UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CURSO DE MESTRADO EM DIREITO FERNANDA ESTIMA BORBA ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DA ANULAÇÃO DE DECISÃO DEFINITIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL NO PROCESSO TRIBUTÁRIO Natal/RN Dezembro/2010 FERNANDA ESTIMA BORBA ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DA ANULAÇÃO DE DECISÃO DEFINITIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL NO PROCESSO TRIBUTÁRIO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito - PPGD do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Doutor Vladimir da Rocha França NATAL/RN 2010 13 DEDICATÓRIA Aos colegas da Receita Federal do Brasil, em especial àqueles lotados na Delegacia da Receita Federal do Brasil em Natal, dedico este trabalho. AGRADECIMENTOS Ao criador, Deus do universo, pela sua criação Aos meus pais, José Carlos de Barros Borba (in memoriam) e Julieta Estima Borba, pela vida A minha família: Francisco Evangelista Junior, Gabriela, Gustavo e Juliana Borba Evangelista, pelo amor A minha irmã Bruna Estima Borba e sua família: Aloysio Percínio da Silva, Maria Eduarda e Guilherme Borba Dantas, pelo estímulo A todos os colegas mestrandos da turma 2008, pelo companheirismo Às secretárias do Mestrado em Direito Lígia, Sara e Cecília, pela gentileza e dedicação Aos professores do Mestrado em Direito da UFRN, pelos saberes compartilhados Finalmente, um agradecimento especial ao Profº Drº Vladimir da Rocha França, firme orientador desta dissertação, pela competência RESUMO O presente trabalho trata da possibilidade da Fazenda Pública propor ao Judiciário a anulação de uma decisão administrativa definitiva em matéria tributária. Trata-se de tema que contrapõe o princípio da verdade material – o qual deve prevalecer no processo tributário – com a segurança jurídica representada pela coisa julgada administrativa. Inicia por apresentar o processo administrativo fiscal como garantia constitucional do contribuinte, inserido no panorama da jurisdição una adotada no ordenamento jurídico pátrio como um dos pilares do estado democrático de direito. Enfoca a posição da Fazenda Pública perante a coisa julgada administrativa, demonstrando a efemeridade da decisão definitiva em matéria tributária. Descreve os efeitos da revisão (ou anulação) dos atos administrativos, especialmente do lançamento tributário e da decisão administrativa que visa confirmá-lo. Finalmente, aborda a composição e a legitimidade do contencioso administrativo para concluir, respaldado na prevalência da verdade material no processo tributário, ser não só possível, mas dever da Fazenda Pública rever seus próprios atos. PALAVRAS-CHAVE: DIREITO TRIBUTÁRIO; PROCESSO ADMINISTRATIVO-FISCAL; CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO. RÉSUMÉ Cet article traite de la possibilité de proposer le Trésor à la justice pour annuler une décision administrative définitive sur les questions fiscales. Il s'agit d'un sujet qui s'oppose au principe de la vérité matérielle - qui doit prévaloir en cas d'impôt - avec une certitude morale représentée par la chose jugée administrative. Commence par le processus administratif d'impôt comme une garantie constitutionnelle du contribuable, insérée dans le panorama d’une compétence adoptée dans la législation brésilienne en tant que pilier de l'Etat de droit démocratique. Met l'accent sur la position du Trésor avant l'autorité de la chose jugée administrative, ce qui démontre la fragilité de la décision finale sur les questions fiscales. Décrit les effets de la révision (ou de l'annulation) des actes administratifs, en particulier la libération de l'impôt et de la décision administrative qui vise à le confirmer. Enfin, nous discuterons de la composition et la légitimité du contentieux administratif, en conclusion, avec le soutien de la prévalence d'un fait important dans le cas d'impôt, est non seulement possible, mais le Trésor devrait examiner leurs propres actions si nécessaire. MOTS-CLÉS: DROIT FISCAL; PROCESSUS ADMINISTRATIF; CONTENTIEUX ADMINISTRATIF. ABSTRACT This paper deals with the possibility of the Treasury propose to the judiciary to annul a final administrative decision on tax matters. This is a topic that opposes the principle of material truth - which should prevail in tax case - with legal certainty represented by administrative res judicata. Start by having the tax administrative process as a constitutional guarantee of the taxpayer, inserted in the panorama of jurisdiction una adopted in Brazilian law as a pillar of the democratic state of law. Focuses on the position of the Treasury before the administrative res judicata, demonstrating the frailty of the final decision on tax matters. Describes the effects of the revision (or cancellation) of administrative acts, especially the release of tax and administrative decision which aims to confirm it. Finally, we discuss the composition and legitimacy of administrative litigation in conclusion, supported in the prevalence of material fact in the tax case, is not only possible, but the Treasury should review their own actions when necessary. KEYWORDS: TAX LAW; PROCEEDING ADMINISTRATIVE-FISCAL, ADMINISTRATIVE PROCEEDINGS. SUMÁRIO LISTA DE ABREVIATURAS ......................................................................................................... 11 1. INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 13 2. A DECISÃO DEFINITIVA NA ESFERA ADMINISTRATIVA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA ............................................................................................................................. 20 2.1. AS FUNÇÕES DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO ............................................. 20 2.1.1. Função administrativa........................................................................................ 22 2.1.2. Função legislativa................................................................................................ 24 2.1.3. Função jurisdicional ........................................................................................... 26 2.2. O PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL.......... 28 2.2.1. Sistema de jurisdição una................................................................................... 34 2.2.2. Sistema de jurisdição dupla ............................................................................... 38 2.3. O PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL DA UNIÃO E SUA LEI GERAL ............ 42 2.3.1. O devido processo legal....................................................................................... 48 2.3.2. A aplicação da lei geral do processo administrativo ao processo tributário da União ............................................................................................. 52 2.4. A DECISÃO DEFINITIVA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA ............................................. 58 3. A ANULAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS E SEUS EFEITOS.............................. 65 3.1. O LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO E A DECISÃO DECORRENTE COMO ATOS ADMINISTRATIVOS......................................................................................................... 67 3.1.1. O lançamento tributário..................................................................................... 69 3.1.2. A decisão que julga procedente, procedente em parte ou improcedente o lançamento........................................................................................................ 75 3.2. A REVISÃO DE OFÍCIO DO LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO....................................... 83 3.3. OS EFEITOS DA ANULAÇÃO DO LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO ............................ 89 4. A FAZENDA PÚBLICA ENTRE O PODER E O DEVER DE REVER SEUS PRÓPRIOS ATOS .................................................................................................................... 101 4.1. A COMPOSIÇÃO E A LEGITIMIDADE DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO......................................................................................................... 104 4.2. A PREVALÊNCIA DA VERDADE MATERIAL NO PROCESSO TRIBUTÁRIO ...... 