UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO CURSO DE DIREITO NATÁLIA GALVÃO DA CUNHA LIMA FREIRE A RESPONSABILIDADE PENAL POR OMISSÃO IMPRÓPRIA: UMA ABORDAGEM DA IMPUTAÇÃO NA ATIVIDADE EMPRESARIAL NATAL-RN 2019 NATÁLIA GALVÃO DA CUNHA LIMA FREIRE A RESPONSABILIDADE PENAL POR OMISSÃO IMPRÓPRIA: UMA ABORDAGEM DA IMPUTAÇÃO NA ATIVIDADE EMPRESARIAL Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de bacharel em Direito, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Profª. Drª. Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya NATAL-RN 2019 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Freire, Natália Galvão da Cunha Lima. A responsabilidade penal por omissão imprópria: uma abordagem da imputação na atividade empresarial / Natália Galvão da Cunha Lima Freire. - 2019. 108f.: il. Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito. Natal, RN, 2019. Orientador: Profª. Drª. Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya. 1. Criminalidade de empresa - Monografia. 2. Responsabilidade penal de dirigentes - Monografia. 3. Crimes omissivos impróprios - Monografia. I. Saboya, Keity Mara Ferreira de Souza e. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 343.1 Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 Aos Professores Clenio Alves Freire, Diógenes da Cunha Lima, Gustavo da Cunha Lima Freire, Hélio Mamede de Freitas Galvão (in memoriam) e Rodrigo da Cunha Lima Freire. AGRADECIMENTOS Encerro este ciclo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte com um misto de alegria e saudade. Nela conheci pessoas, culturas e mundos que ampliaram o meu... nunca mais fui a mesma. E que bom! Passei a fazer do estudo do Direito, especialmente do Direito criminal, a minha escolha de vida, e todo texto que eu escreva, agora ou em qualquer tempo, invariavelmente estará atravessado pelos que despertaram, em meu coração, esse desejo. Gostaria, portanto, de agradecer-lhes, porque hoje fazem parte do que eu sou. À Professora Keity Saboya, minha conselheira favorita, cujas ideias me encantaram antes do Direito Penal, agradeço por ter dado sentido a minha graduação por meio do exemplo de uma das pessoas mais geniais que conheço. E para além disso, por sua amizade, fazendo-se presente de algum modo, por bem querer, em momentos significativos da minha vida, felizes ou não tão felizes assim. Guardo todos, com amor e gratidão. Ao Professor Walter Nunes, que me possibilitou sua companhia durante seis semestres, enquanto monitora, aprendendo todos os dias algo novo, agradeço pela confiança, atenção e carinho. O senhor é um professor no sentido mais exato da palavra, um incentivador, e tenho muito orgulho de chamá-lo de mestre. Obrigada pelo presente que o senhor e sua família são em nossas vidas. Ao Professor Erick Pereira, pela referência de advocacia engajada academicamente, que por muitas vezes fez meu olho brilhar em sala de aula. A vontade de aprender mais com sua inteligência e segurança me levou a cursar todas as cadeiras em que lecionou, e essa escolha muito contribuiu para o que penso sobre o papel da defesa no Direito. Sou grata pela gentileza e solicitude com que sempre me recebeu. Agradeço também aos mestres que, ao longo do curso, se não me ensinaram sobre Direito Penal, me proporcionaram algo igualmente valioso: ampliaram o meu olhar sobre o mundo e foram exemplos vocacionados. Gostaria de representá-los nas figuras da Professora Maria do Perpétuo Socorro Wanderley e do Professor Francisco Barros. Este trabalho, assim como minha graduação, é o somatório de muitos, direta ou indiretamente, e a eles agradeço, antes de tudo, em nome dos meus pais, meus primeiros Professores. Graças a eles, compreendi o valor do estudo, do trabalho e de procurar enxergar as dores do outro. Foi meu pai que me ensinou a amar o ensino público e fazer da Universidade Federal a minha casa, como a sala de aula sempre foi seu chão. Com minha mãe, aprendi a caridade, que guiou diversas escolhas que fiz nesse caminho. O suporte de vocês é a minha maior realização. Agradeço a Eduardo, meu irmão, por dividir as dores e alegrias da vida comigo, e por mesmo tão diferente de mim, ser a certeza de que nunca estarei só no mundo. Aos meus avós, Olindina e Clenio, pelo incentivo à continuidade dos meus estudos, e a uma escolha de curso tão parecido comigo, mas que não era capaz de visualizar. Talvez me conheçam mais do que eu. Agradeço a Deus por cruzar a nossa vida e por ser um pedacinho de vocês. À minha bisavó Maria e minha avó Jacira, responsáveis pelo melhor cartão de visitas que eu poderia sonhar em ter - anotaram em um papel o que eu desejava profissionalmente, e desde então, não há um só conhecido a quem não tenham dito que a neta era “advogada criminalista”, mesmo no primeiro ano de faculdade. Tenho muito orgulho das mulheres que são. Ao meu tio Diógenes, meu professor e minha inspiração para tudo, agradeço por alimentar os meus sonhos e me ensinar a advocacia “sob o perfil da poesia”. Rogo a Deus que me permita nunca deixar de assim vê-la. Ao meu tio Rodrigo, agradeço o exemplo de dedicação e comprometimento com o ensino, e por se fazer tão presente, mesmo há tantos anos vivendo do outro lado do país. Sinto muito orgulho de sua carreira. A Gabriel, que ouviu minhas posições, aqui contidas, com paciência e carinho, mas sobretudo me fez entender o que Valter Hugo Mãe dizia, quando escreveu sobre quem nos faz sentir “o dobro do que somos”. Sinto-me o dobro do que sou ao seu lado, e dividir projetos com você é uma realização para mim. Aos irmãos que recebi da vida: Bia, Márcia, Ruth, Aryam, Pedro e Gabriella, em Natal, Salvador, São Paulo, Fortaleza ou Toronto - a alegria de vocês com minhas pequenas conquistas e o interesse em compreender como vejo o mundo significa, para mim, uma prova de amor. Obrigada por tudo. Fiz verdadeiros amigos na Universidade, que se esforçam, em momentos de ansiedade ou dúvida, para que eu me sinta muito mais inteligente, dedicada e competente do que serei em toda a minha vida. Essa confiança, imerecida, me motivou muitas vezes. É um reflexo do que vocês são. Obrigada pela companhia nessa jornada! A Alana, Ana e Glícia, agradeço pelo suporte para que pudesse concluir esta pesquisa, pela amizade no dia a dia de trabalho e pela alegria sincera com que me acolheram. Por essa alegria, também, agradeço à equipe do nosso Escritório, que tanto me ajuda, representando a todos nas figuras de João, Mércia e Roberto. Ao Professor Laércio Segundo de Oliveira, sou grata pelas gentis e valiosas tardes de contribuição neste estudo. Agradeço, por fim, ao meu bisavô, Hélio Galvão, com quem não me foi permitida a convivência terrena, mas que por inspiração divina, despertou a escolha do tema deste trabalho. Trata-se do assunto de seu último livro publicado em vida, cuja existência só descobri após iniciado o processo de escrita. RESUMO A presente monografia se propõe a analisar os desafios da atribuição de responsabilidade penal aos dirigentes empresarias, especialmente por meio da teoria do domínio do fato e da teoria dos crimes omissivos impróprios. A partir, inicialmente, de uma análise criminológica, busca-se compreender a forma com que se deu a mudança de paradigma no sistema criminal, passando a alcançar esses sujeitos, historicamente excluídos da repressão estatal. Verificam-se as possibilidades do uso da teoria do domínio do fato enquanto meio de fundamentação da autoria, passando a abordar, ato contínuo, os problemas da identificação de responsabilidade penal individual no âmbito de uma organização complexa, marcada pela divisão de tarefas e funções, como o é a empresa moderna. Postas essas considerações, passa-se à revisitação bibliográfica, a fim de observar as possibilidades de atribuição de responsabilidade valendo-se da teoria dos crimes omissivos impróprios, assinalando os limites à posição de garantidor, o panorama da causalidade e a medida com que podem ser responsabilizados penalmente os dirigentes, por intermédio disso, por condutas praticadas por seus subordinados. Confrontam-se, em seguida, as conclusões parciais obtidas a partir desse sucedido e a aplicação prática, tomando como ponto de partida um conjunto de casos, em que se valeu o parquet, no oferecimento da denúncia, das categorias objeto da presente investigação. O trabalho toca, por fim, a necessidade de revisitação dessas categorias dogmáticas, objetivando demonstrar que um modelo de responsabilidade que considere, unicamente, a posição ocupada pelos dirigentes empresariais no interior da estrutura, é ilegítimo à luz dos princípios penais e das disposições normativas. Palavras-chave: criminalidade de empresa; responsabilidade penal de dirigentes; crimes omissivos impróprios. ABSTRACT The present monograph aims to analyze the challenges of the attribution of criminal responsibility to entrepreneurial leaders, especially through the theory of dominion of fact and the theory of improper omissive crimes. Starting, firstly, from a criminological analysis, it seeks to understand the way in which the paradigm change in the criminal system occurred, reaching these historically excluded from state repression individuals. The possibilities for the use of the theory of the dominion of fact as a basis for authorship are verified by addressing the problems of the identification of individual criminal responsibility within a complex organization, marked by the division of tasks and functions, as is the modern enterprise. Having regard to these considerations, we move on to bibliographical revisitation in order to observe the possibilities of attributing responsibility using the theory of improper omissive crimes, highlighting the limits to the position of guarantor, the panorama of causality and the extent to which leaders can be held criminally liable for conduct by their subordinates. The partial conclusions drawn from this event and its practical application, taking as their starting point a number of cases where the accusation offer was used, are then compared to the offer of complaint of the categories subject to this investigation. The work finally touches on the need to revisit these dogmatic categories, with the aim of demonstrating that a model of responsibility that considers only the position occupied by the business leaders within the structure is unlawful in the light of criminal principles and legal provisions. Keywords: entrepreneurial crime; criminal liability of leaders; improper omissive crimes. A longa noite da repressão que desceu sobre o País, se por um lado protegeu e tornou inabordáveis à crítica todos os homens que – em qualquer posição da engrenagem administrativa – exerceram funções de comando ou gestão de bens e valores, por outro lado criou para eles uma pouco compensadora atmosfera de suspeitas e reservas morais de toda ordem. Apenas prometida de novo, embora com vigoroso enfoque de sinceridade, a tão esperada distensão, os tênues clarões da alvorada democrática, vislumbrados nos distantes e esfumaçados horizontes onde se cruzam tendências contraditórias, surgem de todos os lados – como nascem da terra molhada as miríades de sementes selvagens que esperavam o momento fecundante de germinação – denúncias, queixas, delações, que aumentam de proporção na sombra em que jaziam os fatos, como aqueles fantasmas folclóricos que surgem, crescem, se avolumam, ficam gigantes e à aproximação se esfumam em nada... é o zumbi. E este processo é um zumbi. Hélio Mamede de Freitas Galvão, meu bisavô, em introdução da Defesa Prévia de um dirigente, a quem se imputava o delito por mera posição. Natal, setembro de 19751. 1 Defesa prévia, Alegações finais e Habeas Corpus publicadas em GALVÃO, Hélio Mamede de Freitas; GALVÃO, José Arno. Responsabilidade penal de diretores de sociedade anônima: Caso BDRN. Natal: [s.n.], 1976. SUMÁRIO 1 NOTAS INTRODUTÓRIAS .............................................................................................. 12 2 A CRIMINALIDADE ECONÔMICA: MUDANÇA DE PARADIGMA. ..................... 17 2.1 O subgrupo da Criminalidade Econômica de Empresa e o “espírito criminal de grupo” ...................................................................................................................................... 25 2.2 Imputação individual em organizações descentralizadas: o domínio do fato de Claus Roxin, a experiência brasileira no Mensalão e os problemas da delegação e divisão de tarefas ...................................................................................................................................... 29 2.3 Síntese intermediária ........................................................................................................ 39 3 A RESPONSABILIDADE PENAL DOS DIRIGENTES DE EMPRESA POR OMISSÃO IMPRÓPRIA ....................................................................................................... 41 3.1 Critérios limitativos a uma posição de garantidor ........................................................ 46 3.2 Panorama da causalidade na imputação por crimes omissivos impróprios e as omissões simultâneas e paralelas ........................................................................................... 58 3.3 Síntese intermediária ........................................................................................................ 70 4 ANÁLISE DAS DISTORÇÕES NA IMPUTAÇÃO DE DIRIGENTES POR CRIMINALIDADE ECONÔMICA DE EMPRESA: PROBLEMAS PRÁTICOS ........ 73 4.1 Situação A – Responsabilidade de dirigentes de empresa por meio do domínio do fato e “aparatos organizados de poder” ............................................................................... 77 4.2 Situação B – Responsabilidade por omissão imprópria fundada em mera posição... 85 4.3 Situação C – Responsabilidade por fatos praticados por subordinados no contexto empresarial .............................................................................................................................. 90 4.4 Síntese intermediária ........................................................................................................ 94 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 96 6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 100 APÊNDICE ........................................................................................................................... 109 12 1 NOTAS INTRODUTÓRIAS O interesse midiático sobre o poder punitivo o torna, não raro, terreno fértil para a espetacularização. A publicidade do processo, imprescindível em um Estado de Direito, convive com os olhares não apenas das partes, mas das esferas políticas e da opinião pública, situando os operadores desse sistema em uma complexa relação. De um lado, nos julgamentos penais, os conceitos e garantias impõem limites à pretensão acusatória, enquanto de outro, enfrentam uma sociedade que se pauta pelo medo e pela insegurança, reproduzindo um discurso emergencial. A esse discurso não interessam garantias fundamentais, marcos teóricos para imputação, standards probatórios: o que não se pode é deixar de aplicar a lei e condenar. Volátil por essência, a vontade pública modifica, também, os alvos de seu raciocínio condenatório. O fim da impunidade como demanda popular, se antes se referia apenas à cifra negra dos crimes violentos ou à perseguição de grupos marginalizados, no panorama atual, repercute nas classes outrora imunizadas, detentoras do poder econômico e político. No caso brasileiro, o “Mensalão” (Ação Penal 470/STF) inaugura, ao menos se considerado o impacto nacional, a ascensão de uma responsabilidade penal direcionada às mais altas classes sociais, o que se perpetua, no atual momento, por meio da “Operação Lava Jato”. A dogmática, no entanto, parece ter sido relegada a um segundo plano. A importação de teorias do direito estrangeiro, oriundas de outros âmbitos de cultura jurídica, na ânsia de suprir as lacunas existentes no ordenamento brasileiro e atender ao clamor das ruas, fez morada na jurisprudência do país. Não se trata mais de lograr um resultado seguindo a trilha da imputação, mas de determinar essa trilha a partir do resultado que se almeja. E a criminalização dos “poderosos” parece ser, por ora, esse objetivo. Quando o Direito cede lugar à mídia, o manejo de conceitos e noções teóricas conta menos. As importadas teorias de que se falou, portanto, aplicam-se ainda quando incompatíveis – entre si ou entre elas e os limites normativos –, e seus resultados são aterrorizantes. É nesse contexto que se insere a problemática deste estudo. Alguns dirigentes de empresas figuram, desde o “Mensalão”, entre os acusados dessas grandes operações. Os delitos supostamente praticados referem-se, em quase totalidade, a práticas no exercício de sua atividade econômica. Afirmar a responsabilidade penal, individual e subjetiva, diante dessa circunstância, enfrenta como desafio as características típicas da organização empresarial, a exemplo da intervenção de diversos sujeitos no curso dos acontecimentos e a divisão de tarefas. 13 Analisando esse ciclo, evidencia-se um distanciamento entre os que possuíam o poder de decidir e os sujeitos que, efetivamente, praticam a conduta delituosa. A solução adotada na Ação Penal 470, para simplificar o percurso rumo à autoria, deu-se com o uso da Teoria do Domínio do Fato, nos termos desenvolvidos pelo jurista alemão Claus Roxin, escolha que permanece preponderando. Aos poucos ganha espaço, contudo, o uso dos delitos omissivos impróprios e a posição de garante como meio de atribuição de autoria, muito embora a doutrina pátria ainda apresente, nessa temática, poucas contribuições. Talvez por isso, quando visualizada em denúncias, também se valha o órgão de acusação das teorias estrangeiras. Apesar de encontrar amparo normativo no Código Penal brasileiro, trata-se de categoria controversa, pela ausência de clareza do texto legal aos seus parâmetros de imputação. Uma reafirmação democrática da justiça penal, especialmente no campo do Direito Penal Econômico, em que se englobam as condutas aqui referidas, reclama uma análise tripla. Inicialmente, sob o viés criminológico, é preciso compreender os caminhos que conduziram a essa expansão penal; no plano dogmático, extrair suas justificativas e as possibilidades de preenchimento material dos conceitos e, antes de verificar as eventuais falhas de sua transposição ao campo prático, confrontar as opções dogmáticas disponíveis com os limites impostos pelo legislador. O capítulo primeiro desta pesquisa propõe-se a observar a mudança de paradigma no sistema criminal da globalização, a partir de um enfoque social, no intuito de verificar de que maneira essa mudança orientou o aumento da repressão à criminalidade econômica. Bem assim, serão examinadas as características desse conjunto de ações e os pontos em que se distinguem da criminalidade clássica, para então, abordar a solução pela Teoria do Domínio do Fato e seus percalços em âmbito empresarial. No segundo capítulo, cuida-se do estudo da omissão imprópria, com recorte em sua aplicação relacionada à imputação de dirigentes de empresa. Em uma revisitação doutrinária, serão analisados os critérios limitativos da posição de garantidor, em paralelo às possibilidades contidas no art. 13, §2º, do Código Penal, e sua harmonia com os princípios e garantias desse sistema. Prosseguirá o mesmo capítulo com um panorama da causalidade nos delitos omissivos, demonstrando o incremento de dificuldade nessa temática quando diante de estruturas empresariais organizadas, que ocasionam problemas atípicos, como as omissões paralelas e simultâneas. 14 Por fim, o derradeiro capítulo enfrenta um grupo de casos e os caminhos eleitos, em cada um deles, para a atribuição da autoria e a construção da responsabilidade penal. O marco teórico para confrontá-los, verificando os acertos ou equívocos da aplicação de cada categoria, será o resultado obtido nos capítulos imediatamente anteriores, precedendo com um exame de adequação ao ordenamento vigente. A metodologia deste trabalho consiste na aplicação do método de abordagem dedutivo, haja vista partir das teorias que envolvem a temática em questão, e o método de procedimento predominante é o monográfico. Trata-se de uma pesquisa dos tipos exploratório e bibliográfico, baseada em fontes secundárias, como: livros de doutrina jurídica, artigos científicos, sítios eletrônicos, Constituição Federal de 1988, legislação e denúncias do Ministério Público Federal. A ausência de uma reflexão dogmática, que também seja adequada às soluções legislativas disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro, conduz às mais diversas interpretações, por vezes tortuosas. Não se nega uma transformação na perspectiva política e criminológica, mas se verá, preliminarmente, que essas mudanças nem sempre correspondem à idoneidade do uso do Direito Penal, e tampouco bastam para fundamentar uma imputação. Distanciá-la de uma justificativa dogmático-jurídica prévia finda por situar essa responsabilidade fora do espectro legítimo. Para trazer maior clareza à problemática, serão utilizados, no último capítulo, os casos práticos que motivaram o presente estudo: distintas denúncias, oferecidas pelo Ministério Público Federal, que se valeram de conceitos cuja adequação, no contexto em que foram aplicados, será objeto de análise neste trabalho. Embora sejam expostos em momento último, em virtude de não se desejar, metodologicamente, a realização de um estudo de caso, cumpre desde logo apresentá-los: A) Denúncia Samarco Ref. Inquérito Policial nº 183/2015 SRPF/MG Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal referente ao rompimento da barragem de Fundão, situada no município de Mariana/MG, gerenciada à época dos fatos 15 pela pessoa jurídica SAMARCO MINERAÇÃO S/A. Afirma o parquet, de acordo com as investigações, que os denunciados “atuavam na condição de diretores, administradores, membros de conselhos e de órgãos técnicos, gerentes, empregados, prepostos, mandatários ou contratados da VALE, BHP e Samarco”, e que possuíam “conhecimento dos diversos problemas, falhas ou “não conformidades” operacionais”, bem como do “progressivo incremento da situação típica de risco, mesmo devendo e podendo agir para evitar o rompimento da barragem de Fundão e os resultados penalmente desvalorados”, incidindo nas figuras típicas por meio de condutas omissivas. Atribuiu-se o dever de garante, além das pessoas jurídicas VALE, BHP e SAMARCO, aos membros do Conselho de Administração da Samarco, da VALE e da BHP, aos representantes da VALE e da BHP nos Comitês de Operação e Desempenho Operacional, aos Diretores Executivos (Diretor Presidente e Diretor de Operações e Infraestrutura), aos gerentes e engenheiros da SAMARCO (Gerência Geral de Geotecnia, Gerência de Geotecnia de Barragens, Gerente Geral de Mina) e ao Engenheiro Sênior da VOGBR Recursos Hídricos e Geotecnia Ltda., totalizando 3 (três) pessoas jurídicas e 21 (vinte e uma) pessoas físicas sob a imputação de violação a deveres de garantia, nos termos do Art. 13, §2º, CP. B) Denúncia Lula - Sítio de Atibaia Ref. Inquérito Policial nº 5006597-38.2016.4.04.7000 Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal que, dentre outros, imputa a Luiz Inácio Lula da Silva, em razão de sua função, a prática do delito de corrupção passiva qualificada, por 3 (três) vezes, que teria se dado por meio de um esquema sob seu comando. Assevera o parquet que cabia ao denunciado a nomeação e manutenção dos ocupantes da Diretoria de Serviços e Abastecimento da Petrobras, sociedade de economia mista, em cujo mandato foram assinados contratos e aditivos “comprometidos com a geração e arrecadação de propinas” e garantindo o enriquecimento ilícito de “parlamentares dessas agremiações, de si próprio, dos detentores dos cargos diretivos da estatal e de operadores financeiros”. Para tanto, na temática que interessa a este trabalho, valeu-se a denúncia de imputações de autoria e participação por meio da aplicação de conceitos de domínio do fato e aparatos organizados de poder, além de domínio da organização, atribuídos ao denunciado em destaque, tanto referente à estatal petroleira quanto aos atos de diretores da empresa. 16 C) Denúncia IESA Óleo e Gás e construtora Queiroz Galvão Ref. Inquérito Policial autos nº 5016060-38.2015.404.7000 Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal referente a supostos crimes de organização criminosa, cartel, fraude à licitação, corrupção ativa e lavagem de dinheiro, aos quais atribui o parquet autoria a 3 (três) executivos da IESA ÓLEO E GÁS e 5 (cinco) prepostos da construtora QUEIROZ GALVÃO. Com relação aos executivos da IESA OLÉO E GÁS, os cargos ocupados pelos denunciados correspondiam a Diretor, Diretor de operações, Diretor Presidente e, em momento posterior, Diretor de desenvolvimento de novos negócios. Quanto à construtora QUEIROZ GALVÃO, os denunciados exerciam cargos de Diretor, Diretor subordinado, Diretor de óleo e gás, Presidente e Conselheiro da área offshore e naval da construtora. Para a imputação das supostas condutas delituosas, utilizou-se como fundamento o domínio funcional sobre os fatos. 17 2 A CRIMINALIDADE DE EMPRESA – MUDANÇA DE PARADIGMA “A troca de uma ortodoxia por outra não representa necessariamente um avanço. O inimigo é a mentalidade de gramofone, concordemos ou não com o discurso que está tocando agora”. (George Orwell, A Revolução dos Bichos). Transformações marcam o nosso tempo, mas a tentativa de compreendê-las exige um olhar sistêmico. O avanço da modernidade, com a produção social de riquezas, assim como advertiu Ulrich Beck, conduz, também, à produção social de riscos2. De acordo com seu entendimento, o novo paradigma dessa sociedade, agora chamada de sociedade do risco3, coincide com a problemática da divisão de classes e da produção capitalista, presentes em “O Capital”, no qual Karl Marx assentou sua teoria sob as evidências de que essa ordem econômica, orientada pela indústria moderna, nortearia o ponto culminante de uma crise geral4. Se é verdade que, para Karl Marx, a crise de legitimidade residia na própria formação econômica capitalista e no desenvolvimento industrial, que acarretava as “misérias modernas”5 a partir das “paixões mais violentas, mesquinhas e execráveis do coração humano, as fúrias do interesse privado”6, solucionável apenas pelo fim da sociedade capitalista, para Ulrich Beck o desafio consiste em buscar uma via de compatibilização. Enfrenta o autor o desafio de compreender de que modo os riscos, também advindos do processo de evolução capitalista, podem ser limitados, de maneira que não criem obstáculos à própria modernização e, simultaneamente, não ultrapassem os limites do suportável7. Decerto, as obras de Marx e Beck devem ser situadas no tempo e espaço correspondentes, mas, embora se refiram sistematicamente a épocas distintas do processo de modernização, persevera o núcleo comum: tratam das consequências do desenvolvimento técnico-econômico. A continuidade desses processos conduz, mais cedo ou mais tarde, aos conflitos sociais, sejam eles de repartição de riqueza, outrora situados no centro do problema, 2 BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. Traducción de Jorge Navarro, Daniel Jiménez e M° Rosa Borras. p. 25. 3 A terminologia “sociedade do risco” ou “sociedade industrial do risco”, no contexto empregado neste trabalho, corresponde, em brevíssima síntese, à modernidade que se desprende da sociedade industrial clássica, constituindo uma nova figura. Trata-se de conceito amplamente desenvolvido por Ulrich Beck, na construção de sua teoria sociológica. 4 MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. (Livro I - O processo de produção capitalista). p. 91. 5 MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. (Livro I - O processo de produção capitalista). p. 78-80. 6 Ibidem. p. 80. 7 BECK, ULRICH. La sociedade del riesgo. p. 26. 18 sejam de repartição de riscos, a exemplo do cenário com o qual presentemente nos defrontamos8. A irreversibilidade da globalização e suas ameaças reclamam do Estado um redimensionamento, que só será possível quando revisitados os meios para tanto. Não se pode resumir as soluções que busquem estabilidade, no contexto atual, a uma “aceitação pragmática” ou a um “pessimismo cínico”9; devem ser analisadas dentro da complexidade apresentada, para que as respostas advenham de uma elaboração estratégica. Essa conjuntura impacta também o Direito, e para o interesse maior desta pesquisa, o ramo do Direito Penal. A legislação penal brasileira, com forte tendência à proteção do patrimônio privado e de repressão, principalmente, a condutas típicas de grupos sociais marginalizados, foi conduzida por um processo de criminalização primária10 que, enquanto criminalizava ações típicas de determinados grupos, excluía, de forma deliberada, outros sujeitos da seleção penal11. Com um recorte que priorizou, então, a tipificação de condutas a partir da divisão de classes, com probabilidade maior de imunizar infrações típicas das classes burguesas, revela-se um dos aspectos do caráter fragmentário do Direito Penal12, pelo qual certos comportamentos jamais serão alcançados pelo sistema. Esse fenômeno é visto, em um de seus primeiros enfoques, a partir dos estudos de Edwin Sutherland. A análise de Sutherland utilizava, como ponto gravitacional, a constatação de que o status econômico influenciava tanto na tipificação de condutas delitivas - processo de 8 BECK, ULRICH. La sociedade del riesgo. p. 27. 9 D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. 10 Com o conceito de criminalização primária e secundária, neste trabalho, adota-se o sentido empregado por Ela Wiecko Castillo, correspondendo a processos de definição e seleção de sujeitos criminalizados, bens jurídicos que merecem tutela penal e comportamentos ofensivos a esses bens, dignos de repressão. A criminalização primária, assim, se fará pela produção de normas penais, enquanto a criminalização secundária se dará na aplicação dessas normas penais. Nesse sentido, CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492, de 16.06.86). 1996. 243 f. Tese (Doutorado) - Curso de Curso de Pós- graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1996. p. 25-26. Ainda, Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, em ZAFFARONI, Eugenio Raul et al. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. v. 1. p. 43. 11 Ibidem. p. 25. 12 A opção por abordar, neste momento, a ideia de fragmentariedade, em detrimento de um conceito de seletividade penal, deve-se ao fato de que a criminalização primária é processo conduzido por agências políticas, que selecionam, em regra, os bens jurídicos abarcados pela tutela penal, e embora permitam uma maior predisposição a incriminar determinados grupos, em virtude do teor desses atos e condutas proibidas, não se dirige exclusivamente a eles. A seletividade penal, que diz respeito à seleção de pessoas submetidas à coação penal, com o fim de imposição de pena, é refletida com maior intensidade na criminalização secundária, que trata efetivamente da ação punitiva sobre pessoas concretas, por intermédio de uma agência judicial. Apesar dessas considerações, para um entendimento diverso, ver ZAFFARONI, E. Raul et al. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011. p. 45, para o qual “considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário”. 19 criminalização primária -, quanto no número de condenações criminais - via da criminalização secundária. Passou a conceituar, então, sob a terminologia white collar crime, as violações legais praticadas por pessoas de status social alto, no curso de sua ocupação, destacando que o termo se referia, principalmente, a “empresários e executivos”13. A característica primordial para a seleção, em outras palavras, dizia respeito à classe social, e a expressão empregada pelo autor é vista como um sinônimo do que se trata como criminalidade econômica. Parcela do grupo a que se referia Sutherland domina, ainda, o setor industrial, organizando a produção de bens em um sistema de livre concorrência. O surgimento de novas tecnologias e a busca por maior produtividade, necessários para a acumulação do capital desses indivíduos, no cenário hoje experimentado, torna o risco fator indispensável ao desenvolvimento econômico14. Nessa medida, o risco constitui, também, um referencial político, e dessa forma, situa os que o administram como destinatários de normas jurídicas limitativas e de coerção15. O contexto escapa do controle de órgãos de proteção anteriormente suficientes, uma vez que os processos de produção passam a ser vistos como fontes potenciais de perigo16, sejam eles políticos, ambientais ou individuais. A compreensão repercute no uso do Direito Penal como instrumento gerenciador dessas situações, implicando uma transformação dupla. Por um lado, a globalização da economia, especialmente dos fatores produtivos, amplia o fenômeno da delinquência econômica, pela extensão das lesões possíveis, ocupando um espaço antes pertencente, em maior escala, à criminalidade violenta, com repercussão corporal clara. De outro ponto, a vítima, antes individual, é substituída pela “vítima-coletivo”, “vítima-sistema” e “vítima-mercado”17. A dinamicidade dos fenômenos econômicos, a perda de controle sobre a técnica e até mesmo as decisões equivocadas, adotadas pelos que gerenciam essas “fontes potenciais de perigo”, passam a repercutir como efeitos prejudiciais diretos ou indiretos a uma coletividade. 13 SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Traducción del inglés de Rosa del Olmo. Madrid: Ediciones La Piqueta, 1999. 339 p. p. 65. 14 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 26. 15 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 27. 16 Conforme alerta Bottini, em Crimes de Perigo Abstrato, o risco não implica que as técnicas sejam, em um primeiro momento, lesivas e prejudicias, mas o estado de risco gera uma expectativa de perigo. No mesmo sentido, Ulrich Beck: “Risks are not the same as destruction. They do not refer to damages incurred. However, risks do threaten destruction. [...] The concept of risk thus caracterizes a peculiar intermediate state between security and destruction, where the perception of threatening risks determines thought and action”. BECK, Ulrich. Risk society revisited: Theory, politics and research programmes. In: ADAM, Barbara; BECK, Ulrich; VAN LOON, Joost (Edits.). The risk society and beyond. London: Sage Publications, 2000. p. 211-229. 17 SILVA, Luciano Nascimento. Teoria do Direito Penal Econômico: Fundamentos Constitucionais da Ciência Criminal Secundária. Curitiba: Juruá, 2010. p. 27. 20 Configuram, em outras palavras, o risco da procedência humana como um fenômeno social estrutural18. Esse sucedido no Direito Penal, enquanto ramo do saber que, por essa mesma razão, não pode ser estático, exige um aprimoramento de categorias, diante de resultados lesivos que se apartam da delinquência dolosa tradicional19, abalando a própria construção de conceitos que, apartados dessa problemática, aparentavam razoável consenso, a exemplo da criminalidade organizada. É o desconserto das ideologias do Direito Penal clássico, na terminologia empregada por Zaffaroni, para o que não há caminho, diante da complexidade apresentada, que não implique revisitar a própria função do Direito Penal contemporâneo, de seus elementos fundamentais e, especialmente, de seus limites formais e materiais20. Inegavelmente, a resposta penal tem sofrido influências da dimensão subjetiva da sociedade do risco: uma ausência de domínio, socialmente sentida, do curso dos acontecimentos; uma falta de critérios decisórios que ocasiona angústia e insegurança21. Em verdade, conforme lecionam Hassemer e Muñoz Conde, a opinião pública concebe, não raramente, o delito enquanto um mal, exsurgindo ideias de luta. Luta que reivindica, de acordo com a maior ou menor ameaça intuitivamente atribuída a cada delito, a elaboração de uma política repressiva, caracterizando um direito penal do inimigo22. O que se notará, ao analisar delitos econômicos, é uma hipertrofia do sistema penal para, finalmente, alcançar os sujeitos dessa criminalidade23. Sujeitos que no sistema criminal, como evidenciam os já citados estudos de Sutherland e, no contexto brasileiro, com destaque especial na também referida pesquisa de Ela Wiecko Castillo, fizeram parte historicamente da “cifra dourada”24, desaparecendo das estatísticas de crimes em virtude de seu status socioeconômico25. 18 SILVA-SANCHEZ, Jesus Maria. La expansión del derecho penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001. p. 27. 19 Ibidem. p. 28. 20 D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 30. 21 A respeito da sensação social de insegurança, ver SILVA-SANCHEZ, Jesus Maria. La expansión del derecho penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001. p. 32-42. 22 HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. Introducción a la Criminología y al Derecho Penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1989. p. 37-40. 23 SILVA, Luciano Nascimento. Teoria do Direito Penal Econômico: Fundamentos Constitucionais da Ciência Criminal Secundária. Curitiba: Juruá, 2010. p. 39. 24 CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492, de 16.06.86). 1996. 243 f. Tese (Doutorado) - Curso de Pós-graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1996. p. 27. 25 Ibidem. 21 Em termos políticos, ao analisar a tendência criminal sócio-democrática na Europa, identifica Silva Sanchez um fenômeno peculiar, que como se demonstrará neste trabalho, reflete o cenário brasileiro: em uma concepção inicial, os grupos popularmente identificados como “direita” buscavam o incremento da segurança por meio da pressão punitiva, ao passo que os rotulados de “esquerda” buscavam sua redução. Quando assume na Europa a social-democracia, o discurso de segurança, por meio do Direito Penal, passa a integrar ambos os grupos, ao que denominou o autor de “ideologia da lei e ordem em versão de esquerda”; uma manipulação do sistema criminal como forma de transformação social, utilizando os instrumentos punitivos de maneira antigarantista, para que incidissem sobre os grupos mais poderosos. Ao tratar de semelhante mudança de pensamento, dessa vez na da América Latina, destaca Maria Lucia Karam, discorrendo a respeito da esquerda punitiva, que o conceito de poderosos limita-se, para os que aderem a esse “histérico e irracional combate”, unicamente a uma visão dos acusados enquanto sujeitos enriquecidos26. Independe, portanto, de qualquer poder efetivo, ou de qualquer conduta sinalizadora de que operem, concretamente, um perigo, inserindo-se na já aludida problemática da divisão de classes e da reflexividade dos riscos. Retomando o paradoxo com Karl Marx, o fenômeno aqui tratado se traduz na inversão do discurso: essa esquerda punitiva27, farta de uma malha penal mais estreita aos marginalizados que às classes dominantes, passa a desejar, sob protestos contra a impunidade, que os mecanismos repressores enfrentem, com severas condenações, os abusos do poder econômico28. Substituem-se os ideais de direito penal mínimo29, anteriormente defendido, pelo furor persecutório, similar ao que a distopia de George Orwell, na literatura, qualificou como “mentalidade de gramofone”30. Acerta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho ao destacar que, “para a infelicidade de todos, está-se conseguindo o milagre da (des)razão”. Uma sociedade que, com medo, passa a integrar o coro punitivista: “Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue!”. Trata-se de 26 KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p.79-92, jul. 1996. 27 Ibidem. 28 Ibidem. 29 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Vários tradutores. p. 83. “O direito penal mínimo, quer dizer, condicionado e limitado ao máximo, corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza.” 30 ORWELL, George. A revolução dos bichos: Um conto de fadas. Tradução de Heitor Aquino. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 137. “A troca de uma ortodoxia por outra não representa necessariamente um avanço. O inimigo é a mentalidade de gramofone, concordemos ou não com o discurso que está tocando agora”. 22 metáfora extraída de “O Senhor das Moscas”, de William Golding, para demonstrar que, mesmo de forma inconsciente, tende-se a reproduzir, após a crise, a mesma sociedade que se tinha31. Não se nega, no sentido apontado por Pierpaolo Cruz Bottini, que as construções dogmáticas se atrelam a ideologias específicas. Agora, no entanto, “o elemento político que sustenta o preenchimento normativo dos conceitos é descortinado, deixa as entrelinhas, perde a roupagem aparentemente técnica”, surgindo como “referência necessária a materializar e preencher os elementos de referência normativa”32. O descrédito a outras instâncias, sua falta de abrangência e uma desconfiança à Administração Pública como meio de proteção, conduz a uma ideia corriqueira de que seria o Direito Penal o “único instrumento eficaz de pedagogia político-social”, valendo-se desse sistema como um mecanismo de “civilização”. Essa concepção, repetidamente, afasta o freio da ultima ratio, como se as bases do sistema criminal e suas garantias fossem móveis, disponíveis, em todo caso, às correntes políticas dominantes, ou à neutralização do sentimento negativo, presente na opinião pública. De um modo ou de outro, a urgência por respostas penais à criminalidade econômica, se é seguro que se funda, em partes, pela real impotência do sistema, pensado para um período histórico diverso do que se vivencia, também corresponde a uma demanda de criminalização, para solucionar a insegurança dessa sociedade do risco ou, como dito, para intentar pôr fim à “criminalidade dos poderosos”, ainda que de maneira simbólica, mas em todo caso, valendo-se de instrumentos igualmente afastados das garantias tradicionais do Direito Penal. Em outras palavras, a lógica empregada na persecução de determinados crimes, em particular, para este trabalho, nos crimes econômicos, considera um objetivo final, tido como elogiável, mas desconsidera que a legitimação do poder estatal não se preenche por esse objetivo, senão por critérios de idoneidade dos meios empregados, necessidade e proporcionalidade33, requerendo uma justificativa em face dos princípios limitadores desse mesmo poder34. 31 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Estado de Polícia: Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o sangue! In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: Interlocuções a partir da literatura. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 85-100. 32 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O paradoxo do risco e a política criminal contemporânea. In: MENDES, Gilmar Ferreira; BOTTINI, Pierpaolo Cruz; PACELLI, Eugênio (Orgs.). Direito Penal Contemporâneo: Questões controvertidas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 109-134. (Série IDP). p. 129. 33 SCHUNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 77. 34 Caso contrário, ademais, se incide no “açodamento de discursos e decisões que mais encerram o condão de refletores pessoais que refletores do justo”, crítica apresentada por PEREIRA, Erick Wilson. Lei da Precipitação. In: PEREIRA, Erick Wilson. Consciência Democrática. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Cap. 17. p. 70-72, complementada ao relembrar o julgamento de Jesus Cristo em função do clamor público, fato que levou o então 23 Nesse universo, onde emergem discussões sobre a responsabilidade penal por ilícitos de perigo abstrato, por delitos de mera desobediência e antecipação da tutela penal35, o ilícito típico praticado por omissão é retomado, com maior relevo, enquanto técnica de tutela. Não se trata de uma categoria nova. As inquietações sobre sua aplicação e limites, e da necessária revisitação acadêmica, já eram antecipados, no país, por Tobias Barreto, desde 1879, quando desejava provar, em suas palavras, que a ideia dos delitos omissivos não era comum entre nós, mas que em virtude disso, necessitava de “abrir caminhos através das verdades feitas na academia, como pílulas de botica”36. Ultrapassados mais de cem anos da advertência de Tobias Barreto, Heleno Cláudio Fragoso afirmava, ainda, a incerteza quanto aos princípios regentes da omissão no Direito brasileiro, ao surgimento de um dever de atuar e, de todo modo, à inadequação de que os crimes omissivos se refiram, exclusivamente, a deveres morais37. A preocupação persiste, e não se pode admitir, para solucioná-la, a criação de um “Direito Penal do risco”, no intento único de alcançar grupos que julgam não serem alcançados pelos atuais limites do Direito Penal. Embora a criminalidade econômica acarrete um inegável custo, exige-se um Direito Penal fiel a princípios fundamentais, que salvaguarde garantias, inerentes ao próprio sistema, sob pena de pôr em risco a construção jurídico-doutrinária alcançada38. Com o necessário reconhecimento de limites inultrapassáveis no sistema criminal clássico, não se defende a manutenção da “cifra dourada”, mas que as respostas penais se governante, Pilatos, a “passar à história como exemplo de magistrado pusilânime e insensível”. Retome-se, aqui, a inidoneidade do “clamor público” enquanto fundamento de repressão criminal, inclusive por sua volatilidade. 35 Características que, de acordo com Winfried Hassemer, especialmente no que se refere aos delitos de perigo abstrato, marcam o “moderno direito penal”, ampliando seu âmbito de aplicação através de uma “redução dos pressupostos do castigo”. HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputacion en derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz Conde y María del Mar Díaz Pita. Bogotá: Editorial Temis S. A., 1999. p. 24-25. 36 BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias Barreto; 1). Publicação Póstuma dirigida por Sylvio Roméro. Pg. 190: “Eu me recordo de já ter assistido ao julgamento de um processo celebre, no qual os defensores do accusado, quasi todos tidos em conta de juristas abalisados, allegavam seriamente que a melhor prova da innocencia do reu era que, no momento do facto arguido, ele nada praticára de positivo, mas ao contrario, se distinguira pela inação; e quando se lhes oppunha que nesta mesma inação, que nesta mesma falta de um acto positivo, que no caso teria servido para obstar o morticínio (trata-vase de tal delicto), consistia o crime questionado, os bons juristas riam-se com emphase, como diante de uma extravagância. Elles não comprehendiam a solução do problema, senão envolto nesta velha casca: A mandou por B, C, D, E, matar F? [...] Tudo isso dirige-se a um fim: provar que a ideia dos delictos omissivos não é commum entre nós, e, como tal, necessita de abrir caminho através das verdades feitas na academia, como pílulas na botica.” 37 FRAGOSO, Heleno Claudio. Crimes omissivos no Direito Brasileiro. Revista de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, v. 33, p. 41-47, jan. 1982. 38 D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. 24 sujeitem, em todo caso, a sua própria limitação. É preciso aceitá-la, para que não se esvaziem as “regras do jogo”, a partir da criação de um sistema paralelo, unicamente para afastar ou flexibilizar os limites impostos à intervenção estatal39. Desastrosamente, essa criação paralela, na temática dos crimes omissivos impróprios e, com mais força, quando empregada junto aos delitos econômicos, tem-se verificado pela via da criminalização secundária40. O estudo dessa responsabilidade por omissão envolve, conforme leciona Juarez Tavares, “questões relativas ao adequado e ao inadequado, ao simbólico e ao intuitivo”41, razão pela qual sua utilização, sem parâmetros fixados, tende a se distanciar da face liberal e do mínimo ético, tornando-se meio de controle para problemas sociais, características compartilhadas com o Direito Penal simbólico42. Em nossa legislação criminal, os delitos de omissão imprópria se associam a normas proibitivas, infringidas por um sujeito que ocupava, na data do fato, posição de garantidor de um dado bem jurídico, razão pela qual estaria obrigado a impedir o resultado43. Por ser forma de realização típica, submetida às regras do sistema criminal e seus princípios, a utilização do Direito Penal será possível apenas quando se verificar, em um primeiro momento, a existência de fato típico relevante (desvalor da ação), possível de ser atribuído a um indivíduo concreto, em respeito às fronteiras da culpabilidade e da proporcionalidade. Dentro do largo espectro do Direito Penal Econômico, o subgrupo da criminalidade de empresa possui particularidades que dificultam sensivelmente essa atribuição. É que o eventual delito, realizado no interior de empresas, enfrenta problemas que, escapando das fronteiras desse Direito, referem-se à própria estruturação empresarial; aspectos como a divisão de tarefas, as organizações hierárquicas e a interferência de um sem-número de sujeitos na cadeia causal. Na premissa de que a atividade dos atores envolvidos no processo de criminalização secundária – especialmente os órgãos de acusação e o Poder Judiciário - não se justifica 39 A respeito do assunto, Silva Sanchez, A expansão, p. 73: “Pues ya proliferan las voces de quienes admiten la necesidad de modificar, al menos en ciertos casos, las <>. Em ello influye, sin duda, la constatación de la limitada capacidad del Derecho penal clásico de base liberal (com sus princípios de taxatividad, imputación individual, presunción de inocencia, etc.) para combatir fenómenos de macrocriminalidad. Pero quizá lo debido sea entonces asumir tales limitaciones”. 40 BARATTA, Alessandro. Criminologia critica y critica del derecho penal: Introduccion a la sociologia juridico penal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004. p. 95, aponta a criminalização secundária como o processo de aplicação das regras gerais, enquanto a criminalização primária, já referenciada neste trabalho, refere- se à elaboração de tais regras, isto é, ao processo imediatamente anterior, de penalização e despenalização. 41 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 28. 42 Hassemer, Winfried, «Derecho Penal Simbólico y protección de Bienes Jurídicos», en Varios Autores «Pena y Estado», Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995, pg. 4-5. “No se trata sólo de la aplicación instrumental del Derecho penal y de la justicia penal sino (tras ellos) de objetivos preventivos especiales y generales: transmitir al condenado un sentimiento de responsabilidad, proteger la conciencia moral colectiva y asentar el juicio social ético; se trata de la confirmación del Derecho y de la observación”. 43 TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 389-396. 25 legitimamente quando afastada de derivações dogmáticas e de limites normativos, buscando sua salvação em uma jurisprudência casuística44, que impede, pelo distanciamento de limitações e categorias claras, o próprio exercício do direito de defesa45, é que a questão da criminalidade econômica necessita ser analisada. Trata-se, mais do que de uma simples mudança de paradigma, que transporta a discussão sobre crimes puramente comissivos, predominantemente dolosos, à imputação cada vez mais alargada de modalidades omissivas, da retomada, nesse cenário, de métodos tipicamente inquisitivos46, buscando maior eficiência das leis por meio da ação repressiva do Estado, e regressando a ideias de primazia da tutela social em detrimento de garantias individuais47. 2.1 O subgrupo da Criminalidade Econômica de Empresa e o “espírito criminal de grupo” A partir das considerações feitas, é possível observar a criminalidade econômica em diferentes frentes. Por sua amplitude, quando tomada de forma genérica, corresponde a um problema inicial, do qual podem surgir diversos subgrupos. É que o termo se refere a determinados tipos delitivos, com características e particularidades semelhantes, em uma noção de “familiaridade”48. Alguns desses tipos, contudo, compartilham entre si características ainda mais específicas, que os diferenciam dentro do núcleo genérico, sobrevindo os subgrupos. Por isso mesmo, sua abordagem gera um leque de problemas, inalcançáveis se intentada uma solução comum, que sirva para todo e qualquer delito econômico, sem considerar os inconvenientes dessas condutas delitivas. É o caso, por exemplo, do ocupational crime e corporate crime. 44 SCHUNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luis Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 160. 45 A respeito do direito de defesa, cumpre esclarecer que não se refere à mera defesa formal, satisfeita pela oportunidade de manifestação nos atos do processo, mas do direito a uma defesa efetiva e eficiente, que só é possível quando os parâmetros do jogo processual são claros, quando as categorias são previamente definidas, inseridas em limites formais e materiais. Sobre a diferenciação, em âmbito processual penal, ver SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações. 3. ed. Natal: Owl, 2019. p. 60. 46 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. Vários tradutores. p. 80-81. Ao caracterizar os modelos de direito penal autoritário, trata como ponto comum entre os sistemas subjetivistas a privação de referências empíricas, construídas as figuras legais do delito predominantemente a partir da “subjetividade desviada do réu”, alegando o Autor que o mesmo esquema pode ser cumprido pela via judicial, a partir do abuso jurisprudencial das macroinstituições, inclusive com base na colocação social e política do acusado. 47 Similar ao que se observa no perfil antidemocrático do Código de Processo Penal de 1941. Ver SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações. 3. ed. Natal: Owl, 2019. p. 38. 48 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 27. 26 No primeiro agrupamento, dos delitos ocupacionais, estaremos diante de situações nas quais o decisivo não é a posição social do sujeito infrator, mas que a conduta delitiva tenha se dado no transcurso de uma atividade determinada. Já na segunda situação, de delitos corporativos, o diferencial consiste em a prática delituosa estar inserida numa organização, podendo sujeitar-se a responsabilidades de caráter distinto (comumente, responsabilidade penal e administrativa)49. Essa última hipótese, de delitos corporativos, praticados por um grupo de pessoas sob hierarquia ou em divisão de funções, assim posicionadas, originalmente, não para o cometimento de delitos, mas para fins de atuação empresarial, é a perspectiva que mais interessa a este estudo. Esse modelo é trabalhado sob a noção de criminalidade de empresa50 ou criminalidade econômica de empresa, determinada pelos mais diversos fatores, como a associação de pessoas sob um código de valores empresariais e a busca de um objetivo comum, que se sobrepõe aos objetivos dos sujeitos individualmente considerados. Assim, a razão para o surgimento de condutas delitivas, nessas estruturas, diz respeito também a fatores ambientais, por meio dos laços de solidariedade entre os integrantes. Essa forma de conduta é denominada de “espírito criminal de grupo”51, bastante similar às construções de Sigmund Freud, na psicanálise, sobre a psique coletiva. Para ele, as massas, enquanto sinônimo de indivíduos postos em situação de coletividade, são capazes de “atos elevados de renúncia, altruísmo e dedicação a um ideal”, sob a influência da sugestão, mas podem, também por isso, alterar seu comportamento ético tanto acima quanto muito abaixo do que se esperaria de cada um52. Adán Nieto Martín destaca que, no âmbito das empresas, esse comportamento pode ser racionalizado até mesmo por usos linguísticos compartilhados entre os membros de sua 49 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 63. 50 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 35. 51 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 64. 52 FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&M, 2019. 176 p. p. 52. 27 estrutura, atribuindo às condutas delituosas nomenclaturas de maior aceitação geral, como “economia fiscal”, “contabilidade criativa”, dentre outros53. A postura comportamental adotada pelos dirigentes dessa estrutura, assim como a imagem ética que projetam na empresa, presta-se a criar uma cultura da organização. Quanto pior seja essa cultura corporativa, mais o sistema de benefícios, incluindo a busca por promoção e remuneração maiores, será direcionado pela adoção de determinadas condutas negativas. A título ilustrativo, Nieto Martin menciona a repetição de argumentos favoráveis a práticas delituosas, como afirmar que “leis são um estorvo para os negócios”, fazendo com que os demais membros da corporação atrelem o sucesso de seu trabalho a ações que coincidam com esses ideais. A sensação de pertencimento e de integração ao local, o maior prestígio e a autoafirmação podem facilitar tanto a adesão quanto a lealdade a tais apelos criminógenos54, passando a incorporar no indivíduo pautas comuns, relacionadas a valores do grupo. É que a empresa, tida como a congregação de esforços em prol de um objetivo, conforme definição de Faria Costa, não se limita a expressar uma realidade social, mas “se racionaliza através de um conceito de manifesto valor instrumental”55. A competitividade e o livre mercado, juntamente com a busca por benefícios a curto prazo, exigem dos administradores uma tomada de posição estratégica. Essa atividade, que deve ser limitada por balizas que assegurem o Estado Democrático de Direito56, quando em desequilíbrio, tende a afetar bens jurídicos de ordem coletiva, impossibilitando a individualização da vítima57 e “desumanizando” os efeitos de uma eventual prática delituosa. 53 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 64. Em trabalho no mesmo sentido, BARAK, Gregg. Unchecked coporate power: why the crimes of multinational corporations are routinized away and what we can do about it. London: Routledge, 2017. 54 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 39. 55 COSTA, José de Faria. A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos: ou uma reflexão sobre a alteridade nas pessoas colectivas, à luz do direito penal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 2, n. 4, p. 537-559, 1998. 56 CARVALHO, Ivan Lira de. A empresa e o meio ambiente. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, n. 25, p. 37-61, abr./jun. 1999. p. 39. 57 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 39. 28 Essas características, se de fato se prestarem a uma concepção da empresa como ambiente propício ao surgimento de um delito estrutural58, por meio do dito “espírito criminal de grupo”, embora tenham relevância no plano criminológico, não servem para racionalizar psicologicamente a pena59. Ao contrário, sua verificação destaca parte da problemática à imputação de responsabilidade individual em uma estrutura organizada e complexa. O debate sobre alternativas sancionatórias, diante dessa constatação e motivado, muitas vezes, pelo discurso de “combate à criminalidade”, tem retratado uma despreocupação com as bases do Direito Penal e sua inidoneidade para a resolução de problemas sistêmicos60. Paralelamente às discussões acerca de uma responsabilidade da pessoa jurídica, enquanto ente coletivo, uma tendência a responsabilizar em primeira linha os órgãos de direção empresarial tem se verificado no plano internacional61. Exemplo se observa no art. 28 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, em especial na alínea “b”, com a previsão de responsabilidade do superior hierárquico pelos crimes de competência do Tribunal, quando cometidos por subordinados sob sua autoridade, em virtude de não ter exercido sobre esse um “controle apropriado”. A concepção abarcada pelo supracitado artigo se traduz na ideia de que, em determinados contextos, a lesão ao bem jurídico, realizada por determinada pessoa física, pode ser imputada a outrem, em virtude de sua posição hierárquica. Necessário saber, portanto, em que ponto ou sob quais condições esse dirigente sofrerá a persecução criminal62. Assevera Schunemann que a responsabilidade penal “do dono do negócio” tem sido adotada pela jurisprudência e pela doutrina majoritária, mas seus fundamentos dogmáticos 58 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 66; COSTA, José de Faria. A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos: ou uma reflexão sobre a alteridade nas pessoas colectivas, à luz do direito penal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v. 2, n. 4, p. 537-559, 1998. 59 TAVARES, Juarez. A globalização e os problemas de segurança pública. Ciências Penais: Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, v. 1, n. 1. p. 127-142, jan./jun. 2004. p. 18. 60 COSTA, Helena Regina Lobo da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: um panorama sobre sua aplicação no direito brasileiro. In: IBCCRIM et al. IBCCRIM 25 anos. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017. p. 106. 61 SOUSA, Susana Aires de. A responsabilidade criminal do dirigente: algumas considerações acerca da autoria e comparticipação no contexto empresarial. In: ANDRADE, Manuel da Costa; ANTUNES, Maria João; SOUSA, Suzana Aires de (Orgs.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Dias de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. v. 2. (Studia Iuridica, 99. Ad Honorem, 5). p. 1007. 62 SCHUNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558, mayo/agosto 1988. p. 531. 29 permanecem insuficientes e pouco claros63. É que a complexidade da estrutura empresarial, reconhecida pela descentralização das ações e dos processos decisórios, lança dúvidas sobre a afirmativa de que pertence aos órgãos de direção o efetivo domínio organizacional, em todo caso. Para evitar que a discussão seja reduzida a uma responsabilidade baseada, unicamente, em um mero caráter funcional, é imprescindível a análises dos aspectos objetivos dessa estrutura, verificando de que modo impactam a imputação penal. Exige-se ainda, no cenário brasileiro, um olhar sobre a (in)adequação de aplicar à jurisprudência construções importadas, como as teorias do domínio do fato e da cegueira deliberada64, enquanto forma de ultrapassar limites normativos e garantir maior efetividade ao sistema. É o que se propõe a fazer este trabalho, tendo como objeto de análise a imputação em autoria dolosa e os dilemas de sua verificação nesses estabelecimentos. 