas franjas da cidade como Maracanaú, Pentecostes e outros lugares mais distantes, o fluxo é intenso. A ksa não tem paredes divisórias de todos os cômodos, na verdade no pavimento sobrelevado há dois cômodos que são divididos da área central um é o banheiro e o segundo um espaço onde fica uma pia com dois baldes que servem para armazenar água, usada para limpeza dos utensílios da cozinha que fica ao lado. Na cozinha sempre há muitos legumes e verduras, são as principais fontes alimentares que estão sempre ao alcance dos olhos, o que fica dentro do armário não pergunto, mas sempre vi biscoitos salgados artesanais, alguns com o prazo de validade vencido, mas há também o café, sinônimo de visita, sempre ofertado, como passava dias inteiros o café era ofertado tanto na chegada pela manhã quanto após o almoço e durante a tarde. Algumas vezes, fazíamos cotas para comprar um lanche da tarde, noutras levava alguma coisa já da minha casa, ou passava numa feira que tinha lá perto e comprava legumes, verduras e frutas, pois não sabia o que levar diante de uma alimentação, que se diferenciava da minha, que havia um controle das substâncias que estavam presentes em determinados alimentos e que eu não dominava esses códigos alimentares. Em geral a ksa okupa é uma casa provisória, efêmera, pois como se trata de uma okupação ela sempre está no limite de um desalojo. Uma das suas particularidades é o fato de ser construída por um grupo de pessoas que podem ou não habitá-las como moradores okupas, principalmente em seus aspectos construtivos, pois elas são reconstruídas com os materiais disponíveis, com o dinheiro curto, com a ajuda descompromissada. Por isso a ksa funciona como um espaço de convivência ou uma semirrepública que integra pessoas que são moradoras da okupa ou pessoas que passam por ela. O processo que envolve a sua reconstrução é feito dentro das possibilidades materiais de que dispõem os okupas, de acordo com a disponibilidade de matérias-primas na verdade. Nessa construção tudo se aproveita, logo há várias opções de matérias-primas para compor todo o ambiente da ksa. Por exemplo, o uso de barracas de náilon dentro da ksa, é feito para garantir que o lugar de dormir, do descanso e do sono não seja comprometido por uma chuva, 80 haja vista as condições em que se encontra a estrutura fixa da ksa, antiga e deteriorada, com muitas infiltrações, assim sobre as condições da ksa relata Ane: Na okupa a eletricidade é substituída por velas, a placa de energia solar não dá conta da casa toda, nem de várias luzes, então, a gente deixa apena uma a noite, na cozinha pra todo mundo. A água encanada não existe aqui, a gente depende do favor dos vizinhos que são massa ó, e doam um pouco de água pra gente, mas a gente também não abusa, a gente pega água na fonte que fica ali na praça, todo mundo, a gente se reveza, uma parte da água pra gente beber, a gente consegue pegar lá naquele mercadinho que você comprou as coisas que você trouxe... risos, o gerente sabe, mas nunca reclamou não, tem um bebedouro lá perto das frutas, a gente vai lá, leva uma garrafa dessas (uma garrafa plástica de 2 litros) enche no bebedouro e traz pra galera, vai cada um de uma vez, durante o dia. (Ane, 22 anos, novembro de 2012). A fala de Ane destaca um pouco da relação que os okupas estabeleceram com o bairro para manutenção da vida na okupa, pois significa o abastecimento de água, mantimentos que são doados por vizinhos ou por comerciantes da vizinhança, além de ponderar sobre as condições em que vivem na okupa, o que eles tem na ksa e como se aproveitam das condições dispostas para reconstruir a ksa, e tornar possível a vivência coletiva nesse espaço, sempre atentos ao que é possível ser refeito, dependendo do plano de assentamento se é possível ou não fixar residência nesse espaço e por quanto tempo, quais as condições favoráveis, e também as relações sociais em que os moradores se encontram, isso são detalhes que Ane observa sobre a prática da okupação. A okupa marca sua distinção pelo avesso ao que é consumido pelo bairro de Fátima, apresentando esteticamente o espaço como distinção social, a casa do bairro de Fátima é “bonita, limpa e luxuosa”, ela marca novos consumos do habitat urbano, e os edifícios realçam ainda mais essa característica da casa de luxo através das suas características materiais, portões de aço, pastilhas e vidros nas sacadas, objetos de arte no hall dos edifícios, é um exemplo dessas marcas, mostrando que: Os gostos obedecem, assim, a uma espécie de lei de Engels generalizada: a cada nível de distribuição, o que é raro e constitui um luxo inacessível ou uma fantasia absurda para os ocupantes do nível anterior ou inferior, torna-se banal ou comum, e se encontra relegado à ordem do necessário, do evidente, pelo aparecimento de novos consumos mais raros e, portanto, mais distintivos (BOURDIEU, 1983, p. 85) 81 O que está em jogo agora é a estilização da vida, então conhecer a Okupa Squat Torém é urgente para situarmos sua distinção e seu luxo frente a gosto de quem procura o bairro de Fátima como destino imobiliário para moradia. Ao contrário do “gato” de Gorjão Jorge (2005) a okupa sugere uma expressão concreta, mas também subjetiva (simbólica), vivendo numa liminaridade, na qual a busca por uma vivencia coletiva nos sugere nesse primeiro momento a casa enquanto significados múltiplos, (...) O centro a partir do qual traço os eixos das minhas deslocações quotidianas. A partir daí oriento-me no espaço... é como se a localização da minha casa constituísse um pólo atrativo no mapa das minhas deslocações (JORGE, 2005, p. 243). A okupa abriga atualmente cinco pessoas, mas há sempre pessoas circulando que em contato com outros contatos em rede vão chegando nesses deslocamentos, de okupa em okupa, trazendo informações, novidades sobre a situação de uma e de outra, propostas de intervenção 40 sobre o espaço, a fim de dividir experiências que favoreçam a okupa e aos okupas no seu estilo de vida. A casa está há vinte minutos (caminhando) da praia de Iracema, próximo ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, que é vizinho ao Bar do Reggae e da noite cearense. Também está no bairro e próximo da casa a Assembleia Legislativa, onde o grupo faz a reprodução do seu material de divulgação, fazem cópias dos seus fanzines, pois lá existe um limite de cópias gratuitas e como eles normalmente não têm dinheiro, reproduzem seu material por lá para distribuir para vizinhança e em outros espaços em que circulam, onde se observam negociações de território, nessa disputa sobre a reinvenção do espaço entre okupas, moradores, investidores e que nos chama atenção Arantes Neto, ao dizer que: 40 No período em que estivemos visitando a okupa em Fortaleza-CE, chegaram dois irmãos gêmeos, uruguaios, artesãos e que faziam mágicas, já estavam vindo de Curitiba-PR, e acabam de chegar de Natal-RN, então através de outros contatos do sul, eles tiveram acesso ao Torém, e conseguiram alojamento por uma semana, período em que trocamos experiências, ofereceram oficinas de mágica para a direção de uma escola próxima da okupa, mas acabou não acontecendo, devido as exigentes burocracias. Mas eles fizeram oficinas de serigrafia com um dos moradores da okupa, além de contribuírem com alimentos e água para a casa, também ajudavam na limpeza do lugar e “mangueavam” para garantirem o dinheiro de continuar sua volta pela América Latina, vendendo artesanato e fazendo truques de mágica. 82 No espaço comum em que circulam/habitam diversos grupos sociais, vão sendo construídas fronteiras simbólicas que “separam, aproximam, nivelam, hierarquizam” ou ordenam categorias e suas mútuas relações. Dessa maneira, os lugares sociais formariam um “gigantesco e harmonioso mosaico”, delimitado por fronteiras simbólicas, zonas de contato, nas quais se situa uma “ordem moral contraditória”, em que as moralidades estariam em “guerra” (NETO, 2000, p.106). Dessa perspectiva observo que estar na ksa, significa assumir sentidos internos a sua lógica de vivência coletiva, mas também assumir um significado dentro do contexto do bairro de Fátima que significa além de procurar por uma boa localização para efeito de estratégico do grupo, e enfrentamento social, é possibilitar uma visibilidade de atuação grupal, de se colocar enquanto existência da okupa, ancorada numa disputa que se faz jurídica, espacial, simbólica e, sobretudo moral, aqui lembrando as zonas morais de Park (1979), mas também situando aquilo que Bourdieu apud Helene (1999) afirma sobre o espaço habitado, ou apropriado, funcionar como uma espécie de simbolização espontânea do espaço social. Portanto, o direito à cidade possui uma relação direta com vários domínios da composição de sua identidade e de seu poder de pertencimento urbano, nesse caminho nossa pesquisa vai sendo tecida. A okupa é vista a partir da subjetivação e concretude na apropriação do homem pelo espaço, e ampliando o que Gorjão Jorge (2005) nos diz sobre a forma de “construir” no espaço a partir do dispositivo plástico sugere uma apropriação desse dispositivo, e no caso dos okupas uma apropriação que atribui usos diversos, mas que estão e serão dados por uma ordem que “está apenas na cabeça dele (s)” numa interação intensa marcada por uma subjetivação do grupo no fazer habitar para construir um abrigo das suas intimidades produzindo novos espaços em meio urbano. O tempo interno da ksa: aquilo que lhe é cotidiano Somos todos visitantes deste tempo, deste lugar. Estamos só de passagem. O nosso objetivo é observar, crescer, amar... E depois vamos para casa 83 Provérbio Aborígene Em outra conversa com Ane, informou que há cinco meses desistiu de morar com seus pais, ou na casa do seu companheiro Gil, (onde os pais deles cederam uma casa aos fundos, com água canalizada e luz, móveis, um teto sem morfo, para que eles fossem morar lá, e se prepararem para chegada de um bebe), e conseguiram também emprego num guichê de venda de passagens na rodoviária de Fortaleza-CE para ocupar um prédio no bairro de Fátima, foi uma forma de se contrapor sobre o que ela considerava ser o luxo e as obrigações de uma sociedade do consumo, entretanto foi também para ela uma forma de se contrapor, quando certa vez falou: É uma casa enorme, com grande jardim, uma horta bem cuidada... Se existem tantas casas desocupadas, desabitadas, então pode uma galera se juntar e construir alguma coisa em comum, coletiva e viver em comunidade, foi o que aconteceu com a casa okupa torem. Nós vivemos em comunidade, o pessoal junto, okupas e pessoas que não são anarcopunks, mas que curtem essa história, que se interessam por ela, que querem detonar essa especulação que nos explora. Ane e o companheiro Gil tinham largado suas casas, o projeto de vida traçado pelos pais e fizeram de uma barraca, dentro de um prédio abandonado, o seu projeto de vida juntos. Lá, dormem, comem, namoram, divertem-se, trabalham e cuidam de uma criança recém- nascida. Dividem o espaço com outros jovens, também porta-vozes do movimento okupa, delatores da especulação imobiliária, alguns deles defensores do improviso e da ausência de regras, vivem todos nessa casa, adaptadas as funções variadas, como comer, dormir, trabalhar, esses são alguns dos luxos permitidos numa casa reestruturada, cujos gastos são compartilhados com os demais okupas que moram ou que passam por lá, porque eles acreditam que uma okupa é uma afronta social, uma arma social, nas palavras de vários deles. Ane tem 22 anos. Quando nos conhecemos ela estava grávida de 7 meses, de uma menina que está com 1 ano de vida. Sua mãe é costureira e o pai funcionário público, ambos terminaram o ensino médio, ela também. Refere-se a Zeta como sua irmã, “uma grande 84 amiga-irmã”, porém não há nenhum laço consanguíneo de parentesco. Disse para mim que é autodidata, que faz leituras livres e que conhece Michel Foucault, pois já discutiram a questão sexualidade durante oficinas de leitura na okupa 41 . É de origem de uma cidade que fica na região metropolitana de Fortaleza-CE, chamada Maracanaú. Tem mais ou menos 1,60cm, pele morena queimada do sol, olhos sutilmente puxados, de cor castanho em tom escuro, tem cabelos alongados, de cor castanho escuro, semi-encaracolado, que ela costuma trançar em casa, algumas vezes faz uso de bandanas na cabeça, ou prende os cabelos com rabo de cavalo, revelando para mim sua vaidade, não costuma ter unhas pintadas, nem fazer uso de maquiagem a não de lápis de olho preto e de máscara de cílios, nunca a vi usar batom, embora mostre preocupação com seus cabelos e com os seus olhos vez ou outra pintados. Está em um “relacionamento sério”, nas palavras dela, com o pai da pequena Torena, conhecido como Gil. Morou em outras ocupações, a Flor do Asfalto – RJ e o Bosque – RS, as duas já foram objeto de pesquisa do meu trabalho monográfico. Durante nossas conversas, na maioria das vezes na cozinha-sala da okupa, fomos reconstruindo uma rede de contatos em comum, acionadas por mim e por ela no intuito de provocar alguma afinidade de minha parte e construir uma relação mais confiável mostrando um pouco do meu envolvimento com o tema, o meu interesse, minhas experiências, meus amigos e alguns contatos e ela certamente ao me perguntar quem eu conhecia, o fazia no intuito de perceber se realmente eu havia passado por essas okupas, que tipo de relação eu estabeleci, como foi essa aproximação e assim através dos contatos em comum fomos tecendo uma teias de conversas. Inicialmente Ane falou-me de sua gravidez, que ao descobrir que estava grávida e antes de contar ao Gil, ficou confusa sobre a decisão de ter ou não o bebê. Rejeitou a ideia de ter um filho ou filha, que se sentia mal, que não deixou de fazer nenhuma das atividades habituais como jogar capoeira e andar de bicicleta, mesmo sabendo que poderia prejudicar a criança. Para ela, após ter sentido as alterações no corpo, o seu humor e os sentimentos em relação a maternidade passaram a mudar isso, fez ela sentir vontade de ser mãe, e perceber que o que a deixava em dúvida era saber que essa criança nasceria “num mundo como esse”, mas que poderia educá-la de forma diferente para ela ser diferente, um ser humano que possa fazer diferença nesse mundo. Aceitar a gravidez, para ela muitas vezes me pareceu aceitar ou 41 Há uma preocupação com o “estudo”, com o acumulo de certo capital cultural sobre temas que pautam os grupos de estudo e os protestos de que fazem parte como sexualidade, mas também alimentação, comunicação e mídia, racismo, etc. Temas que serão pautados exaustivamente no capítulo seguinte. 85 acordar subserviência aos padrões morais instituídos pelas instituições sociais como a familiar e religiosa. Por se definir como anarcopunk, sentia-se “na obrigação” de desconstruir esses valores, e algumas vezes parecia se dar conta de que fazia tal desconstrução de forma enganosa, até ela mesma se dar conta de que ser mãe, além de ser um instituição, poderia ser bom, tendo aceitado ou percebido isso depois de longos meses de preocupação e envolvimentos em discussões com os pais para que ela se preocupasse e adquirisse uma postura de zelo com sua própria vida, considerando a existência de um bebê, postura de zelo que segundo ela se referia a morar numa casa normal com o pai da criança e sua filha. Foram 4 meses nessa situação até finalmente, ela começar o pré-natal. Tentando perceber as dificuldades da gravidez, fazendo antecipadamente um juízo de valor, comentei que deveria ser difícil contar com um SUS para conseguir fazer exames, frequentar o médico, para minha surpresa ela, revelou que não havia problema quanto a isso, pois estava utilizando seu plano de saúde, nesse instante percebo que esse comentário revela o pertencimento a um grupo social com condições de vida diferenciadas, pois ter um plano de saúde custa caro, e Ane já havia me dito que estava desempregada. A partir disso passou a fazer pesquisas sobre opções de alimentação, tipos de atividades físicas que pudessem auxiliar durante a gestação, a montar o enxoval do bebê, revelando para mim que sua maior preocupação era naquele momento com a moradia para o bebê. Sobre a moradia, ela disse que não ficaria na okupa, perguntei por que, mas já esperando a resposta, disse que seria uma realização para ela se pudesse realmente ir para lá após o parto, mas que devido às péssimas condições do lugar, sujeira, poeira, infiltração, ela diz não ser um ambiente saudável cujas condições de salubridade não permitem um lugar para um bebê recém-nascido. Revelou que era uma situação complicada, por envolver várias pessoas, além dela e do companheiro, a família dele – principalmente - queria interferir na escolha deles. Então conversando com o companheiro dela, ela sugeriu que juntos alugassem um espaço para eles três e os demais compas okupas, pois reconhece numa vida a três – sorrindo, em tom de brincadeira – “muito mulherzinha”, mas que viver coletivamente é o que lhe interessa, pois é o que ela “curte”, o que entende como “ser bom” para o bebê. Perguntei como pagariam, porque ela já havia me falado que estava desempregada, que pediu para sair do seu emprego e foi okupar, ela respondeu: não vai ser muito diferente de como vivemos hoje, todos aqui compartilham os custos, um aluguel num bairro mais distante é menor e poderíamos pagar, ou seja, uma casa que não é uma Ksa. Além dessa possibilidade de 86 moradia, há mais três: morar com os pais dela, como os pais dele ou na casa de um amigo deles (que é grande, arejada, espaçosa), mas é muito distante. O que é comum entre os moradores dessa okupa e que viria a perceber partindo de Ane até chegar aos demais, é que eles fazem muitas atividades: capoeira, grupos de discussão anarquista, participa de grupos ligados a agroecologia, frequenta um coletivo que luta pela humanização do parto e assim por diante, dessa forma sua rede de relações vai além da okupa o que favorece a visibilidade e mais aderentes ao projeto okupa, que está sempre sediando alguma atividade ou recebendo visitas dessas pessoas que fazem parte das redes sociais de seus moradores, nesse sentido Ane desempenha um papel fundamental, porque ela agrega e recebe essas pessoas, ela faz conexões e produz atividades materiais de forma a fazer da okupa um lugar de encontros. O Beto (42 anos) é o que posso chamar de um “velho punk”, traz sobre si todas as marcas de uma identidade punk característica, todo aquele estereótipos que procurei na Ane, está nele exposto, roupas em tons escuros, camisetas que são serigrafadas por ele mesmo na okupa, jaquetas, coturnos ou chinelos “havaianos”, taxas, pinos, tatuagens, braceletes de couro, zines costurados nas roupas, colares, pulseiras são alguns adereços que fazem parte do visual punk dele, que está sempre com uma touca preta sobre a cabeça. Sua aparência identifica logo seu pertencimento a um estilo punk, diferentemente de uma parcela do grupo como a Tassinha, a Ane e o Jon que não carregam marcas de um estilo punk, talvez o Gil, que tem um corte de cabelo mais característico dos punks e as tatuagens e roupas pretas com zines costurados em calças skinny (juventude punk usa essa calça) porém os punks mais velhos não topam com esse visual, são mais “tradicionais” embora renovem nos adereços como jaquetas mais atuais, brincos, pircings. Quando escrevo sobre o Beto é inevitável a alusão a categoria “novinho” cunhada por Costa (2010), indicando juventude, mas tratando de interlocutores com mais de 40 anos que carregam sobre si um ethos juvenil, e elementos de um projeto de vida não consolidado. Assim, A categoria “novinho”, indicando “juventude”, é ao mesmo tempo um elogio e uma reprimenda. Se, por um lado, indica que ainda se tem uma aparência jovem (algo que tende a ser positivado), também denota a percepção comum da juventude como tempo de instabilidade e de crise, caracterizado pela não consolidação de projetos, por um “vir a ser”. Sendo assim, o indivíduo 87 adulto está, de alguma forma, deslocado do lugar social que deveria ocupar (COSTA, 2010, p. 59). Essa categoria me fez dar importância as palavras que Ane proferiu sobre o Beto para mim, (depois de terem me alertado sobre a demolição de parte do terreno que fica atrás da ksa) o Beto é meio inocente, fica dando conversa pra esses nóias aí.... Nesse sentido o Beto me faz pensar sobre os limites da juventude, como se constrói a sua carreira 42 , quais os seus projetos e campos de possibilidades a partir da okupa, pois ele: (...) por que não “se gastou”. Não “gastou” porque não estabeleceu os laços familiares (do casamento e da criação dos filhos) ou, se os estabeleceu, não o fez com o devido grau de responsabilidade, sofrimento e abnegação que exigem. “Esquentar a cabeça”... envelhece (COSTA, 2010, p. 60). O que vim saber em seguida é que o Beto é avô de duas meninas, e que tem uma filha, que se falam, mas que parece ser muito distante, pois ele mesmo não quis dar continuidade a esse diálogo quando incitei, quem me falou foi a Tassinha e eu apenas virei para e ele perguntei é mesmo Beto? Tão jovem? E ele apenas acenou com a cabeça e pediu para ver o vídeo que eu tinha feito da conversar com os rapazes da cracolândia, mudando de assunto. Penso que será necessário maior investimento no campo para que eu possa realmente destrinchar melhor essa relação que me pareceu desconfortável para ele. Além disso, é artesão e fabrica peças para vender na praia e observei que não era apenas lá (Praia de Iracema) que ele vendia, o seu percurso de trabalho incluía o circuito cultural noturno underground, ele saia com as peças para vendê-las durante a noite, quando eu pensava ingenuamente que ele estava saindo para encontrar seus “compas” e “curtir” um “rock irado”, aquilo para mim foi estranho, mas fez muito sentido por que ele deixava exposto seu trabalho e poderia encontrar os “compas” e “curtir um rock irado” tudo no mesmo lugar. No primeiro dia de minha ida até a ksa, quando cheguei, ele não estava, chegou quando já conversávamos na cozinha-sala e ficou próximo a grande janela fazendo suas 42 Goffman (1979), Becker e Strauss (1970), Hugues (1971) (1980). 