UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA ANÁLISE ARQUEGENEALÓGICA DA CASA DE SAÚDE SANTA TERESA: ABERTURA, MANUTENÇÃO E FECHAMENTO DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO LEDA MENDES PINHEIRO GIMBO NATAL 2017 2 Leda Mendes Pinheiro Gimbo ANÁLISE ARQUEGENEALÓGICA DA CASA DE SAÚDE SANTA TERESA: ABERTURA, MANUTENÇÃO E FECHAMENTO DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO Dissertação elaborada sob orientação do Prof. Dr. Jáder Ferreira Leite e co-orientação da Profa. Dra. Magda Bezerra Diniz Dimenstein, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Natal 2017 3 4 “Estou de novo aqui, isto é – Por que não dizer? Dói. Será por isso que venho? – Estou no hospício, deus. E hospício é esse branco sem fim, onde nos arrancam o coração a cada instante, trazem-no de volta, e o recebemos: trêmulo, exangue – e sempre outro. Hospício são flores frias que se colam em nossas cabeças perdidas em escadarias de mármore antigo, subitamente futuro – como o que não se pode ainda compreender. São mãos longas levando- nos não sei onde – paradas bruscas, corpos sacudidos se elevando incomensuráveis: Hospício é não se sabe o quê, por que Hospício é deus”. - Maura Lopes Cançado, 1979. 5 Em memória de todas as pessoas que viveram e morreram entre os muros da Casa de Saúde Santa Teresa. 6 Agradecimentos Precisei abrir mão de uma série de certezas e lugares seguros para cursar o mestrado que tanto almejei. Foi uma jornada que me permitiu encontrar e reencontrar pessoas importantes, que me fez ser atravessada por infinitos afetos, que me possibilitou para além do crescimento acadêmico, a abertura de um novo/outro caminho. Gostaria de agradecer a Diana, Lis, Rafael e Águida Maria. Meus exemplos e motivo para acreditar na vida. Grata também pela chegada de José. Amo vocês. Minha gratidão (admiração e carinho) a Jáder Leite e Magda Dimenstein, por serem minha grande referência, pelo rigor e alegria sempre. Agradeço a Keyla Mafalda e a Isabel Keppler, companheiras. Vocês me abriram as portas, os dias vividos em Natal são repletos de memória e amor por vocês duas. Aos colegas de turma, especialmente aos que se tornaram meus amigos: Fábio, Joeder, Luana, Guilherme e Raul. À amiga e companheira de climb, Janine. Por que escalar é viver. Ao pessoal da base de pesquisa, às poderosas de Foucault, companheiras de seminários, orientações e trabalho: Ana Helena, Maria e Martha. À Fernando Gimbo, contingência e desvio de rota. Obrigada por me ensinar tanto. Agradeço a todo o corpo docente e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Ao Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, pela bolsa que fomentou meu trabalho. 7 Sumário Resumo ................................................................................................................................................... 9 Abstract ................................................................................................................................................. 10 Introdução Sobre o hospital psiquiátrico do Cariri: apresentando o campo ........................................................ 11 Capítulo1 Contextualizando o método: sobre arqueologia e genealogia ou Como construir uma análise da existência da Casa de Saúde Santa Teresa ......................................................................... 24 Capítulo 2 Psiquiatria no Cariri cearense ou Dos discursos e não discursos que fazem nascer um hospital ................................................................................................................................................. 41 Curar a loucura, ou retirá-la do meio do caminho dos avanços sociais ..................................... 42 Genealogia Cratense: que cidade é essa? ...................................................................................... 45 Biopoder: governo do corpo e das populações .............................................................................. 53 Poder sobre o corpo dos pobres ..................................................................................................... 60 Produções não discursivas: contexto cultural, econômico e político .......................................... 66 A ‘Princesa do Cariri’ precisa de um hospital psiquiátrico ........................................................ 69 Do modelo asilar ao modelo assistencialista: a ampliação dos hospitais psiquiátricos no Brasil ........................................................................................................................................................... 73 Capítulo 3 O funcionamento nos anos de ouro ou Do que nasce com um fim anunciado ................ 80 A Casa do Noviciado ....................................................................................................................... 81 As facilidades do modelo médico privatista e o movimento de Reforma Psiquiátrica .............. 89 As décadas de 1970 a 1990: anos de ouro da Casa de Saúde Santa Teresa................................ 93 Os habitantes da Casa de Saúde: corpos heterotópicos e segregação ....................................... 102 A rotina dos pavilhões: o cárcere ocioso ..................................................................................... 111 Capítulo 4 A força do direito deve superar o direito da força ou Por que é preciso fechar o hospital ............................................................................................................................................................. 117 O direito da força .......................................................................................................................... 118 A força do direito .......................................................................................................................... 122 Por que é preciso fechar o hospital .............................................................................................. 137 Depois do fim ...................................................................................................................................... 149 8 Os últimos dias e as últimas pessoas ............................................................................................ 150 Referências Bibliográficas .................................................................................................................. 161 Periódicos e Jornais ............................................................................................................................ 168 9 Resumo A história da loucura no Brasil é indissociável da história dos hospitais psiquiátricos, uma vez que a organização das cidades e sua higiene, pautadas nos moldes franceses do século XIX dependiam dessas instituições para a manutenção da ordem social. As casas de internamento tinham o princípio de instituir organização à sociedade capitalista e burguesa nascente, dando abrigo a loucos, mendigos, prostitutas e todos aqueles que pusessem em risco o projeto de desenvolvimento em curso, atendendo também ao ideal caritativo, um dos pilares da sociedade da época. A região do Cariri cearense contou com a existência de um hospital psiquiátrico, a Casa de Saúde Santa Teresa, que funcionou desde a década de 1970 até o ano de 2016. Sua inauguração não foi uma aleatoriedade, mas fruto de formações discursivas específicas e relações de saber e poder que constituíram o alicerce para que o hospital abrisse suas portas na região, bem como para se manter em funcionamento até o ano de 2016. O objetivo desse trabalho é construir uma análise arquegenealógica da história da Casa de Saúde Santa Teresa. Para tanto propõe-se a trabalhar com análise de jornais, revistas e fotografias ilustrativas referentes à instituição, os quais possibilitam a preservação da memória de uma época e povo, mas especialmente o reconhecimento das forças de sustentação dessa instituição. Foram consultadas além de duas publicações jornalísticas importantes do Cariri cearense (jornal A Ação e revista Itaytera – de 1963 a 1990), os jornais O povo, Diário do Nordeste e Jornal do Cariri (1990 a 2016). As imagens foram divididas em três blocos de tempo, a saber: 1900 a 1970, quando da abertura do hospital; 1970-1990, anos de abastado funcionamento da Casa de Saúde e 1990-2016, período de tensões e fechamento do hospital. Nessas mesmas fontes documentais, buscou-se dados para a contextualização econômica, política e cultural do município do Crato, no intuito de articular a história e os discursos acerca do hospital com as produções políticas e culturais. O resultado consiste numa análise arquegenealógica da história de um hospital psiquiátrico localizado no sul do Ceará, contada através de notícias de jornais, revistas e fotografias ilustrativas, apontando as relações de saber e poder da lógica psiquiátrica manicomial como mecanismo de exclusão, bem como possibilitando análise da desconstrução do modelo hospitalocêntrico no Brasil enquanto resultado do movimento de Reforma Psiquiátrica. Palavras-chave: Hospital Psiquiátrico; Arqueologia; Genealogia; Saúde Mental; Reforma Psiquiátrica. 10 Abstract The history of madness in Brazil is indissociable from the history of psychiatric hospitals, since the organization of cities and their hygiene, based on the French mold of the nineteenth century, depended on these institutions for the maintenance of social order. The internment houses had the principle of instituting an organization to the nascent capitalist and bourgeois society, giving shelter to madmen, beggars, prostitutes and all those who put at risk the ongoing development project, also attending to the charitable ideal, one of the pillars of society of the time. The Cariri region of Ceará counted on the existence of a psychiatric hospital, the Casa de Saúde Santa Teresa, which operated from the 1970s until the year 2016. Its inauguration was not a randomness, but the fruit of specific discursive formations and relations of knowledge and power that constituted the foundation for the hospital to open its doors in the region, and to stay in operation until the year 2016. The objective of this work is to construct an archegenealogical analysis of the history of the Casa de Saúde Santa Teresa. In order to do so, it is proposed to work with analysis of newspapers, magazines and photographs illustrative of the institution, which make it possible to preserve the memory of a time and people, but especially the recognition of the sustaining forces of this institution. In addition to two important journalistic publications of Cariri Cearense (A Ação newspaper and Itaytera magazine - from 1963 to 1990), the newspapers O povo, Diário do Nordeste and Jornal do Cariri (1990 to 2016) were consulted. The images were divided into three blocks of time, namely: 1900 to 1970, when the hospital opened; 1970-1990, years of well-functioning Health House and 1990-2016, period of tensions and closure of the hospital. In these same documentary sources, data were sought for the economic, political and cultural contextualization of the municipality of Crato, in order to articulate the history and discourses about the hospital with the political and cultural productions. The result is an archegeneal analysis of the history of a psychiatric hospital located in the south of Ceará, told through news articles, magazines and illustrative photographs, pointing out the knowledge and power relations of psychiatric asylum logic as a mechanism of exclusion, as well as allowing analysis Of the deconstruction of the hospital-centered model in Brazil as a result of the Psychiatric Reform movement. Keywords: Psychiatric Hospital; Archeology; Genealogy; Mental health; Psychosocial Attention. 11 Sobre o hospital psiquiátrico do Cariri: apresentando o campo “É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos. A evidencia oral (a história contada, sua imagem e sons), transformando os ‘objetos’ de estudo em ‘sujeitos’, contribui para uma história que não só é mais rica, mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira” (Thompson, 1998, p.137). A proposta desse trabalho é analisar a existência de um hospital psiquiátrico localizado ao sul do Ceará e seu recente fechamento, usando como método a arqueologia e genealogia constituídas numa perspectiva foucaultiana. Pretende-se compreender os discursos e práticas, além de elementos não discursivos como o contexto sociocultural, econômico e político da região que possibilitaram as condições históricas de consolidação para a abertura do hospital, ainda na década de 1970. Objetiva-se também compreender os mecanismos de manutenção da lógica manicomial e hospitalocêntrica como forma de produção de cuidado aos sujeitos em sofrimento psíquico e que lugar eles ocupavam/ocupam, reconhecendo os mecanismos que mantiveram o hospital aberto por 45 anos. Por fim, analisar os elementos que tensionaram seu fechamento. Por tratar-se de um trabalho de cunho arqueológico e genealógico é possível analisar a psiquiatria enquanto saber/poder sobre o qual a verdade sobre o louco e a loucura é produzida e mantida. Nesses termos, é possível pensar que o movimento de Reforma Psiquiátrica atua como destituidor do poder totalitário da psiquiatria sobre o corpo e vida de determinados grupos humanos, bem como da prática de interna-los. No entanto, percebe-se também as deficiências relacionadas à inclusão social dos loucos e organização de serviços que substituam o hospital atuando em rede, integralizando o cuidado em Saúde Mental (Brasil, 2010). Pode-se problematizar se tais deficiências impossibilitam a aniquilação total da lógica manicomial, uma vez que esse conjunto de discursos e práticas está alicerçado em uma 12 matéria mais forte que as instalações de concreto, anterior às paredes dos manicômios e pode sofrer transformações, atualizações e ser replicado em outros espaços. O fechamento dos hospitais psiquiátricos ou o movimento de desospitalização não significa que a loucura seja ou se torne desinstitucionalizada1 e socialmente acolhida. O lugar social do louco muda conforme se deslocam os mecanismos do poder psiquiátrico. Assim, o fechamento progressivo de hospitais, a redução de leitos e de pessoas em condição de internamento impulsiona e possibilita a transformação dos modelos de produção de cuidado em Saúde Mental e também amplia a necessidade de criação de novas formas de lidar com essas pessoas. Os internamentos que duravam meses, anos e muitas vezes se estendiam por toda a vida passam a ser regulados e ter tempo máximo estabelecido (em virtude da regulação de Autorizações de Internamento Hospitalar – AIHs pela Lei 10.216/2001). Dessa forma, o lugar social do louco, antes restrito ao espaço do manicômio, se desloca para outros espaços da cidade. A exclusão compulsória que ampliava a invisibilidade social dessas pessoas é reduzida com o fechamento dos hospitais e possibilita a construção e invenção novas formas inclusivas de produção de cuidado. Desospitalizar e desmantelar a lógica hospitalocêntrica possibilita a inclusão social das pessoas que antes seriam sumariamente internadas, mas não significa a redução do poder médico psiquiátrico. O estabelecimento da psiquiatria enquanto saber/poder médico se deu e operou, inicialmente, sobre os corpos dos que eram considerados loucos, tomando-os como seus objetos de intervenção e cura. No entanto, é preciso pensar que ao longo dos anos os manuais de classificação de doenças cresceram e as categorias de diagnósticos psicopatológicos se multiplicaram. O fechamento dos hospitais acontece num momento em 1 O movimento de Reforma Psiquiátrica brasileiro é influenciado pelos movimentos da Europa e Estados Unidos, entre esses movimentos reformistas, o italiano é grande influenciador do movimento de reforma no Brasil. Segundo Rotelli, Leonardis e Mauri (1985), o desmantelamento dos hospitais psiquiátricos, os programas de altas e redução gradual de leitos constitui parte do movimento de desinstitucionalização, no entanto, os autores propõem um movimento mais amplo de inclusão ao nível das relações interpessoais e cotidiano nas cidades, que não mantenha as pessoas em sofrimento psíquico ligadas, compulsoriamente, às instituições e dispositivos psiquiátricos. 13 que o poder psiquiátrico (Foucault, 2006) assume outras formas de controle, e a clínica psiquiátrica também sai dos contextos hospitalares e se estende à população geral. O corpo do louco deixa de ser o único objeto e o escopo de atuação da psiquiatria se espalha a outras esferas do corpus social. As representações sobre a loucura sofreram transformações ao longo dos séculos. Foucault (2005) descreve o que aconteceu aos loucos, sobretudo na Europa, na idade clássica, antes da apropriação da loucura pela medicina2 e institucionalização no hospital. As maneiras de tratar e as produções de sentido acerca da figura do louco têm sofrido variações. No entanto, todas elas constituíam políticas de exclusão e segregação social, desde a nau dos loucos às casas de internamento. As casas de internamento tinham o princípio de instituir ordem e organização à sociedade capitalista e burguesa nascente, dando abrigo a loucos, mendigos, prostitutas e todas as demais categorias que pusessem em risco a ordem social, atendendo também ao ideal caritativo, um dos pilares da sociedade da época. As políticas de segregação eram aplicadas a outros males, como a lepra, por exemplo. Os leprosários serviam de abrigo aos doentes para que não infectassem outras pessoas e, sobretudo, para que não gerassem ônus às cidades em desenvolvimento. Logo outras pessoas passaram a dividir espaço com os leprosos: desempregados, prostitutas, pessoas com doenças venéreas, bêbados e loucos. Quando a medicina cura a lepra e as doenças venéreas, quando os corpos dos vagabundos e prostitutas são absorvidos pelo mercado de trabalho, resta o corpo do louco ao espaço de exclusão. A percepção compartilhada socialmente acerca da loucura sofreu diversas modificações com o passar dos séculos, inúmeras práticas e saberes também foram consolidados desde a psiquiatria de Pinel até os dias de hoje. O hospital psiquiátrico como conhecemos atualmente se consolida, segundo Foucault (1979), no momento em que a 2 De acordo com Foucault (2006), a psiquiatria se inscreve enquanto saber médico usando o poder e a força para controlar seu objeto: o louco. Assim a psiquiatria se apropria do saber e poder sobre o louco e seu corpo, bem como do espaço que se cria (o asilo) para abrigar e curar a loucura. 14 loucura é percebida como adoecimento, passível de tratamento, território médico e terapêutico. No entanto, o mesmo espaço físico que acolheu práticas medicamentosas e curativas já se erguera antes como símbolo de isolamento e segregação. Conforme afirma o intelectual francês (2005), o que permanece, anos depois em que se constroem e desconstroem os espaços de correção, segregação e cura para a loucura, é o “círculo mágico” que se traça em torno da figura do louco, como aquele sempre alienado, alienígena em seu próprio território. Foucault (2005) afirma que a loucura herda não só o espaço de segregação, mas toda a simbologia e sentidos produzidos acerca desse fenômeno do qual a medicina demorou a se apropriar. Desde a intervenção de Pinel até os primeiros psicotrópicos, um longo período de tempo se deu, a distância no tempo e nas práticas configura a diferença entre a apropriação das doenças gerais e da loucura pela classe médica. É dessa forma que o hospital psiquiátrico se distancia do hospital geral em suas funções e na maneira como é socialmente percebido. No Brasil, a história da loucura é também a história do escárnio e exclusão da figura do louco, mesmo antes da instalação dos hospitais psiquiátricos nesse país. Antes de adotar hegemonicamente a hospitalização enquanto medida sobre os corpos dessas pessoas, os loucos eram direcionados às cadeias públicas ou Santas Casas, no intento de que não causassem problemas ou incômodo às pessoas e ao funcionamento ótimo das cidades em desenvolvimento. A organização das cidades e sua higiene, pautadas nos moldes franceses, não podia prescindir o hospital psiquiátrico e o internamento como forma de tratar e/ou não permitir que a controversa figura do louco causasse entraves ao progresso e ordem social. Até a década de 1980, o Brasil adota hegemonicamente a hospitalização como método, numa prática massiva e dolorosa de segregação, exclusão e morte disfarçadas de cuidado3 3 De acordo com Foucault (2010, p.266): “O que foi até então um estabelecimento de internação tornou-se um hospital psiquiátrico, um organismo de tratamento (...). Desde então, os distúrbios mentais tornaram-se o objeto da medicina e uma categoria social chamada de psiquiatra surgiu(...). Além disso, se essa medicalização 15 médico. O hospital psiquiátrico, não apenas nesse país, mas muito fortemente amparado em na médico-curativa ocidental, tomou enorme distância do que se pretendia com as hospitalizações para todas as outras sortes de doenças e problemas físicos. A terapêutica para a loucura é para Foucault (2006, p.11) “a arte de subjugar e domar” o louco, de maneira a circunscrevê-lo numa relação de dependência com a figura do médico, em dois tipos de intervenção: moral e medicamentosa, com o intuito de curar. Diga-se bem: de submeter a força da loucura (dissonante do que deseja o imperativo social) a um domínio localizado – o asilo. Embora desde a década de 1970 a internação massiva de pessoas venha sendo criticada e combatida no Brasil, é a partir de 1990 que os efeitos da Reforma Psiquiátrica começam a ser vistos e sentidos com mais força nos dispositivos e na efetivação de novos espaços de cuidado (Amarante, 2007). Tendo as experiências europeias como marco e referência, o Brasil constrói sua Reforma Psiquiátrica pautando-se na organização do Sistema Único de Saúde – SUS - e de sua rede de instituições e dispositivos que visam produzir cuidado nos territórios onde vivem os sujeitos. O SUS se alicerça na ideia de saúde como direito de todos e dever do Estado, em uma visão holística do homem que não permite fragmentá-lo, de maneira que não se permita separar o conceito de saúde do conceito de saúde mental (Amarante, 2007). No ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal (1988) especificamente em seus artigos 196, 197 e 198, afirma a saúde como um direito que deve ser integral, equitativo e igualmente mantido para todos os cidadãos ou pessoas em território brasileiro, bem como que o custeio desse direito deve ser financiado pelo orçamento da Previdência Social, pela União, Estados e Municípios. A Reforma Psiquiátrica no Brasil teve início no momento culminante de sucateamento da atenção à saúde da população geral no país que, desde os primórdios, esteve delegada às produziu-se foi por razões essencialmente econômicas e sociais: foi assim que o louco foi identificado ao doente mental e que uma entidade chamada de doença mental foi descoberta e desenvolvida”. 16 práticas populares de cura (curandeiras, rezadeiras, por exemplo) e às Santas Casas e Casas de Misericórdia. A prestação privada de serviços relacionados à saúde sempre foi livre no Brasil, assim a pequena parcela da população que podia (ou pode) pagar custos de assistência médica nunca ficou desassistida. Uma outra e também pequena parcela da população que exercia ofícios ou profissões reconhecidas pelo Estado (marítimos, ferroviários) tinha à sua disposição serviços médicos de melhor qualidade, amparados na evolução das políticas previdenciárias do país (Finkelman, 2002). No entanto, a grande maioria da população ainda estava submetida a um modelo precário, beneficente, caritativo e assistencialista de saúde. O movimento reformista em saúde não acontece isoladamente nesse país, mas no contexto de um panorama peculiar na política e de investimentos a fundo perdido nos serviços particulares privados que se propunham a, gerando um custo astronômico para o governo brasileiro, promover atenção à saúde da população uma vez que não haviam dispositivos públicos ou acessíveis a todos os brasileiros. Não é coincidência que o hospital psiquiátrico estivesse numa linha paralela, no entanto sem grandes interlocuções com os hospitais gerais. Apesar da existência de hospitais públicos e, a partir da década de 1970 se multiplicarem as instituições privadas também financiadas com recursos da união, os hospitais gerais e outros dispositivos não psiquiátricos foram mais facilmente modificados quando da implantação do SUS nesse país, alinhados e conforme prescrito na Constituição Federal (1988), organizados conforme nível de complexidade e demandas dos territórios e de seus habitantes. O mesmo não acontece com o hospital psiquiátrico, terceiro nível de complexidade, estrutura hospitalar, que teve como grande proposta para sua redução e desmantelamento a criação dos Centros de Atenção Psicossociais – CAPS amparados por outros programas e políticas de Saúde Mental4. 4 A Rede de Atenção Psicossocial – RAPS, se propõe a atuar conforme os princípios do SUS, isso significa a produção de cuidado em níveis articulados por complexidade, conforme descreve a portaria 3.088 . O CAPS consiste num serviço de média complexidade em saúde, devendo funcionar articulado com a atenção primária (equipes de atenção básica, centros de convivência) e também com os serviços de alta complexidade (atenção de 17 De acordo com Cohn (1994), um sistema de saúde deve estruturar-se em partes articuladas, agrupando as instituições por suas esferas de atendimento, classificadas em níveis (primário, secundário e terciário) e locais (domicílios, centros de saúde, hospitais especializados) de atendimento. Assim, o hospital psiquiátrico constitui o terceiro nível de complexidade e se configura (ou deveria) como um espaço especializado de atenção e cuidado, prestando a assistência que exige instalações e equipamentos mais específicos. Nesses espaços os procedimentos são mais onerosos aos sujeitos, incluindo o procedimento de internação, bem como implicam em custos mais altos ao SUS, devendo ser acessados em circunstâncias de emergência e crise. Dessa forma, os dispositivos criados e articulados em rede pelo SUS assumem, com incontestável importância, a responsabilidade pelo mapeamento, acompanhamento e cuidado em Saúde Mental em nível primário e secundário nas comunidades, de forma a evitar novos internamentos e reinternamentos em hospitais psiquiátricos. Entre os anos de 1941 e 1981 o número de hospitais psiquiátricos disparou no país, indo de 62 para 430. É importante sublinhar o aumento no número de hospitais psiquiátricos privados nesse mesmo período, chegando a uma proporção de 4,9 hospitais privados para cada hospital público. A década de 1990 dá início à paulatina redução dessas instituições e fechamentos dos leitos em hospitais psiquiátricos. É relevante destacar que no ano de 1997 haviam 256 hospitais psiquiátricos no Brasil sendo que 211 desses hospitais eram privados (BRASIL, 2011). No entanto, tal tarefa não se conclui facilmente e percebe-se o que para Lancetti e Amarante (2006) se configura como “complexidade invertida” em Saúde Mental, isto é: enquanto no restante das práticas em saúde o internamento se apresenta como último dispositivo a ser acessado, tendo em vista a não possibilidade de cuidado no território ou em urgência e emergência, residências terapêuticas e hospitais), possibilitando atenção integral à saúde (BRASIL, 2011). 18 outros serviços da rede, no tocante à Saúde Mental, o ambiente hospitalar é, muitas vezes, percebido como porta de entrada, espaço de segregação e invólucro para os que não funcionam de maneira normal, para aqueles cuja subjetividade não se constrói obedecendo as regras de normalização. A centralização da assistência psiquiátrica no hospital denuncia a existência de um sistema de saúde hierárquico e fragmentado, que urgia ser desconstruído e alinhado com as propostas de atendimento equitativo e integral. No dia 6 de abril de 2001 o então Presidente da República decreta a lei de Nº 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas “portadoras de transtornos mentais” e redireciona o modelo de assistência hospitalar em Saúde Mental. Tal fato constitui-se como norteador para as práticas hospitalares, regulamentando as formas de internamento, assegurando às pessoas o acesso à melhor forma de tratamento disponível e deslocando o foco da atenção em Saúde Mental e do tratamento do hospital psiquiátrico para o território, para mais perto do cotidiano dos sujeitos (Brasil, 2001). A Lei 10.2016, sancionada em 2001 define a redução gradual de leitos, mas somente em 2004, com a aprovação da Portaria 52 pelo Ministério da Saúde fica indicada a necessidade de estabelecer critérios técnicos para a redução progressiva de leitos, especialmente em hospitais de maior porte. Um desses critérios foi o estabelecimento de redirecionamento de recursos financeiros para a rede extra-hospitalar de Saúde Mental, estabelecendo menor remuneração para os grandes hospitais. Dessa forma, os recursos passaram a ser investidos em políticas extra-hospitalares que facilitassem o cuidado nos territórios, como por exemplo na atenção secundária (com a ampliação e instalação de Centros de Atenção Psicossociais), em programas de reinserção e reabilitação (Programa de Volta pra Casa, Hospitais-Dia, Centros de Convivência) e unidades de atendimento emergencial (Serviço de Urgência e Emergência Psiquiátrica em Pronto-Socorro Geral). 