110 4.2.1. A prova no processo administrativo fiscal ...................................................... 112 4.2.2. Conexão entre o processo administrativo e o judicial ................................... 117 4.3. COISA JULGADA ADMINISTRATIVA VERSUS SEGURANÇA JURÍDICA............. 122 4.3.1. Súmulas: administrativas e judiciais............................................................... 130 4.3.2. Matérias com repercussão geral ...................................................................... 134 4.3.3. A segurança jurídica do contribuinte.............................................................. 135 5. CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 144 REFERÊNCIAS.............................................................................................................................. 148 LISTA DE ABREVIATURAS Ac. Acórdão ADC Ação declaratória de constitucionalidade ADI Ação direta de inconstitucionalidade art. Artigo arts. Artigos CADE Conselho Administrativo de Desenvolvimento Econômico CARF Conselho Administrativo de Recursos Fiscais CC Conselho de Contribuintes cf. Conferir CF/88 Constituição Federal de 1988 CGTB Central Geral dos Trabalhadores do Brasil Cide Contribuição de Intervenção sobre o Domínio Econômico CNA Confederação Nacional da Agricultura CNC Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo CNF Confederação Nacional das Instituições Financeiras CNI Confederação Nacional da Indústria CNS Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços CNT Confederação Nacional do Transporte Cofins Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social CPC Código de Processo Civil CPF Cadastro das Pessoas Físicas CNPJ Cadastro Nacional das Pessoas Jurídicas CSRF Câmara Superior de Recursos Fiscais CTB Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil CTN Código Tributário Nacional CUT Central Única dos Trabalhadores Darf Documento de arrecadação de receitas federais DAU Dívida Ativa da União DCTF Declaração de Contribuições e Tributos Federais DJ Diário de Justiça DOU Diário Oficial da União DRF Delegacia da Receita Federal DRJ Delegacia da Receita Federal de Julgamento ed. Edição Ed. Editora FS Força Sindical IOF Imposto sobre Operações Financeiras IPI Imposto sobre Produtos Industrializados IR Imposto de Renda ITR Imposto Territorial Rural LEF Lei das Execuções Fiscais MF Ministro da Fazenda Min. Ministro MPF Mandado de Procedimento Fiscal MS Mandado de Segurança nº Número p. Página PAF Processo administrativo fiscal PGFN Procuradoria Geral da Fazenda Nacional PIB Produto Interno Bruto PIS Contribuição para o Programa de Integração Social pp. Páginas RDA Revista de Direito Administrativo RDDT Revista Dialética de Direito Tributário Rel. Relator Rel. Ac. Relator do Acórdão RE Recurso Extraordinário RESP Recurso Especial RFB Receita Federal do Brasil RIL Revista de Informação Legislativa SRFB Secretaria da Receita Federal do Brasil STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TRF Tribunal Regional Federal UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte UGT União Geral dos Trabalhadores vol. Volume 13 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo analisar a possibilidade de uma decisão administrativa definitiva, em matéria tributária, ser revista, por iniciativa da própria autoridade administrativa, entendida como tal aquela que ocupa o pólo ativo da relação jurídico tributária: a Fazenda Pública em sua esfera política federal, ou seja, a Fazenda Nacional. O tema encerra, por si só, uma aparente contradição: como é possível algo definitivo não permanecer? Também deixa transparecer uma dose de autoritarismo e poder da Administração Pública sobre seus administrados, incoerente com a democracia instaurada no país com a Constituição Federal de 1988. Isto porque as decisões administrativas que a Fazenda Pública pretende rever podem, em tese, ser favoráveis aos contribuintes, os quais mesmo acobertados pela segurança jurídica seriam surpreendidos por uma reviravolta em sua condição de vencedores da disputa em matéria tributária. A segurança jurídica advém de norma legal: o art. 451 do Decreto Federal nº 70.235, de 6 de março de 1972 – o qual rege o processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União – estabelece que cabe à autoridade administrativa exonerar o sujeito passivo dos gravames do litígio, no caso de decisão definitiva favorável ao sujeito passivo; o art. 422 do mesmo ato lista as decisões definitivas. O tema não é novo: foi objeto de estudo de dois grandes juristas nacionais – Rubens Gomes de Sousa e Miguel Seabra Fagundes – em meados do século passado. Rubens Gomes de Sousa abordou de forma direta o tema em parecer publicado na Revista de Direito Administrativo (RDA), no qual aprecia exatamente a revisão judicial dos atos administrativos em matéria tributária por iniciativa da própria Administração. Discorre inicialmente sobre a dualidade das jurisdições no Brasil; adentra posteriormente na atribuição, ao Poder Judiciário, do controle da legalidade dos atos do Poder Executivo, intitulando o problema de “imunidade de uma decisão administrativa ao controle judicial”, para concluir que a definitividade administrativa somente 1 A redação do dispositivo é a seguinte: “Art. 45. No caso de decisão definitiva favorável ao sujeito passivo, cumpre à autoridade preparadora exonerá-lo, de ofício, dos gravames decorrentes do litígio.” 2 O art. 42 do Decreto nº 70.235/72 tem a seguinte redação: “Art. 42. São definitivas as decisões: I – de primeira instância, esgotado o prazo para recurso voluntário sem que este tenha sido interposto; II – de segunda instância, de que não caiba recurso ou, se cabível, quando decorrido o prazo sem sua interposição; III – de instância especial. Parágrafo único. Serão também definitivas as decisões de primeira instância na parte que não for objeto de recurso voluntário ou não estiver sujeita a recurso de ofício.” 14 pode ser atacada no Judiciário sob o ponto de vista da legalidade do ato, mas não sob o ponto de vista do seu mérito (1952, pp. 441-453). Miguel Seabra Fagundes, por sua vez, destacou todo um capítulo de sua obra (1979, pp. 91-166) dedicada ao estudo do controle dos atos administrativos pelo poder judiciário, ao controle jurisdicional da Administração Pública, discutindo as relações contenciosas entre contribuintes e Fazenda Pública. Apresenta Miguel Seabra Fagundes o tríplice sistema de controle das atividades da administração pública, o qual garante sua submissão à ordem jurídica: controle administrativo ou autocontrole, controle legislativo e controle jurisdicional. Conclui, assim como Rubens Gomes de Sousa fez posteriormente, que “ao Poder Judiciário é vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos” (1979, p. 145), cabendo-lhe “examiná-los, tão-somente, sob o prisma da legalidade”, pois “o mérito é de atribuição exclusiva do Poder Executivo, e o Poder Judiciário, nele penetrando, faria obra de administrador, violando, dessarte, o princípio da separação e independência dos poderes” (1979, pp. 145-147). Explica ainda que o mérito é elemento integrante apenas dos atos administrativos discricionários (1979, p. 146); ora, como o ato administrativo em análise é o lançamento tributário – mais especificamente uma decisão administrativa que visa confirmar ou alterar o lançamento tributário que a antecedeu -, e este, por concepção, é ato vinculado3, submete-se sim à apreciação jurisdicional. O que justificaria, então, uma revisitação do tema? Várias são as justificativas plausíveis para uma nova abordagem, valendo destacar as que se seguem. Cláudio Souto (1958, p. 315) ao apresentar em obra essencial para a sociologia jurídica a “marcha dominadora do direito” expõe com maestria como o direito tenta acompanhar as transformações pelas quais a sociedade passa, perseguindo através de alteração legislativa ou jurisprudencial as mudanças que já estão disseminadas nas relações sociais; aplicando esta observação científica à matéria objeto de estudo, cabe remeter à legislação instituidora do regime tributário intitulado “Supersimples”, destinado às microempresas e empresas de pequeno porte, na parte em que admite o julgamento de processos administrativos por diversas administrações 3 O art. 3º do Código Tributário Nacional, ao definir tributo, estabelece que a prestação pecuniária compulsória que ele consubstancia deve ser cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. 