2.2 Imputação individual em organizações descentralizadas: o domínio do fato de Claus Roxin, a experiência brasileira no Mensalão e os problemas da delegação e divisão de tarefas Para compreender a imputação de autoria em estruturas complexas faz-se necessário, desde o início, demonstrar seus elementos mínimos enquanto categoria dogmática. Apenas com esse esclarecimento se pode trabalhar a participação, uma vez que corresponde a conceito de referência, vazio sem a existência de um autor principal65. A distinção fundamental entre ambas as categorias – autoria e participação – se dá, nos delitos comuns comissivos dolosos, fundamentalmente em virtude de um critério: o domínio do fato. Partindo da concepção de Claus Roxin para uma definição mais adequada ao estado atual, considera-se autor o sujeito que: a) pessoalmente realize a ação típica; b) execute o fato por intermédio de outro, cuja vontade não seja livre, ou que não conheça o sentido objetivo da ação de seu comportamento ou o compreenda em menor medida que “o sujeito de trás”, ou que 63 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558, mayo/agosto 1988. p. 536. 64 Em virtude do recorte dado a este trabalho, a temática da cegueira deliberada não será abordada. Para melhor compreender sua aplicação prática na jurisprudência brasileira, ver SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 255-280, ago. 2016. 65 CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010. p. 433. 30 tenha sua vontade substituída em um aparato organizado de poder; c) que preste, na fase de execução, uma contribuição funcionalmente significativa ao fato66. É o autor, assim, figura central do acontecer típico, e analisando a expressão do domínio do fato, pode-se visualizar sua manifestação concreta em três formas: domínio da ação, domínio da vontade e domínio funcional do fato. Na primeira compreensão se terá a autoria imediata, isto é, o domínio sobre a própria ação, realizando o sujeito pessoalmente todos os elementos de dado tipo penal. É a manifestação mais clara da figura central. Ainda que tenha agido sob erro, causa excludente, de acordo com o Código Penal brasileiro, essa situação não é capaz de alterar a autoria do fato típico, refletindo unicamente na punibilidade67. Já quanto ao domínio da vontade, o que se tem é um caso de atribuição de responsabilidade ao sujeito que não praticou a conduta típica, mas foi, para tanto, a figura chave, reduzindo o terceiro que executou o fato a mero instrumento68. Trata-se de autoria mediata. Falta nessa hipótese a ação executória, divergindo da espécie apresentada no parágrafo anterior, de forma que o domínio da vontade reitora é que determinará a autoria69. Apesar da pluralidade de manifestações dessa modalidade, as razões mais substanciais desse domínio, a partir de uma análise amparada pela teoria de Claus Roxin, consistem na coação exercida sobre esse terceiro, no erro e no domínio por meio de um aparato organizado de poder. A coação sobre “o homem da frente” é circunstância problemática, desde o início, porque não implica uma autoria compartilhada, como se verá que ocorre com a coautoria, mas em uma verdadeira autoria dupla: tanto o que executa a ação quanto o que configura a vontade desse executor ocupam lugar central na realização do tipo70. Para melhor compreensão deste tópico, necessário esclarecer que domínio do fato não é sinônimo de influência volitiva71. A influência de um agente, mais ou menos intensa sobre o que executa o fato, não indica, por si, que possuía o domínio. Em uma rápida análise da 66 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 337. 67 Ibidem. p. 26. 68 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1. p. 19-45. (Direito Penal e Criminologia). p. 26 69 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 166. 71 Ibidem. p. 166. 71 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 168. 31 legislação penal brasileira, é possível verificar a adoção de um critério diferenciador, pois se compreendida enquanto categorias idênticas, a autoria mediata estaria configurada em toda imputação pelo art. 122, CP, referente à instigação ou, ad absurdum, responsabilizar-se-ia enquanto autor mediato o sujeito que instiga um crime nem sequer tentado, caso de impunibilidade previsto no art. 31, CP. De toda maneira, os critérios do domínio da vontade precisam de balizas, que demonstrem em que circunstâncias a vontade determinante do sujeito de trás estaria caracterizada. O erro, seja de tipo ou de proibição, enquanto razão de autoria mediata, aparenta maior simplicidade que a análise da coação e dos aparatos organizados. É que, para Roxin, o fundamento da autoria nessas circunstâncias reside no “conhecimento superior do homem de trás”, que domina o que executa a ação em erro como uma “marionete”, revelando-se, assim, o “autor por trás do autor”72. Uma das configurações mais relevantes para análise na criminalidade de empresa, especialmente ao que nos interessa, por sua utilização na jurisprudência brasileira, é a autoria mediata por domínio da vontade, em virtude de estruturas de poder organizada (ou aparatos organizados de poder). Ao construir essa figura, Claus Roxin se referiu, em sua obra, ao sujeito de trás que dispõe de uma “maquinaria pessoal, quase sempre organizada estatalmente” com cuja ajuda pode “cometer crimes sem ter que delegar sua realização à decisão autônoma do executor”73. Tamanha especificidade, mais adequada se mostra sua visualização nos próprios termos empregados pelo autor: Contemplando la realidad con más agudeza se pone de manifiesto que este enjuiciamiento distinto se basa en el funcionamiento peculiar del aparato, que en nuestros ejemplos está a disposición del sujeto de detrás. Una organización así despliega una vida independiente de la identidad variable de sus miembros. Funciona "automáticamente", sin que importe la persona individual del ejecutor. Basta con tener presente el caso, en absoluto de laboratorio, del gobierno, en un régimen dictatorial, que implanta un maquinaria para eliminar a los desafectos o a grupos de personas. Si dada esa situación (por expresarlo gráficamente) el sujeto de detrás que se sienta a los mandos de la estructura organizativa aprieta el botón dando la orden de matar, puede confiar en que la 72 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al (Org.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1. p. 19-45. (Direito Penal e Criminologia). p. 27. 73 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. Pg. 270. 32 orden se va a cumplir sin que tenga que conocer al ejecutor. Tampoco es necesario que recurra a medios coactivos o engañosos, puesto que sabe que si uno de los numerosos órganos que cooperan en la realización de los delitos elude cumplir su cometido, inmediatamente otro va a suplirle, no resultando afectada la ejecución del plan global74. Notório, portanto, que alguns fatores são decisivos para que o domínio da vontade possa se fundamentar nesses casos, e serão sistematizados, neste trabalho, na ideia de fungibilidade do executor a uma estrutura à margem do ordenamento jurídico (uma vez que, conforme se extrai da construção de Claus Roxin, a direção e os órgãos executores devem manter-se ligados a um ordenamento jurídico independente, que não se mova pelo Direito75). A última expressão concreta do domínio do fato, à luz do recorte aqui eleito, é o domínio funcional. Essa forma, que pode ocorrer tanto na fase executiva quanto na de preparação76, parte de uma atuação coordenada. Se contribuem dois ou mais sujeitos, em decisão conjunta, para a realização de um ato relevante, possuem eles o domínio funcional, figurando como verdadeiros coautores do fato como um todo77. Nos anos de 2012 e 2013, o evento “midiático, político e judiciário que ficou conhecido como Mensalão”78, para valer-se das palavras de Nilo Batista, surpreendeu o cenário brasileiro. A Ação Penal 470, a que passaremos a nos referir apenas como AP 470, com forte intervenção da mídia e pressão de grupos citados neste trabalho como esquerda punitiva, no alcance atribuído por Maria Lúcia Karam, inaugura no país um movimento de condenação aos sujeitos antes penalmente inatingíveis79. Incorporaram-se ao vocábulo popular - em substituição momentânea aos, até então mais comuns, tipos de tráfico de drogas e roubo, apenas para ilustração - os dificultosos tipos de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, gestão fraudulenta, dentre outros. Haveria, em tais condenações, um “interesse social juridicamente protegido”80. 74 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 272. 75 Ibidem. p. 277. 76 Ibidem. p. 305. 77 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al (Org.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1. p. 19-45. (Direito Penal e Criminologia). p. 31. 78 BATISTA, Nilo. Crítica do Mensalão. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 7-8. 79 RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Mensalão: Liberdade, massacre da imprensa e algum testemunho pessoal. In: PEDRINA, Gustavo Mascarenhas Lacerda (Org.). AP 470: Análise da intervenção da mídia no julgamento do mensalão a partir de entrevistas com a defesa. São Paulo: Liberars, 2013. p. 30. 80 SOUZA, Luciano Anderson de. A essência da ação penal nº 470: o crime de corrupção. Letrado, São Paulo, n. 101, p. 26-27, jul./dez. 2012. 33 Finalmente, a responsabilidade ao “alto escalão” teria aterrissado em nosso sistema criminal. O modo com que se atribuiu essa responsabilidade individual, entretanto, é matéria nebulosa para a dogmática jurídica, mas como previa, à época, Lenio Streck, “cada decisão judicial, cada interpretação de uma lei, tem uma necessária e inexorável inserção social”81. E assim, categorias de que se valeu o Supremo Tribunal Federal, nessa ocasião, reproduzem-se no imaginário do senso comum e, com maior gravidade, no cotidiano de práticas jurídicas, transportadas entre operações, até o atual gigante a que se denomina “Operação Lava- Jato”, que totalizava, até a data deste trabalho, mais de 269 mandados de prisão, 159 condenados e um somatório de penas ultrapassa a marca de 2.294 anos82. A principal dessas categorias é a já brevemente exposta teoria do domínio do fato, apresentando-se, nesses casos, como uma tendência para a imputação de autoria aos dirigentes de organizações empresariais. O uso dessa complexa tese cresce diante de uma dificuldade de localização da responsabilidade individual, pela multiplicidade de sujeitos que intervêm ou contribuem para as decisões, dentro de uma estrutura hierarquicamente determinada ou marcada pela divisão de tarefas. Crucial saber, contudo, se esse proceder é adequado aos fundamentos do Direito Penal. Adianta-se que para parte da doutrina, no que se pode citar Bernd Schunemann dentre os mais relevantes críticos, defronta-se, nessa temática, com um “ameaçador perigo de abandono aos princípios jurídico-constitucionais irrenunciáveis”, às custas de uma “irreflexiva criminalização”83. Para o autor, o problema existe porque enquanto o sucesso de uma empresa se determina por meio de estruturas organizativas, de delegação, divisão de trabalho e hierarquia, o Direito Penal moderno se formou “nas formas de vida do solitário social, do fora da lei”, do “individualismo e da desorganização, da espontaneidade do momento de determinadas formas de vida”84. 81 STRECK, Lenio Luiz. As incongruências da doutrina: o caso da AP 470, a teoria do domínio do fato e as citações descontextualizadas. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 12, n. 56, p. 97-111, jan./mar. 2015. p. 99. 82 CARAZZAI, Estelita Hass. Após 5 anos, Lava Jato soma controvérsias, 2.294 anos de penas e 159 condenados. Folha de São Paulo, Curitiba, 17 mar. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/apos-5-anos-lava-jato-soma-controversias-2294-anos-de-penas-e- 159- condenados.shtml. Acesso em: 10 out. 2019. 83 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558, mayo/agosto 1988. p. 532. 84 SCHÜNEMANN, Bernd. Temas actuales y permanentes deI Derecho penal después deI milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 129. 34 Passa-se a utilizar no presente estudo, para uma maior clareza, os conceitos de estrutura vertical e estrutura horizontal. Enquanto estrutura vertical, trata-se da organização empresarial baseada em divisão de tarefas e funções por hierarquia e subordinação, ao passo que a estrutura horizontal corresponde a sujeitos situados em um mesmo plano, mas com atribuições distintas ou complementares, representado do seguinte modo: Fonte: Autoria própria. O aumento da funcionalidade da empresa e, assim, da própria produtividade, é concretizável por intermédio de muitos mecanismos. Como consequência dessa busca, a empresa moderna é regida pelo princípio da descentralização85, em que muito além da tradicional delegação, que implica transmitir algumas obrigações empresariais a encarregados ou a prestadores de serviços externos – por exemplo, a transferência de responsabilidades sobre o setor financeiro a um contador –, os sócios administradores, não raro, também executam papéis organizacionais distintos. Essa repartição de competências, seja entre os administradores, seja entre esses e os encarregados, pode se dar na forma de divisão de funções ou divisão de trabalho. Alerta Heloísa Estellita, à vista disso, que em empresas maiores, como sociedades anônimas, a divisão pode 85 SCHÜNEMANN, Bernd. Temas actuales y permanentes deI Derecho penal después deI milenio. Madrid: Tecnos, 2002. p. 533. 35 ocorrer não apenas entre órgãos dessa administração (Conselho Administrativo - Diretoria), mas também no interior desses órgãos, por especialidades86. Nessa circunstância, de existência dos setores especializados na administração, o que se percebe são sujeitos de um mesmo nível hierárquico, mas com âmbitos de atuação distintos e delimitados. A esses, com naturalidade, submeter-se-ão gerentes e encarregados, de maneira que, em um único espaço, podem ser observadas as figuras da divisão de tarefas ou trabalho e da coordenação, simultaneamente. Nota-se, nessa circunstância, que embora os núcleos sejam dirigidos por sujeitos de altos postos empresariais, suas esferas de competência são restritas. É possível, ainda, que a gestão ocorra por meio da junção de esforços de diversas sociedades, com personalidades jurídicas distintas, mas realizando empreendimentos comuns87, ou em grupos de empresas, em sistema matriz-filial88, controladora e controlada. De todo modo, independente da estrutura, fato é que as contribuições dadas pelos sujeitos, quando partes em uma empresa, não tendem à homogeneidade. Diferem-se não apenas em intensidade, mas qualitativamente. O poder inicial de domínio, assim, torna-se intermediário, transformado em uma função de coordenação, o que acarreta dificuldade à imputação de responsabilidade penal. A referência dessa estrutura normativa é a do agente individual, autorresponsável, com poder de decisão e que executa o comportamento típico. Em suma, refere-se à autoria dolosa direta individual. A localização dessa responsabilidade, entretanto, apresenta-se laboriosa ou por vezes impossível no contexto de uma atividade econômica de empresa. Quando há delegação de funções, com o aumento do número de agentes sujeitos a um poder de mando e vigilância, tem-se, genericamente, uma atribuição que passa do delegante para o delegado, transformando posições originais de garantia89. Se a solução intuitiva conduz, em um primeiro momento, a persecução por meio de um sentido top down de atribuição de responsabilidades, um olhar mais elucidativo sobre a estrutura empresarial demonstrará que o superior não possui, em qualquer caso, o controle do domínio 86 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 43. 87 Ibidem. p. 43. 88 MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTIN, Adan Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 65. 89 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea v. 5). p. 154. 36 de esferas individuais alheias. No plano concreto, a multiplicação dessas pequenas esferas de poder dentro da empresa90 corresponde, de acordo com Renato Silveira, à criação de “liberdade em um nível médio de competência”, mesmo em eixos hierárquicos. Por desencadear natural, essas transferências e divisões geram problemas no fluxo de informação91; rupturas, filtros entre os canais por onde transitam esses dados. Isso se refere, muitas vezes, a uma filtragem voluntária, por influência dos mais diversos fatores, inclusive pessoais, relacionados ao conteúdo da informação a ser transmitida e ao funcionamento empresarial, como o desejo de obtenção de benefícios, prêmios, progressão de carreira, dentre outros92, ocasionando a supressão de informações desagradáveis. Refletidos esses aspectos sob uma perspectiva bottom up, que parte da base ao topo da estrutura, será possível identificar que a informação, ao chegar às camadas mais altas da empresa, não representa necessariamente um conhecimento a respeito de fatos que estão nessa base e que, por vezes, são os pressupostos da figura típica. Em verdade, não raro, os gerentes e administradores possuem apenas informações globais sobre a atividade93. A divisão de funções e competências, pela dita especialização dos setores, ocasiona uma departamentalização por conteúdo. Nesses casos, quando não se exige a tomada de decisões em conjunto, que envolvam simultaneamente tais departamentos, dificilmente se imaginaria que toda e qualquer decisão adotada por um departamento fosse repassada aos demais, ainda que em mesmo nível, mas com competências distintas. Os problemas na circulação de informações indicam, portanto, que não é presumível o conhecimento de todos os intervenientes em uma relação empresarial a respeito de fatos, delituosos ou não, praticados na estruturação da empresa. O impacto dessa constatação dificulta, em um retorno aos conceitos preliminarmente apresentados, a imputação da autoria. 90 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 149. 91 MARTÍN, Adán Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In: MARTÍN, Adán Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 67; ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 43. 92 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 49. 93 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo José. Autoria e participação em organizações empresariais complexas. Revista Liberdades, São Paulo, n. 9, p. 26-57, jan./abr. 2012. p. 28. 37 Do próprio conceito de empresa, enquanto grupo de pessoas organizado em busca de um objetivo econômico comum, extrai-se uma segunda característica: a dissociação entre quem detinha o poder de decidir e quem pratica a conduta que efetivamente se ajusta ao tipo penal94. Suponha-se que a decisão, orientada por pareceres ou especialistas contratados, seja tomada pelo Conselho Administrativo. A título de ilustração, imagine-se uma ordem do sócio administrador ao gerente de uma empresa, sob orientação de um parecer técnico. A decisão que conduz à conduta típica, embora orientada por terceiro, fora tomada pelo próprio Conselho Administrativo, repassada ao nível imediatamente inferior na hierarquia (nesse caso, o gerente da dita empresa), mas será executada, finalmente, por um encarregado. Assim sendo, diversas pessoas passam a prestar contribuições distintas por natureza – aportes assimétricos – para a prática de um único crime. O contexto demonstra uma multiplicidade de agentes entre a decisão criminosa e o momento de sua execução95, situação problemática quando se observa que, para fins de atribuição da autoria, imprescindível é o conhecimento potencial do caráter injusto96 da conduta. Se a solução aparentava simplicidade, conduzindo a uma persecução que considere a responsabilidade em função do nível em que se situa o sujeito, dentro da hierarquia, a setorização interna, a existência de estruturas horizontais e os níveis de independência de determinadas instâncias97, além dos próprios aportes informacionais, sinalizam a necessidade de repensar a imputação individual de dirigentes no âmbito da criminalidade empresarial. Ao passo que se compreende a setorização como parte indissociável da estrutura de uma empresa, com finalidade econômica e organizacional, essa mesma estrutura dificulta a verificação sobre quem, verdadeiramente, possui o domínio do fato. 94 FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo José. Autoria e participação em organizações empresariais complexas. Revista Liberdades, São Paulo, n. 9, p. 26-57, jan./abr. 2012. p. 28. 95 SOUSA, Susana Aires de. A responsabilidade criminal do dirigente: algumas considerações acerca da autoria e comparticipação no contexto empresarial. In: ANDRADE, Manuel da Costa; ANTUNES, Maria João; SOUSA, Suzana Aires de (Orgs.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Dias de Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. v. 2. (Studia Iuridica, 99. Ad Honorem, 5). Pg. 1009. 96 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 51. 97 Nesse sentido, Renato de Mello Jorge Silveira, p. 149: “As grandes empresas, muitas vezes pela sua própria dimensão ou gigantismo, têm estruturas de poder internas que acabam setorizando as esferas de liberdade dos próprios funcionários, limitando, assim, a liberdade de organização de cada qual. Multiplicam-se, dessa forma, diversas pequenas esferas de poder dentro de um microcosmo visto e percebido como uma empresa em si. [...] Tendo-se em conta que a empresa se compõe de uma grande esfera de liberdade organizacional, mesmo que o dirigente exerça significativo papel de mando, hão de se notar, no eixo hierárquico, micro-esferas de liberdade em um nível médio de competência”. 38 De forma comissiva ou omissiva, para que surja a possibilidade de imputação aos dirigentes por crimes praticados em empresas, dentro dos parâmetros da legalidade e partindo da perspectiva aqui abordada, deve haver um claro referencial normativo e dogmático, apto a justificar situações que ensejem ou afastem a autoria penal98. Não se sustenta, em um sistema de garantias, imputações randomizadas, cujo referencial não seja previamente conhecido por aquele que se submete às normas jurídicas. Na solução majoritária, em verdade, parte-se da ideia de que os dirigentes possuem, sempre, o domínio de esferas individuais alheias99; um “monopólio do domínio” que se fundamenta por caráter geral, proposta incompatível com os requisitos de autoria mediata, conforme a construção de Claus Roxin. É, em outras linhas, um dever de proteção genérico, que desconsidera as esferas de conhecimento. Como adverte Demetrio Crespo, na análise a respeito da responsabilidade do empresário, por fatos cometidos por seus subordinados, ponto fundamental é observar que a autoria não pode surgir da mera contratação de trabalhadores, pois a simples existência dessa estrutura empresarial nada diz sobre relações de domínio do comportamento posterior desses sujeitos100. Não existiria, inicialmente, possibilidade de atribuir-se a autoria a determinado sujeito por um injusto praticado por outrem, autorresponsável101. Esse princípio da autorresponsabilidade cederá, contudo, na excepcionalidade de que o terceiro figure, não meramente em virtude do cargo exercido, ressalte-se, mas em virtude do contexto fático, como responsável limitado102. Apenas nessas circunstâncias, ocasionalmente, será discutida a responsabilidade jurídico-penal dos dirigentes ou dos que fiscalizarem uma atividade empresarial enquanto autores mediatos. Com essas considerações, não se pretende construir a uma ideia de que, deliberadamente, empresas possam estabelecer sua “irresponsabilidade organizada”103. O que se questiona, com efeito, é a compatibilidade entre a teoria do domínio do fato e sua 98 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea v. 5). p. 156. 99 Ibidem. 100 CRESPO, Eduardo Demetrio. Fundamento da responsabilidade em comissão por omissão dos diretores de empresas. Revista Liberdades, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 61-92, set. 2013. Traduzido por Adriano Galvão. p. 12. 101 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1. p. 949. 102 Aqui, englobam-se as situações de autoridade e subordinação de pessoas plenamente responsáveis, mas que atuam em serviço ou atividade organizada. 103 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558, mayo/agosto 1988. p. 533. 39 aplicabilidade em tais situações, e a própria capacidade da dogmática penal clássica em resolver problemas como os que aqui se apresentam104, advindos da sociedade do risco e dos problemas práticos de uma expansão do Direito Penal, especialmente do Direito Penal econômico e empresarial. 2.3 Síntese intermediária O processo de globalização, a expansão dos mercados pelo modo de produção capitalista e o surgimento de condutas que divergem das abarcadas pela criminalidade clássica, tendo como mola propulsora o lucro econômico e a obtenção de vantagens comerciais, ocasionaram uma multiplicidade de delitos verificáveis em ambiente empresarial, transformando um sistema que se pautava em delitos de agressão, individuais, em delitos silenciosos, praticados coletivamente. Também os prejuízos sofreram mudança: se, em momento anterior, tratava-se de vítimas identificadas com facilidade, agora os danos são de natureza pública, social – de maneira ampla – e econômica. Surgem as figuras dos danos supraindividuais, centro de uma moderna expansão do Direito Penal. Apesar disso, a mudança de paradigma, que busca atender a demandas de um modelo de política criminal direcionado ao “combate da delinquência econômica”, por meio de uma dimensão subjetiva da insegurança, enraizou-se, em grande parte, no Direito Penal simbólico105. O descontentamento com um sistema seletivo, ao defrontar-se com as condutas criminógenas evidenciadas nas relações empresariais, fez emergir um sentimento de urgência quanto à punição aos “delitos de colarinho branco”. Um expressivo desvalor moral, coletivo e midiático, relacionado a ilícitos dessa ordem, deu início a uma mudança no cenário da persecução criminal. 104 CRESPO, Eduardo Demetrio. Sobre la posicion de garante del empresario por la no evitación de delitos cometidos por sus empleados. In: SERRANO-PIEDECASAS, José Ramón; CRESPO, Eduardo Demetrio (Orgs.). Cuestiones actuales de derecho penal economico. Coruña: Colex, 2008. p. 61-87. 105 Observe-se, como exemplo, a justificativa para utilização do sistema criminal apresentada por Eduardo Viana, em detrimento de punições através de outros ramos do Direito: “De início, antes de fixarmos os pontos principiantes deste debate, é preciso deixar clara a premissa de que o interesse em recorrer ao Direito Penal para combater esse tipo de criminalidade, com reformas legislativas, não é determinado unicamente pelos escândalos econômicos, mas sim por um necessário e imperativo processo de modernização do Direito Penal, cujo objetivo é restaurar e preencher os espaços de impunidade surgidos com a sociedade de risco”. NEVES, Eduardo Viana Portela. A atualidade de Edwin H. Sutherland. In: SOUZA, Artur de Brito Gueiros (Org.). Inovações no direito penal econômico: contribuições criminológicas, político-criminais e dogmáticas. Brasília: Escola Superior do Ministério Público da União, 2011. p. 45. 40 Embora parta de uma necessária abordagem criminológica, a ausência de reflexões sobre os parâmetros dessa responsabilidade, em termos dogmáticos, refletiu uma experiência brasileira pautada no “vale tudo”. A AP 470, tendo como essência a inauguração, no país, de uma implicação penal dos detentores do poder econômico e político, contrapondo-se às estatísticas historicamente apresentadas, em perspectiva técnico-jurídica, revelou um sistema igualmente discricionário. Por meio da tese do domínio do fato, desenvolvida por Claus Roxin, buscou-se superar os entraves de uma imputação individual de dirigentes, dificultosa em estruturas complexas e descentralizadas, como o são as engrenagens empresariais. A excessiva abertura que se atribuiu à tese no “Mensalão”, com intento político, e não dogmático – dada a ausência de discussões sobre sua aplicabilidade, neste caso, pelos operadores da criminalidade secundária –, é reproduzida, ainda hoje, em diversas condenações criminais de dirigentes, com grande amplitude na “Operação Lava-Jato”. Parece adequada a crítica de Lenio Streck, de que na referida Ação, o Supremo Tribunal Federal “derrubou várias bibliotecas”106, representadas pela dogmática jurídica, como se essa servisse para oferecer qualquer resposta, moldada não por um caminho interpretativo, mas pela adaptação do caminho interpretativo a um resultado previamente desejado. Decisões em atropelo às garantias, denúncias genéricas buscando mover as ações penais em desfavor dos envolvidos nesses delitos, ignorando as especificidades do próprio ambiente empresarial – como as assimetrias informacionais e a intervenção de diversos sujeitos na cadeia causal – revelam, nesses casos, uma inadequação entre a doutrina utilizada para a responsabilização dessas pessoas físicas e a correta via de responsabilidade. É por esse sentir que, gradualmente, tem se dado espaço no plano nacional e internacional aos delitos de omissão imprópria, mediante uma eventual posição de garantidor desses sujeitos. A “nova ótica” impõe questionamentos primeiros, como as possibilidades dogmáticas de se lidar com a repressão de um “não fazer” dos dirigentes de empresa, seus desafios e respostas. Cumpre refleti-lo, então, a partir de suas características fundamentais. 106 STRECK, Lenio Luiz. As incongruências da doutrina: o caso da AP 470, a teoria do domínio do fato e as citações descontextualizadas. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 12, n. 56, p. 97-111, jan./mar. 2015. p. 107. 41 3 A RESPONSABILIDADE PENAL DOS DIRIGENTES POR OMISSÃO IMPRÓPRIA “Creio que na atualidade é impossível tratar qualquer problema dogmático- jurídico prescindindo de sua perspectiva político-criminológica, mas também é certo que não se pode analisar nenhuma questão político-criminológica sem pensar nas formas de instrumentalizar as soluções de modo técnico-legislativo adequado, que vede qualquer tortuoso caminho interpretativo.”107 (Eugênio R. Zaffaroni). Tobias Barreto, ao escrever “Dos delitos por omissão” ainda na segunda metade do século XIX, questionou se o delito comissivo, omissivamente perpetrado, faria parte do sistema de direito criminal brasileiro108. Embora o Código Criminal de 1830 trouxesse ao lado da ação, expressamente, a omissão voluntária contrária às leis penais enquanto crime, as preocupações do autor referiam-se a uma parca reflexão teórica. Seu crítico olhar, nesses escritos, ironizava a ausência de “mais de 3 páginas”, nas publicações de comentários ao Código da época, que se destinassem à análise do crime por omissão109. Foi Tobias Barreto, assim, o primeiro autor no cenário nacional a efetivamente abordar o tema110. Avançando a discussão para o Código Criminal de 1940, autores como Aníbal Bruno, Nelson Hungria e Heleno Cláudio Fragoso buscaram suprir essa lacuna, dedicando seus estudos à temática, sob uma concepção naturalística111. O contexto do supracitado Código, que conferiu maior destaque aos princípios, favorecia também discussões em torno dos limites da imputação penal. 