19 No ano de 2011 haviam 189 hospitais psiquiátricos no país, 75% desses hospitais eram de caráter privado, mas atendiam a usuários do SUS. A região Sudeste concentrava mais da metade dos hospitais (104 unidades, das quais 80 eram privadas), a região Norte apresentava o menor número de hospitais (4 unidades, das quais 1 era privada). No Nordeste haviam 42 hospitais, dos quais 26 eram privados (BRASIL, 2011). Fica perceptível que a redução gradual e política de direcionamento de recursos para os serviços extra-hospitalares apresentou grandes efeitos, mas fica perceptível também a dificuldade de desmantelamento da rede privada de hospitais psiquiátricos. Em 2002 haviam no país 51.393 leitos psiquiátricos, em 2011 o Brasil ainda possuía 28.228 leitos custeados pelo SUS e 94,1% desses leitos estavam ocupados. De acordo com o Relatório de Gestão que descreve a implementação das Redes de Atenção Psicossocial - RAPS no Brasil entre os anos de 2011 – 2015, atualmente existem 438 regiões de saúde no país, o mesmo documento aponta que até 2015 não havia nenhuma Portaria deliberadora para a RAPS no estado do Ceará, bem como nenhum Plano de Ação para a implementação das RAPS no Estado. No período de 2011 a 2015 houve uma expansão de 708 CAPS (374 CAPS I, 70 CAPS II, 37 CAPS III, 88 CAPS AD III, 82 CAPS i, 57 CAPS ad) no Brasil. No Ceará são 131 CAPS, em 93 municípios (65 CAPS I, 30 CAPS II, 3 CAPS III, 3 CAPS AD III, 10 CAPS i, 23 CAPS ad), embora o Estado faça parte da região com maior quantitativo de CAPS do país, isso não significa que os dispositivos estejam articulados em rede e operando da maneira mais eficiente possível (BRASIL, 2016). No Ceará, a situação não foi diferente do que aconteceu no resto do país. A hospitalização teve início no final do século XIX, com a inauguração do Asilo de Alienados São Vicente de Paulo. Até esse marco, os doentes eram amontoados nos porões da Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza. A interiorização da medicina no Brasil data da década de 1920, os serviços de atenção a alienados demoraram um tanto mais ser instalados e, enquanto isso, 20 os loucos conviviam com a rotina urbana e rural ou sofriam escárnio por sua condição (Menezes, 2013). No interior do estado do Ceará, o município do Crato gozava de privilégios geográficos, por se localizar na fronteira com o Estados do Pernambuco, da Paraíba e Piauí. Além das condições geográficas, pode-se apontar para a existência de um grande fluxo de pessoas na região por causa do turismo religioso e efervescência de intelectuais e estudiosos no início do século XX, o que proporcionou ao munícipio o desenvolvimento de escolas, de faculdades e do comércio. A chamada Princesa do Cariri possuía filhos ilustres e médicos que voltavam após estudar nas capitais para exercer seu ofício na região. De acordo com Menezes (2013), esses aspectos históricos possibilitaram, na década de 1970, quando se multiplicavam no país as instituições médicas privadas, financiadas com recursos do Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, a instalação de um hospital infantil, um hospital geral e um hospital psiquiátrico no município do Crato, inaugurados e direcionados pelos abastados filhos da cidade que possuíam diplomas médicos e condições financeiras suficientes para dar início a esses empreendimentos. Antes da instalação de um hospital psiquiátrico no Cariri cearense, ou seja, até a década de 1970, no município do Crato havia, segundo Oliveira (2003), convivência entre os loucos e os ditos cidadãos “normais” da cidade. Os loucos que vagavam pelas ruas e, não raro, eram tidos como personagens excêntricos no cotidiano, causando um misto de espanto e admiração, de encanto e distanciamento. Reconhecidos em suas alucinações e delírios, hábitos e roupas extravagantes, essas figuras ocupavam o espaço da cidade e, embora fossem por vezes hostilizados ou conduzidos à cadeia pública, ainda não lhes cabia um destino asilar. A Casa de Saúde Santa Teresa foi fundada em 04 de fevereiro de 1970 e inaugurada em 21 de junho do mesmo ano, tendo seus atendimentos credenciados ao Sistema de Saúde Pública existente na época, ou seja, financiado com recursos públicos, o hospital dispunha 21 inicialmente de cinquenta leitos para internamento psiquiátrico. Funcionando em regime de urgência e emergência em psiquiatria, a Casa de Saúde passou a atender aos estados vizinhos e à demanda de toda a região sul do Ceará e se manteve em funcionamento até o início do ano de 2016, quando em virtude do movimento de Reforma Psiquiátrica e paulatino sucateamento ao longo dos anos, fechou suas portas. O modelo manicomial, hospitalocêntrico de tratamento à loucura, que não é ou foi o único, mas certamente o de maior alcance e poder, é objeto de análise nesse trabalho que se propõe a descrever e analisar a abertura, manutenção e fechamento de um hospital psiquiátrico, buscando uma reflexão crítica sobre esse episódio da psiquiatria no país. Em consonância com o objetivo geral de construir uma análise arqueológica e genealógica da Casa de Saúde Santa Teresa, esse trabalho pretende apontar o panorama histórico, econômico, político e cultural que respaldou a criação de um hospital psiquiátrico no interior do Nordeste, bem como as circunstâncias de abertura desse hospital na cidade do Crato. Pretende-se também compreender quais são os discursos e sentidos produzidos acerca do hospital psiquiátrico e seus habitantes, que discursos e campos de força mantiveram o hospital em funcionamento e que discursos e fatores sociais tensionaram o fechamento do hospital. A justificativa pessoal para realização desse trabalho nasce da minha experiência de trabalho e convivência com as pessoas da/na Casa de Saúde Santa Teresa. Também encontro elementos semelhantes entre minha história e a história dos que saíram do Cariri para estudar e voltaram, anos depois, para trabalhar em suas cidades de origem. Cursei a graduação em Psicologia na Universidade Federal da Paraíba, uma vez não haver nenhuma das Instituições de Ensino Superior nas proximidades do Crato que dispusesse do curso, que era o que eu queria. 22 Alguns anos depois, voltei ao Ceará e consegui dois empregos, um no Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, outro na Casa de Saúde Santa Teresa. Logo, pelo menos 40 horas de minhas semanas estavam preenchidas pelo trabalho nessas duas instituições de Saúde Mental: uma que já estava fadada ao fim, alvo de críticas consistentes e amplamente conhecidas, mas que ainda era referência em toda a região; e outra que pretendia ser fortalecida para substituir a primeira. O trabalho não podia acontecer sem militância, não havia como estar todos os dias naqueles espaços, conviver cotidianamente com as pessoas (famílias, internos, outros trabalhadores) sem questionar, sofrer e tensionar mudanças. Ampliei minhas leituras e horizontes, senti fracassar (diante das crises e reinternamentos) o modelo de clínica que aprendi na academia e procurei linhas de fuga e transversalidades que pudessem me amparar no trabalho. No ano de 2007 estive em Bauru para o encontro que celebrava 20 anos de “Luta por uma Sociedade sem Manicômios”, voltei mobilizada e motivada, mas também ciente de que o manicômio não estava restrito ao espaço e paredes de um hospital psiquiátrico. Em 2009 assumi a coordenação da Casa de Saúde Santa Teresa e fui esmagada pelo pela dureza do cotidiano no hospital e, ao mesmo tempo, percebi o quanto uma instituição nesses moldes ainda parecia, para muitas pessoas e famílias, a única forma possível de cuidar. As relações de poder e segregação tinham em sua base pessoas/sujeitos e suas intensas histórias. Era por elas que eu me motivava a entrar nos pavilhões e reiniciar todos os dias o labor cisifista. Por alguns anos, como no mito de Císifo, era preciso recomeçar dia após dia o duro trabalho, tendo certeza da obsolescência e violência manicomial, mas pensando nas pessoas que ainda eram internadas ali. Nesse trabalho não pretendo repetir as críticas já feitas e amplamente confirmadas sobre os hospitais psiquiátricos, nem anunciar seu fim. Pretendo descrever, não buscando um 23 começo ou as representações sobre, mas os atravessamentos da história da Casa de Saúde Santa Teresa, criando para ela um arquivo, um diagrama de sua história. Não pretendo me abster da experiência de vida que tive lá, ou das memórias, pessoas, afetos e encontros, pois é desse lugar que consigo escrever e falar. No texto A linguagem ao infinito (2009a, p.42), Foucault afirma (e eu concordo) que é preciso: Escrever para não morrer, como dizia Blanchot, ou talvez mesmo falar para não morrer, é uma tarefa sem dúvida tão antiga quanto a fala. As mais mortais decisões, inevitavelmente, ficam também suspensas no tempo de uma narrativa. O discurso, como se sabe, tem o poder de deter a flecha já lançada em um recuo de tempo que é seu espaço próprio. Contar a história da Casa de Saúde Santa Teresa a partir dos discursos que solicitaram sua fundação é também contar a história das políticas de Saúde Mental nesse país, desde a consolidação da instituição, passando pelos câmbios e variações na produção de cuidado e tratamento à loucura até chegar ao seu esmagamento, fechamento e, ainda assim, à persistência da lógica segregante que sempre operou nos dispositivos psiquiátricos. Por isso arqueologia, por isso genealogia, por isso um arquivo onde os discursos e os componentes econômicos, políticos e culturais dos saberes e poderes possam ser analisados e descritos. Por isso usar fontes documentais históricas, por isso um diagrama que permita transitar pela história da Casa de Saúde Santa Teresa, seus habitantes e seu significado enquanto etapa da história da psiquiatria desse país. 24 Capítulo 1 Contextualizando o método: sobre arqueologia e genealogia ou Como construir uma análise da existência da Casa de Saúde Santa Teresa Foto 1: Jornal A Ação, 1967. 25 Esse capítulo se destina à descrição do percurso metodológico desse trabalho, aos procedimentos e coleta de dados, como também ao procedimento de análise e utilização do material coletado. Também aqui se pretende elucidar os conceitos de arqueologia e genealogia como métodos de análise de discurso e das práticas de poder tal como desenvolvidos por Foucault (1992) e compreender como esses métodos e como os conceitos foucaultianos relacionados a eles foram utilizados para construir o arquivo de memória sobre a existência desse hospital. De início, sublinhe-se o objetivo geral de contar a história da Casa de Saúde Santa Teresa, tomando-a como fio condutor do trabalho. Contudo, tal análise não se pretende fechada sobre seu próprio objeto, mas sim, aberta e atravessada pelos discursos e relações de poder que o possibilitaram, pelos acontecimentos históricos que fizeram com que a Casa de Saúde se mantivesse em funcionamento e fechasse suas portas quase 46 anos depois. Daí que nossas descrições e reflexões históricas comecem antes da existência do hospital, identificando aspectos discursivos e não-discursivos que fizeram com que o hospital fosse aberto, bem como o fizeram permanecer em funcionamento e ter seu fechamento tensionado. Esta dissertação está dividida em quatro capítulos. O Capítulo 1 foi destinado à compreensão do método e conceitos de arqueologia e genealogia e sua utilização para a construção e análise da existência da Casa de Saúde Santa Teresa. Os três capítulos seguintes foram divididos conforme períodos de tempo: o Capítulo 2 contém a análise dos discursos e produções não discursivas do início do Século XX até o ano de 1970, quando a Casa de Saúde Santa Teresa abre suas portas; o Capítulo 3 trata do recorte temporal da década de 1970 a 1990, anos de manutenção e funcionamento total da Casa de Saúde; e o Capítulo 4 destina-se ao recorte temporal da década de 1990 ao ano de 2016, período que inclui as tensões e fechamento do hospital. 26 A divisão por camadas de tempo não pretende organizar de forma causal a história, mas possibilitar a divisão em três eixos fundamentais e distintos a análise da existência desse hospital. Assim, o processo de análise da Casa de Saúde Santa Teresa incluiu a busca por informações sobre a pré-existência da instituição, a configuração econômica, política e cultural da região e do município do Crato, incluiu também o levantamento bibliográfico sobre a constituição do sistema de saúde e Saúde Mental no Brasil, as políticas públicas e o movimento de Reforma Psiquiátrica que atravessa a existência dos hospitais psiquiátricos no país e possibilita/fortalece a transformação na assistência psiquiátrica, possibilitando o fechamento dos hospitais. Dessa forma, as fontes escolhidas para coletar dados e informações dos distintos períodos de tempo foram de caráter histórico e documental. Certamente as fontes documentais mais consistentes seriam encontradas nas dependências da Casa de Saúde Santa Teresa, uma vez que os prontuários e o arquivo, os documentos da administração, os registros médicos, livros de ata de reuniões e anotações da equipe interdisciplinar forneceriam substancialmente as informações necessárias para registro da história do hospital. No entanto, os procedimentos éticos relacionados ao uso desse material envolveriam a solicitação de autorização aos diretores e responsáveis pela instituição, bem como a todas as pessoas relacionadas ao processo. Por esse motivo, o material escolhido para a coleta de dados deveria ser público e dessa maneira estar aberto à consulta e uso, bem como deveria conter registros da história do município, do Estado e do país. Assim, pelos aspectos supracitados, foi decidida a busca e utilização de dados encontrados em revistas e jornais, também optou-se pela utilização de fotografias, de caráter ilustrativo. As matérias de jornais e revistas deveriam ser submetidas à análise de conteúdo, para garantir que as informações estivessem condizentes com a proposta do trabalho e dissessem respeito aos períodos de tempo e acontecimentos relacionados a eles. Com relação às fotografias, deveriam servir apenas como ilustrações dos fatos e momentos históricos. 27 Uma vez que os dados históricos foram coletados em jornais e revistas, complementados por fotografias, a divisão em três blocos de tempo facilitou a seleção e uso das matérias de jornais e revistas e uso de fotos que foram balizadas por atender e pertencer a esses recortes de tempo. As notícias foram lidas e triadas de acordo com o pertencimento a cada um dos períodos e utilizadas junto com as fotografias de caráter ilustrativo. Além disso, cabe informar ao leitor que a estrutura da dissertação não conterá uma sessão específica para resultados e discussões, uma vez que todo o texto conterá os elementos e procedimentos metodológicos necessários (fotografias ilustrativas e matérias de jornais e revistas) para a construção da análise. Logo, os capítulos serão construídos mesclando os elementos metodológicos e fontes documentais (que se apresentam devidamente referenciados). A coleta de dados teve início com a pesquisa por jornais e revistas que tivessem publicações consistentes e possuíssem registros sobre o Ceará e Cariri cearense. Para construção dessa análise, foram consultadas inicialmente duas publicações jornalísticas importantes do Cariri cearense, a saber: o jornal A Ação e a revista Itaytera, em suas edições de 1963 a 1990. Para acompanhar os desdobramentos da história e funcionamento do hospital foram consultadas edições do Jornal do Cariri, O Povo, Folha de São Paulo, Tribuna do Ceará e Diário do Nordeste entre os anos de 1990 e 2015. A escolha por esses jornais se deu em virtude da relevância das publicações no Ceará e Cariri e por serem noticiadoras dos fatos sobre o hospital até hoje. As publicações mais antigas eram do jornal A Ação (publicação quinzenal financiada pela diocese do município do Crato) e revista Itaytera (elaborada e publicada anualmente por intelectuais e jornalistas cratenses). Uma vez que esses jornais e revistas do início do século XX não possuíam versões on line e que, mesmo diante dos avanços tecnológicos, grande parte 28 das publicações desse período não chegaram a ser digitalizadas, foi necessário encontrar arquivos públicos. As edições do jornal A Ação e revista Itaytera foram pesquisadas no acervo da diocese municipal do Crato. O acervo é administrado em parceria com a Universidade Regional do Cariri - URCA e é liberado para pesquisas acadêmicas. Foram também pesquisadas publicações mais recentes: os jornais O Povo, Folha de São Paulo, Jornal do Cariri, Tribuna do Ceará e Diário do Nordeste. Essas publicações foram pesquisadas nas versões on line dos jornais e também em edições impressas. Foram definidos eixos de busca comuns para os três blocos de tempo, procurou-se nos jornais e revistas matérias que fizessem referência à Casa de Saúde Santa Teresa, à psiquiatria e à rede hospitalar da região, contextualização econômica, política e cultural da região do Cariri, do município do Crato e do Estado do Ceará. Esses dados foram colocados em paralelo com o levantamento bibliográfico realizado acerca da Reforma Psiquiátrica no país e histórico do SUS e rede de Saúde Mental, de maneira que os acontecimentos no Cariri cearense fossem contados sempre em intersecção com a história da psiquiatria no país. Os jornais e revistas impressos foram fotografados para registro e uso, as edições foram consultadas e lidas uma a uma e foram fotografadas as matérias que traziam informações sobre os eixos de busca determinados, no intuito de articular a análise histórica da Casa de Saúde Santa Teresa e os discursos acerca do hospital com as produções políticas, econômicas e culturais, como com a história da psiquiatria, política e movimentos sociais no Brasil, apontando as rupturas e continuidades em cada um dos três períodos determinados nesse trabalho. O trabalho de coleta das matérias levou um mês e foi realizado nas dependências da Diocese do Crato. Ao todo, foram coletadas 122 matérias do jornal A Ação, 35 matérias da revista Itaytera, 11 matérias do Jornal do Cariri, 8 do Diário do Nordeste, 1 da Folha de São 29 Paulo, 1 da Tribuna do Ceará e 3 do jornal O Povo5. Essas matérias continham informações sobre os eixos definidos para busca, foram divididas em três blocos de tempo (o primeiro de 1960 até a década de 1970, o segundo de 1970 a 1990 e o terceiro de 1990 a 2015) e foram incluídas no texto de maneira que permitissem a construção da história da Casa de Saúde Santa Teresa enquanto se apresentam os elementos já citados de análise. Foi realizada leitura criteriosa de cada uma das matérias que também foram fotografadas. Foram incluídas todas as matérias que traziam informações sobre o hospital psiquiátrico, a rede de Saúde Mental no Cariri e elementos econômicos, culturais e políticos relacionados ao sistema de saúde e à Casa de Saúde Santa Teresa em cada um desses blocos de tempo. A análise de documentos, jornais, revistas e fotografias possibilita a preservação da memória de uma época e povo, em forma de arquivo, de diagrama, compreendido como construção arqueológica e genealógica. Assim, a arquitetura, vestuário e vocábulos de uma época, também os costumes, instituições e política mostram-se indissociáveis da ordem geradora e gerada pelos saberes desse tempo, saberes atravessados pelas relações de poder, por urgências administrativas e determinações políticas. De acordo com Foucault (2005), o uso de documentos para a análise de discursos numa história é fundamental e sua análise cuidadosa possibilita que o passado, o presente e as possibilidades de futuro estejam entrelaçados numa compreensão da história a partir de seus saltos, rupturas e transversalidades. O uso de fotografias constitui uma importante ferramenta genealógica, uma vez que o registro da imagem permite a captura de determinados contextos e eventos situados em momentos específicos da história. A fotografia documental é um gênero de fotografia que se opõe à publicidade ou ao jornalismo, seu objetivo é o de retratar fatos ocorridos e permitir que 5 Após a sessão de referências bibliográficas, no final desse texto, encontra-se a tabela contendo os jornais e periódicos que foram citados nesse trabalho. Não foram utilizadas todas as publicações encontradas, em virtude do caráter repetitivo de informações. Informamos também que a maioria das matérias encontradas nos jornais não dispunham dos nomes de seus autores. 30 através da imagem, a história de um determinado povo seja contada (Oliveira, 1999). O tratamento das imagens foi cronológico diacrônico, tendo o objetivo de narrar, a partir dos registros fotográficos do município do Crato e da Casa de Saúde Santa Teresa, o contexto social, cultural e características históricas que propiciaram a instalação do hospital e as mudanças que se desenrolaram com o passar dos anos até o seu fechamento no ano de 2016. O conteúdo verbal dos documentos foi submetido ao método de análise discursiva proposto por Spink (2000), agrupando e analisando os temas e eixos presentes nas narrativas. Dessa forma, foi possível apreender as produções de sentido produzidas nos documentos acerca do hospital. Segundo a autora, a análise discursiva permite investigar a maneira como as pessoas produzem sentido e compreender como se posicionam, com relação a determinados temas, em seus contextos sociais. Assim, as dinâmicas, formas e conteúdos enunciados nos documentos sobre o hospital e sua persistência, possibilitaram compreender as formações discursivas e não-discursivas nos três blocos de tempo, relacionados à abertura, manutenção e fechamento do hospital, além de elencar possíveis elementos que mantiveram a lógica manicomial e hospitalocêntrica existindo. Além disso, tal material permite expor a problematização dos mecanismos do poder psiquiátrico quando do movimento de reforma e desospitalização. As fotografias que não são de jornais ou revistas tem caráter meramente ilustrativo e não foram submetidas a nenhum tipo de análise, tratam-se de imagens de domínio público, utilizadas apenas para fins de ilustração e contextualização da história aqui contada. A articulação teórica e análise dos elementos levantados nas matérias de jornais e revistas necessitavam de suporte teórico e de uma perspectiva epistemológica para sua contextualização. Para tanto, optou-se pelos conceitos de arqueologia e genealogia propostos por Michel Foucault, uma vez que esses métodos de análise discursiva e não-discursiva permitem a análise crítica de um objeto ou discurso de saber/poder em relação ao tempo e seus atravessamentos. 31 O método conforme já citado é arqueológico e genealógico e possibilitou a construção de um arquivo6 e um diagrama7 da existência da Casa de Saúde Santa Teresa. A escolha desse procedimento se justifica metodologicamente na ideia de conhecer e compreender os discursos vigentes, a ordem que os forma e como esses discursos consolidam e possibilitam a emergência de saberes e de poder, nesse caso o saber médico psiquiátrico e sua manifestação a partir da instalação e existência de um hospital psiquiátrico no Cariri cearense. O método arqueológico como forma de análise das produções discursivas de um tempo pressupõe a identificação dos discursos que emergem como verdade em determinado período histórico. De acordo com Foucault (2008, p.154) a arqueologia não incita à busca de nenhum começo; não associa a análise a nenhuma exploração ou sondagem geológica. Ela designa o tema geral de uma descrição que interroga o já dito no nível de sua existência; da função enunciativa que nele se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte. A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo. Dessa forma, as formações discursivas foram analisadas nas fontes documentais (jornais e revistas), identificando os objetos sobre os quais incide o discurso, os tipos enunciativos, os conceitos que tornam possível o aparecimento e transformação do objeto de discurso e as estratégias, temas e teorias que o respaldam como verdades históricas. As formações não-discursivas de um tempo, a saber, elementos como a economia, a política e a cultura também foram analisados para que se pudesse identificar como o discurso 6 Segundo Foucault (2008, p.151): “Ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da história, palavras que traduzem, em caracteres visíveis, pensamentos constituídos antes e em outro lugar, temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo suas possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo”. 7 “O poder delineia uma segunda dimensão irredutível à do saber, embora ambos constituam mistos concretamente indivisíveis; mas o saber é feito de formas, o visível, o enunciável, em suma, o arquivo, enquanto o poder é feito de forças, relações de força, o diagrama” (Deleuze, 2010, p.120). 32 manifesta e produz poder e como também as formações discursivas são produzidas pelas relações de poder de seu tempo. Considerando que a história não pode ser contada de maneira causal e ingenuamente linear, mas a partir dos atravessamentos, simultaneidades, acontecimentos e interrupções de fluxo, ela é, aqui, reconstruída utilizando fontes documentais, a saber, fotografias de matérias de revistas e jornais para contextualizar os discursos e também o contexto social, cultural, político e econômico relacionados à consolidação da psiquiatria no interior do Ceará, além de fotografias ilustrativas. O que não significa, em nenhum momento, reduzir a loucura ao mero campo abstrato de um “efeito dos discursos”, mas sim, de insistir como o domínio e o sofrimento real da experiência da loucura podem e devem ser encontrados, compreendidos e traduzidos dentro e a partir do discurso dominante de uma época. Exigência e aposta de um modelo arqueológico de análise que Foucault (2001a, p.1506-07) define bem: Este é um problema importante. Na verdade, não teria sentido dizer que existe apenas o discurso. Um exemplo muito simples é que na exploração capitalista (...) os processos históricos de exploração exerceram-se, ou não, no interior de um discurso? Exerceram-se sobre a vida das pessoas, sobre seus corpos, sobre seus horários de trabalho, sobre sua vida e morte. No entanto, se quisermos fazer o estudo do estabelecimento e dos efeitos da exploração capitalista, com o que teremos que lidar? Onde é que vamos vê-la traduzir-se? Nos discursos, entendidos em sentido amplo, ou seja, nos registros do comércio, das taxas de salários, das alfândegas. Encontrá-la-emos ainda em discursos no sentido estrito: nas decisões tomadas pelos conselhos de administração e nos regulamentos das fábricas, nas fotografias, etc. Todos estes, num certo sentido, são elementos do discurso. Mas não há um universo único do discurso, no exterior do qual nos colocaríamos, e que, em seguida, estudaríamos. O uso de fontes documentais nos permite analisar as práticas discursivas em torno da psiquiatria enquanto saber, eis o ponto de partida das análises arqueológicas. Lembremos, nesse sentido, como Foucault defina sua arqueologia: “uma história da emergência dos jogos de verdade; história das veridicções entendidas como as formas segundo as quais sobre um domínio de coisas se articulam discursos suscetíveis de serem ditos verdadeiros ou falsos” 33 (Foucault, 2001b, p.1451). Em outras palavras, na arqueologia trata-se de descrever as condições históricas que possibilitam que certos discursos se tornem hegemônicos, que certos valores se afirmem como verdadeiros em-si e, dessa forma, possam exercer a função de norteadores de nossas formas de organização social. A análise do discurso de Foucault ganha corpo, rigor e especificidade a partir de seus livros da década de 60. De acordo com seu livro de 1966, As Palavras e as Coisas, em cada momento histórico, em cada época, existem condições específicas que possibilitam o aparecimento e constituição de saberes que se manifestam através de discursos tomados como verdadeiros em virtude da influência que exercem e do reconhecimento social que possuem. Foucault chama de epistémê esse espaço da condição de possibilidade de determinados discursos com pretensão ao valor de verdade. O autor afirma que todo saber (científico ou não) só é possível em determinado momento histórico quando circunscrito às demandas singulares e necessidades próprias a uma cultura específica, pois “numa cultura e num dado momento, nunca há mais que uma epistémê, que define as condições de possibilidade de todo saber” (Foucault, 2006, p.230). O método arqueológico permite a compreensão da ordem que possibilita e condiciona os discursos em determinada época, bem como a descrição da maneira como os discursos produzem os objetos sobre os quais falam. Uma das grandes consequências em tratar o que é dito pelo discurso oficial como um discurso-objeto histórico independente de um sentido hermenêutico velado que pressupõe a recuperação incessante de seu sentido originário, é que tais descrições arqueológicas permitem uma análise histórico-crítica do funcionamento e dos efeitos desses discursos dentro do tecido social e das relações entre homens. Dessa forma, a arqueologia de Foucault abre caminho para uma genealogia do poder em que o discurso hegemônico enlaça-se necessariamente com as práticas sociais e com as relações políticas governamentais. 34 É por isso que a reflexão crítica de Foucault não se define apenas a partir de uma análise restrita às formações discursivas de um tempo, uma vez que, conforme Foucault (2011), todos os discursos estão sempre relacionados às relações de poder e, dessa forma, a psiquiatria enquanto discurso médico se constitui também enquanto prática de poder. Tratar dessa relação biunívoca entre saber e poder, mostrar como os discursos verdadeiros produzem práticas de coerção e racionalização políticas gerando efeitos de coerção cultural e moral, eis o objetivo principal de uma genealogia de profunda inspiração nietzschiana: “Nietzsche mostrou que por trás de todo saber, por trás de todo conhecimento, o que está em jogo é uma luta de poder. O poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (Foucault, 2001a, p.1438, grifo nosso). É nesta decisão teórica e metodológica de decifrar a natureza dos discursos sobre o fundo histórico das lutas agonísticas pelo poder, de ver o sistema de regras de um discurso como algo inseparável e imanente às relações de dominação e força de uma determinada sociedade - e não mais no regime ahistórico e positivista da verdade - que acreditamos encontrar a ideia foucaultiana mais importante e pertinente para as nossas análises. Isso porque a partir do momento em que se discute as implicações, atos, gestos, acontecimentos e toda a sorte de formações políticas alicerçadas pelo discurso, é preciso reconhecer essa ambígua relação em que o discurso manifesta e produz o poder. Em uma palavra, como bem sintetiza Gilles Deleuze (2005, p.80): “O poder como exercício, o saber como regulamento”. Trata-se de afirmar, portanto, que as condições de gênese de um discurso passam aqui para o interior de suas regras enunciativas e de sua história, mas também, redefinem sua natureza como algo eminentemente prático. Isto não quer dizer que Foucault faça do saber uma espécie de epifenômeno de uma estrutura social que o precede, recuperando a lógica dialética e marxista própria à infraestrutura/superestrutura. A ordem discursiva e a ordem não- discursiva (prática, técnica, econômica, social, política) se inter-relacionam. 35 Por isso, para Foucault não é legítimo afirmar que os discursos tenham sua gênese plenamente determinada pelos acontecimentos econômicos e sociais: “Toda formação discursiva não é do mesmo modo permeável aos acontecimentos não-discursivos e por isso a análise arqueológica procura descobrir formas específicas de articulação” (Foucault, 2006, p.213). A análise arqueológica tematiza os discursos pela definição de suas regras de formação explicitando sua condição de possibilidade na definição do discurso como um conjunto de enunciados. Não se trata de uma análise causal simples. A arqueologia “quer mostrar não como a prática política determinou o sentido e a forma do discurso, mas como e a que título ela faz parte de suas condições de emergência, de inserção, de funcionamento” (p.213). Consequentemente, a arqueologia coloca o conjunto de enunciados que forma um discurso dentro de um domínio sociocultural, conjunto de formulações que não existem, portanto, isoladamente. Dotados de materialidade, pois capazes de produzir efeitos reais, os discursos têm a sua identidade relacionada e definida a partir do campo institucional onde se inserem. O importante, aqui, é notar que discurso e sociedade são, rigorosamente, contemporâneos/simultâneos e, consequentemente, se a produção do saber é indissociável de práticas e exigências morais de uma histórica forma de sociabilidade, é também verdade que as formas e práticas sociais podem ser descritas como a versão material e corpórea dos diferentes sistemas de saber. Não há sobredeterminação exclusiva entre poder e saber, mas sim, uma necessária e intrínseca determinação recíproca. O discurso é produto e produtor do poder, tal é a torção crítica que Foucault estabelece. O saber, enquanto produzido pelo poder, surge como seu efeito e instrumento; enquanto produtor do poder, opera como facilitador de seu exercício. Ponto de sutura entre saber-poder, arqueologia e genealogia se mostram plenamente complementares: a primeira insere uma história dos discursos no interior de uma história 36 social; inversamente, a segunda introduz uma história social no interior de uma história dos discursos. Uma imagem semelhante a uma banda de Möbius8 aparece e é ela que justifica uma “arquegenealogia” de um fenômeno eminentemente político, científico e cultural como a loucura. É dentro dessas coordenadas de análise que Foucault pode definir, de maneira rigorosa, a psiquiatria como um dispositivo: “o que eu tento determinar com esse nome (dispositivo) é um conjunto rigorosamente heterogêneo, que comporta discursos, instituições, padrões arquiteturais, regulamentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (Foucault, 2001b, p.298). A Casa de Saúde Santa Teresa, que é parte desse feixe que compõe o dispositivo psiquiátrico, nasce, existe e fecha suas portas num campo de atravessamentos e forças que se entrelaçam no tempo e nas específicas condições econômicas, políticas e culturais intrínsecas à região do Cariri. Assim, consideremos que o dispositivo é o objeto da análise de Foucault em seus dois métodos: a arqueologia, em sua proposta de análise da regularidade do discurso fazendo com que algo apareça como verdade; e a genealogia que expressa a preocupação política que o discurso manifesta sendo produto e produtor de poder. Descrever essas condições discursivas e não-discursivas da história de um hospital é criar o arquivo de sua memória e o diagrama de forças que se encontram em sua origem e transformações no tempo. Para isso, a atividade arquegenealógica se atém ao que foi efetivamente dito e feito na história, em uma confrontação paciente com o material documental disponível: 8 Ou fita de Möbius, ou faixa de Möbius é um espaço topológico obtido pela colagem de duas extremidades, não permitindo que haja além de uma borda ou que se identifique seu começo e fim, embora pareça tê-los ou ter dois lados. Deve seu nome a August Ferdinand Möbius, que estudou esse elemento em 1958. Sua aplicabilidade se dá na engenharia, na música, nas artes, simbolizando o caráter cíclico de muitos processos ou infinito (Fauvel, Flood, Wilson, 1993). 37 A genealogia é cinza; ela é pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos. (...) Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar as singularidades dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história ─ os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos, a patologia (Foucault, 2001b, p. 1004). A construção dessa dissertação revisita os acontecimentos e atravessamentos sociais que envolvem a psiquiatria no Ceará, dando ênfase ao que foi e é vivido na região sul desse estado, no Cariri cearense onde, não por acaso, no início da década de 1970 se inaugura, como um grande feito e demonstração de avanço, um hospital psiquiátrico. Não se trata, contudo, de historiografar segundo a possibilidade (ou falácia) de registrar eventos e acontecimentos numa sequência temporal linear e lógica; tampouco de utilizar da categoria de causalidade para compreender a história da Casa de Saúde Santa Teresa. Pelo contrário, trata-se de discutir e problematizá-la, pensar o que acontece hoje a partir da história de suas transformações. Premissa maior do uso da história em Foucault sobre a qual Deleuze (2010, p.123) já nos dava uma bela definição: “é aquilo que nos separa de nós mesmos e o que devemos transpor e atravessar para nos pensar a nós mesmos, nossa atualidade”. Isso traz uma consequência decisiva que é a orientação em direção ao problema da atualidade de uma questão histórica, problema que deve ser rigorosamente distinguido da banal “presentificação do passado”. Pensar o dispositivo é indissociável de uma sensibilidade ampliada para o presente, assim como de uma crítica renovada de todo e qualquer falso universalismo científico, ou cultural. Contra a imagem de uma acumulação progressista na história, Foucault insiste em uma outra concepção de historicidade. Em primeiro lugar, todo dispositivo, como vimos, é também discursivo e, por isso, não se trata de uma práxis essencial e independente dos discursos que a exprimem, pois todos os 38 conteúdos tidos como verdadeiros, ao serem ditos de outras maneiras, deixam de ser o mesmo. Consequentemente, é preciso descrever o passado tendo em vista o lugar e o tempo presente a partir do qual sempre falamos. Dessa forma, não se trata de recuperar, por exemplo, o dispositivo psiquiátrico sob a perspectiva da história oficial, mas sim, expor através de tal recuperação o tempo que o conhece, isto é, o nosso tempo. Foucault sempre insistiu em como a genealogia é indissociável de uma confrontação do presente com o passado. Não é toda história que nos interessa, é preciso se perguntar sobre o porquê do interesse presente por este, ou aquele, acontecimento passado. É preciso selecionar, marcar transformações, engajar-se com o sentido da história reconstruída. Diferentemente das representações oficiais científicas – que possuem forte caráter ideológico em sua manutenção e imposição do status quo através do aparente verniz de neutralidade – tal atividade genealógica subverte a “verdadeira narrativa histórica” propondo outra compreensão do passado, o que abre uma brecha, uma linha de fuga, em nossa própria autocompreensão do presente. Logo, para Foucault, a atualidade da história não se encontra na regularidade de determinados conteúdos caducamente verdadeiros, ou na construção de necessárias relações causais. Suas genealogias nos mostram não aquilo pelo que o presente veio-a-ser, mas sim, aquilo pelo que ele pode deixar-de-ser. Historicizar os dispositivos através dos quais as sociedades se dão sua própria norma de conduta, através do qual os sujeitos se constituem e as regras de convivência social são estabelecidas, diz respeito a desencavar as arbitrariedades que sustentam as relações de poder de nossa sociedade, abrindo um espaço de fratura e suspeita na regularidade própria às convenções culturais. Como sintetiza Deleuze (1989, p.191): “a história é o arquivo daquilo que nós somos e deixamos de ser, enquanto o atual é o começo de nosso vir-a-ser”. A 39 genealogia como história é um fazer indissociável de seus efeitos éticos e políticos para o hoje. Nisso, ela não é uma ciência, mas sim uma crítica: “Agir contra o tempo, e assim sobre o tempo, em favor (eu espero) de um tempo por vir. (...) É o intempestivo de Nietzsche e o atual em Foucault” (Deleuze, 2007, p.145). Desta forma, podemos concluir dizendo que essa dissertação visa apropriar-se, modestamente, de uma concepção arqueológica e genealógica da análise de dispositivos de saber-poder para compreender e traçar uma descrição do modo de existência da Casa de Saúde Santa Teresa no Cariri, descrevendo, a partir de suas regularidades discursivas, a força e o sentido da psiquiatrização e hospitalização/manicomialização nessa região. Por um lado, isso nos permite compreender os discursos regionais e sua materialidade prática efetiva que facilitaram a inauguração do hospital; por outro lado, à função arqueológica se inclui, genealogicamente, os desdobramentos atuais, bem como a relação do hospital com as políticas públicas, com os valores políticos, culturais, econômicos e governamentais, sem, no entanto, deixar de considerar a perspectiva autônoma do discurso como produtor e produto do campo de saberes. Por fim, cabe afirmar que, talvez, essa história aqui construída seja um feixe de enunciados replicáveis e materializados não apenas no Cariri cearense e, portanto, não nos parece inusitado que partes dela se apliquem ou coincidam sincronicamente com outras histórias, de outros hospitais, em outras regiões do país. Isso porque, como se sabe, o movimento de privatização dos serviços de saúde, organização e contenção dos corpos em função das normas, organização do espaço urbano em função do desenvolvimento, da economia das cidades, bem como a instalação de dispositivos psiquiátricos, se deu em todo o território nacional e faz parte incontornável de nossa atual sociedade. Nesse sentido, se é certo que os desdobramentos e tentativas de superação dessas produções são bastante conhecidos, talvez não possamos afirmar com tanta certeza que 40 a desconstrução das instituições signifique - por si só - transformar ou modificar os discursos e reverberações potentes que a partir deles se estabelecem como ferramenta de saber-poder sobre a loucura e o corpo do louco. 41 Capítulo 2 Psiquiatria no Cariri cearense ou Dos discursos e não discursos que fazem nascer um hospital Foto 2: Jornal A Ação, 1969. 42 O fio condutor desse capítulo é a cidade do Crato, localizada no sul do Ceará, chamada de cidade princesa por seus filhos, berço de revolucionários e de uma elite burguesa que prezava pelo crescimento e destaque do município, berço também de um hospital psiquiátrico. Nesse capítulo, os contextos econômicos, culturais e políticos do Crato são descritos entrelaçadamente com a história da multiplicação dos hospitais psiquiátricos no Brasil, de maneira que se possa identificar as formações discursivas e não-discursivas que culminam com a abertura da Casa de Saúde Santa Teresa em 1970. Curar a loucura, ou retirá-la do meio do caminho dos avanços sociais A assistência psiquiátrica sistematizada tem início no Brasil no ano de 1852, com a inauguração do Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro. Em 1841, o provedor da Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, José Clemente Pereira, havia iniciado uma campanha para a instalação de um asilo. Os loucos deambulavam a esmo pelas ruas da cidade e, quando causavam incômodo eram conduzidos às cadeias públicas, mantidos em cárcere privado ou assistenciados pelas Casas de Misericórdia (Costa, 2007). Contudo, ao contrário do que aconteceu em outros lugares do mundo, o Brasil não possui uma vasta e registrada história acerca de como seus loucos foram tratados até tornarem-se internos nas instituições asilares. O que se sabe é que enquanto colônia de Portugal, durante o período imperial e até idos do século XIX, com suas províncias em povoamento e expansão, os loucos brasileiros eram em grande maioria responsabilidade de suas famílias, ora vagando pelas ruas das cidades, ora encarcerados (Oda & Dalgalarrondo, 2005). O cuidado institucional destinado a essas pessoas vigente desde o século XVI (e que perdurou até o meio do século XIX), era de ordem caritativa, gerido em grande maioria por congregações religiosas, mas não exclusivo para os alienados. As Santas Casas e os hospitais de província, antes que a psiquiatria adquirisse status de poder médico, tinham sob sua 43 responsabilidade o atendimento às parcelas pobres e desvalidas das populações provincianas (órfãos, doentes, crianças abandonadas, mendigos e, entre esses, os loucos) e não eram instituições de caráter médico-curativo. Outra possibilidade, mais especificamente medida de contenção e imposição da ordem, era o encaminhamento dessas pessoas às cadeias públicas, onde também não dispunham de atendimento médico ou acompanhamento especializado. Os primeiros espaços destinados aos alienados brasileiros foram instituídos ainda durante o segundo reinado. O primeiro deles, como é de vasto conhecimento, foi o Hospício de Alienados Pedro II, no Rio de Janeiro, inaugurado no ano de 1852, período em que outras províncias adotaram similares procedimentos de institucionalização para a loucura. Nas províncias de São Paulo, Pernambuco, Pará, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará, na segunda metade do século XIX, entre os anos de 1852 e 1886, a responsabilidade pelo acolhimento dos alienados migra das Santas Casas e cadeias para os Hospícios e Asilos de Alienados, esse movimento institucionalizante deixa claro que “o lugar dos loucos não é entre os demais doentes, mas tampouco nas cadeias” (Oda & Dalgalarrondo, 2005, p.983). No Ceará foi inaugurado na capital Fortaleza, no ano de 1886, o Asilo de Alienados São Vicente de Paulo, que assim como os outros manicômios da época não possuía presença significativa de médicos. O processo de fortalecimento e expansão dos asilos, bem como da ação médica dentro deles, se dá no início do século XX, período em que se desenvolviam as práticas de controle social num país em construção. As diferenças entre o hospital psiquiátrico e o hospital geral ganham grandes contornos, embora nas duas instituições se afirme o saber- poder médico como forma de controle e regimento dos corpos. O povo miscigenado do Brasil, de raças plurais, espalhado pelo território em ocupação, torna-se objeto de ordem médica. Ressalte-se que a esse tempo, a miscigenação era considerada condição causadora da degeneração do povo, logo, causa hereditária de psicopatologias (Facchinetti & Muñoz, 2013). Os costumes da população pobre e dos 44 habitantes das periferias, distantes dos rituais da elite burguesa, eram considerados pelos médicos como degenerados. Sabemos que a promiscuidade, o ócio, a vagabundagem e malandragem eram características atribuídas à parcela pobre da população e, (diferente de como eram/são tratados esses mesmos comportamentos na elite) foram alvo de severa repressão por meio de ações policiais e médicas. Essas categorias perturbadoras da ordem e do progresso, subjetividades infames conforme afirma Foucault (2003), serão reprimidas e para elas o destino é a exclusão e os espaços institucionais criados para abriga-las. Para os vagabundos e promíscuos destinava-se a cadeia e as medidas para reabilitação e inserção no mundo do trabalho. No entanto, com a expansão da ação médica e crescimento urbano, ampliação das necessidades de força de trabalho, logo se chega à conclusão de que vagabundagem não é doença, loucura sim. Os loucos reafirmam no Brasil o que já fora apontado na clássica história da loucura de Foucault. O louco permanece no espaço de exclusão por razões seculares, agravadas pelo modo de vida capitalista e seus desdobramentos que colocam o louco (sempre) em desvantagem na desenfreada corrida por acúmulo e geração de dinheiro (Foucault, 2010). Hospitalizados, os loucos não atrapalham o desenvolvimento social, geram menos incômodo e, também, cria-se a justificativa de que algo é feito por essa categoria de pessoas, na mesma medida em que passam a ser objeto de poder e lucro. Dessa maneira, até o início do século XX, no Brasil, o processo de institucionalização da loucura acontece. Das ruas às casas de caridade, passando pelas cadeias, até chegar aos hospitais psiquiátricos, em todo o país (em alguns Estados e cidades mais rapidamente que em outros), os loucos passaram a ocupar os pavilhões dos manicômios que foram construídos para ser seus destinos. Num só movimento, a psiquiatria dá conta da tarefa de oferecer cuidados a essas pessoas e também de retirá-las do meio social. 45 Genealogia Cratense: que cidade é essa? Ou da bravura e elitismo de teus filhos O primeiro município emancipado na região do Cariri cearense foi Missão Velha, o Crato foi o segundo, mas ainda não tinha esse nome. A terra de índios das tribos Kariri, Guaripu e Xocó, durante a ocupação de portugueses e brasileiros provindos de outros lugares da nação, em meados do século XVI, foi antes chamada de Missão do Miranda e, posteriormente Vila Real do Crato. É apenas em 1842, com sua emancipação política, que ela passa a ser chamada de Crato. Não por acaso o município se desenvolveu e aflorou como pioneiro em desenvolvimento e progresso na região. O Crato localiza-se no sul do Ceará, fazendo divisa com Pernambuco e estando muito próxima das fronteiras com o Piauí e Paraíba. Localiza-se no sopé da Chapada do Araripe e foi durante o Brasil colônia parte da rota do couro e lugar de passagem para expedições de ocupação do interior do país. A localização geográfica privilegiada para o sertão era um oásis, já que a Chapada do Araripe mantém uma reserva interiorizada de mata atlântica e uma série de fontes, o que faz com que o lugar tenha clima mais ameno e vegetação abundante, em contraste com o clima regional árido e seco. A localização geográfica do município também fez com que a história da cidade estivesse sempre atravessada pelo estado vizinho, o Pernambuco, Estado de nascimento de Bárbara de Alencar9, província já desenvolvida. Além disso, por ter Recife mais próxima do que Fortaleza, aquela se torna o destino para onde, na segunda metade do século XIX, os filhos abastados do Crato iam para cursar faculdade (Revista Itaytera, 1963). 9 Heroína republicana, nascida na fazenda Caiçara, no interior do Estado de Pernambuco, mãe de José Martiniano de Alencar, Tristão Gonçalves e Carlos José dos Santos, também revolucionários. Mudou-se para a então Vila do Crato. No contexto da Revolução Pernambucana, em 1817, foi presa e considerada a primeira prisioneira política do país (Aragão, 2010). 46 No início do século XX, a cidade do Crato mantinha ares coloniais, no entanto, em seu pequeno perímetro urbano, construções símbolo de instituições dominantes, detentoras de poder já estavam erguidas, a saber, a Igreja da Sé (finalizada em 1911) e o Seminário São José, modelar escola eclesiástica que começou a funcionar ainda em 1875. Localizado no alto, pode ser visto de qualquer lugar da cidade. Além do clima favorável, da água abundante, da localização geográfica privilegiada, como um oásis no meio do sertão, o município torna-se um reduto de fé, misticismo, religiosidade, com o poder político na mão de coronéis. O Crato que se orgulhava da cultura e educação por parte do seu povo, foi também palco de episódios importantes e pouco conhecidos, que não fazem parte oficialmente da história do país. Naquela cidade a independência do Brasil foi proclamada cinco anos antes, a força aérea realizou seu primeiro e único ataque e matou centenas de civis. Além disso, no Crato, um campo de concentração durante os anos de seca chegou a ter 18 mil pessoas. O município burguês contrastou – e contrasta - com o Crato de filhos revolucionários. Foto 3: Ilustrativa. Cidade do Crato, início do século XX. 47 Em 3 de maio de 1817, José Martiniano de Alencar, filho de Bárbara, por influência dos ideais republicanos da Revolução Pernambucana, deflagra o movimento republicano no Vale do Cariri e, no púlpito central da cidade proclama a independência do país, cinco anos antes do grito de Pedro I às margens do Ipiranga. Por cerca de oito dias o Crato foi uma república, até o movimento ser suprimido a mando de Leandro Bezerra, grande latifundiário. Na ocasião, Martiniano, sua mãe Bárbara e seu irmão Tristão Gonçalves foram presos, enviados para Fortaleza e depois para Salvador. Os conflitos políticos e atos de bravura (ou loucura) fazem parte da história da cidade que, no início do século XX, passa a dividir com a recém-criada Joazeiro10 a liderança em crescimento e progresso na região do Vale do Cariri. A diocese do Crato é criada em 1914 e, por influência da igreja católica, a cidade cresce e ganha, além de um seminário diocesano para a formação de religiosos, a Faculdade de Filosofia, célula inicial da Universidade Regional do Cariri. O Crato era, também, ponto final da estrada de ferro de Baturité, que ligava o município à capital Fortaleza. Tal fato ampliou o comércio e a instalação de pessoas fazendo a cidade crescer. Desse período, no meio daquele século, também datam dois eventos dolorosos e esquecidos nos livros de história: o primeiro é a criação e massacre do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, comunidade religiosa liderada pelo beato José Lourenço (dissidente de Canudos e das ideias libertarias de Antônio Conselheiro) com o aval de Padre Cícero, que gerou incomodo às autoridades do país. Os habitantes do caldeirão foram dizimados pelo primeiro (e único) ataque realizado pela Força Aérea brasileira a civis. O segundo é a existência de um campo de concentração para refugiados durante a grande seca de 1932 que assolou a região. 10 A cidade que passa ser chamada de Juazeiro do Norte em 1943, tem seu nome originado numa espécie de árvore da região nordeste do país, Zizyphus joazeiro. A palavra joazeiro é um híbrido do tupi e do português, juá ou iu-á (fruto com espinhos) com o sufixo –eiro (Barbosa, 2004). 48 Foto 4: Capa da Revista Itaytera. Arquivo pessoal. Ano, 1969. Contextualizar esses dois episódios é importante, pois nos mostra como as categorias de pobres e desvalidos, migrantes da seca e da miséria são retirados, de distintas formas, do cotidiano das cidades. Muitos anos antes da inauguração da Casa de Saúde Santa Teresa, temos aqui dois fortes antecedentes dos mecanismos de exclusão e segregação social que operaram no Crato. O Caldeirão é assim chamado por ser uma fenda geológica, no sopé da Chapada do Araripe que, alimentada por um lençol freático, mantém-se cheio de água, mesmo em períodos de seca e estiagem. Foi lá que a irmandade do Caldeirão da Santa Cruz do deserto existiu entre os anos de 1894 e 1937. Os moradores do Caldeirão, liderados pelo beato José Lourenço, esperavam o advento messiânico do juízo final. A comunidade subsistia plantando e colhendo, vivendo com o que era retirado da terra. No meio do sertão, a comunidade de agricultores livres cresceu (O Povo, 1934). O sertanejo não contava com o Estado (uma vez que as zonas de segurança ou migração forçada não prestavam assistência às pessoas), 49 tampouco com a igreja para enfrentar o sofrimento causado pela seca. Assim, o misticismo popular e o trabalho duro prestado aos coronéis eram as formas encontradas de sobrevivência. No entanto, a comunidade e o beato começaram a incomodar as autoridades. Além do crescimento do grupo e de seus princípios de auto-gestão, o episódio do “boi mansinho” acionou problemas com a elite (Alves, 1994). O beato havia ganho do Padre Cícero um boi, que passou a ser adorado e cultuado pela população. Após as romarias em Juazeiro, os romeiros se dirigiam ao Caldeirão para ver o boi. Isso causou a ira do deputado e líder religioso Floro Bartolomeu, que não queria que o culto ao animal concorresse com o culto em Juazeiro. O deputado ordenou então a detenção do beato e sacrificou o animal em praça pública. O arraial do Caldeirão tinha em torno de cinco mil habitantes, muitos dos quais escaparam da condução ao campo de concentração do Buriti e encontraram abrigo junto ao beato. Nunca foi registrado um só crime na comunidade. Por suas crenças comunitárias e economia independente, a elite política e religiosa das cidades de Juazeiro e Crato resolveu dar fim à comunidade do Caldeirão, sob a justificativa de se tratar de uma comunidade comunista e composta por fanáticos religiosos (Cordeiro, 2004). A chegada de um caixote de madeira, vindo da Alemanha, foi o motivo esperado para justificar o ataque. Acusaram a população do caldeirão de haver recebido armas para atacar os coronéis do Crato. Os ataques ao Caldeirão foram sucessivos a partir de então, até que em 1937, o General Eurico Gaspar Dutra, então ministro da guerra, autorizou o ataque com aviões da Força Aérea do Brasil. Os moradores do Caldeirão foram dizimados pelas bombas que caíram do céu. Estima-se a morte de pelo menos setecentas pessoas. O beato José Lourenço sobreviveu, fugiu para Pernambuco e faleceu nove anos depois. Os corpos das vítimas nunca foram devolvidos às famílias, o estado do Ceará nunca se pronunciou oficialmente sobre o episódio e o exército jamais assumiu a autoria do bombardeio, embora haja registros do massacre em jornais da época. O 50 direito à memória, ainda hoje, é sistematicamente negado e o Brasil violentamente denega essa triste passagem de sua história11. O segundo episódio diz respeito aos currais criados para conter as pessoas que migravam para as regiões mais abastadas do Estado por causa da seca, sobretudo as duas grandes secas em 1932 e 1942. Conhecidos como “currais do governo”, ao longo da história do Ceará, vários campos de concentração foram criados para conter pessoas que migravam para as regiões mais abastadas do Estado na tentativa de sobreviver aos efeitos das grandes secas. As autoridades temiam o que já havia acontecido durante a seca de 1877, quando cerca de 110 mil famintos saíram do sertão e invadiram as ruas da capital. Durante a seca de 1915, pelo menos 100 mil nordestinos haviam morrido e outros 250 mil se dispersaram em busca de condições de sobrevivência (Rios, 2001). Durante o governo de Getúlio Vargas, aconteceram duas grandes secas, a saber, em 1932 e 1942. Pela primeira vez, no ano de 1932, o Estado brasileiro promoveu intervenções coordenadas e centralizadas nas regiões afetadas pela seca. Na seca de 1932 instituiu-se a “indústria da seca”, como era chamada a ajuda do poder Federal às oligarquias nordestinas que, muitas vezes, revertiam os recursos em benefício próprio (Villa, 2002). Essas ações envolviam apoio financeiro, criação de frentes de trabalho e campanhas de migração para a Amazônia ou São Paulo, além da criação de campos de concentração. À época, não só o governo getulista, como também o governo do Ceará, adotaram medidas de eliminação da mendicância. Por causa da imensa quantidade de pessoas pobres e famintas migrando do sertão central para a capital e para o Cariri, o governo criou inúmeras “zonas de segurança” para confinar os retirantes (Neves, 2001). 11 Embora não conste na história oficial do país, o massacra foi registrado em jornais e periódicos, a exemplo disso ler: A chacina do Caldeirão. Tarcísio Holanda. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01-02-1981, Caderno Especial de Domingo. 51 Foi ao longo da estrada de ferro de Baturité que ligava Fortaleza ao Crato, atravessando todo o estado, que foram criados esses campos de concentração. Uma vez dentro dos campos, os migrantes eram vigiados e não tinham permissão para sair. Existiam dois campos em Fortaleza, um no município do Ipu, Quixeramobim, Senador Pompeu, Cariús e, no fim da estrada de ferro, o campo de concentração do Buriti, localizado no Crato. O campo foi projetado para acolher cinco mil pessoas, mas há registros de que pelo menos 65 mil pessoas passaram pelo campo do Buriti durante aquele período de estiagem. Os retirantes recebiam como alimento uma ração à base de charque e mandioca, que não era suficiente para todos, nem em quantidade, nem em propriedades nutricionais. Faltava água, as condições de habitação e higiene eram precárias e as doenças infecto contagiosas se multiplicavam. Centenas de pessoas morreram e foram enterradas como indigentes em valas comuns, muitos dizimados por epidemias e pela fome. Tal experiência violenta e grotesca de controle social foi repetida em 1942. Desses experimentos restaram os relatos dos sobreviventes e inúmeras crianças órfãs (Rios, 2001). Foto 5: Jornal O Povo, 1932. 52 Esses episódios não são incluídos aqui gratuitamente, há para isso uma razão. O que há entre esses episódios aparentemente distintos – campo de concentração, comunidade de insurgentes e hospital psiquiátrico – em comum? Que linhas e elos de ligação entre eles permitem uma compreensão mais ampla dos dispositivos políticos e dos valores sociais hegemônicos constitutivos da região? Há, eis nossa hipótese, entre os três episódios separados no tempo, mas localizados geograficamente no mesmo espaço, uma estrutura de poder e uma lógica de gestão da pobreza que os imbricam, os aproximam, os justificam e os possibilitam. É sobre isso que iremos desenvolver nossa argumentação mais detalhadamente. É importante compreender que o Brasil passou a ser República em 1889 e, embora não tenha existido um poder soberano nos moldes europeus, a transição de um país governado monarquicamente para um governo central, com o decorrente fortalecimento dos Estados em detrimento das capitanias hereditárias, trouxe consigo uma série de mudanças. Essas mudanças aconteceram, sobretudo, no âmbito da governamentalidade, conforme Foucault (2008a, p.143) entendida como “forma específica e complexa de poder que tem por alvo a população, por principal forma a economia e por instrumento técnico os dispositivos de segurança”, como também da organização dos espaços urbanos das cidades. Ou seja, o século XX foi marcado pela institucionalização política, pela ampliação dos centros urbanos, pelo investimento na indústria, comércio e fortalecimento dos governos Federal e Estaduais. Dessa maneira, parece-nos claro que governar um país com grande extensão geográfica e enormes discrepâncias econômicas entre regiões exigiu a tomada de decisões sobre a gestão dos corpos e vidas de pessoas que estavam fora dos padrões sociais idealizados pelo ritmo crescente do suposto desenvolvimento social. Pessoas essas que eram, sobretudo, pessoas pobres. Cabe lembrar que no Nordeste o governo sempre esteve ligado às oligarquias locais. No Ceará, os coronéis - donos de terras e dos “currais eleitorais” - eram detentores do poder de decisão política e conduziam os votos das massas. Tal cenário, amplamente conhecido de 53 nossas oligarquias políticas, seria pouco para uma compreensão abrangente das novas formas de governamentalidade erigidas e exigidas pelos imperativos de modernização social que o nordeste passou a conhecer nesse período. Os mecanismos de gestão se transformam e se adaptam a cada período histórico e estão relacionados às relações de saber e poder características de cada tempo. Essa adaptação e continuidade de determinados mecanismos de controle são claramente percebidos quando recordamos que o Ceará foi o Estado com mais mortes ocasionadas pelas inúmeras secas entre o final do século XIX e todo o século XX e, de acordo com o relatório do Banco Mundial no ano de 2012, o Estado ainda registrava 40% de sua população vivendo em situação de pobreza crônica (Renos, Jamele e Leonardo, 2015). Com base nisso, considera-se a importância de discutir acerca dos mecanismos de poder e regimento dos corpos e da vida relacionados à governamentalidade moderna, indicar que tais processos de governo incidem sobre o grande contingente de pessoas pobres (e loucos) e problematizar a pobreza e os modos de subjetivação e assujeitamento a ela relacionados, e consequentemente sobre o hibridismo pobreza e loucura. Dessa forma se pode compreender a racionalidade de governo e de gestão que possibilitou e justificou a criação de determinados mecanismos de exclusão ou inclusão perversa, invisibilização e aniquilação de grupos de humanos, sob a justificativa de garantia do bem-estar social e preservação da vida da maior parte da população. Biopoder: governo do corpo e das populações Segundo Foucault (1999), as sociedades modernas conhecem uma nova lógica de funcionamento do poder em relação ao modelo característico aos séculos XVII e XVIII. Não mais um poder repressivo e monolítico, sustentado pelo direito divino do soberano e alicerçado em práticas de suplício, confisco e governo despótico. Pelo contrário, a nova 54 racionalidade política se reconfigura a partir de outros mecanismos, tais como o controle populacional, a vigilância sanitária, a disciplinarização das condutas, a ordenação jurídica, o imperativo paranoico de segurança, etc. É toda uma nova lógica de majoração e organização das forças sociais e produtivas que surge “um poder destinado a produzir forças, a fazer crescê-las e a ordená-las mais do que barrá-las, dobrá-las ou destruí-las (Foucault, 1999, p.148). Com isso, não é mais o direito de morte – de dar a morte ao súdito – o que caracteriza a razão política moderna. É sobretudo o gerir da vida, a administração de suas forças e funções que se estabelece como o princípio a partir do qual o governo se legitima e se justifica. É precisamente essa transformação onde a política já não se assenta no direito de dar-a-morte, mas sim de fazer da vida seu objeto próprio, o que Foucault chamou de biopoder. Foucault insiste que o biopoder se constitui a partir de uma dupla articulação: por um lado, um poder disciplinar que operaria sobre os corpos individuais, estabelecendo uma “anatomo-política do corpo humano” centrado em práticas de adestramento, ampliação das capacidades físicas e cognitivas e introjeção de valores normativos para as condutas individuais. Por outro lado, uma “bio-política da população”, centrada em intervenções e regulações que tinham como objeto a vida-espécie: “os nascimentos e mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, etc” (Foucault, 1999, p.152) O objeto do poder moderno, portanto, é a própria vida tanto entendida como corpo individual, quanto como corpo populacional: “Não é necessário insistir sobre a proliferação das tecnologias políticas que, a partir de então, vão investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência” (Foucault, 1999, p.156). O biopoder como lógica de governo possibilita tanto a inserção controlada de corpos na máquina de produção capitalista, quanto o ajuste dos fenômenos da população aos processos econômicos globais, garantindo a legitimidade do poder disciplinar 55 sob a égide da justificativa de garantir a boa vida à população geral. “Fazer viver” torna-se o telos próprio à governamentalidade moderna; possibilitar a vida é o estratagema último dos dispositivos de governo. É sob essa justificativa, inclusive, que a governamentalidade se tornará inseparável, por exemplo, dos dispositivos de segurança. A astúcia dessa análise foucaultiana consiste precisamente no caráter perverso e reversível do biopoder. Como Foucault aponta, “jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e nunca, guardadas as proporções, os regimes haviam, até então, praticado tais holocaustos em suas próprias populações” (Foucault, 1988, p.149). Ora, mas aqui não nos deparamos com uma contradição entre o princípio de “gerir a vida” e o fato empírico da “morte massificada”? Em outras palavras, não encontramos uma disjunção entre a norma e o caso? Pois, como é possível que através do imperativo político da majoração da vida sejam cometidos grandes massacres? Foucault insiste que não há contradição alguma, pois o poder de governar, excluir e mesmo matar legitima-se a partir de um discurso positivo sobre a vida, a partir de uma série de supostas exigências práticas em torno da sobrevivência e bem-estar de determinada população. Daí seu diagnóstico preciso: Mas esse formidável poder de morte – e talvez seja o que lhe empresta uma parte da força e do cinismo com que levou tão longe seus próprios limites – apresenta-se agora como o complemento de um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, em que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto. As guerras já não travam em nome do soberano a ser defendido: travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam causar a morte de tantos homens (Foucault, 1999, p. 149). Em outras palavras, o poder sobre a vida se fundamenta no imperativo de “proteger o vivente” mesmo que isso signifique devolver à morte uma parte da população. O que revela 56 como o poder acaba sempre por privilegiar tanto determinadas formas de vida em detrimento de outras, quanto algumas parcelas restritas da população em geral. Nesse caso, seguindo de perto as análises foucaltianas, podemos dizer que é precisamente a vida humana como um fato político que está no âmago dos três episódios aqui apresentados. O que sugere a existência de uma lógica de gestão que subjaz os três episódios, ligando-os. Vejamos mais detalhadamente. No campo de concentração as pessoas são enclausuradas às margens da cidade, impedidas de entrar e fazer parte do cotidiano urbano. Não há, no espaço público, nada para oferecer àqueles pobres e famintos, não há espaço que eles ocupem sem gerar incômodo. O governo garante o bem-estar dos cidadãos no mesmo movimento em que, encurralando, afirma cuidar do contingente humano desterrado pela seca. Medida se segurança em torno da ordem pública, medida sanitarista frente ao problema do deslocamento populacional causado pela seca. Tais zonas de segurança, contudo e sobretudo, se apresentam como zonas de exceção onde os direitos humanos são profundamente violados. O campo de concentração como dispositivo biopolítico não tem como objeto de inserção um sujeito de direito, mas sim uma forma de vida que não se coaduna às exigências sociais, sanitárias e morais de determinado contexto geográfico-político. Reversão perversa característica ao biopoder – como Foucault insistia – já que nesse caso é em nome da vida de determinada parcela da população que se comete o “holocausto” de outra parcela menos privilegiada da população. Ao mesmo tempo, há uma ressonância entre os eventos aqui descritos que deve ser sublinhada: o campo de concentração coexistiu à comunidade do Caldeirão. Por que os governantes, que criaram frentes de trabalho e enviaram cearenses a Amazônia e a São Paulo – como mão-de-obra barata e desqualificada para ocupar subempregos de baixa remuneração - não encaminharam uma parcela dos migrantes da seca para a comunidade do Caldeirão, que até então se mostrava próspera e permitia o vislumbre de um modelo alternativo de desenvolvimento para a região do Cariri? 