15 tributárias, uma vez que o regime inclui tributos de competência de diferentes entes tributantes4. Ora, a necessidade de participação de diferentes entes em uma eventual anulação ou revisão de lançamento tributário efetuado na pessoa jurídica sujeita ao referido regime provoca novos questionamentos: como se dará a comunicação e principalmente o cumprimento, por parte dos demais entes, de eventual decisão administrativa proferida por ente distinto? Cabe invocar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (1991, p. 15)5 ao destacar a importância do procedimento administrativo na regulação, pelo Estado, das condições de vida dos cidadãos, apontando a utilização do procedimento administrativo como um dos principais instrumentos de proteção da liberdade do cidadão. Outro motivo para uma nova abordagem é o fato do processo tributário carecer de uma codificação própria, o que significa que disposições pertinentes à matéria são encontradas em legislação extravagante, a qual passa por alterações ao longo do tempo6, além de comporem um núcleo que pode ser intitulado como “microsistema do processo tributário”, representando uma dificuldade a mais para o estudo da matéria. De fato, o processo tributário compreende tanto a fase administrativa quanto a judicial de discussão do crédito tributário, a primeira regida pelos seguintes atos na esfera federal: o Decreto Federal nº 70.235, de 6 de março de 1972, o qual regula o processo de determinação e exigência dos créditos tributários da União; a lei geral do processo administrativo – a Lei Federal nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999 – a qual se aplica subsidiariamente ao processo administrativo fiscal federal na parte em que não contradiz o referido 4 Os dispositivos legais em referência são os arts. 39 e 40 da Lei Complementar Federal nº 123, de 14/12/2006, os quais têm a seguinte redação: “Art. 39. O contencioso administrativo relativo ao Simples Nacional será de competência do órgão julgador integrante da estrutura administrativa do ente federativo que efetuar o lançamento ou a exclusão de ofício, observados os dispositivos legais atinentes aos processos administrativos fiscais desse ente. § 1º O Município poderá, mediante convênio, transferir a atribuição de julgamento exclusivamente ao respectivo Estado em que se localiza. (...) Art. 40. As consultas relativas ao Simples Nacional serão solucionadas pela Secretaria da Receita Federal, salvo quando se referirem a tributos e contribuições de competência estadual ou municipal, que serão solucionadas conforme a respectiva competência tributária, na forma disciplinada pelo Comitê Gestor”. 5 “11. O destino da humanidade, portanto, ao menos até onde se pode prever, inclui um progressivo condicionamento do exercício da liberdade e da propriedade. Seremos cada vez menos livres ante os órgãos de deliberação social. Por aí se vê quanta razão tinha Forsthoff ao dizer – conforme retro anotamos – que os mecanismos da sociedade burguesa para defesa da liberdade tornar-se-iam crescentemente inadequados e insuficientes, reclamando novos instrumentos para a proteção dos mesmos objetivos básicos a que vieram servir. A disciplina do procedimento administrativo é certamente um dos principais deles”. 6 A Lei Complementar Federal nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, trouxe em seu art. 7º, II, a vedação de a lei conter matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão. Anteriormente a esta disposição, acontecia de estar inserido em lei texto estranho a seu objeto; mesmo após, ainda encontram-se registros tal como o detectado por Kiyoshi Harada no art. 6º da Lei Federal nº 11.051, de 29 de dezembro de 2004, a qual alterou o art. 40 da Lei Federal nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, para inovar quanto ao termo inicial da prescrição intercorrente. 16 Decreto nº 70.235/19727, e leis esparsas (legislação extravagante), tais como a Lei Federal nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, a qual prevê em seu art. 778 a não constituição de crédito tributário baseado em dispositivo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, e, em seu art. 839, estabelece o encaminhamento, ao Ministério Público, da representação fiscal para fins penais relativa a crimes contra a ordem tributária e contra a Previdência Social somente após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente; a Lei Federal nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, a qual trata da extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem tributária pelo pagamento, em seu art. 3410; e a Lei Federal nº 10.522, de 19 de julho de 2002, a qual fixa em seu art. 1911 a dispensa da constituição do crédito tributário relativo a matéria para a qual a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal seja pacífica contra a Fazenda Nacional; quanto à fase judicial, esta é regida pela Lei de Execução Fiscal (LEF), a Lei Federal nº 6.830, de 22 de setembro de 1980, e a Lei Federal nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - a qual instituiu o Código de Processo Civil (CPC) - subsidiariamente, na forma do art. 1º12 da mesma Lei nº 6.830/1980. Em 1964, Gilberto de Ulhôa Canto elaborou, juntamente com Geraldo Ataliba e Gustavo Miguez de Mello, um anteprojeto de código de processo tributário – intitulado “lei orgânica do processo tributário” – na tentativa de unificar o processo administrativo e o judicial, sem, no entanto, obter sucesso quanto à sua conversão em lei no Congresso Nacional. Cabe ainda lembrar que ele, 7 O art. 69 da Lei nº 9.784/1999 estabelece que os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos da mesma lei. 8 O dispositivo tem a seguinte redação: “Art. 77. Fica o Poder Executivo autorizado a disciplinar as hipóteses em que a administração tributária federal, relativamente aos créditos tributários baseados em dispositivo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, possa: I – abster-se de constituí-los; II – retificar o seu valor ou declará-los extintos, de ofício, quando houverem sido constituídos anteriormente, ainda que inscritos em dívida ativa; III - formular desistência de ações de execução fiscal já ajuizadas, bem como deixar de interpor recursos de decisões judiciais”. 9 O dispositivo está assim transcrito, na redação dada pelo art. 11 da Medida Provisória nº 497/2010, cuja vigência foi prorrogada por sessenta dias por ato do Presidente da Mesa do Congresso Nacional nº 31, publicado em 24.09.2010: “Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e aos crimes contra a Previdência Social, previstos nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848/1940 (Código Penal), será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.” 10 O art. 34 da Lei nº 9.249/95 tem a seguinte redação: “Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”. 11 O dispositivo tem a seguinte redação: “Art. 19. Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional autorizada a não contestar, a não interpor recurso ou a desistir do que tenha sido interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese de a decisão versar sobre: I – matérias de que trata o art. 18; II – matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, ou do Superior Tribunal de Justiça, sejam objeto de ato declaratório do Procurador-Chefe da Fazenda Nacional, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda”. 12 O art. 1º da Lei nº 6.830/80 tem a seguinte redação: “A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil”. 