88 pulseiras, colares, brincos, anéis. Ficou calado o tempo todo como quem não quer saber de conversa, mas na medida em que fui assídua no convívio essa impressão ligeira foi substituída, então “trocamos idéias” como ele disse, deu pistas sobre algumas relações com a vizinhança, ao me levar até o outro lado da casa, onde ficam os crakeiros, para que eu pudesse conversar um pouco sobre a derrubada de parte do terreno onde está situada a ksa, que eles viram quando e como foi e o que eles estavam pensando sobre. Certamente a okupa revelava um ethos juvenil e Beto não comprometia essa percepção que tive inicialmente. Entretanto ele me fez questionar o que é juventude ou o que significa ser jovem nesse contexto. Não servia apenas para pensar o Beto, mas os moradores da okupa, pois penso a juventude nesse contexto a partir da relação que esses interlocutores fazem com o espaço. Além de revelar um gosto pela música punk rock, vinculado a esse tipo de sociabilidade coletiva. Assim, ser novinho nesse contexto significa um tipo particular de juventude. Ksa Pratikda Apresentei o que é fundamental e permanente na okupa, que não tem tanta variação quanto ao seu uso, o que é incorporado a práticas do cotidiano e que revelam as maneiras que os okupas encontraram para fixarem-se nesse ambiente urbano. Revelam-se quais os equipamentos que eles dispõem no ambiente interior da ksa para sua vivência o que não pode faltar, o que foi incorporado, o que é comum e característico desse grupo. As condições iniciais em que esse grupo passou a viver são importante revelam como se estabelecem as divisões no ambiente interno da ksa, qual a divisão espacial do grupo, o que será descrito na sequência é o ciclo de vida interior da ksa, sua divisão espacial-territorial e também social do habitat okupa, em resumo como se opera a divisão do espaço e dos moradores sobre ele. No que se refere a divisão dos cômodos começa pela divisão dos pavimentos em inferior e superior. No primeiro está à horta, o espaço das festividades, a cozinha em construção e o lugar do banho - próximo a horta para que a água seja aproveitada para irrigar as plantas que estão na horta. No pavimento sobrelevado fica a área doméstica da ksa, onde se concentram os principais equipamentos, dito de outro modo, o miolo da ksa: a cozinha-sala, o espaço das barracas e o banheiro seco. Observei que o sobrepiso é onde a vida cotidiana mais 89 íntima acontece, onde os corpos estão mais próximos uns dos outros e onde eles passam a maior parte do tempo. A horta. – “Abaixo do concreto está a horta”. Na ksa há a árvore (torém), é enorme e oferece uma frondosa sombra, suas folhas são utilizadas para medicina alternativa do grupo, que relata haver uma tradição indígena quanto a apropriação humana pela substância para ser utilizada nas dores do estômago. Ane mostrou- me cada vasinho de plantas, cada detalhe, tomates, cenouras, batatas, mandioca, maracujá, coentro, cebolinha, pimentas variadas, mamão, bananeira. Ali crescia abaixo do concreto um jardim que habita um estilo de vida vegano. E continua, Ane: Mas existem outras coisas dentro da casa, vamos entrando Andressa veja que tudo isso aqui era lixo, ele chegava até lá em cima, nós tiramos tudo, limpamos, cuidamos, olha como tá bonito... Você foi na Flor né?! Pois então, é parecido... Lá eles também plantavam e cuidavam da horta, também usam a compostagem, foi lá que tive essa experiência. Enquanto Ane fala, volto a recordar a passagem que fiz pela Okupa Flor do Asfalto e lembro-me de um feijão que o pulga fez e serviu numa das visitas que fiz. Nessa ocasião, pulga usou legumes da horta junto com outras hortaliças que okupas reaproveitavam do lixo, disse que tinha um acordo com os comerciantes do bairro e alguns feirantes, que ao fim do dia ele e os demais okupas passavam por uma rota com suas bikes e caixotes recolhendo aquilo que seria destinado ao lixo. É pode crer, aqui a gente passa nesse mercadinho que tem aqui atrás na Aguanambi e numa padaria ali em cima, perto da pracinha, ele sempre dão alguma coisa pra gente. Mas o pessoal da vizinhança também ajuda, principalmente com água, antes vinham mais crianças pra cá, daí eles viam que a gente não era bandido, mas isso foi aos poucos. Pelo depoimento de Ane, houve uma dificuldade de interagir com os moradores da vizinhança e os estigmas que eles identificavam a partir do comportamento desses moradores vizinhos. Aos poucos, eu percebia na ksa uma infinidade de detalhes tanto de objetos e informações destacadas nas paredes quanto nas falas de seus moradores, não me cansava de observar, eram muitas informações visuais, com tantos cartazes colados nas paredes, cada um com um tema, uma luta, uma causa, tentei contar os cartazes no início, mas cada vez que eu 90 voltava tinham mais e mais, ficou difícil, daí passei a observar quais eram os mais novos, para tentar pensar quais lutas, eles estavam se mobilizando na medida em que fazia minhas visitas. A ksa é grande, dispõe de um vasto espaço aberto com uma cobertura também, possui dois andares e uma escada toda refeita com pedacinhos de azulejo picado que foi reaproveitado, na verdade tudo é reaproveitado tanto bens como roupas e calçados, toalhas, lençóis, cobertores de uso intimo, materiais reciclados de plástico são usados para fazer brinquedos, instrumentos musicais, instrumentos de malabares (que são utilizados para desenvolver habilidades e como forma auxiliar da vida econômica), e alguns são usados na reconstrução da ksa. Além disso, portas, janelas, grades, ferrolhos, tintas, latas, cadeiras, mesas que foram apanhadas do lixo e foram também reaproveitados e também comida, recolhida em feiras livres, minimercados, padarias. O que os comerciantes costumam dispensar ao fim do dia, é recolhido pelo grupo e reaproveitado. A ksa, para efeito de lugar, é vista como uma unidade habitacional, um lugar de produção e colheita de alimentos para nutrição coletiva, um local de existência anarquista, um ponto de referência e acolhimento okupa, uma urgência política intervencionista, um canal por onde passam os nômades urbanos, onde se constituem laços de solidariedade coletiva e um espaço-tempo onde esses okupas e seus compas usam e onde se encontram constantemente. A GIG 43 . - O espaço dos encontros festivos A ksa okupa é sempre um lugar de retorno regular dos anarcopunks, sejam estes da região nordeste ou de outras regiões. Pelo menos nesse caso em particular dessa ksa em Fortaleza, onde as visitas são constantes e o fluxo, frenético - sendo este último, uma característica proeminente dos okupas. Assim, encontros coletivos acontecem regularmente na ksa, sempre aos finais de semana, seja para a realização de atividades regulares, seja para o 43 Apresentação de bandas em encontros coletivos de grupos anarcopunks. Não tem por finalidade o lucro, mas a diversão, a troca de experiências, promover uma vivência coletiva e reunir recursos em favor de da manutenção dos coletivos (grupos) que estão fazendo alguma atividade e necessitam de suporte material. 91 planejamento de encontros com meses de antecedência e que contam com ampla divulgação, a exemplo da realização da GIG. No que se refere à GIG, termo derivado da língua inglesa (que pode significar “festa”, “show”, “festival” ou “apresentação”), utilizado pelo contracultuta anarcopunk que atribui um sentido e compreensão particular à sua forma prática cultural. De fato, a gig, tal como vivenciada pelos anarcopunks, pode ser considerada uma “festa”, uma vez que se caracteriza fundamentalmente por momentos lúdicos e desprendidos de encontro coletivo. Geralmente, pode acontecer em qualquer outro espaço, não necessariamente na okupa, embora - e é importante assinalar - esse encontro festivo seja próprio do movimento anarcopunk. Destarte, a okupa facilita a realização da GIG por sediar o encontro do grupo para a sociabilidade coletiva, além da discussão política sobre temas atuais que estão presentes no conteúdo dos flyers 44 e zines 45 e apresentações artísticas. Durante a GIG, bandas musicais se apresentam e pessoas são encorajadas a tocar ou cantar de modo autônomo e improvisado. Tudo isso, independente de fazer parte ou não de alguma banda ou de possuir alguma competência técnica no uso de instrumentos musicais (guitarra, baixo, bateria). Curiosamente, o uso da voz para cantar num tom altivo ou para verbalizar suas inquietações plurais faz parte da GIG: utilizar o microfone como instrumento de alcance de suas ideias é, para o okupa, uma “arma de libertação” através do verbo, do grito e do som 46 . Onde todos participam, interagem, se divertem, se revoltam através de si e junto com os outros, sempre se expressando por meio do som. Além desse momento, há também um DJ (geralmente alguém que participa da GIG) selecionando musicas de diferentes estilos e origens culturais (israelense, japonesa, etc.), intercalando com as falas e apresentação das bandas. Na Okupa Squat Torém a GIG acontece no pavimento inferior, num espaço coberto e que fica próximo ao poste da rua e ao lado do terreno onde é feita uma ligação de energia cedida por Sr. Maurício, “o vizinho chapa” 47. Dispondo dessa infraestrutura cedida das 8h às 44 Os flyers são panfletos contendo informações resumidas sobre bandas ou sobre fanzines. 45 Zines ou Fanzines se trata se um tipo de publicação alternativa feita em papel A4, onde são utilizados elementos de imagem, textos, escritos geralmente em próprio punho e reproduzindo na década de 1970 a cena punk. Atualmente utilizado para uma diversidade de assuntos. 46 Gallo (2008), Jacques (2007). 47 O termo chapa é utilizado pelos próprios okupas para designar Sr. Maurício como um amigo, um companheiro e assume um sentido de intimidade, expondo as relações de afeto construídas entre eles o vizinho que sempre colabora com o projeto da ksa, seja ao ceder energia elétrica de sua casa para a realização das atividades coletivas do grupo durante os finais de semana, ou para participar de tais atividades e convívio coletivo com os okupas no cotidiano. 92 20h, nesses dias, há a exibição de vídeos e a energia cedida serve para ligar os instrumentos musicais e caixas acústicas, permitindo a realização do evento que acontece por parte do dia. Embora o grupo possua uma placa de energia solar, ao anoitecer, quando eles acendem a única lâmpada da ksa é possível perceber logo de imediato que ela não suportaria o gasto de energia para ligar e manter todos os equipamentos no dia da GIG. O fato de ter apenas uma lâmpada é devido à potência da bateria que suporta apenas o gasto de uma lâmpada de 60 watts à noite. Embora os okupas contem com a colaboração de seu vizinho nesse momento, existem outros momentos em que em que a necessidade de utilização de energia elétrica fica evidente e percebi que meus interlocutores fazem usos regulares de energia elétrica: carregar um aparelho celular tornou-se objeto de interesse sociológico na medida em que percebia que para além dos laços de solidariedade construídos com a vizinhança em momentos pontuais e previamente acordados, havia outras situações da vida cotidiana como essa que me permitiu perceber que os okupas não estão descolados culturalmente do mundo, e que necessitam abrir exceções a suas práticas de uma vida primitivista. Ao pedir ao porteiro do prédio vizinho para carregar o seu celular e/ ou ligar seus instrumentos musicais, e uso de lâmpada revela um hábito incorporado culturalmente. É bem verdade que para utilizar o notebook, ligar o data show, carregar a bateria da câmera fotográfica e da filmadora, ou mesmo poder contar com a bateria do celular e do ipad carregados, é necessário uso de energia elétrica. E isso só é possível através das relações estabelecidas com a vizinhança, ou mantidas com a família. Assim fui percebendo que além de estar okupando ali, esses okupas estão em contato permanente com o mundo tecnológico, e com suas redes familiares e que eles dependem das duas no auxilio a manutenção desse espaço. Tais redes viabilizam através desse suporte material o acesso desses okupas ao mundo virtual, ao consumo musical, a conexão via telefonia celular, dito de outro modo permitem acessar as vias da comunicação, úteis para articulação do grupo, para realização da GIG em redes locais, regionais e nacionais. Observo que na medida em que foi aparecendo esse tipo de usos das novas tecnologias da informação e comunicação por parte dos okupas, fui percebendo, por exemplo, que isso os diferenciava dos grupos que protestam por moradia, aqueles que chamei outrora de instrumentalizados, que embora contem com apoio institucional de partidos políticos, a maiores de seus membros não contam com uma infraestrutura que envolve, vídeo, celular, câmeras digitais, ipods, câmeras filmadoras. 93 A barraca. – onde aparecem as divisões Um abrigo de caráter provisório feito de lona ou náilon – esquematicamente é utilizado material leve e que são facilmente removíveis – é uma construção simples e modesta, porém de grande valor na distribuição do grupo espacialmente. Através da barraca podemos observar um dos critérios distintivos do grupo, onde a verdadeira unidade territorial parece ser a vida de acampamento, entendida aqui como um conjunto de barracas instaladas para abrigar esses moradores, que embora denotem uma característica de instalação provisória, ela assume o lócus da habitação, designado como um grupo aglomerado de pessoas unidas por laços e que possuem assim uma barraca para cada família habitar, distribuídas em semicírculo e armadas ao lado da escada e em frente a uma grande janela que aberta visualiza-se a horta e por onde também os primeiros raios de sol do dia entram. As barracas ficam normalmente no sobrepiso, onde dormem todos do grupo, num terreno plano, com piso de cerâmica, coberto pelo antigo teto da fábrica com estrutura comprometida. Cada barraca possui seu colchão, seus lençóis, travesseiros, algumas roupas, cobertores e ao lado algumas lonas (uma para cada barraca e uma para cobrir o material da biblioteca), pois ao chover tais lonas são colocadas sobre a barraca para proteger da umidade, uma vez que o teto da ksa está comprometido e há muitas brechas por onde passa água da chuva em quantidade suficiente para molhar dentro da barraca. Além disso, estar junto é importante também para aquecimento do grupo e estratégia preventiva quando aja tentativa de invasão ou desalojo. Curiosamente percebi que há uma forma do grupo habitar a barraca. Ora, cada barraca abriga um núcleo familiar (embora os próprios okupas não se refiram entre si a esse tipo de definição intragrupal, mas optei pelo uso desse termo por perceber em campo que ele é o mais adequado para demonstrar essa divisão e essa forma de agrupamento), isto é um homem, uma mulher e filho (a). Assim há uma divisão espacial do espaço íntimo através das barracas. Tal divisão espacial ocorre da seguinte maneira: há uma barraca central, é nela que ficam os pais de 94 Folha, Ane e Gil, e ela própria. Ao lado direito da entrada dessa barraca fica a barraca dos pais de Abu, Zeta e Floca, e a própria Abu. Ao outro lado (o esquerdo a barraca central) fica a barraca de Jon e Tassinha. Por trás da barraca central ficam as barracas dos hóspedes, aquelas barracas dos compas 48 que estão passando pela okupa, que ficarão poucos dias, a exemplo, os irmãos uruguaios, o casal chileno, o casal goiano do CMI que estavam visitando a okupa e fazendo uma matéria sobre ela. Ainda no piso superior, próximo de onde estão as barracas, a mobília é composta por guarda-roupa, cômoda, algumas prateleiras e objetos usados nas oficinas de serigrafia (telas, tintas, tecidos e afins). Além dessa distribuição espacial de parte do grupo - que está concentrada - há o lugar de Beto. Lugar que se diferencia por estar situado defronte ao fundo da barraca central, do outro lado desse cômodo que é dividido por todo o grupo para dormitório e que não possui divisórias. Beto não dorme em barraca, ele dorme numa rede que fica armada próximo ao banheiro seco, que também fica neste sobrepiso. Ao lado dessa rede estão todos os objetos utilizados e que pertencem a ele, como: uma bateria, os expositores com bijuterias artesanais feitas por ele - uma de suas fontes de renda 49 , uma cômoda onde guarda a matéria-prima utilizada para produzir tais artefatos manuais além das suas roupas, calçados e demais adornos que ele utiliza. Mais tarde (após alguns meses) Jaga iria dividir esse espaço colocando um colchão doado pela vizinha da okupa ao lado da rede do Beto. Essa disposição deu a mim, observadora, a impressão de que o que os separa dos demais membros do grupo é o fato de serem os dois solteiros. Próximo às barracas há uma estrutura para colocar uma rede, que fica armada diariamente ao longo do dia, caso o Beto não tivesse uma barraca, poderia utilizar a rede. No caso dele ter a sua barraca, poderia colocá-la próximo ao restante do grupo, onde os hóspedes costumam armar as suas barracas. Entretanto o Beto, membro mais velho do grupo, e Jaga o mais recente, não dormem próximos aos demais membros do grupo. De imediato não ficou tão claro ao observar que essa dispersão espacial poderia ser uma forma isolada proposta pelo 48 Termo reduzido da palavra companheiros, utilizado dessa maneira por meus interlocutores. 49 Saberia mais tarde, que o Betoé pedreiro, e que durante alguns meses específicos do ano (dezembro, janeiro), ele saiu da okupa e voltou a morar na casa da mãe dele para trabalhar nas obras de fim de ano dos vizinhos e em outras oportunidades que aparecem, voltando a okupa apenas nos finais de semana. 95 próprio Beto, adotando uma atitude de reserva, com a chegada depois o Jaga também se alojou do outro lado de onde estão as barracas. Nas manhãs de minha chegada a ksa, percebia que estavam sempre Tassinha e Jon inicialmente e depois Beto e Jaga, aqueles que ficam muito tempo na ksa, são essas mesmas pessoas que apresentaram pouco estranhamento ou resistência a minha aproximação. Gil e a Zeta conheci mais tarde e o Floca, vi poucas vezes, estava sempre fora da okupa. Quanto a Ane, embora as vezes não estivesse em ksa quando chegava, ela aparecia ao longo do dia e na sua chegada conversávamos por horas a fio. A cozinha. -“A cozinha é universal; as cozinhas são diversas”. Esse ambiente merece particular atenção, pois é onde pude desfrutar mais tempo do espaço na okupa. O meu lugar praticado rotineiramente, onde ao coar o café, descascar as batatas, amassar as bananas, cortar os tomates e por o almoço no fogo, fazia tímidas anotações no meu diário de campo, entre uma atividade e outra, quando me sentia a vontade, algo inclusive desafiador, mas que acontecia, geralmente sentada na cadeira da ponta da mesa da cozinha ajudava na produção do almoço e quando dava por fim minhas atividades coletivas da okupa, observava e tentava não esquecer as ideias refletidas, as conversas construídas e as muitas informações obtidas. A cozinha é carro chefe da ksa, o lugar central, está situada entre a escada e o banheiro seco 50 . Ao lado da escada está o espaço destinado ao dormitório e descanso, onde ficam as barracas, do outro lado vizinho ao banheiro seco está o espaço em que dorme Beto e Jaga. Ela configura uma fronteira social, na medida em que ela separa os núcleos familiares dos solteiros expondo a gramática espacial desses moradores. O lugar comum ao grupo, onde todos estão, por onde circulam e onde se encontram as melhores conversas, onde acontecem as reuniões internas ao coletivo, onde se recebem as visitas, onde se preparam os alimentos e onde todos comem. 50 Falarei disso adiante. 96 Situada no centro do sobrepiso, a cozinha é um espaço grande ausente de paredes divisórias, toma a forma de um pátio onde se compartilham todos os utensílios domésticos que são necessários para o processamento dos alimentos de consumo diário, onde também está situada a biblioteca. Na cozinha servem-se cafés, água, comidas e ideias. Os principais utensílios encontrados são o fogão, um botijão de gás, uma mesinha de apoio, um armário para armazenar os mantimentos (a maioria cereais tipo integral), panelas, pratos, copos, talheres, garrafas peti que armazenam a água para cozinhar e de consumo dos okupas, além de várias prateleiras, algumas feitas com tabuas e tijolos (reutilizados do lixo), algumas servem para apoio na hora de cozinhar e o outro de estante para por os alimentos. Encontramos também uma fruteira, uma bacia grande e funda onde são colocados os legumes recebidos em doações do mercado e da feira. O lugar do convívio mais intenso, o estar em ksa do coletivo é a cozinha, é nela que se realizam as assembleias que reúnem todo o grupo, e por isso também considerado o lugar das boas informações. Todos cozinham, e contribuem com a limpeza após as refeições, cada um lava seus utensílios de uso individual durante as refeições, e há acumulo de louça como panelas, que queimam o fundo e tornam-se difícil de limpar. Isso acontece devido a falta de ambiente ar-refrigerado para conservação dos alimentos, então é necessário mantê-los aquecidos até que tenha sido totalmente consumido. Interessante observar, que o preparo dos alimentos não é dado por uma divisão de gênero, todos se ajudam quando estão em ksa, além disso, outro aspecto de importante valor sobre o consumo desses alimentos é o fato de que eles são preparados para serem consumidos até o fim, com o menor desperdício possível. Conforme mencionei anteriormente, parte da dieta alimentar tem origem nas doações de feirantes e donos de mercados vizinhos, e alguns cereais (arroz, feijão, cuscuz, macarrão, leite em pó, açúcar, óleo) são doados pelos vizinhos da ksa. Os alimentos doados pelos primeiros encontram-se numa fase em que são dispensados porque não atendem aos padrões de consumo habitualmente apreciado pelos clientes desses estabelecimentos, entretanto são esses mesmos alimentos que iriam para o lixo que figuram como principal fonte alimentar, combinados com os demais legumes e verduras produzidos pelos okupas na ksa e os alimentos que são doados pelos vizinhos, que já dispondo de certa proximidade com o grupo, estão atentos sobre o que doar ou não. Isto é, reconhecem uma regra de interdito alimentar do grupo que varia entre práticas vegetarianas, passando a assumir 97 com maior frequência o comportamento vegano, sob o qual não é possível ingerir alimentos que contenham substâncias ou que sejam derivados de animais. A solidariedade dos vizinhos na doação de mantimentos aos okupas foi assumindo na minha percepção outra forma, onde afinidade e respeito ao grupo eram levados em consideração na hora de efetuar a doação. Nesse sentido, lembro-me que nos meus primeiros dias na okupa, quando a vizinha da casa em frente chamou um dos okupas para receber uma sacola cheia de mantimentos, ele me olhou, sorriu e disse: “Essa tiazinha é uma onda, ela espera os filhos saírem pra poder chamar alguém daqui e entregar a sacola. Ela dá umas coisas caras que a gente nem come, olha isso”. Bom, dentro da sacola haviam biscoitos salgados e doces, feijão, arroz, macarrão, açúcar branco, molho de tomate, achocolatado e suco de caixinha. Porém, alguns meses depois não percebi se foi alguma fala dos próprios okupas, ou algum outro vizinho que tenha alertado, mas durante uma entrevista com essa vizinha, Dona Creuza, perguntei-lhe sobre o que mais marcava para ela a presença dos okupas naquela rua, e ela passou bons minutos detalhando os hábitos alimentares, o quanto a horta era bem cuidada, o quanto aquilo era importante para se ter uma vida mais saudável e que sempre doava alimentos. Não pensei duas vezes para perguntar: - que tipo de alimentos? Dona Creuza: Há minha filha, antes eu dava de tudo pra eles, daí eu descobri que eles só gostam mesmo de verduras, então o que tinha por aqui e que sabia que eles gostam de comer eu dava. Insisti. - Mas o que? Dona Creuza: Háááá... Feijão, arroz, essas coisas e soja né, a gente come soja aqui também e eu sei que eles gostam, então sempre que posso dou pra eles... E água também, que eles me pediam muito. 