107 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Panorama atual da problemática da omissão. Revista de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p.30-40, jan. 1982. Tradução do Dr. José Carlos Fragoso. 108 BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias Barreto; 1). Publicação Póstuma dirigida por Sylvio Roméro. Pg. 189. 109 BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias Barreto; 1). Publicação Póstuma dirigida por Sylvio Roméro. “O Dr. Mendes da Cunha, digo eu, na sua analyse do código criminal, não se julgou obrigado a consagrar aos delictos, de que se trata, mais de três paginas, e estas mesmas vasias de ideias, revelando pelo modo, por que encarou a questão, não ter della nem se quer um leve pressentimento [...] É pois facílimo de conceber que, se um jurista da tempera do mencionado não contribuiu, nem com um traço de pena, para suscitar-se e esclarecer-se o ponto, que ora discuto, nada havia a esperar dos seus epígonos, aos quaes esta questão com todo o seu alcance, eu creio, nunca, se quer, appareceu em sonho”. p. 180- 190. 110 FRAGOSO, Heleno Claudio. Crimes omissivos no Direito Brasileiro. Revista de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, v. 33, p. 41-47, jan. 1982. 111 Ibidem. 42 É nessa conjuntura que Hungria trata da exigência de causalidade na omissão112 e, muito embora, hoje, a opinião majoritária rejeite uma autêntica causalidade nesses delitos113, reportando-se a uma “quase-causalidade”, o relevante é compreender de que modo deve ser entendida a relação omissão-resultado, inquietude que já apresentava o doutrinador. Para que ao menos se cogite a causalidade, é indispensável que antes exista, de um lado, um sujeito com dever de agir, a quem se atribuirá a autoria, e do outro, a consequência desse comportamento proibido, um desvalor do resultado. Nos delitos impuros ou impróprios de omissão, o que se tem é um agente que assume, por uma condição de garante, o dever de não produzir o resultado típico114. Ao modo com que se constitui esse dever ou posição de garantia, será dedicado tópico próprio neste trabalho, mas antecipa-se que a responsabilidade, no caso aqui tratado, exige a junção entre o dever de impedir o resultado e a capacidade de fazê-lo. Importa nesse momento compreender, conforme as lições de Juarez Tavares, que a cláusula de correspondência entre ação e omissão imprópria, sem a qual essa última seria impunível, requer que sejam atendidos dois pressupostos: que o resultado fosse evitável, em probabilidade nos limites da certeza, se o sujeito executasse uma ação mandada no lugar da conduta omissiva, e que comporte uma contraprova, também no limite da certeza, de que o resultado seria idêntico, ainda que tivesse agido115. Ainda nas lições do autor, isso se deve aos limites que impõem os princípios da presunção de inocência, da ampla defesa e do contraditório. Sobre o primeiro princípio, que coíbe uma imputação de resultado a determinado sujeito, sem que se demonstre a justa causa para tanto, mais correto seria utilizar a expressão não culpabilidade116. De todo modo, por meio dessa leitura, a atribuição do resultado ao acusado exige uma demonstração empírica de autoria. Quanto à ampla defesa e o contraditório, adotados pela Constituição Federal de 88 em claro acolhimento ao sistema acusatório de processo criminal, sua previsão deve ser vista como impeditivo a um modelo de persecução que dificulte, em termos práticos, o exercício da defesa do acusado. Como exposto em momento anterior deste estudo, esse conceito não se basta com 112 HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Claudio. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. v. 1. t. 2. p. 20. 113 GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 17. 114 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1. p. 915. 115 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 45. 116 SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria (constitucional) do Processo Penal. 2. ed. Natal: Owl, 2015. p. 376-377. 43 a oportunidade de mera manifestação, mas reclama uma oportunidade de efetiva e eficiente defesa. Diz-se que há, na responsabilidade penal omissiva, um caráter subsidiário em relação à comissiva117. Isso não significa, como se tem interpretado, sua utilização para suprir dificuldades probatórias de condutas comissivas. Os autores que sustentam essa subsidiariedade defendem, ao contrário, que uma omissão só poderá ser tida como relevante quando o comportamento não puder ser concebido como uma ação118. Não se valem do princípio como maneira de expandir a imputação por crimes omissivos, mas de controlá-la. O suporte normativo à responsabilidade por omissão imprópria, no sistema brasileiro, é encontrado no art. 13, §2º, CP. Será essa conduta penalmente relevante, de acordo com o que se extrai do dispositivo em comento, quando o omitente deveria e poderia agir para evitar o resultado. Basilar, pois, o entendimento sobre as fontes desse dever de agir. Deriva do mesmo dispositivo a necessidade não apenas do dever de garantia, mas da possibilidade de ação destinada a evitar o resultado penalmente relevante. Portanto, como já citado neste tópico, só será possível cogitar a infringência de um tipo comissivo por omissão quando a conduta fosse possível ao autor individual, e quando a adoção do agir, pelo autor, conduzisse com probabilidade próxima à certeza ao salvamento desse bem jurídico tutelado119. Merecem ponderações, por ora, as duas últimas circunstâncias: possibilidade de agir e a evitação do resultado. Esclarece Pierpaolo Bottini que a possibilidade é composta pelos elementos capacidade física de agir conforme o esperado e cognoscibilidade do contexto fático dessa ação esperada120. Relativamente à capacidade física, o limite deriva da natureza das coisas, da capacidade de cumprir uma expectativa. Sua apreensão é possível por meio de uma referência a expectativas de ação, sem a qual a omissão cometida perderia a relevância penal. Note-se que essa capacidade deve ser analisada concretamente, levando em conta a situação do acusado ao tempo da omissão, assim como seus recursos, conhecimentos e habilidades121. 117 ASSIS, Augusto. A responsabilidade penal omissiva dos dirigentes de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 45-67. 118 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1. 119 SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luis Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 165. 120 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). 121 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 44. 44 Neste ponto, convém relembrar, nos delitos de empresa, a problemática da assimetria de informações, circunstância que deve ser considerada para apreender a possibilidade de agir dos eventuais garantidores. Por se tratar, como dito, de uma capacidade concreta, a essa análise não resta alternativa que não a observação casuística. Semelhantemente, a medição da cognoscibilidade, que diz respeito ao conhecimento do agente sobre seus deveres de ação, bem assim, sobre o desconhecimento do fato ou do contexto em que deveria fazê-lo, sofre os impactos da divisão de tarefas e funções. O resultado, para o qual deveria o sujeito ter agido no intuito de evitar, deve ser previsível e dominável122. A ausência de um dos elementos, seja da possibilidade concreta de ação, seja da cognoscibilidade, afastará a incidência da norma, em virtude de sua inaplicabilidade ao caso concreto. Com essas considerações, deseja-se afastar a ideia de que a possível existência de um dever de garantidor dos dirigentes empresariais permitiria, de pronto, afirmar uma responsabilidade por omissão imprópria. Verdadeiramente, essa constatação supre apenas um dos pressupostos da tipicidade, restando ainda um “longo e árduo caminho rumo à afirmação ou negação da punibilidade do omitente”123. Por essa razão, antes de explorar os critérios que limitam a posição de garante de um dirigente ou administrador empresarial, relativo aos delitos praticados no interior dessa estrutura na qual, supostamente, exercia deveres de vigilância, é preciso esclarecer os demais requisitos que autorizam uma responsabilidade por omissão, como modo de realização da conduta típica. O entendimento doutrinário preponderante assinala124, como pressupostos objetivos do tipo, para imputação do resultado a esse garantidor, diante de uma omissão imprópria, os seguintes requisitos: a) existência de uma situação típica; b) omissão de conduta determinada e exigida para evitação de um resultado, embora possuísse o autor, nos termos explanados neste tópico, capacidade física e cognoscível para fazê-lo; c) a causalidade ou, para os que assim a compreendem, uma quase-causalidade ou causalidade hipotética, a que se dedicará um tópico 122 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 46 123 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 76. 124 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 78. 45 especial neste trabalho; d) imputação objetiva; e) a existência de um dever de garantia, função de garantidor, em sentido jurídico-doutrinário, atribuível previamente ao agente. Em seguida, apura-se o dolo ou a culpa, essa última apenas quando cabível por previsão legal. Preenchidos esses pontos, estará presente a tipicidade objetiva e subjetiva da omissão imprópria, o que ainda não assegura a punibilidade do agente, para a qual se exige, além da tipicidade, a verificação de antijuridicidade e culpabilidade. Embora não seja objeto de análise específica neste trabalho, é importante considerar, para as problematizações que aqui serão levantadas, que os delitos omissivos impróprios culposos se subordinam a uma excepcionalidade dos delitos culposos, admissíveis apenas quando possível equiparar a dita omissão a uma conduta ativa. Exige-se, nessas situações, um exame ainda mais rigoroso dos pressupostos acima elencados. Discorrendo sobre a temática, Juarez Tavares ensina que “este exame é uma medida adequada a impedir que o exercício do poder de punir se transforme em uma execução forçada de relações contratuais”125. Não obstante a crítica do autor tenha se dirigido às imputações culposas de crimes omissivos impróprios, é possível estendê-la, de modo amplo, aos crimes comissivos por omissão. Quando a posição de garantia ou os demais pressupostos da tipicidade, nesses delitos, alteram-se em negação a um modelo de responsabilidade penal individual, abandonando os fundamentos e princípios para preencher lacunas na atribuição de autoria, aproxima-se o Direito Penal dos modelos mais primitivos e arcaicos126. Pertinente, nessa conjuntura, reportar-se ao que prossegue Juarez Tavares afirmando: Quando o Estado se desfaz de sua função social, o incremento de disposições contratuais no direito penal aumenta ainda mais a irracionalidade do sistema, porque passa a tratar a pessoa humana como situada no mesmo plano de poder, quer dizer, na relação entre Estado e pessoa, confere-se a esta a obrigação de se submeter às regras daquela, sob a presunção de que atua com a mais ampla liberdade de atender ao comando normativo, ainda que para isso não fosse capaz. Isto provoca uma profunda distorção no sistema, só passível de correção por meio de medidas que restrinjam o alcance das normas mandamentais127. 125 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. Prefácio de Claus Roxin. 5. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 523. 126 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 76. 127 TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. Prefácio de Claus Roxin. 5. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 523-524. 46 No plano concreto, a apuração dos requisitos que possibilitem a responsabilidade omissiva é dificultosa. Pelas características do ambiente empresarial, cuja análise se dedicou o capítulo anterior, apresentam-se dificuldades de ordem probatória na apuração dos fatos, enquanto, no campo dogmático, a identificação de autores imputáveis encontra desafios na descentralização128. O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Penal 470, popularmente conhecida como “Mensalão”, exibiu um modo de simplificar as soluções para a criminalidade aqui tratada, por meio de uma importação teórica. Adota-se a ideia de importação, neste trabalho, em função de ter se valido a Corte da teoria do domínio do fato, alegadamente, na concepção de Claus Roxin, e não de uma simples expressão menos técnica de “domínio do fato”, nos moldes que se discutia no Brasil após a reforma de 1984129. Em uma importante ponderação, Alaor Leite atenta para os riscos de episódios como o referido. É que dessas decisões, embora não gerem vinculação como precedente, emerge uma força normativa do fático. A vinculação a esse modo de decidir, portanto, se não tem origem jurídica, poderá ocorrer faticamente130, perpetuando uma confusão terminológica e material. Substancial é entender, à vista disso, se há adequação entre a teoria empregada e sua utilização cada vez mais contumaz na jurisprudência brasileira, no que diz respeito à atribuição de responsabilidade aos dirigentes, bem como se é possível compatibilizá-la com os pressupostos da omissão imprópria, posteriormente analisando essa aplicação nos casos elencados nas notas introdutórias do presente estudo. Antes, porém, feitas essas ponderações, passa-se à reflexão sobre as duas categoriais mais controversas, atinentes à tipicidade objetiva da omissão imprópria situada no contexto da criminalidade de empresa: a posição do dirigente dessas estruturas enquanto garantidor e a causalidade. 3.1 Critérios limitativos à posição de garantidor do dirigente 128 ASSIS, Augusto. A responsabilidade penal omissiva dos dirigentes de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 45-47. 129 LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros: sobre os conceitos de autor e partícipe na APn 470 do STF. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 22, n. 106, p. 47-90, jan./fev. 2014. p. 59. 130 LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros: sobre os conceitos de autor e partícipe na APn 470 do STF. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 22, n. 106, p. 47-90., jan./fev. 2014. p. 49-54. 47 O fundamento do dever especial de agir, ao menos apto a autorizar que se cogite a junção entre a cláusula geral (no Brasil, representada no art. 13, CP) e um tipo penal, é discutido na doutrina, preponderantemente, a partir de dois grandes critérios: o princípio do domínio sobre os fundamentos do resultado, desenvolvido por Bernd Schunemann, e a competência por organização, teoria de Gunther Jakobs. Esses grupos doutrinários refletem a posição de garantidor, a seu modo, partindo de uma devida e progressiva superação da teoria das fontes formais. Sob a concepção de Schunemann, a estrutura comum entre uma comissão realizada por conduta ativa e a comissão por omissão seria a correspondência entre “o centro pessoal de controle” e o “movimento corporal causador do resultado”131. Esse domínio sobre o corpo não poderia ser, em seu sentir, potencial ou hipotético, mas absoluto132. Assim, assevera, “na medida em que o movimento corporal possibilita o nexo causal e surge como fundamento imediato do resultado, o domínio imediato sobre esse fundamento imediato do resultado é, assim, fundamento mediato do resultado”133, justificando uma imputação penal ao sujeito. Acrescenta o autor, em reflexões mais recentes, que na posição de garantidor, assim como ocorre na essência da autoria por comissão, o domínio deve repousar sobre algum aspecto essencial do acontecimento global. Nessa perspectiva, a construção de um dever de garantia partirá de condições de domínio real, dividindo-se no domínio sobre o desamparo de um bem jurídico e o domínio sobre uma causa essencial do resultado (onde se posiciona, por exemplo, o domínio sobre funções perigosas). Note-se que, assentes nessas ponderações, são os limites de domínio que demarcam os limites da posição de garantidor. Gunther Jakobs, de modo diverso, compreende que o fundamento da responsabilidade penal na sociedade moderna se correlaciona com a existência de limites à configuração do mundo externo. Em suma, por possuírem os sujeitos arbitrariedade ao fazê-lo, a 131 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre a posição de garantidor nos delitos de omissão imprópria: Possibilidades histórico-dogmáticas, materiais e de direito comparado para escapar de um caos. In: SCHÜNEMANN, Bernd (Org.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 159-181. (Direito Penal e Criminologia). p. 171. 132 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre a posição de garantidor nos delitos de omissão imprópria: Possibilidades histórico-dogmáticas, materiais e de direito comparado para escapar de um caos. In: SCHÜNEMANN, Bernd (Org.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 159-181. (Direito Penal e Criminologia). p. 171. 133 SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre a posição de garantidor nos delitos de omissão imprópria: Possibilidades histórico-dogmáticas, materiais e de direito comparado para escapar de um caos. In: SCHÜNEMANN, Bernd (Org.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 159-181. (Direito Penal e Criminologia). p. 171 48 responsabilidade teria origem quando lesionados os limites gerais dessa configuração134, um status geral, pertencente a qualquer membro da sociedade. Por esse status, ao que Jakobs considera “sinalagma de seu direito de organização”135, a todos surgirá o dever de não ultrapassar, com ela, o risco permitido. Existirá, desse modo, um dever de asseguramento, concluindo que “todo titular de um círculo de organização é garantidor da prevenção de um output que exceda o risco permitido”136. Para verificar o dever de garante conforme a teoria de Jakobs, portanto, o decisivo é que a atribuição do curso do dano faça parte da organização daquele sujeito. Como compreende que todos os delitos têm por base a violação de um dever de garantia, as diferenças entre ação e omissão tornam-se irrelevantes, quando analisadas sob uma perspectiva jurídica137. Além do dever de asseguramento, o âmbito da responsabilidade pela própria organização, de acordo com o autor, abarca casos de deveres de salvamento e os derivados da assunção do domínio de risco. Os deveres de salvamento surgem quando o sujeito cria um risco prévio ao bem jurídico alheio, pondo-se em condição de garante a partir dessa criação. Na segunda hipótese – assunção –, que para o autor não pode ser esquecida no marco da competência por organizações, o relevante não é apenas a promessa de uma prestação, mas que o sujeito tenha abandonado outras medidas protetivas, produzidas como consequência dessa promessa. Desse modo, aquele que assume “organiza, pois, mediante sua promessa, uma minoração da proteção”, devendo compensá-la. Destaca Jakobs que essa hipótese – embora julgue que de modo inadequado – é frequentemente designada como o dever em virtude de um contrato138. Diferentemente de Schunemann, para quem, ainda que exista um dever formal, a responsabilidade penal por omissão só será possível quando verificado um domínio fático sobre o desamparo, Jakobs considera que o delito se define pela lesão de uma expectativa aos demais membros da sociedade ou aos deveres de solidariedade. É imperioso considerar, antes de prosseguir com as propostas teóricas acima consideradas, que essa doutrina atual, majoritariamente, parte de variações de uma divisão 134 JAKOBS, Gunther. Ação e Omissão no Direito Penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003. (Coleção Estudos de Direito Penal, v. 2). p. 33. 135 JAKOBS, Gunther. Ação e Omissão no Direito Penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003. (Coleção Estudos de Direito Penal, v. 2). p. 38. 136 JAKOBS, Gunther. Ação e Omissão no Direito Penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003. (Coleção Estudos de Direito Penal, v. 2). p. 40. 137 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 99. 138 JAKOBS, Günther. La imputación penal de la acción y de la omisión. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1996. (Cuadernos de Conferencias y Articulos; nº 12). p. 37-40. 49 introduzida por Armin Kauffman para compreender a matéria139. O autor elabora uma dogmática específica para os delitos de omissão, considerando que apenas a omissão do garante reúne os requisitos do delito comissivo140, mas que inexiste relação causal entre omitente e resultado lesivo, razão pela qual não pode ser equiparado à ação. Dessa maneira, para Kauffman, os tipos de resultado, previstos na Parte Especial, só comportariam a imputação comissiva, sob pena de alargar-se a incidência. A extensão às omissões só seria possível por uma construção jurídica específica, de modo que a imputação ao que não impede o resultado, podendo fazê-lo, não é automática, mas exige um critério especial: o dever de garante. Esse dever, sob o enfoque da construção aludida, divide-se em garante de tipos especiais omissivos e deveres de controle dos focos de perigo141, de maneira que o primeiro surgiria de um preceito jurídico ou da assunção fática, enquanto os últimos, impondo o controle de riscos a determinado sujeito, teriam origem na ingerência ou relações especiais de confiança142. Note- se, por oportuno, que a teoria de Kauffman fornece importantes critérios para divisão, mas não justifica materialmente uma posição de garantidor143. O sistema brasileiro adotou como técnica a situação formal das fontes de posição de garante. Nelson Hungria, ao comentar o Código Penal de 1940, afirmou que o dever jurídico de evitação pode resultar de um mandamento jurídico, expresso ou tácito, de uma relação contratual ou de uma situação de perigo precedentemente criada144, e que a regra do artigo deve ser “entendida no terreno objetivo-causal”. Em atenção ao princípio da legalidade, seja por seu fundamento político democrático- representativo, seja de proteção particular ao poder estatal145, faz-se necessário estabelecer um conteúdo material a essa posição de garantidor. Assim, atualmente, esse conteúdo tem se 139 ASSIS, Augusto. A responsabilidade penal omissiva dos dirigentes de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 54. 140 KAUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión. Traducción de la segunda edición alemana (Gotinga, 1980) por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano González de Murillo Madrid: Marcial Pons, 2006. p. 252. 141 Ibidem. p. 199. 142 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 80. 143 A propósito, para situar a teoria no espaço, vale notar, como destaca Pierpaolo Bottini, que a construção de Armin Kauffman se atrelava à legislação alemã, que naquele momento, ainda não previa cláusula geral de equiparação para as omissões impróprias. Em uma análise transposta para o contexto brasileiro, a cláusula é materializada no Art. 13, §2º, CP, objeto de discussão neste capítulo. 144 HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Claudio. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. v. 1. t. 2. p. 70. 145 MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 207-210. 50 construído na responsabilidade por fontes produtoras de perigo e pela posição especial de defesa a certos bens jurídicos146. No primeiro caso, a proteção pode se destinar a comportamentos do próprio sujeito ou, também, a comportamentos e objetos sob sua responsabilidade. Aqui se situam, com maior expressão, as hipóteses de ingerência, caso em que o dever de garantia pertencerá àquele que criou o risco anterior do resultado (admitido no Código Penal brasileiro em seu art. 13, §2º, “c”), e as hipóteses de responsabilidade por posição de proteção frente à conduta de subordinados. Já na posição especial de defesa frente a alguns bens jurídicos, é possível citar a vinculação entre o garantidor e a vítima por obrigação social de proteção, as relações de trabalho em que determinado sujeito se obriga à proteção de outros e a assunção de função protetiva unilateral ou bilateral, conduzindo a confiança da proteção ao bem jurídico147. Presumível, em face dessas conjecturas, que nosso ordenamento jurídico admite, por vezes, imputações distintas dos limites impostos pela teoria de Schunemann ou de Jakobs. Para Schunemann, a título ilustrativo, a posição de garantia pela ingerência restaria excluída, pois atrela o autor à omissão imprópria a um domínio sobre a causa essencial do resultado148. De mesmo modo, ao formular os deveres que derivam de competência institucional, Jakobs fundamenta a responsabilidade pela preservação da confiança nessas instituições149, circunstância que não se encontra dentre as possibilidades do Art. 13, §2º, CP. Pertinente, no último caso, a crítica de Pierpaolo Bottini, que vislumbra a vinculação do dever de garante a instituições desde que previsto em lei150, fundamentando-se na proteção de bens jurídicos e não na tutela da confiança. Com a mesma importância, pondera Juarez Tavares que a responsabilidade por infringir deveres de organização deve considerar a descentralização administrativa dessas entidades, neste trabalho abordada no Capítulo 2. Sob sua ótica, ainda que subsistentes as condições que qualifiquem determinada entidade organizada, não é possível afirmar, unicamente por isso, que daí resultam deveres impositivos que vinculam todos os integrantes, referindo-se apenas aos que estejam associados de forma direta à atividade imposta151. 146 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 316. 147 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 316-317. 148 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 88-89. 149 Ibidem. p. 104-105. 150 Ibidem. p. 104. 151 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 92. 51 Pelas observações feitas, resta claro que a importação de teorias, por melhor construção dogmática que apresentem, exige, em todo caso, uma atenção particular. Em primeiro lugar, porque seu desenvolvimento se dá perante um sistema jurídico distinto do nosso, com previsão de condutas delituosas, às vezes, inexistentes em nosso ordenamento. Posteriormente, porque sua aplicação prática pode ser prejudicada pela disposição normativa brasileira, seja inadmitindo hipóteses reconhecidas – a exemplo da ingerência, impossibilitada pela teoria de Schunemann, mas prevista no Código Penal vigente - seja alargando responsabilidades que ultrapassam os limites legais – como o fundamento pela confiança, de Jakobs. Isso não significa legitimar, pela via da criminalização secundária, distorções às teorias, para que se adequem aos fins desejados no caso concreto por meio de um somatório de retalhos convenientes. Do contrário, essa discussão antecede até mesmo o processo de criminalização primária. O já citado princípio da legalidade impõe uma interpretação restritiva ao poder estatal. No panorama da criminalidade de empresa e da responsabilidade de dirigentes, questiona-se a possibilidade de que o limite da garantia se estenda ao impedimento de ações de terceiros e, em caso positivo, da abrangência desse dever. Uma fórmula geral, previne novamente Juarez Tavares, é incompatível com os princípios que regem a imputação individualizada, pois “transforma a omissão em cláusula de reserva de punibilidade”152. Para limitar o dever de vigilância sobre subordinados, enquanto forma de dominar perigos que provêm de atos desses sujeitos, faz-se necessário retomar a análise do art. 13, §2º, CP. Inicialmente, a lei como fonte do dever de garantia, nos termos da alínea “a” do dispositivo em questão, determina que o dever de agir incumbirá a quem “tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”. Exemplo pode ser observado na Lei 12.846/2013, quando em seu art. 27 atribui responsabilidade civil, administrativa e penal à autoridade competente que, tendo conhecimento de infrações previstas naquela lei, não adotar providências para apuração dos fatos. Registre-se que a vedação à analogia in malam partem, enquanto princípio norteador do direito criminal, implica que o conceito de “lei” seja tomado unicamente enquanto lei formal, 152 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 318. 52 na forma ordinária ou complementar, afastando quaisquer outros atos normativos dessa fonte do dever de garantia153. Mais dificultosos, contudo, são os limites ao disposto nas alíneas “b” e “c”, do citado dispositivo, respectivamente ao que “de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado” e à citada situação de ingerência. A posição de garantidor originada na assunção de impedir resultados, lesivos ou de perigo, a bens jurídicos alheios, pode se dar mediante contrato ou assunção fática. Na conversão do contrato em fonte do dever de agir, valorosa é a ponderação feita por Nilo Batista e Eugênio R. Zafarroni, para os quais essa possibilidade só existirá “quando a confiança depositada no sujeito exprimir uma especial obrigação de cuidado, proteção e vigilância”154. O contributo central dessa crítica é afastar a condição de garantidor por uma mera imposição de adimplemento extrapenal. Quando instituída pela assunção fática de proteção, a posição de garantia se dará à medida que o sujeito manifeste sua vontade e inicie, efetivamente, o exercício da função protetiva155. Uma expressão dessa garantia, significativa para o contexto de responsabilidade de dirigentes, é o exercício de determinadas funções, circunstância em que o sujeito aceita incumbências típicas de determinado cargo. Para melhor elucidar essa possibilidade, imaginem- se funcionários que desempenhem função de controle e proteção ambiental em determinada indústria. Embora aceitem o encargo individual de fazê-lo, o dever não pode ser ilimitado. Aqui, a omissão terá relevância penal quando, além do dever de agir, houver possibilidade concreta de realizar a tarefa de proteção, além de um ato de disposição da vítima. Nas palavras de Schunemann, não é o dever como tal, mas somente uma relação de domínio, possivelmente advinda dele, que permite a equiparação entre agir e omitir156. A alínea “c”, que estipula o dever de agir motivado pela ingerência, situa a posição de garantidor no âmbito das novas fontes de perigo. Claus Roxin observa que, embora essa previsão fosse amplamente reconhecida na dogmática a partir do século XIX, o fundamento da 153 BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos penais e processuais penais: Comentários à Lei 12.683/2012. Prefácio de Maria Thereza Rocha de Assis Moura. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 198. 154 ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: segundo volume: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010. 155 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 327. 156 SCHÜNEMANN, Bernd. Fundamento y límites de los delitos de omisión impropia: Con una aportación a la metodología deI Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 413. 