17 Gilberto de Ulhôa Canto, foi um dos autores do Código Tributário Nacional, denominação dada à Lei nº 5.172, aprovada em 25 de outubro de 1966. Talvez o argumento mais forte a ensejar uma nova abordagem do tema seja a autorização conferida aos procuradores da Fazenda Nacional, a quem cabe a representação judicial da União em matéria tributária, através da Portaria da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) nº 820, de 25 de outubro de 2004, para submeter ao Poder Judiciário decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) contrárias à Fazenda Nacional que apresentem uma ou mais das seguintes características: (i) afastem a aplicação de leis ou decretos; (ii) versem sobre valores superiores a R$ 50.000.000,00 (cinqüenta milhões de reais); (iii) cuidem de matéria cuja relevância temática recomende sua apreciação na esfera judicial; (iv) possam causar grave lesão ao patrimônio público. Este ato sucedeu o Parecer PGFN nº 1.087, de 23/08/200413, no qual a PGFN conclui que existe sim a possibilidade jurídica de as decisões do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, que lesarem o patrimônio público, serem submetidas ao crivo do Poder Judiciário, pela Administração Pública, quanto à sua legalidade, juridicidade, ou diante de erro de fato. São apontados como legitimados para intentar a ação judicial – mandado de segurança, ação de conhecimento, ação civil pública14 ou ação popular – a própria PGFN (para as duas primeiras), o Ministério Público ou outro legitimado, indicado no art. 5º da Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho de 198515 (no caso da ação civil pública), e o cidadão (na hipótese de ação popular). O problema parece bem mais amplo que a simples autorização acima descrita, conferida por ato administrativo: na verdade, não se trata de disputa entre dois oponentes - Fazenda Pública e contribuinte - para decidir se ambos têm mesmas chances. De fato, são dois oponentes que se entrelaçam, pois a Fazenda Pública é composta por dois grandes grupos: o dos contribuintes e o dos não-contribuintes, aqueles que não contribuem, se for possível imaginar que haja alguém fora 13 O Parecer PGFN nº 1.087/2004 foi publicado no DOU, Seção 1, de 23 de agosto de 2004, às páginas 15 a 17. 14 O parágrafo único do art. 1º da Lei Federal nº 7.347, de 24 de julho de 1985, estabelece não ser cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados. Assim, a conclusão do parecer quanto ao cabimento da ação civil pública parece estar em desacordo com o texto legal. 15 É o seguinte o texto legal: “Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I – o Ministério Público; II – a Defensoria Pública; III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. 18 totalmente da economia formal, pois através dos tributos indiretos, que incidem sobre o consumo, e que os cidadãos pagam sem sentir, como já observou o Padre Antônio Vieira em seu sermão ontológico perante o rei e as cortes em Lisboa, em 14 de setembro de 164216, todas as pessoas são também contribuintes. Ora, a Fazenda Pública somos todos nós; ela representa o interesse de uma coletividade, justamente por isso se diz que ela lida com o interesse público, indisponível, portanto. Logo as questões que são suscitadas por vários doutrinadores nas disputas entre Administração Tributária e contribuintes, por força dos prazos estendidos em favor daquela e de uma série de regalias em detrimento do contribuinte; a parcialidade do contencioso administrativo; a demora para decidir no contencioso administrativo que gera insegurança para o contribuinte; o absurdo da Fazenda Pública querer desconstituir algo que ela própria produziu – uma decisão administrativa que ela mesma prolatou – estão todas estas questões inseridas num contexto bem mais amplo, que é o modelo de estado democrático de direito que foi traçado na nossa Constituição e que obedece à clássica trilogia da repartição dos poderes instituída por Montesquieu em sua obra (1748). Mais um argumento a justificar a revisitação do tema é o dever de unidade, coerência e completude do ordenamento jurídico, características estas apontadas por Norberto Bobbio (2007, p. 187-188) em sua teoria como os problemas do ordenamento jurídico. Ora, se a norma existe – como já exposto anteriormente, a Portaria PGFN nº 820/2004 está inserida no ordenamento jurídico – e se ainda se discute sua legalidade, legitimidade, e constitucionalidade, cabe analisá-la à luz dos critérios para solução de possíveis antinomias, lacunas e problemas decorrentes da complexidade do ordenamento por força da diversidade das fontes do direito. O trabalho se destina, em síntese, a: estudar a extensão do controle jurisdicional do ato administrativo do lançamento tributário, mais especificamente da decisão administrativa que visa confirmar ou não o mesmo lançamento; prever as conseqüências da renúncia do contribuinte à 16 Trecho do Sermão de Santo Antônio, pregado por Padre Antônio Vieira na Igreja das Chagas em Lisboa em 14 de setembro de 1642 (2001, p. 322): “A costa de que se havia de formar Eva, tirou-a Deus a Adão dormindo e não acordado, para mostrar quão dificultosamente se tira aos homens, e com quanto suavidade se deve tirar ainda o que é para seu proveito. Da criação e fábrica de Eva dependia não menos que a conservação e propagação do gênero humano; mas repugnam tanto os homens a deixar arrancar de si aquilo que se lhe têm convertido em carne e sangue, ainda que seja para bem de sua casa, e de seus filhos, que por isso traçou Deus tirar a costa a Adão, não acordado, senão dormindo; adormeceu-lhe os sentidos, para lhe escusar o sentimento. Com tanta suavidade como isto, se há de tirar aos homens o que é necessário para sua conservação. Se é necessário para a conservação da Pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é razão que seja; mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam. Deus tirou a costa a Adão, mas ele não o viu nem o sentiu; e se o soube, foi por revelação”. 19 esfera administrativa ao optar pela discussão da matéria no Judiciário; verificar a possibilidade de a administração tributária provocar o Judiciário para reverter entendimento emanado de órgão de sua própria estrutura, em processo administrativo fiscal federal. Para possibilitar o desenvolvimento do tema, foi distribuído o assunto em três tópicos, a saber: inicia por apresentar o processo administrativo fiscal como garantia constitucional do contribuinte, inserido no panorama da jurisdição una adotada no ordenamento jurídico pátrio como um dos pilares do estado democrático de direito; em seguida, enfoca a posição da Fazenda Pública perante a coisa julgada administrativa, definindo a decisão definitiva em matéria tributária; descreve os efeitos da revisão dos atos administrativos, especialmente do lançamento tributário e da decisão administrativa que visa confirmá-lo; finalmente, aborda a composição do contencioso administrativo, bem como a prevalência da verdade material no processo tributário e o embate entre a coisa julgada administrativa e o princípio da segurança jurídica. O trabalho foi concebido com base em pesquisa bibliográfica, consultando-se, além de livros e artigos atualizados, sítios na rede mundial de computadores Internet e matéria de jornais em circulação. A participação em eventos científicos também foi importante, já que contribuiu para a elaboração do trabalho. À legislação específica – tais como portarias e pareceres - bem como à jurisprudência consultada – administrativa e judicial – são feitas citações em notas de rodapé, à medida em que tais referências se impõem no corpo do texto. 20 2. A DECISÃO DEFINITIVA NA ESFERA ADMINISTRATIVA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA 2.1. As funções do Estado no direito brasileiro Para explicar como se forma uma decisão definitiva na esfera administrativa em matéria tributária, é necessário abordar, preliminarmente, as funções do Estado. Trata-se de definir, em relação ao Estado Democrático de Direito tal como se concebe na era do pós-positivismo17 – em que a lei se subordina aos princípios constitucionais de justiça e aos direitos fundamentais – as atribuições de cada poder político, assim expressas na carta maior. Coube ao Barão de Montesquieu formular a teoria das funções estatais, em obra publicada inicialmente em 1748, partindo da premissa de que falta liberdade ao estado que confunde numa mesma pessoa ou corporação os poderes Legislativo e Executivo (Livro XI, Capítulo VI)18; mais tarde, em 26 de agosto de 1789, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão incorporaria os mesmos ditames em seu texto ao concluir que toda sociedade onde não estiver assegurada a garantia dos direitos individuais, nem determinada a separação dos Poderes, não tem Constituição19. A doutrina consultada20 explica que, antes de Montesquieu, Aristóteles – na obra La Politique, Livro VI, Capítulo XI, § 1º - e John Locke trataram da tripartição dos poderes. O princípio da separação dos poderes – para o qual a função do Legislativo é legislar, a função do Judiciário é julgar e a função do Executivo é governar – evoluiu no Brasil para englobar 17 Luiz Guilherme Marinoni (2010, pp. 45-47) ao apresentar a nova concepção de direito e a transformação do princípio da legalidade, lembra que a redução do direito à lei, característica do positivismo, não se sustenta atualmente, uma vez que a lei é reconhecida como resultado da junção de forças de vários grupos sociais, resultando na necessidade de submeter a produção normativa a órgãos diversos do Legislativo, em especial ao Judiciário. 