98 Dona Creuza, vivia sob a vigília dos seus filhos, que não gostavam da aproximação dela com os okupas, e talvez por essa razão nunca tenha subido até a cozinha para tomar um café e comer um bolinho de soja. Existem duas observações singulares ao grupo quanto à alimentação. Uma delas é que eles dispõem de um conhecimento preliminar sobre os hábitos de conservação para consumo dos alimentos e que isso gera uma prática cotidiana ao grupo de coleta, limpeza e armazenamento desses alimentos. É necessário diariamente, pelo menos duas vezes ao dia, pela manhã e ao fim da tarde, revisar observar e triar os alimentos. Nesses momentos retirar as partes mais machucadas e envelhecidas dos legumes, frutas, verduras, é uma maneira de aproveitá-los para consumo. Além disso, consumir alimentos fora do prazo de validade, como por exemplo, aveia, feijão, arroz, macarrão, ou mesmos biscoitos salgados e doces da padaria está entre as práticas de reaproveitamento. Quanto a segunda, trata-se da manutenção de uma dieta vegana e o seu custo financeiro, uma vez que os okupas vivem na urgência material, não dispõem de tantos recursos financeiros, uma dieta estritamente vegana, custa caro, e desconfiei que não era possível aplicá-la a este contexto do grupo, mas percebi mais tarde que não é impossível, apenas é um pouco mais restrita, alguns alimentos são consumidos diariamente como o feijão, o arroz, macarrão e a soja. Esses quatro alimentos combinados com o café, legumes, frutas e verduras - as que tiverem disponíveis, sejam elas oriundas da horta ou do lixo – compõem a base alimentar do grupo. Seguindo o lema punk - do it yourself - a produção dos utensílios domésticos da ksa também é uma proposta do grupo, assim como o uso de energia solar. O fogão solar é um aparelho eficaz e de tecnologia simples. Em resumo, trata-se de uma caixa de papelão, coberta por uma tampa de vidro, com abas refletoras, cujo fundo absorve a luz solar e a transforma em radiação infravermelha, que não ultrapassa a tampa de vidro e cria um ambiente próprio para aquecimento e cozimento de alimentos, uma espécie de efeito estufa, muito comum nas okupas. De acordo com os okupas pode variar a temperatura e ele pode alcançar a temperatura máxima de 150º. Por ser de fabricação artesanal e com reciclagem de material a sua funcionalidade acaba barateando os gastos com botijão gás (porém não dispensa o seu uso), embora combine vantagens que adquirem mais valor, de acordo com Ane e Gil, por combinar o uso de material reutilizável e o uso de energia limpa, fazendo disso um expoente fator de consciência ambiental e que por isso é um dos principais benefícios de ter acessível tal tecnologia. Mas infelizmente não se pode cozinhar tudo num fogão solar, além disso, na okupa havia fogão á gás e botijão de gás, onde era feita a comida diariamente. Durante a 99 semana quando estava lá, sempre chegava pela manhã e antes de fazer o almoço, via que eles utilizavam o fogão à gás sendo o forno solar utilizado ocasionalmente. Além dos dois vetores de importância socioambiental apresentados por Ane e Gil, o uso do fogão solar é feito também com o propósito de secagem de frutas e vegetais, pois auxilia quanto ao retardo do apodrecimento desses alimentos. A única restrição aparente é nos períodos em que chove e não aparece o sol. Por essa razão o uso de tecnologia mais atual, como o uso de um fogão doméstico à gás é imprescindível ao grupo, que também dispõe de um fogão à lenha, porém este último é mais utilizado nos momento de confraternização do grupo em que se preparam alimentos em grande quantidade como as tradicionais feijoadas veganas. Bom, antropologicamente o uso do fogão solar interessa por revelar uma prática sustentável, e assim verificar que os okupas não estão descolados culturalmente do mundo em que vivem, assumindo para mim que tal postura pertence a uma preocupação ambiental, que é fruto de discussões e interesse de outros grupos que fazem parte do circuito do qual a okupa faz parte, por ser o ponto alto onde é possível desenvolver hábitos de uma vida sustentável dentro do contexto urbano. O banheiro seco Seguindo a linha da sustentabilidade e da produção dos utensílios para a ksa, o uso do banheiro seco talvez tenha me causado mais surpresa ao conhecer. Nunca tinha visto um banheiro seco, sabia do que se tratava muito vagamente, então acabei sendo pega um pouco de surpresa diante das minhas próprias fronteiras. Não posso dizer que fiquei tão à vontade ao utilizar esse cômodo da ksa, mas insisti em utilizar, pois precisava saber como era o seu funcionamento e os efeitos práticos na vida cotidiana do grupo. Enquanto Ane me fala detalhadamente sobre a horta e sobre os projetos de uma nova horta suspensa, explica como é o processo de compostagem (descrito com mais detalhes adiante) do uso de resíduos humanos como adubo para a horta, fui me intrigando, aquilo ficou latente na minha cabeça, como eles armazenavam? Separavam o sólido do líquido? Então, 100 resolvi ir ao banheiro, pois necessitava utilizar naquele momento e porque eu quis saber como era feita a separação desses resíduos. Ela orientou: Olha Andressa o banheiro é ali, tem uma portinha, atrás da bateria do Beto... É um cômodo mais afastado e a porta de entrada não é visível pois ela fica no recanto de uma parede, só ao me aproximar que percebi que tinha uma porta ali. Precisava adentrar esse espaço da intimidade da ksa para entender o sentido prático da compostagem. Ao utilizar o banheiro seco percebi que anarcoprimitivismo significava formas de vida mais rústicas que se conectam as práticas de sustentabilidade e reaproveitamento de tudo. Não presumi isso de imediato porque não sabia o que era compostagem. Somente após entrar no banheiro, comecei a repensar um pouco a minha necessidade, porém como eu estava curiosa para ver como era o banheiro e por já ter ido algumas vezes fazer campo e nunca utilizar o banheiro, achei que era uma obrigação fazer uso para não parecer que estava com algum tipo de resistência ou “frescura”, embora seja honesta em admitir que tive resistência para utilizar o banheiro depois que entrei. De fato, preliminarmente eu sabia que tais resíduos eram utilizados como fertilizante e era comum no meu contexto infância, pois embora tenha origem rural, tendo nascido e sido criada em cidades menores alternando entre os sítios dos avós maternos e paternos essas práticas de fertilizantes naturais não era nenhum surpresa. Na casa de meus avós maternos utilizavam-se os resíduos de animais como adubo, os resíduos humanos eram descartados e não reutilizados sob este formato. Mas isso foi naturalizado enquanto uma prática de fertilização do solo. Ainda retomando minha memória, lembro-me facilmente que na casa dos meus avós na ausência de banheiros até bem pouco tempo, a sombra do limoeiro, da goiabeira, do coqueiro, da cajarana, eram bons lugares para destino desses resíduos humanos. Honestamente, nunca tinha parado para refletir sobre isso até tornar-se um objeto de reflexão socioantropológica durante minha pesquisa etnográfica. De certo modo, eu compreendia como funcionava, mas eu quis ver e usar o banheiro seco, experimentar tal experiência e descobrir algo novo, pois havia no mesmo banheiro uma cadeira de madeira escura, um modelo mais antigo cujo assento, rasgado, era de palha amarelada que me chamou a atenção. O esqueleto da cadeira abaliza o espaço abaixo do assento onde há uma lata de tinta (um galão equivalente a 18 litros) com areia, pó de serragem e fezes dentro. Ao lado um balde também reaproveitado de tinta em menor volume (um galão equivalente 3,6 litros) que transbordava urina e o papel higiênico estava preso por um arame 101 amarrado na parede escura, o espaço é reduzido, isso caracteriza o processo civilizador, observado por Elias (1994), que me põe insistentemente em processo de reflexão sobre tais noções usadas atualmente que visão mudanças de atitudes ou comportamentos em relação às práticas existentes na construção de um padrão atualizado pelas demandas sustentáveis ou ambientalistas, onde as atitudes devem obedecer a uma consciência ética em relação à natureza. Para Elias, Um mundo e um estilo de vida que, em muitos aspectos, [...], assemelha-se muito ao nosso, embora seja ainda bem remoto em outros..., fala de atitudes que perdemos, que alguns de nós chamaríamos talvez de ‘bárbaras’ ou ‘incivilizadas’. Fala de muitas coisas que desde então se tornaram impublicáveis e de muitas outras que hoje são aceitas como naturais (ELIAS, 1994, p.69). Estou falando de um comportamento comum, ir ao banheiro, mas quero dar relevo ao que vivenciei na prática de utilização de um banheiro que desconstrói os padrões de higiene e educação que me foram ensinados. O desafio que me parece ser posto não é só de utilização do banheiro seco, mas de problematizar a educação ambiental através do uso desse banheiro, ou de uma placa de energia solar, ou do reaproveitamento de alimentos retirados do lixo. O que se pretende significar com o despejo de resíduos humanos utilizando litros de água, sabendo que é um desperdício quando falamos de uma escassez desse bem, ou quando de maneira “natural” damos fim a nossos resíduos e assumimos uma atitude antiecológica, pouco reflexiva, mas que tem sido pautada ou reinserida nas práticas cotidianas, e o uso do banheiro seco na okupa se justifica tanto pela escassez de água como Ane mesmo me relatou nas nossas primeiras conversas que “esses resíduos são utilizados para compostagem”, isto é, atender a fim ambiental, uma nova “velha” maneira de gestão dos resíduos para fins sustentáveis, uma nova disciplina do corpo e uma nova educação ambiental. A compostagem De acordo com as falas urina e fezes são fertilizantes com níveis mínimos de contaminadores do tipo metais pesados e tem alta qualidade, pois a urina é rica em nitrogênio, enquanto as fezes são ricas em fósforo, potássio e material orgânico. 102 Daí a justificativa para a compostagem combinada à utilização do banheiro seco ser utilizadas de forma alternativa na reciclagem convencional dos resíduos sólidos urbanos, pois de acordo com Gil é possível ser realizado de maneira adequada e com isso quebrar o ciclo de contaminação da água ao utilizar os nutrientes orgânicos. Dito de outro modo, eles o entendem como um sistema de saneamento acessível e de qualidade, que não traz prejuízos a quem os utiliza, porém que encontra barreiras culturais quanto a sua utilização e que por isso é tão pouco utilizado entre nós no Brasil, mas é utilizado em vasta escala dentro das okupas. É importante enfatizar os aspectos culturais que privilegiam ou não o uso do banheiro seco, faz parte dessa educação ambiental que está sendo discutida na atualidade e sendo implementada na prática por esses interlocutores, pois isso implica nos cuidados quanto ao monitoramento contínuo que é feito desses resíduos, uma vez que disso depende a segurança, a manutenção e uso de forma correta sem oferecer riscos a saúde dos moradores da ksa. Verifiquei que os galões de tinta do banheiro ao atingirem sua capacidade, os okupas retiram esses resíduos e colocam em grandes tonéis que ficam no ambiente da horta no piso inferior, no caso dos resíduos sólidos o ressecamento é um processo que é acelerado com o uso do pó de serragem, então quando alcançam a capacidade da lata esses resíduos já podem ser utilizados como adubo e fertilização na horta, mas há recipientes, contêineres maiores, que ficam numa parte coberta no piso inferior que recebem esses resíduos para armazenamento até alguém utilizá-los quando na manutenção da horta. O gerenciamento desses resíduos proporciona a esse grupo, uma autorrepresentação e uma organização adequada à proposta de sustentabilidade valorizando o humano e o social através da tríade bio-psico-social ampliada ao ambiental. Entretanto, esse gerenciamento constante acontece com o esvaziamento dos resíduos no banheiro, pois verifiquei que há um acúmulo deles nesses contêineres, e que a horta não é tratada diariamente, quanto ao uso de fertilizantes. O uso do banheiro seco implica economia de água, um sistema de saneamento alternativo e uso de tecnologia simples para benfeitorias ambientais através da compostagem. Embora o tratamento dos resíduos, também necessite de um conhecimento técnico e não seja feito tão rapidamente, levando um pouco mais de tempo, devido necessitar do aquecimento solar para compostar. 103 O aquecimento desse material é feito com energia solar, e a secagem também, porém percebi que além das latas não serem tampadas, há duas janelas próximas ao teto e dentro do banheiro que facilitam a ventilação, isso ajuda em períodos de chuva quando a secagem fica mais lenta e por isso o odor também é uma constante, além de ser mais acentuado, o que pode ter provocado em mim certo estranhamento e desconforto ligeiros. O tempo externo da ksa: o poder desejante dos corpos que inscrevem a cidade Mangueio de Água. - Para uma situação tão corriqueira, tão reflexiva me foi uma gota d’água. Há uma linha tênue que separa aquilo que pode ser dito pelo grupo e o que pode ser insinuado. Um segredo inviolável? Talvez não tanto. Ouvir de forma insaciável cada palavra proferida, cada insulto ou bajulo oferecido, são condições de uma persistente observação, obstinada em decodificar cada detalhe de ação, permitindo-me ouvir e lançar curiosamente interpretações sobre o tom de voz, o ato impetuoso de levar as mãos a cabeça ao conversar e discordar de uma ideia, ou mesmo baixar o tom de voz ao falar algo que pode ser interpretado como uma fração particular de um indivíduo dentro de um contexto pretensamente coletivo, onde tudo “é dito e discutido em coletivo”, me fez questionar diversas vezes sobre o que poderia extrair de uma observação onde meus interlocutores mudam de opinião sobre minha pesquisa o tempo todo, o que me incomodava, aquilo que oferecia a mim e Ane um ato velado, onde as conversas iniciais pareciam ser apenas protocolares, e quando elas passaram a ser confidências. Qual o limite da discrição para descrever? Ora, os códigos usados entre si na casa e fora dela são singulares. Foi necessário tempo e empenho, destreza para estar lá e captar uma notável linguagem codificada através de 104 palavras com atributos semânticos (re) significados (por exemplo, novata, corres, role, etc.) 51 e seus olhares mistos, sua coleção de gírias. A okupa não tem apenas um nome e local, mas ela também possui uma unidade linguística. Para abastecer a casa com água para beberem, os okupas se revezam para ir até o mercado que fica próximo da casa, quando eles tem uma reserva financeira dividem e compram um garrafão de água com vinte litros, que custa em média R$ 5,00, mas como vivem na urgência material, dispor dessa quantia para suprir a demanda semanal da casa, que consome de dois a três garrafões, isso custa R$ 12,00 a R$ 15,00. Algumas vezes levo uma garrafa de 1,5l, porque com o cotidiano fui percebendo que há um consumo de água e que não é tão fácil comprar, porque nem sempre eles conseguem dispor dessa quantia. Estrategicamente havia alternativa, ora, eles estão habituados a uma vida de improviso, e talvez por isso desenvolveram meios para resolver suas urgências, um deles é suprir a carência de água potável para consumo do grupo. Devido a tal carência de água - também utilizada para cozinhar - ser uma constante, na ausência de recursos financeiros, os okupas perceberam que havia um bebedouro de água instalado próximo ao setor de frutas e verduras do mercado e passaram a ir até lá inicialmente abastecer pequenas garrafas de água, primeiro um, depois o outro e aos poucos as garrafas foram aumentando de tamanho e eles acabaram contatando o gerente para abastecer vez ou outra suas garrafas. Gil me relata inicialmente que os funcionários já atentos ao movimento do mercado percebem quando há um novo fluxo de fregueses constante, e por essa razão ficam atentos devido a uma demanda de eventos já sofrida pelo número de assaltos, alguns motivados por haver caixa eletrônico dentro do mercado, por já conhecer e terem tido problemas com os “nóiados” que entram lá e furtam objetos e comida. Então para ele, era como “entrar e sair de qualquer outro lugar do sistema, porque todo mundo olha pra mim mesmo”, não lhe causava surpresa alguma inicialmente a postura atenta e os olhares previstos por ele frente aos funcionários do mercado ou aos seus vizinhos que também frequentam aquele ambiente. Mas tais olhares passam a assumir outro significado, uma vez que os okupas passam a consumirem produtos do mercado, quando compram estabelecem outra relação com as pessoas que circulam por ele. Acompanhando Tassinha e Gil, fui ao mercado que fica na Avenida 51 Novata: inexperiente, recém-chegada e que não conhece os códigos linguísticos. Corres: atividade de rápida realização, improvisada para um fim imediato. Ex: jogar malabares numa festa infantil para garantir recurso, diante de uma urgência material. Role: um passeio em grupo, disperso na cidade, rever pontos comuns da vida noturna, passar no Bar do reggae ou no Dragão do Mar, para encontrar a galera. 105 Aguanambi, acompanhado ou não de um ou mais okupas eles vão “pegar água” no mercado. É auspicioso que um desses okupas já tenha um contato com um caixa ou com o gerente do mercado. Quando isso não acontece como foi no meu caso, aí temos em curso uma encenação, e um jogo de intenções aparece. Percebi que os indivíduos que entram em tal jogo, estão intimamente familiarizados com as estratégias de entrada e saída, um olhar direto destinado ao segurança é fundamental, pois irá revelar que não há nada a temer, o que vai acontecer não foge a sua realidade, é apenas um acontecimento que se tornou comum, pegar água no bebedouro do mercado. Em menos de dois minutos já é possível perceber a presença do segurança circulando dentro do mercado. Não há um contato entre ele e os okupas, um olhar inquisidor é lançado por ele, atento ao movimento dos corpos dentro do mercado, enquanto o gerente circula pelas gôndolas o segurança conversa com ele. Percebo de quem se trata, até Tassinha comentar enquanto esperamos a garrafa encher: “ele foi falar com o gerente, mas ele já conhece a gente!”. O meu olhar é curioso, desconfiado, pois tento capturar os códigos distribuídos entre os olhares de Tassinha, Jon, o gerente, o segurança, os caixas e o meu. Aproveito a ida ao mercado e procuro alguma contribuição complementar para fazermos o almoço, aproveito para distanciar-me de Tassinha e Jon e assim obter uma visão mais ampla do mercado e de todo o conjunto de pessoas. É óbvio, que não são apenas os okupas que frequentam o mercado existem outros consumidores, todos circulam e observo o contexto, nesse distanciamento vejo o piu-piu (morador de uma parte do terreno onde situa-se a okupa e usuário de crack) circulando dentro do mercado, não observei quando ele entrou mas pela nossa chegada e o olhar trocado entre os okupas e o segurança, a preocupação do segurança não era conosco, supostamente era com o piu-piu, nós saímos enquanto ele e o segurança permaneceram dentro do mercado. Potencialmente, observava a situação como se os olhares do segurança estivessem voltados para nós, para nos observar, uma tomada de exotismo de minha parte em relação aos meus interlocutores, entretanto o comentário posterior, a tomada de distância do contexto, me permitiu outra interpretação sobre tal contexto, onde o piu-piu já conhecido do entorno por ser usuário de crack, e também por já ter se envolvido em pequenos furtos e brigas na rua, pode ter deixado o segurança um tanto inseguro naquele momento. Tal situação me fez refletir sobre as relações de vizinhança, permitindo percebê-las em diferentes elos e ajustes, onde estão situados os laços de vizinhança sobre os quais os okupas se firmam no seu projeto 106 okupa. As pessoas que frequentam o mercado, que vão a ferinha, que passeiam pela praça, que caminham até a igreja e que passam pela okupa, percebem aparentemente, mas querem saber o que tem ali, e quem são as pessoas que estão inseridas naquele contexto estranho a elas, dessa forma elas mesmas estabelecem suas relações de aproximação e de tolerância onde, os jovens urbanos de hábitos estranhos são aceitos e passam a serem reconhecidos como parte integrante daquele entorno onde todos se conhecem. Porém os usuários de crack não tem o mesmo tratamento, eles se envolvem em relações de disputa negativadas, e por isso também eram reconhecidas por todos ali, menos por mim que estava chegando. Os okupas conversam dentro do mercado no mesmo tom de voz que falam comigo fora de lá ou dentro da casa, então não havia uma situação pretensamente tensa como eu observei num primeiro momento. Engano meu. Tassinha e Jon conversam entre si, fazem comentários ao pé do ouvido em uma performance de namorados, enquanto estou perdida tentando observar o mercado e procurar alguma coisa que possa oferecer para o almoço ou lanche do grupo, isso não aconteceu apenas um vez, sempre que queria levar algo para a casa passava horas a fio pensando no que poderia levar, tinha medo de contribuir de forma errada, grosseira ou parecer desconhecer os hábitos alimentares, o que era verdade, são vegans, mas na minha realidade eu conhecia muito pouco sobre sua alimentação, sabia previamente que não ingeriam carnes ou derivados de animais. Então acabei levando bananas em pencas, me aproximei dos dois que já estavam com as garrafas de água cheias e perguntei se necessitavam de algo mais para contribuir para o almoço, eles responderam que não necessitava, pois o almoço já estava pronto e que as bananas já eram suficientes para comer enquanto terminávamos de aprontar. Eu fui ao mercado, várias vezes, numa delas, acompanhei Tassinha para fazer esse “corre”, de pegar água no mercado, não tivemos problemas e eu aproveitei a oportunidade para comprar mantimentos para a okupa. Eu mesma peguei a água no bebedouro, de início fiquei um pouco constrangida, achei que alguém iria aparecer para me repreender por aquilo, mas quando saí de lá a sensação era de alívio, pois nada disso aconteceu, nesse momento assim como em outros momentos me punha de cara com minhas própria regras sociais já estabelecidas e incorporadas, com o descumprimento delas, me via fragilmente ausente de relativização tão comum a mim em outras situações e que me parecia tão cara, nesse contexto. Não acreditava que estava fazendo algo de errado, porque “ninguém nega um copo de água a quem tem sede”, mas relações já engessadas nos colocam desafios suntuosos quando tentamos 107 alterá-las. Eu comprei mantimentos no mercado, eu peguei a água do mercado e levei para a okupa, tais procedimentos eram por mim refletidos sob diferentes percepções, ora me colocava na situação de solidariedade ao grupo, ora me via utilitarista ao pensar que por estar em campo, realizando observações, tal atitude me custaria o peso ético de não poder interferir no ambiente daquele modo, pois poderia ser encarado como um pagamento, por eles me deixarem participar de suas vidas, sabendo que estou lá para pesquisá-los, sobre se o que eu estava fazendo era permitido ou não pelo código de ética ABA tangenciando as questões do ponto de partida da pesquisa e as questões éticas que se apresentavam. Então, voltei a acessá- lo no intuito de verificar os limites atenta aos itens 3 e 4 daquilo que “Constituem direitos das populações que são objeto de pesquisa a serem respeitados pelos antropólogos”. O item 3, “Direito de preservação de sua intimidade, de acordo com seus padrões culturais”. Interpretei tal dispositivo do seguinte modo: ao etnografar tal situação, eu poderia estar expondo meus interlocutores a uma situação em que esse evento revelasse o gerente, a vista grossa e assim pudesse em outro momento causar prejuízos para esse trabalhador que se solidarizou com o grupo, ao permitir a coleta de água do mercado, cotidianamente, tendo o mesmo como prejuízo seu próprio emprego, seu meio de vida. Ainda assim, comprometeria os próprios okupas que poderiam deixar de contar com a água do mercado para consumo do grupo, e alterar as relações desse contexto. Ora, percebia que havia uma conivência por parte dos funcionários em permitir a entrada e o abastecimento de água, apenas desconfio de que o dono do mercado talvez não seja tão solidário. Assim, me inquietava o cumprimento do dispositivo 4 do código de ética, que regula a “Garantia de que a colaboração prestada à investigação não seja utilizada com o intuito de prejudicar o grupo investigado”, uma preocupação regular dos meus interlocutores e uma questão constante em nossos diálogos era: a gente não sabe quem vai ler seu trabalho, e se for um policial? Não nos interessa que nossa vida seja analisa como ratos em laboratório. Invente uma história, sei lá, nós queremos você como amiga, mas a gente não quer pesquisa com a gente não. Tal fala de Gil, foi reproduzida igualmente por Jon, Zeta, Floca e para minha surpresa por Ane, que desde o início havia colaborado quando Gil pronunciou essa fala coletivamente ela se colocou como se jamais houvesse permitido ou tivesse se disposto a colaborar com a pesquisa que já estava em curso e pelo meio do caminho. Eu silenciei após ter argumentado diversas vezes com Gil, que a pesquisa poderia ser útil para eles mesmos, na medida em que ela poderia oferecer outro ponto vista sobre o processo jurídico, que poderia colaborar com a 108 disputa judicial ou mesmo para diminuir os estigmas e as etiquetas negativas que foram coladas aos okupas, era uma forma de diminuir as distâncias culturais de uma mesma sociedade. O Mulambo, meu informante em Fortaleza-CE através do meu informante Aiam em Natal-RN, já havia me alertado, sobre a postura resistente do grupo quanto às pesquisas para a universidade. Mas eu insisti até onde pude, tendo todas essa negociações revelado os limites e alcances da pesquisa. Voltar para a casa e por a água no bebedouro, tomar um copo d’água, deixar cair a água, situações comuns, que num contexto recortado de pesquisa, me trouxe questionamentos, me revelou o que era uma dimensão escalar, algo tão comum como tomar um copo d’água me dava mais sede. Mangueio com Malabares O okupa (Jaga) vai manguear no sinal, antes de sair ele está em casa no meio da cozinha, apenas de bermuda preta e coturnos, com alguns adornos sobre si e sem camisa. Ele está treinando os malabares, joga com quatro bolinhas coloridas e pratica revezando duas a duas entre as mãos e o ar. Nesse intervalo, chega outro okupa (Jon), vestido com calça estilo skinny preta e sobre ela meias ¾ de listras horizontais em preto e branco, coturnos e alguns pircings a vista, com jogo de seis claves para praticar aquilo que será sua performance oferecida durante quinze segundos enquanto o semáforo está fechado para os veículos. Eles brincam entre si e trocam os objetos no ar, essa será uma das performances dos dois enquanto o sinal está fechado. Os dois então começam a produção, isto é, eles vestem-se e pintam-se para ida ao mangueio. O Jaga não foge do seu estilo punk cru, usualmente o preto predomina em sua indumentária, os coturnos são seus companheiros, um moicano de dreads lhe emoldura o rosto, camisas curtas e ajustadas brancas ou pretas sempre com artes serigrafadas por ele mesmo na okupa são sua predileção vestimentar. Ele cuida com bons tratos da sua vestimenta e do seu visual, atento para o uso de maquiagem, utiliza um lápis preto para olhos para marcar bem e escurecer seus olhos, sobre uma pele branca a base de pancake, ele delineia os olhos e faz uma lágrima, enquanto a boca é preta e coloca um nariz vermelho de palhaço, fechando sua produção com suspensórios. Jon, por sua vez preza por uma indumentária mais próxima do que caracteriza um palhaço, usa suspensórios também, mas 109 suas calças são largas e coloridas, sua maquiagem tem o fundo de pancake branco, porém sua boca é pintada de vermelho e um sorriso avantajado é desenhado em seu rosto, nos pés observo os sapatos de palhaço em vermelho e amarelo que nitidamente se destacam sobre o corpo franzino de Jon. Levam mais ou menos duas horas entre os exercícios e ensaio até sua produção. Tomam café preto com tapioca, que acabamos de comprar de um ambulante que passa todo fim de tarde em frente da casa numa bicicleta, anunciando a venda de seus produtos, sempre que estou presente contribuo com uma “intera52” em dinheiro e todos ajudam com o que podem assim fazemos nosso lanche da tarde. Eu peço sempre a mesma, tapioca com queijo coalho, as demais são molhadas com coco, daí perceber que eles não ingerem derivados de leite. Enquanto comemos, os rapazes continuam brincando, o tempo todo fazem graça, tem um humor despojado que acaba por me envolver num clima sempre muito agradável. Agora já estão prontos para manguear, pegam seus bizacos, põem seus instrumentos e cada um deles tem seu chapéu. O uso das redes sociais. - O espaço ampliado da ksa. Como dizer o que não é dito sem comprometer minha relação com o grupo ou com a produção científica e a ética antropológica? Fiz-me essa pergunta infinitas vezes. Ao longo da pesquisa, em convívio com os okupas dentro e fora da ksa, assim como nas redes sociais e trocas de e-mails, lendo as matérias produzidas e publicadas no Centro de Mídia Independente – CMI – onde eu também me manifestava, nós dialogávamos. Nesse sentido a socialização com grupo era vasta e de certa forma ancorada no domínio virtual, na capacidade de ação, rejeição ou afeição da construção de redes junto a esses jovens que possuem seus perfis virtuais, que acessam o meu e que ali se mostrava um pouco da subjetividade deles e também da minha. Nós estávamos nos mostrando, mostrando um pouco de intimidade sem sermos tão rígidos como, por exemplo, em seguir “script” de falas diante da pesquisadora, para me mostrar uma identidade positivada sem me mostrar aquilo de que não se orgulham. 