53 garantia baseado em uma ação precedente é, desde o princípio, problemático157. Compreende que somente pela divisão de dois grupos – assunção de funções de proteção e controle de fontes de perigo – pode-se explicar a ingerência, como forma de garantia por controle. De acordo com Pierpaolo Bottini, o disposto na referida alínea põe a ingerência entre os deveres de garante diante de riscos próprios. Pelo risco criado, prossegue, o agente estará inserido em uma esfera de domínio de outrem, de modo que sua esfera de gestão lesionará um bem jurídico alheio158. Acrescenta Renato Silveira que a ingerência pode ser vista, também, “ao assumir um defeito de organização da qual o agente faz, de qualquer modo, parte”159. Sob o ponto de vista de Cruz Bottini, ainda: A criação de um risco não permitido cria na comunidade uma expectativa, uma confiança de que o responsável pela desestabilização do foco de perigo tratará de restituí-lo aos patamares toleráveis, sempre que for possível fazê-lo. É essa confiança, somada ao dever de não lesar, que respalda a equiparação da omissão à comissão nas hipóteses de ingerência. Não se trata, portanto, de punir alguém pela inobservância de deveres de solidariedade, de auxílio ao próximo, de prestação de ações positivas em prol da construção de um mundo em comum – o que justifica o dever de garante decorrente de lei ou da assunção (alíneas a e b do §2º do art. 13 do CP). Na ingerência, alguém adentra a esfera de direitos alheia e não toma providências para impedir o resultado lesivo. A afetação de direitos decorre diretamente de uma intervenção do agente no mundo de vida do outro160. Questões se apresentam, no entanto, com a indagação sobre os métodos que avaliariam esses riscos, bem assim quanto aos requisitos para que um fato anterior seja capaz de desencadear o dever de garantia161. Evidente que, considerando uma imputação objetiva, algumas situações serão excluídas da responsabilidade por ingerência, destacando-se, dentre elas, as limitações impostas pela causalidade e pelo risco permitido. Para atribuir a alguém um comportamento prévio, que o relacione com o risco da ocorrência do resultado, nos termos empregados pelo Código Penal, é exigível que essa conduta 157 ROXIN, Claus. Ingerencia e imputación objetiva. Revista Penal, Valencia, n. 19, p. 152-161, jan. 2007. Disponible en: http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=62162. Acceso en: 20 out. 2019. p. 154. 158 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 162-163. 159 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 196. 160 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 163. 161 Nesse sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1. p. 945. “Todavia, se a questão constitui, em último termo, um problema de ilicitude e se esta é sempre uma ilicitude pessoal e não meramente causal, então deve-se ter por seguro que a causação de um perigo, em si mesma considerada, é incapaz de fundar um dever de garantia e a consequente posição de garante”. 54 tenha sido praticada diretamente pelo sujeito, seja iniciando a ação ou assumindo o controle da causalidade. Isso se deve aos efeitos do art. 13, §1º, do mesmo diploma legal, que determina a superveniência de causa relativamente independente como excludente da imputação. A posição de garante nesse caso, todavia, não deriva de uma mera causalidade, mas da imputação objetiva de um atuar prévio, razão pela qual importa analisar se o risco criado correspondia a um risco não permitido162. Tampouco basta que seja uma conduta contrária ao dever, sem prejuízo de ponderar-se o caso à luz de critérios de criação e diminuição de riscos, bem como de análises sobre o comportamento da vítima, em atenção ao princípio da autorresponsabilidade163. Podemos ressaltar, por conseguinte, que independente do fundamento da posição de garantidor que se vislumbre, a existência dessa posição denota apenas uma relação especial com dado bem jurídico ou fonte de perigo, mas não implica, tão somente por isso, que o sujeito deveria agir para evitar o resultado. Apenas uma situação concreta de perigo é capaz de indicá- lo. Assim, em âmbito empresarial, a despeito de se compreender que os dirigentes exercem uma função de garantidor em relação aos riscos dessa estrutura, disso não se extrai uma responsabilidade sobre lesões praticadas por seus subordinados. Se assim o fosse, incidiria sobre esse dirigente uma responsabilidade penal fundada em mera posição, vedada no Direito Penal, por afastar uma imputação objetiva na medida em que viola o princípio da culpabilidade164. 162 CRESPO, Eduardo Demetrio. Fundamento da responsabilidade em comissão por omissão dos diretores de empresas. Revista Liberdades, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 61-92, set. 2013. Traduzido por Adriano Galvão. p. 64. 163 A análise do comportamento da vítima condicionada pelo princípio da autorresponsabilidade exige, para que se atribua o dever de garantidor a um terceiro, que a ação não esteja incluída no âmbito de responsabilidade da própria vítima. Embora o conceito seja retomado no tópico 3.3 deste estudo, para maiores considerações ver GRECO, Luís. Domínio da organização e o chamado princípio da autorresponsabilidade. In: ZILIO, Jacson Luiz; BOZZA, Fábio da Silva (Orgs.). Estudos críticos sobre o sistema penal. Curitiba: LedZe, 2012. 164 Sobre a sistemática da imputação objetiva, destaca Ingeborg Puppe, em PUPPE, Ingeborg. A imputação objetiva do resultado a uma ação contrária ao dever de cuidado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 27, n. 155, p. 103-123, maio 2019. p. 121, que “primeiramente, há de se averiguar esse curso causal. Ou seja: deve- se identificar aquela condição verdadeira e suficiente para a ocorrência do resultado, da qual a ação constitui parte necessária. Com isso, há de ser investigado quais as características dessa ação que se mostram incompatíveis com o dever de cuidado do autor na situação concreta. Apenas quando a ação possuir tais características é que o agente terá criado um perigo concreto”. Com relação ao princípio da culpabilidade, adota-se neste trabalho o sentido de culpabilidade como função limitativa da pena, de maneira que por meio desse princípio, apenas atos externos dirigidos por vontade, capazes de lesionar bens jurídicos ou colocá-los em perigo, podem sofrer repressão estatal. Ver, para tanto, ROXIN, Claus. A culpabilidade como critério limitativo da pena. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, 11/12, p. 7-20, jul./dez. 1973. Disponível em: http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=20441. Acesso em: 21 out. 2019; CRESPO, Eduardo Demetrio. Culpabilidad y fines de la pena: con especial referencia al pensamiento de Claus Roxin. Revista de Derecho Penal, Buenos Aires, n. 2, p. 197-239., 2007; SANTOS, Juarez Cirino dos. Culpabilidade: desintegração dialética de um conceito metafísico. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, 15/16, p. 51-64, jul./dez. 1974 e, nesta Universidade Federal do Rio Grande do Norte, MARQUES, Vinicius de 55 Outrossim, o próprio caput do art. 13, CP, faz referência a uma ação ou omissão determinada, que seja causa de um resultado, para que exista relevância penal. Assim, apenas por ocupar determinada posição, a imputação viola, sobretudo, a própria letra da lei165. Não obstante a insuficiência da cláusula geral para elucidar as bases materiais da posição de garantidor, algumas considerações parciais podem ser elencadas, a partir de uma interpretação dogmática do dispositivo, especificamente no que interessa à responsabilidade dos dirigentes de empresa. Em primeiro lugar, na responsabilidade por fontes de perigo – ainda que eventualmente compreendida como decorrência de deveres de confiança, concepção a que não se filia este trabalho, por visualizar, nas alíneas do art. 13, §2º, CP, apenas a possibilidade de um dever anuído, expressa ou tacitamente, ou por ingerência –, os próprios conceitos de perigo e de controle são imprecisamente determináveis, do que decorre, também, uma incerteza quanto à amplitude do dever de garantia. Certamente, a verificação do controle e domínio, para fins de responsabilidade penal, depende de uma análise concreta. Essa afirmativa, por outro lado, não corresponde a uma posição de garante meramente casuística, o que seria incompatível com os próprios corolários do princípio da legalidade. Exige-se um conhecimento anterior dos parâmetros dessa atribuição, previamente delineados e, principalmente, que sejam possíveis quando confrontados com a limitação normativa e com as garantias penais166. A proporcionalidade imposta no processo penal – entendimento que perfeitamente se estende ao sistema criminal, de forma ampla – exige que, em caso de conflito de preceitos, prevaleça “o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressão”167. Desse modo, deve ser tratada também a responsabilidade por garantia – existindo dúvidas sobre o parâmetro Godeiro. Individualização da pena e aplicação da pena: Aportes para uma teoria da decisão final. 2018. 100 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Curso de Direito, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018. Cap. 1. p. 25-27. 165 ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SANTOS, Humberto Souza (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 73. 166 Em verdade, esta limitação se relaciona, também, com a própria dignidade do homem. Isso porque, conforme leciona Keity Saboya, “deve-se compreender que o princípio da dignidade humana impede que o homem seja convertido em objeto de persecuções permanentes, como se a espada de Dâmocles estivesse sempre pendente sobre si. [...] Do contrário, o homem seria submetido a uma situação jurídica indefinida, indigna com a condição humana, assemelhando-se a “máquina de persecução” a um “epulão insaciável, movida pela fobia de deixar impune o hipotético réu””. SABOYA, Keity. Ne Bis in Idem: História, Teoria e Pespectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 165-166. 167 Trecho do voto do Ministro Eros Grau, em julgamento de mérito do HC 95009, STF. 56 de sua fixação e quando incerta diante do contexto fático, sua excepcionalidade reclama o afastamento. Algumas considerações a respeito dos limites da posição de garantia, especialmente em ambiente empresarial, são evidenciadas a partir dessa premissa e do disposto neste capítulo. Em primeiro lugar, que o uso das classificações de omissão imprópria pode, de fato, apresentar utilidades práticas na seara empresarial, mas necessita atender aos fundamentos materiais de uma posição de garantia. Para tanto, é preciso compreender que o manejo de coisas ou a distribuição de funções não gera, automaticamente, um dever de garante. Esse dever está condicionado a uma previsão legal, à assunção ou ingerência. Na ingerência, a imputação está limitada aos desdobramentos de um risco não permitido, que ocasiona um resultado típico em virtude de desatenção às normas de cuidado168. O alcance da ingerência, contudo, impõe que essa posição de garante não derive de uma mera causalidade, mas da imputação objetiva de uma ação prévia169, sob pena de transformar-se em instrumento de reprimenda penal às simples irregularidades. Ainda quanto a esse fundamento da posição de garantia, importante notar que a desatenção aos critérios limitadores pode conduzir a uma inadmissível responsabilidade objetiva. Para evitá-la, a ingerência deve subordinar-se a alguns pressupostos, como o domínio da causalidade, a existência de conduta não acobertada pelo risco permitido – e que o risco proibido seja objeto de norma170–, que a ação consequente não se insira “na inteira responsabilidade do executor”171 e que não se trate de ação autorizada por causa de justificação. A respeito de um dos aspectos acima citado, “que o risco proibido seja objeto de norma”, causa preocupação também a legitimidade da construção penal a que se refere. Em alguns casos, a própria previsão do risco, tamanha a insuficiência, exigirá elementos valorativos, ampliando as inseguranças. Na legislação penal brasileira, pode-se citar enquanto exemplo o crime de 168 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 134. 169 CRESPO, Eduardo Demetrio. Sobre la posicion de garante del empresario por la no evitación de delitos cometidos por sus empleados. In: SERRANO-PIEDECASAS, José Ramón; CRESPO, Eduardo Demetrio (Orgs.). Cuestiones actuales de derecho penal economico. Coruña: Colex, 2008. p. 76. 170 Juarez Tavares, ao tratar da limitação no que tange ao risco, elenca, além dos dois requisitos expostos, a necessidade de que a conduta não se inclua no risco habitual de vida, que o risco desencadeado pela ação precedente possa se exaurir no resultado e que a inatividade posterior não tenha sido objeto de avaliação exclusiva ou complementar por outra norma. TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 336. 171 Ibidem. p. 340. A limitação pela inteira responsabilidade do executor refere-se aos parâmetros impostos pelo princípio da autorresponsabilidade. 57 gestão temerária de instituições financeiras172, em que surgem as mais diversas divergências doutrinárias, referentes ao bem jurídico tutelado ou à identificação do critério material que define quais condutas importam nessa forma de gestão173. Por permear a discussão dogmática como um todo, em casos de delitos praticados em âmbito empresarial, não se pode olvidar que a estruturação institucional dilui a criação dos riscos, seja entre setores, seja entre sujeitos divididos em tarefas, o que dificulta a visualização de quais membros efetivamente criaram o que conduziu ao resultado. Apesar disso, essa dificuldade não pode bastar para que exista um dever de agir, referente ao domínio do dirigente empresário sobre os sujeitos que pertençam à empresa, uma vez que a contratação de funcionários é fato em conformidade com o ordenamento jurídico174. Adequadas as considerações de Mir Puig, diante desse contexto, sobre o papel de garantia. Para o autor, é ilógico interpretar que quem produz um perigo sem vontade e sem imprudência deva arcar com a lesão dolosa, unicamente por não impedir esse resultado. Assumirá o papel de garantia, de acordo com sua construção, aquele que cria ou amplia o perigo, em momento anterior, ou a quem corresponda pessoalmente, no momento do fato, o controle do qual dependa o bem jurídico175. A relevância dessa construção, embora não tenha partido de reflexões específicas para o contexto empresarial, reside em afastar um dever quase inato de garante ao titular da organização, interpretação possível quando considerada absoluta a teoria de Jakobs. Adota-se aqui, por maior adequação, a perspectiva de Feijóo Sanchez e, no cenário jurídico nacional, de Pierpaolo Bottini, de que a imputação por garantia, em contexto empresarial, tem como palavra-chave a competência, e não o domínio, entendida aquela como “conjunto de deveres de cuidado incidentes sobre a esfera de atuação do empresário, decorrentes do risco por ele criado (ingerência) ou das atribuições por ele assumidas diante de riscos alheios (por lei ou assunção)176. Constatar a existência desse dever de garantia, contudo, em qualquer das modalidades, é insuficiente para a imputação do resultado, pois corresponde apenas a um requisito inicial. 172 Lei 7.492/82, Art. 4º. “Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena – Reclusão de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa. Parágrafo único: Se a gestão é temerária: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa”. 173 Para uma maior compreensão sobre a problemática e possíveis soluções jurídico-dogmáticas, ver RUIVO, Marcelo Almeida. Criminalidade financeira: Contribuição à compreensão de gestão fraudulenta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. 174 CRESPO, Eduardo Demetrio. Sobre la posicion de garante del empresario por la no evitación de delitos cometidos por sus empleados. In: SERRANO-PIEDECASAS, José Ramón; CRESPO, Eduardo Demetrio (Orgs.). Cuestiones actuales de derecho penal economico. Coruña: Colex, 2008. p. 76. 175 PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2006. p. 328. 176 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 135. 58 Por esse motivo, serão analisados a seguir alguns critérios e problemas práticos, notadamente quanto à existência de nexo entre omissão e resultado. 3.2 Panorama da causalidade na imputação por crimes omissivos impróprios e as omissões simultâneas e sucessivas Discorrendo sobre o injusto penal e os riscos não permitidos, sustenta Claus Roxin que, como princípio básico da teoria do Estado, “o poder estatal de intervenção e a liberdade civil devem ser levados a um equilíbrio, de modo que garanta ao indivíduo tanta proteção estatal quanto seja necessária, assim como tanta liberdade individual quanto seja possível”177. Sendo a missão subsidiária do Direito Penal a proteção de bens jurídicos, sob pena de intervir-se indevidamente nas liberdades individuais, não haveria de se pensar em responsabilidade nos delitos de resultado que prescindisse da dependência entre ação ou omissão e da mudança ocasionada no mundo exterior. Considere-se, no presente estudo, o termo “causalidade na omissão”178 – para afastá-lo das discussões doutrinárias a respeito da existência de uma autêntica causalidade179 ou apenas de uma causalidade hipotética180 –, enquanto relação condicional lógica. Não se tratará aqui da 177 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Organização e tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 39. 178 Expressão empregada por Luís Greco, em GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia), em substituição às locuções “quase-causalidade” e “causalidade hipotética”. 179 A respeito disso, admite Gimbernat Ordeig que na atualidade ainda se afirma esta relação, como “categoria del pensamiento que enlazaba antecedentes con conseguientes”, bem como permanece a compreensão, para alguns autores, de que a modificação do mundo exterior pode se dar por condições positivas ou negativas. Ressalta, por outro lado, que essas compreensões ainda são pouco preponderantes, pois a doutrina majoritária rejeita uma relação de causalidade entre omissão e resultado, substituindo-a por uma probabilidade próxima à certeza de que a ação omitida o evitaria. GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. La causalidad en la omisión impropia y la llamada omisión por comisión. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 53, p. 29-132, jan./dec. 2000. p. 33-35. Há, ainda, a posição de Schuemann, para quem os resultados não se imputam diretamente em virtude de uma causalidade ou de causalidade potencial, mas em razão do domínio, que pode se dar por uma ação causal ou por outros fatores. SCHÜNEMANN, Bernd. Fundamento y límites de los delitos de omisión impropia: Con una aportación a la metodología deI Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 427. 180 Sustenta este entendimento, a título exemplificativo, Muñoz Conde, para quem “realmente la omisión no puede ser entendida como componente causal de ningún resultado, ya que la causalidad exige la puesta en marcha de uma fuerza desencadenante que por definición falta em la omisión (ex nihilo nihil fit). Lo que importa em la imputación de un resultado a uma conducta omisiva o, si se prefiere la terminología clásica, en la comisión por omisión, es la constatación de una causalidad hipotética, es decir, la posibilidad fáctica que tuvo el sujeto de evitar el resultado”. CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010. p. 243-244. Sobre isso, também, esclarece Silva Sanchez que “la a veces denominada "causalidad" o "cuasicausalidad" de la omisión no tiene por función la de establecer una relación de causalidad que realmente no existe. Más bien, se trata de un criterio de imputación objetiva deI resultado paralelo a los que se dan en la comisión activa superpuestos a la causalidad y como sus correctivos.”. SANCHEZ, Jesus Maria Silva. El delito de omision: Concepto y sistema. 2. ed. Buenos Aires: Bdef, 2003. p. 294. 59 causalidade por meio de um conceito ontológico-real, que compreenda as condições negativas como causais em sentido estrito181. É que, conforme previne Luís Greco, o debate supracitado (a respeito de denominá-la causalidade ou apenas quase-causalidade) tem natureza terminológica, mais atrelado às perspectivas filosóficas, importando neste momento questionar como deve ser concebida a relação entre o omitir e o resultado lesivo182. É preciso interpretar, diante dos problemas práticos, a norma prevista no art. 13, CP. De acordo com as lições de Muñoz Conde, compartilhadas em momento anterior deste estudo, a omissão se refere a uma ação determinada, constituindo sua essência a partir dessa não realização. Por isso mesmo, o sujeito, para figurar enquanto autor, deveria possuir meios de realizar, à época do injusto, a ação devida183. O exemplo mais recorrente a ilustrar os delitos omissivos, nas doutrinas mais clássicas ou nos modernos manuais184, refere-se às mães que permitem a morte de seus filhos, por meio da falta de cuidado ou por inanição. De fato, trata-se de situação clara, em um primeiro olhar, para demonstrar a existência do omitir como forma de realização típica. O exemplo se aparta da clareza inicial, porém, quando há dúvidas se a prática da ação devida evitaria o resultado. Conceba-se uma situação em que, apenas após a morte da criança, seja diagnosticada uma doença rara, que lhe exigia cuidados muito superiores aos ordinários. Não é possível afirmar, diante dessa hipótese, que a prática de uma ação pela genitora, desconhecendo a situação, fosse capaz de evitar o resultado morte. O exemplo é indicativo de que, mesmo nos mais simples dos problemas concretos, as variáveis lançam dúvidas não sobre o desvalor do comportamento, mas sobre ser o resultado atribuível ao sujeito, enquanto autor. Superada a existência de um dever de agir, nos limites a que se reporta o subtópico precedente, perduram as dificuldades de aferir em que medida o comportamento omitido seria apto a preservar o bem jurídico. Na criminalidade de empresa, a dificuldade convive com um 181 SANCHEZ, Jesus Maria Silva. El delito de omision: Concepto y sistema. 2. ed. Buenos Aires: Bdef, 2003. p. 286. 182 GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 19-20. Apesar dessa colocação, sustenta o autor posição pessoal quanto à existência de causalidade, ponderando, todavia, que não está seguro do argumento, “ainda que nele não enxergue qualquer erro”. 183 CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010. p. 238. “La possibilidad de acción es, por conseguiente, el elemento ontológico conceptual básico común tanto a la acción como a la omisión”. 184 A saber, no Brasil, o exemplo é utilizado desde Tobias Barreto, em 1892, BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias Barreto; 1). Publicação Póstuma dirigida por Sylvio Roméro, p. 140, ao recente MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 434. 60 modelo de responsabilidade penal que se volta a condutas típicas, antijurídicas e culpáveis praticadas, muitas vezes, por um único indivíduo, que reúne os atributos de “posse de informação, do poder de decisão e da prática de uma conduta executiva”, circunstância distanciada do que se verifica em perspectiva empresarial185. É necessário, para que seja possível imputar o resultado ao agente, que exista conexão entre esse mesmo resultado e a omissão praticada, por meio do nexo de causalidade. Destacam- se, nesse laborioso intento, duas correntes principais: a teoria da evitabilidade e a teoria da diminuição do risco. De acordo com a teoria da evitabilidade, não se poderá imputar objetivamente ao sujeito um resultado que, ainda que adotasse a ação devida, reproduzir-se-ia do mesmo modo186. Faltaria, no caso, conexão da infração do dever, de forma que o resultado não se gerou pela imprudência do agente187. A medida que determina essa causa é, assim, a segurança ou probabilidade próxima à certeza de que o comportamento correto conduzisse ao mesmo resultado. O grau dessa probabilidade, sem embargo, apto a conduzir ou afastar uma responsabilidade penal, permanece incerto188. Quanto à teoria da diminuição do risco, esclareça-se, de início, que parte de uma modificação da teoria do aumento do risco, de Claus Roxin, para quem o resultado só poderá ser imputado quando a conduta do autor criar um perigo para o bem jurídico, não acobertado por um risco permitido, e que esse perigo tenha se realizado no resultado concreto189. Entende, por risco permitido, a conduta que cria um risco de relevância jurídica, mas que de modo geral – o que, em suas palavras, independe do caso concreto – está permitida, excluindo a imputação objetiva190. Assim, se uma conduta alternativa conduzia com segurança 185 ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 69-113. p. 69. 186 “Si se da por seguro o, por lo menos, como muy probable que si el sujeto hubiera realizado la acción mandada, el resultado no se hubiera producido, entonces se podrá indagar si cabe también la imputación objetiva del resultado al sujeto de la omisión. [...] La evitabilidad del resultado es, pues, el criterio que, matizado y completado con los derivados de las teorías de la causalidad y de la imputación objetiva, nos permite imputar ese resultado a una conducta omissiva.” CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010. p. 244. 187 ORDEIG, Enrique Gimbernat. Teoría de la evitabilidad versus teoría del aumento del riesgo. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 68, p. 21-62, anual. 2015. p. 26. 188 Ibidem. p. 28. 189 ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General: Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción de la segunda edición alemana y notas por Diego-Manuel Luzon Peña,Javier de Vicente Remesal y Miguel Díaz y García Conlledo Madrid: Civitas, 1997. t. 1. p. 364. 190 Ibidem. p. 371. 61 ao mesmo resultado, não se realizou uma superação do risco permitido no curso do acontecimento, afastando a imputação191. Ao formular esse entendimento, referia-se o autor, originalmente, aos delitos comissivos. Na mudança a que se chamou de teoria da diminuição do risco, a existência de uma chance de salvamento é bastante para que o omitente responda pelo delito192. Um exemplo auxilia em sua elucidação: partindo desse enfoque, um médico que omite uma radioterapia a paciente com câncer, que se realizada, elevaria sua sobrevida de 5 a 10 anos, responderá pelo delito consumado, por não criar a chance, sendo possível193. Não restam dúvidas, observando o caput do art. 13, CP, quanto a uma referência expressa do legislador à omissão como causa. Propõe Juarez Tavares, na doutrina brasileira, uma nova fórmula de causalidade para interpretá-lo, a que denomina causalidade funcional. Interessaria saber se estava o sujeito em condições de realizar a ação devida, em uma perspectiva relacionada à “orientação de conduta com base na realidade empírica e em face da lesão do bem jurídico”, e não de uma capacidade de atuar, como se expôs até este ponto. A isso se acresceria a probabilidade nos limites da certeza de que a conduta impediria o resultado. Trata-se de um somatório de elementos para definir a causalidade, considerados pelo autor como elemento funcional-normativo e elemento empírico194. Em outras palavras: Em lugar de se afirmar que a omissão será causa de um resultado quando sua eliminação hipotética implique também a inocorrência do resultado, deverá se proceder a um juízo negativo: não haverá causalidade quando a exigência da ação devida não possa orientar a conduta do sujeito, com base no critério da probabilidade nos limites da certeza diante do resultado e da lesão do bem jurídico. [...] A questão básica da causalidade na omissão reside, pois, na identificação do que possa constituir uma conditio sine qua non do resultado, partindo de que esta condição deverá estar referida a um aspecto empírico, como também a um aspecto normativo, de determinação de sentido da própria atividade devida195. 191 Ibidem. p. 379. 192 GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 23. 193 Exemplo que pode ser visto em GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 23, adaptado de decisão do Supremo Tribunal Alemão sobre o caso, em que se aplicou a teoria da evitabilidade para absolvição do delito de homicídio culposo. 194 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 368-369. 195 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 369. 62 Em sentido semelhante advoga Tiago Joffily, ao trabalhar a importância da complementariedade entre critérios causais e normativos, na atribuição de autoria de qualquer tipo de injusto196. A obscuridade consiste em não existir, nos crimes omissivos, ponto de apoio naturalístico que permita formular um processo de dedução hipotética, como ocorre nos crimes comissivos. Portanto, determinar precisamente as ações juridicamente exigidas, essencial para o nexo de causalidade, requer maior esforço, devendo comportar ainda, assim como a atribuição do dever de garante, a possibilidade de contraprova. Sem a concreta ação exigida, não será possível uma imputação objetiva do resultado em crimes omissivos impróprios e, por consequência, não se tratará de acusação certa. Permanece necessário, contudo, ainda se interpretado o art. 13, CP, a partir do sentido que lhe atribui Juarez Tavares, recorrer às propostas de solução anteriormente elencadas, seja por intermédio da evitabilidade, seja da diminuição do risco. Independente da forma adotada, deve-se levar em conta, assim como sustenta Luís Greco, que a causalidade desempenha no Direito Penal tão relevante papel, que apenas em situações de urgência se deveria modificá-la, preferindo-se sempre “deixar intocados os elementos do conceito de causalidade”197. Urgência que evidentemente não se refere à simples conveniência político-criminal, pautada por uma mudança criminológica198, pois “o sentimento de que a imputação é adequada sob um prisma político-criminal, não afasta o dever de fundamentar a operação interpretativa”199. Se aplicada a teoria da evitabilidade, preponderante, será necessário estabelecer os parâmetros para que a conduta devida tivesse evitado o resultado com probabilidade próxima à certeza. Uma alta probabilidade, embora seja relevante em termos de investigação, não basta para a imputação omissiva. Capitais são os limites da certeza, que não se baseiam no senso comum ou na experiência do julgador, mas em dados objetivos, em confronto com as exigências do tipo legal200. 196 JOFFILY, Tiago. O resultado como fundamento do injusto penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 199. 197 GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 35-36. 198 Demonstrada neste trabalho, no que concerne ao seu objeto de estudo, no capítulo 2. 199 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 198. 200 TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 392. 