57 É fácil perceber que não havia interesse algum por parte das oligarquias, tampouco do governo Estadual ou Federal, que uma comunidade regida pela equidade e por princípios de auto-gestão crescesse ainda mais. O Caldeirão não poderia jamais chegar a ser emancipado enquanto cidade e constituir um novo centro político, com uma maneira de gestão e governo que não pressupusesse a dinâmica valorativa ao biopoder e sua aliança com a classe dominante. Exemplo claro de como na gestão biopolítica as forças produtivas não são apenas incitadas, mas são incitadas segundo interesses determinados. Constatação óbvia, a biopolítica (Foucault, 2008b) não é neutra nem economicamente, nem politicamente, nem moralmente. Nesse caso, não era interesse dos governantes, oligarcas e políticos, que o Caldeirão tivesse mais habitantes e que para lá os romeiros se destinassem após a morte do Padre Cícero. A comunidade do Caldeirão aparece como um espaço heterotópico, um espaço de alteridade, que não funcionaria sob condições hegemônicas, que não reconhece e não participa da mesma dinâmica de administração e gerência política hegemonicamente adotada dentro da região. Daí os acontecimentos seguintes serem previsíveis: a suposta caixa alemã, a “ameaça comunista”, o singular e vergonhoso ataque aéreo contra civis desarmados. Se o Estado pode matar vidas é porque essas vidas são “o outro” – “pobres”, “fanáticos”, “comunistas”, “atrasados” – tudo aquilo que atravanca e desestabiliza o “progresso da região”. Campo de concentração e Caldeirão da Santa Cruz são atravessados por um conjunto de valores e práticas que nos mostram o verso/reverso de um poder político que em nome da vida, seleciona e mata. Mas, se é assim, não seria o caso de dizer que o hospital psiquiátrico – reconhecidas determinadas e evidentes diferenças – pode também ser compreendido segundo uma dinâmica semelhante ao dos acontecimentos aqui analisados? Dispositivo de afirmação de um discurso e de práticas de ordem que consolidaram aquele espaço como um lugar de exclusão, disciplinarização e normalização do louco. Pois, o saber/poder médico, afirmado enquanto 58 discurso de verdade, garantia conjuntamente as forças policiais e jurídicas que o lugar daquelas pessoas seria entre os muros dos pavilhões e não nas ruas das cidades. Os loucos aparecem, então, também como uma categoria de ameaça aos valores hegemônicos vigentes. Assim como os retirantes da comunidade e habitantes do campo de concentração do Buriti, os loucos são compreendidos tanto como sujeitos desprovidos do direito de escolher sobre o destino de seus próprios corpos, quanto como uma parcela problemática da população a qual se deve investir com práticas de controle do comportamento e higienismo social. Em outras palavras, o louco como objeto da prática médica e a loucura como objeto do discurso psiquiátrico parecem também ser indissociáveis da lógica interna ao biopoder. Daí que sobre o louco se efetivou o imperativo da contenção e segurança, em prol do bem-estar de outra parcela da população. Aquele momento peculiar pelo qual passava a região do Cariri no começo do século XX - o de consolidação de um modo de produção capitalista num país em crescimento - era também o momento da afirmação e institucionalização da vida que se deveria levar, uma vida que se adequasse a determinados padrões sócio-econômico-culturais hegemônicos. Hegemonia que deve ser compreendida não como maioria quantitativa, mas sim como a força normativa que a minoria favorecida tem e exerce sobre determinado contexto econômico- cultural. Não é de se estranhar que justamente nesse período se tenham criado as instituições destinadas aos representantes dos modos de vida que menos interessam ao capitalismo biopolítico. A exemplo disso, podemos pensar também, como sugere Foucault (1979), na escola para as crianças visando à normatização da infância, o asilo para os idosos improdutivos, a multiplicação de prisões para os criminosos e delinquentes, casas de reabilitação para adolescentes criminosos e, claro, manicômios para os loucos: “Pode-se estranhar que a prisão se assemelhe às fábricas, às escolas, aos quartéis, aos hospitais, todos 59 os quais se assemelham às prisões?” (Foucault, 1979, p.230). Não é exatamente dessa estrutura bipartida entre discursos e práticas, dessa lógica de poder calcado na aliança entre dispositivos biopolíticos e capitalismo o que se diz também no âmago dos acontecimentos aqui analisados? Como dirá um leitor atento de Foucault – Giorgio Agamben – tudo se passa como se a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita, porém crescente, inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e mais temível instância” (Agamben,2002, p.127). Dito isso, podemos afirmar com Foucault que a análise feita a partir da perspectiva biopolítica mostra-nos como a medicina é – aliada ao seu inegável progresso técnico e rigor epistemológico - indissociável de uma exigência político-administrativa: curar o corpo e mantê-lo apto ao exercício do labor e à produção. É essa dialética própria ao biopoder que deve ser constantemente recuperada e analisada. Pois, uma vez institucionalizado, o saber médico passa a ganhar localização geográfica, paredes e a concretude do hospital, o que lhe dá uma materialidade efetiva e poderes de ação junto ao corpo social. De certa forma, na modernização tardia da sociedade brasileira, muitos espaços foram erguidos e destinados à normatização, cura e adequação das subjetividades à vida sob égide do controle bio- capitalista. É tal discurso de zelo pela ordem e tranquilidade da sociedade em geral, assim como uma contribuição para com as famílias dessas pessoas que aparece como justificativa para a inauguração do hospital psiquiátrico no município do Crato. No entanto, esse discurso não consiste numa novidade ou numa peculiaridade daquele contexto. Essa ideia já estava 60 presente, conforme afirmam Oda e Dalgalarrondo (2005), em idos de 1870 quando, mesmo em péssimas condições, se discutia a função dos hospícios no sudeste do país. No ano de 1969, as páginas de um dos principais jornais da região do Cariri dividiam espaço entre os anúncios de benfeitorias e progresso, notícias sobre a ida do homem à lua e elogios ao novo equipamento de saúde que seria em breve inaugurado. Nesse caso, parece que vemos surgir no restrito espaço do cariri cearense a ideia básica das análises de Foucault: o desenvolvimento técnico e os discursos de saber são necessariamente sincrônicos aos dispositivos de poder e aos valores políticos morais que os fundamentam (Gimbo, 2016). É por isso que ainda que seja inegável o rigor epistemológico das ciências médicas e os avanços importantes no campo da psiquiatria que o século XX conheceu, é preciso pensá-los – concomitantemente – a sua função social e aos regimes de gestão e controle da vida dentro dos quais o poder médico se exerce. O que aponta para a necessidade de um trabalho de problematização constante de categorias supostamente evidentes como loucura, patologia, normalidade, etc. Por fim, devemos ainda fazer uma última pergunta. Pergunta essa que parece indicar o fulcro de convergência de nossas análises: afinal, o campo de concentração do Buriti, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e os pavilhões do hospital psiquiátrico não foram, em última análise, ocupados por uma mesma categoria de pessoas? A resposta parecer ser sim: pessoas pobres. O pobre desterrado pela seca, o pobre que crê messianicamente na salvação e, no terceiro caso, a condição humana de pobre e louco. Foi sobre esses corpos que atuaram as estratégias do biopoder. Poder sobre o corpo dos pobres É preciso considerar que, ao primeiro olhar, a pobreza é considerada como o desprovimento monetário ou de bens materiais. Nessa perspectiva, quando afirmamos que as 61 categorias de pessoas para as quais destinaram-se esses mecanismos de governo eram grupos de pessoas pobres, é comum que a primeira imagem formada seja a de uma legião de vulneráveis, maltrapilhos, sem qualquer dinheiro. Esse conceito unidimensional de pobreza, restrito aos recursos financeiros, deve ser substituído por um conceito multidimensional, que inclui fatores psicossociais, autonomia e liberdade. De acordo com Sen (1999), ser pobre não implica apenas privação material, mas também a privação das capacidades básicas de um indivíduo, privação de um tipo de liberdade que possibilita a opção pela maneira de viver. Ou seja, ser pobre não significa apenas estar abaixo de um patamar de renda pré-estabelecido, mas significa também e, sobretudo, ser destituído da capacidade de escolha sobre a vida que se pretende levar, destituído de autonomia e submetido a um processo de imobilidade social. Não é raro que as medidas de governo relacionadas às pessoas pobres – aquilo que chamamos de políticas públicas - consistam na ideia de promover a essas pessoas o acesso a recursos mínimos que lhes garantam a sobrevivência. Também não é raro que sobre os corpos dessas pessoas a medicina opere de maneira a evitar que se tornem um problema para a saúde geral da população. Foucault afirma que “aparece, no século XIX, sobretudo na Inglaterra, uma medicina que é essencialmente um controle da saúde e do corpo das classes mais pobres para torná-las aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas” (1979, p. 97). As estratégias de governo sobre os corpos dos pobres apresentam-se como socialmente justificáveis e são aceitas pela população geral. No entanto, na grande maioria das vezes, passa-se longe da ideia de que governar esses corpos seria promover meios para que a pobreza absoluta fosse ultrapassada e o direito de se autogovernar fosse assegurado. O hiato entre por um lado governar como promover condições mínimas de sobrevivência e, por outro lado, possibilitar o acesso às condições básicas de vida é maior do que parece. Ter acesso ao básico seria ter acesso à saneamento, alimentação, água potável, transporte público, serviços 62 médicos, escolas e, como sabemos, as pessoas em situação de pobreza crônica estão muito aquém de uma vida que inclua todas essas garantias juntas (Sen, 2000). Assim, a pobreza marca de forma constitutiva uma forma de vida compreendida como desqualificada. Isso justifica que ela passe a ser excluída, não apenas pelo caráter de precariedade financeira, mas, multidimensionalmente, por sua trajetória de desenvolvimento pessoal incerta e imobilidade social. Fatores que tornam o pobre menos qualificado produtivamente, economicamente e culturalmente cabendo a ele exercer os papéis e ofícios menos valorizados, mais mal pagos e muitas vezes socialmente invisibilizados (Martins, 1997). Nesse sentido, como afirma Sawaia (1999, p.22) “a pobreza não significa necessariamente exclusão, ainda que possa a ela conduzir”, pode significar um processo de inclusão perversa. O pobre, muitas vezes, é incluído como categoria que sustenta a desigualdade que, estruturalmente, o suporta e o produz. No campo de concentração do Buriti, assim como para todo o contingente de migrantes da seca, o governo Vargas dispôs seu paternalismo, colocando em prática ações de emergência que incluíam oportunidades de “trabalho” na Amazônia, ir para a linha de frente da guerra civil em São Paulo (Abreu, 2011) ou padecer entre as cercas de arame farpado dos campos de concentração, esperando a porção de ração fornecida diariamente (Neves, 2001). É perceptível que as opções para esse grupo de pessoas eram o trabalho precarizado, a disposição de seus corpos à luta ou a promoção de alimento como caráter mínimo necessário à sobrevivência. O biopoder apropria-se a da vida tendo como base um cálculo quantitativo, ele é incapaz de respeitar a vida em si, ou uma vida conformada à direitos garantidos. Logo, é sobretudo a pobreza a porta de entrada para a despossessão de sua própria vida. No Caldeirão da Santa Cruz, as medidas do governo foram ainda mais severas e perversas. Ora, os habitantes do sítio caldeirão não eram financeiramente abastados e nem dispunham de papéis sociais importantes, ou seja, não eram parte da oligarquia local. Eram 63 considerados pobres por não possuírem recursos monetários. No entanto, dispunham de alimento, terra e uma organização social que garantia um padrão de vida equitativo, garantia de alimento e liberdade para o exercício da fé. É precisamente essa liberdade de se autogovernar, apesar dos recursos escassos, do povo do Caldeirão que causou grande incômodo às autoridades. O beato e seus seguidores viviam conforme suas regras e não estavam diretamente submetidos ao poder das autoridades governamentais. Além disso, a possibilidade que o Caldeirão se tornasse centro de peregrinação após a morte de Padre Cícero e que a comunidade crescesse a ponto de emancipar-se como nova cidade era inaceitável, por motivos econômicos óbvios. Quanto à dinâmica própria às internações no hospital psiquiátrico, podemos dizer que os corpos capturados sob a justificativa do discurso médico, anteriormente incomodavam nas ruas, atrapalhavam o cotidiano e eram conduzidos à cadeia pública. Medidas sociais de governo para mendigos e loucos tornaram-se urgentes. Logo, a ideia de oferecer cuidados médicos, fortalecida pelo momento de expansão de hospitais psiquiátricos no país, aparece como um dos dispositivos de solução para o problema. Cabe lembrar que os internos vinham de todo o sul do Ceará, mas também da Paraíba, Pernambuco e Piauí. Eram todos pobres. Além dos habitantes da cidade, eram também agricultores, desempregados, em grande maioria submetidos a situações de privação, violência, impotência e imobilidade de suas condições de vida. Condições essas típicas da região. A essas pessoas restou a loucura, o surto como alternativa e a condução repetida para os internamentos ao longo da vida. Por fim, é importante sublinhar como a morte foi destino comum nos três casos. Com exceção do Caldeirão, cujo massacre e morte das pessoas foi o próprio fim da ação do governo, os que padeceram no campo de concentração e os que morreram entre os muros do hospital não foram socialmente reclamados. A denegação da memória parece ser uma das estratégias maiores do poder, como Foucault já insistia em seu texto sobre “a vida dos homens 64 infames” (2003). Tal invisibilização fez com que a aniquilação dessas pessoas não consistisse em algo que gerasse comoção ou revolta política organizada. Pelo contrário, houve uma certa acomodação, verdadeira naturalização da ideia de que o governo (e seus representantes) dispôs o que era possível para garantir a vida dessas pessoas e, dentro desse processo, é necessário que houvesse “algumas perdas”. É necessário pensar que os mecanismos de exclusão se transformam e se adaptam a cada período histórico; é necessário também pensar que em 45 anos de existência do hospital psiquiátrico do Crato, o número total de internos chegou a 18 mil, mesmo número de pessoas que estiveram, de uma vez, aprisionadas no campo de concentração do Buriti. O início do século XX institui não apenas o poder da igreja, do exército e das escolas, o novo século é de desenvolvimento, avanço da medicina, dos hospitais e organização do território brasileiro, que tem suas antigas capitanias transformadas em Estados. É preciso lembrar o que acontecera no país para compreender como esse processo se deu também na cidade do Crato. O século XX assinala no Brasil o que Foucault (2005) chamou de Grande Internação na Europa do século XVIII. Esse período é marcado pela institucionalização e instituição da psiquiatria enquanto força e representante do saber médico sobre a loucura. Ainda de acordo com o filósofo francês, as forças estão sempre em relação com outras forças, assim o saber/poder psiquiátrico em relação ao que socialmente emergia como modo de existência valorizado. Valorizado num momento peculiar, o de consolidação de um modo de produção capitalista num país em crescimento, também de consolidação e institucionalização da vida que se deveria levar adequadamente a esse contexto, não é de se estranhar que justamente nesse período se tenham criado as instituições destinadas aos representantes dos modos de vida que menos interessam ao capitalismo. A exemplo disso, podemos pensar na escola para as crianças visando a normatização da infância, o asilo para os idosos improdutivos, a 65 multiplicação de prisões para os criminosos e delinquentes, casas de reabilitação para adolescentes criminosos e manicômios para os loucos. Corpos que precisavam ser adestrados e controlados, cada um conforme suas peculiaridades, para atender a interesses maiores do que seu poder de escolha e fala. Assim, a medicina, por exemplo, mostra-se indissociável de uma exigência administrativa: curar o corpo e mantê-lo apto ao exercício do labor e à produção, ainda que obviamente ela não se limite a isso. Além disso, uma vez institucionalizado, o saber médico passa a ganhar localização geográfica, paredes e a concretude do hospital. De certa forma, na modernização tardia da sociedade brasileira, muitos espaços foram erguidos e destinados à normatização, cura e adequação das subjetividades à vida sob égide do controle capitalista. Como Foucault afirma, a partir da modernidade o poder já não se exerce através do modelo soberano clássico, definido pelo seu direito de morte. Pelo contrário, o poder é aquilo que “faz viver”, subjugando de forma positiva a subjetividade, instituindo uma série de dispositivos sem os quais a vida se tornaria impossível. O objeto do poder moderno é a própria vida, tese fundamental daquilo que Foucault chamou um dia de biopoder: “Não é necessário insistir, também, sobre a proliferação das tecnologias políticas que, a partir de então, vão investir sobre o corpo, a saúde, as maneiras de se alimentar e de morar, as condições de vida, todo o espaço da existência” (2010, p.156). Contudo, devemos precisar como a psiquiatria levou mais tempo para instituir-se e tomar as rédeas do seu objeto de poder, tanto mais tempo temos levado e levaremos para desconstruir seu domínio uma vez que, diferente de toda a sorte de mazelas físicas, localizáveis no corpo e passíveis de comprovação positiva de cura, a loucura aparece como condição abstrata, diluída em todos os aspectos de existência de um ser e não facilmente localizada para ser curada ou retirada com precisão cirúrgica. 66 Foucault (2010, p.260) considera que “de um modo geral, os domínios das atividades humanas podem ser divididos nestas quatro categorias: trabalho ou produção econômica; sexualidade, família, quer dizer, reprodução da sociedade; linguagem, fala e atividades lúdicas como jogos e festas”. E acrescenta: “De qualquer forma, aqueles que são excluídos diferem de um domínio a outro, mas pode acontecer de a mesma pessoa ser excluída de todos os domínios: é o louco” (p.261). Produções não discursivas: contexto cultural, econômico e político No interior do Ceará, a “Princesa do Cariri”, conforme passou a ser chamada, despontava como promessa de desenvolvimento econômico e cultural, com sólidas bases financeiras na agropecuária, se ergue com os nomes de ilustres famílias e ode à cultura e bons costumes. As indústrias e comércio se multiplicam no Cariri, a cidade cresce e se moderniza; no ano de 1936 foi inaugurada a agência do Banco do Brasil (94ª no país), na Praça Siqueira Campos, como forma de fomento agrícola, sob as bênçãos de Dom Francisco de Assis e orgulho do então prefeito Coronel Filemon Teles. Os anos de governo Vargas foram importantes para a cidade (Figueiredo, 2012). Estima-se, de acordo com dados da Revista Itaytera (1963), que em idos de 1960 o Crato tivesse cerca de 50 mil habitantes vivendo na zona urbana e outros 38 mil nas vilas e zona rural. De acordo com dados da mesma revista, nos anos de 1960 a cidade contava com seis distritos, uma câmara com 13 vereadores, 2 varas de direito, 2 promotorias, 5 cartórios, uma delegacia especial de polícia no perímetro urbano e outras 5 nos distritos, uma agencia do Instituto Nacional de Previdência Social - INPS e uma delegacia de saúde. Nessa época, a cidade mantinha já duas faculdades, um seminário, 5 cursos ginasiais, 12 cursos normais, 20 grupos escolares, 5 escolas de música, grêmios literários, institutos de cultura, além de 67 serviços bancários, grande movimentação de mercadorias e comércio pelas estradas e ferrovia e uma crescente tradição agropecuária que resultou numa exposição anual. A tradicional feira agropecuária representa bem os dois lados desse município populoso, que mantém de um lado um povo de raízes indígenas e tradições folclóricas como o reisado, mas que, do outro, manteve-se apoiado e governado por coronéis, erguido sobre o nome de tradicionais famílias que compunham a elite cratense. Foto 6: Fachada do Cassino Sul Americano. Ano estimado, 1940. 68 Foto 7: Feira livre e comércio em Crato. Ano estimado, 1940. Foto 8: Revista Itaytera, 1974. Com mais da metade de sua população vivendo no perímetro urbano, sob forte intervenção da igreja e dos coronéis, berço de insurgentes e rebeldes revolucionários, a cidade do Crato, “cidade Princesa”, orgulho de seus habitantes e ilustres filhos desponta e se desenvolve. 69 A ‘Princesa do Cariri’ precisa de um hospital psiquiátrico Os cuidados com a saúde da população passam a ser necessidade crescente e o Crato ganha em 1950 um Hospital Geral, de bases religiosas, gerido por franciscanos. Por alguns anos o Hospital e Maternidade São Francisco de Assis foi o maior suporte aos atendimentos médicos na região, não apenas para problemas gerais da saúde física, mas também foi lá que se aplicaram as primeiras sessões de eletroconvulsoterapia no Cariri. Até o final de 1960, o município dispunha de outras quatro unidades hospitalares além do Hospital São Francisco de Assis, a saber: um Hospital Infantil, a Maternidade Dr. Joaquim F. Teles, a Casa de Saúde Joaquim Bezerra e a Casa de Saúde e Maternidade São Miguel. As instituições de caráter inicialmente religioso e com base em ideais caritativos mudam seu status a partir dos crescentes credenciamentos ao INPS; o final da década de 1960 foi marcado pela inauguração de policlínicas, sobretudo odontológicas e pela ampliação da rede de saúde. Esse processo de desenvolvimento e urbanização, aliado à ideia de avanço e progresso, facilitou a iniciativa de médicos locais de inaugurar dispositivos hospitalares e credenciá-los junto ao INPS. Assim, uma ideia unia o útil ao agradável e contava com a peculiaridade do momento histórico: período em que o país, sem possuir rede própria de serviços de saúde, vivendo amplo crescimento econômico e arrecadando fundos com seu modelo previdenciário, financiava a fundo perdido os atendimentos na rede médica privada (Jornal A ação, 1969). Desta forma, no meio da década de 1960, a ideia de inauguração de um Hospital Psiquiátrico na região aparece como um imperativo, alicerçada na ideia de progresso e ordem, como ampliação da rede hospitalar da princesa do Cariri, mas também como um denunciante do incômodo que figuras infames (como mendigos e loucos) causavam à cidade. A exemplo dessa dualidade, pode-se citar duas matérias do Jornal A ação, vigorosa publicação da época, mantida pela diocese do município, no ano de 1965: 70 Foto 9: Jornal A Ação, 1965. Foto 10: Jornal A Ação, 1965. Na foto 9, o problema da mendicância é denunciado como algo inaceitável para um município líder na região. Os mendigos e pedintes, muitas vezes pessoas que acabavam por ficar na região em virtude do comércio e romarias religiosas, causavam incomodo à cidade. É 71 também nessa época que os loucos, figuras que constituem tipos populares na região e com os quais a cidade convivia até então de maneira quase acolhedora, passaram a estar ainda mais fora do tom e das normas modernas do desenvolvimento, o que fez com que a ideia de um sanatório para o Cariri fosse cogitada pela primeira vez. Em edição de 1969, o Jornal A ação, abaixo do título “Débil mental desrespeita famílias, tirando a roupa e dizendo palavrões” divulga o seguinte texto: Júlia doida, uma débil mental que faz ponto entre as ruas Monsenhor Esmeraldo e Tristão Gonçalves continua desrespeitando as famílias, principalmente as estudantes que transitam naquelas ruas. A doida não perde oportunidade de ficar totalmente despida e dizer palavrões. Quando a rapaziada pede que ela mostre a televisão, a débil mental tira toda a roupa na presença de todos. Por diversas vezes Júlia foi presa, mas volta a repetir a mesma cena. Agora, a doida inventou uma nova moda: Está atirando pedras nos para brisas dos carros que transitam por aquelas ruas. Nesse sentido, não espanta que rapidamente a ideia de higienização e manutenção de uma ordem que não permitisse figuras desviantes fosse também tratada, em matérias seguintes (ainda em 1969), como solicitação por um dispositivo psiquiátrico associado à ideia de ampliação da rede hospitalar e manutenção do crescimento da cidade: “Até o fim deste ano, Crato ganhará sua sexta unidade hospitalar. Trata-se da Casa de Saúde Santa Teresa, especializada em tratamento de doenças nervosas e mentais, pioneira no interior do nordeste, que ratificará a liderança do município na região”. Foto 11: Jornal A ação, 1969. 72 Foto 12: Jornal A ação, 1969. Foto 13: Jornal A ação, 1969. As matérias reproduzem a ideia de que a instalação de um dispositivo psiquiátrico na região era percebida como avanço e progresso, mas também deixa explícito o tratamento dado aos mendigos e loucos e seu não enquadramento aos imperativos sociais. Percebe-se que o destino dado a essas pessoas, a cadeia pública, cumpria uma função de coerção moral, mas 73 que não era suficiente para coibir ou aniquilar aquelas infames manifestações12 de subjetividade tão incômodas e fora dos desejáveis padrões sustentados na época. É possível perceber, também, o elogio à iniciativa dos médicos dispostos a inaugurar o empreendimento. A exemplo disso, o texto disposto na matéria da foto 11 anuncia que “o médico Eligio Abath informou que irá a Salvador tratar de assuntos de interesse da futura casa de saúde, esperando inaugurar ainda este ano esse importante melhoramento para a cidade do Crato”. O discurso de zelo pela ordem e tranquilidade da sociedade em geral, assim como uma contribuição para com as famílias dessas pessoas, aparece como justificativa para a inauguração do hospital no município do Crato. No entanto, esse discurso não consiste numa novidade ou numa peculiaridade daquele contexto. Essa ideia já estava presente, conforme afirmam Dalgalarrondo e Oda (2005), em idos de 1870 quando, mesmo em péssimas condições, se discutia a função dos hospícios no sudeste do país. No ano de 1969, as páginas de um dos principais jornais da região do Cariri dividiam espaço entre os anúncios de benfeitorias e progresso, notícias sobre a ida do homem à lua e elogios ao novo equipamento de saúde que seria em breve inaugurado. Tal benfeitoria para com os infelizes certamente foi facilitada pelas oportunidades promovidas pelo governo do Brasil ao injetar uma grande quantidade de recursos públicos na assistência privada desse país. Foi sob essas condições, nesse contexto específico, no ano de 1970, exatamente no dia 21 de junho, aniversário da cidade do Crato, que a Casa de Saúde Santa Teresa abriu suas portas. Do modelo asilar ao modelo assistencialista: a ampliação dos hospitais psiquiátricos no Brasil 12 Em seu trabalho sobre A vida dos homens infames (2003), Michel Foucault discute a existência de subjetividades socialmente não desejáveis, uma vez que não se enquadram nas normas e ordem de uma época ou sociedade. 