18 A redação do texto é (2004, p. 166): “Quando em uma só pessoa, ou em um mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não pode existir liberdade, pois só se poderá temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado criem leis tirânicas para executá-las tiranicamente”. 19 Robert Pelloux (1966, pp. 15-16) apresenta o conteúdo da declaração, remetendo o texto citado ao artigo 16, cuja redação original é: “Toute société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a point de constitution”. 20 Alexandre Barros Castro (2008, p. 5); Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (2007, pp. 53-54); Gustavo Binenbojm (2006, p. 12). 21 a noção da interdependência das funções do Estado, contida expressamente no texto do art. 2º21 da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988 (CF/1988). A idéia que prevalece, portanto, na CF/1988, se distingue porque representa um avanço – este justificado pela complexidade das tarefas assumidas pelo Estado, face às demandas dos cidadãos - em relação àquela formulada na concepção do próprio princípio da separação dos poderes: impera a independência harmônica entre os três poderes do Estado, a qual não está fundada em funções exclusivas ou privativas, mas sim em funções estatais primordiais. De acordo com tal idéia, cada poder exerce todas as três funções típicas do Estado: uma delas de forma predominante e as demais de forma subsidiária. Assim, o Poder Legislativo, além de precipuamente fazer leis, também pratica atos administrativos, ao contratar servidores ou realizar licitações; o Poder Judiciário, além de julgar, que é sua tarefa maior, também exerce os mesmos atos administrativos de contratação e promoção de servidores, e contratação de obras e serviços com particulares; finalmente, o Poder Administrativo além de governar, edita atos tais como regulamentos, portarias, instruções de serviço e também tem por atribuição, por exemplo, o julgamento de processos administrativos fiscais. Finalmente, cabe invocar o sistema de freios e contrapesos que está na base do princípio da separação de poderes, definido por Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 32) como o mecanismo através do qual se atribui a uns, muito embora em caráter restritivo, funções que em tese corresponderiam a outros poderes, promovendo-se, desta forma, um equilíbrio mais bem articulado entre os três poderes. A seguir estão as distinções entre as diferentes funções do Estado brasileiro, tais como são encontradas na CF/1988. 21 O art. 2º da CF/1988 tem a seguinte redação: “Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” 22 2.1.1. Função administrativa O Brasil adota um modelo de Estado social e intervencionista que embasa o capitalismo, este fundado no direito à propriedade e no direito à livre iniciativa. Ambos figuram na CF/1988 como direitos fundamentais: trata-se da chave para explicar o porquê da função administrativa ser mais ampla que as demais funções do Estado brasileiro. De fato, a função administrativa no Brasil se agiganta pela própria missão do Estado Democrático, definida no preâmbulo da CF/1988: assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça. Esta observação se coaduna com a lição de Lourival Vilanova, quando apresenta os diferentes papéis que o Estado moderno assume, por força da ampliação de suas funções prestacionais: seja atuando como controlador da produção e do consumo, seja como gerente, seja como administrador, seja como banqueiro, seja como educador, seja como árbitro dos valores artísticos e científicos22. Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 36) define a função administrativa como a exercida pelo Estado, “na intimidade de uma estrutura e regime hierárquicos”, caracterizando-se no sistema constitucional brasileiro pelo fato de ser “desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judiciário”. Ao contrapor a jurisdição com a administração, Ada Pellegrini Grinover (2010, p. 154-155) destaca não haver dúvida de que também através da atividade administrativa o Estado cumpre a lei; mas a distinção entre ambas as atividades se revela principalmente em três aspectos: o administrador, embora cumpra a lei, não tem a finalidade de atuá-la – seu escopo é, por outro lado, a realização do bem comum; ao praticar um ato que lhe compete, a Administração Pública realiza uma atividade do próprio Estado, o qual é parte na relação jurídica que se forma, sem que se 22 Esta expansão do Estado contemporâneo está assim descrita por Lourival Vilanova: “As projeções concretas dessa expansão do Estado contemporâneo estão diante de nós, insistentemente mencionadas. O Estado social-democrático de direito prossegue publicizando a vida social, convertendo-lhe todos os aspectos em conteúdo da vontade política. Quer mediata, quer imediatamente, quer indireta, quer diretamente, tudo vai se politizando. Essa ampliação do conteúdo estatal projeta o Estado como Estado-administrativo, Estado de serviços públicos. O alargamento de funções prestacionais confere-lhe o papel de agente do bem-estar do maior número possível: é o Estado contralador da produção e do consumo, o Estado-gerente, o Estado-administrador, o Estado-banqueiro, o Estado-educador, o Estado- árbitro dos valores artísticos e científicos.” (2003, p. 423). 23 configure o aspecto substitutivo; os atos administrativos não são definitivos, razão pela qual podem ser revistos jurisdicionalmente em muitos casos. O presente trabalho pretende responder justamente a um questionamento nascido no cerne da função administrativa, mas cuja solução implica o estudo da submissão dos atos administrativos ao Poder Judiciário – a possibilidade de ser atacada, no Judiciário, uma decisão proferida por um órgão de julgamento situado na estrutura do Poder Executivo, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, subordinado hierarquicamente ao Ministro da Fazenda – portanto sujeito ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário. A origem do Direito Administrativo, nascido na França, remonta à Revolução Francesa, quando, derrubada a Monarquia Absoluta até então vigente, o Estado não dispunha de uma legislação que regulasse as relações do Poder Público com os administrados23. Surgiu então o Conselho de Estado, órgão encarregado de julgar as lides entre ambas as partes, o qual foi construindo, com a sua jurisprudência, os princípios e conceitos que passaram a constituir o Direito Administrativo. Confirma tal assertiva a observação de Maria Sylvia Zanella di Pietro (2009, p. 24) sobre o surpreendente afastamento do direito francês do princípio da legalidade, o qual era considerado a base do direito administrativo, na medida em que a jurisprudência consolidada pela jurisdição administrativa tornou-se a sua principal fonte. No Brasil, o Direito Administrativo sofreu forte influência do direito francês e italiano, ambos sistemas de base romanística, mas também teve sua atuação pautada pelo direito da common law, especialmente o norte-americano. Maria Sylvia Zanella di Pietro (2009, pp. 22-26) demonstra tais influências ao apresentar em retrospectiva histórica o Direito Administrativo brasileiro: desde o Brasil-Colônia, quando se aplicavam aqui as leis portuguesas, em especial as Ordenações do Reino; no Império foi criado o Conselho de Estado, o qual não exercia, no entanto, função jurisdicional, mas sim consultiva; no primeiro período da República suprime-se o Poder Moderador e o Conselho de Estado, por força da adoção do modelo anglo-americano de unidade de jurisdição, quando a Administração Pública passou a submeter-se ao controle jurisdicional; finalmente absorveu, do direito francês, a idéia de ato administrativo ao qual é inerente o atributo da auto-executoriedade, além do conceito de 23 Ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 39) que as normas do Direito então existente – o “Direito Comum” – não podiam ser aplicadas às relações entre o Poder Público e os administrados, daí porque “era preciso aplicar um Direito “novo”, ainda não legislado (ou que mal iniciava a sê-lo)”. 