63 Opõe-se a crítica de que dificilmente será possível essa afirmação201, desaguando em uma insegurança dupla: seja, invariavelmente, superando barreiras dogmáticas para que se impute o resultado, por meio da flexibilização de requisitos, seja desprotegendo o bem jurídico. Aparenta maior acerto, atualmente, optar a jurisprudência pela teoria da diminuição do risco, exigindo que a omissão seja seguramente causa do resultado, em sua configuração concreta (momento e lugar determinados)202. O juízo normativo, por outro lado, dependeria de uma análise sobre a ação devida criar, efetivamente, uma “chance de salvamento”. Nesse último sentido, esclarece Heloísa Estellita que, sendo as lesões ao bem jurídico severas a ponto de a ação devida não implicar qualquer chance de salvamento, não haveria imputação do resultado por omissão, assim como se não houvesse aumento de chances de salvamento, por meio da omissão causal, a conduta seria atípica203. Introduzindo essas questões no âmbito prático da criminalidade de empresa, observar- se-á, também, a significativa repercussão da delegação e divisão de tarefas ao averiguar a causalidade de determinada omissão para o resultado, ainda que presentes a posição de garantidor, o dever de agir e capacidade físico-real para fazê-lo. Conectar omissão e resultado, mediante nexo de causalidade, para só então imputá-lo objetivamente ao omitente (tipicidade objetiva), torna-se ainda mais difícil no contexto de intervenção de vários sujeitos no acontecimento que desemboca em resultado típico204. Não será incomum que, constatada essa situação típica, as características da gestão empresarial, como a fragmentação de tarefas e a natureza coletiva dos comportamentos, acarrete desafios à individualização das condutas. Em meio a isso, a presença de omissões simultâneas e sucessivas inaugura uma série de novos problemas, atinentes a uma responsabilidade penal que não se desenvolveu com vistas à aplicação nesse âmbito. Entre o garantidor e o resultado haverá, aqui, a interposição necessária de um terceiro. 201 Sobre essa formulação, aponta Juarez Tavares que em uma classificação inicial, a probabilidade era dividida em objetiva e subjetiva, o que foi substituído pelas concepções científicas mais modernas de explicação epistêmica, explicação modal e explicação ôntica, e a partir desses enfoques, segue-se para a criação de graus de probabilidade. Com relação a esses, permanece a divergência valorativa, do que extrai o autor considerações sobre a necessidade de uma lei geral de causalidade. A respeito disso, TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 378-392. 202 GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). 203 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 259. 204 GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Causalidad, omisión e imprudência. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 47, n. 3, p. 5-60, set./dez. 1994. p. 21. 64 Na constelação das omissões simultâneas, observadas na divisão horizontal, em que não raro o decidir sobre condutas empresariais se dará por colegiados – a exemplo do Conselho de Administração ou das decisões de sócios em Sociedades Limitadas205 –, o voto de cada membro, se redundante e tido de maneira isolada, não é capaz de determinar o resultado, dada a impossibilidade de, por si, determinar sua produção ou prevenção. Poderiam alegar os membros, então, uma ausência de causalidade do voto para o resultado típico, o que não estaria incorreto ao considerar decisões que demandem maioria de votos. Assim também, em decisões unânimes, ultrapassado esse marco de maioria, todos os votos seguintes seriam redundantes para a decisão tomada, de maneira que ainda que o sujeito adotasse posicionamento contrário, não mais haveria capacidade de influir na votação. Acresça-se a isso o fato de que, em Conselhos de Administração, os votos são secretos, o que conduz, ao menos em uma perspectiva teórica, a uma posição individual que desconhece as razões de decidir dos demais. Optar por uma exoneração recíproca, diante dessa conjuntura, permitiria a existência de núcleos verdadeiramente imunes, deliberadamente criados pelos sujeitos empresariais. Um exemplo prático da “irresponsabilidade organizada”206 que anunciou Schunemann. Não é admissível, por outro lado, por meio de uma responsabilidade que exige contribuições individuais, a imputação do resultado a todos os membros, tão somente por integrarem o órgão colegiado. Tampouco se pode falar em causalidade cumulativa207, pois os votos redundantes em nada contribuíram para o resultado, e nem mesmo podem ser identificados, quando secretos208. Admitir a causalidade cumulativa, nesse contexto, elevaria à condição de causa uma circunstância remota209. 205 Para valermo-nos dos exemplos de ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 69-113. p. 71. 206 SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558, mayo/agosto 1988. p. 533 207 Perspectiva na qual cada uma das contribuições seria causa do resultado. 208 ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 69-113. p. 82. 209 GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 47-48. 65 Por meio de uma modificação da conditio sine qua non210, é proposta, para a resolução dessa problemática, a figura causalidade alternativa: “se várias condições podem ser suprimidas mentalmente de forma alternativa, mas não cumulativamente, sem que desapareça o resultado, todas elas deverão ser consideradas causa”211. Essa solução, entretanto, constrói-se sobre arbitrariedade, uma vez que transforma em causa o que, no plano fático, não é – tal como os votos redundantes. Assim como a causalidade cumulativa, evidencia-se inaplicável. A problemática, conforme se observa, ainda não foi superada no plano da causalidade, do que se extrai a consequência de necessária revisitação212, e deixa claro que as possibilidades iniciais, seja por meio da teoria da equivalência, seja a adoção da teoria da diminuição do risco – embora essa última se apresente como adequada, por ora, nas hipóteses de omitente único – são insuficiente para solucionar casos dessa ordem. Uma alternativa ao problema, proposta por Luís Greco, é a resolução pela figura da coautoria, reconhecendo a impossibilidade, sem a dita revisitação, de que a culpabilidade seja apta a resolvê-lo213. Assim, imputar-se-ia a conduta integral a cada sujeito que faça da parte do “projeto” dessa conduta214. Cumpre relembrar, oportunamente, que mesmo admitida a coautoria, perduram os desafios dessa situação: conforme se descreveu no subtópico 2.2 do presente estudo, a coautoria se destinaria apenas aos delitos dolosos, seguindo sem amparo os casos de omissão culposa, admitida apenas na figura do colegiado, justamente a que se refere às omissões simultâneas. No mesmo sentido de dificuldade se encontram as omissões sucessivas, definidas como aquelas em que “a causalidade na omissão inicial é mediada por omissões sucessivas de outros garantidores”215, ou seja, em que omitentes deveriam agir sucessivamente para a evitação do resultado. 210 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 262. 211 GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 49. 212 Ibidem. 213 Ibidem. p. 52. 214 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 263. 215 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 265. 66 Surgem, com maior incidência, nas estruturas verticais, seja na divisão de trabalho por delegação, seja pelos limites impostos à possibilidade jurídica de agir, na organização empresarial, quando determinado sujeito depende de outros para que cumpra seus deveres de evitação do resultado. Apesar da prevalência nessas estruturas, não há óbice para verificá-lo também em estruturas horizontais, pela incumbência diversa de atribuição, embora se encontrem os sujeitos em um mesmo nível hierárquico216. A não ocorrência do resultado estará condicionada, em suma, à conduta sucessiva de um superior – na hipótese de estruturas verticais – ou de uma ação executiva ulterior – nas estruturas horizontais. Para uma melhor compreensão, tome-se o exemplo do compliance officer. Antes de abordá-lo, entretanto, faz-se necessário situar a figura do compliance no centro das medidas de gestão adequadas ao ambiente corporativo, tanto para a promoção de melhorias no comportamento ético desses locais quanto para promover, por meio dos padrões de controle, a evitação de resultados delitivos217. A coordenação ou direção dessa atividade se realizará por meio de determinado sujeito, designado para atuar no ambiente empresarial, exercendo a função de compliance officer ou “oficial de ética”218. Sua missão seria garantir a adequação, o fortalecimento e o funcionamento dos sistemas de controle interno219, mitigando riscos e buscando alcançar o cumprimento de leis e regulamentos, em um local marcado por rupturas informacionais e descentralização. O poder de supervisão e de autonomia desse sujeito, no entanto, não é homogêneo, dependendo da realidade adotada para sua organização: tanto pode atuar como responsável máximo, fazendo parte da alta direção empresarial, ou influindo nas decisões do órgão diretor, quanto atuar apenas como um subordinado. De todo modo, o fundamento de sua posição se relaciona com a responsabilidade social corporativa, a já dita ética empresarial e, se tomado como verdadeiro o “espírito criminal de 216 ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 69-113. p. 72. 217 SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance sob a perspectiva da criminologia econômica. In: CUEVA, Ricardo Villas Bias; FRAZÃO, Ana (Orgs.). Compliance: perspectivas e desafios dos programas de conformidade. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 167-191. 218 MARTÍN, Adán Nieto. A institucionalização do sistema de compliance. In: MARTÍN, Adán Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 231-256. p. 242-243. 219 WALKER JUNIOR, James; FRAGOSO, Alexandre. Da omisão penalmente relevante e a função de compliance tax criminal nas empresas. In: WALKER JUNIOR, James; FRAGOSO, Alexandre (Orgs.). Direito Penal Tributário: Uma visão garantista da unicidade do injusto penal tributário. 2. ed. Belo Horizonte: D'placido, 2019. Cap. 9. p. 421-441. 67 grupo”, com a necessidade de figurar enquanto representante de um “autêntico contrapoder empresarial”220. Quando delegadas ao compliance officer (CO) tarefas de reconhecimento de fontes de perigo ou de identificação das violações jurídicas praticadas no interior da empresa, o descumprimento desses deveres, por meio de um diagnóstico inadequado ou de uma falha da comunicação, pode permitir que sobrevenha o resultado típico. Essa situação se dará, por exemplo, quando a informação fornecida pelo CO aos dirigentes influir na omissão adotada, pondo em dúvidas se, havendo uma correta comunicação, teriam agido para evitar o resultado. Em outros termos, lança-se dúvida sobre a atuação do segundo garantidor – dirigente – ser a mesma se houvesse o correto cumprimento de dever pelo primeiro garantidor221 – CO. Assim como se buscou demonstrar quando comentadas as omissões simultâneas, também aqui as duas teorias principais – da evitabilidade e da diminuição do risco – serão percebidas como insuficientes. Por um lado, aproxima-se do impossível determinar, nos limites próximos à certeza, que se adotada a ação devida pelo CO, essa seria apta a evitar o resultado222, conduzindo mais uma vez à irreponsabilidade ao primeiro, em todo caso, se aplicada a teoria da evitabilidade. Noutro ponto, embora pela teoria da diminuição do risco fosse possível pensar que a ação, se adotada, poderia criar uma chance de salvamento, o que, tomadas as posições de Claus Roxin, seria aplicável ao caso em comento – uma vez que compreende a “condição de uma condição”, por si, enquanto condição do resultado223 –, permanece incerta a decisão de agir do segundo garante, não dizendo mais do que mera possibilidade224. Disso não se pode extrair que 220 MARTÍN, Adán Nieto. A institucionalização do sistema de compliance. In: MARTÍN, Adán Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 231-256. p. 243. 221 Saliente-se que o termo “garantidor”, aqui, é empregado apenas para situar as omissões no tempo e espaço. Não se trata, sobremaneira, de afirmar a posição de garantidor do complicance officer sem verificar os aspectos trabalhados no subtópico 3.1, especialmente a previsibilidade do resultado. Tampouco de atribuir a essa figura, também sem análise prévia, uma ideia de garantidor originário. 222 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 266. 223 ROXIN, Claus. Problemas da causalidade intermediada psiquicamente. In: ROXIN, Claus. Novos estudos de Direito Penal. Organização de Alaor Leite. Tradução Luis Greco et al. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 152-181. 224 A respeito da teoria de Claus Roxin e do que se revela neste ponto, cumpre, para fins de registro, apresentar crítica de Paulo de Sousa Mendes, em MENDES, Paulo de Sousa. Crítica à idéia de diminuiçäo do risco de Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 14, p. 102-118, abr./jun. 1996, para quem a adoção da teoria de diminuição do risco “usada com cautela, pode apenas desempenhar a função de mera heurística, qual sinal intuitivo para a busca das verdadeiras razões materiais que sirvam de arrimo à interrupção do nexo de imputação objectiva. Tais razões resumem-se, fundamentalmente, num princípio de proporcionalidade na aferição dos títulos de responsabilidade”. 68 a ação devida diminuiria o risco, no que parece adequada a ponderação de Luís Greco, para quem “um curso causal real, passível de ser distinguido de algo meramente hipotético, parece não existir no presente contexto”225. Sustenta esse último autor, ainda com apoio na diminuição do risco, embora com fundamento distinto do que apresentara Roxin, que o comportamento adequado poderia ser presumível por uma “regra de experiência”. Compreende, a partir disso, que em uma sociedade onde impera o direito, enquanto fator de orientação observado por uma maioria, apesar de não se poder postular a ficção de que o segundo garantidor (no esquema que aqui apresentamos) se comportará sempre em conformidade com a norma, esse padrão deveria ser aceito como regra de experiência226. Constata-se que, também aqui, não há harmonia nas soluções apresentadas. A divergência doutrinária indica, além dos riscos de adotar-se como absoluta qualquer das teorias, que inexiste, ainda, uma resposta global à questão do nexo de causalidade na omissão imprópria. São muitos os pontos problemáticos da causalidade na omissão, os quais, quando somados ao âmbito da criminalidade de empresa, como se observou, ampliam a complexidade da temática. É preciso ter em vista que, apesar disso, a dificuldade não justifica o afastamento da causalidade na omissão, exigida no Brasil mediante expressa no art. 13, CP. Impõe-se, por conseguinte, que a temática seja refletida com serenidade pela jurisprudência, para que não ocorra um abandono tanto dos limites normativos quanto de um fundamento material, dogmaticamente amparado, que preencha os conceitos. 3.3 Síntese intermediária Quando se imputa a determinado sujeito a prática de um ilícito, unicamente pela posição ocupada na estrutura empresarial, passa-se, em primeiro lugar, a violar uma série de princípios caros ao sistema criminal. As noções de garantia, quando corretamente utilizadas, em nada se relacionam com uma responsabilidade objetiva, rechaçada por nosso sistema criminal, mas a que se assemelha à 225 GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 75. 226 Ibidem. p. 78-79. 69 imputação de dirigentes por mera posição. Tampouco o Direito Penal Econômico funciona como ramo apartado da ciência jurídica, que comporte tratamento disforme com a realidade global desse sistema. Seus institutos não podem, em busca de um alargamento da punibilidade, apresentarem-se como quebras sistêmicas. Se optar a jurisprudência pela omissão imprópria, enquanto estratégia de responsabilidade penal, deverá ater-se a seus pressupostos. A identificação de um dever de garantia, atribuível a esse sujeito, é imperiosa, mas ressalte-se que mesmo presente o dever de garantia, não se demonstrará, apenas com base nisso, a existência de uma responsabilidade omissiva imprópria. Quando discutida a posição de garantidor de um dirigente, principalmente em face a delitos praticados pelos membros da estrutura empresarial, não se pode olvidar que a responsabilidade penal possível, em nosso ordenamento, é individual, pela prática de uma conduta determinada. Desse modo, os aspectos de tipicidade devem ser preenchidos. Porquanto, um dever de garantidor, que pressupõe um dever especial de agir para evitar o resultado, só terá conformidade com o art. 13, §2º, CP, quando determinada por lei uma obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, quando de outra forma assumir o sujeito a responsabilidade de impedir o resultado ou em virtude da ingerência. Do contrário, o que se tem é uma ofensa ao princípio da legalidade, pela falta de previsão legal. Ofensa que também se dará quando imputado um dever por simples posição ocupada em um ambiente empresarial, por ferir a exigência clara da norma penal. Enquanto conjunto de pessoas organizadas para a persecução de fins econômicos, adotando o discurso da livre concorrência para pautar as relações de produção, da atividade empresarial podem decorrer riscos, seja de lesionar bens jurídicos individuais e externos, sejam bens jurídicos coletivos, supraindividuais. Por esse motivo, sem retomar aqui as objeções doutrinárias a essa conclusão, quem exerce o controle, mesmo que parcial, sobre a fonte de perigo, estaria sujeito a eventual atribuição como garantidor de vigilância, com fundamento na alínea “b” do art. 13, §2º, CP. Além do controle sobre as fontes de perigo, outros entendimentos que se prestam a fundamentar a posição de garantidor de um dirigente empresarial, essencialmente, são o poder diretivo sobre os subordinados e a ingerência. No primeiro caso, o elemento principal é a ideia de domínio sobre um resultado, que decorreria de seu poder de “comando”; no segundo, a existência prévia de uma organização potencialmente perigosa, que gerando um risco não permitido, implicaria o dever de agir desse sujeito para evitar resultados lesivos. 70 Dentre os pontos apresentados como óbice a essas imputações, destacam-se a falta de correspondência, muitas vezes, entre os dirigentes e as ordens emitidas aos subordinados, por uma limitação de poderes diretivos e operacionais, verificável tanto em estruturas de organização horizontal quanto vertical, e distância entre o que cria o risco desaprovado, na ingerência, e o resultado. Essa última, mais sensível em estruturas que possuem diversas camadas de gestão, separando a cúpula diretiva dos encarregados. O §2º do artigo 13, CP, exige, ainda, para que seja relevante a omissão, que haja o dever concreto de agir, isto é, que se trate da inatividade de uma conduta exigida de evitação do resultado típico, além da possibilidade, ou seja, e que tivesse o agente capacidade físico-real de fazê-lo. Deve comprovar-se que o agente possuía, à sua disposição, possibilidade de agir para evitar o resultado – capacidade física e cognoscibilidade do contexto fático –, identificação que é impactada sobremaneira, na criminalidade de empresa, pela divisão de tarefas e funções. É que, nesse momento, levar-se-á em conta a capacidade concreta do agente ao tempo da conduta, o que perpassa problemas como a assimetria informacional. Importante rememorar, à vista disso, a necessidade de que essa imputação admita uma contraprova, sob pena de ferir o princípio da ampla defesa, do contraditório e da presunção da não culpabilidade, garantias constitucionais, motivo pelo qual os critérios de imputação devem ser claros ao agente. Não se pode afastar, igualmente, os alcances do princípio da autorresponsabilidade. Tendo aplicação geral no Direito, ao determinar que, em um contexto abstrato, cada sujeito terá preferencialmente a responsabilidade por suas ações227, sua relevância na matéria aqui tratada significa que apenas quando não presente a vontade desse sujeito, pelo domínio por meio de um terceiro, será possível a flexibilização, imputando a esse o resultado da conduta daquele. Caso contrário, poderá pensar-se não a uma hipótese de omissão, mas de imputação recíproca por coautoria, se afirmar-se a existência de plano comum. Mesmo superada essa parte inicial, constatada uma situação típica, um dever de agir por meio da posição de garantidor e a capacidade física de evitar o resultado, o que corresponde a um desvalor da conduta, é preciso considerar, agora sobre o desvalor do resultado, o nexo de causalidade e a imputação objetiva. 227 Para maiores esclarecimentos na temática, GRECO, Luís. Domínio da organização e o chamado princípio da autorresponsabilidade. In: ZILIO, Jacson Luiz; BOZZA, Fábio da Silva (Orgs.). Estudos críticos sobre o sistema penal. Curitiba: LedZe, 2012. 71 Nessa conjuntura, para que o resultado possa ligar-se ao omitir do garantidor, principalmente quando o resultado que se lhe atribui parte de uma conduta praticada por pessoa diversa, supostamente subordinada, será preciso pensar na categoria da causalidade. Trata-se de requisito que, ao menos no Brasil, não pode ser afastado ou substituído, sob risco de, mais uma vez, ferir-se o princípio da legalidade e seus corolários, uma vez que exigido pelo caput do art. 13, CP. As duas principais propostas de solução, apresentadas como a teoria da evitabilidade e a teoria da diminuição do risco, essa última aparentando maior acerto, também se mostram insuficientes para responder, finalmente, aos problemas que se apresentam no âmbito da criminalidade empresarial, em delitos omissivos impróprios. Decisões colegiadas, implicando omissões simultâneas, e questões como a interferência do compliance officer na atuação dos administradores da empresa, suscetíveis a um cenário de omissões sucessivas, revelam a necessidade de que a esfera de responsabilidade desses sujeitos, enquanto garantidores, seja vista com cautela. Apesar da maior adequação da omissão imprópria à imputação de dirigentes, em detrimento do anterior e inadequado uso da teoria do domínio do fato nesse campo, embora não livre de percalços, a jurisprudência brasileira vem, pouco a pouco, aplicando essas compreensões fora de contexto. Em vez de fixar parâmetros, ao próprio poder de garante e aos meios para se aferir em que circunstâncias mínimas a ofensa ao bem jurídico será atribuível ao empresário, tem se verificado, diante dos desafios de identificação no contexto fático, um inaceitável atropelo de respostas penais. 72 4 ANÁLISE DAS DISTORÇÕES NA IMPUTAÇÃO DE DIRIGENTES POR CRIMINALIDADE DE EMPRESA: PROBLEMAS PRÁTICOS “Que fim pode ser legítimo quando algo já nasce problemático, ab ovo? Procedimentos heterodoxos, mesmo que para finalidade legítima? Isso é conforme a ordem constitucional?”228 (Lenio Streck). Retomando o conceito de criminalização secundária, a que se fez referência no início deste trabalho, na qualidade de ação punitiva que se exercerá sobre pessoas concretas, com operacionalidade por meio de diversos atores, merece destaque sua submissão à agência judicial, cuja orientação reúne precipuamente o órgão de acusação e o julgador. O caráter mitológico do discurso criminal, no sentido atribuído por Rubens Casara, não raro conduz à sua instrumentalização para restabelecer uma paz social violada – muito embora um efetivo restabelecimento, por meio da persecução, não encontre amparo em pesquisas empíricas229. As considerações de Sigmund Freud, em Totem e Tabu, ao abordar os modos com que o tabu se manifesta, talvez se prestem a clarear esse sentimento na responsabilidade de dirigentes por criminalidade de empresa. Explica Freud que, aquele que adota uma conduta proibida, transgredindo o tabu, torna-se o próprio tabu. Atenta, apesar disso, para o fato de existirem determinadas pessoas, em estados especiais, que ainda que não executem qualquer conduta proibida, terão o tabu aderido a sua imagem230. Isso se deve, conforme o psicanalista, dentre outros fatores, ao estado ocupado pelo indivíduo despertar em terceiros um conflito de ambivalência231. Se rememorada a construção de Sutherland, reforçada no cenário nacional por nomes como Ela Wiecko Castilho, quanto à imunidade histórica em que se posicionam os sujeitos da criminalidade econômica, será possível compreender de que modo os dirigentes empresariais foram, gradativamente, inseridos nessa posição232. É com essa perspectiva, também, que se pode constatar um processo de naturalização, na esfera social, das condutas adotadas pelos agentes de criminalização secundária, ainda que 228 STRECK, Lenio. Porque processo penal e garantias jamais rimam com "heterodoxia"! ConJur, São Paulo, 13 dez. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-dez-13/senso-incomum-porque-processo-penal- garantias-jamais-rimam-heterodoxia. Acesso em: 08 out. 2019. 229 CASARA, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 197. 230 FREUD, Sigmund. Totem e Tabu: Algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos. Tradução do alemão de Renato Zwick. Porto Alegre: L&pm Editores, 2013. p. 75. 231 Ibidem. p. 76. 232 O próprio Sigmund Freud, embora não se refira especificamente aos dirigentes de empresa, utiliza como exemplo dessa categoria figuras situadas em espectros de poder, como os reis e os chefes. Ibidem, p. 76. 73 irregular, na persecução de tais sujeitos. Em uma análise sob o viés filosófico, oferecido por Márcia Tiburi, o problema se insere em uma situação limite no que concerne à moral e à ética. Em verdade, afirma, é “como se a ética e a moral realmente fossem excrecências inúteis” diante do momento que se presencia233. Há de se admitir que a substituição de um desejo democrático pelo desejo de audiência, guiado pelo insaciável furor persecutório, não é evento novo. O fascínio pela repressão ao crime acompanha a sociedade por séculos – que o demonstrem as execuções públicas, representadas por espetáculos dantescos234, como o ainda estudado “cumprimento de sentença” de Tiradentes, condenado à forca em 1792 –, estimulado pelos meios de comunicação. A novidade, entretanto, reside no maior alcance dessas agências de comunicação, em sua influência nos valores sociais, na capacidade de alterar o significado da realidade e nos sentimentos que despertam nesses grupos235, atrelado aos efeitos simbólicos da mística “luta anticorrupção”. Ao contrário, sua consequência no discurso jurídico, com maior ênfase desde a AP 470, nada tem de simbólica: vem-se traduzindo, pragmaticamente, na utilização de caminhos heterodoxos para alcançar o “legítimo fim”, e no que toca a este estudo, flexibilizando os meios de imputá-lo. Abandonando a valiosa lição de Schopenhauer, ao afirmar que quem quiser que seu julgamento seja crido, deverá proferi-lo sem paixão, dado que “toda impetuosidade tem origem na vontade: razão pela qual se haverá de atribuir o julgamento em questão a esta, e não ao conhecimento, que é frio por natureza”236, o intento de responsabilizar os dirigentes empresariais, como se ilustrará aqui por meio de denúncias oferecidas pelo órgão de acusação, parece dizer mais sobre o tabu freudiano do que sobre a dogmática-jurídico-penal. Crer-se-á, ainda ao valer-se da precisa lição, “que o juízo se originou da vontade excitada” antes de que “a excitação da vontade tenha surgido do juízo”237. Abandonados os critérios de imputação, esvaziados os conceitos e afastados os limites impostos pelas garantias, 233 TIBURI, Marcia. Ética, hoje: o que a Lava Jato nos coloca como questão. 2019. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/etica-lava-jato-marcia-tiburi/. Acesso em: 14 ago. 2019. 234 SHECAIRA, Sérgio Salomão. A criminalidade e os meios de comunicação social de massas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 3, n. 10, p. 135-143, abr./jun. 1995. 235 “De uma maneira ou de outra, as mensagens que são transmitidas passam a integrar a maneira de ser da população que está submetida a sua influência. O mundo atual, mundo das comunicações, vive da ficção, da fantasia, em que a definição de realidade assume um papel maior que a própria realidade. [...] Sentimentos intensos e ocultos como a agressividade, os preconceitos sociais, raciais e morais e, principalmente, o medo, ganham vida própria no grande espetáculo”. SHECAIRA, Sérgio Salomão. A criminalidade e os meios de comunicação social de massas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 3, n. 10, abr./jun. 1995. p. 136. 236 SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Tradução do alemão de Gabriel Valladão Silva. Porto Alegre: L&PM, 2019. p. 219. 237 Ibidem. 74 é possível atingir o resultado a que se prestou a acusação: oferecer respostas penais aos anseios públicos. Inverte-se a “ordem natural das coisas”, de maneira que o caminho argumentativo é que decorrerá de um resultado desejado e preestabelecido. A linguagem de que se valem esses instrumentos, assim como se destacou, ao abordar o suposto “espírito criminal de grupo”, e a utilização de termos que facilitam a adesão a investidas criminógenas, adquire aqui uma carga de violência simbólica, de perpetuação do poder punitivo, a depender do momento em que sejam empregadas certas terminologias. Expressões como “supremacia do interesse público”, “ponderação de valores” e “justa medida”, apenas para elencar alguns exemplos, visam a transformar a ponderação em um “enunciado performativo”238, descriterioso. Dessa maneira, o preenchimento de determinados conceitos se dará por loteria, viciada, muitas vezes, a depender de quem figura como acusado. Abre-se espaço para o cometimento de arbitrariedades, sopesando princípios e categorias para um maior êxito probatório ou para o oferecimento de soluções ao caso concreto, que se apresenta imensamente dificultoso em dadas circunstâncias, como a que se revelou ao tratar, por exemplo, das omissões simultâneas. Os problemas práticos são, sobretudo, de legitimidade. A simplificação ou o uso de retalhos, construídos ao selecionar aspectos favoráveis ao intento punitivo em diversas teorias, ainda quando incompatíveis umas com as outras, distancia-se da base do próprio sistema criminal e da racionalidade da ordem jurídica239. No tocante ao último aspecto, ao menos três hipóteses de violação se manifestam: a ausência de clareza nos conceitos, impedindo que sejam verificáveis por qualquer pessoa; a dificuldade de compreensão dos elementos constitutivos na disciplina dos fatos; e a criminalização fundada não apenas em desdobramentos causais sensíveis, o que representa, à luz do Código Penal brasileiro, e conforme já demonstrado, um problema de legalidade. A sobrecriminalização, firmada por um processo político que expande o sistema criminal e o endurecimento de sanções, por meio do medo e do sentimento de identificação 238 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - Decido conforme minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. (Coleção O Que É Isto?). p. 51-52. 