74 O final do Século XIX e início do século XX são marcados no Brasil pela construção de grandes manicômios, a chegada da família real portuguesa ao país e a modernização das cidades foram marcos para esse acontecimento. O Hospício Pedro II foi inaugurado ainda em 1852, para lá eram encaminhadas pessoas dos Estados circunvizinhos, como Minas Gerais e São Paulo, que assim como o Rio de Janeiro, à época capital da República, faziam parte dos Estados que mais cresciam no país. No entanto, durante o segundo reinado (1840-1889) foram inauguradas outras instituições exclusivas para alienados em outras províncias, a saber: São Paulo (1952), Pernambuco (1864), Pará (1873), Bahia (1874), Rio Grande do Sul (1884) e o Ceará (1886). Essas instituições ainda possuíam caráter caritativo e religioso, haviam poucos médicos em seus interiores e cumpriam majoritariamente uma função higienista. Com a proclamação da República em 1889, houve um redirecionamento nas políticas de controla social. Em 1890, por exemplo, o Hospício Pedro II fica subordinado à administração pública e passa a se chamar Hospício Nacional de Alienados. Nesse período a loucura passa a ser amplamente medicalizada, o tratamento continuava a ser baseado no isolamento social, agora amplamente acompanhado por psiquiátras e vários Estados do país incorporaram colônias agrícolas aos hospitais psiquiátricos, como forma de incorporar o labor ao tratamento dos doentes (Resende, 2007). No início do século XX no Brasil, como aconteceu nas sociedades ocidentais com história anterior de industrialização, desenvolvimento e ascensão do modo de vida burguês, a internação e os hospitais psiquiátricos aparecem e se multiplicam, respaldados pelo poder médico psiquiátrico como ferramenta de controle social e medida de exclusão das subjetividades desviantes, mas muito bem disfarçados pelo discurso medico de produção de cuidado. Foucault (2010, p. 266) é categórico ao afirmar que: “Se essa medicalização se produziu foi por razões essencialmente econômicas e sociais: foi assim que o louco foi 75 identificado ao doente mental e que uma entidade chamada de doença mental foi descoberta e desenvolvida”. Em 1903, Rodrigues Alves, então presidente dos Estados Unidos do Brasil, assina o decreto de número 1.132, que em 22 de dezembro daquele ano reorganiza a assistência a alienados no país. O decreto instaura, entre outras deliberações, a de que seja comprovada a moléstia mental (o que assegura à classe médica poder de decisão e influência jurídica sobre os loucos); que os doentes mentais não sejam conduzidos às cadeias ou sejam mantidos junto com criminosos (e isso legitima a criação dos manicômios judiciais ou prisões perpétuas disfarçadas de hospitais); a separação de doentes por gênero (para evitar promiscuidade de sexos); a classificação nosológica e diagnóstico médico; por fim, institui as regras para abertura e funcionamento de manicômios públicos e privados (BRASIL, 2011). No mesmo ano, o médico baiano Juliano Moreira, enquanto diretor do Hospício Nacional de Alienados, 50 anos antes inaugurado como Hospício Pedro II, garantindo a expansão do modelo de psiquiatria alemão no Brasil contribui para a interlocução entre o gerenciamento dos hospícios e o ensino de psiquiatria no país e defende a concepção modernizante da ciência psiquiátrica, influenciando a legislação e o cumprimento do novo modelo de assistência (Oda e Dalgalarrondo, 2011). Em 1923, ano em que o primeiro modelo previdenciário (as Caixas de Aposentadorias e Pensões) é legislado no Brasil, é também criada a Liga Brasileira de Higiene Mental, acompanhando a evolução do movimento higienista no país e das práticas reformistas de saúde. Em 1930, os manicômios brasileiros eram espaços de exclusão sobre os quais se depositava a crença de espaço de cura, em cujo interior práticas terapêuticas e tentativas de cura eram experimentadas, entre elas o choque insulínico, a lobotomia e os clássicos choques elétricos. Na década de 1940 as colônias instituíam o trabalho e o treinamento de funções 76 sociais, como tentativa de reinserção social (ou condicionamento dos loucos aos modos de produção socialmente aceitos). O processo brasileiro de medicalização e institucionalização da loucura se amplia no início do século XX, assim como se dá o avanço de políticas médico-higienistas (como por exemplo a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental – LBHM, em 1923) e avanço da medicina social, do sanitarismo e esquadrinhamento urbano em função do desenvolvimento, fazendo com que as elites precisassem se responsabilizar por políticas de educação e saúde (Facchinetti & Muñoz, 2013). As palavras de ordem da liga eram “controlar, tratar e curar”, considerando a doença mental como consequência da degeneração de uma parcela (pobre) da sociedade, em 1941 começou a funcionar o Serviço Nacional de Doenças Mentais – SNDM, vinculados ao Ministério de Educação e Saúde criado no governo Vargas. Nesse período hospícios famosos como o Hospital de Alienados (Rio de Janeiro), a Colônia Juqueri (São Paulo) e São Pedro (Porto Alegre) eram referência na assistência psiquiátrica e embora existissem hospitais e ambulatórios particulares, sua quantidade no país era incipiente. Em 1941 o Brasil tinha 62 hospitais psiquiátricos em seu território, vinte anos depois já eram 135 e em 1971 haviam 341 hospitais (BRASIL, 2011). Entre 1940 e 1950, o número de hospitais psiquiátricos públicos no país foi ampliado, em parte pelo decreto de número 8.555 de 3 de janeiro de 1946 que autorizava convênio do SNDM com os Estados para a construção das instituições, como também pela determinação de 1945 do Código Brasileiro de Saúde que reconhecia a categoria de hospital psiquiátrico e retirava as denominações de asilo, retiro ou recolhimento. Nesse período, técnicas como a isulinoterapia, eletroconvulsoterapia, choque cardiozólico e psicocirurgia, considerados como modernos procedimentos psiquiátricos, passaram a ser aplicados aos internos dos hospitais (Paulin e Turato, 2004). O uso de psicotrópicos passa a ser amplamente difundido a partir da década de 1950 e ganha 77 massiva adesão fora do contexto dos hospitais psiquiátricos. A difusão do uso de psicotrópicos, segundo Amarante (1995), constitui um marco da psiquiatrização13 social. As décadas de 1960 e 1970, período da ditadura militar no Brasil é marcada por planos de desenvolvimento e crescente intervenção e controle do Estado sobre a população do país (Schneider, 2013). Na década em que a psiquiatria comunitária americana cunha e difunde o termo saúde mental em oposição ao de doença mental, o Brasil vivia um paradoxo, uma vez que havia, por um lado, o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais fomentando os macro hospitais públicos, mas por outro lado, o Ministério de Previdência Social custeando a compra de leitos em hospitais privados com recursos do Instituto Nacional de Previdência Social - INPS. O custeio de leitos privados pelo INPS possibilita que, até o final da década de 1970, 70% dos leitos psiquiátricos do país estivessem nos hospitais psiquiátricos privados (Amarante, 1995). Trata-se da afirmação da paradoxal situação da saúde mental no Brasil: havia então um movimento que percebia a internação e o formato manicomial como uma violência, como estéril e infrutífera, mas atravessado, confrontado e abafado pelo crescente e desordenado investimento de dinheiro em leitos privados. É importante ressaltar que foi nesse contexto, durante a ampliação de leitos psiquiátricos no país, facilitados pelo investimento na esfera privada, que o hospital no interior do Ceará pôde ser aberto. Percebe-se claramente o quanto a lógica mercantil, a lógica do lucro e imperativo capitalista se sobrepõe ao bom senso, confundindo-se e determinando o sentido da preservação da vida. A indústria da loucura se afirma no Brasil, o panorama com relação à loucura é calamitoso mas, sob a égide do progresso, os hospitais psiquiátricos privados se multiplicam no país, mesmo num momento em que já eram mundialmente criticados. 13 Assim como Amarante (1995), também Foucault (2008) considera a psiquiatrização como um fenômeno de expansão das classificações nosológicas e uso de medicação psicotrópica (a partir de 1950) fora dos hospitais psiquiátricos. Dessa forma, quando se fala em psiquiatrização, trata-se do fenômeno amplo de aumento do alcance do poder da psiquiatria que passa a não se destinar mais, e apenas, aos loucos. 78 O que acontece no país é a completa apreensão da loucura pela medicina e suas práticas. A assistência psiquiátrica no Brasil atende à dualidade entre dar conta de uma problemática social e investigar ou produzir cuidado para algo que foi considerado como condição clínica/médica. Nesse sentido, ela constitui-se, sem dúvida, como um dos dispositivos centrais da forma de funcionamento biopolítico de nossas sociedades. O novo século assinala no Brasil a transição do alienismo para a psiquiatria, do modelo de asilamento para o modelo de assistência psiquiátrica hospitalar (leia-se manicomial, mas com o aparato de serviço de saúde necessário à população) e também dos hospitais majoritariamente públicos para os serviços privados. Esse momento de institucionalização da loucura e afirmação da psiquiatria enquanto dispositivo de saber-poder sobre os loucos é também momento de intensas transformações políticas no país e no ordenamento das cidades (Amarante, 1997). Esse panorama era perceptível no município do Crato, uma vez que a cidade crescia e se organizava aos moldes dos grandes centros urbanos, esse processo inclui o controle dos corpos e regimento da vida conforme as normas sociais. Não à toa a localização geográfica dos prédios construídos para abrigar os loucos se dava nos limites periféricos das cidades, longe das residências, longe do contexto de normalização cotidiana que o progresso exige. Dessa forma, conforme o objetivo inicial desse capítulo, foram apresentados os acontecimentos e atravessamentos que possibilitaram a ampliação do número de hospitais psiquiátricos, sobretudo os hospitais privados no país. As transformações políticas e nos modelos de governamentabilidade, desde a chegada da família Real, passando pela República até a eclosão de um golpe militar foram, sem dúvidas, determinantes para o direcionamento da assistência psiquiátrica. O cenário de ampliação dos leitos psiquiátricos é constituído por políticas públicas que não preconizavam a saúde como direito dos cidadãos e dever do Estado, os hospitais psiquiátricos (a despeito dos avanços de práticas reformistas pelo mundo) ainda 79 apareciam como solução para a assistência psiquiátrica no Brasil, corroborando com o ideal higienista. É nesse contexto que a ideia de abrir um hospital psiquiátrico na cidade do Crato surge como inovação e recebe apoio como sinal de modernização e progresso, esses são os elementos que possibilitaram a abertura da Casa de Saúde Santa Teresa. No entanto, no período em que as práticas de internamento foram maximizadas no Brasil, mundialmente já se construíam sobre a internação e o manicômio uma série de críticas pertinentes e que deveriam garantir o desmonte da lógica de exclusão. Essas críticas, conforme trataremos no próximo capítulo, são marcos fundamentais da Reforma Psiquiátrica brasileira e fazem com que a existência da Casa de Saúde Santa Teresa e de tantos outros hospitais com o mesmo caráter no país nascessem, tivessem seu momento de ascenção e apogeu e fossem desmontados. 80 Capítulo 3 O funcionamento nos anos de ouro, ou Do que nasce com um fim anunciado Foto 14: Antiga Casa do Noviciado. Arquivo da Congregação das filhas de Santa Teresa. Ano estimado, 1965. 81 Esse capítulo trata do recorte de tempo entre os anos de 1970, quando da inauguração da Casa de Saúde Santa Teresa, até o final da década de 1990, período em que as alterações na Constituição Federal e no modelo de saúde do país, após anos de crise e sucateamento, resultam em mudanças severas na organização dos dispositivos de saúde. Não por acaso, os anos de sucateamento na saúde, durante e após o regime militar, foram justamente os anos de maior investimento do dinheiro público em instituições privadas. Durante esses anos, a Casa de Saúde Santa Teresa viveu seus anos de ouro, teve novas instalações construídas e chegou ao número médio de quatrocentos internos. A Casa do Noviciado O prédio da Casa do Noviciado da Congregação das Filhas de Santa Teresa foi construído no ano de 1925, com apartamentos anexos à Casa de Caridade do Crato. As instalações abrigariam as congregadas filhas de Santa Teresa a fim de que chegassem à perfeição religiosa. O edifício que foi inaugurado no mês de setembro do mesmo ano sob as bênçãos do bispo D. Quintino - que na ocasião afirmou ser aquele o “primeiro ninho das filhas de Santa Teresa de Jesus”, “casa de Deus, porta do céu” – acolheu o ideal caritativo das religiosas por 44 anos, até ser alugado no ano de 1969 por Dr. Eligio Abath para que lá se instalasse o hospital psiquiátrico do Crato (Jornal A Ação, 1975). No dia da inauguração do empreendimento, pessoas da elite do Crato compareceram à instituição e como a igreja sempre esteve diretamente ligada à gestão do município e à sua organização social, no dia 21 de junho de 1970, dia do município, o bispo D. Vicente celebrou uma missa de ação de graças e na ocasião enalteceu os médicos fundadores - Dr. Elígio Abath, Dr. Maurício Teles e Dr. Carlos Barreto - pela arrojada iniciativa de inauguração do 82 nosocômio que recebeu o nome de Casa de Saúde Santa Teresa, em homenagem à fundação religiosa e caritativa para a qual o edifício fora originalmente construído. As primeiras instalações contavam com cinquenta leitos, divididos em três pavilhões: Pavilhão Madre Ana Couto (fundadora da congregação das filhas de Santa Teresa), Pavilhão Dr. Zaqueu Esmeraldo (psiquiatra cratense) e Pavilhão Dr. Xavier de Oliveira (psiquiatra juazeirense). As publicações daquele ano, na revista Itaytera e Jornal A Ação, anunciavam as modernas instalações disponibilizadas para tratamento de doenças nervosas e mentais, contando com os recursos mais modernos da ciência para tratar seus pacientes; informavam acerca do credenciamento ao Instituto Nacional de Previdência Social - INPS; assinalavam, por fim, o cuidado direto da administração da Casa de Saúde pelos médicos fundadores e suas respectivas esposas. Foto 15: Jornal A Ação, 1970. A inauguração da Casa de Saúde Santa Teresa, no ano em que o Brasil foi tricampeão mundial no futebol e que a tv-a-cores passou a se tornar popular no país, significava para o município do Crato a afirmação do seu desenvolvimento e avanço. A edição da Revista Itaytera do ano de 1970 ressaltava a importância dos serviços de saúde para que o Crato se 83 tornasse um centro evoluído - assim como as capitais federais - e ressaltava também a relevância do movimento cultural e educacional da cidade: Crato não é somente sede de intenso movimento de cunho educacional e cultural a despertar a atenção de meios evoluídos, até do sul do país. No setor hospitalar, médico, odontológico, é dos centros mais evoluídos do interior, possuindo agora seis modernos equipamentos hospitalares, várias policlínicas, gabinetes de análises, além de consultórios bem aparelhados, com movimento intenso de intervenções e clínica intensa especializada, como em qualquer capital. Nas edições do jornal A Ação dos anos de 1970 a 1973 eram frequentes as propagandas (vide foto 16) dos serviços prestados pela nova unidade de saúde. A mídia impressa da época noticiava os serviços disponibilizados pela nova instituição hospitalar, assim como fazia alusão aos eventos e datas comemorativas. Conforme propaganda vinculada no Jornal A Ação, a Casa de Saúde, Clínica de Repouso, oferecia modernos tratamentos para as doenças mentais, entre eles a chamada Cerlletiterapia14 ou Terapia Eletro Convulsiva. Tal como Foucault assinala em sua História da loucura (1986), a instalação da Casa de Saúde Santa Teresa, na cidade do Crato, também constitui um notável deslocamento histórico do ponto de vista da região: a loucura (e/em suas variações) deixa de ser tratada apenas como o avesso da razão, uma desrazão que delineia o fora de todo e qualquer pensamento sensato, para tornar-se território de domínio estritamente médico. Em outras palavras: a loucura entra, no sertão do Cariri, definitivamente para o campo da doença mental, ficando a partir de então disposta às intervenções de controle e cura dos dispositivos de saber/poder psiquiátrico regional. É possível identificar dois tipos de intervenção no espaço hospitalar para a loucura. De acordo com Foucault (2006) uma delas, a prática médica ou medicamentosa, não era 14 Referencia a Ugo Cerlleti, especialista em neurologia e neuropsiquiatria, contemporâneo de Emil Kraepelin e Alois Alzheimer, inventor do método de eletroconvulsoterapia. 84 qualificada até metade do século XIX. Como sabemos, os psiquiatras levaram um tempo até conseguir equiparar suas práticas às práticas médicas gerais, utilizando remédios e realizando práticas de cura cujos resultados fossem visíveis (no comportamento, no ajuste do louco às normas e ritos sociais), regulares e respondessem a valores cognitivos já estabelecidos pela medicina como ciência (Vasconcelos, 2008). O problema da não localização física da loucura e de difíceis (ou impossíveis) indícios de cura permanente, criou para os psiquiatras um problema que só ganhou solução a partir da década de 1950, com o advento dos antipsicóticos e seus resultados notáveis nos sintomas positivos15 da psicose, como no largo uso não hospitalar das benzodiazepinas, sobretudo entre as mulheres. Foto 16: Jornal A Ação, 1971. 15 São considerados pela classificação psiquiátrica como sintomas positivos as alucinações e delírios, por serem facilmente identificados no discurso dos psicóticos, em contraposição aos sintomas negativos, que dizem respeito ao embotamento afetivo ou isolamento social. Não é estranho que a intervenção medicamentosa se considere eficaz por incidir justamente nos sintomas que mais causam incômodos sociais. 85 A outra forma clássica de intervenção, o tratamento moral, mantinha sua eficácia e perdurou na reprodução da segregação, na retirada do corpo do louco do meio social, para que isolado e hospitalizado ele pudesse ser curado/controlado. Antes de ser inaugurado como espaço de tratamento médico para os loucos, o manicômio já era um espaço onde relações e táticas de força eram utilizadas para dominar o corpo do louco e reduzir o incomodo que sua figura causava socialmente (Foucault, 2005). A instituição se configura como um espaço coercitivo e moral, que funciona como um mecanismo de dominação da vida, responde a imperativos políticos, à consolidação das formas de vida sob a égide do sistema capitalista. A exclusão de pessoas a partir da lógica manicomial no Brasil mantém o mesmo formato descrito por Foucault tantos anos antes. A força da loucura, institucionalizada como doença mental, é submetida a um poder anônimo, capilar e com focos locais - o discurso psiquiátrico, as práticas terapêuticas e o hospital. Curar é a forma de submeter a experiência e o sujeito da loucura ao controle social. Dessa maneira, o dispositivo de poder psiquiátrico se consolida como instância produtora e gestora de um saber sobre o homem. Sublinhe-se, como esperamos ter deixado claro, como esses discursos sobre a loucura mostram-se indissociáveis das demandas políticas e do exercício de poder governamental em nosso tempo (Foucault, 2006). Tempo que não apenas julgou necessário e benevolente que se instalasse um hospital psiquiátrico no município do Crato, mas que também não deixou de reafirmar incessantemente sua necessidade, respaldando a continuidade de sua existência. Antes da apropriação da loucura pela classe médica no Cariri, o tratamento disponível aos loucos pobres era a cadeia pública, as ruas ou, quando possível financeiramente para as famílias, o terror das sessões de eletroconvulsoterapia. Nas décadas de 1940 e 1950, antes da Casa de Saúde Santa Teresa, havia no Hospital São Francisco de Assis - instituição de caráter 86 religioso - uma ala para tratamento psiquiátrico. Lá também eram aplicadas as sessões de eletroconvulsoterapia coordenadas por Dr. Maurício Teles, psiquiatra cratense que anos depois seria também sócio da Casa de Saúde Santa Teresa. No entanto, por se tratar de um hospital geral, o Hospital São Francisco de Assis não dispunha de leitos para internamentos psiquiátricos. Assim, os familiares traziam seus doentes para as sessões, vindos muitas vezes de munícipios distantes ou estados vizinhos e precisavam levá-los de volta ao fim das sessões. Esse formato, ou seja, apenas as sessões de eletroconvulsoterapia e a ala psiquiátrica pequena do hospital São Francisco, estavam longe de dar conta de toda a demanda da região e de responder à solicitação social pela cura e controle da loucura, sobretudo para que isso não atrapalhasse o desenvolvimento da cidade e não fizesse o Crato sair dos trilhos do progresso. A inauguração da Casa de Saúde Santa Teresa põe fim ao problema dos internamentos na região do Cariri e, por ser credenciada ao INPS16, facilitava o acesso e atendimento às camadas mais pobres da população. Dessa forma, a instalação da unidade de saúde foi também considerada pela população geral e seus governantes como uma benfeitoria, colaborando com o crescimento do município. O governo municipal, em tempos de ditadura militar e vigência do Ato Institucional de número 5 - AI-5, tecia elogios ao progresso e ao desenvolvimento da cidade para que ela, enfim, fosse considerada como um grande centro urbano. Nessa época, foi inaugurada uma sede do partido Arena, com grande número de filiados. Prolifera-se, então, as notícias elogiando os presidentes militares e nada se publicava sobre manifestações de insatisfação popular, violência, tortura ou desaparecimento de pessoas. O teor das matérias, citando 16 16 O modelo previdenciário no país foi gerido pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões até o ano de 1966 quando foi fundado o Instituto Nacional de Previdência Social, assim as categorias foram unificadas, a cobertura previdenciária ampliada a outras categorias profissionais e sua gestão promovida pelo Estado 87 sempre os progressos sociais da região, festividades e feitos da política local, mantinha como imperativo as solicitações para manutenção da ordem e evolução da cidade. Tudo o que pudesse atrapalhar o rumo de desenvolvimento deveria ser controlado ou coibido. No ano de 1970, segundo o Jornal A Ação, o Crato possuía 71 mil habitantes, grande maioria vivendo na zona urbana. Mas, entre esses habitantes, haviam pobres, moradores de rua e loucos, que continuavam causando incômodo, sobretudo às autoridades. Era para essa parcela da população, esses desvalidos, figurantes torpes e sem lugar social que era preciso dar um destino. Os primeiros cinquenta leitos do hospital psiquiátrico foram ainda muito pouco diante da grande soma de loucos e pobres, insuficientes para dar lugar a toda a demanda do Cariri e regiões circunvizinhas. No ano de 1971, um ano após a inauguração da Casa de Saúde Santa Teresa, a polícia ainda era responsável pela contenção dos loucos na cadeia pública. A edição de 3 de julho de 1971 do jornal A Ação noticiava que: A cadeia pública do Crato não suporta o número de débeis mentais soltos nas ruas do Crato. O Cel. Raimundo Pereira informou que as celas daquela delegacia não oferecem condições de segurança e espaço. No início da semana a polícia iniciou uma batida contra os débeis mentais que perturbam a tranquilidade da cidade, mas foi obrigada a suspender a campanha por que os marginais estavam danificando as paredes da cadeia pública. Informou, ainda, que os familiares dos débeis mentais não dispõem de recursos para interná-los em Fortaleza (Jornal A Ação, 1971). De acordo com dados da Divisão Nacional de Saúde Mental - DINSAM (1972) - o Ceará dispunha, no ano da fundação da Casa de Saúde Santa Teresa, de 1426 leitos para internamento psiquiátrico, todos localizados no centro oeste e capital do Estado. Até então o interior do Estado permanecia desassistido e o mesmo acontecia com os Estados vizinhos. Dessa forma, a existência de um hospital psiquiátrico no Cariri, financiado com recursos públicos, atendia não apenas às demandas de saúde do município, mas também à de outros 88 Estados. A instalação desse hospital significava a conformação de um modelo médico privatista em saúde típico desse período e também atendia às determinações administrativas e governamentais higienistas e organizadoras do espaço público. Foto 17: Jornal A Ação, 1971. No contexto de investimento de recursos públicos a instituições privadas a Casa de Saúde Santa Teresa encontrou recursos para ampliar seus serviços e continuar existindo. Funcionou no edifício da antiga casa do noviciado, alugada à diocese, por dezesseis anos, até 25 de abril do ano de 1986, quando migrou para suas instalações próprias. A construção de uma nova sede não aconteceria facilmente sem investimentos públicos, os sócios adquiriram um terreno amplo, localizado em um bairro distante do centro da cidade, propício para instalação de um dispositivo psiquiátrico. Financiada com recursos da união, a Casa de Saúde ampliou seu funcionamento. O mesmo não aconteceu apenas com esse hospital do interior do Ceará, esse tipo de política havia começado anos antes no Rio de Janeiro. 89 As facilidades do modelo médico privatista e o movimento de Reforma Psiquiátrica A Casa de Saúde Dr. Eiras, inaugurada no Rio de Janeiro no ano de 1960, foi a primeira instituição psiquiátrica de caráter privado no país. Até esse marco, a assistência psiquiátrica era prestada (aos pobres e desvalidos) em instituições públicas. Durante os anos de 1941 a 1954, a administração do Serviço Nacional de Doenças Mentais – SNDM - ficou a cargo de Adauto Botelho e se caracterizou pela ampliação de leitos e dos hospitais psiquiátricos públicos. O decreto de lei 8.550, de 3 de janeiro de 1940, garantia a parceria entre as esferas estaduais e o governo federal para a construção desses hospitais. Em 13 anos foram 16 mil leitos psiquiátricos públicos a mais e a colônia de Juqueri chegou ao total de 13 mil internos (Paulin e Turato, 2004). No entanto, esses hospitais públicos atendiam com mais especificidade a pobres e indigentes, deixando descoberta a parcela da população brasileira que exercia ofícios reconhecidos pelo Ministério do Trabalho e que já constituía a parcela de contribuintes previdenciários do país. No ano de 1950, o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos comerciários – IAP - concedeu empréstimo à Casa de Saúde Dr. Eiras para a construção de um pavilhão específico para previdenciários. Esse convênio, conforme afirmam Palvin e Turato (2004), pode ser o marco inicial das internações em hospitais particulares por meio da hospitalização de previdenciários, sendo depois ampliado para acesso da população em geral, quando o sistema previdenciário passou a ser gerido pelo Estado e tornou-se Instituto Nacional de Previdência Social – INPS. A Casa de Saúde Santa Teresa já nasce financiada pelos recursos do INPS, como forma de atender, na rede privada, uma vez que não haviam leitos suficientes em hospitais 90 públicos (apesar da intensa ampliação de leitos nessas instituições), as necessidades da população. Durante os anos de ditadura militar no país foi crescente a regulação e intervenção do Estado para execução dos mecanismos privados na saúde, direcionamento político- econômico que garantiu a manutenção do financiamento pelo INPS à iniciativa privada, ao invés do aumento de hospitais públicos ou construção de uma rede própria. Podemos afirmar que o modelo médico privatista facilitou a institucionalização da loucura no país. No Cariri cearense foi possível atender à solicitação de solução para os loucos que circulavam pelas ruas da cidade do Crato e municípios vizinhos, uma vez que a ampliação de leitos na Casa de Saúde Santa Teresa se tornou viável e encontrou no Estado o facilitador/financiador que era necessário para isso. Em 1971 o Brasil dispunha de 341 hospitais psiquiátricos, entre esses apenas 72 eram públicos. No ano de 1981 haviam 430 hospitais, sendo 73 de caráter público (DINSAM, 1972). Como podemos perceber, havia de um enorme crescimento dos hospitais e compra de leitos privados mas, havia também um grande descontentamento com o panorama político e a repercussão desse modelo em todas as esferas sociais, inclusive na saúde. A década de 1970 foi marcada por intensas contradições e embates no campo da Saúde Mental. Na mesma medida em que a política brasileira facilitava a abertura de novos hospitais e financiava leitos privados, também haviam tensões para a reformulação nas práticas e serviços. A psiquiatria de setor e comunitária, sobretudo os modelos europeu e norte americano, serviram de inspiração ao Brasil. Nessa década, a ideia de cidadania do louco, os debates sobre as internações em massa e seus longos períodos, assim como as duras críticas às estruturas físicas deficientes e a violência da institucionalização, tornaram-se contradiscursos correntes. Os modelos de assistência baseados nas comunidades terapêuticas da Inglaterra e a 91 psiquiatria institucional francesa, além do modelo alemão incentivado por Juliano Moreira, passam a ser referências para a psiquiatria brasileira (Amarante, 1995). Essas influências significam o nascimento de uma vertente crítica ao isolamento social da loucura que baseava a estrutura asilar no Brasil, significam também o movimento de tensão para romper com a lógica de uma psiquiatria baseada em classificações nosológicas e institucionalização. Assim, a crítica de Basaglia (1985) aos corpos vividos na instituição e pela instituição ganha força e o movimento de desinstitucionalização viria num futuro próximo a inspirar os trabalhadores em saúde mental do país. Lembremos, nesse sentido, como Basaglia (1985, p.120) afirma que: O doente mental é um excluído que, nos termos da sociedade atual, jamais poderá opor-se àqueles que o excluem, pois cada um dos seus atos passa a ser limitado e definido pela doença. Por isso só a psiquiatria, com sua dupla função médica e social, tem condições de mostrar ao doente o que é doença e como o tratou a sociedade, que o excluiu. Somente através da tomada de consciência do fato de ter sido excluído e rejeitado, o doente mental terá condições de se reabilitar do estado de institucionalização a que foi forçado.(...) Pois é aqui, atrás dos muros dos manicômios, que a psiquiatria clássica demonstrou sua falência, no sentido em que resolveu negativamente o problema do doente mental, expulsando-o de seu contexto social, excluindo-o, portanto, de sua própria humanidade. Não se trata aqui, é certo, de citar ou descrever minuciosamente os eventos e medidas políticas que facilitaram a emergência da Reforma Psiquiátrica brasileira nas décadas de 1970 e 1980. Entretanto, alguns marcos são importantes para que se possa considerar esse movimento, entre eles destacamos: O I Congresso de Psiquiatria, realizado em São Paulo no ano de 1970, onde se discutiu a ampliação mundial da perspectiva preventivista em saúde mental; A contratação da Comissão Permanente para Assuntos Psiquiátricos – CPAP, pela Secretaria de Assistência Médica do INPS no ano de 1971, para estudar em âmbito nacional a reformulação dos serviços e assistência psiquiátrica; A elaboração do Manual de serviço para assistência psiquiátrica, que no ano de 1973 privilegiava a assistência na comunidade e 92 atendimento extra-hospitalar17; A portaria 32, de 1974, que coloca a DINSAM como órgão normatizador e preconiza os princípios da psiquiatria comunitária; e a IV Conferência Nacional de Saúde que, no ano de 1977, implementa o Plano Integrado de Saúde Mental (Messas, 2008). Outros fatores podem ser citados como elementos importantes e constitutivos do movimento de reforma, entre eles a crescente insatisfação popular com o sucateamento dos serviços de saúde a e força dos movimentos populares contra as ações da ditadura que urgiam por reformas políticas. Além disso, é importante pensar na criação do Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM, que teve seu primeiro congresso no ano de 1979, e nos constantes protestos, críticas e intervenções que passaram a acontecer (inicialmente) nos hospitais psiquiátricos públicos (Messas, 2008). Em 1986, a oitava Conferência Nacional de Saúde estabelece as propostas que seriam implementadas na Constituição Federal de 1988 e no ano de 1987. Contudo, mesmo antes que a nova constituição entrasse em vigor, o primeiro Núcleo de Atenção Psicossocial – NAPS foi inaugurado em São Paulo como proposta de descentralização da atenção psiquiátrica e efetivação da proposta de desmantelamento da ênfase de atendimentos prestados nos hospitais psiquiátricos (Costa-Rosa, 2000). O resultado das ações reformistas passa a ser sentido entre os anos de 1990 e 2000, um dado para sustentar essa afirmação é a quantidade de hospitais psiquiátricos no Brasil: em 1981 eram 430, dez anos depois, em 1991 o número diminuiu para 313 e em 1997 chegou a 256. Ainda assim, a partir de 2001, quando sancionada a lei 10.21618, os impactos foram ainda maiores e foi possível efetivar o fechamento de muitas unidades hospitalares, sobretudo privadas, que se mantinham funcionando. 17 Preconizando o modelo de atenção primaria, secundaria e terciaria que mais tarde se conformaria com a Constituição Federal de 1988 e implementação do Sistema Único de Saúde. 18 Conforme citado na introdução desse trabalho, a Lei 10.261 de 2001, define a redução gradual de leitos, estabelece critérios para a redução e redireciona os recursos financeiros para a rede extra-hospitalar. 93 As décadas de 1970 a 1990: anos de ouro da Casa de Saúde Santa Teresa No Cariri cearense esse período foi marcado pela expansão e ampliação do número de leitos em hospitais privados, não apenas no hospital psiquiátrico. No ano de 1973 o Hospital infantil Monsenhor Pedro Rocha e o Hospital Manuel de Abreu foram também credenciados ao INPS. Essas empresas foram fundadas, sobretudo, por médicos e se multiplicaram em todo o país, aproveitando o momento histórico de sucateamento da saúde pública. Não necessariamente os donos desses empreendimentos deveriam ter formação clínica na área de seus investimentos, bastava que tivesse capital para começar o negócio e credenciá-lo à previdência. O Dr. Elígio Abath, por exemplo, sócio fundador do hospital psiquiátrico, era também sócio do hospital pediátrico e, posteriormente, de uma clínica de fisioterapia, também credenciada ao INPS. Entre os sócios da Casa de Saúde Santa Teresa, apenas um era psiquiatra, os outros dois eram clínicos gerais. Foto 18: Jornal A Ação, 1973. 