52 Termo utilizado pelos próprios interlocutores e se refere a uma parte em dinheiro em que cada pessoa contribui não necessariamente do mesmo valor, mas de acordo com as condições que puder, uma ajuda. 110 Na verdade essa percepção foi custosa, eu observava sempre o uso das redes sociais como Orkut, Facebook, MSN e uma gama de blogs que eles usam e que me serviam de referência. Então eu procurava, encontrava, e Nilo apareceu num sábado em que estava rolando uma GIG na okupa. Conheci Nilo por intermédio de Jon, durante um sábado festivo em que ouvíamos o som da bateria de Nilo, enquanto trocava uma ideia na cozinha. Parei para prestar atenção no que eles tocavam, cantavam e falavam, então me dirigi a Ane e perguntei se havia problemas em filmar as apresentações da galera. Ela disse que não havia problema algum, mesmo assim insisti em dizer que não filmaria os rostos e que tentaria ao máximo manter o anonimato das pessoas, pois estava mais interessada em registrar as falas que eles faziam no microfone. Todas em tom de revolta e com conteúdo reivindicatório. Em seguida passei a filmar todas as apresentações que estavam rolando na festa, inclusive a banda de Nilo. Então, quando ele parou de tocar se aproximou de mim e Jon perguntou se eu já conhecia o som, de onde eu vinha, e se conhecia pessoas de Natal-RN que eram conhecidas dele. A partir disso tecemos um longo diálogo, expliquei a finalidade de minha pesquisa, perguntei se teria interesse em colaborar, ele concordou, mas de antemão deixou claro que não daria entrevistas. Conversamos bastante, trocamos contatos e em seguida ele me adicionou no facebook. A partir daí foi uma questão mínima de tempo para receber convites dos demais okupas, saí do espaço físico que me impunha dificuldades que não conseguia resolver e Nilo me colocou na rede, onde diluiu parte das resistências e onde finalmente conseguia fazer perguntas mais diretas e objetivas sobre a pesquisa. Nilo que nasceu em Brasília, é filho único, mora numa casa com os pais na periferia de Fortaleza, e trabalhou num Banco para ajudar a custear seus estudos, comprar seus instrumentos, e aos poucos ele foi me mostrando uma ponta do que seria íntimo desses okupas e do quanto eles estão conectados na rede social do facebook. Os meus objetivos, as dificuldades que encontrei tomaram outra forma e o fato de estar conectada ao grupo me deixava desconfortável, pois tinha receio de que eles julgassem o meu modo de vida e que se afastassem de mim. A maioria das minhas ações virtuais nessa rede social está ligada as práticas de pesquisa antropológica e o contato com meus amigos, logo a rede social assumiu sempre um caráter de entretenimento para mim, mas Nilo e os okupas fizeram (re) significá-la e passei a fazer pesquisa no facebook, assim me aproximaria mais dos 111 meus interlocutores e poderia falar com mais propriedade sobre os assuntos mais comuns entre eles. Estabeleci uma relação de amizade com Nilo, para além da okupa, e fomos nos afinando, sempre conversando sobre música, okupas, pesquisa até chegar numa paixão comum a fotografia. Nos conhecemos numa ocasião em que estava filmando uma apresentação na okupa, ele se sentiu a vontade para se aproximar e curioso, mais tarde descobrimos que tínhamos essa preferência pela fotografia e daí seguiu-se uma relação mais apurada. Trocamos materiais, pedia análise crítica sobre as minhas fotografias, pois ele é um fotografo experiente, e ele também me pedia assim fomos construindo uma boa amizade. Nossa amizade é virtualizada, pois a maioria de nossas conversas são via facechat, encontrava poucas vezes na okupa, pois durante a semana ele trabalha num banco então não poderia estar na okupa, só aparecia nos finais de semana, mas não todos. Nilo foi um “super amigo” nesse contexto, ele tentou mediar um pouco junto ao grupo a realização da pesquisa, pois acreditava que a visibilidade que a minha pesquisa poderia oferecer para o grupo poderia ser boa, pois teriam a chance de mostrar o seu ponto de vista e contar com mais um apoio. Mas isso sempre foi tarefa difícil, e eu não pedia que ele adotasse essa postura, ao contrário de Ane com quem eu me sentia mais a vontade para pedir ajuda junto aos outros interlocutores mais resistentes. Nilo sempre gostou de compartilhar no facechat o som que ele fazia com a banda da qual ele faz parte. Conversávamos e também trocávamos “figurinhas”: som, vídeos, sites interessantes. Eu não conheço muita coisa em relação ao som dele, porque de fato não é o tipo de som que eu costumo ouvir, então virou uma descoberta barulhenta e envolvente, pois eu comecei a ouvir como recurso de aproximação do universo dele. A aproximação com Nilo me fez perceber que havia vários grupos punks na cidade e que não eram necessariamente ligados a okupa, inclusive ele faz parte de um grupo anarcopunk de uma cidade da região metropolitana de Fortaleza. Isso se torna significativo quando tivemos uma conversa no facechat logo após o desalojo da okupa em fevereiro desse ano, tal conversa segue abaixo onde ele relata as condições da nova moradia do grupo, que recebeu a casa onde estão morando atualmente da ONG Emaús, por intermédio de um anarquista amigo do grupo, mas que eu não cheguei a conhecê-lo. O desdobramento dessa conversa é ele relatando que houve um “desgaste do grupo, que me afastou e por isso não colo mais com a galera da okupa”. Embora mantenha contato com o Beto, quem lhe dar notícias 112 sobre a nova casa, pois ele custou a ir ao novo espaço e revelou o atrito que havia com uma parte da galera. Ele relatou que não estava satisfeito com a galera, que as ideias não estão mais em sintonia e achou por bem dar um tempo. Mas mantém contato com uma parte do pessoal da okupa que foi morar na casa nova e assim recebe notícias atualizadas do grupo e mantém uma conexão com o pessoal através de emails, facebook e eventos públicos na cidade. Nilo, 26 anos. Não é morador, é anarcopunk e frequenta a okupa assiduamente. Desalojo Entrevista: Andressa Morais (Via Facebook) “É um local que foi cedido” - Como foi o desalojo? Nilo: Foi tranquilo, ate onde sei estar sendo e assim q eu estiver com tempo farei uma visita a galera. - Pois é quero ir também fazer uma visita e conhecer o novo espaço. Nilo: Massa! - Eu soube ontem, um amigo me ligou daí me contando que havia passado por lá e tinha sido derrubado tudo, fiquei de cara (surpresa). Nilo: É foda, mas Beto me falou que esse espaço novo é massa. - Já teve algum som lá nesse espaço novo Nilo? Nilo: Não. - Esse espaço novo é okupado também? Nilo: Mais ou menos, é um local que foi cedido. 113 - Cedido? Por quem? Nilo: Uma galera do Emaús. - Emaú? De que se trata? Nilo: ONG. - É mesmo? Nilo: Sim. Ai esse espaço foi um lugar que faliu. - Era onde funcionava a ONG? Nilo: sim - Não existe mais a ONG? Nilo: Existe só que em outros lugares. - Há pode crer. Eles trabalham com quê? Nilo: Eles recebem doações de tudo, reforma e vende bem barato. - Doações de imóveis você se refere? Ou de objetos? Nilo: Objetos! - Nossa que interessante, eles recebem doações de objetos reformam e dão p outras pessoas é assim? Nilo: Vende. - E o dinheiro da venda usa para reformar? É assim? Nilo: Acho que sim Andressa. - Olha, eu estou surpresa... Não conhecia ideia assim. Nilo: Pode crer! - Quem conseguiu o espaço com eles? Nilo: Ivo. - Ele é da ONG, e conhecia a okupa? Nilo: Ele é anarquista mora numa ocupa na Barra do Leme em Pentecoste/CE 53 e conhecia o presidente dessa ONG. - Compreendo. Nilo: Tem uma okupa também na Barra do Leme e uma fazenda ocupada por várias famílias. - E esse lugar é longe? Nilo: Uns 100 km de Fortaleza. - É pertinho. Acho que as meninas me falaram dele, a Ane e a Zeta. 53 A okupa de que Nilo fala é uma ocupação rural numa cidade do interior que fica há 100km de Fortaleza-CE, onde mora o Inácio, que é amigo do pessoal e quem arrumou a nova casa para o grupo morar. 114 Nilo: pode crer - É um assentamento não é Nilo? Nilo: Podemos marcar de irmos lá, para você conhecer? O que você acha? - Adorarei. Vamos combinar! Abril de 2012 O grupo saiu da okupa e foi para o destino em que estão morando atualmente, desde antes havia uma articulação com outros grupos conhecidos que na medida em que se aproximava a data do desalojo mais pessoas apareciam na okupa oferecendo ajuda, querendo saber notícias, se tinham para onde ir, os mesmo militantes de outras ocasiões se fizeram presentes nesse momento e ofereceram apoio ao grupo. O facebook ajudou a perceber com mais intensidade as diferentes conexões que os meus interlocutores fazem com sujeitos de outras redes. Além disso, pode me aproximar mais deles, que sempre lembram de me enviar uma mensagem de carinho, dizendo que estão com saudades, perguntando sobre o andamento da pesquisa, enviando algum convite de evento que será realizado ou curtindo as minhas postagens, como já aconteceu. Isso me fez perceber que eu consegui alcançar uma confiança, pois eles me adicionaram e dialogam comigo na rede social. Os cartazes que antes se faziam verdadeiros mapas e murais com muitas informações sumiam diante desse roteiro de descrição das atividades na rede social. Embora os okupas me dessem informações sobre suas atividades em nossos encontros na ksa, senti que faltava sempre alguma coisa e que eles poderiam me dar muitas informações que ficavam “ditas por não ditas” e que ganharam mais sentido para mim como objeto denso de interesse e observação na medida em que esses interlocutores passaram a me adicionar no facebook. Inicialmente tive receio de aceitar aos convites para tornamos amigos na rede social, pois ficava refletindo sobre o que eles iriam pensar sobre mim, o tipo de coisa que você só pensa porque está fazendo pesquisa, se fosse outra pessoa me adicionando eu não ficaria tão insegura ou temerosa. Resolvi a questão adicionando um por vez, e me comunicando, para sentir o clima se era afável ou áspero, no início até privei boa parte das minhas informações, ao pensar que eles poderiam se distanciar cada vez mais de mim, a medida que se aproximassem um pouco mais da minha vida, da minha intimidade, dos meus amigos, dos 115 lugares, dos hábitos que são diferentes dos deles. Minha lógica era simples, se eles já não querem a pesquisa por lá, porque se mostram avessos esse tipo de “produção científica e do conhecimento a um tipo fechado de ensino”, e fazem críticas ao consumo, a universidade, então quando vissem minhas infinitas páginas de Antropologia, universidades, os grupos de que participo iriam cada vez mais me querer bem longe. Mas a maior surpresa é quando o preconceito é seu e você toma como um choque ao ver o quanto fui ignorante, pois ao contrário do que imaginei, os pedidos de amizade foi aparecendo e eu fui fazendo, ainda como aquele receio de inicio, mas as conversas e os comentários sobre as fotos e os eventos deles, foram estrategicamente importante na construção de um vinculo mais honesto e afável, cada vez mais comentava e enviava recados, e cada vez mais recebia notícias e nos aproximávamos. Assim aconteceu quando viajei para Natal durante um feriado e recebi uma mensagem no meu celular: Olá Andressa massa, vamos subir serra nesse feriado! Ass Nilo. Era o feriado da Semana Santa, eu já estava em Natal e nessa hora querendo subir num avião e voltar para Fortaleza para subir essa serra. Respondi, agradecendo o convite e explicando que não estava em Fortaleza, que tinha ido passar o feriado com minha família, mas que gostaria de encontrá-los no meu retorno e que entraria em contato. Assim o fiz. Logo em seguida recebi ligação da Ane, perguntando o que eu faria no feriado, para fazer o mesmo convite e respondi que estava em Natal. Quando retornei a Fortaleza após o feriado encontrei Nilo e Gil no centro e conversamos sobre como estava a situação de moradia do pessoal, perguntei se estavam precisando de alguma coisa e me dispus a ajudá-los a qualquer momento 54 , também nessa mesma ocasião contei que passaria poucos dias e que em breve estaria retornando para Natal. Fez uma pausa, um lamento inicial, mas os dois falaram que estavam de portas abertas para quando eu quisesse voltar e fazer uma visita, desejaram boa viagem e combinamos de nos encontrar na véspera da viagem. Infelizmente isso não aconteceu, devido a uma questão 54 Queria ser útil, sempre foi recorrente em mim essa postura de oferecer ajuda, porque de alguma maneira sentia que estava em dívida com o grupo, por estar fazendo pesquisa e precisava dar algo em troca. 116 pessoal envolvendo minha família precisei antecipar meu retorno e nos despedimos apenas por telefone, quando falei com Ane, Gil e Nilo. Relato um pouco da relação que estabeleci com Nilo porque ele sempre foi um interlocutor sensível a minha presença e porque a maior parte do laço que teci com ele foi via a rede social e percebi o quanto ela está presente na vida desses interlocutores, por favorecer a difusão das informações e a aproximação com outros “compas”. A complexidade desse jogo de relações me rendeu uma conclusão: ao falar de Movimento Okupa, é preciso carregar diferentes dinâmicas de interação com o espaço urbano, diferentes modos de comunicação, expectativas distintas quanto ao tipo de apropriação que será feita sobre o espaço, como de fato aconteceu, e que o resultado pode ser um conflito, como aconteceu com os “usuários de crack”, um estranhamento como relataram seus vizinhos logo na sua chegada, uma negociação em torno do espaço como aconteceu junto aos proprietários, um campo irrestrito de possibilidades que virão como a doação pelo Projeto Emaús de uma casa após o desalojo, onde vivem atualmente, pelas rupturas e novas interações, dentro de outras condições, com uma nova dinâmica interna e do novo bairro que fica na periferia da cidade, longe das especulações imobiliárias e também dos equipamentos urbanos que utilizavam. A relação que estabeleci com o grupo foi sendo alterada, ao final receber a ligação de Gil me relatando as dificuldades que estavam enfrentando e também agradecendo a atenção que eu sempre dei ao okupa, me fez perceber que eles não me estranhavam tanto quanto eu pensei. Percebi que relativizar e ponderar sobre diversos temas e entre os que se destacam o modo de vida improvisado onde ninguém sabe como será até amanhecer o dia, se alguém virá invadir o espaço e você terá de sair, ou sobre as noções de limpeza e higienização que foi um aprendizado individual, além das relações estreitas de amizade, de confiança, os relatos de intimidades que não entram na pesquisa o convite para retornar e o desejo de uma boa viagem quando nos despedimos e encerrava minha jornada de pesquisa de campo, revelaram para mim um lição de relativismo cultural, por me mostrarem um mundo lúdico de protesto constante de uma juventude inquieta e informada. 117 CAPITULO 3 OKUPAR, RESISTIR E INSISTIR A luta é como círculo, pode começar em qualquer ponto. Movimentos sociais: pluralidade e intervenção para comunicação Ao observar a casa e me aproximar dos okupas, durante a coleta de diálogos, passei a participar minimamente da convivência coletiva e ter abertas as portas da casa. Mas isso não era o bastante, pois havia outro imperativo posto: pensar que ferramentas analíticas poderiam ser úteis e dariam conta de uma chave de leitura para compreender esse sujeito okupa, esse fenômeno urbano que tem atualizado o conceito de cidade como o lugar do saber que produzimos. Um saber legítimo, encarnado na prática intervencionista e no território fluído onde ação prática e reflexividade estão permeadas pela unidade coletiva, esta última, assentada numa ideia de futuro. Para uma comunidade que vive do instante, do praticável e, sobretudo, de fragmentos de cultura urbana. Uma combinação de valores e atitudes, alguns comuns, outros novos, práticas de movimentos anteriores, conexões com agendas de militância de outros movimentos, pautas atualizadas como discussões sobre medicina e anarquia, combinadas a uma economia verde e mobilidade urbana, até mesmo o cultivo de conhecimento sobre nanotecnologia e meios alternativos de comunicação. São frações desse contexto praticável onde não me propus a uma leitura unilateral desses interlocutores do universo okupa. Enfim, uma (re) invenção do social. (LIMA, 2009) Destarte, a medida que avançava em minha pesquisa de campo e procurava o ethos okupa na “gramática” (BOLTANSKI E CHIAPELLO: 2009) dos “Movimento Sociais”, me distanciava ainda mais dos meus interlocutores, pois a via que foi inicialmente escolhida por esse entendimento - conforme relatei logo no início desse trabalho - trazia a “Moradia” como a questão central que dava unidade ao grupo. Em certa medida, fazia todo sentido, uma vez que aqueles jovens apostavam num estilo de vida congruente com a coletividade, mas não necessariamente é a casa o lugar dessa 118 unidade coletiva. Dito de outro modo, a “materialidade” da casa é instantânea, ela tem validade, um prazo para terminar, e esse prazo encontra sua realização no desalojo. A rigor, a casa assume uma importância estratégica, exatamente para o encontro dos fluxos, dos corpos, que estão praticando a cidade e que fazem suas intervenções quase sempre móveis. Nesse cenário, me questionei sobre qual seria o valor da ksa para os okupas. E fui tomada por um sentimento de procura. Talvez por desatenção, procurava por uma linha do horizonte, como se quisesse encontrar a resposta para essa pergunta ao final da mesma linha. Mas o horizonte não tem fim e eu, certamente, só poderia apenas dar sentido ao que foi visto. É clara, agora, a chancela interpretativa sobre muitos sentidos, pois estou falando sempre de uma diversidade de sujeitos, numerosos moradores que entram e sai constantemente desse habitat. Este assume funções práticas de proporcionar abrigo aos moradores em passagem constante, que atravessam o mundo para viver de “instante em instante”. Com muitas variações, ao observar meus interlocutores durante os meses de novembro de 2011 a maio de 2012 55 , percebi o quanto essa cidade provoca ruídos e protestos. Pois nesse período houve muitas manifestações e ações coletivas entre diversos segmentos e grupos aos quais os okupas estavam conectados. Os protestos que envolveram o Acquário Ceará [“Não aos aquários de konformismo!” 56, “Não deixe que te devore, organize-se para resistir e lutar”]; a luta pela Humanização do Parto, a GIG Antivivisecção [“Em manifestação ao dia mundial contra testes em animais”, “Pelo fim da crueldade em nome da ciência”]; os protestos em defesa dos Presos Políticos; reciclagem [“Outro consumo é possível!” - comida, materiais plásticos, vidro, papel, resíduos humanos – compostagem]; autodidatismo e educação libertária; voto nulo [“Ação direta e liberdade! Existe política além do voto!”]; boicote a mídia [“Por uma outra comunicação”, “A mídia que explora, ilude, engana, oprime”]; demarcação das terras indígenas [“Belo monte de merda, monte fétido de agonia, monte de morte, belo money!”] e quilombolas [“Não as estradas da mortes”, “Não as usinas da desgraça”, “Não as refinarias de sangue”]. Enfim, uma vastidão de ações coletivas em que esses sujeitos se fizeram presentes. 55 Período em que estive morando em Fortaleza e pude realizar pesquisa etnográfica de forma mais intensa. 56 Essa fala está presente num cartaz que estava colado na parede-mural da okupa. Assim como as demais frases que seguem nesse parágrafo, essa é retirada de cartazes, zines, stencils, camisas serigrafadas na okupa e podem ser vistas em anexo. 