239 A respeito disso, esclarece Juarez Tavares que, “ainda que o significado de racionalidade seja polissêmico, será possível impor condições mínimas que possam impedir a constituição de uma ordem jurídica irracional”. Assim, assinala, seguindo a metodologia proposta por Hubner, uma ordem jurídica racional exigirá a presença, ao menos, dos seguintes requisitos: “a) edificação de conceitos que, por sua clareza, possam ser identificados por qualquer pessoa; “b) a disciplina de fatos de modo a possibilitar a compreensão de seus elementos constitutivos; c) a sistematização de normas que obedeçam a uma sequência lógica; d) a fundamentação da criminalização apenas sobre condutas e seus desdobramentos causais sensíveis; e) a subordinação das normas às características empíricas da conduta e às condições de seu autor, segundo suas possibilidades e participação no processo de elaboração legislativa.”. TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 63. 75 com as vítimas, adquirindo outros contornos quando essas se transformam em vítima-coletivo, é também refletida nessas denúncias. São parte de um sistema criminal politizado, em último grau, pela tendência de “governar pelo crime”240 e pelo populismo punitivo, política adotada, em âmbito internacional, por George H.W. Bush, nos Estados Unidos, e retomada por Donald Trump. No cenário brasileiro, na era Lula e, posteriormente, no governo Dilma Rousseff, surge a mesma política, pontualmente visualizada nas duras legislações de combate à corrupção, a exemplo da Lei 12.846/2013 (“Lei Anticorrupção”), da alteração na Lei 9.313/98 pela Lei 12.683/2012 (“Nova Lei de Lavagem de Dinheiro”) e, ainda, da Lei 12.850/2013 (“Lei das Organizações Criminosas”), também utilizada nessa matéria. Atualmente, com especial força no governo Bolsonaro, observada em uma gestão que se expressa no estigma, na imposição de pena como forma de evitar “um mal maior”, e na “barbarização legislativa” para satisfazer uma demanda contra a impunidade241. Por meio dessas críticas, não se afirma a impropriedade de construções penais econômicas, como outrora se presenciou, mas a falha na aplicação de algumas dessas categoriais e entendimentos, motivada pelos apelos sociais, conduzindo a um modo de punir ilegítimo. Sobre os casos que inspiraram esse debate, por esse mesmo motivo, não se fará qualquer análise a respeito da culpabilidade, que corresponde a um segundo momento na imputação penal. Propõe-se, em contrapartida, um olhar sobre o início desse caminho rumo à punibilidade de dirigentes; uma demonstração, amparada pela dogmática e pela legislação penal brasileira, da (in)compatibilidade entre os pressupostos de responsabilidade penal e os tortuosos meios de imputação adotados nessas circunstâncias. 4.1 Situação A – Responsabilidade de dirigentes de empresa por meio da teoria do domínio do fato e “aparatos organizados de poder” A principal via de imputação aos dirigentes de empresa indicada pela jurisprudência, exaustivamente repetida na AP 470, é a atribuição de autoria mediante “domínio do fato”, com fulcro na teoria de Claus Roxin. 240 LYRA, José Francisco Dias da Costa. A sobrecriminalização ou a tendência de governar pelo crime e a produção de castigos injustos: os excessos do Pharmakon no direito penal da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 26, n. 150, p. 450-480, dez. 2018. 241 Valendo-se este trabalho da terminologia empregada por LYRA, José Francisco Dias da Costa. A sobrecriminalização ou a tendência de governar pelo crime e a produção de castigos injustos: os excessos do Pharmakon no direito penal da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 26, n. 150, dez. 2018. p. 470. 76 Cumpre esclarecer, preliminarmente, que mesmo após a reforma da Parte Geral do Código Penal brasileiro, em 1984, permaneceu no ordenamento a opção por um sistema unitário de autor. É o que está contido, expressamente, na própria Exposição de Motivos à “Nova Parte Geral”242, e previsto no art. 29, caput, CP, quando determina que aquele que de qualquer modo concorre para o crime incide nas penas a esse cominadas, na medida se sua culpabilidade. Esse sistema, entretanto, não é inteiramente incompatível com uma diferenciação das modalidades de autoria, o que resta evidenciado ao aludir o legislador à culpabilidade, no final do dispositivo, limitando uma interpretação mais radical. Daí que, ao tratar da temática, será dito que o Brasil adotou uma “teoria unitária temperada”, a qual, em termos mais adequados, corresponde a um “sistema unitário funcional”243. Posto isso, é que se poderá analisar em que medida o Código Penal brasileiro admite a dita teoria de Roxin, e se sua utilização, de maneira geral, é aplicável à punibilidade de dirigentes e superiores hierárquicos. Para tanto, serão utilizadas duas denúncias oferecidas pelo Ministério Público Federal, valendo-se, no primeiro caso, do domínio do fato para imputar a autoria aos dirigentes da empresa IESA OLÉO E GÁS e QUEIROZ GALVÃO244, e no segundo, ao ex-presidente Lula245, por atos de corrupção passiva praticados na empresa de economia mista Petrobras. O ponto de partida básico é que, em qualquer modelo de imputação, não é admissível uma responsabilidade originada na simples ocupação de cargo, pressupondo, então, uma necessidade de ação ou omissão desse sujeito para a responsabilidade penal. Nos contornos dados por Claus Roxin, a teoria do domínio do fato diferencia autores e partícipes, o que corresponde a uma concepção que tem como base o sistema diferenciador de 242 Item 25: “O Código de 1940 rompeu a tradição originária do Código Criminal do Império, e adotou neste particular a teoria unitária ou monística do Código italiano, como corolário da teoria da equivalência das causas (Exposição de Motivos do Ministro Francisco Campos, item 22). Em completo retorno à experiência passada, curva-se, contundo, o Projeto aos critérios dessa teoria, ao optar, na parte final do artigo 29, e em seus dois parágrafos, por regras precisas que distinguem a autoria de participação. Distinção, aliás, reclamada com eloqüência pela doutrina, em face de decisões reconhecidamente injustas.”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868- exposicaodemotivos-148972-pe.html. Acesso em: 15 out. 2019. 243 Isso se deve ao fato, como esclarece Pablo Alflen, de ter o legislador brasileiro admitido uma diferenciação entre as modalidades de autoria, mas não estabelecer a acessoriedade do autor imediato. ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do Domínio do Fato. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 169. 244 Denúncia apresentada em 1, “B” 245 Denúncia apresentada em 1, “C” 77 autoria e participação, e não o unitário246, rechaçando, ainda, premissas causais-naturalísticas, que nessa última hipótese serviriam de suporte247. Reinterpretar o caput do art. 29, CP, nos moldes dessa teoria, adaptando-a no que coaduna com a opção do legislador248, traria para a dogmática brasileira a análise da autoria imediata, autoria mediata e coautoria tendo como critério reitor os três tipos de domínio, detalhados no subtópico 2.3 deste estudo: o domínio da ação, o domínio da vontade e o domínio funcional. Aquele que não o possuir poderá, ainda, ser responsabilizado, mas apenas na condição de partícipe. A jurisprudência, no entanto, parece não ter realizado qualquer reinterpretação, assinalando os termos em que existiria compatibilidade entre o sistema unitário adotado pelo legislador e a teoria do domínio do fato, pensada para o sistema diferenciador. O que se evidencia, ao contrário, é a transposição das diretrizes do domínio do fato aos casos sob análise, desconsiderando sua incompatibilidade com a ordem jurídica vigente249. No primeiro deles, o Ministério Público Federal buscou fundamentar, através do domínio funcional do fato, o status de autoria a 7 (sete) dirigentes, com nomes suprimidos neste trabalho. Tal qual a construção de Roxin, conforme se adiantou, o domínio do fato não seria, em si, a definição de autoria, mas um critério reitor; um conceito aberto, não classificatório250. Por essa razão, afirmar em uma denúncia ou decisão que um determinado sujeito é autor, por possuir “o domínio do fato”, não delimitando quais circunstâncias concretas o situam como “senhor” desse fato, corresponde a uma assertiva vazia de conteúdo. 246 Observe-se, por exemplo, em ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 489-490. 247 Sobre esta afirmativa, ver GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 81-122. (Direito Penal e Criminologia). p. 87 e ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do Domínio do Fato. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 196- 170. 248 Nesse ponto, convém informar a existência do problemático PSL nº 236, de 2012, tratando da Reforma do Código Penal Brasileiro, ainda em tramitação. O anteprojeto apresentado pretende inserir o concurso de pessoas no Art. 38, referindo-se, expressamente, a autor como aquele que “domina o fato”, inclusive “utilizando aparatos organizados de poder”, categoria desenvolvida por Claus Roxin. Para consulta: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404. Acesso em: 15 nov. 2019. 249 ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do Domínio do Fato. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 170. 250 “Hay que encontrar un procedimiento com ayuda del cual quepa compelemntar en su contenido el concepto de domínio del hecho de una manera que parte dé cuenta de los cambiantes fenómenos vitales, y por otra parte también pueda alcanzar uma gran medida de determinación. Además, debe permitir someter a una regulación generalizadora de las formas básicas que aparecen uma y otra vez en la multiplicidad de los grupos de casos, y al mismo tiempo ofrecer la posibilidad de valoración justa de los casos concretos que escapan a la normación abstracta. Alcanzar estos fines tan distintos sólo es posible concibiendo el domínio del hecho como concepto – permítaseme la expresión – “abierto”.” ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 146. 78 Essa ideia, ainda, não é aplicável a todas as espécies delituosas, excluindo-se, por exemplo, os delitos de dever, os delitos de mão própria e os delitos culposos251. Disso decorre que não será possível confundir o domínio do fato com o poder de evitá- lo, para atribuí-lo, assim, a todo e qualquer dirigente, em uma intuitiva posição de garantidor. Isso porque essa teoria se refere aos delitos de domínio, comissivos dolosos. A posição de garantidor, por sua vez, é prevista no art. 13, §2º, CP, como elemento típico dos crimes omissivos impróprios, aos quais a ideia de domínio do fato é absolutamente inaplicável, mesmo no sistema diferenciador. Ademais disso, o domínio funcional do fato (apenas uma das expressões do domínio do fato) deriva da existência de um plano comum – e da impossibilidade de realizá-lo se não atuarem conjuntamente –, de ter cada sujeito “o fato em suas mãos”252, dividindo tarefas e contribuições relevantes. Surge, portanto, já como resultado da argumentação, não podendo, nem mesmo logicamente, ser também seu fundamento253. Com base nesse conceito, se imputou a autoria aos dirigentes na primeira denúncia, com destaques inseridos neste trabalho, inicialmente quanto ao delito de corrupção ativa: DIRIGENTE A: “Como já salientado, exercia o cargo de diretor de operações da IESA ÓLEO E GÁS, sendo o responsável pelas operações e implantações de obras. Foi DIRIGENTE A quem assinou o contrato com a COSTA GLOBAL, conforme será oportunamente imputado. Em relação a este contrato, DIRIGENTE A apareceu numa planilha de DIRIGENTE B como ponto de contato da IESA. Esses fatos indicam que DIRIGENTE A tinha domínio funcional sobre os fatos criminosos envolvendo a corrupção na IESA ÓLEO E GÁS” (fls. 32 e 33). “DIRIGENTE C: ocupava posição de diretor da IESA ÓLEO E GÁS e participava, juntamente com DIRIGENTE D, das reuniões do cartel. 251 Luís Greco e Alaor Leite, em GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1. p. 44. 252 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 309. 253 Assinalam Luís Greco e Alaor Leite, em GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. (Direito Penal e Criminologia). Cap. 1. p. 39-40, que esse corresponde a um dos erros mais comuns ao aplicar a teoria do domínio do fato na jurisprudência. 79 Em mensagem eletrônica apreendida na sede da IESA em 14/11/2014, RODOLFO ADRIANI aparece como destinatário de uma mensagem enviada por “valerio” cujo tema é a lista de convidados para UCH do COMPERJ, com budget de R$ 1,5 bilhão (Anexos 274 e ss.- evidência nº 21). Esse fato indica que DIRIGENTE C tinha domínio funcional sobre os atos de corrupção ativa que eram desencadeados na IESA ÓLEO E GÁS como um verdadeiro modelo de negócio.” (fl. 33) “DIRIGENTE D, DIRIGENTE E, DIRIGENTE F, DIRIGENTE G e DIRIGENTE H ocupavam cargos de diretoria e tinham domínio funcional dos atos criminosos praticados por intermédio da QUEIROZ GALVÃO.” (fl. 34). A respeito das condutas de cada denunciado acima referido, aptas a atribuir-lhes a autoria sob justificativa de um “domínio funcional”, assim individualizou o parquet: “DIRIGENTE D é diretor da Construtora QUEIROZ GALVÃO desde 2012, tendo substituído ILDEFONSO COLARES no controle dos pagamentos de propina. Na busca e apreensão na sua residência, foram encontradas anotações manuscritas de uma reunião do cartel. Essa evidência corrobora outras provas elencadas pelo CADE (Anexos 274 e ss.) como mensagens eletrônicas tratando dos encontros do grupo criminoso, o que indica a consciência do denunciado acerca do modelo de negócios baseado no pagamento de propina pela QUEIROZ GALVÃO.” (fl. 34.) “DIRIGENTE E: era diretor da QUEIROZ GALVÃO também subordinado a ILDEFONSO COLARES na condução das atividades ilícitas. Isso se comprova pelo fato de o denunciado ser destinatário das mensagens eletrônicas relacionadas à atividade do cartel, já mencionadas nos tópicos anteriores. Ademais, ANDRE GUSTAVO enviou e-mail marcando uma reunião do cartel para 18/06/2013, conforme se detalhou na imputação do crime contra a ordem econômica.” (fl. 34) “DIRIGENTE F: era diretor de óleo e gás da QUEIROZ GALVÃO. Há um abundante conjunto de provas já mencionadas que apontam para OTHON ZANOIDE DE MORAES FILHO como um dos responsáveis na QUEIROZ GALVÃO para tratar de assuntos referentes ao pagamento de propina e a manutenção do cartel da 80 PETROBRAS, comparecendo nas reuniões para definir os ajustes e fazendo contatos diretos com ALBERTO YOUSSEF para acordar o pagamento de propina por intermédio de doações oficiais.” (fl. 33). “DIRIGENTE G: até 2012, foi presidente da CONSTRUTORA QUEIROZ GALVÃO, sendo o principal líder do Grupo QUEIROZ GALVÃO em questões relacionadas ao cartel e aos atos de corrupção e lavagem de dinheiro na PETROBRAS. Comparecia as reuniões do Clube e mantinha contato direto com os agentes públicos corruptos da PETROBRAS para acertar detalhes do pagamento de propina.”. (fl. 34). Confrontando as definições de autoria verificadas na denúncia com o domínio do fato, de Claus Roxin, e notadamente o domínio funcional do fato, reiteradas vezes afirmado pelo parquet, supondo-se que a teoria fosse aplicável ao sistema unitário, algumas condutas restariam de pronto excluídas de sua abrangência. Frise-se, por oportuno, que este trabalho não se propõe à análise de culpabilidade, mas apenas da adequação entre os pressupostos de imputação da autoria aos dirigentes e o caminho adotado. Com relação aos acusados Dirigente E, diretor da Queiroz Galvão; Dirigente D, também diretor da construtora Queiroz Galvão; e Dirigente A, diretor de operações Iesa Óleo e Gás, o suposto domínio funcional do fato se justificaria, de acordo com o parquet, respectivamente, pelo envio de um e-mail marcando reunião para o cartel e por ser destinatário de mensagens eletrônicas relativas a suas atividades, por “ter consciência” acerca do modelo de negócios baseado no pagamento de propinas pela empresa e por figurar na planilha de um dos envolvidos como ponto de contato da IESA. Ainda que se alegue reprovabilidade das condutas, não seria possível fundar a responsabilidade por meio de uma autoria por domínio funcional. Isso porque nenhuma das condutas descritas acima se reporta à realização, de mão própria, de elementos do tipo ou da execução de uma tarefa fundamental no marco de organização desse plano comum. Mesmo com relação ao Dirigente E, afirmando-se ter enviado e-mail no intuito de marcar reunião para o cartel, em nada se refere o parquet a uma conduta ativa no delito imputado, que nesse momento se tratava de corrupção passiva, nos termos do art. 333, CP, e não formação de cartel, como prevê o art. 4º da Lei 8.137/90. O domínio funcional, além disso, difere-se pela imputação de autoria recíproca, que pressupõe a existência de plano comum e contribuição relevante de cada coautor. Assim, trata- 81 se de erro conceitual afirmar a conformidade dessas condutas, unicamente pelo descrito, com o domínio funcional do fato, expressão da teoria do domínio do fato. Com relação ao Dirigente B, destinatário de mensagem cujo tema seria a lista de convidados para uma suposta negociata de valores ilícitos, indicando essa situação que “tinha o domínio funcional sobre os atos de corrupção ativa que eram desencadeados na IESA ÓLEO E GÁS como um verdadeiro modelo de negócio”254, note-se que, ainda que porventura existisse conhecimento do diretor a respeito de práticas ilícitas desencadeadas na empresa, poderia cogitar-se o dever de evitá-las por meio de uma posição de garantia, mas não seria possível, igualmente ao que se narrou acima, a imputação de autoria por intermédio do domínio funcional. Decorre essa afirmativa da ausência de realização de mão própria dos elementos do tipo, e por se inserir a posição de garantia no âmbito das condutas excluídas da teoria do domínio do fato. Especificamente na verificação do “plano comum”, em contexto empresarial, elemento que torna dificultosa sua evidência é a distância entre os dirigentes empresariais e os funcionários, bem como as assimetrias informacionais, impondo dificuldades concretas ao preenchimento de requisitos para a coautoria, por meio dessa expressão de domínio. Tal qual o plano comum, a análise do que representaria uma “contribuição relevante” em contexto empresarial, enfrenta diversos percalços. Esse requisito objetivo pode se manifestar, assim como se expôs no subtópico 2.2, tanto na fase preparatória quanto na fase executória. Apesar de assim afirmá-lo255, Claus Roxin, no desenvolvimento de sua teoria, mostra-se adequada a ressalva de Luís Greco e Augusto Assis, para quem “parece que, por maior que seja, não há contribuição prestada na fase preparatória que possa compensar a falta de contribuição relevante na fase executória”256. A gravidade de imputar-se reciprocamente uma conduta delituosa, permitindo inclusive que os dirigentes respondam não apenas por seus atos, mas também pelos praticados, à primeira vista, por terceiros, exige uma forte legitimação. Diante das dificuldades apresentadas, assim como, afastando-se do plano hipotético, verdadeiramente não ser adequado transpor a teoria do domínio do fato para o sistema unitário de autoria e participação, conforme se antecipou, sem repensá-la – o que não se daria 254 Fl. 33 da denúncia em questão. 255 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 323– 326 e 334-336. 256 GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 81-122. (Direito Penal e Criminologia). p. 96. 82 casuisticamente, mesmo porque, para os moldes em que foi concebida, as generalidades da teoria dependem de um preenchimento doutrinário com observância a grupos de casos, e não jurisprudencial –, parece pertinente que se busquem soluções já contidas no ordenamento brasileiro. O conceito mais acertado para buscar uma responsabilidade da pessoa física dos dirigentes, em situações como as descritas na denúncia sob exame, seria valer-se o parquet de uma análise à luz da teoria dos crimes omissivos impróprios. Hipóteses como essas, onde há ausência de um comando do superior hierárquico, que caracterizaria um delito comissivo, mas que o resultado poderá se dar pelo não impedimento, em virtude de um comando omitido, encontram espaço nas discussões em torno do art. 13, caput, CP. Caberá, então, que se observe não mais a existência de plano comum ou de contribuição relevante, mas em um primeiro momento, de um dever de garantia, para o qual não bastará uma análise meramente formal, sob pena de incorrer-se na mesma inconsistência. Não se trata de alargar o Direito Penal, como se busca fazer, desde o caso Mensalão, com o distorcido uso da teoria do domínio do fato, como se fosse um escape mágico para ampliar as punições257, mas de uma opção metodologicamente aceitável se aferida concretamente. Na denúncia em que figurou como acusado o ex-presidente Lula, por seu turno, no momento das imputações de corrupção ativa e passiva, valeu-se o Ministério Público Federal das noções de domínio do fato assentada na modalidade de domínio da vontade por aparato organizado de poder. Trata-se de expressão também detalhada no subtópico 2.2 do presente estudo, referente às organizações estruturadas verticalmente, dissociadas da ordem jurídica, da qual se vale determinado agente para emitir ordens, que serão executadas por sujeitos em posição hierárquica inferior, tendo sua vontade fungível à estrutura. O agir desses encarregados se dará como “mera engrenagem de uma estrutura automática”258, sendo o agente que se valeu dessa um autor mediato. É a figura do domínio da organização. Assim definiu o parquet a relação do acusado com a Petrobras, empresa brasileira de economia mista, com grifos acrescidos neste trabalho: 257 Interessante, a respeito disso, a conclusão de Luís Greco e Alaor Leite, ao analisar as hipóteses de responsabilidade de dirigentes se utilizada a teoria do domínio do fato, em detrimento dos ordinários recursos do Art. 29, CP. Afirmam os autores, ao final do estudo, que “se alguém, reportando-se ao domínio do fato, chegar a uma conclusão que pune mais do que seria possível punir só com recurso ao Art. 29, do CP, há grande probabilidade ou mesmo uma presunção de que esse alguém esteja aplicando a ideia de domínio do fato de forma errônea, usando como artimanha retórica um termo cujo real significado desconhece”. 257 Luís Greco e Alaor Leite, em GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1, pg. 45. 258 Ibidem. p. 27-28. 83 “Nesse contexto de atividades delituosas praticadas em prejuízo da Petrobras, LULA dominava toda a empreitada criminosa, com plenos poderes para decidir sobre sua prática, interrupção e circunstâncias. Nos ajustes entre diversos agentes públicos e políticos, marcado pelo poder hierarquizado, LULA ocupava o cargo público mais elevado e, no contexto de ajustes partidários, era o maior líder do Partido dos Trabalhadores. Nessa engrenagem criminosa, marcada pela fungibilidade dos membros que cumpriam funções, a preocupação primordial dos agentes públicos corrompidos não era atender ao interesse público, mas sim atingir, por meio da corrupção, o triplo objetivo de enriquecer ilicitamente, obter recursos para um projeto de poder e garantir a governabilidade. Os atos de LULA, quando analisados em conjunto e em seu contexto, revelam uma ação coordenada por ele, desde o início, com a nomeação de agentes públicos comprometidos com o desvio de recursos públicos para agentes e agremiações políticas, como foi o caso dos Diretores da Petrobras, até a produção do resultado, isto é, a efetiva corrupção para atingir aquelas três finalidades.” (fl. 107). O trecho acima transcrito busca, de um lado, conceituar a ideia de domínio da organização, atribuível ao acusado, e de outro, as noções de que funcionaria a Petrobras, nessas circunstâncias, como um aparato organizado de poder. Inúmeros erros conceituais, sem embargo, residem nessa imputação. Em primeiro lugar, ainda que se imaginasse uma compatibilidade entre a teoria do domínio do fato e o sistema unitário, sua utilização, na hipótese delituosa acima abordada, findaria impossível. Consoante o aqui exposto, a teoria de Claus Roxin possibilita a diferenciação entre autores e partícipes apenas nos delitos de autoria geral. O delito de corrupção passiva, previsto no art. 317, CP, no entanto, corresponde a um delito de dever, no qual apenas o sujeito possuidor de um dever jurídico determinado poderá ser imputado na condição de autor, conjectura que torna inidôneo o uso do domínio do fato. Não bastasse isso, o domínio da organização, como subespécie desse domínio do fato, tem como um de seus elementos estruturais que o executor não se apresente como “pessoa 84 individual livre e responsável”, mas como figura “anônima e substituível”259. Excepciona, desse modo, o princípio da autorresponsabilidade260. Para tanto, sua vontade é fungível a uma estrutura similar a uma maquinaria, limitada, conforme determina o próprio doutrinador, às estruturas situadas à margem do ordenamento jurídico. Toca, esse ponto, uma característica intrínseca: a estrutura não se torna um aparato organizado de poder por algumas condutas perpetradas em seu interior, mas surge como um261. Em nada se assemelham essas definições à Petrobras, sociedade de economia mista para a persecução de fins lícitos, dotada de estatuto e fiscalizada por órgãos federais. Mesmo que se considere, em seu interior, a existência eventual de ações criminosas, a organização empresarial se diferencia de todos os aspectos sob os quais constituiu Claus Roxin a figura dos aparatos organizados. Não há, ainda, qualquer fungibilidade, empiricamente comprovada, dos membros que compõem seu quadro, mas apenas referência genérica a esse conceito, o que não é apto a autorizar que delitos perpetrados por membros, prima facie, autorresponsáveis, fossem atribuíveis também ao acusado, por meio da figura da autoria mediata por domínio de organização. Põe-se em evidência, mais uma vez, a inadequada utilização da teoria do domínio do fato enquanto via de responsabilidade penal de dirigentes, seja por meio do domínio funcional, seja do domínio da vontade. 4.2 Situação B – Responsabilidade por omissão imprópria fundada em mera posição Apesar de a teoria dos crimes omissivos desempenhar um significativo papel na abordagem do Direito Penal Econômico Empresarial, a responsabilidade individual não se funda em uma imposição abstrata de deveres. Faz-se necessário delimitar a abrangência desses crimes omissivos na relação empresarial, as hipóteses de imputação penal aos garantes e as concretas condições de cumprimento que possuíam na posição que ocupavam. 259 ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 273. 260 Ver GRECO, Luís. Domínio da Organização e o chamado Princípio da Autorresponsabilidade. In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 6. p. 203-214. (Direito Penal e Criminologia). 261 A respeito disso, Figueiredo Dias: “A organização revela-se como uma “unidade funcional” com vida própria, independente dos concretos indivíduos que a compõem. Devido à rigorosa disciplina interna, consubstancia um instrumento ao serviço das decisões tomadas pelas instâncias de cúpula”. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 366. 85 Em termos práticos, a influência das esferas diretivas só pode ser interpretada se compreender-se de que modo essas estruturas se organizam (se se trata, por exemplo, de uma estrutura constituída de forma horizontal ou vertical), sua dinâmica de funcionamento e os graus de liberdade em seu interior. É que o dever de agir, daquele que porventura ocupe uma posição de garantidor, não corresponde a um simples dever genérico de evitar o resultado, mas de um dever de praticar conduta determinada, no intuito de evitar lesão a um bem jurídico ameaçado. Sua determinação, portanto, depende de uma análise concreta: a existência de uma situação de perigo verificável e de uma conduta omitida, capaz de evitá-la ou diminuí-la, embora possuísse o sujeito capacidade físico-real de fazê-lo, o que inclui a cognoscibilidade e a possibilidade jurídica de agir. Ainda que a atividade empresarial conviva com riscos, esses, quando permitidos, não adquirem relevância penal. Apenas quando ultrapassados seus limites, quando da criação de um risco não permitido ou quando o omitente tenha por lei ou assunção dever funcional de evitar riscos alheios, será possível cogitar uma imputação ao garantidor. Esse dever de garantia, no entanto, em respeito à forma de responsabilidade penal individual, não terá origem no cargo ocupado pelo agente na empresa, mas na necessária fundamentação material dessa posição de garantidor, tendo em vista as possibilidades que acolhe o Código Penal brasileiro, nas alíneas “a”, “b” e “c” do art. 13, §2º. A desatenção a esses pressupostos conduz, invariavelmente, a uma ausência de clareza na responsabilidade, abandonando as noções de ultima ratio e os freios do princípio da legalidade, para aproximar-se da sobrecriminalização. É o que se observará na imputação por omissão imprópria, sob forte apelo midiático, aos dirigentes da Samarco, BHP e Vale, em virtude do rompimento da barragem de Fundão, culminando no desastre de Mariana262. Ao caracterizar a omissão penalmente relevante e a posição de garantia, afirmou o parquet, com grifos inseridos neste trabalho: “Apurou-se ao longo das investigações que os denunciados, atuando na condição de diretores, administradores, membros de conselhos e de órgãos técnicos, gerentes, empregados, prepostos, mandatários ou contratados da VALE, da BHP e da SAMARCO, e, tendo conhecimento dos diversos problemas, falhas ou “não conformidades” operacionais, narrados no Item 3 desta denúncia, e do progressivo incremento da situação típica de risco, mesmo devendo e podendo 262 Denúncia apresentada em 1, “A”. 86 agir para evitar o rompimento da barragem de Fundão e os resultados penalmente desvalorados, deixaram de impedi-los e de evitá-los, razão pela qual incidem nas figuras típicas abaixo indicadas na forma do art. 13, § 2º do Código Penal c/c art. 2º da Lei n.º 9.605/98.”. (fl. 198) Destaca-se, nesse trecho, que a atribuição do dever de garantia tem como ponto de partida uma afirmativa genérica, semelhante a uma responsabilidade solidária, que se admissível em âmbito de responsabilidade civil, rechaça-se por completo em seara penal. Inexiste, no supracitado trecho, qualquer individualização de condutas e contribuições, aferição concreta do dever de agir, da cognoscibilidade, da possibilidade jurídica e da existência de nexo causal, segundo o próprio art. 13, caput, CP. Tratando do “dever e poder de agir” dos Membros do Conselho de Administração, integrado por representantes da VALE e BHP, outro trecho mostra-se fundamental para uma adequada análise dos pressupostos de omissão imprópria, quando em estruturas marcadas pela divisão de tarefas e funções: “E, mesmo nas hipóteses em que determinou a adoção de medidas específicas relacionadas à gestão dos rejeitos produzidos pela SAMARCO, o Conselho omitiu-se em exercer seu poder- dever de vigilância e suas competências organizativas, uma vez que se contentou em receber passivamente informações não condizentes com a crítica realidade operacional da barragem de Fundão transmitidas pelos diretores, DIRIGENTE A e DIRIGENTE B, ou pelos representantes dos Comitês e Subcomitês de Assessoramento. Enfim, os membros do Conselho de Administração, figurando na condição de administradores da SAMARCO, deixaram de empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo deveria empregar na administração dos seus próprios negócios (art. 145 c/c art. 153, ambos da Lei 6.404/76)138. Dessa forma, podendo e devendo agir para evitar o rompimento da barragem de Fundão, uma vez que detinham obrigações de cuidado, proteção e vigilância, omitiram-se de exercer seus deveres de organização, coordenação e vigilância geral das atividades da empresa, deixando de impedir e de evitar os resultados penalmente desvalorados, razão pela qual incidem nas figuras típicas abaixo indicadas na forma do art. 13, § 2º do Código Penal c/c art. 2º da Lei n.