94 O Dr. Mauricio Teles havia estudado no Recife, exercido seu ofício de médico no Piauí e retornou para o Crato em 1948, ano em que instalou sua clínica particular e começou a atuar no Hospital São Francisco de Assis, a primeira unidade a dispor de atendimentos psiquiátricos na região. O hospital, como já dito, possuía uma pequena ala psiquiátrica que não dispunha de leitos para internamento, mas oferecia tratamentos como a eletroconvulsoterapia e choque insulínico. Junto com Dr. Elígio Abath e Dr. Carlos Barreto, o Dr. Maurício Teles foi responsável pela empreitada de instalação da unidade psiquiátrica no Cariri cearense, no entanto, é irônico pensar que o único psiquiatra entre os sócios do hospital psiquiátrico do Cariri acompanhou apenas os primeiros quatro anos de existência da Casa de Saúde. No dia 4 de agosto de 1974 a cidade do Crato recebeu a notícia do falecimento do médico. O jornal informava que após passar um mês de repouso numa praia perto da capital do Estado, o médico e sua família voltaram ao Crato, mas haviam decidido passar o final de semana em sua casa no sítio, distante cerca de 30 km da zona urbana. Durante a noite o médico passou mal, mas voltou a dormir. Só pela manhã, quando sua esposa - Helenita Teles - foi chamá-lo para o café da manhã é que pôde perceber que ele já estava sem vida. A morte súbita do psiquiatra consterna a comunidade, mas não impede, nem de longe, que a Casa de Saúde continue a crescer e aumentar seu número de leitos. A morte prematura do psiquiatra sócio-fundador da Casa de Saúde não gerou entraves ao seu crescimento, uma vez que a função social do dispositivo ultrapassa a figura do médico e tem alicerces profundos e fortes. À época, outros psiquiatras, a saber: Dr. Maurício de Almeida, Dr. Francisco Ridalvo Rocha e Dr. José Abagaro passaram a compor a equipe de profissionais da instituição. Os novos médicos não eram sócios, mas contratados pelos donos da instituição enquanto prestadores de serviço. 95 Foto 19: Jornal A Ação, 1984. A esses médicos competia a decisão sobre a quantidade de dias de internamento, que procedimentos e medicamentos seriam mais adequados a cada caso e, mais do que isso, o completo controle sobre o corpo dos loucos, o que inscrevia a desapropriação dessas pessoas de suas próprias vidas. A loucura catalogada e diagnosticada como doença mental torna o corpo do louco/doente propriedade do poder/saber médico (Foucault, 2006). Para a comunidade, deixar os loucos/doentes sob cuidados médicos significava garantir-lhes um lugar adequado. Dentro dos pavilhões essas pessoas encontravam seu lugar e a sociedade poderia adormecer tranquila, acreditando na função social do hospital, na generosa ação que acolhe e dá lugar aos miseráveis que antes perambulavam pelas ruas ou superlotavam as celas da cadeia pública. O certo é que a demanda para o hospital era crescente e o financiamento também. Precisamente por esses motivos, o edifício da casa do noviciado ficou pequeno e em alguns anos já não comportava adequadamente os serviços prestados pela Casa de Saúde aos seus internos. Durante a década de 1970 e início da década de 1980, o hospital comportava cerca de 80 internos. Foi nesse período que os sócios perceberam a possibilidade de ampliação do 96 hospital e conseguiram recursos para a compra de um terreno e construção de uma nova e maior sede. Em abril do ano de 1985, a Casa de Saúde Santa Teresa migrou para suas instalações próprias, deixando de funcionar no edifício da casa do noviciado. Localizada no bairro Vilalta que à época era quase desabitado, com vista para a Chapada do Araripe e com uma estrutura física ampla, o novo prédio foi construído para atender às necessidades de uma instituição manicomial na época, incluindo postos de enfermagem, salas de atendimento para a equipe multidisciplinar e médicos, arquivo, setor administrativo e, principalmente, dispor de espaço para mais leitos. O pequeno prédio da casa do noviciado que podia comportar no máximo 80 leitos fora substituído por um prédio que podia comportar 400 internos. O novo prédio19, lugar onde a Casa de Saúde funcionou até o seu fechamento, dispunha de dois pavilhões, um destinado aos internos do sexo masculino e outro para as mulheres. Os dois pavilhões possuíam enfermarias, salas para atendimento individual e para grupos, salas de arte, pátios, área de lazer, sistema de som e televisão e uma rádio. A fachada do hospital foi planejada para que o lugar tivesse ares de casa de repouso e não de unidade hospitalar. Na entrada do hospital, a recepção dava acesso ao pavilhão administrativo, o corredor desse pavilhão ia, de um lado, dando acesso às portas do arquivo, da sala da direção, da farmácia e do auditório (ou sala de reuniões); do outro lado estavam os consultórios dos médicos, quarto dos médicos plantonistas e sala de enfermagem. Entre os pavilhões masculino e feminino existia uma cozinha e refeitório amplos, cujo acesso era possível aos dois pavilhões. Nas novas instalações o setor de governança, lavanderia e manutenção também foram organizados, permitindo que o hospital funcionasse bem e atendesse à crescente demanda. Se a Casa de Saúde já era referência no atendimento 19 Uma vez que não existem trabalhos anteriores sobre a Casa de Saúde e sua estrutura, essas informações tem como fonte a minha experiência no hospital. 97 psiquiátrico para a região e cidades vizinhas, com a ampliação passou a haver ainda mais espaço, agora os loucos não eram mais encaminhados para a cadeia pública e as pactuações financeiras entre municípios e Estados vizinhos garantiam o encaminhamento em massa dos ‘doentes’ ao hospital. O grande terreno onde a nova instalação foi construída terminava em um vale onde haviam plantações de cana de açúcar, havendo espaço ainda para uma horta que, embora não fosse utilizada pela direção para fins de laborterapia ou tratamentos baseados no trabalho, era mantida pelos internos (muitos eram agricultores) e funcionários da Casa de Saúde. Foto 20: Placa de inauguração das instalações próprias da Casa de Saúde Santa Teresa, 1985. Os médicos e suas esposas, administradores do empreendimento, assistiram ao crescimento de seu negócio e aumento do número de internos, de funcionários e de recursos. Nos anos de ouro das décadas de 1980 e 1990, a Casa de Saúde Santa Teresa funcionou em toda a sua potência. O número de pessoas provenientes do Pernambuco, Paraíba e Piauí aumentou consideravelmente, cresceu o número de atendimentos ambulatoriais, não eram 98 incomuns passeios e festividades, o número de funcionários foi ampliado, chegando a um corpo técnico de mais de duzentos profissionais. Como é sabido, o tempo de investimento do dinheiro público no modelo médico-privatista facilitou o crescimento e lucro dessas empresas (Vasconcelos, 2008). Foto 21: Jornal do Cariri, 1990. A Casa de Saúde funcionava sob administração dos médicos e suas esposas, que se orgulhavam do caráter familiar do empreendimento, acreditavam/afirmavam promover a melhor assistência possível aos internos. O fato de ser um hospital privado, administrado por três famílias (que certamente – como de fato aconteceu, passariam a administração do negócio a seus filhos), recebendo financiamento público, reafirma uma lógica de poder que migra, quase monarquicamente, entre os membros de um mesmo grupo, um poder circunscrito. Daí o interesse de manter a propriedade sob domínio privado, e, nesse caso, manter o poder 99 significava manter o hospital funcionando/lucrando, afirmando seu ótimo funcionamento e utilizando a justificativa falaciosa de que um empreendimento manicomial se tratava de uma utilidade pública, uma benfeitoria à população geral. Foto 22: Festividade no pavilhão masculino. Década de 1990. Dito isso, podemos agora expor uma síntese dos elementos discursivos e não- discursivos que constituíam as características singulares da Casa de Saúde Santa Teresa. O panorama político era o mais conservador possível, com o país saído de um regime militar e com os gestores do Crato apoiadores desse regime; o município era conhecido por seus investimentos em cultura e educação, logo não eram raros os festivais e havia um profundo interesse na expansão das escolas e universidade. Nessa época, por exemplo, a Faculdade de Filosofia do Crato já existia e dispunha de cursos superiores que atraíam os estudantes do interior; havia grande efervescência comercial e uma exposição agropecuária anual tornou-se uma tradição no município. Já a população que, em sua grande maioria residia na zona 100 urbana, elitizada, respaldava em seu discurso o desejo de viver numa cidade pequena, mas com os privilégios e a infraestrutura de um grande centro urbano (Revista Itaytera, 1970). Dessa forma, não é estranho pensar que nesse panorama a presença de loucos, mendigos e figuras infames fosse pouco tolerada. Esses discursos permeados por valores burgueses aliados às forças políticas conservadoras fizeram com que o hospital se tornasse necessário e se mantivesse como um símbolo eloquente da racionalidade administrativa da cidade. Ao mesmo tempo, o fato de se tratar de um município pequeno, localizado ao sopé de uma chapada, onde todos os seus habitantes reconheciam uns aos outros, gerava qualquer coisa de acalentadora ou uma ideia de acolhimento e cuidado a essas pessoas que passaram das ruas e cadeia para os pavilhões da Casa de Saúde Santa Teresa. Embora já tenha nascido num momento em que uma virada política acontecia no país e que todos desdobramentos reverberassem no Brasil como o eco do que já acontecia em outros lugares do mundo - o eco das primaveras20 - e isso significasse um imperativo de mudança, de transformação nas relações sociais, nas políticas de saúde e também transformações no campo da saúde mental, a Casa de Saúde Santa Teresa permaneceu funcionando, demorando a ser afetada pelo movimento de Reforma Psiquiátrica no país. O paradigma em saúde mental se transformava, mas o resultado dessa transição e de uma nova conjuntura de discursos e práticas não se aplicou imediatamente ao hospital que estava funcionando no interior do Ceará. Na década de 1980 o movimento reformista já havia conseguido a redução de leitos psiquiátricos no país, sobretudo em hospitais públicos (Bezerra, 2001). O imobilismo e dificuldade no âmbito privado se devia, entre outros fatores, à situação política e econômica do país, que no período posterior à ditadura não dispunha de instituições públicas que pudessem atender suficientemente à população. Triste ironia, o 20 Referencia às primaveras de Paris e Praga e sua influência nos movimentos sociais no Brasil (Ponge, 2009). 101 hospital psiquiátrico tido como signo de progresso apenas atestava o provincianismo e o descompasso da região em relação ao resto do país. Dessa forma, a década de 1990 gestava as mudanças na política, na economia e, dessa forma, também no sistema de saúde. Essas mudanças começavam a ser postas em prática: o investimento na saúde pública passava a ser prioridade, paulatinamente o país caminhava para o desmembramento da rede privada, para o fechamento dos hospitais privados, inclusive e com grande importância também o fechamento dos hospitais psiquiátricos (por serem obsoletos e violentos, por serem privados em sua maioria e gerar lucro a empresários). Novos dispositivos passaram a ser instalados em todo o território nacional, com o objetivo de substituir o modelo manicomial por um formato psicossocial de atenção e cuidado à Saúde Mental (Bezerra, 2004). Durante as décadas de 1970 a 1990, recorte temporal tratado nesse capítulo, a Casa de Saúde funcionou com o máximo de recursos, internos e funcionários. Se na década de 1970 o empreendimento psiquiátrico do Cariri era ainda embrionário, começando a funcionar, nos vinte anos seguintes atingiu seu apogeu. Como sabemos, na década de 1980 as medidas relacionadas à Reforma Psiquiátrica no país foram ampliadas e seus efeitos já eram sentidos com maior ênfase nos grandes centros urbanos do país, onde funcionavam os maiores hospitais. Nos anos de 1996 e 1997 a Casa de Saúde Santa Teresa sentiu os primeiros efeitos da reforma, com a redução de um bloco de leitos e redução das AIHs, que passaram a ser mais severamente controladas. No entanto, ainda não haviam possibilidades concretas de que a rede substitutiva destituísse a Casa de Saúde Santa Teresa do lugar de referência que ocupava na assistência psiquiátrica no interior do Nordeste. 102 Os habitantes da Casa de Saúde: corpos heterotópicos e segregação Chegando a esse ponto da análise dos elementos discursivos e não discursivos que fundam e fazem permanecer em funcionamento um hospital psiquiátrico, considero importante incluir - não apenas por uma questão ética ou pela preservação da memória, mas também por se tratar de uma questão importante para Foucault21 - uma parte desse trabalho que se destine aos sujeitos que, durante os quarenta e cinco anos de funcionamento, habitaram os pavilhões da Casa de Saúde Santa Teresa. Ao fim dos anos de existência do hospital, o que resta das dezoito mil22 pessoas que estiveram internas naquela unidade hospitalar são os registros em prontuários, as anotações e catalogações médicas que, em alguns anos, estarão perdidas. Diante da improbabilidade que os donos do hospital tornem acessíveis essas informações, esses registros de vidas se tornarão, certamente, alimento de traças, destruídos e devorados pela força do tempo. Seria gratificante poder construir um memorial, um álbum, uma possibilidade de encontro com todos os rostos e histórias dessas pessoas que entraram e saíram, adormeceram e acordaram entre aquelas paredes, que foram destituídos da possibilidade de escolher sobre si e sobre seu próprio destino. No entanto, como essa não é a função desse trabalho, incluo aqui, em memória desses mortos, uma análise ou consideração sobre os que foram enclausurados. Certamente não eram as paredes daquela unidade que constituíam o mecanismo de contenção e interdição dessas 21 Considera-se que após tratar exaustivamente em seus textos do saber e do poder, Foucault chega a uma terceira dimensão em seu trabalho: a do sujeito, ou modos de subjetivação. De acordo com Deleuze (2010): “Por que Foucault passa do saber ao poder? É possível responder, desde que se entenda que essa passagem não é apenas uma mudança de tema. Foucault parte de uma concepção original que ele se faz do saber, para inventar uma nova concepção do poder. O mesmo acontece, e com mais razão, no caso do “sujeito”: ele precisará de anos de silêncio para chegar, nos seus últimos livros, a essa terceira dimensão”. 22 Número baseado na quantidade de prontuários existentes no arquivo da Casa de Saúde Santa Teresa no ano de 2015. 103 pessoas, nem se trata de um acontecimento exclusivo aos internos da Casa de Saúde Santa Teresa. A contenção e submissão de todas essas pessoas à condição do internamento está alicerçada, como já foi discutido anteriormente, num mecanismo de força, num estratagema social perverso, que reduz o louco e o destitui de sua autonomia: o saber médico e o poder psiquiátrico. O louco, até o início da instauração de uma sociedade industrial e afirmação do capitalismo como modo de produção vigente, era uma figura comum ao cotidiano das cidades, seu status de sujeitos desprovidos de razão, componente humanizador da existência, não fazia com que fossem excluídos do convívio social ou totalmente postos à margem. Essa condição de desrazão, aproximada da loucura, dava ao louco um lugar mítico ou divino, visionário. A aproximação da loucura com a desrazão não as torna equivalentes, os desarrazoados constituem uma categoria ampla de tipos socialmente desviantes, o louco é um desses tipos. Ao passo que a organização social sofre seus trânsitos, a loucura e o louco são convertidos numa espécie de tipo desviante que, junto com outra sorte de miseráveis (doentes venéreos, ladrões, prostitutas) compõem uma galeria de tipos socialmente indesejáveis, por que falham ou não se adequam ao trabalho, às relações familiares, à linguagem vigente, em suma, aos jogos sociais. O caráter de insuportabilidade provocada por esses tipos, sua claudicância em relação ao ritmo próprio do ordenamento social, os condena à segregação e gera a sua retirada compulsória do convívio com as outras pessoas. A aproximação da loucura com o desvio moral mantém-se no tempo até que, enfim, a loucura seja considerada uma patologia e, dessa forma, um fenômeno apropriado pela medicina, mais precisamente pela psiquiatria (Pelbart, 1989). 104 Foto 23: Prontuários no arquivo da Casa de Saúde Santa Teresa. Diário do Nordeste, 2015. A loucura se torna, então, área de domínio médico, residindo e se materializando nos corpos de homens e mulheres que, alucinando e delirando, entregam-se pela linguagem aos critérios de diagnóstico que vão se ampliando e tornando-se categorias com sintomas cada vez mais esmiuçados e inescapáveis. A ampliação dos manuais de diagnóstico cresce à medida em que se amplia socialmente o poder da psiquiatria, até o momento em que a loucura, transformada em doença mental, permite a cisão com o corpo singular do doente, materializando a figura do louco em um tipo psicossocial específico (OMS, 1995). Por um tempo considerada sinônimo para a morte, n’outro tempo confundida com desrazão, desajuste nas categorias de funcionamento social, os discursos sobre a loucura são convergentes embora sofram algumas variações em cada tempo. No entanto, sobre o louco e seu corpo, sua materialização, os significados dados pelo discurso escapam e, sobretudo as práticas e relações com esse corpo são heterogêneos e fluidos. Paradoxalmente objeto de exclusão, de conflito, de não enquadramento, de invisibilidade e negação, também é alvo de admiração, de políticas mobilizadoras de inclusão 105 e intensas tentativas de territorialização. No corpo do louco convergem os paradoxos. Desterritorializado-reterritorializado, nau flutuante nas normas sociais, dentro e fora, terceira margem da vida. Sobre esse corpo poderíamos afirmar que, em certa medida, constitui-se como um amplo corpo antissocial, uma vez que seu não enquadramento na linguagem, na família, nos jogos sociais e no trabalho gera uma espécie de antítese ao funcionamento da sociedade. Contudo, é certo que o louco não deixa de ser o portador de alguma verdade sobre a sociedade da qual é excluído e transgressor, uma verdade que ele próprio não domina (Foucault, 2011): (...) o profeta, na tradição judaico-cristã, é alguém que conta a verdade sabendo que conta a verdade. Em contrapartida, o louco é um profeta ingênuo, que conta a verdade sem o saber. A verdade transparece através dele, mas ele, por sua vez, não a possui. As palavras da verdade se desenvolvem nele sem que ele seja responsável por elas. (...) Do lado de fora, ao lado, acima deles encontra-se o louco que não sabe o que deseja, não sabe quem ele é, nem mesmo domina seus próprios comportamentos, nem sua vontade, mas conta a verdade. De um lado, há um grupo de personagens que dominam sua vontade mas não conhecem a verdade. Do outro, há o louco que lhes conta a verdade, mas não governa sua vontade e nem mesmo tem o domínio do fato de que conta a verdade. Essa assimetria entre vontade e verdade, não é nada mais que a diferença entre os loucos e os que não são loucos (p.240). Esse corpo denunciante e transgressivo pode, nesse mesmo sentido, não ser considerado apenas como uma antítese às normas sociais. Afinal, essa verdade que o louco carrega sobre a nossa sociedade, como o seu negativo, parece nos mostrar como ele não está, completamente, fora de todo e qualquer jogo social. Como salienta Foucault (2011, p.239): “o louco pode tornar-se o objeto de um jogo ou representar, nesse jogo, um papel em um sentido privilegiado, mas esse personagem, por seu papel e sua função, jamais tem uma posição da mesma natureza que aquela ocupada pelos outros personagens”. Em uma palavra: a loucura e 106 o corpo do louco se determinam em contraposição relacional à sociedade e ao tipo psicossocial padrão, logo, eles apenas existem dentro de uma configuração social singular, histórica e contingente. O fato de não dominar a verdade que ele próprio carrega faz com que o louco não seja considerado como um sujeito que gera conceitos, nem mesmo sobre a verdade que ele mesmo carrega. O louco não é um agente de enunciação e tampouco pode ser considerado um personagem de diálogo dentro da encenação social, sujeito autônomo capaz de expor conceitos. Na verdade, é o silêncio de seu corpo, seus gestos mudos, sua linguagem opaca de sentido, quem diz. O louco é aquele sobre o qual se dão atos da fala da vida comum, são tipos psicossociais, que testemunham sempre uma terceira pessoa. O louco não funda conceitos, no entanto conceitos se fundam sobre a figura do louco e, em raros casos, pode o louco ser convertido em uma figura estética, a saber, a figura do artista ou daquele que é potência de afetos e perceptos pelo que produz (Deleuze, 2010). Enquanto tipo psicossocial, o louco equivale aos tipos que “parecem frequentemente instáveis, nos enclaves ou nas margens de uma sociedade: o estrangeiro, o excluído, o migrante, o passante, o autóctone, aquele que retorna a seu país” (Deleuze, 2010, p.82). Esses tipos são os que possibilitam tornar socialmente perceptíveis, em torno ou para suas figuras, a formação de territórios, os vetores de desterritorialização e também os processos de reterritorialização que marcam resistências, desvios, desejos de outras formas de socialização e pluralização das maneiras de viver (Guattari, 1992). O sujeito dominado pela psiquiatria não se reduz a um corpo, mas sim a um modo de constituição da subjetividade, a um modo de subjetivação23 socialmente não desejado. (Foucault, 2003). Se consideramos, como insiste toda obra de Foucault, que a constituição da 23 “A subjetivação é a produção dos modos de existência ou estilos de vida” (Deleuze, 2010, p.147). 107 subjetividade se faz atravessada pelos saberes e poderes, que a subjetividade não se dá na ou pela relação de saber/poder, mas por e através dessas relações que atravessam, implicam e situam o sujeito, podemos compreender porque ao louco e à toda sorte de subjetividades infames compete o lugar marginal e de exclusão. Examinemos, seguindo Foucault (2011), as razões pelas quais o modo de subjetivação do louco faz com que ele ocupe esse lugar de exclusão. Foucault considera que os domínios das atividades humanas podem ser divididos em quatro categorias: o trabalho ou produção econômica; a sexualidade ou família; a linguagem ou fala e as atividades lúdicas, a saber, os jogos e festas. Mesmo considerando que em todas as sociedades há pessoas que apresentam variações comportamentais e inadequações a um, ou outro, desses aspectos (e por isso são em alguma instância excluídos), o louco é o único sujeito que não se adequa a esses quatro domínios, “são pessoas que tem comportamentos diferentes dos outros, no trabalho, na família, no discurso e nos jogos” (p.261). Assim, medicar ou medicalizar o corpo do louco e tornar o hospital o lugar para que isso aconteça, unindo a medicação ao tratamento moral, atende ao processo de capitalização da vida. Como o louco é o representante avesso de um modo de subjetivação capitalista e de consumo essa pode ser a maneira de inscrevê-lo numa relação econômica e comercial que gere lucro (nunca ao louco, mas aos que se interessam pela loucura): a medicalização. Por questões econômicas, sobretudo dos médicos e da indústria farmacêutica, o louco é identificado ao doente mental e assim a entidade chamada de doença mental se desenvolve, ajudando a engrenagem do capital a funcionar (Guarido, 2007). Contudo, dizer apenas isso seria pouco. Ao louco cabe as margens, pois ele corporifica exatamente o outro do sujeito burguês e de sua fantasia irrestrita por autonomia. Como insiste Foucault: “A distinção entre o físico e o moral só transformou-se em um conceito prático na 108 medicina do espírito quando a problemática da loucura desloucou-se para uma interrogação em relação ao sujeito responsável” (Foucault, 2010, p.412). Pois, afinal, a autodeterminação da vontade a partir de um juízo moral já não era a marca maior do sujeito moderno? Que sujeito e sociabilidade sejam fundados na autonomia prática-moral do homem não é, rigorosamente, tanto a premissa de nosso sistema jurídico, quanto o corolário de todo nosso sistema econômico liberal? Nesse espaço de verdade e gestão social, a loucura torna-se um processo de alienação, de ilusão, da incapacidade de assumir a integridade de um eu que deve poder bem julgar e se responsabilizar por suas escolhas de ordem prática: “Uma medicina puramente psicológica só foi possível no dia em que a loucura se encontrou alienada na culpabilidade” (Foucault, 2010, p. 412). O louco é um homem incapaz de autonomia, por isso não pode ser responsabilizado criminalmente, mas antes, deve torna-se objeto de encargos médicos. Sua doença o furta de sua liberdade. Fora da liberdade, ele se torna um elemento de comportamento imprevisto, leia-se bem: perigoso. Não responsabilizado, não produtivo, incapaz de se autodeterminar de forma coerente em torno de uma personalidade unificada. Nessa simples descrição percebemos rapidamente como o louco corporifica o avesso dos valores reconhecidos e almejados por nossa sociedade. Ora, que sua exclusão se dê e se explique exatamente nesse estranho espaço entre os valores objetivos de uma ciência psiquiátrica e os imperativos políticos-morais não é de se estranhar. Dessa forma, ser o corpo sobre o qual incide o discurso médico, o corpo que pode ser institucionalizado, marginalizado e excluído por que nele se materializa a loucura, o diferencia do homem comum. E assim como entre o homem comum e o louco, os personagens conceituais e os tipos psicossociais remetem um ao outro, mas não se confundem. Daí que não se trata jamais de um elogio ingênuo e romântico da loucura, mas 109 sim de uma compreensão aprofundada de seu sentido epistêmico, político e ético para uma sociedade como a nossa. O corpo do louco é o contrário do corpo utópico e unitário que está na base de nossas fantasias sociais organicistas. Ele é um corpo real, desviante, em errância, heterotópico (Foucault, 1967). Foucault considera que é para esses sujeitos que um tipo especial de território, uma utopia apaziguadora se constrói. Um hospital psiquiátrico, um território geograficamente preciso e com localização determinada, que atende socialmente a um ideal de cura, parece dar abrigo a esse corpo, a esse modo de subjetivação desviante. O dispositivo psiquiátrico, em última análise, é indissociável dessa função de ordenar o caráter heterotópico do corpo louco. O louco desterritorializado do tecido social é, então, incluído nos jogos sociais, mas ocupando um lugar e desempenhando um papel que ele mesmo não escolhe ou controla: é o triste habitante dos pavilhões. No hospício o louco é medicado, no hospício se tenta curar o louco para que ele possa retornar ao convívio social, para que se ajuste aos valores e modos de vida hegemônicos. Contudo, uma força está sempre ligada a outra, não basta medicalizar os tipos psicossociais que ocupam os pavilhões. A psiquiatria e seus manuais de classificação de doenças ampliaram seus alcances, ampliaram suas categorias e geraram com a aglomeração de um sem fim de sintomas uma quantidade enorme de doenças. 110 Foto 24: Interna da Casa de Saúde Santa Teresa, 2009. Não se trata aqui de tentar provar ou negar a existência dos quadros de sofrimento psíquico, mas de analisar, à luz da engrenagem do modo de produção capitalista os efeitos da ampliação do poder psiquiátrico. Aliados à indústria farmacêutica, tendo os antipsicóticos, antidepressivos e ansiolíticos como estratégias combinadas de cura e tratamento, os psiquiatras deixaram de ser responsáveis apenas pelos loucos e seus corpos asilados. A partir dessa ampliação, também as donas de casa, as crianças hiperativas, o deprimido, o luto intermitente e sem fim, o etilista crônico e toda a sorte de tipos psicossociais doentes passaram a ser tratados com medicação, mas não necessariamente foram hospitalizados (Guarido, 2007). O espaço asilar perdurou, abrigando aqueles que alucinavam, os pobres delirantes, os periféricos. Talvez, o mesmo gesto que amplia as categorias de diagnóstico e a utilização de medicamentos para tratamento dessas doenças seja a força geradora do grande questionamento que faz com que a Reforma Psiquiátrica ganhe força: o que caracteriza, ou 111 quem são os sujeitos que permanecem aprisionados? Quem é realmente o louco e onde por que ele deve ser hospitalizado? De acordo com Amarante (1996), o hospital psiquiátrico, símbolo e território do poder psiquiátrico urge por ser descontruído. Por razões éticas e luta contra a enorme violência, em memória de todos os mortos, por questões humanas, o manicômio precisa ser descontruído, substituído por novos lugares (no melhor dos mundos possíveis, isso significaria a aceitação total e inclusão das subjetividades desviantes), por territórios que não privem os sujeitos do convívio social e que facilitem sua circulação, sua inclusão. Será possível, quando fora dos pavilhões, identificar quem é o louco? Sobre a loucura se pode falar, escrever ou teorizar, mas, num tempo de medicalização massiva da vida e de diversos modos de subjetivação, longe dos muros do hospital, como podemos localizar o louco? A pulverização social da loucura, talvez gere um problema de conceituação do louco, na mesma medida em que amplia os domínios da psiquiatria à sociedade geral. Agora, qualquer homem, mesmo o homem comum, pode ser identificado com o doente mental, mesmo que não o internem, mesmo que não o julguem louco. No entanto, enquanto o hospital psiquiátrico persiste e lá circulam homens e mulheres, internos, ali se encontram os loucos. O espaço do hospital permite localizar o corpo do louco e identificá-lo. É dessa maneira que os habitantes da Casa de Saúde Santa Teresa, mesmo num tempo em que o movimento de Reforma Psiquiátrica avançava nos grandes centros urbanos e já promovia o fechamento de hospitais psiquiátricos pelo país, permaneciam loucos, permaneciam internos, deambulando incessantemente entre os muros do hospital. A rotina dos pavilhões: o cárcere ocioso 112 O que se quer considerar aqui é que os internos da Casa de Saúde Santa Teresa, os loucos que habitaram aqueles pavilhões, constituem uma categoria específica de pessoas: geralmente pobres, psicóticos e socialmente desajustados. Provenientes do interior do nordeste brasileiro, esses sujeitos nada tinham a ver com o ideal de sujeito burguês, com seu modo de subjetivação ideal ao capitalismo, ao progresso e ao desenvolvimento moderno. Esses são os sujeitos aos quais se impõe o poder médico e que permanecem internos, indo e vindo durante anos para/do hospital. Os motivos para os reinternamentos, conforme Vasconcelos (2008), são os mais vulgares: desde o andar a esmo até ideias religiosas ou persecutórias; ou mesmo um acesso de fúria, a voz elevada diante de uma frustração cotidiana, já eram motivos para que, depois do primeiro internamento e da condenação à doença, o hospital se apresentasse como o único ambiente de cura e o médico como detentor do poder de curar/controlar (não a loucura, mas o louco). No final da década de 1980, a Casa de Saúde Santa Teresa era uma instituição psiquiátrica de grande porte, o hospital mantinha 280 leitos cadastrados ao sistema de saúde, mas internava cerca de 420 pessoas (DATASUS, 2005). A quantidade de leitos cadastrados não era igual à quantidade efetiva de leitos existentes nos pavilhões, as AIHs referentes a esses leitos excedentes eram arquivadas e iam sendo cobradas mês a mês, uma vez que não havia regulação da quantidade de internamentos. O hospital internava pessoas de mais de sessenta municípios do Ceará, além de pessoas da Paraíba, Pernambuco, Piauí e Bahia. Certamente, essa foi a época em que o hospital internou mais pessoas. Em uma pesquisa com familiares de ex-moradores de hospitais psiquiátricos Frazzato e Boarini (2013) investigam as narrativas sobre o cotidiano nessas instituições, os relatos não são muito distintos do que encontramos na rotina dos internos da Casa de Saúde Santa Teresa. 