119 E essas são algumas falas proeminentes do Movimento Okupa, entendido enquanto sujeito coletivo. Aquilo que faz parte das manifestações, o tom que se usa para protestar e mobilizar, além de demonstrar os diversos diálogos que esses okupas fazem com a cidade, privilegiando a questão do conflito com as autoridades ou com o sistema de valores vigente. Porém, ainda que haja uma certa intimidade nesse combate na selva de pedra que é a cidade, ele pode começar de qualquer lugar, a qualquer instante, pois a luta é como círculo, pode começar em qualquer ponto! A despeito desse quadro geral, o estudo etnográfico, dentre outras possibilidades, oferece visibilidade a microculturas juvenis. No caso particular da okupa, composta em sua maioria por jovens, nos permite conhecer e (porque não?!) participar da interlocução que essa juventude faz através de manifestações culturais, tendo a cidade como esse lugar que pode “proporcionar diversas possibilidades de apreensão, se articulada com outros elementos como cidade ou espaço urbano, etnicidade, corpo, gênero, classe social e até mesmo lazer e violência” (PEREIRA, 2007). A esperança encarnada pelos okupas era a de que a prática em comum das ações coletivas conjugada às habilidades técnicas utilizadas para articular tais ações (o uso de redes sociais para difundir as informações e acelerar o processo de comunicação) construíssem e fortalecessem parte do tecido social que unia os okupas e demais críticos ativos da sociedade. Mas que também alcançassem aquelas pessoas da sociedade civil que não estão necessariamente protestando. Assim, fazer uso do ambiente virtual permitia ao grupo rapidez na circulação da informação e uma fonte importante de articulação política, pois estar conectado significava, para a minha percepção, estar atualizado dos acontecimentos que circunscrevem a cidade. Desse modo, marcar um encontro na Praça de Fátima, na okupa, na universidade ou no Dragão do Mar reunia várias pessoas que não somente os okupas. Além disso, nem sempre a iniciativa desses encontros partia dos okupas, muitas vezes eles eram convidados ou avisados a respeito de um encontro do Grupo Pela Humanização do Parto na casa de Rose, ativista que eventualmente faz visitas a okupa para encontrar Ane ou Zeta e falar sobre o assunto. Nunca me chamaram para essa atividade, embora ouvisse os desabafos de Ane sobre como seria seu parto, como gostaria que fosse e como de fato aconteceu. Assim, este último capítulo investiga a expectativa coletiva e plural esboçada acima. Tentarei demonstrar de que modo a ação coletiva pode sugerir um comportamento horizontal. 120 E quando isso não parece possível, sobretudo, colocando em relevo os diálogos que os okupas fazem com a cidade. Compreendam bem o que estou chamando de “diálogos com a cidade”: os protestos coletivos, organizados entre os okupas e ativistas ligados a outros movimentos sociais, o tipo de comunicação utilizada pelo grupo (visual, escrita, oral), a relação face a face (com os vizinhos, a polícia, a justiça), e, não menos importante, a relação com a pesquisa e a pesquisadora. Não obstante, ao longo deste capítulo traço uma análise sobre os tipos de diálogos descritos à luz da Teoria dos Novos Movimentos Sociais (TNMS), articulando com as contribuições de nomes como Alain Touraine, Jürgen Habermas e Alberto Melucci, mas, sobretudo, destacando a Teoria do Reconhecimento proposta pelo filósofo alemão Axel Honneth. Gosto de pensar que a okupa traduz uma maneira atualizada de protesto sobre a cidade, que ela abriga uma dinâmica própria para sua manutenção, para sustentar as redes tecidas pelos seus praticantes junto a outros movimentos, um espaço de fluxos contínuos e intermináveis, que ultrapassam a concretude e sua estrutura física – afinal, as pessoas passam por lá com vários propósitos e talvez nunca voltem a passar. O fato de ter vivenciado a experiência coletiva de intervenção proposta por esse grupo já permite, sob a forma de memória coletiva arquivada no corpo, situações concretas do cotidiano, pois essas pessoas pertencem a grupos diferentes, tem outros interesses e também atribuem significados próprios àquela experiência a partir do seu sistema de valores. A experiência etnográfica experimentada na Okupa Squat Torém passou a representar uma possibilidade de articulações entre diferentes chaves analíticas que me parecem, à primeira vista, indefiníveis. Embora partam sempre do estudo das microculturas juvenis, entendido aqui como o estudo da diversidade cultural criada por adolescentes contemporâneos (VIANNA, 1997, p. 15). Por isso, falar de Movimentos Sociais, Ação Coletiva e Teoria do Reconhecimento me aproxima dos meus interlocutores pluriativistas, sem, e é importante frisar, engessa-los em nenhuma das categorias clássicas sobre Movimento Sociais. Desse modo, me sirvo desses referenciais de análise para articular possíveis sentidos do conteúdo complexo, ou melhor, da “teia de significados” (expressão de Clifford Geertz) que representa a okupa, motivada pelos diferentes usos que diversas meus “tecelões” ajudaram a criar ou resignificar. 121 Subcultura Defensiva e Pluriativismo Okupa Acompanhar Jon em sua obstinada caça as radiografias no lixo, trata-las e transformá- las em stencil, permitiu diminuir as lacunas entre pesquisadora e interlocutor, resultando num diálogo direto, claro e com resistências diminuídas. Um diálogo que me fazia pensar os diferentes nexos que os okupas fazem com grupos e lugares. Os viadutos, os pontos de ônibus, as paredes da universidade, a assembleia legislativa, o supermercado da esquina, a Praça de Fátima - todos, lugares que vi intervenções com stencil. Ao contrário de minha cidade de origem 57 , Fortaleza possui uma intervenção visual muito chocante, a cidade é riscada literalmente e talvez por perceber esses riscos me interessei em saber se vinham do mesmo lugar, e o que isso significa? Em campo numa terça-feira de novembro, encontro um dos meus interlocutores na rua, antes de entrar na ksa e converso com ele enquanto ele mexe no lixo das casas vizinhas, inicialmente fiquei conversando amenidades, perguntei quem estava na okupa, se tinha alguma novidade sobre o diálogo com os proprietários, enfim conversava enquanto observava o que ele fazia. Em princípio pensei que procurava por objetos que pudesse fazer malabares, ele está sempre demonstrando sua habilidade com os movimentos do corpo em jogar as coisas ao ar e agarrá-las. Nesse caso, não era para esse tipo de arte que Jon vasculhava o lixo em busca de material, mas buscava velhas radiografias que servem de molde para a prática do stencil. Diário de Campo, 22 de novembro de 2011. Diálogos com arte stencil. Converso com Jon enquanto ele desenha numa folha em branco o desenho que vai se transformar num stencil 58 . Ele pegou uma esponja de aço, água e sabão em barra, em seguida ele esfregou a folha de radigrafia coletada no lixo, para retirar a tinta, 57 Moro em Natal-RN, onde tive o primeiro contato com uma experiência okupa em 2005/2006, na Casa Viva. 58 Pintura criada a partir de um molde, técnica de pintura rápida e simples, promovendo a comunicação popular, o acesso e difusão da arte, facilitando ações diretas ou até atitudes socialmente reprováveis perante o sistema político hegemônico. Disponível em: Acesso em: 22 jan. 2012. 122 depois ele pôs para secar - na verdade são duas folhas, que ele colou pra ficar maior e poder fazer um stencil de grande formato - na janela da cozinha, com uma pedra sobre elas pra elas não voarem. Enquanto seca, ele faz o desenho... Eu me meto a conversar com ele... Falo sobre uns amigos de Natal-RN que fazem muitos stencils e que em outra oportunidade trarei fotografias para que ele veja como é a cena em Natal-RN, até que passo a falar sobre os okupas e no desenrolar de nosso diálogo tal okupa me revela sua imagem sobre a okupa: “A proposta da ocupação é de criar... na verdade são várias propostas né? Mas a princípio é criar um espaço autônomo que seja tanto de vivencia da ideia libertaria como também de difusão dessas ideias e aí nisso tem várias coisas né?! Essas coisas... tipo, que chama espaço cultural, contracultural, também é meio como ...”. Ele levanta a cabeça e os seus olhos se movimentam para o lado esquerdo, como se procurasse uma palavra ou uma ideia e continua: “O termo escola não é muito bom, porque o termo escola lembra aquela coisa tipo de professor e aluno, na verdade é uma grande oficina de trocas...”. Ele gesticula e abre os braços ao falar, encara-me nos olhos e diz: “De como se aprender a viver isso daqui”. Voltando a desenhar, ele continua: “Viver a vida. Uma vida que tem coerência com a vida de combate ao sistema, que pratica o combate ao sistema nas rupturas do dia-a-dia e também nas propostas que tem assim né?! Mais ou menos isso a proposta do espaço”. 123 Desse modo, quando Jon me diz “A proposta da ocupação é de criar... Na verdade são várias propostas né?” ele me faz perceber que as mobilizações do movimento okupa passam por várias mobilizações exteriores a casa, refletindo várias reivindicações, não apenas a moradia. O Movimento Okupa, não aparece apenas como um espaço singular à Rua Dom Sebastião Leme, ele aparecia até quando eu não estava lá, o que refletiu para mim um dos diversos “modos de fazer” (CERTEAU, 1990) particular aos okupas com modos de interação distintos. Ao contrário do que acontece habitualmente, ainda que perseguisse meu objeto, eu era surpreendida por ele no meu cotidiano alheio a casa, foi assim que passei a perceber a okupa como o lugar dos encontros, o lugar dos movimentos ou das mobilizações urbanas atualizadas, deste recorte espacial. A comunicação através do stencil, as redes sociais virtuais (Facebook e Orkut), os diversos modos de okupar a cidade são exemplos dos fluxos nos quais se insere o sujeito okupa, fluxos que remetem a juventude, aos movimentos e mobilidade, a relação pretendida com a cidade e o urbano. A Okupa Squat Torém é um fenômeno desses praticantes da cidade, que veem o stencil, zines, GIG, música, malabares, mangueio como instrumentos de intervenção em bairros de grande interesse imobiliário, com suas casas abandonadas e esquecidas que tem alto potencial econômico baseado na escassez de moradias da população baixa renda, segundo Eder (2002) uma importante função dos Movimentos Sociais é a comunicação de problemas na sociedade, ou seja, o Movimento Social atualiza a sociedade sobre diversos problemas que não estão visíveis na esfera pública e que, portanto não são objetos de problematização e debate na sociedade, a GIG empiricamente expressa essa função de comunicação, dar visibilidade a uma série de problemas como o racismo, gênero, emancipação humana e animal, etnicidade como já mencionei anteriormente, não se trata de uma revolução, mas de uma função de comunicação entre os interventores - okupas e a sociedade, que não tem pautas fixas, mas sempre renovadas como a pauta sobre o racismo contra os Povos Indígenas. 124 Figura 13: Cartaz GIG No canto esquerdo inferior da imagem acima podemos observar as pautas comuns já mencionadas anteriormente: movimento anarquista, ciclovida (uso de bicicletas e construção de ciclovias nas grandes cidades como mobilidade alternativa), contra os movimentos skinheads – Oi!59, luta pela emancipação animal (antivivisecção) e o próprio movimento okupa. São pautas constantes e renovadas, mas os modos de fazer (CERTEAU, 1994) mobilização é que são diferentes, são expressamente lúdicos, improvisados, o stencil, a camisa serigrafada na hora do encontro na praça, a bicicletada nas ruas em favor da construção de ciclovias ou contra a construção do Acquário Ceará, a venda de comida vegana como meio de oferecer uma alternativa saudável para alimentação, a apresentação de malabaristas punks nos semáforos para dar visibilidade ao movimento anarcopunk e okupa e também garantir o custeio de suas atividades, a produção de vídeos e músicas independentes sobre todos esses assuntos disponibilizados em blogs e youtube, a construção de perfis nas redes sociais para divulgar atividades e acelerar a informação auxiliando nas articulações para essas ações na rua. Nesse caso específico nós estamos diante de formas de mobilização diferenciadas, criativas, inventivas, plurais, acessíveis, comunicativas esse aspecto lúdico de protesto é a tônica desse movimento. 59 O termo Oi! foi originado no início da década de 1980 pelo jornalista britânico Garry Bushell para designar o street-punk, termo esse retirado da música dos Cockney Rejects "Oi! Oi! Oi!". Porém, a subcultura já existia desde o final dos anos 1970, liderada por diversas bandas. A palavra oi! na gíria cockney, tem o mesmo significado da saudação oi! em português. O streetpunk/Oi! foi associado ao fascismo e ao neonazismo, pois skinheads neonazistas ouviam esse tipo de som e iam aos shows. Sobre o que significa ser Oi, ver:< http://skinheadsceara.blogspot.com.br/2009/05/street-punk-oi-o-som-feito- pela.html >, < http://pt.wikipedia.org/wiki/Oi!_(g%C3%AAnero_musical) >, acesso em 01 nov. 2012. 125 O estudo desse caso específico, a okupa acaba lançando luz para pensar teoricamente a temática de diferentes ações coletivas, de sujeitos no campo político, construção dos processos de mobilização, movimentos sociais de maneira mais ampla. Assim, em relação a discussão sobre a teoria dos movimentos sociais considero importante fazer uma pequena digressão acerca do curso do debate nas Ciências Sociais. O termo movimentos sociais foi cunhado nos anos 1960, no Ocidente, para designar um grupo de pessoas que reivindicavam mudanças pacíficas, sem interesse pelo poder do Estado, ao contrário da teoria revolucionária, cujas reivindicações eram por uma redistribuição de riqueza e a chegada do movimento operário ao poder. A chamada “era clássica dos movimentos sociais” caracteriza o período entre os anos 1930 até os anos 1960 como um momento do aparecimento das “teorias da desmobilização política”, estas, segundo Alonso (2009), encabeçadas por autores como Theodor Adorno e Riesman. Tais autores acreditavam que a sociedade moderna havia produzido indivíduos preocupados com a autossatisfação e pouco interessados na política. A mobilização coletiva era vista sob as lentes psicossociais, cuja explicação se dá através da correlação entre a estrutura de personalidade e estrutura de sociedade, isto é, nesse contexto o individualismo exagerado da sociedade moderna operava via consumo, dessa maneira a mobilização era vista como uma frustração a demandas individuais, contexto esse que servia ao crescente regime totalitário à época (ALONSO, 2009, p.50). Entretanto é também na década de 60 que eclodem mobilizações na Europa. Contrariando alguns teóricos que apostavam em traços da revolução e um novo fôlego do movimento operário, tais mobilizações não se baseavam em classes, mas na luta pelos direitos civis através das demandas étnicas, de gênero com o feminismo e de estilo vida com o ambientalismo, por exemplo. 60 Esses movimentos não estavam propriamente interessados na tomada de poder de Estado. Na verdade, tratava-se de mobilizações organizadas e solidarias de milhares de pessoas que não poderiam ser encaixadas no marxismo ou no funcionalismo do século XX. Eram movimentos protagonizados por jovens, mulheres, estudantes, frações da classe média, não proletária, todos em grande medida, caracterizados por demandas “pós- materiais” (INGLEHART, 1971 apud ALONSO, 2009, p. 51), isto é, qualidade de vida para vivê-la e de uma diversidade de estilos reconhecidos, combinados a novas formas de ação política e mudanças na cultura. Ao contrário de uma tomada de poder do Estado, essas 60 É também nesse contexto que aparecem os movimentos contraculturais, como o Movimento Okupa, tema de interesse dessa pesquisa. 126 demandas vinham dos movimentos, múltiplos e polifônicos, demandas de ordem dos movimentos sociais. (Ibid, p.51) A partir dos anos de 1970, após essa mudança na estrutura de mobilização, cuja demanda atendia a uma nova agenda de reivindicações as teorias necessárias para explicar tal fenômeno também apareceriam. A respeito disso, Alonso (2009) destaca o surgimento de três matrizes teóricas sobre os movimentos sociais. A primeira delas é conhecida como a Teoria da Mobilização de Recursos (TMR). Em seu foco de análise, o agir político estava vinculado a uma racionalidade, onde a mobilização coletiva seria possível apenas através de recursos materiais, humanos e de organização, a partir da criação de associações que permitiriam uma base para organização desses movimentos sociais. Tal teoria utilizou a “firma” como uma analogia para definir os movimentos sociais. Embora viável para pensarmos uma organização não-governamental, dificilmente seria útil para um estudo de caso de uma ocupação anarco-punk, principalmente por ela não possuir tais características de burocratização tão amplamente pensadas por McCarthy e Zald. (ALONSO, 2009, p.51) Além disso, tal teoria aponta para os movimentos sociais como um fenômeno social, dispondo de características semelhantes aos partidos políticos, dando relevo a organização e a racionalidade frente a valores e ideologias na mobilização coletiva, realizando uma análise conjuntural sem considerar os vínculos entre os movimentos sociais macroestruturais ou situá- los em processo mais longos. Alonso (2009) destaca o aparecimento de mais duas teorias sobre os movimentos sociais: Teoria do Processo Político (TPP) e a Teoria dos Novos Movimentos Sociais (TNMS). Ambas as teorias tem em comum a construção de explicações macro-históricas para o fenômeno. A primeira (TPP) investindo numa reflexão pautada na teoria da mobilização política enquanto a segunda (TNMS) esculpe uma teoria da mudança cultural como explicação para os movimentos sociais. Em comum, as duas teorias dos movimentos sociais desconsideram a ideia de um sujeito histórico universal e, sobretudo, a possibilidade de tal fenômeno assentar-se sobre as bases marxistas de uma revolução. A Teoria do Processo Político, encabeçada por Charles Tilly (1975), de acordo com Alonso (2009), preocupou-se em descobrir quais mecanismos organizam os processos políticos através da comparação entre eles. Após realizar análises sobre o movimento 127 revolucionário na França e os movimentos por reforma na Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX, Tilly (1975) propõe-se a problematizar os debates sobre a revolução, algo que pudesse ajudá-lo a refletir sobre o fenômeno em voga: as mobilizações coletivas. Como consequência, o autor argumenta que tanto as elites quanto os movimentos populares são racionais e possuem uma lógica comum, cuja distinção se faz via grau de organização e do uso ou não da violência, estando ambos na mesma classe de fenômenos. Para Tilly (1975) é preciso haver um cenário que favoreça a mobilização coletiva, onde a solidariedade é combinada a “estruturas de mobilização”, isto é, a dispor de oportunidades favoráveis, disponibilidade de recursos materiais delimita as possibilidades de escolha dos agentes. O que Tilly (1975) define para nós como movimentos sociais trata-se de uma “ação contenciosa” que “envolve demandas mútuas entre aqueles que chamados desafiantes” (aqueles que buscam acesso ao governo, ou pelo menos aos recursos que são controlados por ele) e os “detentores de poder” (que dispõe do controle e do acesso ao poder e gere a população). Logo, o Estado nacional e os movimentos sociais são considerados por tal autor como “formas” de ação coletiva, não “atores”, dado o fato de que os movimentos sociais são considerados uma invenção do ocidental consequência da Formação do Estado nacional que serviu para fortalecimento do parlamento ao nacionalizar as decisões políticas abrindo oportunidades para o surgimento de ações para-parlamentares, cujo objetivo seria de influenciar as decisões parlamentares. Assim, os movimentos sociais seriam a expressão da reivindicação que surgia como possibilidade expandir seus direitos e acessar os recursos controlados pelo governo. O autor observa tais mobilizações no contexto inglês e alemão e a partir deles cria o que ele chama de repertório, que seria “um conjunto limitado de rotinas que são apreendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha (TILLY, 1995, p. 26). Tal categoria assume importância pois através dela os agentes, no processo de luta, poderiam escolher dentre as maneiras de interação que compunham seu repertório a que melhor se adequaria a sua reivindicação. A TPP, nesse contexto explica a ação coletiva a partir da estrutura do conflito, dando relevo ao espaço que a cultura assume entre os atores opostos, porém seu limite está nas variações que ocorrem no interior de um mesma conjuntura, isto é, descrevendo melhor os processos com características culturais de longa duração. 128 Saindo do contexto europeu e voltando-se para a América a TPP teve bastante sucesso nos Estados Unidos, na América Latina nem tanto. Para essa pesquisa interessa com maior afinco são as teorias de Alain Touraine, Jürgen Habermans e Alberto Melucci enquanto principais referências contemporâneas para o estudo dos Novos Movimentos Sociais – TNMS, pois vem contribuir numa interpretação cultural para os Movimentos Sociais. Todas essas matrizes teóricas dos Movimentos Sociais carregam a crítica quanto ao marxismo, ao compartilhar, segundo Alonso (2009), o enquadramento marco-histórico que explicaria uma mudança estrutural que teria como consequência uma alteração no capitalismo, cujos protagonistas não seriam mais a produção industrial e o trabalho, mas novos agentes, temas e novas mobilizações coletivas. Touraine (1983) ajuda a entender os okupas através da chave de leitura que me permite percebê-los enquanto “movimento social novo”, preocupado em democratização social no âmbito de um projeto cultural, onde a nova configuração demanda uma "uma mudança cultural de longa duração gerida e sediada no âmbito da sociedade civil”, isto é, uma mudança cultural que não é construída no plano das leis, mas uma mudança cultural dos costumes, atuando como agentes que modificam a sociedade ao gerar novas orientações de valores. Mas do que uma ação coletiva, os okupas enquanto coletivo, embora se aproxime do conceito de Movimentos Sociais, o movimento não é de classe ele vai além da classe propõe uma democratização utilizando, sobretudo as novas tecnologias da informação e da comunicação para comunicar seus protestos, considerando suas expressões culturais como meios de praticar a intervenção urbana e agir sobre a cidade, isto é, mas do que uma ação coletiva, embora também se aproxime dos Movimentos Sociais, creio que essas características sobre o modo de fazer protesto descrito em parágrafos anteriores e sobre a praticar de dialógica entre okupas e sociedade civil fazem desse movimento um substantivo plural de intervenções, considerando aqui todas as nuances que tem a okupa. 129 Assim, a ênfase dada por Touraine sobre os Movimento Sociais é cultural, cujos atores não querem tomar o poder, eles querem gerar mudança na própria sociedade civil, é uma característica que encontrei nos okupas. Entretanto um leitor mais atento desse autor poderá me indagar: Mas não é Touraine quem vai dizer que esses Movimentos não atuam em combate ao Estado? Sendo assim, os okupas são anarquistas, cuja prática e estilo de vida são em contrapartida ao que o Estado representa, então tem um problema com essa teoria como chave explicativa, pois meus interlocutores estão postos em busca de uma nova orientação valorativa para a sociedade, porém ainda protestando contra o Estado e todo seu sistema de valores [Viver a vida. Uma vida que tem coerência com a vida de combate ao sistema, que pratica o combate ao sistema nas rupturas do dia-a-dia - Jon]. Outras questões colocadas no âmbito das ações coletivas, ou dos Movimentos Sociais partiram de Alonso (2003), Melucci (1980) assim como Touraine (1983) e Habermas (1987) que classificam a sociedade contemporânea de pós-industrial, complexa cujos mundos público e privado interpenetram-se, entretanto para Melucci (1980) essa sociedade pós-industrial ou sociedade da informação desenvolve outro padrão de dominação que é fundado na produção e controle das informações, bem como na intervenção nas relações sociais, exercido através da ciência e tecnocracia. Isto é, a distinção entre as esferas público e privada desaparece a tal ponto que permite transformar as relações interpessoais em novos conflitos. Assim, o conflito deixa de assumir centralidade no mundo do trabalho para ser deslocado para o corpo e para o que ele chama “utopia regressiva com forte componente religioso” (MELUCCI, 1980). Na sociedade complexa, o corpo como referência que conecta a outras coisas assume o protagonismo e objeto de interesse nesse caso é o trato sobre o padrão, o objeto da moda, do consumo e principalmente científico, medicalizado, por isso é visto como o lugar que carrega o protesto, o lugar do respeito e, sobretudo o ícone da liberdade e respeito. Tal perspectiva provoca a aparição de movimentos interessados em reivindicar o lugar desse corpo como parte da natureza, a exemplo disso cita “movimentos de mulheres, gays, jovens, o Figura 14: Cartaz Mídia 1 Figura 14: Cartaz MídiaF 130 ambientalista e o da contracultura” (MELUCCI, 1989), não é a toa que a estética punk é algo expressivo e contracultural, pois é algo se coloca como outra estética 61 , desconstruída dos padrões e valores da sociedade vigente. O corpo é pensado como uma zona de conflito, objeto de disputas sociais. De um lado a ciência e do outro os movimentos que insistem em tomá-lo como parte da natureza. O corpo assume uma arena de disputas entre formas opostas de atribuição de sentido ao mesmo. As correntes medicalizada e de moda (consumo) não são as únicas, mas surge uma tentativa de rompimento com esses padrões que operam sobre o corpo asséptico. Novas formas de resistência que situa o corpo como o seu lugar de disputa, de protesto e de existência humana, o lugar de sua narrativa, de seu conflito e de suas marcas contra-estéticas assépticas, a contracultura do corpo, tendo à tatuagem, contra o consumo de drogas, fazendo uso da body modification 62 , são exemplos dos novos meios de protesto. Ainda em contexto de pesquisa encontrei em feiras, outros sujeitos que participavam desse movimento okupa, mas que carregam as marcas da body modification, percebia mais uma vez que na okupa cabe tudo, seu fluxo é constante e um processo importante de manutenção das redes sociais - sempre em construção constante, mostrando a existência do movimento além da casa, no lugar dos encontros dentro ou fora da ksa, o lugar dos fluxos e do movimento okupa é um lugar multissituado relacionado aos processos de globalização, aquilo que Marcus (2009) situa sobre os processos etnográficos que considero pertinente a esse contexto pesquisado, pois: Na verdade, isso implica a construção do trabalho de campo como um imaginário simbólico social com certas relações colocadas entre coisas, pessoas, eventos, lugares e artefatos culturais, e um itinerário literalmente multissituado, à medida que um campo de movimento emerge na construção de tal imaginário. O trabalho de campo opera dentro desse imaginário, trazendo, em justaposição, lugares que demonstram algumas conexões ou relações e o significado cultural que levam sobre um mundo ou mundos em mudança. (MARCUS, 2009, p.20). Em relação às novas formas desse agir no movimento o que é proeminente para Melucci (1989) assim como para Gilberto Velho (1989) e que Marcus (2009) me permite situar é o fato de que a juventude é um processo criativo, nesse caso observando o corpo desse sujeito que assume o outdoor do protesto. O corpo é riscado, pintado, carrega botões, pircings, 61 Sobre a indumentária punk e a estética, ver Caiafa (1985). 