24 serviço público, das teorias sobre responsabilidade civil do Estado, das prerrogativas da Administração Pública, da teoria dos contratos administrativos, do princípio da legalidade. Finalmente, invoca o paradoxo representado pelo afastamento do direito francês e do sistema da common law: o direito brasileiro, ao mesmo tempo em que elegeu a lei como principal fonte do direito, na realidade permite um vácuo entre o que está na lei e o que se aplica na prática. Deste descompasso decorre a posição da Administração Pública à frente do legislador, acarretando, no dizer de Maria Sylvia Zanella di Pietro (2009, p. 25) “desprestígio da Constituição e do princípio da legalidade”. Adiante será retomada a justificativa para a existência de tribunais administrativos que integram a estrutura do Poder Executivo – em qualquer uma das três esferas políticas do governo – mas cujos pronunciamentos não se revestem da autoridade da “coisa julgada”, reservada aos atos emanados do Poder Judiciário. 2.1.2. Função legislativa A função legislativa está desenhada na Constituição Federal nos arts. 44 a 75, pela disciplina da atuação do Congresso Nacional, bem como pela definição das competências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, pela descrição do processo legislativo, dentre outras regras. Vladimir da Rocha França (2007, pp. 47-49) apresenta a função legislativa como a capaz de acionar o processo de concretização do sistema do direito positivo, uma vez que é responsável pela expedição de regras gerais. Explica que a competência para inovar permite estabelecer nova “disciplina jurídica das competências e das classes de direitos subjetivos e deveres jurídicos”. Denomina a competência originária para expedir regras gerais de competência legislativa; e demonstra que no direito positivo as competências legislativas são partilhadas entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo. Lista duas regras básicas de distribuição de competência legislativa: a primeira refere-se ao fato da maioria dos atos legislativos provir do Poder Legislativo, muito embora o Poder Executivo participe nos processos legislativos mais 25 importantes, de acordo com o art. 6624 da CF/1988; a segunda diz respeito à natureza excepcional do ato legislativo expedido pelo Poder Executivo, o qual se submete a controle do Poder Legislativo. Finalmente, define função legislativa como a que “consiste na atividade estatal de expedição de regras que induzem inovações originárias e primárias no ordenamento jurídico, conferida aos órgãos indicados pela Constituição para exercê-la, respeitadas as normas constitucionais” (2007, p. 49). Hans Kelsen, por sua vez, ao distinguir função jurisdicional de função legislativa (2007, p. 151), atribui à última a criação de normas gerais, enquanto que à primeira está reservada a criação de normas individuais. As normas gerais são comandos abstratos e genéricos, que se destinam a uma universalidade de cidadãos. Tais normas ocupam não o topo da pirâmide normativa proposta por ele, mas o patamar imediatamente inferior, servindo portanto como fundamento de validade de todas as demais normas. A elaboração das mesmas normas gerais pelo Legislativo corresponde à aplicação da Constituição e está sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. Admite ainda Hans Kelsen (2007, p. 152) que a anulação das leis por um tribunal pode ser interpretada como uma repartição do poder legislativo entre dois órgãos, bem como uma intromissão no poder legislativo. Após afirmar que a “concentração de um poder excessivo” em um só órgão representa ao mesmo tempo um perigo para a democracia, defende que o Parlamento e o governo devem ser controlados pela jurisdição constitucional. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (2007, pp. 55-58) expressa opinião similar, criticando a doutrina da tríplice função estatal, segundo a qual o Poder Público uno se exterioriza através de três faculdades fundamentais: os poderes Legislativo, Executivo e Judicial. Entende que as atribuições dos dois primeiros só se levam a efeito se harmonicamente conjugados, não devendo haver ingerência no exercício da função jurisdicional pelos órgãos legislativo e executivo. Propõe, portanto, a harmonia entre os Poderes Legislativo e Executivo, cujas estruturas orgânicas se entrosam quando de sua atuação, e a independência do Poder Judiciário, o qual forma um sistema orgânico à parte. 24 É o seguinte o teor do dispositivo: “Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará. § 1º Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte,inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal, os motivos do veto”. 26 Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, pp. 35-36) concebe a função legislativa como a exercida pelo Estado – e exclusivamente por ele – por via de normas gerais, dotadas normalmente do requisito da abstração, e que se baseiam direta e imediatamente na Constituição. 2.1.3. Função jurisdicional De Plácido e Silva conceitua jurisdição como a “extensão e limite do poder de julgar de um juiz” (2008, p. 804), explicando ainda que “toda jurisdição, na conceituação moderna, dimana da soberania do Estado, a qual nela é fundada”. Esta assertiva se confirma no texto constitucional pátrio, em diversos dispositivos: inicia no art. 2º, ao conferir independência e harmonia entre os três poderes da União – Legislativo, Executivo e Judiciário; continua no inciso XXXV do art. 5º, ao elevar a direito fundamental – e, portanto, cláusula pétrea - a apreciação, pelo Poder Judiciário, de lesão ou ameaça a direito; estabelece as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio dos juízes, no art. 95; assegura autonomia administrativa e financeira ao Poder Judiciário no art. 99; e, finalmente, traça a competência do Supremo Tribunal Federal em seu art. 102, a quem cabe a “guarda da Constituição”, o que equivale a estabelecer o sistema de controle de constitucionalidade das leis e demais atos normativos. A este controle de constitucionalidade, que confere segurança jurídica e, ao lado do princípio da democracia, é um dos pilares do Estado Democrático de Direito, será dada atenção especial no último tópico, onde serão confrontadas a coisa julgada administrativa com a segurança jurídica. Cabe ao Judiciário a emissão de normas jurídicas individuais – as sentenças judiciais – as quais têm força de lei entre as partes. Tais normas têm por fundamento de validade as leis genéricas e abstratas – as normas gerais – e ocupam a base da pirâmide normativa construída por Hans Kelsen para ilustrar a configuração do ordenamento jurídico. O processo de elaboração das normas jurídicas individuais, que constitui o objeto da função jurisdicional, foi relatado por Hans Kelsen (1984, p. 334) a partir da subsunção do caso concreto à lei, isto é, à norma geral25. Esta norma geral, por sua vez, está adstrita ao princípio da 25 Hans Kelsen afirma, ao abrir a exposição sobre a relação entre a decisão judicial e a norma jurídica geral a aplicar, que “o acto através do qual é posta a norma individual da decisão judicial é (...) quase sempre predeterminado por normas gerais tanto do direito formal como do direito material”. 