113 O cotidiano nos pavilhões era definido pelas rotinas do hospital, sobretudo pelo horário das refeições e da medicação. Os funcionários do plantão noturno saíam às sete horas da manhã, após realizar a contagem geral dos internos para o senso, competia aos técnicos que assumiam os postos de enfermagem a condução dos pacientes ao refeitório para o café da manhã e em seguida a distribuição da medicação. Primeiro os internos faziam fila para entrar no refeitório, depois faziam fila na porta do posto para receber seus comprimidos. Aqueles que não compareciam eram procurados pelos técnicos, quarto a quarto, era preciso que todos fossem medicados, era preciso checar se haviam ingerido os comprimidos. Durante a manhã a equipe interdisciplinar realizava seus atendimentos (psiquiatras, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais), individualmente ou em grupo, os internos eram vistos pela equipe que, na sequência, registrava as evoluções dos quadros clínicos nos prontuários de cada sujeito. Os que se recusavam a participar das atividades e atendimentos eram considerados mais problemáticos, em seus prontuários constaria que não estavam melhorando. Era possível ler nos prontuários que: “o paciente se apresentava sintomático, não apresentando condições para uma abordagem específica” ou que “o paciente apresenta afeto embotado, abulico e não interage com a equipe”. Os termos importados dos manuais semiológicos justificavam a permanência de mais dias no hospital, durante esses anos não havia controle da quantidade de tempo dos internamentos, algumas pessoas passavam anos, outras eram abandonadas por suas famílias e lá permaneciam até o fim de seus dias. Segundo Gabbard (1994), a medicação paliativa e o acompanhamento da remissão dos sintomas durante o período de internamento constituem práticas hospitalares convencionais, devendo acontecer também nos hospitais psiquiátricos. O almoço era servido às onze horas da manhã, às duas da tarde era servido o lanche e em seguida a medicação daquele turno. Das três às quatro da tarde era o horário das visitas. O encontro com os familiares acontecia no refeitório, os internos se amontoavam próximo às 114 entradas, esperando que algum dos técnicos chamasse seus nomes. Não era raro que algumas pessoas não recebessem qualquer visita durante todo o período de internamento, uma vez que as famílias que viviam em outros Estados nem sempre dispunham de recursos para realizar as visitas, outras simplesmente não se importavam. Era também durante as visitas que os internos recebiam lanches, artigos de vestuário ou higiene pessoal e cigarros, que muitas vezes eram compartilhados, trocados ou doados entre os internos. Às seis da tarde, após o banho, era servido o jantar. Às sete horas da noite o grupo de técnicos era trocado outra vez e competia aos plantonistas noturnos a distribuição da medicação daquele horário, o acompanhamento ao refeitório para o chá e a contagem de todos os internos para o senso noturno, eram contabilizadas as altas, os novos internamentos e o número geral de pessoas em cada pavilhão. Após isso, os internos eram conduzidos aos leitos, as luzes eram apagadas e todos deveriam dormir. As pessoas eram submetidas à rotina rígida e à ociosidade dos dias. Eram privados do contato social, do acesso a meios de comunicação, do direito de escolher e intervir nas condições de internamento e na alta. As considerações teóricas sobre os hospitais psiquiátricos, sobre sua violência, sobre sua obsolescência são mais do que confirmadas pela realidade dessas instituições e seus cotidianos massacrantes. As visitas dos médicos significavam a possibilidade de sair do hospital, dessa forma, todos os internos se amontoavam às portas dos consultórios quando algum psiquiatra entrava nos pavilhões, esperançosos de que pudessem voltar para casa. Os psiquiatras não se demoravam nos atendimentos, muitas vezes checavam prontuários sem ver os internos e se baseavam nas informações dos técnicos para decidir sobre a medicação ou alta. Os diagnósticos, em sua grande maioria, afirmavam que aquelas pessoas eram psicóticas, que na maioria dos casos 115 haviam adoecido entre o final da adolescência e início da idade adulta, checar os prontuários permitia constatar a repetição da classificação F 20.124. O gênero deve ser considerado como categoria importante no tocante à Saúde Mental, o papel socialmente afirmado para a mulher, sobretudo o maternalismo, a colocava como cuidadora e, muitas vezes, desprovida de cuidado (Wadi, 2010). O pavilhão feminino dispunha de menos leitos do que o pavilhão masculino, cerca de 60 leitos a menos. Isso significava que as mulheres se internavam menos, no entanto, recebiam menos visitas, eram abandonadas pelas famílias com mais frequência e, em seus relatos, haviam sofrido toda sorte de violências (físicas, sexuais, psicológicas, verbais) antes de sofrer mais uma, que era o internamento, a privação de liberdade justificada por uma doença. A violência de gênero sempre teve índices altos no Brasil, na patriarcalista região nordeste a realidade não é diferente, a violência de gênero (e não só ela) é também uma marca das instituições manicomiais, nesse contexto, destituídas de seu lugar social, de sua cidadania, de sua liberdade, as mulheres loucas eram reduzidas a corpos, muitas vezes nus, deambulando pelo hospital (Passos, 2011). No pavilhão feminino não era permitido que trabalhassem homens, nas escalas daquele pavilhão constavam sempre técnicas do sexo feminino. O que não se pode afirmar é que essa medida de precaução e cuidado com a intimidade das internas não fosse também uma forma de evitar e reduzir as possibilidades de que sofressem ainda mais formas de violência caso houvessem homens na equipe. Haviam atividades laborais, grupos de artesanato, era permitido que os internos trabalhassem na horta e que, muitas vezes, ajudassem aos funcionários da instituição em suas 24 De acordo com o Manual de Classificação Internacional de Doenças (CID-10), adotado pelos psiquiatras da Casa de Saúde Santa Teresa a classificação em F 20.1 significa ser diagnosticado com esquizofrenia de tipo Hebefrênica, Forma de esquizofrenia caracterizada pela presença proeminente de uma perturbação dos afetos; as idéias delirantes e as alucinações são fugazes e fragmentárias, o comportamento é irresponsável e imprevisível; existem freqüentemente maneirismos. O afeto é superficial e inapropriado. O pensamento é desorganizado e o discurso incoerente. Há uma tendência ao isolamento social. Geralmente o prognóstico é desfavorável devido ao rápido desenvolvimento de sintomas "negativos", particularmente um embotamento do afeto e perda da volição. A hebefrenia deveria normalmente ser somente diagnosticada em adolescentes e em adultos jovens. 116 atividades. No entanto, isso estava muito longe de ser suficiente para garantir que os dias fossem preenchidos, essas parcas opções ocupacionais não se aproximam das possibilidades que dispomos enquanto cidadãos livres, autônomos, vivendo em grupo, no entanto, eram apresentadas como enormes benefícios àquele grupo de pessoas. As práticas manicomiais se afirmam enquanto modus operandi no tratamento e contenção à loucura, silenciando seu poder e dominando o corpo de seus atores, extraindo deles qualquer possibilidade de autonomia, roubando-lhes o lugar de fala, substituindo esse lugar pelo discurso do médico, porta voz do saber psiquiátrico. O fortalecimento do saber/poder psiquiátrico ganha visibilidade na multiplicação de manicômios. A força de operação dessas instituições é a força do discurso tomado como verdade e imposta sobre os corpos daqueles que habitavam os pavilhões. O hospital fortalecido, o cotidiano carcerário disfarçado de prática médica, a contenção física e medicamentosa e o sem número de novos internos consolidam a soberania do saber psiquiátrico sobre os corpos dos loucos. 117 Capítulo 4 A força do direito deve superar o direito da força ou Por que é preciso fechar o hospital Foto 25: Interno da Casa de Saúde Santa Teresa, 2015. 118 O capítulo final desse trabalho objetiva apresentar as tensões e acontecimentos que se deram do final da década de 1990 ao ano de 2016, ano de fechamento da Casa de Saúde Santa Teresa. Os acontecimentos motivadores do fechamento – por exemplo: a reforma política do país, o nascimento do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, o avanço da política de Reforma Psiquiátrica no Brasil e a ampla crítica ao formato de intervenção psiquiátrica - começaram a ganhar força ainda na década de 1970 e em 1980 já apresentavam resultados significativos (Amarante, 1996). Durante a década de 1990 a redução de leitos em hospitais psiquiátricos e progressiva ampliação do modelo substitutivo foi crescente. No entanto, só no ano de 1996, vinte e seis anos após abrir suas portas, o hospital psiquiátrico localizado no interior do Ceará passou a sentir os efeitos dessas mudanças, uma vez que sofreu a primeira redução de leitos. No ano de 1997 não houve aumento no valor das Autorizações de Internamento Hospitalar – AIHs pagas pelo governo (Brasil, 2005). O congelamento no valor pago e redução de leitos configurou o primeiro sinal de que, efetivamente, os tempos haviam mudado. Ainda assim, foram necessários outros vinte anos de história até que no ano de 2016 a Casa de Saúde efetivamente encerrasse seu funcionamento. O direito da força No ano de 1992, a Casa de Saúde Santa Teresa possuía oficialmente 280 leitos cadastrados no SUS, contudo, o número de pessoas atendidas pela instituição era superior à sua capacidade (Brasil, 2012). As AIHs referentes às internações excedentes iam sendo adicionadas e cobradas mês a mês, dessa forma, o hospital não sentiu de imediato diferença no financiamento que recebia. Mesmo em um momento de transição do modelo de saúde no Brasil, em que a proposta de construção de uma rede pública, universal, equitativa e legislada 119 como dever do Estado para com seus cidadãos já se efetivava, no tocante à saúde mental, no interior do Ceará, a Casa de Saúde era publicamente enaltecida pelos serviços que prestava ao município do Crato, a todo o interior do Estado e também aos Estados vizinhos. A matéria do Jornal do Cariri, em agosto de 1990, afirmava que surgia no Crato “uma empresa moderna que sabe como tratar de forma prática e sensível as doenças mentais”. O caráter de novidade do empreendimento, mesmo passados vinte e dois anos de sua fundação, possivelmente se devia à carência de instituições e profissionais que atendessem às demandas psiquiátricas da região, bem como dizia respeito à forma como os administradores da empresa pretendiam que seu funcionamento fosse percebido. Era interesse dos gestores que o hospital fosse percebido como uma benfeitoria e um trabalho imprescindível à sociedade. Esse estratagema de manutenção de poder não constitui uma novidade, sobretudo numa sociedade neoliberal, o poder captura as formas de vida, faz com que seus mecanismos pareçam necessários (Foucault, 2008). As notícias sobre fechamentos de hospitais psiquiátricos pelo país e redução progressiva de leitos à medida em que se fossem instalando os serviços substitutivos pareciam uma realidade distante para o município do Crato. No ano de 1993, o então governador do Ceará, Ciro Gomes assinou a Lei Estadual de número 12.151, inspirada no projeto de Lei Federal25 apresentado em 1989 pelo deputado Paulo Delgado (que foi sancionada apenas no ano de 2001 como a Lei 10.216, marco da Reforma Psiquiátrica brasileira), a Lei Estadual, assim como outras oito do mesmo período regulava o atendimento psiquiátrico, impedia a abertura de novos hospitais psiquiátricos 25 Importante afirmar que as Leis Federais 8080/1990 e 8142/1990 já preconizavam a organização dos serviços de saúde mental em rede e segundo os níveis de complexidade preconizados pelo SUS, no entanto apenas com a Lei 10.216/2001 houve significativa mudança na ordenação dos internamentos e garantia dos direitos das pessoas em sofrimento psíquico. 120 públicos ou privados e instituía a progressiva substituição dos leitos por serviços alternativos e não asilares (BRASIL, 2004). O Ceará foi o segundo Estado do país a sancionar uma Lei de regulação aos hospitais psiquiátricos26, estando atrás apenas do Rio Grande do Sul. Também foi um Estado pioneiro na instalação de serviços substitutivos, uma vez que o Centro de Atenção Psicossocial – CAPS do município de Iguatu foi inaugurado no ano de 1991, apenas cinco anos depois da inauguração do primeiro CAPS do país, localizado e ainda em funcionamento em Itapeva, grande São Paulo. Dessa forma, o Estado do Ceará aparece como pioneiro na operacionalização de ações que estavam de acordo com a política de Reforma Psiquiátrica (Bezerra, 2004). Em maio de 1994, na matéria do jornal Tribuna Ceará, a direção da Casa de Saúde responde à acusação de que após a abertura do CAPS de Iguatu, pessoas provenientes desse município estariam impedidas de utilizar o serviço de internamento no Crato. A direção do hospital nega a informação e afirma atender não só à demanda do sul do Ceará, mas também aos Estados vizinhos. No entanto, a mesma matéria noticia que a partir dessa acusação o que se pode deduzir “é que existe uma campanha orquestrada, contra esses estabelecimentos (hospitais psiquiátricos), no intuito de desativá-los, com incalculáveis prejuízos para os doentes nessa área”. A ideia de que os CAPS substituiriam os hospitais psiquiátricos começava a se expandir, assim como a construção de redes de atenção à saúde, públicas e descentralizadas dos centros hospitalares. A implantação desses dispositivos no interior do Ceará, junto com as 26 Trata-se da Lei nº 12151 de 29 de julho de 1993, assinada pelo então governador do Estado, Ciro Gomes, que dispõe sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros recursos assistenciais, regulamenta a internação psiquiátrica compulsória e dá outras providências. 121 medidas de redução de leitos e redirecionamento de recursos fez com que houvesse diminuição no número de internamentos na Casa de Saúde Santa Teresa. Os CAPS passaram a atender às pessoas em seus municípios, mas o hospital ainda parecia necessário (também por força do hábito) quando se tratava de uma pessoa já com histórico de internamento ou quando se julgava que a crise não poderia ser solucionada no CAPS, sem que o paciente pudesse ser assistido também durante a noite. Foto 26: Tribuna do Ceará, 1994. As Leis e portarias impediam a abertura de novos hospitais, restringiam seu financiamento direcionando os recursos para a rede substitutiva e priorizavam a diminuição de leitos. Entretanto, havia ainda a possibilidade de financiamento público para instituições de caráter privado no Brasil e a necessidade de ampliação da rede de atendimento em saúde mental somada à redução de leitos em hospitais psiquiátricos possibilitou que em alguns lugares do país CAPS privados fossem abertos (Brasil, 1997). No Ceará, a Lei Estadual proibia a abertura de novos hospitais psiquiátricos e incentivava a abertura de CAPS como proposta substitutiva ao hospital, dessa forma, no ano de 1995, na cidade de Juazeiro do 122 Norte, um CAPS privado foi inaugurado e seus sócios, sem nenhuma exceção, eram todos funcionários da Casa de Saúde Santa Teresa (um psiquiatra, como sócio majoritário, uma nutricionista e duas assistentes sociais). A iniciativa constituiu uma instituição híbrida, que funcionava conforme o novo modelo de promoção de saúde, mas que ainda se inscrevia no modelo médico privatista que a efetivação do SUS pretendia superar. A abertura de um CAPS privado significa a dificuldade de superação do modelo médico-privatista e também que o país ainda não dispunha de organização suficiente para fazer funcionar uma rede inteiramente pública. Esse tipo de concessão (a possibilidade de abertura de um CAPS privado) durou pouco, mas foi irreversível, uma vez que nos dias atuais o CAPS III de Juazeiro do Norte continua funcionando e seus donos continuam, absurdamente, recebendo dinheiro público para gerir sua empresa. A força do direito É apenas em 1996 que a Casa de Saúde Santa Teresa começa a sentir efetivamente as consequências do movimento de Reforma Psiquiátrica. Nesse ano as AIHs foram reduzidas de 280 para 198. A partir de então, a regulação no financiamento ao hospital começou a comprometer seu funcionamento, bem como os apelos para que o hospital recebesse ajuda política passaram a ser realizados sob o discurso da necessidade social e do desamparo da população que não dispunha de acesso aos CAPS e aos ambulatórios psiquiátricos. Em 1991 o Brasil tinha 313 hospitais psiquiátricos em seu território, em 1997 o número caiu para 256, desses 211 eram de caráter privado. No Ceará haviam 1.620 leitos psiquiátricos no ano de 1993, o número passou para 1.300 após o fechamento do Hospital Santo Antônio de Pádua, em Fortaleza. No final da década de 1990 o Ceará contava com nove hospitais psiquiátricos, 123 dois hospitais psiquiátricos públicos localizados em Fortaleza (o Hospital de Messejana e o Estenio Gomes, de caráter judiciário) e outros sete hospitais privados, cinco destes estavam em Fortaleza, outros dois no interior do Estado (Sobral e Crato). Entre os anos de 1991 e 1998, o Ceará já dispunha de cinco CAPS, todos no interior do Estado (Iguatu, Canindé, Quixadá, Cascavel e Aracati), a capital do Ceará só adotou o modelo substitutivo após a efetivação da Lei 10.216, em 2001 (Brasil, 2012). Não é coincidência que os municípios que dispunham de serviços hospitalares tenham demorado mais a dispor de serviços substitutivos. A existência de um hospital psiquiátrico no município parecia acomodar gestores, trabalhadores e usuários. A macroestrutura era obsoleta, mas vendia a ideia de que promovia a melhor assistência possível e realizava um trabalho que não poderia ser inteira mente substituído por outras instituições. Durante o ano de 1998, os jornais do Cariri, O Povo e Folha de São Paulo publicaram matérias sobre a Casa de Saúde sobre a precariedade de serviços substitutivos e o quanto o esmagamento progressivo do hospital prejudicaria às pessoas que dele necessitavam. Foto 27: Jornal do Cariri, 1998. 124 Até o ano de 2003, Helenita Teles, viúva do psiquiatra fundador da instituição, era diretora da Casa de Saúde Santa Teresa. Embora Nerian e Glaucia, junto com seus maridos médicos, participassem ativamente da gestão da Casa de Saúde, era Helenita quem respondia aos jornais e tomava as rédeas do hospital nos anos em que seu funcionamento começou a ficar comprometido. Em fevereiro de 1998, o Jornal do Cariri anuncia outra redução nas AIHs, dessa vez o número passou de 198 para 128. A essa altura o hospital ainda contava com 280 leitos existentes para internamento, no entanto, com a redução das AIHs, também um bloco de leitos foi reduzido e o hospital passou a operar com a disponibilidade de 200 leitos. Na mesma matéria, a instalação de um CAPS no município do Crato aparece como possível solução para a crise. A secretária de saúde do município afirmou, segundo o jornal, que a crise era geral, pois o Crato, que antes dispunha de 2.000 AIHs, dipunha agora de metade desse número. Isso significa que não só a Casa de Saúde Santa Teresa perdeu leitos e recursos, os hospitais que haviam sido inaugurados à mesma época, privados e financiados com recursos públicos (Hospital Pediátrico e Manuel de Abreu, por exemplo) também haviam perdido incentivos e AIHs. Foto 28: Jornal O Povo, 1998. 125 Também no mês de fevereiro do mesmo ano o jornal O Povo anuncia que a Casa de Saúde Santa Teresa “sofre com a redução de leitos” e que isso impossibilita o atendimento de toda a demanda de pacientes da região do Cariri. O título da matéria aponta para a realidade daqueles anos, a Casa de Saúde e seus donos sofreram com a redução de leitos, de AIHs e com a redução dos recursos. Embora o discurso fizesse parecer que os maiores prejudicados seriam os usuários do hospital e suas famílias, certamente eram seus administradores, que até então haviam lucrado com o empreendimento, que não sabiam o que fazer com aquela empresa que não gerava mais lucro. Apelar para a função social do dispositivo e enaltecer os serviços prestados parecia uma saída. Ainda assim, até 2004 não houve nenhum corte massivo no corpo de funcionários da Casa de Saúde, não houveram, de imediato pessoas que procurassem o hospital e não fossem internadas. O hospital funcionava acima da capacidade, seus diretores receberam, por anos, dinheiro público em excesso, sem que fosse preciso prestar contas do destino e utilização desses recursos. A rede substitutiva começava a crescer e isso consistia num ganho substancial para o país que vivia um momento de redemocratização política, o hospital deixava de ser a porta de entrada para a rede de saúde, nacionalmente o movimento de substituição dos manicômios ganhava força. No mês de maio de 1998, a Folha de São Paulo publica uma matéria que afirma que a seca e a fome aumentam a incidência de doenças mentais no interior do Ceará, bem como que em consequência desse sofrimento a demanda para internamentos psiquiátricos havia crescido. 126 Foto 29: Folha de São Paulo, 1998. Na mesma matéria, em que aparece um mapa do Brasil para que se possa localizar o município do Crato, a diretora da Casa de Saúde afirma que havia uma procura de 15 vagas para internamento por dia, mas que apenas 5 vagas estavam diariamente disponíveis. O psiquiatra e sócio do hospital, Ridalvo Rocha, afirma que “a seca não provoca loucura, mas contribui para que alterações como a violência e a confusão mental se manifestem em pessoas predispostas a apresentar esses problemas”, e completa informando que “a estiagem não é a causa da doença, mas pode ser a gota d’água para que ela se manifeste”. O jornal O Povo, em maio do mesmo ano, divulga uma informação parecida. A matéria afirma as consequências sociais da redução de leitos no hospital, associando a seca e a falta de atendimento ao aumento de pessoas mantidas em cárcere privado. A mídia endossava a importância do hospital e não apresentava a rede substitutiva como solução, ao contrário, noticiava as piores consequências para os doentes, estabelecendo uma relação entre o fechamento de leitos e desamparo dos usuários. Segundo o jornal, a “falta de vagas para atendimento psiquiátrico e a miséria provocada pela seca aumentam o número de cárceres privados no interior do Estado” e cita como exemplo a história de Expedita, mulher de 23 anos, proveniente da zona rural e conduzida ao internamento por seu pai, “após tentar 127 estrangular o filho de dois anos e encharcar suas vestes com querosene, na intenção de atear fogo no próprio corpo”. Essa forma de divulgação na mídia foi capaz de gerar nos leitores leigos a ideia de que o fechamento dos hospitais deixava pessoas como o pai de Expedita e a própria Expedita desassistidos, sem opções, correndo riscos e colocando outras pessoas em risco. A ideia de periculosidade da pessoa louca é sempre apresentada de maneira sutil, como pano de fundo, dando força ao argumento de que a existência de uma instituição que se propusesse a cuidar dessas pessoas era necessária. Foto 30: Jornal O Povo, 1998. A reportagem apresenta uma sequência de cinco imagens que vão desde a espera até o internamento de Expedita. Na primeira imagem Expedita e seu pai esperam pelo atendimento médico, segundo o jornal os dois haviam chegado ao hospital às “quatro horas da madrugada, mas somente foram atendidos às oito da manhã”; na segunda imagem Expedita aparece sendo conduzida pelo pai e irmãs, após a triagem, para a unidade feminina do hospital; na terceira imagem Expedita aparece sendo segurada pelos familiares, segundo o jornal ao perceber “que 128 está sendo levada para a internação, Expedita se debate, chora e grita que quer ir para casa”; na quarta imagem Expedita aparece abraçada ao pai que, segundo o jornal, não sabe como lidar com o problema da filha; na quinta e última imagem da sequência, o pai de Expedita aparece deixando o hospital, a legenda da imagem afirma que ele se sente triste por forçar a filha ao internamento e que espera conseguir dinheiro para a medicação que ela precisará quando sair do internamento. O exemplo de Expedita ilustra o caráter compulsório e sem qualquer consentimento da pessoa que será internada, na mesma medida em que denuncia o sofrimento da família diante do sofrimento psíquico de um membro, o desamparo e a falta de conhecimento frente à doença. Nessa perspectiva não é de se estranhar que o hospital aparecesse como a melhor alternativa para o acompanhamento de pessoas como Expedita, uma vez que a miséria, a pobreza e a falta de recursos da população atendida pelo hospital ampliava a imagem de sua necessidade e relevância de seus serviços na região. De toda sorte, a relevância do hospital não constitui uma simples falácia, a mesma matéria que narra a história de Expedita informa também que, no ano de 1998, a Casa de Saúde Santa Teresa atendia a pessoas oriundas de 52 municípios do Ceará, 26 municípios do Pernambuco, 26 municípios da Paraíba, 6 municípios da Bahia e 13 do Piauí. Embora houvesse significativa ampliação das ações da Reforma Psiquiátrica e progressiva instalação de CAPS, a maior parte dos atendimentos da região ainda acontecia no hospital. 129 Foto 31: Jornal O Povo, 1998. Em junho de 1998, uma matéria do jornal O Povo informa que o CAPS privado do município de Juazeiro do Norte sofria ameaça de ter sua verba reduzida, uma vez que a prioridade de investimentos do SUS era para os serviços públicos, porém, tal ameaça não se concretizou. O CAPS de Juazeiro do Norte permanece em funcionamento até os dias de hoje e mantém seu caráter privado, como resquício absurdo da privatização da saúde e financiamento a fundo perdido dessas instituições com dinheiro público. 130 Foto 32: Jornal do Cariri, 2000. Em março do ano 2000, a Casa de Saúde Santa Teresa permitiu pela primeira vez que fossem feitas e divulgadas imagens do interior do hospital para uso de um jornal. Na matéria veiculada pelo Jornal do Cariri, afirma que Exemplos de maus tratos praticados contra doentes mentais se espalham pelo Brasil a fora. No sul do país, onde as casas de recuperação se multiplicam, as práticas usadas chegam a ultrapassar os limites humanamente aceitos. Choques elétricos, falta de higiene e outras irregularidades expõem a que ponto chegou a psiquiatria num país em que a loucura é tão comum quanto a sanidade. No Cariri, porém, exemplos de tratamento de doentes mentais mostram a real possibilidade de uma recuperação mais eficiente. Com instalações aprovadas pelas mais rigorosas fiscalizações, ambiente saudável e uma equipe abnegada de profissionais, a Casa de Saúde Santa Teresa, em Crato, demonstra com resultado o trabalho desenvolvido há exatos trinta anos. (...) As chances de recuperação são bem maiores que em outros sistemas. O amor, o profissionalismo, a paciência e a falta de preconceito são alguns dos ingredientes para um acompanhamento mais decente e merecido para aqueles que precisam. Os doentes mentais não são seres de outro planeta, nem muito menos monstros que devem ser afastados do 131 convívio social. Antes de serem doentes essas pessoas são cidadãs como qualquer um de nós. Loucura é não entender essa verdade. O discurso que permeia toda a matéria consiste numa crítica aos hospitais psiquiátricos do Brasil, ao modelo asilar, como se o formato de atendimento na Casa de Saúde não fosse o mesmo. A tentativa de fazer os serviços da Casa de Saúde aparecerem como eficazes e o tratamento diferenciado, não surtiram o efeito esperado. O argumento de relevância social não foi suficiente para remar contra a corrente de desmantelamento do modelo médico privatista e dos hospitais psiquiátricos do país (Vasconcelos, 2008). Também no ano 2000, no mês de março, o Diário do Nordeste apresentava numericamente o panorama psiquiátrico no Ceará. Segundo o jornal, haviam nesse ano 1.087 leitos psiquiátricos no Estado, espalhados em dez hospitais (entre públicos e privados), a saber: 198 leitos na Casa de Saúde Santa Teresa, 50 leitos na Casa de Repouso Guararapes, 164 leitos no Hospital de Messejana, 117 na Casa de Saúde São Geraldo, 70 leitos no Instituto de Psiquiatria do Ceará, 120 leitos no Hospital São Vicente de Paulo (primeiro do Estado), 120 na Clínica de Saúde Mental Dr. Suliano, 119 leitos no hospital Nosso Lar e 160 leitos no hospital Mira y Lopez. Dos 1.087 leitos, 248 estavam disponíveis no interior do Estado, uma vez que a Casa de Saúde Santa Teresa estava instalada no Crato e a Casa de Repouso Guararapes em Sobral. As demais instituições estavam todas situadas na capital do Estado. A mesma reportagem informa que no ano 2000 haviam 13 CAPS no Ceará, a saber: Fortaleza, Sobral, Iguatu, Icó, Juazeiro do Norte, Quixadá, Morada Nova, Cascavel, Barbalha, Canindé, Itapipoca e Crateús. Então, o Cariri cearense contava com dois CAPS, um em Juazeiro e outro em Barbalha, entretanto, apenas em 2001 um CAPS foi inaugurado no município do Crato. Até o ano de 2001, ano da Lei 10.216, os cidadãos cratenses dispunham apenas do hospital psiquiátrico e o internamento era a única alternativa quando alguém 132 entrava em crise. O município que se orgulhava dos seus serviços de saúde vivenciava o retrocesso em seu modelo de assistência psiquiátrica. No mês de agosto desse mesmo ano, a Casa de Repouso Guararapes foi fechada após 120 dias de intervenção. Esse feito, em virtude do emblemático caso da morte de Damião Ximenes27, no ano anterior, reduziu ainda mais o número de leitos disponíveis no interior do Estado. Foto 33: Jornal O Povo, 2000. Após o descredenciamento da Casa de Repouso Guararapes, o município de Sobral adotou medidas alternativas ao hospital para suprir a demanda de atendimentos em saúde mental. Na época, conforme matéria do jornal O Povo, além do CAPS, as 34 equipes do então chamado Programa de Saúde da Família – PSF foram responsáveis pelos atendimentos 27 Damião Ximenes foi internado na Casa de Repouso Guararapes numa sexta feira do ano de 1999. Na segunda- feira seguinte, dia 4 de outubro, sua morte, causada por uma parada cardiorrespiratória, foi anunciada. Submetido o corpo à autópsia, foi constatado que Damião sofreu múltiplas agressões após ter sido medicado. Na ocasião não havia médico plantonista no hospital. O caso foi denunciado e julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos; o país foi considerado culpado pela violação dos direitos de Damião. A Casa de Repouso passou por um processo de intervenção e foi fechada no ano seguinte. 