62 Sobre estética e modificação corporal, ver dissertação de Manguinho (2012). 131 alargadores, moicanos, tatuagens, roupas estilizadas e anulam-se as marcas do que é “belo” buscando a androginia. Esse corpo das microjuventudes urbanas permite construir “um mito global de renascimento”, situado contra ao racionalismo buscando um integralismo que seja comunitário, político, religioso, místico-ascético, contra as hierarquias e os diferentes produtos da sociedade complexa. Para Melucci os movimentos sociais assumem formas particularistas de resistência que são produto de uma reação ao desenvolvimento socioeconômico buscando, sobretudo uma reapropriação de tempo, espaço e relações cotidianas, cujas motivações são de ordem simbólica em busca do reconhecimento de suas identidades coletivas. Tanto Habermas (1981) quanto Touraine (1983) falam de uma nova identidade social dos novos movimentos sociais, porém Melucci é quem vai construir uma teoria da identidade coletiva, pois ele, assim como Tilly, entende que os movimentos sociais são uma forma de ação coletiva não um agente, com isso ele cria uma nova teoria psicossocial da ação coletiva. Tal teoria ao dar relevo aos mecanismos micro e mesossociológicos para compreender as formas de ação política, abandona as explicações psicológicas, que se apoiavam na irracionalidade das massas, bem como a macroexplicação, cujas condições comuns determinariam o comportamento dos atores. Para ele um ator coletivo é formado a medida que se comunica, produz negocia significados, fazendo uma avaliação e reconhecendo ou não o que tem em comum, tomar uma decisão de envolvimento coletivo, isto é: A identidade coletiva é uma definição interativa e compartilhada, produzida por numerosos indivíduos e relativa às orientações da ação e ao campo de oportunidades e constrangimentos no qual a ação acontece (MELUCCI, 1988, p. 342). E continua, Indivíduos agindo coletivamente ‘constroem’ suas ações por meio de investimentos ‘organizados’; isto é, eles definem em termos cognitivos o campo de possibilidades e limites que percebem, enquanto, ao mesmo tempo, ativam suas relações de modo a dar sentido ao seu ‘estar junto’ e aos fins que perseguem (MELUCCI, 1988, p. 342). 132 Dito de outro modo, essa permanente negociação e a redefinição de orientação sobre os fins, os meios e o ambiente da ação é o que torna esse “nós” possível. Porém não excluindo as lideranças e a organização como o modo de manter tais orientações estáveis. Melucci vai analisar a ação coletiva considerando racionalidade e emoção como os combustíveis que tornam um cidadão comum um ativista. Considero que as três matrizes teóricas sobre os Novos Movimentos Sociais oferecem boas pistas analíticas para desdobrar minhas explicações sobre o campo empírico observado por mim. Na teoria habermasiana responde de forma clara às questões iniciais de minha pesquisa, as hipóteses que levantei para pensar a construção social da Okupa. Touraine deixa escapar a dimensão combativa frente ao Estado movida pelos novos movimentos sociais, colocando-os ingenuamente como portadores de uma reivindicação situada nas formas expressivistas, somente. Durante minhas observações, sobretudo, nas falas dos meus interlocutores percebi que não caberia, situar tal análise nessa teoria de forma unilateral, pois os okupas são também anarcopunks, isso significa, portadores de uma atitude contestatória frente ao Estado, contra o sistema. Melucci por outro lado, oferece uma teoria da identidade coletiva, traçando uma linha de análise que avança em termos de uma explicação que toma a racionalidade e a emoção como chave explicativa para a mobilização coletiva, superando Touraine, mas ao dizer “liderança e organização surgem como formas de manter estáveis as orientações comuns aos atores no seu ambiente de ação”, afasta sua teoria na medida em que se traduz um caráter estático que não condiz com o substrato dessa identidade coletiva okupa que acompanha os fluxos da cidade, que passeia entre o local e o global para meus interlocutores, isto é, ele não considera a cultura em seu processo constante de mudança e reinvenção. Observo que essas categorias que Melucci mobiliza, e o meu entendimento sobre o que conceitua o ator coletivo, está engessada e me fez refletir sobre as Organizações Não Governamentais, isto é, que possui uma estrutura organizacional com uma liderança e que mantém certa estabilidade no campo das relações que estabelece para negociar seus interesses comuns ao grupo com outros agentes da sociedade. Porém, se tratando de movimentos com indexação anarquista o estático não oferece a chave de leitura adequada para analisar as diferentes posições no espaço social que 133 correspondem aos estilos de vida, sistemas simbólicos, códigos morais subversivos, tendo em Habermas a teoria que vai me servir de modo mais adequado. Esteja claro, aos leitores que não me proponho a fazer uma leitura unilateral de nenhuma dessas teorias, como venho delineando ao longo deste capítulo, tenho procurado estabelecer o que cada teoria sobre os Novos Movimentos Sociais e suas diferentes propostas de análise, pode contribuir para um entendimento apurado sobre o contexto complexo que envolve a okupa, distinguindo o que pode ser aplicado para uma análise do conteúdo etnográfico coletado. A juventude enquanto categoria analítica me permite relativizar sobre o que é quando é possível falar em Movimentos Sociais referindo aos sujeitos dessa pesquisa, que praticam inúmeras intervenções já descritas anteriormente na sua cidade, que se conectam com os Movimentos Quilombola, Indígena, Feminista, Presos Políticos, Vegano e tantos outros já mencionados ao longo desse capítulo. Touraine e Melucci assim como Habermas confluem sobre a especificidade dos movimentos sociais da segunda metade do século XX, considerando que as fronteiras entre público e privado estão sendo borradas e apontam sentidos interessantes, onde os sujeitos políticos assumem uma identidade sobre as bases intersubjetivas e dessa maneira constroem uma nova zona de conflito que está ancorada na democratização de sua afirmação de valores e da produção de novas identidades. Posto isso, interessa ainda dar relevo ao venho que pronunciando sobre esses sujeitos, quando digo que não correspondem a um grande coletivo, mas um grupo organizado em torno de suas práticas de vida coletivas compartilhadas em busca de ideais de uma boa vida. Desse modo, é curioso perceber os diferentes impulsos propulsores desses sujeitos, ou seja, o que significa ter nesse grupo um plural de mobilizações em torno de variadas demandas simbólicas, que utilizam a ação direta, porém com relativa paz gerida pela autonomia de seus sujeitos que os permitem ocuparem aquele espaço da vida intermediária, lugar em que o público e privado tem suas fronteiras borradas, lugares praticados como descrito de forma poética por Certeau (1994) ou zonas autônomas temporárias ocupadas clandestinamente como dito por Hakim Bay (1990). São espaços fluídos, o que chamo espaços do instante onde o pluriativismo se expressa, por onde os sujeitos atribuem sentidos ao que lhe cerca ao que lhe falta, ao que considera sua disposição para o enfrentamento 134 constante, em busca de um reconhecimento de sua estima social, de suas identidades plurais, de sua forma de existência e porque não dizer de seus modos de vida. Não é apenas na vida doméstica, ou no que chamei anteriormente de tempo interno da ksa (capitulo 2) que esses okupas discutem sobre sua vida, que fazem suas manifestações artísticas, que vivem sua vida íntima em coletivo, o mais admirável para mim durante essa pesquisa foi perceber que esse espaço do instante pode estar situado num endereço qualquer, mas volto a dizer, está naquilo que caracteriza a subjetividade humana, o lugar onde as ideias ganham sentido ou existência, por onde esses okupas protestam, esse espaço do instante é também e em primeiro plano o seu próprio corpo. A ksa é uma via por onde passa essa expressão coletiva, um lugar dos encontros desses corpos em trânsito, um lugar de passagem e um trampolim para sua atividade política, um lugar estratégico de organização e conquista de espaço, não no sentido instrumental de posse, mas de um lugar ocupado, onde as relações me parecem horizontais e as hierarquias embora apareçam em algumas situações como na situação de minha entrada na okupa para fazer pesquisa, foi decisiva e imprescindível a postura de Ane que era a favor e colaborou quanto a de Gil, que era contra e passou já chagando ao fim da observação a apoiar, embora jamais permitissem entrevistas gravadas. Para Habermas (1987) a expansão do capitalismo gera um novo padrão de mobilização coletiva empenhada em uma nova luta: a procura dos ideais de boa vida. Isto é, a busca de outra forma de gestão da vida, isso não significa uma luta por redistribuição, mas um deslocamento para uma “nova zona de conflito”, onde esses novos movimentos sociais estão movidos por uma forma de resistência aos processos de globalização, normatização e padronização da vida coletiva via expansão das novas tecnologias de informação e comunicação que produzem uma sociedade padrão. Disso resulta a difícil tarefa de viabilizar a universalização democrática das posições de interesse e uma justificação universalista das normas já sob o limiar dos aparelhos partidários autonomizados em grandes organizações e que por assim dizer migraram no interior do sistema político. Um pluralismo surgido naturalmente de subculturas defensivas, resultado apenas da desobediência espontânea, teria de desenvolver-se ao largo das normas da igualdade civil. Resultaria então apenas uma esfera que dispor-se-ia especularmente diante das cinzentas zonas neocorporativas (HABERMAS, 1987, p.112). Dito de outro modo, os novos movimentos sociais reativos as “situações-problemas”, reagem através do que ele chama “subculturas defensivas” que se formam a partir de dois 135 tópicos: o primeiro refere-se aos green problems significa que essas “subculturas defensivas” reagem diante de alguns problemas sociais visto por elas como os efeitos da poluição, os efeitos perversos da urbanização, da crescente experiência com animais para produção de cosméticos e remédios ou como efeitos do desenvolvimento capitalista. O segundo situa-se em relação aos problemas da sociedade complexa, na qual estamos inseridos, os principais problemas enxergados por atores desse novo movimento social são os “riscos invisíveis”, esse termo é utilizado por Habermas (1981) para se referir aos riscos potenciais no que se refere a usinas nucleares, poder militar, manipulação genética, controle e uso de informações pessoais, caracterizando o que ele chamou over-complexity. Reativo a essa expansão da vida padronizada, os novos movimentos sociais, tornam-se “subculturas defensivas” que demandam por qualidade de vida, equidade, realização social, participação, direitos humanos (HABERMAS, 1981, p. 33). Em argumentos empíricos temos os okupas desse contexto de pesquisa, cujo estilo de vida autogerido, libertário e expressivista contempla o uso da teoria Habermasiana para nossa análise. Os sujeitos okupas criam um ambiente lúdico de sua expressão. Através de suas práticas (mencionadas anteriormente) de vivência cotidiana e de intervenções diretas sobre a cidade, ao processo com o qual constroem um estilo de vida libertário que seja adequado ao ambiente físico degradado. Carregam no corpo a sua luta diária por autenticidade, combinando suas ações coletivas praticadas no espaço público com as demandas de outros Movimentos Sociais que também insuflam suas demandas. Em campo percebi que ser okupa significa ser pluriativo, isto é, okupas são indivíduos que participam e aderem a várias demandas sociais, que combinam suas vidas com a agenda política dos Movimentos Sociais dos quais fazem parte, embora não tomem essa agenda como o guia diário de suas ações, mas como um mural de opções e lugares para a vivência do seu pertencimento, da construção de suas narrativas individuais, das suas atitudes posicionadas em busca de sua emancipação. Assim o sujeito okupa foge as práticas disciplinadoras do espaço urbano, e permite que a astúcia combinada à subversão tornem o ambiente urbano, apropriado por ele, o palco de sua intervenção, o lugar onde as suas reivindicações políticas aparecem a fim de terem seu espaço praticado permitido e sua estima social alcançada. Considerando a Teoria dos Novos Movimentos Sociais a partir de Habermas (1981) apresento minhas referências empíricas para situar o que estou classificando de “pluriativo” em relação aos meus interlocutores. Para isso abro dois tópicos seguintes, o primeiro tópico 136 apresenta as demandas dos okupas em relação aos green problems e o segundo apresenta as demandas desses interlocutores sobre os over-complexity. Para entender melhor o que dar sentido ao conceito de autonomia do grupo é preciso considerar as demandas comuns a ele e as formas alternativas que esses okupas criaram em reação aos green problems. Por exemplo, em relação aos remédios, é comum entre eles um saber apurado sobre os benefícios da medicina natural, conhecem plantas medicinais e com isso organizam um espaço destinado a reserva desses medicamentos, como a produção de lambedor, xarope, chás que na maioria dos casos utilizados de forma preventiva. Isso é um modo independente de manipular o consumo de alimentos que possa favorecer a prevenção de determinadas doenças e mesmo de fortalecer o sistema imunológico, como Ane já me relatou ao falar do ambiente inóspito da okupa para receber a pequena Folha recém-nascida, até mesmo as vacinas que ela prefere não permitir que injetem na sua filha, é uma atitude contestatória diante dos benefícios ou malefícios que a ingestão de medicamentos da indústria farmacêutica produz na concepção de qualidade de vida e saúde para ela. Para Ane “medicina e anarquia andam de mão dadas”, não é necessário vacinação, pois a vacina é um medicamento venoso a saúde de um ser humano. Isso me tomou a curiosidade, pois em meio ao caos urbano, ao ambiente coletivo que um ser humano está exposto diariamente, as vacinas propõem inibir as doenças, mas para minha interlocutora “se você combinar uma vida saudável, uma vida como a nossa, onde a gente não come coisas industrializadas, mas fazemos refeições de alimentos naturais longe de agrotóxicos, de conservantes, de condimentos artificiais, podemos ter uma boa saúde de forma que não é preciso vacina para nos manter saudáveis”, ou seja, “é tudo uma questão de escolha, eu escolhi viver sem aderir a essa indústria farmacêutica que escraviza os animais em nome de nossa saúde, contraditório não acha? Se tratam animais assim, porque iriam tratar da gente de forma diferente?”, eu pouco falei de tão perplexa que fiquei diante de seus argumentos, pois de alguma maneira eles faziam sentido também para mim. Ela continuou, mostrou-me apontando através da janela do primeiro andar todas as plantas que ela conhecia e que tinham “poder curativo”, argumentou ainda dizendo “de onde você acha que vem a medicina, ou os remédios? Do mato, dos saberes dos povos indígenas, dos nossos ancestrais”. Claro, que fazia sentido ouvi-la, mas senti que precisava contestá-la, tomei, por exemplo, a vacina contra 137 a Poliomielite 63 , pois ela previne o vírus que pode causar paralisia infantil e questionei a Ane que tipo de vida saudável poderia impedir uma contaminação viral. De imediato, ela se mostrou avessa e me respondeu dizendo que a mãe e a irmã dela haviam vacinado a menina sem que ela soubesse, mas não sabia que Folha havia sido vacinada, ela já tinha me dito anteriormente que não vacinaria a criança. Mas enquanto ela deixou Torena na casa dos pais, num dia qualquer, no intervalo em que esteve fora, vacinaram a menina. Porém, insisti na questão, pois se havia a chance de não vacinar, então como prevenir efeitos de doenças virais? Um desafio à medicina alternativa que ela estava propondo. Ane com muita atenção e na sua infinita paciência comigo, me respondeu: os nossos ancestrais indígenas não tinham que ir ao médico, ou tinham? (sorriu). O fato é que a menina Folha foi vacinada, embora as circunstâncias tenham agradado ou não os seus pais, as respostas as minhas questões quanto a prevenção da Poliomielite pôs Ane a pensar de tal forma que na semana seguinte ela me apresentou uma série de recortes de jornais, revistas, algo parecido com um álbum, onde ela guarda todo tipo de receita sobre o uso preventivo de plantas medicinais, mas mostrou-me com mais detalhes a fotografia de uma família que mora num assentamento há setenta quilômetros de Fortaleza chamado Pentecostes, que vivem numa comunidade libertária e que parte das crianças que estavam na foto já haviam crescido e mais, disse-me “nenhuma delas foi vacinada, nem afetada pelo vírus da Pólio”. Dei por encerrado o assunto, acreditei naquele momento que poderia ser desconfortável discutir se a vacinação ou não de uma pessoa poderia ser lesivo ao seu corpo e me colocaria numa situação mais tensa com quem sempre se mostrou mais receptiva a minha presença na casa. Nesse momento em particular senti como se estivesse realmente sendo invasiva, atrevida e muito intrometida, mas sentia-me também motivada a agir dessa forma questionadora, pois julguei “irresponsável” privar a criança da vacina, não consegui relativizar os valores que essa mãe colocava a mim como confissão. Era árduo estar com aquele bebê nos braços e pensar que ele poderia sofrer por causa de uma privação, por motivo político e ideológico. Honestamente, refleti sobre isso por várias noites, pesquisei sobre os índices de crianças afetadas pelo vírus atualmente, descobrindo que o último caso ocorreu em 63 Trata-se de uma doença viral que pode causar a paralisia infantil. Maiores informações ver: < http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/gve_7ed_web_atual_poliomielite.pdf> 138 1989 e que a erradicação da poliomielite no Brasil ocorreu em 1993, com certeza me custaram boas noites de sono a míngua, até a descoberta da sua erradicação. Figura 15: Cartaz Medicina e Anarquia. Esse cartaz enviado por um coletivo paulista para Ane, como um convite e também para divulgar as práticas da medicina tradicional entre os anarquistas do Ceará. Significa que essas ideias são frutos de debates apurados em outros coletivos libertários, que Ane já detinha algum conhecimento sobre a medicina anarquista antes de decidir por não vacinar sua filha. As demandas e as novas formas de mobilização Em relação ao consumo de alimentos, o grupo vegano cultivava uma horta comunitária e faz uso da coleta em feiras livres, reaproveitando os alimentos que seriam jogados no lixo. Essa alternativa alimentar também carrega uma preocupação com o desperdício e também por isso estão na sua agenda as atividades que discutem a emancipação animal e também humana, não só as alternativas de ingestão alimentar mas aquelas atividades de protesto em contrapartida as formas de consumo de animais para alimentação, para produção de roupas, 139 sapatos, medicamentos e muito evidente o consumo cultural das práticas de exibição da violência com animais, como por exemplo a vivissecção e as vaquejadas. Figura Figura 16: Mapa de cartazes da okupa. 140 Nota-se tanto nas falas quanto nas telas que caracterizam suas roupas, nos panfletos e nos zines, sobretudo nos cartazes expostos na okupa como esses que foram reproduzidos acima, o quanto o consumo de alimentos e a dieta libertária são motivos de interesse e prática que norteia a conduta do grupo, todos fazem parte e consomem coletivamente as refeições, de modo que compartilham os códigos do que é ou não permitido ingerir e suas explicações, uma das mais eloquentes é o fato de maltratar os animais para consumo alimentar, cosmético, farmacêutico ou para a indústria da moda. A seguir apresento algumas notas etnográficas, elas apresentam impressões e um conteúdo reflexivo sobre as manifestações e ações coletivas articuladas pelo grupo com o objetivo de “trocar ideias e experiências” sobre o tema da vivissecção e sobre a oficina de comida viva. Abaixo são exemplos de cartazes que produzem para divulgar suas atividades: Sábado é dia de putaria, sábado é dia de faça você mesmo, sábado é dia de juventude transviada, sábado é dia de gente feia, sábado é dia de rango vegeta, sábado é dia de galera zoeira, sábado é dia de Barulho no beco! Sempre cedo por quê a gente não curte balada64 . 64 Chamada convite para encontro de bandas da região para tocar o som e mostrar as novas produções. As bandas convidadas foram Faixa Preta (RN), Deus Verme (RN), D-zakto (CE), Discräsia (CE). 