27 imputação, princípio este ordenador, aplicado na descrição de uma ordem normativa da conduta dos homens entre si. A formulação genérica da proposição jurídica proposta por Hans Kelsen é a seguinte: “Sob determinados pressupostos, fixados pela ordem jurídica, deve efetivar-se um ato de coerção, pela mesma ordem jurídica estabelecida”. No entanto, Hans Kelsen reconhece que não é possível a nenhuma ordem jurídica prevenir todos os conflitos de interesses que possam eventualmente surgir; e esta é a razão para se dizer, comumente, que o tribunal – o Poder Judiciário – recebe competência para exercer a função de legislador, o que não é exato: a competência conferida ao Poder Judiciário se limita a criar apenas uma norma individual, “válida unicamente para o caso que tem perante si” (1984, p. 336). O que pode acontecer – explica Hans Kelsen - é a aplicação, pelo juiz, de uma norma geral “tida por ele como desejável, como justa, que o legislador deixou de estabelecer”. Ainda sobre a função jurisdicional, Hans Kelsen ilustra o seu exercício com a figura da moldura - a mesma metáfora utilizada quando da concepção da interpretação da norma jurídica como uma moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação. De fato, ao aplicar o Direito, o juiz interpreta a norma jurídica, deduzindo da norma geral a norma individual que é a sentença. Hans Kelsen equivale a interpretar fixar o sentido das normas que se vai aplicar e define a interpretação como “uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior” (1984, p. 463). Célio César Paduani (2003, p. 739) explica que a palavra jurisdição vem do latim jurisdctio, significando “ação de dizer o direito” ou “dizer o direito”. A jurisdição visa à aplicação, pelo Estado – este concebido como produto cultural e da convivência social - do direito a caso controvertido, com o objetivo de solucionar um litígio. Ao distinguir jurisdição das demais atividades do poder estatal, Célio César Paduani (2003, pp. 744-745) lembra que o exercício da jurisdição exige que a lei assegure garantias aos órgãos jurisdicionais, as quais, junto com os princípios, têm seu fundamento na Constituição. Finalmente, conceitua jurisdição como o ato jurídico e manifestação dele mesmo (2003, p. 750). Na função jurisdicional, o Poder Judiciário é terceiro estranho à lide que se formou a partir da relação trilateral que compreende autor, réu e juiz. O juiz não é parte na relação, mas atua sim com imparcialidade para por fim ao conflito entre as partes. 28 Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 34) lembra que o Judiciário executa atos legislativos ao elaborar seus regimentos internos, como previsto no art. 96, I, “a”26 da CF/1988. A Constituição Federal de 1988 delineia o Poder Judiciário em seus arts. 92 a 135, estabelecendo a sua estrutura, a forma de acesso, a composição dos tribunais, bem como os princípios aos quais está adstrito. Gilberto de Ulhôa Canto (1969, p. 171), ao analisar a posição do Poder Judiciário no sistema constitucional brasileiro, confirma a sua majestade diante dos demais poderes instituídos, afirmando que “muito embora se o chame, constantemente “poder desarmado”, cabe-lhe, na estrutura do nosso país, um papel que lhe permite superpor-se, em efetividade de comando, ao Poder Legislativo (através da declaração de inconstitucionalidade das leis), e ao Executivo (mediante anulação de atos que deste emanem)”. Esta prevalência do Poder Judiciário sobre o Executivo é justamente o objeto do presente trabalho, que envolve a possibilidade de um órgão da Administração Tributária – o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – acionar o Judiciário para reverter uma decisão administrativa desfavorável ao Fisco. Ao longo do trabalho serão expostos argumentos na tentativa de solucionar o questionamento. A seguir será abordado com mais profundidade o exercício da função jurisdicional, por força da sua sujeição ao princípio constitucional da inafastabilidade da prestação jurisdicional. 2.2. O princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional Este tópico é a expressão do princípio contido no inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal de 198827, que consagra o sistema de controle dos atos administrativos denominado uno: 26 O dispositivo constitucional tem a seguinte redação: “Art. 96. Compete privativamente: I – aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;”. 27 O texto do dispositivo constitucional é o que segue: “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”. 29 trata-se de garantia fundamental do administrado e do cidadão levar ao conhecimento do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito seu. Fredie Didier Jr. (2010, p. 83) conceitua jurisdição como a realização do direito em uma situação concreta, através de terceiro imparcial, de uma forma criativa e autoritária, tendente a tornar-se indiscutível. E complementa comentando a atuação do juiz na atualidade, orientado pelo “pós-positivismo” que caracteriza o Estado constitucional: a postura que se exige do juiz é ativa, competindo a ele compreender as particularidades do caso concreto em estudo e pinçar, da norma geral e abstrata, uma solução que se coadune com as disposições e princípios constitucionais, bem como com os direitos fundamentais. Ada Pellegrini Grinover (2010, p. 151), ao explicar o escopo jurídico de atuação do direito, afirma que o Estado, ao criar a jurisdição no quadro de suas instituições, visa garantir que se atinjam, no exercício da função jurisdicional, em cada caso concreto, os objetivos das normas de direito substancial. Ada Pellegrini Grinover demonstra a inaceitabilidade do critério orgânico para distinguir a jurisdição, segundo o qual esta seria a função atribuída ao Poder Judiciário. Trata-se, no seu entender, de proposta duplamente falsa, pois há funções jurisdicionais exercidas por outros órgãos – conforme art. 52, I28, da Constituição Federal – e há funções não-jurisdicionais que os órgãos judiciários exercem, como está expresso no art. 9629 da Constituição Federal. Por não serem os atos administrativos definitivos, mas sim passíveis de revisão jurisdicional, neste aspecto se chocam com uma forte característica dos atos jurisdicionais: “eles são suscetíveis de se tornar imutáveis, não podendo ser revistos ou modificados”, como Ada Pellegrini Grinover bem ressalta (2010, p. 154). Esta garantia de imutabilidade dos efeitos de uma sentença judicial está consagrada no inciso XXXVI do art. 5º do texto constitucional, e é intitulada coisa julgada. Por força da coisa julgada, diz Ada Pellegrini Grinover (2010, p. 154) “nem as partes podem repropor a mesma demanda em juízo ou comportar-se de modo diferente daquele 28 É a seguinte a redação do dispositivo: “Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;”. 29 A redação parcial do dispositivo é a seguinte: “Art. 96.Compete privativamente: I – aos tribunais: (...) b) organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados, velando pelo exercício da atividade correicional respectiva; II – ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169: (...) d) a alteração da organização e da divisão judiciárias (...)”. 30 preceituado, nem os juízes podem voltar a decidir a respeito, nem o próprio legislador pode emitir preceitos que contrariem, para as partes, o que já ficou definitivamente julgado”. Compreende-se, portanto, o poder da jurisdição sobre os atos da Administração Pública, a quem cabe impulsionar o processo administrativo fiscal, ou seja, o processo de determinação e exigência dos créditos tributários da União. O controle dos atos que são praticados no curso do processo administrativo fiscal é exercido, portanto, pela jurisdição ou pelo Poder Judiciário, a quem compete a última palavra sobre o litígio. Luiz Guilherme Marinoni (2010, pp. 23-41) faz uma retrospectiva histórica da jurisdição, demonstrando a influência dos valores do Estado Liberal de Direito e do Positivismo Jurídico sobre os conceitos clássicos de jurisdição. As teorias clássicas de jurisdição são atribuídas a Giuseppe Chiovenda e a Francesco Carnelutti, e foram formuladas ora atribuindo à jurisdição a função de atuar a vontade concreta da lei, para o primeiro jurista italiano, ora concebendo a jurisdição como a criação da norma individual para o caso concreto, para o último. Inicia por explicar que o Estado Liberal de Direito, ao elevar o princípio da legalidade a um verdadeiro critério de identificação do direito, termina por não fazer coincidir a produção do direito aos valores sagrados para a sociedade, uma vez que a lei vale em função da autoridade que a cria, o que leva à tirania do legislativo. Explica ainda Luiz Guilherme Marinoni que o positivismo jurídico parte da idéia de que o direito se resume à lei, sendo, portanto, exclusividade das casas legislativas. Preocupa-se o positivismo não com o conteúdo da norma, mas com a observância do procedimento estabelecido para a sua criação, uma vez que é este quem estabelece a validade da lei. Neste ponto não há como não remeter a Hans Kelsen, ao traçar as linhas gerais deste autêntico processo de “criação” do Direito. Concebe Hans Kelsen (1984, p. 57) o ordenamento jurídico tal como composto por um sistema escalonado e hierarquizado de normas jurídicas, em que a norma de escalão inferior tem seu fundamento de validade na norma de escalão superior. Assim, seguindo uma direção ascendente, da base para o topo da pirâmide normativa, a sentença judicial – norma para o caso concreto – teria fundamento de validade na lei – norma geral – a qual, por sua vez, encontra fundamento de validade numa lei pressuposta, a Constituição30. 