º 9.605/98.” (fl. 203 e 204). Como se buscou demonstrar neste trabalho, uma das características mais comuns do ambiente empresarial é a descentralização e a execução, em âmbito vertical ou horizontal, de papéis organizacionais distintos. As esferas de competência desses sujeitos, a partir disso, serão 87 também restritas, o que, somado às assimetrias informacionais, afastam a noção intuitiva de que os administradores possuiriam, em todo caso, informações pormenorizadas sobre o funcionamento de cada setor empresarial. Quando a tomada de decisão desses administradores depende de orientação ou esclarecimento de outros membros – a exemplo do que se descreveu no trecho acima colacionado –, importará saber em que medida essas informações repassadas influíram no omitir desses sujeitos, pois a capacidade fática de agir é composta, também, pela cognoscibilidade263, diretamente relacionada ao conhecimento potencial do caráter injusto da conduta. Destarte, não é possível afirmar que, sem essa evidência, esteja caracterizada a capacidade concreta de agir dos membros do Conselho de Administração. Em um segundo momento, o trecho apresenta inconsistência conceitual, ao atribuir ao Conselho de Administração obrigações de “cuidado”, “proteção” e “vigilância”, como se estes guardassem, entre si, a condição de sinônimos. As categorias, que partem de uma divisão das espécies de garantidores proposta por Armin Kaufmann264, possuem conceitos distintos, com ideia central variável, inclusive, conforme o marco teórico que se utilize – como ilustração, observe-se, assim como se antecipou no capítulo 3, que enquanto os garantidores de proteção, para Schunemann, têm como ideia central a custódia, para Jakobs, seriam determinados pela competência institucional. Em linhas gerais, contudo, os garantidores de proteção possuem dever de vigiar e conter perigos externos, que possam afetar o bem jurídico vulnerável, estando esse em relação de dependência com o garantidor. Os garantidores de vigilância, por outro lado, possuem dever de preservação de bens jurídicos e contenção de riscos, oriundos de uma fonte de perigo, livremente organizada, mas devendo respeitar as esferas de segurança alheias, hipótese que abarca também a ingerência265. No mesmo erro incorre a imputação aos representantes da VALE e da BHP nos Comitês de Operação e de Desempenho Operacional. Inicialmente, informa o parquet que os ditos 263 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 140-141. 264 KAUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión. Madrid: Marcial Pons, 2006. Traducción de la segunda edición alemana (Gotinga, 1980) por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano González de Murillo. p. 309-313. 265 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 96-103. 88 Comitês possuíam competências distintas, reunindo-se 3 (três) vezes ao ano para assessorar o Conselho de Administração (fl. 204). Desse modo, afirma: “Podendo e devendo agir para evitar o rompimento da barragem de Fundão, uma vez que detinham obrigações de cuidado, proteção e vigilância, os representantes da VALE e da BHP no Comitê de Operações e no Subcomitê de Desempenho Operacional se omitiram de exercer seus deveres de assessoramento em questões técnicas e relacionadas à operação da barragem de Fundão, concorrendo para que aqueles que detinham efetivo poder de decisão deixassem de impedir e de evitar os resultados penalmente desvalorados, razão pela qual incidem nas figuras típicas abaixo indicadas na forma do art. 13, § 2º do Código Penal c/c art. 2º da Lei n.º 9.605/98.” (fl. 205). Ignora-se, novamente, a exigência do art. 13, §2º, CP, quanto à capacidade física de agir. Em ambos os casos, ausente a possibilidade concreta de ação, deve-se afastar a incidência da norma. Outro ponto que merece questionamento, também nos dois casos, é de o parquet não ter se remetido à causalidade das omissões. As hipóteses referidas se enquadram na figura das omissões simultâneas, o que torna ainda mais complexa a atribuição de responsabilidade penal, por não ser possível a imputação de resultado a todos os membros, unicamente por integrarem o órgão colegiado. Na mesma denúncia, imputa o Ministério Público Federal, ainda por omissão imprópria, responsabilidade penal aos Diretores Executivos, a quem competiria a “direção dos negócios”, o desenvolvimento de políticas gerais, códigos de conduta e zelar pela conformidade legal e societária da SAMARCO (fl. 206). Com fundamento apenas em suas atribuições na forma do estatuto, conclui o parquet, também nesse caso, pela violação aos deveres de “cuidado, proteção e vigilância” (fl. 206). Já quanto aos gerentes e engenheiros da SAMARCO, do seguinte modo atribuiu-se o dever de garantia: “Pelo fato de os gerentes/empregados serem engenheiros com profissão regulamentada pela Lei n.º 5.194/66 e pela resolução do Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura (CONFEA) n.º 1.010/2005, a eles impunha-se, ao longo do tempo em que estiveram à frente da barragem de Fundão, os deveres de cuidado, proteção e vigilância relacionados à observância de seu Código de Ética (Resolução CONFEA 1.002/2002)” (fl. 208). 89 “Enfim, os gerentes/engenheiros, figurando na condição de profissionais com profissão regulamentada e como responsáveis técnicos pela implementação e operação da barragem de Fundão, deixaram de observar, no exercício de suas funções, princípios éticos e deveres profissionais, como: de utilizar técnicas adequadas; de assegurar os resultados propostos e a qualidade satisfatória nos serviços e produtos; de observar a segurança nos seus procedimentos; de prezar pelo desenvolvimento sustentável na intervenção sobre os ambientes natural e construído, e na incolumidade das pessoas, de seus bens e de seus valores e de alertar plenamente seus empregadores dos riscos e responsabilidades relativos às prescrições técnicas e às consequências presumíveis de sua inobservância. Dessa forma, podendo e devendo agir para evitar o rompimento da barragem de Fundão, uma vez que detinham deveres de cuidado, proteção e vigilância, omitiram-se de exercer suas competências técnicas definidas nos normativos internos da SAMARCO sobre a gestão das barragens, se omitiram de exercer deveres ético-profissionais previstos na Resolução CONFEA n.º 1.002/2002 e se omitiram de fiscalizar as atividades delegadas aos inferiores hierárquicos, deixando de impedir e de evitar os resultados penalmente desvalorados, razão pela qual incidem nas figuras típicas abaixo indicadas na forma do art. 13, § 2º do Código Penal c/c art. 2º da Lei n.º 9.605/98.” (fl. 209). Tanto na atribuição de deveres de garantia aos Diretores, quanto aos Gerentes e Engenheiros, parece ter se valido o parquet das noções de “obrigação legal” de garantia, previstas na alínea “a” do art. 13, §2º, CP. Tal opção, contudo, viola o princípio da legalidade e da reserva legal. A obrigação decorrente da lei deve ser compreendida sob viés restritivo. Nela, não estão abarcados, por exemplo, os decretos, mas unicamente a lei em sentido estrito. Assim, ainda que conste no estatuto ou nas resoluções profissionais determinada obrigação, essa não constituirá, para o sujeito, um dever automático de garantia. Será imprescindível, no caso concreto, que haja anuência expressa ou tácita desse sujeito, por meio de um comportamento positivo – que não corresponde, também, à mera ocupação de cargo – para que seja possível pensar, primitivamente, em um critério material fundamentador dessa posição. De mais a mais, o que se observa a partir da denúncia apresentada, quando em confronto com os pressupostos de imputação por omissão imprópria, é uma confusão entre o dever de garantia e a posição ocupada pelo agente na estrutura empresarial. Confusão essa que 90 possibilita, ilimitadamente, um alargamento da responsabilidade penal em contexto de empresa, pois vale-se de características lícitas de sua organização, como a divisão de tarefas e funções. 4.3 Situação C – Responsabilidade por fatos praticados por subordinados no contexto empresarial Situação típica de ambientes empresariais é a delegação de poderes, competências e funções, especialmente quando a organização se compuser em estrutura vertical, hierarquizada. Por meio desse fenômeno, o sujeito delegante cederá parcela de seus poderes a um terceiro, a quem se denominará delegado, podendo realizar-se essa circunstância nos diversos níveis empresariais, não restritos a uma perspectiva top down. As normas de cuidado impostas aos garantes não compreendem, como regra, o dever de impedir resultados lesivos que advenham da conduta dolosa ou culposa de terceiros266, excetuadas as situações em que o garante possuía domínio completo sobre esse terceiro, seja por assunção, seja por dever legal. Fragmentado o poder de controle, o mesmo ocorrerá, pois, com o âmbito de vigilância do garantidor. Cumpre observar, no entanto, quais atividades podem ser objeto de transferência, modificando a titularidade dos deveres. A figura do compliance officer, já abordada neste trabalho, é uma dessas hipóteses, em que se contrata um sujeito externo à empresa para atuar, fundamentalmente, na vigilância e prevenção de práticas ilícitas em seu interior. Não é viável, por outro lado, que Conselhos de Administração deleguem sua gestão, mas é possível que o façam com atribuições secundárias, desde que não descaracterizem o administrador enquanto um267. O mesmo pode ser pensado dentro de um departamento financeiro ou de controladoria nessas instituições. Ao contrário do que se pode imaginar, por intuição, quando analisada apenas sob a perspectiva de incremento na problemática da responsabilidade penal, essa delegação de funções e tarefas, além de necessária ao desenvolvimento da atividade econômica, amplia a proteção de bens jurídicos268. Por um lado, gera um dever de garantia, por meio da assunção, ao que aceita executar as funções que lhe foram conferidas – delegado – e, por outro, para o que o transmite – delegante 266 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 266. 267 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 147-148. 268 Ibidem. p. 149. 91 –, remanesce um dever de supervisão do trabalho desse delegado, substituindo o dever de garantia imediato sobre o foco de perigo269. Esse dever não representa, evidentemente, uma responsabilidade de supervisionar todo e qualquer ato que pratique o delegado, inclusive pela existência das esferas de liberdade profissional desse, motivo pelo qual se invoca, nessa relação, o princípio da confiança270. Se assim não fosse, a delegação esvaziaria-se de sentido, pois remanesceria para o delegante originário o controle completo da atividade desempenhada. A depender da dinâmica empresarial, pode-se visualizar uma verdadeira cadeira de delegações. O dever de supervisão, porém, limita-se às atividades por ele transmitidas. Melhor dizendo: se houver nova delegação, transmitindo o delegado parcela da responsabilidade que recebera a um terceiro, subordinado, caberá a ele supervisioná-lo, estando desincumbido o primeiro delegante. Novamente, a denúncia aos funcionários da Samarco, BHP e Vale271 fornece contributos práticos à verificação dos problemas dessa dinâmica, em termos de imputação penal enquanto garantidores. O Conselho de Administração da empresa, de acordo com o que se extrai da denúncia, possibilitou a criação de Comitês, aos quais foram delegadas as funções de análise em decisões e controles, assessoria aos membros do Conselho por meio de um conhecimento especializado e oferecimento de recomendações, para orientarem as decisões tomadas pelo primeiro. Corresponde essa modalidade à delegação de certas atividades administrativas, gerando para o delegante um dever de vigilância sobre essa atuação, a qual, como se adiantou, estaria pautado pelo princípio da confiança. O Comitê de Desempenho Operacional teria como atribuição definir planos de melhoria operacional, analisando e monitorando o desempenho operacional da companhia, de acordo com o Regimento Interno da empresa. (fl. 204). Esse comitê, no entanto, vinculava-se ao 269 SOUZA, Artur de Brito Gueiros. A delegação como mecanismo de prevenção e de geração de deveres penais. In: MARTÍN NIETO, Adán; SAAD-DINIZ, Eduardo; GOMES, Rafael Mendes (Coords.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal das pessoas jurídicas. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 220. 270 O caso clássico, que levou ao desenvolvimento pela jurisprudência alemã do princípio da confiança, referia-se ao dever de cuidado nas relações de trânsito. No entanto, embora não tenha sido previsto para estruturas empresariais, esclarece Flávia Siqueira que o princípio, ao longo do tempo, deixou de se vincular apenas às particularidades desse contexto, aplicando-se a outras situações em que haja intervenção de terceiros em um resultado lesivo. PEREIRA, Flávia Siqueira Costa; NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. A teoria da imputação objetiva e o princípio da confiança no direito penal: considerações à luz do funcionalismo de Claus Roxin. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 23, p. 47-100, jul./dez. 2014. 271 Denúncia apresentada em 1, “A”. 92 Comitê de Operações, ao qual competia assessorar o Conselho de Administração em questões técnicas, ainda de acordo com o Regimento. (fl. 205). Ao imputar-lhes a responsabilidade por meio de omissão imprópria, afirmou o parquet que, da forma descrita acima, “detinham obrigações de cuidado, proteção e vigilância” os representantes da VALE e BHP integrantes desses Comitês, de maneira que “Se omitiram de exercer seus deveres de assessoramento em questões técnicas e relacionadas à operação da barragem de Fundão, concorrendo para que aqueles que detinham efetivo poder de decisão deixassem de impedir e evitar os resultados penalmente desvalorados” (fl. 205). É questão problemática a atribuição de responsabilidade, sob justificativa de existirem deveres de garantia, aos membros dos referidos Comitês. O Conselho Administrativo, se encarregado da atividade de gestão da sociedade, conforme representa a denúncia, poderia, licitamente, delegar tarefas, mas não a responsabilidade pela tomada de decisões. Rememore- se a impossibilidade de que o Conselho transmita responsabilidades de maneira a descaracterizar sua função de administrador. Esse transmitir se efetiva, constituindo na figura do delegado um novo garantidor (por meio da assunção, prevista no art. 13, §2º, “b”, CP), quando o delegado efetivamente inicia o exercício das funções assumidas, em substituição ao delegante. Nesse contexto, é o delegante – Conselho de Administração – que prosseguirá com deveres de vigilância ativa quanto aos atos do delegado, e não esse que passará a tê-los com o Conselho de Administração, nos termos em que aduz o parquet. Ao delegado, nesse caso, tampouco seria possível o dever de agir, concretamente, para evitar o resultado lesivo. A abrangência de sua atuação é limitada no âmbito do acordo, às atribuições que efetivamente assumiu, implícita ou tacitamente. Na individualização de condutas, o parquet requereu a condenação dos membros do Comitê nos termos do art. 13, §2º, “a”, o que corresponde a um dever de garantia com fundamento em imposição legal. A delegação de vigilância, nas condições expostas no início dessa análise, não possui efeitos exoneratórios. Não se recorre, em atenção ao princípio da legalidade, aos postulados da legislação extrapenal para constituir essa posição de garantia, mas depende da assunção fática de uma fonte de perigo ou de deveres de proteção a um bem jurídico determinado. Uma imputação aos delegados, assim, se existente, encontraria previsão no art. 13, §2º, “b”, não cabendo o uso de Regimento Interno que fixa sua atividade delegada, por analogia in 93 malam partem, em substituição à lei, exigência da alínea “a”, do mesmo dispositivo, equivocadamente assinalada. Essa disposição, inclusive, será irrelevante na análise concreta do dever de agir, se não restar demonstrado que sua previsão corresponde ao exercício fático272. 4.4 Síntese Intermediária Não parecem restar dúvidas de que a opção pelo domínio do fato, enquanto forma de imputação da autoria, ao menos nos moldes desenvolvidos por Claus Roxin, não se compatibiliza com o sistema de autoria proclamado na Exposição de Motivos. Mesmo que se identifique a opção brasileira como uma teoria unitária “temperada”, admitindo a separação de autor e partícipe segundo o critério da culpabilidade, o apoio causal- naturalístico, nos crimes comissivos, impede a transposição das categorias do domínio do fato, pensado em consonância com um sistema diferenciador. Tampouco admite a teoria seu alargamento aos crimes omissivos. Ao observar o uso do domínio do fato em casos práticos, que intentavam torná-lo fundamento de autoria – embora não tenha sido concebido, tampouco, para essa substituição, mas apenas como um critério reitor – comprova-se, empiricamente, uma violação tanto principiológica quanto normativa. Os casos expostos, no entanto, poderiam ser solucionados se verificadas posições de garantia, recorrendo à omissão imprópria, amparada pelo Código Penal brasileiro. Essa opção, em verdade, ofereceria respostas mais adequadas a um leque de casos envolvendo a criminalidade de empresa, hoje tratados por meio de uma insustentável responsabilidade top down. Para que seja possível o uso da omissão imprópria, entretanto, deve-se ter em vista seus pressupostos e delimitações conceituais. É por não fazê-lo que, ainda quando utilizada como caminho de imputação, identificaram-se diversas inconsistências. Em primeiro plano, tem-se a impossibilidade de compreender o dever de garantia como equivalente à posição ocupada por determinado sujeito na estrutura empresarial. Essa responsabilidade genérica é vedada pelo próprio art. 13, caput, CP, ao determinar que o resultado de que depende a existência do crime só é imputado a quem lhe deu causa. 272 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e Criminologia). p. 168. 94 A omissão, tida como causa, só adquire relevância penal quando os contornos do dever de garantidor estiverem limitados à possibilidade jurídica de agir; ao que do sujeito era esperado no âmbito da competência individual, juridicamente regulada. Essa possibilidade será aferida no plano concreto, levando-se em conta o modo de organização da empresa e, assim, a capacidade físico-real de evitar o resultado. Nesse cenário, importa verificar a cognoscibilidade, isto é, que conheça o sujeito seus deveres de ação, o contexto em que deveria fazê-lo e seja capaz de prever o resultado típico. O dever de garantia não se confunde com um dever genérico de evitação, mas representa um dever de praticar conduta determinada. É preciso considerar, ainda, que identificar a posição de garantia e o dever de agir é apenas o primeiro passo rumo à punibilidade desses sujeitos. Necessário que se estabeleça, em sequência, o nexo de causalidade e a imputação objetiva, apenas para preencher os pressupostos objetivos do tipo, etapa que também não encerra a responsabilidade, uma vez que remanesce a necessidade de averiguação dos pressupostos subjetivos. Diante das considerações feitas, a imputação por omissão imprópria, se fundada na mera posição ocupada pelo sujeito, assemelha-se a uma responsabilidade objetiva, inadmissível no sistema criminal de um Estado de Direito. O que se deve buscar com a omissão imprópria, nos delitos de empresa, não é um alargamento desmedido, fazendo uso de abstrações e distorcendo teorias estrangeiras para suprir a dificuldade de identificar a responsabilidade individual, quando diante de estruturas complexas, utilizando, para sua construção, conceitos antagônicos, esvaziados de sentido. É, sim, que sejam refletidas pelos operadores de justiça as particularidades da dogmática da omissão, a fim de estabelecer as molduras de sua incidência. No que tange especificamente à criminalidade empresarial, o conhecimento dos agentes de criminalização secundária – seja o julgador, o titular da acusação ou a própria defesa – sobre o funcionamento da estrutura-empresa é imperioso. O fenômeno da delegação de poderes, situação clássica nesses ambientes, representa um problema bastante significativo nessa temática. As esferas de liberdade dos sujeitos, em um contexto de organização de tarefas voltadas a concretizar um objetivo comum, devem ser identificadas, sob pena de optar-se pela imputação de toda a cadeia de gestão, o que também corresponde à inaceitável responsabilidade objetiva. Concretizar os objetivos empresariais requer a desconcentração dos poderes de certos núcleos, delegando-os a outros, para o aumento da produtividade. Há poderes, no entanto, que não podem ser delegados, seja por imposição legal, seja porque descaracterizariam a própria 95 gestão, como o citado exemplo do Conselho Administrativo. Esse é o primeiro ponto que se deve levar em conta, quando a imputação exigir que sejam enfrentadas tais relações, pois implica no tortuoso dilema da responsabilidade pelos fatos praticados por terceiros. Mesmo as atividades que podem ser delegadas, alterando os deveres originários, acarretam para o delegante um dever residual de vigilância, que passará a ser exercido sobre o correto desempenho das funções pelo delegado. A transferência se dará apenas quando esse último assumir, verdadeiramente, o desempenho da atividade, pouco importando o que conste nos Regimentos Internos, se não corresponderem à realidade fática. Eventuais fatos delituosos, praticados no âmbito de atuação deste delegado, só serão atribuíveis também ao delegante se resultarem de falha em seus deveres residuais de fiscalizar, adequadamente, o cumprimento da atividade. Não se trata de um dever absoluto, mas razoável, pautado pelo princípio da confiança, o que demanda também uma análise concreta. Pensar de forma responsável a punibilidade nos crimes empresariais perpassa, assim, a necessidade de corrigir, desde a peça acusatória, os mitos e distorções conceituais aplicados nesse campo. Se parece mais adequado o uso da omissão imprópria, em um número expressivo de situações atinentes à criminalidade de empresa, o que se infere, em linhas gerais, é a necessidade de que o uso da omissão seja fiel aos preceitos dessa modalidade dogmática, sob pena de representar, em vez de um caminho metodológico possível, a expressão de uma ausência de segurança jurídica, manipulada pelo arbítrio. 96 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão sobre a responsabilidade de classes que, em momento anterior, fizeram parte da “cifra dourada” do sistema penal, é mesmo tema mitológico. Demandas de criminalização que atinjam os detentores do poder econômico, expandindo o Direito Penal clássico, são parte de um fenômeno social e criminológico, que se decorre de uma mudança de orientação político-criminal legítima, contribui para a aniquilação do sistema de garantias, quando destituída de amparo dogmático. Embora pareça à ideologia política dominante que a criminalização do outro não surtirá efeitos sobre seu grupo, o novo paradigma do Direito Penal indica o contrário: o arbítrio, o afastamento das bases do Direito Penal mínimo, a subversão às garantias na busca pela punição de inimigos tende a reproduzir-se, sucessivamente, alternando os sujeitos. Uma crença no sistema criminal como instrumento civilizatório, seja qual for o grupo a que se destine, em um processo de vilanização e marcado por discursos de emergência, conduz a respostas penais desastrosas, mas destinadas a suprir o clamor público e a pressão midiática. Tende-se a neutralizar apenas temporariamente o sentimento negativo, presente nesses ramos, por meio do incremento na repressão. É o que se verifica, também, na criminalidade de empresa. No afã de oferecer soluções penais ágeis, desconsidera-se a construção dogmática, importam-se teorias e, acriticamente, a partir disso, constrói-se a responsabilidades dos dirigentes. Tudo sob os ares de legitimidade, de quem busca atingir fins tidos como desejáveis, ainda que por caminhos heterodoxos. A conjuntura empresarial evidencia as fragilidades de uma teoria do delito projetada para uma criminalidade muito diversa. A própria delimitação de autoria em organizações descentralizadas, marcadas pela hierarquia ou pela divisão de tarefas, pelos aportes assimétricos e pela ausência de uma homogeneidade informacional, intensifica a problemática. Cenário propício a gerar, enfim, no plano da dinâmica da responsabilidade, a flexibilização dos pressupostos de imputação, capaz de adequar quaisquer meios à finalidade que se propõe o acusador. A primeira consequência disso, no plano econômico empresarial, é a tentativa de atingir os superiores hierárquicos por uma ideia de domínio, situando-os como detentores do domínio do fato nos delitos cometidos no interior de estruturas por eles controladas. Se superada essa aplicação teórica, uma vez que se pauta no sistema diferenciador de autoria, opção não adotada pelo legislador brasileiro, a teoria dos crimes omissivos impróprios, 97 com delimitação das posições de garantia, apresenta-se como resposta mais técnica à imputação desses sujeitos. Há que se ater, no entanto, às particularidades da dogmática omissiva, análise prévia a sua utilidade prática. Algumas considerações, quanto a isso, devem ser feitas. Em primeiro lugar, para que seja possível falar em omissão imprópria, no Brasil, deve-se reportar ao art. 13, §2º, CP, que restringe as fontes do dever de garantia à imposição legal de deveres de cuidado, proteção e vigilância; ao que de outra forma tenha assumido a responsabilidade por evitar o resultado ou, por fim, ao que com seu comportamento anterior crie o risco de ocorrência desse resultado (ingerência). A referência, no primeiro caso, em virtude da vedação à analogia in malam partem que se impõe no Direito Penal, é a lei em sua concepção formal. As medidas que regulam profissões, ou até mesmo os Regimentos da empresa, não são aptas a gerar, desse modo, um dever de garantia. Quanto à segunda fonte, há referência clara à assunção, que não se constitui por previsão formal, ou pela mera ocupação de um cargo. Para que surja o dever de garantia, nessa circunstância, essa assunção deve ser voluntária, manifestando-se de forma implícita ou tácita, mas verificável no plano fático. Nessa hipótese se enquadram, também, os deveres de vigilância gerados pela delegação de funções ou tarefas. Como última fonte do dever de garantia, pensa-se na ingerência, em que o sujeito cria um risco não permitido pelo descumprimento de normas de cuidado ou de um dever ordinário de diligência, ocasionando, dessa maneira, o risco da criação do resultado. Questão fundamental, aqui, é compreender os modos com que se constituem os riscos não permitidos e a relação de controle do sujeito quanto a sua produção. Nota-se que o requisito inicial para a punibilidade, em todas as hipóteses descritas, é a ocorrência de um resultado, para o qual se exigirá a intervenção do sujeito garantidor no intuito de evitá-lo. Esse dever de ação, representado pela capacidade físico-real de fazê-lo, é composto pela cognoscibilidade e pela capacidade jurídica. Invariavelmente, a averiguação se dará concretamente, levando em conta a estruturação empresarial. A ausência de qualquer dos pressupostos afasta a incidência da norma, pois nos termos previstos no art. 13, caput, CP, a circunstância se transformará em omissão sem relevo penal. Presentes o dever de garantia e a possibilidade de ação, é preciso, ainda, que se estabeleçam a causalidade e a imputação objetiva do resultado, sem o que também se violará o art. 13, caput, que expressamente o exige. Não se ateve o presente estudo às divergências 98 doutrinárias quanto a existir, na omissão, uma causalidade real, quase-causalidade ou causalidade hipotética, considerando-se apenas, inclusive pela exigência normativa clara, que se verifique um nexo causal entre a conduta omitida e o resultado. Isso se dará por intermédio de um preenchimento material pelas balizas da teoria da evitabilidade ou da teoria da diminuição do risco, apresentando essa última maior acerto. Importante considerar que as duas teorias supracitadas não se prestam a substituir a causalidade, mas a fornecer referências para sua definição, reprimindo uma punibilidade alargada e descriteriosa. Foram demonstradas, todavia, situações em que os critérios atualmente aplicados não são suficientes ao oferecimento de respostas, conduzindo a uma “irresponsabilidade organizada” em contexto empresarial. É o caso das omissões sucessivas e simultâneas, para as quais, embora se concebam doutrinariamente algumas alternativas, não há resposta uníssona, harmônica, salientando a urgência de que a temática ocupe as discussões da doutrina e jurisprudência nacional. Conforme se destacou no início deste trabalho, o avanço teórico do Direito Penal exige a aceitação de seus próprios limites, para que não funcione como mero instrumento à realização de interesses políticos e populares, ao preço do retrocesso. As categorias dogmáticas não exprimem abstrações, devaneios utópicos, embora assim as visualize o furor persecutório da relativização. Correspondem, ao contrário, à afirmação primeira das garantias individuais, em matéria criminal. Dessa forma, só é possível cogitar eventual responsabilidade aos dirigentes de empresa na condição de garantidores, com o uso da teoria da omissão imprópria, se os standards expostos ao longo do presente estudo indiquem, no caso concreto, compatibilidade entre as regras estabelecidas e a situação fática em que se situava o agente. Delineiem, bem assim, sua possibilidade concreta de agir, com a qual, de outro modo, não se teria produzido o resultado. Abandonada essa premissa, conceber-se-á o sistema, independente da ortodoxia dominante, como o “zumbi”, apresentado na epígrafe do presente estudo: embora aumente de proporções, como um “fantasma folclórico” que cresce e se avoluma, à aproximação se esfuma em nada. 99 REFERÊNCIAS ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do Domínio do Fato. São Paulo: Saraiva, 2014. ASSIS, Augusto. A responsabilidade penal omissiva dos dirigentes de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Org.). 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Inquérito Policial autos nº 5016060-38.2015.404.7000 Disponível em: http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a- instancia/parana/denuncias-do-mpf/documentos/DenunciaQGIesa48.pdf