141 Figura 17: Cartaz da I GIG antivivisecção. As pesquisas realizadas em animais vivos conhecidas como vivissecção, são tema de interesse e discussão constante entre os okupas da Dom Sebastião Leme. De acordo com a fala do grupo, lendo os manifestos emitidos por eles nas redes sociais e também nos zines colados na parede da própria okupa, esse tipo de pesquisa submete os animais a maus-tratos de forma irrestrita e a mercê do consumo descontrolado de produtos de beleza ou farmacêuticos, o que torna uma pauta na agenda de mobilizações do coletivo em contato com outros coletivos. Quando estava em Fortaleza-CE rebebi o cartaz da I GIG Antivivisecção a ser realizada em Campina Grande-PB via os próprios okupas na minha página pessoal do facebook. De imediato, tratei de “curtir” a página, porque me interessei pelo evento e também por saber que seria um dos temas de nossas conversas na próxima visita a ksa. O que aconteceu de fato quando nos encontramos novamente na okupa, perguntei se alguém da okupa, ou do grupo que frequenta a ksa iria participar. De antemão apenas o Nilo, que não mora na okupa, que tinha recém saído do estagio num banco e me disse interessado em participar, pois ele faz parte de uma banda que foi convidada para tocar durante o evento e que está em contato permanente com outros coletivos, disse a mim a quatro dias do evento que iria para Campina Grande-PB e me convidou para acompanhá-lo. De imediato aceitei e passamos a nos planejar para irmos juntos. Considerei importante o fato de ele ter me 142 convidado e também uma forma de estar na rede, fisicamente, isto é, se virtualmente eu acompanho os fluxos e sei quem é amigo de quem, e quem são meus amigos, eu poderia muito bem presenciar essa rede ao vivo em sua manifestação coletiva e assim apurar as relações que permeiam as redes entre Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco, os mais engajados entre si podendo capturar quais os pontos em comum desses coletivos na luta pela emancipação humana e animal, quais as aproximações entre os coletivos nas suas articulações. Para minha surpresa Nilo me ligou dois dias antes e disse que não iria mais poder viajar, que gostaria muito de ir, mas que estava desempregado e a “grana” que ele tinha precisou guardar e economizar para pagar um cursinho, pois quer tentar vestibular esse ano, só não definiu para qual curso pretende pleitear uma vaga, mas será na área de Humanas. Durante os poucos minutos que nos falamos, lamentou muito o fato de não poder viajar e estar lá, mencionando com relevo que iria encontrar muitos “compas”, “a galera de Natal-RN e Recife-PE vai colar por lá, tu tá ligada que Discarga 65 vai tocar né?!”. Rever seus amigos e participar do evento era o que ele estava ponderando. Nilo combinou de nos encontrarmos no facechat 66 para ele me passar uns sons novos e para ficar conversando, já que não daria para ir ao evento então “que a gente curta o som por aqui mesmo desse outro jeito, topa?!”, e assim como combinado nós ficamos até umas 2h da manhã ouvindo som, passando fotos, zines, falando sobre a okupa. O principal tema dessa conversa foi o desalojo, como nós já havíamos nos conformado que não tínhamos ido para Campina, então, viajar através da internet trouxe outros benefícios antropológicos, pois Nilo me passou o documentário 67 “Atrás da Porta”, apresentou-me um novo som da Banda C “Anti-Homofobia” e outros que eu não conhecia, mas que traziam temas comuns ao grupo como “Mortos pelo Consumo”, “Encarcerados”, “Prontos para destruir”, “Destruição total”, são alguns exemplos. 65 Discarga Violenta é uma banda punkrock formada por anarcopunks de Natal-RN, eu conheço e já os vi tocar várias vezes, entre os integrantes o líder é o meu informante privilegiado, Renato Maia. Logo, seria muito bom estar no evento e reencontrá-lo, pois talvez pudesse com a ajuda dele conseguir alguma entrevista com os okupas que estivessem por lá ou no retorno, mas infelizmente não foi possível. 66 O chat de bate-papo da página de relacionamentos Facebook. Habitualmente utilizada por mim para manter contato, trocas informações e pesquisar meus interlocutores. 67 O documentário Atrás da Porta registra a experiência de arrombar prédios e criar novos espaços de moradia das famílias sem-teto do Rio de Janeiro. O filme expõe também uma série de despejos forçados pelo Estado e como esses despejos são o início de uma das maiores intervenções na cidade. No documentário, o projeto chamado de “revitalização” é questionado pelos próprios moradores de várias ocupações. Disponível em: Acesso em: 27 abr. 2012. 143 Ao assistir o documentário produzido por um Okupa chamado Pulga, meu interlocutor de pesquisa da Okupa Flor do Asfalto, onde estive trabalhando com pesquisa em 2008, foi uma surpresa e um impulso, pois o documentário gerou em mim uma inquietação, porque a realidade dessa okupa vem traduzir uma situação em que o desalojo está para acontecer a qualquer momento, mas o que está mobilizando o poder público para retirar esses moradores da okupa são os investimentos do setor imobiliário na zona portuária para construção de obras para a Copa do ano 2014. A motivação está ancorada numa expansão do investimento no urbanismo. No caso da okupa que investiguei o que tem pesado contra é o fato de o bairro em que ela está situada ser de grande expansão e investimentos do setor imobiliário. Essas duas realidades não são tão diferentes, pois os investimentos são todos ligados ao setor imobiliário. Comida Viva Figura 18: Oficina de comida. Os meus interlocutores estão reagindo as duas formas de defesa elaboradas por Habermas (1981), na medida em que eles produzem oficinas cujo objetivo é proporcionar informação e atingir mais pessoas que possam aderir ao grupo ou participam e propõem 144 intervenções no ceio urbano, com a prática do stencil, por exemplo, presentes em manifestações públicas. Uma das oficinas que foi realizada na Okupa, foi a Oficina de Comida Viva, isto é, o preparo de um conjunto de alimentos sem a necessidade de utilizar o fogo ou sistema de resfriamento para facilitar a digestão, além disso, é uma continuidade do processo “Da vida cotidiana Okupa”, que inclui a “permacultura” e a “compostagem doméstica” como elos importantes para alcançar uma boa horta no ambiente construído da okupa e assim possibilitar o que para eles traduz qualidade de vida e consumo alimentar adequado. Práticas de plantio, colheita e manipulação de alimentos foram feitas com os alimentos que são plantados na horta da okupa, quanto aos alimentos que são doados pelos comerciantes do entorno, eles tentam aproveitar ao máximo, pois são alimentos que já estão em processo avançado de decomposição, com algumas partes podres, então há uma reciclagem desses alimentos, a oficina também se propõe a pensar alternativas de aproveitamento desses alimentos e daquilo que se costuma dispensar como talos, sementes, cascas, que são utilizados para sopas, farofas, feijoadas veganas. O que os okupas estavam procurando ao elaborar essa oficina era uma ambiente coletivo diversificado e oferecer uma refeição coletiva, pois o evento permitia a entrada das pessoas da comunidade na okupa, lhe proporcionando visibilidade e garantindo ampla divulgação de suas ações para justificar o uso que está sendo feito daquele ambiente ressignificado. Entretanto, tal evento teve maior importância para mim, quando percebi que havia um elo não só no sentido primeiro de trazer pessoas ao ambiente da vida interna da okupa, mas para mostrá-los um pouco “da vida cotidiana okupa”, articulando toda a construção tecida para que possa haver a manipulação e o plantio dos alimentos, embora eles tenham feito uma “intera” para ir ao supermercado e comprar alguns alimentos como grão de bico e soja, assim eles quiseram mostrar que plantavam e colhiam alimentos numa horta urbana, e tal oficina serviu de demonstração aos convidados sobre como manipular tais alimentos que eles fazem ingestão no seu cotidiano. Não havia alimentos exóticos à dieta do grupo, tudo foi preparado na hora e com a constante máxima sempre anunciada “estamos expandindo a consciência das pessoas, numa sociedade onde o consumo tem nos destruído”. Mas esse foi um relato de Ane e que foi repetido pelos demais, pois como eu não estava na okupa quando aconteceu a oficina, quando cheguei isso se tornou importante na medida em que eu conversava com eles e eles faziam comentários do tipo: “foi massa!”, “o rango foi 145 irado!”, “veio uma galera ó!”. Diziam estar felizes porque de alguma forma o projeto inicial de oferecer oficinas para a comunidade e trazê-los para dentro da okupa, havia tido seu objetivo alcançado. O fato é que a visibilidade e a sensibilização que a oficina oferece tem alcance maior do que os apelos que são feitos através da fala na rua. O que se punha em jogo era uma atividade prática que estava sendo oferecida que combinada aos usos das tecnologias de informação em rede traziam curiosos de outros lugares, que estavam participando de outros movimentos, como “o pessoal da capoeira, a galera do Cuca, uns miséra punk, uns mano da UFC, o pessoal do Movimento Quem Dera Ser um Peixe, as mulheres da Luta a Favor do Parto Humanizado, o pessoal de Pentecostes, os nossos próprios vizinhos se interessaram” (Zeta). Quando voltei para entrevistá-los essas práticas foram relatadas por Zeta e Ane, com os comentários de Jon e Beto que estavam presentes na cozinha enquanto conversávamos. Todos estavam eufóricos porque de fato a Oficina havia alcançado o status de bem-sucedida, tudo correu dentro do programado “a divulgação funcionou, o pessoal conseguiu chegar, ver e participar”, expressões das falas, claro que conforme havia presenciado outros eventos, sempre tem bastante gente, mas geralmente são as mesmas pessoas, que já estão comprometidas com a Okupa e com o Movimento Okupa, embora participem de outros movimentos. Over-Complexity “Promovemos a propriedade social e o controle democrático sobre informação, ideias, tecnologia e meios de comunicação”.68 Empiricamente posso apresentar dados sobre o controle e uso de informações, tanto em relação à produção midiática quanto ao uso de ferramentas tecnológicas pelo okupas, pois são fontes de receio do grupo, por isso a produção de uma imprensa alternativa e um modo alternativo de uso é comum nesse grupo. Para isso fazem uso de email através de um provedor alternativo “Coletivo Riseup”, que se trata de: 68 Esse é um tópico do código de ética do site livre utilizado pelo grupo. Ver: < https://riseup.net/pt>. 146 Um corpo autônomo com sede em Seattle e com membros no mundo todo. Nosso propósito é apoiar na criação de uma sociedade livre, um mundo com liberdade de querer e liberdade de expressar-se, um mundo sem opressão ou hierarquia, onde o poder é compartilhado igualmente. Nós fazemos isso fornecendo comunicação e recursos computacionais para aliados comprometidos em lutas contra o capitalismo e outras formas de opressão. Justificam o uso do Riseup através de uma lista de possíveis benefícios e diferenciações éticas quanto ao uso das informações por parte dos provedores. Isso permite ao grupo ocupar numa esfera ativista virtual, diferente de utilizar as redes sociais para promover, divulgar e contrapor-se a imprensa oficial, mas utilizar o um provedor alternativo frente às corporações como Google, Yahoo, Explored, Mozzila. Além disso, o Coletivo Riseup também é composto por anarquistas de várias partes do mundo que buscaram “criar uma revolução e uma sociedade livre aqui e agora construindo infraestruturas de comunicação alternativas designadas a contrapor e substituir o sistema dominante”. Para Gil, a contrainformação promove uma forma alternativa de transmissão de informação e produção de comunicação, pois através dessas alternativas os okupas sentem-se mais seguros para compartilhar suas atividades, seus projetos com outros compas, com a intenção de divulgar as movimentações deles e também de construir campanhas em rede contra o desalojo de forma segura. Os okupas direcionam uma crítica altiva as informações e matérias que são publicadas pela grande imprensa sobre suas práticas de vivência coletiva. Para Gil, o mais absurdo é a insistente denuncia de “invasão”. Gil: Cara, Andressa fico de cara, puto mesmo com essa galera, você viu a matéria que saiu ontem na globo, na hora do almoço? Antropóloga: Não, qual foi Gil, o que é que rolou?! (Eu tinha visto - inclusive várias pessoas entraram em contato comigo para me avisar dessa matéria que foi ao ar no Jornal de Hoje, que é transmitido pela TV Globo diariamente, por volta das 13h - mas preferi ouvir os detalhes da observação dele sobre a matéria e por isso disse não ter visto). 147 Gil: Porra detonaram a gente né?! bando de reaça né?! vamo espera o que?! Sempre com o mesmo discurso escroto de chama a gente de invasor de propriedade privada e tal. As okupas são perigosas para os especuladores, pois estão ancorados numa ação direta sobre a função social do solo urbano, de modo que ao serem descobertas, suas práticas são tornadas “legítimas” pela própria sociedade civil através de reconhecer seu modo de vida como uma forma particular e legítima. O uso dos veículos de comunicação para deturpar e produzir um senso comum que condene as práticas subversivas quanto à ocupação do solo urbano é utilizada para legitimar a propriedade privada como bem maior e inalienável. Logo utilizar uma imprensa alternativa é o meio de circular informação sobre as okupas, mas sob outro ponto de vista contraposto a imprensa oficial. Um dos principais sites que vinculam informações mais detalhadas sobre a prática da okupação no mundo inteiro, oferecendo apoio aos okupas quanto à prisão e esclarecendo como funciona a legislação em vários países é o Squat.net. A prática da ocupação requer um conhecimento singular das formas alterativas de comunicação entre os okupas de vários lugares, por isso além de utilizar uma imprensa alternativa para divulgar suas ações de forma mais segura e entre si, o uso de caixa postal e a troca de cartas são muito comuns entre os okupas, que possuem também apelidos utilizados nessa correspondência, prevenindo-se de eventuais problemas. A luta por reconhecimento: uma categoria analítica Anteriormente falei da luta dos Movimentos Sociais e os dividi em duas categorias: os instrumentalizados e os não - instrumentalizados. Historicamente estão divididos também entre uma luta de classes – características dos movimentos sociais do século XIX e metade do século XX – e uma luta por reconhecimento. 148 Para essa pesquisa oriento minha análise sobre a Okupa observada, a partir da Teoria do Reconhecimento, entendida aqui como uma “teoria intersubjetiva” das formas de relações de reconhecimento mútuo (HONNETH, 2003, p. 43-47). Segundo a Teoria do Reconhecimento, tal como articulada pelo filósofo alemão Axel Honneth, o indivíduo só constrói uma consciência de si ou uma identidade própria a partir da interação com outros indivíduos, esta última, sempre vivenciada pelo aprendizado prático do exercício de “reconhecimento” das carências e demandas recíprocas, ou seja, dos parceiros envolvidos na interação. Essas relações de reconhecimento, destaca Honneth, podem assumir formas variadas, conforme a forma de relação social vivenciada entre os indivíduos e coletividades. No que se refere particularmente às sociedades “pós-tradicionais”, isto é, as sociedades modernas, conforme definição de Honneth, se destacam três padrões de reconhecimento intersubjetivos, cada um deles localizados numa forma específica de relação social entre os indivíduos. A forma mais elementar de reconhecimento vai ser experenciada nas relações amorosas 69 , a exemplo da relação entre pais e filhos, casais de namorados e entre amigos. No caso dos okupas, a forma de reconhecimento que está em questão é a afirmação de sua autenticidade inserida numa comunidade de valores que constituem o okupa. E quais seriam os valores que circulam na comunidade okupa? Os valores principais são aqueles associados a expressão de estilos de vida particulares ao grupo como anarquia, autonomia, autogestão, punk, hade core, rock, anarcofunk, anarcorap, ciclovida, capoeira, mangueio, malabares, artesanato, teatro de rua, stencil, grafite, tatuagem, suspensão, ecologia, vegan, antivivisecção (contra testes em animais), feminismo, produção de novas identidades no mundo globalizado, parto humanizado, contra vacinação, antiestética, fraldas ecológicas, parto em casa etc... Assim se autorrepresentam os okupas. Todos esses valores são ingredientes críticos quando eles se apresentam como contramodelos da cultura dominante no espaço urbano das cidades. Tendo em vista isso, é lícito afirmar que a luta por reconhecimento okupa é uma luta por autenticidade, ou seja, uma luta por afirmação de valores, estilo de vida, cultura diversas e singulares a esse grupo, que são enxergados pelo próprio grupo como libertários, em contraposição ao modelo aprisionador em vigência, 69 Para Honneth, as relações amorosas devem ser pensadas em termos ampliados, isto é, como relações intersubjetivas marcadas por trocas afetivas, a exemplo da relação entre pais e filhos, relações entre namorados e mesmo as relações de amizade. 149 dominante e homogeneizado que bloqueia as singularidades culturais das diferentes formas de vida. Na medida em que não tem sua comunidade valores reconhecida, ele não tem reconhecida sua autenticidade. Negar o reconhecimento ou ativar as etiquetas negativas estigmatizantes compromete a comunidade de valores do grupo, pois “as pessoas são feridas numa compreensão positiva de si mesmas” (HONNETH, 2003, p. 216). Colocando a questão: Como a experiência do desrespeito é motivadora para uma luta por reconhecimento? No caso dos okupas, constitui um tipo de rebaixamento referindo-se negativamente ao valor social de indivíduos ou grupos. A “honra”, a “dignidade” ou, falando em termos modernos, o “status” de uma pessoa [ou coletividade], refere-se [...] à medida de estima social que é concedida a sua maneira de autorrealização no horizonte da tradição cultural; se agora a hierarquia social de valores se constitui de modo que ela degrada algumas formas de vida ou modos de crença, considerando-as de menos valor ou deficientes, ela tira dos sujeitos atingidos toda possibilidade de atribuir valor social às suas próprias capacidades. (HONNETH, 2003, p. 217). Durante minhas observações participantes e principalmente analisando as falas dos vizinhos em relação aos okupas, os “direitos” ou os atributos de reconhecimento foram acionados sempre em relação a sua prestação de serviços quanto a limpeza urbana, na medida em que esses vizinhos perceberam que os okupas estarem ali significava o zelo pelo espaço que servia de depósito de lixo, que abrigava insetos peçonhentos e alguns “delinquentes” que realizavam furtos na vizinhança e se escondiam no prédio abandonado. Tal solidariedade não é dada de forma voluntária, isso empiricamente, também foi observado na interação face a face com a mediação de uma “zona de risco”, os okupas eram os agentes de mediação entre a vizinhança e os usuários de crack, eles estavam ocupando o lugar assegurar os vizinhos quanto a ocupação do prédio degradado pelos usuários de crack, que cometiam pequenos furtos e se envolviam em brigas de rua que eram levadas para dentro desse espaço. Então os vizinhos passam a reconhecer a autenticidade dos okupas, quando entram em cena as duas funções de interesse a limpeza e a segurança. Nessa relação de sociabilidade pondera-se o fato de que tais relações foram tecidas com o avançar do tempo ocupado, não foi de imediato, ela foi sendo construída aos poucos, 150 quando eu cheguei para realizar a pesquisa, já se passava um ano desde que os okupas haviam chegado aquele espaço. 70 Então eu tentei articular toda a rede no sentido de buscar as interações que estavam sendo feitas e como elas foram possibilitadas, se na minha chegada e nas primeiras observações eu estava atenta ao ambiente materialmente produzido através da ksa, na medida em que o tempo foi passando e o diário foi adensando verifiquei o aparecimento dessas redes. A primeira vez que percebi essa ocorrência foi durante uma visita onde falávamos sobre a alimentação do grupo e uma senhora idosa chamou (estando dentro de sua casa, atrás do portão) fazendo um sinal enquanto eu estava na janela da casa (na parte superior, primeiro andar de frente para a casa dela) acenando com a mão. Chamei Ane e falei que a senhora estava chamando. Ela disse sorriu e explicou, ela sempre nos doa alimentos, manda um monte de coisas caras, acha que a gente come isso, e só nos dar alimentos quando seus filhos não estão em casa. E perguntei por que ela doava escondido, se doar não era um gesto digno de solidariedade, ou algo comum. A resposta que veio: eles acham que nós somos iguais a eles (os usuários de crack), então pensam que vamos roubar, que vamos nos aproveitar. Alguns vizinhos, já doavam água, alimentos, energia elétrica então estava assegurando a okupa, na medida em que davam condições de permanência ao grupo para que ficassem naquele lugar. Mesmo que tais condições fossem interessadas percebe-se que estão todos munidos de seus interesses e negociando suas trocas. Quando a polícia aparece na okupa sem mandado interpreta-se coletivamente que foi uma forma arbitrária, e os vizinhos dão seu relato, tecem suas percepções, vemos como essa rede se processa na fala de Seu João quando ele diz: Quando quiseram tirar eles daí, a maioria do pessoal do prédio desceu... O pessoal do condomínio é sistemático né?! capitalista, não quer se envolver com nada não, o pessoal daí tem é nojo de pobre, mas desceram. Porque eles não perturbavam ninguém não, faziam o movimento deles, não causava risco, diferente desse outro pessoal aí né?! [esse outro pessoal aí se refere aos usuários de crack - grifo meu]. Tal fala reitera a Teoria do Reconhecimento de Honneth (2003), pois se a polícia, agente do Estado não reconhece a autenticidade do grupo, os moradores da vizinhança no momento de tensão conflituosa assumem a postura de reconhecimento desse grupo e questionam a postura arbitrária da própria polícia, quando os moradores do prédio descem 70 Uma evidência empírica do caráter de aprendizado moral intersubjetivo implícito a toda relação de reconhecimento, já assinalado por Honneth. 151 para impedir o desalojo ou a ação arbitrária. A luta por reconhecimento saiu da esfera da vizinhança que nesse momento atribui estima social ao grupo que assume uma postura de reconhecimento dos direitos desse grupo que lhe foram denegados pelo Estado, mas não os foram pela sociedade civil, que embora tenha sido movidos por interesses, lhe conferiram “imputabilidade moral”. Portanto o que aqui é subtraído da pessoa pelo desrespeito em termos de reconhecimento é o respeito cognitivo de uma imputabilidade moral, que, por seu turno, tem de ser adquirida a custo em processo de interação socializadora. Mas essa forma de desrespeito representa uma grandeza historicamente variável, visto que o conteúdo semântico do que é considerado como uma pessoa moralmente imputável tem se alterado com o desenvolvimento das relações jurídicas: por isso, a experiência da privação de direitos se mede não somente pelo grau de universalização, mas também pelo alcance material dos direitos institucionalmente garantidos. (HONNETH, 2003, p.217). Os okupas vão criar na prática três redes de solidariedade, cria-se uma rede de solidariedade do grupo okupa com seus vizinhos, com os usuários de crack e com os comerciantes. O substrato da relação interacionista entre os okupas é a solidariedade. Ela aparece sem nenhuma dificuldade de observação, participa de várias relações é mantida principalmente entre os próprios okupas, são mistos os laços de solidariedade, quando necessário eles vão emergindo. Na chegada ao local da okupa, os usuários de crack não queriam que o terreno ocioso fosse ocupado, ofereceram resistência, praticaram furtos e ameaças, mas depois de alguns meses puderam coletivamente reconhecer os espaços uns dos outros, quando da chegada de máquina e tratores para colocar as ruínas que serviam de abrigo para todos eles, os laços de solidariedade foram aflorados, agora eram todos “irmãos” e que necessitam “se juntar pra poder ter direito de tá ali na sua casa”. Outro laço de solidariedade curioso é com os vizinhos diretos, aqueles que estão fisicamente colados a okupa, eles não só doam alimentos, roupas e objetos como protestam para que os okupas fiquem, pois eles não “fazem barulho, não sujam nada, pelo contrário catam o lixo que ficava acumulado, e os malandros não chegam por perto”, assim ajudá-los a fixar sua residência na okupa, significava diminuir o medo dos furtos constantes e da sujeira. 