133 ambulatoriais e acompanhamento dos egressos ou doentes crônicos que por muito tempo permaneceram no hospital que acabara de fechar. O exemplo de Sobral aponta para a realidade de adaptação e organização da rede após o fechamento do hospital, uma vez que enquanto o hospital se mantinha ativo, atendendo toda a demanda, a rede nesses municípios parecia desnecessária. Em 2002, passados seis anos da primeira redução de AIHs, diante da constatação de que o panorama da Casa de Saúde fosse talvez irreversível, o discurso sobre a manutenção do hospital permaneceu centralizado em sua função social e na importância dos serviços prestados à comunidade, no entanto, a partir daí as solicitações foram direcionadas mais diretamente aos políticos. A diretora da unidade hospitalar, Helenita Teles, sugere na matéria veiculada pelo Jornal do Cariri, em fevereiro do ano de 2002, que os familiares de pessoas que precisavam dos serviços psiquiátricos prestados pela Casa de Saúde se unissem e procurassem os políticos, na ocasião, afirma que a instituição dispõe de leitos, mas precisa de recursos, de incentivo financeiro, para aumentar o número de atendimentos. A diretora também informa que a instituição, então com 142 funcionários, já apresenta dificuldades para cumprir o pagamento da folha e afirma que: Como existe um teto, gostaríamos que fosse aumentado o número de diárias, o mais angustiante é ver os pacientes chegarem e não podermos atender. Amanhã (16/01/2002) tem três internamentos, vai ser um sufoco para o Dr. Maurício, um absurdo! Por isso, nós queremos é que aumentasse o número de internamento – é URGENTE! – Hospital está aí, tem leitos vagos, tem tudo, mas não podemos atender à população. A nossa prioridade é atender bem, mas... 134 Foto 34: Jornal do Cariri, 2002. A situação da Casa de Saúde aparece, nesse momento, tão desorganizada quanto o discurso de sua diretora no jornal. Não é de causar estranhamento, uma vez que o hospital havia funcionado com recursos mais do que suficientes durante seus primeiros vinte e seis anos de existência, a redução de verba foi um duro golpe para os sócios. Diante da redução de leitos e do corte de recursos, a realidade de funcionamento passa a sofrer mudanças; diante da impossibilidade de atrasar salários de funcionários e médicos, impostos, alimentação e medicação, elementos considerados como prioritários para o funcionamento da Casa de Saúde, o redirecionamento de recursos começou a ser sentido na estrutura física e na manutenção do hospital. No ano de 2004 o hospital havia reduzido o quadro de funcionários de 142 para 108. Segundo o que foi publicado no Diário do Nordeste, em maio daquele ano, a Casa de Saúde recebia mensalmente o repasse de 159 mil reais, o que era insuficiente para custear todas as despesas da instituição e manter o funcionamento adequado da unidade. Na ocasião, a diretora afirmou que o hospital não seria fechado por que não havia dinheiro para custear as rescisões dos funcionários. Na mesma matéria em que se a crise do hospital é afirmada, é dada ênfase 135 ao trabalho dos CAPS, e a então coordenadora do CAPS do município do Crato afirma que “ainda existe a cultura de que o paciente tem que ser tratado unicamente no hospital psiquiátrico, quando na verdade, se sabe que o usuário tem condições de se recuperar muito mais no meio familiar”. No ano de 2004, a Casa de Saúde reduziu 40 dos leitos que eram destinados a internamentos e abriu um Hospital Dia – HD, modelo que só poderia existir agregado à existência de um hospital psiquiátrico. A inauguração do HD possibilitou que as pessoas com histórico de reinternamentos constantes, doentes crônicos e casos mais severos pudessem ser acompanhados em um esquema semelhantes aos que os modelos substitutivos preconizavam. Enquanto os CAPS possuíam três regimes de acompanhamento (intensivo, semi-intensivo e não-intensivo), no HD os usuários permaneciam da manhã ao fim da tarde, todos os dias da semana (com exceção dos sábados e domingos). O HD dispunha de um veículo que fazia diariamente o transporte dos usuários e mantinha o acompanhamento e controle da medicação nos finais de semana. A Casa de Saúde Santa Teresa chegou aos trinta e cinco anos de funcionamento em crise, tentando o que era possível para se manter, sem a perspectiva de aumento em seus recursos e com deficiências na estrutura física, além de dificuldades para manter os custos mensais básicos. Nessas circunstâncias, os psiquiatras passaram a fazer atendimentos ambulatoriais privados e os internamentos passaram a durar mais do que os quarenta e cinco dias anteriormente estabelecidos. A dificuldade financeira causou não apenas o sucateamento físico, mas também justificou a precarização do acompanhamento médico aos internos e a redução da equipe técnica. Afinal, injetar dinheiro no hospital não era algo que os sócios considerassem fazer, dessa forma, os cortes foram acontecendo e o funcionamento de uma instituição que já era obsoleta piorou ainda mais. 136 Foto 35: Diário do Nordeste, 2004. As famílias e profissionais lastimavam o sucateamento. Não era incomum que o hospital fosse apontado como útil e que familiares afirmassem não saber o que fazer com seus membros adoecidos caso o hospital fechasse. Esses discursos que se afirmavam contra- reforma eram sustentados, muitas vezes, por pessoas que precisavam dos serviços hospitalares e desconheciam ou não tinham acesso à rede substitutiva, mas também por profissionais que trabalhavam há anos no hospital, por uma parcela leiga da população e, sobretudo, pelos donos do empreendimento que queriam manter seu patrimônio (se possível gerando lucro) e que consideravam os gastos e problemas que teriam com o fechamento. Mesmo diante de uma severa crise financeira, a direção fazia esforços para que o hospital continuasse em funcionamento. Embora ficasse cada vez mais difícil custear as despesas básicas, ainda existia a esperança de que o hospital pudesse ser reformado, atualizado e, quiçá, transformado numa instituição que pudesse sobreviver à Reforma Psiquiátrica e voltar a dar lucro. Esse empenho manteve o hospital, arrimo de família, em 137 funcionamento por mais onze anos, durante os quais a situação cotidiana dos internos apenas piorou. Por que é preciso fechar o hospital No ano de 2005 a gestão da Casa de Saúde Santa Teresa estava a cargo das filhas dos sócios fundadores - Ana Hygea Abath, Luciana Abath e Ana Isabel Barreto e da sócia Helenita Teles. Houve, por parte da direção, empenho em administrar bem os recursos, reordenar o quadro de funcionários e realizar ajustes para que o hospital funcionasse conforme a Lei 10.216/2001 e a Portaria 2391 de 26 de dezembro de 2002. Dessa forma, em 18 de novembro de 2005, uma circular interna destinada aos funcionários, resultado de reunião administrativa, determinava, sobretudo aos psiquiatras, mudanças no atendimento e correção/ajustes em relação aos internamentos. Determinavam o estrito cumprimento das internações conforme o número de leitos, afirmando que internar mais do que o número de leitos existentes não implicava em pagamento mais alto, uma vez que havia um teto fixo a partir dali. Os internamentos preenchidos segundo o formulário de Longa Permanência seriam apresentados ao auditor e submetidos ao conhecimento e autorização do Estado. Também se tornava obrigatório que houvesse planejamento das altas, que os médicos informassem aos membros da equipe interdisciplinar, sobretudo ao Serviço Social, quando pretendiam dar a alta do interno, pois assim seria possível que as famílias fossem avisadas, a referência para tratamento fosse encaminhada e os internos preparados para deixar o hospital. Ao programar a alta, além de avisar a equipe e registrá-la no prontuário, o médico deveria anexar a receita que seria entregue quando da saída do interno, o plantonista deveria assinar a 138 alta mesmo que o médico responsável pelo internamento não estivesse nas dependências do hospital. Por fim, as diretoras informavam que as pessoas não deveriam esperar pelo médico para ter alta, que a permanência na instituição além do prazo e sem AIH consistia em cárcere privado, isto é, em crime. No momento do internamento os médicos deveriam preencher o formulário de internação e informar seu status enquanto internação voluntária ou involuntária. As internações involuntárias deveriam ser informadas ao ministério e o termo de alta involuntária já deveria estar assinado e anexo ao prontuário. Como forma de estimular a rotatividade entre os internos, uma vez que os médicos ganhavam também pelo número de pacientes que acompanhavam no internamento, as diretoras instituíram que seria realizado, a cada mês, o cálculo com a média de permanência dos pacientes de cada médico, assim os que permitissem maior rotatividade nos leitos poderiam internar mais, logo ganhariam mais. O documento também exigia que houvesse pelo menos uma evolução médica a cada sete dias, o que deveria significar que, com a frequência mínima de sete dias, cada interno seria visto/atendido por seu médico. Caso o interno estivesse em intercorrência clínica, as evoluções deveriam ser diárias. Os médicos deveriam comparecer às reuniões e em equipe deveriam descer até as unidades, permitindo que ao invés de ver os internos, tivessem acesso apenas aos prontuários que eram trazidos pelos técnicos até seus consultórios. Essa prática não era incomum, ao invés de ouvir os pacientes, os médicos recebiam as informações dos técnicos em enfermagem e registravam as alterações de medicação ou alta conforme o que ouviam. Muitos pacientes eram vistos pelos médicos apenas no momento de seus internamentos. O documento já considerava o tempo reduzido dos psiquiatras no hospital, uma vez que era impossível, sob aquelas circunstâncias, o custeio dos plantões e instituía normas para 139 o acompanhamento dos internos, mesmo que tivessem sido admitidos pelo clínico geral. Assim, pode-se constatar o papel fundamental dos psiquiatras naquela engrenagem, que, de toda sorte, dependia de suas assinaturas e autoridade simbólica para continuar funcionando. Se o apelo midiático e o discurso de importância social do hospital não haviam funcionado como forma de captar mais recursos, possivelmente a reordenação do funcionamento e tentativa de ajuste à reforma era a nova estratégia para evitar o fechamento iminente. No entanto, era preciso muito mais para que a Casa de Saúde Santa Teresa funcionasse ou fosse transformada numa instituição cujo caráter não fosse asilar e manicomial, as medidas internas poderiam servir como paliativo, tardiamente, mas jamais fariam com que o hospital se tornasse o ideal de inclusão e produção de cuidado em Saúde Mental. Ora, o caráter histórico dessas instituições justifica por que elas não poderiam ser transformadas, a lógica manicomial precisava ser desmontada, desconstruída, destruída, desse lugar a novas formas, não segregantes ou violentas de produção de cuidado. No entanto, do lugar onde estavam, os donos do hospital não conseguiam ver isso. Além das intervenções junto aos médicos e tentativas constantes de manter os internamentos de acordo com as normas da Lei 10.216, havia também o empenho para mobilizar os funcionários de todos os setores do hospital. A redução de verbas também significou redução no número de funcionários, mesmo com o hospital mantendo ocupados 200 leitos. Consequentemente, surgia um movimento contraditório: de um lado o empenho para ordenar o trabalho e assistência aos internos; do outro a redução progressiva do quadro de funcionários e a precarização das condições de funcionamento. Isso significava exigir dos funcionários que trabalhassem além de suas funções, significava que funcionários e internos seriam prejudicados, sob a justificativa de que era preciso manter o hospital funcionando e que esforços estavam sendo feitos por parte da gestão que já não lucrava com a empresa. 140 Em 2007, após os cálculos e avaliação financeira, a direção constatou que ao retirar da verba mensalmente recebida as despesas relacionadas à folha de pagamento, o valor restante do repasse não era suficiente para manter 200 leitos ocupados, mas apenas 173. Nesse mesmo ano, o número de consultas custeadas pelo município caiu de 573 para 473 consultas. Ainda assim, os leitos permaneciam ocupados em sua totalidade, o valor da AIH foi congelado no ano de 2009, num valor de quarenta e dois reais por dia de internamento. Esse valor foi mantido até o último dia de funcionamento do hospital (Brasil, 2012). É possível considerar que esse valor passa longe do valor mínimo para custear a diária de um ser humano, suas necessidades de alimentação, higiene, medicação, vestuário e tudo o mais que fosse basicamente preciso em condição de hospitalização. Esse panorama não deixou às diretoras do hospital muitas escolhas. Os resultados das ações em prol da Reforma Psiquiátrica fizeram-se sentir. Embora a direção tentasse se ajustar à Lei para manter o funcionamento e quiçá conseguir investimentos, foram realizando cortes nas despesas. A qualidade do serviço (que já estava longe do ideal) caiu, da alimentação à higiene e o sucateamento foi fortemente sentido na estrutura física do hospital, que no ano de 2009 passou por sua última reforma. Na ocasião o pavilhão feminino foi desativado e o pavilhão masculino foi dividido, para que as internas pudessem ocupar metade do espaço que antes, em sua totalidade, era destinado aos internos do sexo masculino. A redução do tamanho do hospital planejada por seus donos aconteceu sem a redução de leitos, essa medida possibilitou que a Casa de Saúde operasse com menos funcionários, no entanto, a medida que beneficiava aos sócios passou longe de melhorar a situação de internos e funcionários. Com o passar dos meses, os copos, pratos e talheres precisavam ser renovados na cozinha, as toalhas, lençóis e roupas foram se tornando escassos, os leitos e seus colchões demoraram mais tempo para ser substituídos ou reformados à medida em que deterioravam, 141 os chuveiros e torneiras constantemente quebrados custavam mais a ser reparados (ou nem o eram), o material para realização de grupos e oficinas era comprado com menor frequência, material de limpeza, higiene pessoal e mantimentos para a cozinha precisaram ser controlados, sabonetes e xampu deixaram de ser distribuídos, não havia papel higiênico nos banheiros, a carne sumiu das refeições, a soja era misturada ao frango, a grama crescia e se misturava com o mato, o reboco das paredes ruía. Em suma, a prioridade do investimento financeiro, a cada mês era a folha de pagamento dos funcionários, os impostos (cada vez mais altos), a compra de medicação e a compra de alimentos, todo o restante passou a ser economicamente regrado. Dessa forma, não havia como o tempo, sem aumento do teto financeiro, continuar a ser generoso com a existência da Casa de Saúde Santa Teresa, seu fechamento deveria acontecer, muito embora ela ainda atendesse a uma quantidade significativa de pessoas no sul do Ceará e nos Estados vizinhos, as péssimas condições de funcionamento haviam chegado ao limite e o hospital começava a acumular dívidas. Em 2010 a Casa de Saúde contabilizou um total de 1.598 internamentos dos quais 372 eram primeiros internamentos. Isso significa que mesmo com o crescimento dos CAPS, ainda era grande o número de pessoas conduzidas ao internamento quando de sua primeira crise. No mesmo ano, dez pessoas foram internadas compulsoriamente. Muito embora a instituição não tivesse caráter judiciário, não era raro que os juízes encaminhassem para lá as pessoas que em surto cometessem delitos ou crimes, ou ainda pessoas que após cometer crimes alegavam ou apresentavam indícios de qualquer psicopatologia. O segundo grupo era mais problemático e, não sem razão, foram os últimos a deixar os pavilhões quando do fechamento do hospital, uma vez que estavam à mercê da decisão do aparato jurídico. Essas pessoas permaneciam no internamento como numa espécie de limbo, em observação até que uma perícia fosse realizada ou até que um juiz decidisse seus destinos. 142 Foto 36: Diário do Nordeste, 2011. Uma matéria do Diário do Nordeste, em outubro de 2011, citava o internamento compulsório, de um jovem de 16 anos que havia assassinado uma amiga da mesma idade, diante da possibilidade de que o jovem apresentasse uma psicopatologia. O juiz determinou que fosse conduzido ao hospital e lá permanecesse até possível julgamento do caso. A matéria denunciava a falta de estrutura e o caráter irregular das internações compulsórias na Casa de Saúde Santa Teresa, que mesmo sofrendo esmagamento financeiro e com número mínimo de funcionários continuava atendendo a pessoas do Ceará, Paraíba, Pernambuco e Piauí. Embora fosse afirmado que a Casa de Saúde não consistia numa instituição carcerária e que a permanência de pessoas nessas condições trazia problemas à instituição e aos outros internos, as internações compulsórias continuavam a acontecer. O fato de receber internações compulsórias tornou-se argumento a favor do hospital, uma vez que não havia outro lugar para onde encaminhar esse tipo de demanda, ratificava-se a relevância social da Casa de 143 Saúde ao receber esses sujeitos que eram considerados como periculosos e ao mesmo tempo doentes. No ano de 2011 o quadro de funcionários contava com 98 pessoas, o teto financeiro era de 233 mil reais, incluindo o Hospital Dia e consultas ambulatoriais, quase metade desse valor era destinado à folha de pagamento e ao pagamento de impostos. Nos cinco anos seguintes, a situação se tornou insustentável, tornou-se impossível não contrair dívidas, tornou-se inviável manter o hospital em funcionamento. Em 2014, segundo dados do SUS (2012) o município do Crato dispunha de 64 unidades de saúde ligadas ao SUS, sendo 45 públicas e 19 privadas. Haviam 5 hospitais, entre eles a Casa de Saúde Santa Teresa e o Hospital Manuel de Abreu (ambos de caráter privado). O município dispunha também de 27 Estratégias de Saúde da Família. A rede de saúde mental do município até então era composta pela Casa de Saúde Santa Teresa, pelo Hospital-Dia e pelo CAPS II. Até o ano de 2015 a direção realizou toda a sorte de tentativas e manobras para que o hospital se mantivesse funcionando, desde a procura por apoio político, a tentativa de mudar o formato da instituição privada para uma fundação, reuniões com o ministério da saúde e representantes das gestões municipais. Nada adiantou. No entanto, a mídia ainda noticiava com pesar o iminente fechamento da instituição. A matéria do Diário do Nordeste no mês de maio de 2015, traz a imagem da recepção da Casa de Saúde e de familiares à procura de vagas para internamento, ao mesmo tempo em que noticia a impossibilidade de continuar funcionando com o teto financeiro sem aumento. Em dezembro do ano de 2015, segundo foi noticiado no mesmo jornal, a Casa de Saúde mantinha 70 funcionários, todos em condição de aviso prévio, os médicos não realizavam novos internamentos e haviam 63 internos, que deveriam deixar, em sua totalidade o hospital até o primeiro mês do ano de 2016. 144 Na reportagem, a insuficiência de recursos financeiros é reafirmada, bem como as tentativas de conseguir ajuda política para manter o funcionamento. A matéria também questiona de que maneira as famílias poderiam lidar com os doentes crônicos e com longo histórico de internamentos, uma vez que o HD deixara de operar em 2015. O discurso da função social da Casa de Saúde Santa Teresa é reafirmado até o fim de seus dias, até a saída do último interno, até o fechamento de suas portas. Os psiquiatras, funcionários e familiares de internos se manifestaram em favor do hospital, no entanto, o caráter de impossibilidade de sua manutenção se impõe. A despeito dos apelos, o hospital fecha suas portas, para seus donos deixa de ser objeto de investimento e lucro, para o andamento das políticas de Saúde Mental do país constitui mais um avanço. É impossível negar a relevância do movimento de Reforma Psiquiátrica e o bom intento dos atores sociais nesse processo. Havia um desbalanço severo entre a realidade cotidiana do hospital e a imagem que era construída pela mídia, pela direção e sustentada no preconceito com relação à loucura. A violência da segregação e a privação de liberdade constituem a verdadeira barbárie, não a loucura, nem mesmo a delinquência. Não há, na realidade, qualquer justificativa sobre os loucos, seus corpos e sua claudicância social que justifique a secular violência dos internamentos. A lógica manicomial urge por ser desmontada e superada. No entanto, é necessário considerar pelo menos duas questões críticas, que não diminuem o mérito do que foi conseguido até aqui, mas apontam para que não haja estagnação do movimento ou retrocessos. A primeira é que o fechamento da Casa de Saúde Santa Teresa e de outras unidades hospitalares não se deu com total apoio da população, de uma rede substitutiva e de seus gestores. Segundo Foucault (2006), a loucura se mantém enquanto alvo e objeto de segregação, embora haja uma variação no formato da exclusão, embora haja um deslocamento dos mecanismos de poder sobre o corpo e a figura do louco. 145 Um modo de subjetivação louco está fora do circuito de produção capitalista, não produz desejo, não gera relações de consumo, a não ser que seja marginalizado, tratado como doença ou objeto de políticas públicas; por isso não há lugar, senão a margem, para o louco no modo de vida neoliberal. A marginalização da loucura persiste junto com o capitalismo e, ainda assim, não podemos afirmar que seu lugar seria diferente num socialismo, por exemplo. Por tanto, não é permitido retroceder, não é possível acomodar e correr o risco de que uma nova forma de captura da subjetividade do louco seja construída. Foto 37: Diário do Nordeste, 2015. A segunda consideração diz respeito ao fato de que desospitalizar não significa desistitucionalizar, incluir, dar lugar (Rotelli, 2001). É óbvio e inegável que a desospitalização, o desmonte da lógica majoritária de contenção da loucura constitui um passo importante e imprescindível para a inclusão e garantia da cidadania das pessoas, para a 146 manutenção de seus direitos, sobretudo do maior deles, o direito à vida. Mas, também se faz necessário considerar que a psiquiatria, poder mutante, cria outras estratégias de ação. A ampliação dos códigos internacionais de doenças, por exemplo, amplia o campo alcance das psicopatologias a todas as esferas sociais e assim também amplia o campo de poder da psiquiatria, que não tem apenas o louco como único objeto. É possível vender mais remédios, criar novos rótulos psiquiátricos e lucrar mais quando, atendendo aos imperativos de um grande outro capitalista, o poder é pulverizado, invisibilizado, descentrado, mas não aniquilado. Foto 38: Diário do Nordeste, 2015. A figura clássica do louco se mantém como um resquício, um estereótipo que permanece e vai se esvaindo, mais como figura abstrata do que como um corpo que antes era facilmente identificável, não apenas por alucinar e delirar, mas por ser geograficamente localizado nos pavilhões dos hospitais. O objeto de poder da psiquiatria se amplia, como o interesse de consumo do modo de produção capitalista, excluindo o hospital psiquiátrico assim como exclui tudo o que não gera lucro ou desejo. Mas o poder médico e psiquiátrico não deixa de existir, talvez exista ainda com mais força, operando a céu aberto, disfarçado de 147 liberdade, vendendo cada vez mais remédios com a promessa de cura para os males da vida moderna, investindo desmedidamente nos corpos, sejam crianças, mulheres, homens ou idosos. É necessário manter a crítica ao poder psiquiátrico e todas as suas formas de dominação. O propósito da governamentalidade contemporânea é garantir o crescimento econômico e manter a salvo as pessoas que contribuem para isso. É o mesmo que afirmar que às demais parcelas da população, sobretudo pessoas pobres, cabe apenas três lugares: sustentáculo da ordem social, inclusão perversa ou morte não questionada. É a esses grupos – em última análise – a quem se destinam os mecanismos de exclusão e as estratégias governamentais que visam garantir a sobrevivência no mesmo movimento em que tornam a morte justificável. No mais, a ideia de que promover a sobrevivência biológica dos seres humanos dá por cumprida a implicação dos governantes com o povo pobre, constitui uma falácia em todos os sentidos. Como afirma Deleuze (2002) retomando Espinosa, em uma vida pensada como potência não se trata apenas de evitar a morte, não se trata apenas conservar-se vivo, mas trata-se de trabalhar a liberdade para além da fome e da miséria, dando condições para que a vida possa se desenvolver amplamente e multidimensionalmente. Reduzir os indivíduos a corpos viventes, no entanto privados de suas possibilidades, dos afetos e potencialidades possíveis é uma condenação a uma subvida, a afirmação do poder sobre o direito à vida. A vida em si, a vida mesmo é o que escapa. O que escapou às cercas de arame farpado do campo de concentração em migração contínua, o que escapou quando os habitantes do Caldeirão preferiram a morte e o combate à privação de seu direito de cultivar e viver da terra. Vida que está também (e por que não?) nos delírios que escapam aos muros do hospital e constituem a única forma possível de invenção diante da despossessão de si e da marginalização social. A vida, não restrita ao poder de consumo ou valor monetário é o que 148 desperta a ira dos governantes, o que assusta na loucura, o que perdura além da terra seca do sertão. Pelbart (2008) afirma que devemos opor a biopotência ao biopoder, isto é, a capacidade que as formas de vida têm de resistência, seu direito a um desenvolvimento mais amplo. Dessa forma, não se trata jamais de fazer o tolo elogio à pobreza ou à força da loucura ou à resistência daqueles que migram indefinidamente e quantas vezes necessário for para conseguir viver. Se trata, pelo contrário, da tarefa ética e responsável de pensar junto dessas pessoas as medidas de governo aplicadas a elas, sem esperanças de que a possibilidade de reversão desses mecanismos seja facilmente aceita. Dito isso, é preciso celebrar o fechamento de mais um hospital, é preciso comemorar a biopotência, a vida e seus mecanismos de superação sobre os estratagemas do biopoder. O cenário atual ainda é de superação das instituições manicomiais e de fortalecimento da rede substitutiva, de criação de novas formas de inclusão. Os jogos de força e as tensões são continuas, são perenes, mas talvez seja exatamente assim que se consiga superar o processo de segregação e exclusão do louco e dar lugar social à ele e à loucura. 149 Depois do fim Foto 39: Casa de Saúde Santa Teresa, 2016. 150 Os últimos dias e as últimas pessoas No mês de novembro do ano de 2015 os psiquiatras, por ordem da direção, passaram a não internar nenhuma pessoa a mais. As consultas e atendimentos ambulatoriais continuaram acontecendo até os últimos dias de funcionamento, no entanto o que se fez comum durante esses dias foram as pessoas voltando para suas cidades e casas após o atendimento, mas sem deixar mais internos. Constantes também foram as saídas, as pessoas que iam deixando os pavilhões sabendo que dessa vez não voltariam mais. A direção reduziu a folha de pagamento nos últimos meses de funcionamento, ao final, restavam setenta funcionários em aviso prévio, não mais do que vinte eram necessários nas últimas semanas. Ainda no mês de dezembro o número de internos chegou a sessenta e três e foi diminuindo rapidamente até o final do ano. Nos primeiros dias do ano de 2016 restavam onze pessoas, em sua grande maioria internos compulsórios, que aguardavam as ordens judiciais que definiriam seus destinos. Os últimos internos foram transferidos para a área administrativa, para os quartos que eram dos médicos, deixando os pavilhões vazios mesmo antes do completo fechamento do hospital. A direção foi convocada a reuniões com a secretária de Saúde Mental do município e recebeu da prefeitura municipal a solicitação para que lentificassem o processo de fechamento do hospital, de maneira que fosse possível modificar o status do CAPS do Crato para CAPS III e houvesse tempo para a construção dos leitos para acolhimento dos usuários. Isso não foi possível. O hospital fechou as portas e só depois disso começaram as obras de ampliação da estrutura física do CAPS. Essa experiência reafirma o que já foi visto em outros lugares, que talvez seja mesmo preciso desconstruir o hospital para que se instale e faça operar a rede de atenção à Saúde 151 Mental. O hábito e a facilidade de acesso ao internamento e ao ambulatório integral do hospital fizeram com que tanto a população quanto os gestores se apoiassem nessa facilidade óbvia e, embora não sirva como justificativa e impedimento de operacionalização da rede, explica o fato de que, na cidade do Crato, a grande maioria dos atendimentos psiquiátricos estivesse centralizados na Casa de Saúde Santa Teresa. A Casa de Saúde Santa Teresa foi fechada após todas as tensões possíveis e medidas da Reforma Psiquiátrica do país. O quanto durou, sua resistência, é sinal do endurecimento e da força do poder psiquiátrico e da lógica manicomial. Seu fechamento é confirmação da importância da luta antimanicomial e demonstrativo de resultado prático. Talvez se possa afirmar que o hospital começou efetivamente a fechar no ano de 2006, quando do primeiro corte efetivo de financiamento e leitos, possivelmente também se afirma que os dez anos necessários até que o hospital realmente fosse fechado é denunciante da dificuldade de transição do modelo de cuidado em Saúde Mental ou a migração do poder psiquiátrico para outros formatos de apropriação da vida. Uma das últimas pessoas a deixar o hospital foi uma mulher chamada Marta, interna por ordem judicial desde o ano de 2012, ela havia atentado contra a vida de um irmão, quase causando sua morte, por esse motivo sua família não desejava recebe-la de volta. Durante os primeiros dias de janeiro, últimos dias de Marta na Casa de Saúde, já não dormia no pavilhão feminino, estava ocupando um dos antigos quartos dos médicos e, durante o dia, ajudava na limpeza e organização da ala administrativa do hospital. Outros dois remanescentes, também aguardavam autorizações judiciais para sair da instituição. As opções seriam: voltar para casa, ir para a cadeia ou ser encaminhados a um fim pior, como foi o caso de Marta. Na terceira semana de janeiro Marta foi encaminhada para o Manicômio Judiciário Estênio Gomes, em Fortaleza. As possibilidades de que saia de lá, ainda viva, são escassas. 152 O encaminhamento de Marta ao manicômio judiciário, a existência desse tipo de instituição, nos lembra que a lógica manicomial não foi aniquilada. No entanto, é preciso que nos congratulemos por centenas de pessoas que não precisarão voltar aos pavilhões da Casa de Saúde Santa Teresa e outras centenas que não precisão ter seu primeiro atendimento lá, quiçá que não chegarão a ser privadas de sua liberdade e poderão ser tratadas em seus territórios. Além dos três últimos internos estiveram no hospital, todos os dias, até o último dia de funcionamento, os vigilantes, as funcionárias da recepção e arquivo, alguns técnicos em enfermagem, as cozinheiras, funcionários da limpeza, a tesoureira, a diretora geral e a secretária. Os psiquiatras responsáveis pelos últimos internos, clínico geral e demais sócios apareciam uma vez ou outra, sobretudo quando havia necessidade de sua ajuda para a resolução de problemas relacionados ao fechamento. No mais, restam as paredes velhas dos pavilhões que, sem habitantes, parecem obsoletas e abandonadas há muito mais tempo. Os banheiros, os corredores, os leitos sem colchões e pessoas, as embalagens de remédio e papéis pelo chão, restam os resquícios do funcionamento dos pavilhões e das pessoas que lá estiveram. O hospital é o lugar de ninguém. A recepção vazia do hospital não foi uma cena comum durante os trinta anos em que funcionou no prédio localizado no bairro Vilalta. Também não era comum que os corredores, salas da administração, consultórios e sobretudo os pavilhões estivessem vazios. A estrutura física que, por mais de quarenta e cinco anos, abrigou aos loucos e pobres da cidade e da região, sob o discurso de prestar bom serviço à comunidade, passou a ser o lugar de ninguém. Dessa forma, a análise de condições de abertura, manutenção e fechamento de um hospital, apresentada nesse trabalho, configura a descrição de elementos da ordem do discurso, a saber os imperativos da psiquiatria enquanto saber/poder e sua emergência 153 enquanto verdade sobre os corpos de determinado grupo humano, bem como os elementos sociais, econômicos e políticos que configuram as produções não-discursivas de determinado período histórico. Pode-se considerar que esses acontecimentos (abertura, manutenção e fechamento da Casa de Saúde) se dão sob condições específicas e fazem parte de uma história em continua. O fechamento massivo dos hospitais psiquiátricos constitui um marco fundamental na transformação da assistência e cuidado em Saúde Mental nesse país. No entanto, partindo da premissa de não linearidade de tempo e de infindável contingência das normas sociais e regimentos humanos, conforme apontada por Foucault (1992) e tomada como base de análise desse trabalho, é possível considerar que o futuro não está dado, que é preciso acompanhar o que acontecerá às instituições e dispositivos que ocuparão o lugar do hospital. Ainda não se pode afirmar se permanecerão e construirão enquanto espaços refratários ou assumirão um novo lugar, quiçá libertário e verdadeiramente novo, espaço de inclusão e ressignificação de subjetividades diversas. 154 As imagens a seguir têm caráter ilustrativo e fim de registro e arquivamento do hospital e de como estava sua estrutura física nos últimos dias em que funcionou. Os móveis e tudo o mais que ainda pudesse ter alguma utilidade seriam retirados pelos sócios. O arquivo, todos os prontuários e documentos dos anos de funcionamento da Casa de Saúde Santa Teresa, conforme decisão e deliberação de seus donos e gestores, serão arquivados e guardados numa sala de propriedade de um dos sócios. O acesso aos documentos e prontuários, conforme decisão dos sócios, será restrito à justiça e autoridades competentes, estando indisponível para consulta ou pesquisas. Foto 40: Fachada da Casa de Saúde Santa Teresa, 2016. Acervo pessoal. 155 Foto 41: Corredor do pavilhão administrativo, 2015. 156 Foto 42: Portão de entrada para o pavilhão masculino. 157 Fotos 43 e 44: Leitos e posto de enfermagem do pavilhão masculino. 158 Fotos 45 e 46: Sala de televisão do pavilhão masculino e entrada para a cozinha. 159 Fotos 47 e 48: Entrada para o pavilhão feminino e pátio do pavilhão feminino. 160 Fotos 49 e 50: Intercorrência psiquiátrica e leito psiquiátrico no pavilhão feminino. 161 Referências Bibliográficas Abreu, M.S. de. (2011) Luto e culto cívico dos mortos: as tensões da memória pública da Revolução Constitucionalista de 1932 (São Paulo, 1932-1937). Rev. Bras. Hist. vol.31, n.61. Alves, T. M. (1994). A Santa Cruz do Deserto. Recife, UFPE. Dissertação de Mestrado em História. Agamben, G. (2002). Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I. Tradução Henrique Burigo. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG. Amarante, P. (1995). Loucos pela vida :a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. 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