152 Quanto aos comerciantes sentem-se “bem e feliz em poder ajudar”, pois quando doam aqueles alimentos que iriam para o lixo, sentem-se solidários ao grupo que foi pedir, porém as suas doações nunca são de frutas ou verduras em bom estado para venda. As relações de reciprocidade: okupas, usuários de crack e sua vizinhança O tratamento empírico para a apreensão das relações de reconhecimento pode ser verificado no tipo de interação estabelecida entre os indivíduos. Nesse sentido, são as formas de relação observadas etnograficamente entre os okupas os moradores do bairro de Fátima, que vão me informar empiricamente a respeito da aplicação prática da teoria do reconhecimento. Durante o surgimento do Movimento Squat, que já apresentei no início do primeiro capítulo, argumentei que um dos objetivos dos okupas trata-se de apontar suas intervenções em direção ao capitalismo a partir da especulação imobiliária e sobre as formas de consumo. Durante permanência em campo, observando o contexto complexo em volta de meus interlocutores, passei a perceber que dentro da dinâmica habitual que tomava por notas na okupa, havia a dinâmica da cidade contemporânea sobre a qual a intervenção estava sendo feita, ora a ocupação do prédio abandonado, trouxe para a vizinhança a “segurança”. A cidade contemporânea produz capital não só através da especulação imobiliária, mas atualmente a função mais avançada do capitalismo está em se reproduzir e especular através da cultura do medo. As cidades globais, cuja concentração de fluxos de renda e pessoas aliada a produção de novas formas de segregação tem produzido lucro através da especulação do medo, os efeitos dessa segregação são muitos, aquele que me detenho é o medo que se produz no momento da segregação, tomando tal efeito como um over-complexity, caracterizado por Habermas (1981), onde os efeitos não considerados “invisíveis”. Não podemos ver o medo, mas sabemos que ele está lá e que ele é apropriado de diferentes modos, por diferentes interlocutores, pois as relações que estão sendo tangenciadas na ocupação do espaço urbano são mistas e são modelares, os okupas se relacionam com vários segmentos da vizinhança, mas cada um deles vai expressar em algum momento uma tensão e eventual “medo”, seja 153 daquilo que não se conhece por receio e preconceito, seja por embates da vida cotidiana que imprimiram marcas da disputa por espaço, quando entra em cena as ameaças e as atitudes de violência física ou moral destinadas por determinados segmentos em relação ao okupas ou aos crackeiros, pois não podemos deixar de destacar que eles ocupam cada grupo a sua maneira um mesmo terreno, dividido por sacos de areia e ruínas da antigas paredes da fábrica de cera de carnaúba. Quais as relações que estavam postas na okupa? Está foi uma questão importante, devido ao fato de que ela me trazia respostas múltiplas sobre vários aspectos. Ligeiramente observa-se certa homogeneidade de um grupo anarcopunk, de militância jovem, com práticas de intervenção sobre a cidade. Mas há nesse grupo traços de uma combinação diferente do que observei nos outros grupos, pois os assuntos nunca eram os mesmos, os mesmo assuntos existiam, mas haviam sempre novos assuntos, novos zines, novas músicas, novas bandas, novas okupas, novos moradores, novas intervenções, novas palavras, novas ações, o que apareceu nitidamente depois de certo tempo é que eles não estavam fechados em si, fechados num acoamento territorial da okupa, como se eles se bastassem em si. Cada um deles participa de atividades comuns a todos e também atividades com outras pessoas que não tem laços com a okupa, que podem até chegar a frequentar as atividades e visitar a okupa, mas que não estavam comprometidos com esse projeto coletivo, pois estavam em outro (s). Na okupa Torém via-se um pluriativismo, mas nunca o “mais do mesmo”, a agenda do grupo renovada, com discussões e intervenções atualizadas, lugares do corpo em prática na rua, um só okupa é também: 1) Um lutador de MMA, um estudante de publicidade, um grafiteiro, um zineiro, um baterista, um malabarista, um vegano, um mangueador, um homossexual. 2) Um palhaço de rua, um malabarista, um ciclista, um ativista de direitos humanos, um reciclador, um vegano, um mangueador, um instrumentista. 3) uma capoerista, uma mãe, uma vegana, uma feminista, uma ativista pelo parto humanizado, uma okupa que morou em várias okupas antes de estar nessa, uma trabalhadora assalariada com jornadas de 8h de trabalho diário. Enfim, isso são alguns perfis, que me servem para caracterizar a diversidade de relações que serão construídas ao redor da okupa e isso significava estar atento a novas posturas e práticas políticas, que apareciam na okupa, que pode nos aproximar do conteúdo 154 das relações com a vizinhança, pois os vizinhos recuperam essas características para falar sobre os okupas para mim. O medo assume o controle das relações estabelecidas no espaço público e também no espaço privado, tornando-se um dos principais objetos de especulação da cidade contemporânea. Os bairros centrais são cada vez mais valorizados, tornando-se o palco de grandes investimentos urbanísticos, enquanto as franjas da cidade incham e tem cada vez menos equipamentos urbanos disponíveis para sua vida cotidiana, tornando seu cenário cada vez mais degradado, marginalizado e tendo sua população que permanecer onde está. O discurso utilizado por meus interlocutores em muitas ocasiões para legitimar sua prática de ocupação, vinha munido dos benefícios ambientais sobre os quais o movimento se assenta, mas também, apareceu tanto nas suas falas quanto nas falas dos moradores da vizinhança, a garantia de segurança por estarem ali. Num primeiro momento a população que vive no entorno, tomou por susto e receio o grupo atípico no seu contexto de bairro. Então as atitudes de reserva partiam do medo do desconhecido, mas também da etiqueta negativa atribuída a estética do grupo. Com o passar do tempo, os okupas foram estabelecendo seus vínculos com a sua vizinhança de modo que diluíram as etiquetas atribuídas inicialmente, foram ganhando apoio da vizinhança, mas esse apoio vinha do conforto em relação a limpeza do ambiente e da segurança que os vizinhos passaram a ter quando perceberam que os okupas poderiam ser a “barreira” entre eles e os “crackeiros”. As relações que foram estabelecidas fizeram tais vizinhos saírem em defesa da permanência da okupa, segundo Seu João, vigilante do prédio vizinho da okupa: O pessoal aí era tudo pacato, não tinha baderna não, não causava risco. Tinha duas crianças aí, os meninos era tudo tranquilo. Tinha muito lixo antes, eles tiraram tudo e reduziu o índice de assalto. Aí morou muita gente, eles se fantasiavam, cortava os cabelo de tudo que é jeito, tinha uma menina que fazia um negocio de trança no cabelo que aboluava tudo na cabeça... (risos). De repente tinha oito, dez, vinte, chegava num sei quantos, com violão música, passava de bicicleta, de todo jeito tinha, mas eram tudo tranquilo, naquele jeito meio esquisito deles de roupa preta, “pirci”, tatuagem, mas não fazia mal a ninguém não. (Entrevista, 03 de maio de 2012). Nesse instante recupero os argumentos dos próprios okupas para terem reconhecidas suas práticas de vivência coletiva pela sociedade civil que poderia permitir sua permanência na casa, para isso volto a falar dos okupas a partir de seu manifesto, produzido no momento 155 da entrada na casa, onde eles esforçam-se para mostrar os benefícios que sua chegada trouxe para o local, ao dizer que: O terreno, localizado num bairro nobre da cidade, era conhecido da vizinhança por ser espaço de uso de drogas, esconderijo para roubos e depósito de lixo [...] Desde então, depois que iniciamos a ocupação, o Coletivo Squat Torém retirou entulhos do local, fizeram dois atos públicos dialogando com a Comunidade que nos apoiou com a doação de materiais de construção, água e alimentos. Além desse manifesto apresentar tais benefícios como argumento, a fala eloquente dos moradores circunvizinhos tanto corrobora com os próprios okupas, mas avança na justificativa que acionam ao reivindicarem a permanência dos okupas na casa com argumentos de cunho defensivo em relação aos perigos que estão expostos a essa comunidade com o abandono desse prédio que os colocam numa posição se vulnerabilidade diante de práticas marginais, como roubo e consumo de drogas, relatadas. Porém, a adesão dos moradores da vizinhança e a insistência em permanecer na okupa, não foram suficientes para que o grupo continuasse okupando a ksa, em 20 de fevereiro de 2012, quando estava em Natal-RN recebi uma série de e-mails, ligações e mensagens via celular e redes sociais noticiando o desalojo da Okupa Squat Torém. De acordo com Gil, que teve uma resistência inicial comigo mas a essa altura me surpreendeu em me relatar o que aconteceu durante o desalojo: Andressa estamos bem alojados agora, estamos numa casa na perimentral, lá não tem o mesmo espaço que a gente tinha antes para cultivar, mas é um lugar bacana, tem luz e água encanada, mas é mais distante do centro, o espaço também não é tão grande mas cabe todo mundo, estamos bem.. O sistema é assim... Eles tinham combinado que dariam um tempo para nós nos organizássemos para sair do local, isso na semana passada, antes mesmo do carnaval, mas não foi assim que aconteceu não. Eles já ligaram avisando que tinha que sair imediatamente, isso foi na segunda-feira de carnaval, a cidade nos festejos e nós sem ter o que comemorar. Saímos recolhemos nossas coisas e fomos para esse novo endereço, não teve mistério, mas um amigo da gente foi quem conseguiu o espaço novo, que não é okupado, mas é uma vivência coletiva, nós estamos juntos fazendo nossas movidas, se aprumando de novo, mas daquele jeito né?! (risos) a casa tava fechada então reparos, ajustes, consertos são constantes por aqui, estamos unidos e de boa, a galera cabritou com a gente, mas é isso mesmo. Seguimos juntos e quando der certo 156 a gente volta a okupar, vamos tentar organizar um evento no meio do ano para chamar a galera para conhecer o novo espaço, chegar junto e fazer nossas ações, quero te convidar para vir, Torena está aqui agora crescendo em outro espaço e agitando a nossa vida, tem sido bom sim, não saímos de lá pensando na derrota mas de como conseguimos resistir por esses quase três anos de okupação e como isso é importante pro movimento. Okupar, resistir e insistir! 157 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme procurei desenvolver ao longo desta pesquisa, minha análise buscou compreender de que modo a prática okupa se organiza coletivamente sob as orientações políticas da autogestão e da anarquia. Busquei acompanhar a prática cotidiana desses interlocutores nos seus espaços praticados (CERTEAU, 1994) e a forma como se mobilizam coletivamente numa luta por reconhecimento (HONNETH, 2003). Observei como os praticantes da cidade em questão podem ser considerados agentes de um novo movimento social. O Movimento Okupa que trás entre suas singularidades, o fato de estar inserido numa luta pelo reconhecimento, de uma nova forma de vida que atualiza a cidade como lócus de intervenção social diante dos espaços públicos e privados protagonizados por sujeitos okupas. A maior parte do grupo é composta por jovens (entre 20 e 24 anos) o que provocou empiricamente o desafio de articular as demandas por reconhecimento a partir de Honneth (2003). Com a atualização do corte geracional que encontrei no grupo, me fazendo refletir sobre a questão inerente ao grupo: o que é ser jovem e o que é ser okupa? Considerando o caso de Beto e Jon (42 e 28 anos) como expressões de um ethos juvenil, mas que estão inseridos em outro corte geracional, isto é, fazem parte da classificação utilizada pelo IBGE 71 como população adulta. Além disso, a maior parte deles possui família e estão em contato permanente com ela. Visitam com frequência durante a semana, tendo observado que eles fazem um revezamento para não deixar a okupa vazia, embora durmam na sua casa de origem, diariamente. Quanto ao trabalho e rendimento, todos relataram já ter trabalhado. Sendo a maioria no comércio 72 que entra no rol das atividades desenvolvidas pelo grupo para rendimento coletivo e que são consideradas mangueio. Nenhum deles relatou problemas com a justiça até o momento de vivência na okupa, onde tiveram que enfrentar processos e responder por invasão domiciliar. O resultado foi como dito o desalojo do grupo e uma nova residência em outro lugar. 71 http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/populacao_jovem_brasil/default.shtm 72 Menos Beto que é pedreiro e ainda trabalha com esse ofício, somado ao artesanato que ele faz como complemento de sua renda e atividade laboral de subsistência. 158 Isto significa que tais okupas seguem uma rotina de intervenção política e cultural e que suas práticas de vivência coletiva não os coloca na esfera da delinquência juvenil, nem tampouco tem sua imputabilidade moral questionada. Além disso, por intermédio da observação participante e das conversas e entrevistas com os okupas, ficou nítido que a interpretação criminosa feita em relação as suas práticas, aparece em dois momentos ímpares: primeiro em relação ao desconhecido, quando a vizinhança por desconhecimento e preconceito em relação ao grupo atua com atitude de reserva. Segundo quando a polícia é o instrumento utilizado via “proprietários legais” para criminalizar o movimento social, através principalmente do uso irrestrito do termo “invasão”, em contraposição ao termo “ocupação”, o que por feito de semântica, colocava automaticamente esses sujeitos em posição criminosa. Isso toma maiores proporções durante o depoimento colhido na delegacia onde a escrivã substituía a sua revelia as falas dos okupas, sempre trocando as palavras “ocupação”, “ocupar” por “invasão”, “invadir”. Dizer isso significa afirmar que a polícia (nesse contexto) compactua com a prática abusiva e ofensiva de criminalizar os movimentos sociais. Acompanhar as falas do grupo e perceber o quanto os okupas sentem-se “injustiçados”, com medo desses mesmos policiais que lhe fizeram visitas noturnas sem a apresentação de mandado. É importante dar relevo ao fato de que são os policiais quem iniciam essa relação com a justiça. Não apenas para a prisão, mas para um possível processo, por meio das provas obtidas em flagrante, embora nunca tenham encontrado “drogas” na okupa, motivo utilizado para entrada na okupa e ação de represália. Nesse sentido é importante ressaltar que essas relações não são uma regra, que os policiais possuem formas muito peculiares no tratamento dispensado aos okupas no contexto social observado, que vão em alguns casos da tolerância às práticas de ameaça e perseguição. Esse mundo atual, onde os movimentos sociais são múltiplos e ao mesmo tempo fluídos, interpenetráveis e conjugados permitiu a convivência dessas pessoas com vários segmentos da sociedade e favoreceu o desempenho de papéis diferentes, onde a convivência e os vínculos que são assumidos representam as diversas maneiras de organização dos okupas e suas conexões em rede, revelando um trânsito constante entre o “legal” e o “ilegal”. Na ocupação de prédios abandonados não tratamos de uma atividade ilegal, proibida pela lei. Ao contrário disso, representa considerar a constituição de 1988 e cobrar que o cumprimento da função social de uma propriedade seja legalizada, é sobre esse argumento que demandam sua legalidade. 159 Quando se utiliza o termo “invasão”, a prática da “ocupação” passa a ser tratada como uma atividade proibida por lei, criando a atmosfera de medo, repressão e de sensações persecutórias. A confiança em campo é uma moeda muito importante. Após alguns testes e com a intensa socialização com o grupo, pude cultivar entre alguns okupas a confiança, que em um momento inicial diz respeito ao tato e o trato com habilidade ou não. Para apresentar minha pesquisa, negociar a sua construção naquele espaço, entre aqueles okupas, vivenciei uma tarefa cansativa e constante. Meus informantes se mobilizaram e foram tão pacientes e generosos. Não tenho dúvidas que foi graças aos contatos intermediários de meus informantes e também a minha postura honesta em revelar que estava fazendo pesquisa que permitiram construir os laços de afeto e intimidade com o grupo. Depois do primeiro momento de reconhecimento, essas relações pode vir a se tornar uma amizade, ainda que não se extrapole para muitos limites espaciais. Entretanto, é preciso estar atenta. As situações vividas por esses okupas são a todo o momento, permeadas de dúvida e de uma atmosfera de desconfiança, onde poder contar com uma amiga, uma companheira ou uma colaboradora tornou afluente para mim essas relações em campo. Além de estarem intervindo diretamente sobre a especulação imobiliária no Bairro de Fátima, ao longo dessa pesquisa percebi o quanto os contextos de mobilização são abrangentes e seguem fluxos globais, pois as práticas e a emergência de novas ações coletivas e os diálogos entre os diferentes movimentos sociais ao longo de 2011 e 2012, período de realização dessa pesquisa revelaram um vasto campo de intervenções. Uma explosão de “ocupações”, considerando aqui todas aquelas práticas de ação sobre um espaço público e ou privado. Com intervenção para protestos em seus mais variados objetivos: moradia, educação, saúde, regularização fundiária urbana, políticas públicas, modos de vida, questões de gênero, etnicidade, formas de organização políticas e outros. Citados ao longo do texto e que estiveram dialogando com esse grupo durante a coleta dos dados e o fechamento dessa pesquisa. Por isso, quando me refiro a Okupa Squat Torém estou sempre situando o vasto repertório de intervenções e práticas cotidianas de luta por reconhecimento e sua agenda dentro de outros movimentos. Em escala local, os protestos que cercam o Acquário Ceará, o movimento em favor da libertação de presos políticos, a luta por moradia frente aos investimentos que cercam a cidade para a realização da Copa de 2014, todos esses, alguns exemplos das práticas cotidianas e diálogos com movimentos sociais. Porém em escala 160 global, a Cúpula dos Povos, a Rio + 20 são exemplos de protestos múltiplos e diálogos que seguem uma prática de intervenção que tem origem nos “movimentos antiglobalização”. Quase sempre protagonizados por anarcopunks em escala mundial, que protestam juntos grupos e pessoas com seus diversos pensamentos e modos de ação. Que tem ocupado as ruas de Wall Street como aconteceu nos EUA, na Primavera Árabe, e outros protestos que colocaram ditaduras, a exemplo da Túnisia, Egito, Líbia, Iêmen abaixo. Protagonizando, desse modo, a imprensa mundial e ganhando fôlego nos protestos sindicais e greves na Espanha e Chile. São alguns modos de “ocupação” como diante dos protestos que cercam diariamente as grandes obras que envolvem a Copa de 2014 no Brasil, revelando por onde passa o protesto e o quanto ele é vasto em termos de uma identidade. Pois tais movimentos assumem um caráter revolucionário das práticas lúdicas de protestar. Em favor de uma ação mais democrática que ponha fim ou que questionem a ausência e apatias em escalas municipais, estaduais, federais ou mundiais. Os novos movimentos sociais e a afluência de ações coletivas partem de uma origem comum. A ocupação por protesto, originalmente na Europa da década de 1960 e suas lacunas sociais, gerou os ruídos que encontraram na contracultura as formas de protestar através da atividade lúdica, por um “mundo em que caibam vários mundos”. Por isso quando se fala em ocupação é preciso ter em mente pluriatividade, sabendo que as formas de protesto estão se redefinindo, em constante construção. Tais movimentos “expressivistas” são movimentos que sempre estão se reconstruindo internamente. De forma empírica, isso se dá, a partir dos okupas, quando eles redefinem suas agendas políticas e assim (re) significam sua identidade coletiva. A luta por moradia em Londres em 1960, volta a emergir em 2010 – 2012 na forma de luta além da moradia, uma luta por acesso a cidade. A complexidade desse jogo de relações me rendeu uma conclusão: ao falar de Movimento Okupa é preciso carregar diferentes dinâmicas de interação com o espaço urbano, diferentes modos de comunicação, expectativas distintas quanto ao tipo de apropriação que será feita sobre o espaço. De fato aconteceu e o resultado pode ser um conflito - como no caso dos “usuários de crack”, um estranhamento como relataram seus vizinhos logo na sua chegada. Ou uma negociação em torno do espaço como aconteceu junto aos proprietários. Um campo irrestrito de possibilidades de interação no urbano sendo à doação da casa, onde vivem atualmente, pelo Projeto Emaús um exemplo dos diálogos e formas de cooperação coletiva entre os diferentes movimentos e ações de grupos e pessoas em sociedade. 161 Em nova casa, após desalojo da Okupa Squat Torém em 20 de fevereiro de 2012, enfim, mostrou-se que esses sujeitos continuam unidos em torno de um projeto de vida coletivo, que embora tenham vivenciado rupturas e novas interações, dentro de outras condições e modos de vida coletivos, encontram-se agora experimentando uma nova dinâmica interna. Onde o revezamento como forma de manter a apropriação já não se faz necessário. Existem novos arranjos para que o grupo permaneça junto morando em um novo bairro que fica na periferia da cidade, longe das especulações imobiliárias e também dos equipamentos urbanos que utilizavam antes. Onde seus trajetos eram facilitados, agora não mais. Por onde já se conheciam seus pedaços, agora é um novo ciclo de lutas que se abre. Desta vez, ele é mais consciente e mais organizado, uma ação direta que reflete a percepção que esse grupo tem da sua realidade. Que revela a tomada por si próprio de uma série de ações concretas para transformar essa realidade, onde trabalho coletivo é o caminho percorrido para resolver os problemas coletivos. Que exige ampliar os repertórios de ações conjuntas, considerando o potencial lúdico das ações para tornar as fronteiras transponíveis através de arte e formas subversivas de protesto coletivo. “Okupar, resistir e insistir”, tudo isso diz respeito à ação de okupar. A pesquisa de campo que se serviu principalmente da observação participante, notas etnográficas, entrevistas abertas e coleta de materiais documentais (desde a produção bibliográfica dos okupas, diálogos em redes sociais, matérias vinculadas na esfera pública, etc.) e daquelas situações contextuais de interação intersubjetiva, resultou a problematização analítica em torno da possível articulação de formas plurais de Crítica - “crítica social” e “crítica estética” – dimensões reveladoras que foram pertinentes para compreender as diferentes fontes de indignação que foram motivadoras dos okupas torenianxs Boltanski & Chiapello (2009). Desse estudo empírico, deriva a reflexão analítica em torno do que chamei de “pluriativismo” - conceito que emerge durante a pesquisa. Além disso, outra discussão foi desenvolvida enfatiza a problematização dos “sentidos de justiça” e das fontes de indignação que circulam na prática do Movimento Okupa. De modo geral, refleti a partir das especificidades desse fenômeno urbano e da interface teórica entre Antropologia, Teoria Crítica e Teoria do Reconhecimento, onde propus uma abordagem sobre as diferentes formas do agir comunicativo e da ação coletiva, orientadas para a intervenção política e estética sobre a cidade. 162 Finalmente, com a pesquisa etnográfica apresentada, espero contribuir para um diálogo político-antropológico sobre os tipos de movimentos sociais urbanos, considerando ainda o potencial de síntese analítica entre a tradição da Teoria Crítica e da Antropologia Urbana. Com efeito, concluí que a apropriação política e estética feita pelos sujeitos sobre o espaço urbano significa, no contexto observado, a expressão cultural do que defino como “pluriativismo”, isto é, práticas de intervenção sobre a cidade, orientadas por agendas plurais de ação coletiva, que revelam as fontes de sua indignação, que traduzem a sua luta por reconhecimento (HONNETH, 2003). 163 BIBLIOGRAFIA AGIER, Michel. Antropologia da cidade: lugares, situações e movimentos. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011. – (Antropologia Hoje) ALONSO, Angela. As teorias dos movimentos sociais: um balanço do debate. Lua Nova, São Paulo, 76: 49-86, 2009. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ln/n76/n76a03.pdf > Acesso em: 20 mar. 2012. APPADURAI, A. Disjunção e diferença na economia cultural global. In: FEATHERSTONE, M. (org.). Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1990, p.311 a 327. AQUINO, Carlos Roberto Filadelfo de Aquino. 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