30 Hans Kelsen relata este processo da seguinte forma (2007, p. 125): “Porque esse processo não se limita apenas à legislação, mas, começando na esfera da ordem jurídica internacional, superior a todas as ordens estatais, continua na 31 Jefferson Carús Guedes (2009, p. 253-255), ao tratar da transação tributária, também faz menção ao princípio da inafastabilidade ou monopólio da jurisdição previsto constitucionalmente ou ainda sistema brasileiro de jurisdição una, segundo o qual todo ato que cause ameaça ou lesão a direito está sujeito a controle jurisdicional, não se podendo excluir desse controle qualquer ato. Lista as jurisdições anômalas, não excepcionadas pela Constituição, as quais se submetem também ao controle jurisdicional, tais como as exercidas pelo Senado Federal no julgamento de impeachment do Presidente da República, nos termos do art. 8631 da Constituição Federal de 1988; pelos Tribunais de Contas da União, dos Estados e dos Municípios, ao julgar contas e decisões emanadas dos legislativos federal, estaduais e municipais; pelo Tribunal Marítimo, órgão auxiliar do Poder Judiciário, ligado à Marinha do Brasil; pela Justiça Desportiva, cujas decisões não estão excluídas do controle jurisdicional nos termos do art. 217, § 1º32, da Constituição Federal de 1988. Cabe ainda lembrar que o inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, fixou o critério para definir o que abrange a expressão “lesão a direito ou ameaça a direito”, significando pretensão jurídica, pretensão reconhecida e assegurada pelo ordenamento jurídico, a qual deve ser satisfeita pela Administração. A discussão sobre a legitimidade ativa para exercer tal direito revela que não só as pessoas físicas como as pessoas jurídicas, as associações, os sindicatos, os partidos políticos, entre outros podem figurar no pólo ativo. Como este trabalho se destina a averiguar a possibilidade de a Fazenda Pública invocar a proteção do Judiciário em uma situação concreta – ou seja, a possibilidade de a Fazenda Pública ser sujeito de direito, acionando o Poder Judiciário para anular uma decisão administrativa – cabe invocar a lição de Lourival Vilanova. Para Lourival Vilanova (2000, p. 255) o Estado como sujeito-de-direito é um “feixe de relações”. Afirma que não existe o Estado, e, depois, as relações jurídicas. Explica que “podem sobreviver o espaço físico, a coletividade, os usos e costumes, normas jurídicas dispersas, sem um Constituição, para chegar enfim, através das etapas sucessivas constituídas pela lei, pelo regulamento, e em seguida pela sentença e pelo ato administrativo, aos atos de execução material destes últimos. Essa enumeração, de que só consideramos aqui as fases intra-estatais, pretende apenas indicar de forma esquemática as etapas principais desse processo, no decorrer do qual o direito regula suas própria criação e o Estado se cria e recria sem cessar com o direito. Constituição, lei, regulamento, ato administrativo e sentença, ato de execução, são simplesmente as etapas típicas da formação da vontade coletiva no Estado moderno”. 31 O dispositivo constitucional tem a seguinte redação: “Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”. 32 O dispositivo constitucional tem a seguinte redação: “§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei”. 32 foco comum de referência”, constituindo um conjunto de ordens jurídicas despolitizadas, ou em estágio pré-político. Assim, com a supressão do sujeito-de-direito que exerce o poder de império, tudo se despolitiza: espaço, coletividade, normas. Ainda sobre as relações dos órgãos do Estado, afirma Lourival Vilanova (2000, pp. 284- 285): “o Estado não atua por meio de órgão, como seu representante: imediatamente é o Estado mesmo que legisla, administra ou sentencia através de órgãos, cujo complexo é o Estado mesmo”. Sobre a possibilidade da Fazenda Pública ser sujeito de direito, afirma que o direito subjetivo de figurar num dos pólos da relação jurídica o Estado sempre tem; mas o direito objetivo a se consagrar vencedor na disputa só o Judiciário vai reconhecer33. Já Leonardo Martins discute a questão da titularidade de direitos fundamentais por pessoas jurídicas de direito público, tal como adotada na Constituição da República Federal da Alemanha, concluindo exatamente o contrário do acima exposto34. José Afonso da Silva (2007, p. 495) ao expor o significado e conceito de União, abordando especificamente a faceta da União como pessoa jurídica de direito interno, ressalta a sua titularidade de direitos e a sua sujeição a obrigações. Afirma que “está sujeita, como qualquer pessoa, à responsabilidade pelos atos que pratica por seus órgãos e agentes e pode ser submetida aos Tribunais, como órgãos jurisdicionais do Estado”. Adianta que a Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 109, §§ 1º a 4º35, regras de foro especiais, quer seja a União autora quer seja ré na ação judicial36. 33 Sua assertiva é a seguinte: “Recorrendo ao Judiciário, quando obstado em sua executoriedade, o órgão administrativo leva sua pretensão substantiva, que não se confunde com sua pretensão processual: esta tem-na sempre, no uso de seu direito subjetivo público processual; daquela, pode carecer, com a sentença denegatória de seu pedido” (2000, p. 281). 34 Assim se pronuncia Leonardo Martins (2005, p. 169): “Outra questão que constitui basicamente o problema discutido nas decisões abaixo é a possibilidade de pessoas jurídicas de direito público serem titulares de direito fundamental. ... A regra é bastante clara: em geral pessoa jurídica de direito público, mesmo pertencendo à Administração indireta, não pode ser titular. Ela é, ao contrário, destinatária das normas de direito fundamental. Caso contrário, poder-se-ia ter uma identidade que esvaziaria inclusive o sentido de tais normas. No caso das liberdades de radiodifusão, científica e religiosa, podem pessoas jurídicas de direito público serem, excepcionalmente, titulares tendo em vista, sobretudo, a importância da autonomia desses “órgãos da Administração indireta” (universidades, rádio e tvs públicas) em face do Estado e o papel específico desses direitos fundamentais”. 35 Os referidos parágrafos ao art. 109 da CF/1988 têm a seguinte redação: “§ 1º As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. § 2º As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal. § 3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa 33 Cabe retomar a lição de Alfredo Augusto Becker (1972, p. 232-236), ao conceituar o direito tributário, administrativo e constitucional a partir da análise da embriogenia do Estado, da fonte do Direito e da natureza jurídica do Orçamento Público. Explica que, diante de múltiplas relações sociais de natureza familiar, comercial, cultural, religiosa, dentre outras, a Sociologia e a Ciência Política destacaram uma relação social de natureza sui generis que não se confunde com as demais relações, e que está na origem do Estado e do Direito: esta relação foi denominada pelas mesmas ciências de “rapport politique”. Revela-se o rapport politique como a relação constitucional entre o Estado e a realidade natural – nesta realidade natural impõe-se a lei natural, a qual, na concepção de Hans Kelsen, é regida pela causalidade: “se A é, B é”, diferentemente das regras de direito que descrevem as relações que ocorrem no Estado, estas sim regidas pela normatividade ou imputação: “se A é, B deve ser”. Do estudo desta relação entre Estado e realidade natural – e, conseqüentemente, da sua juridicização, continuidade e realização - surgem regras jurídicas de natureza distintas que disciplinam efeitos jurídicos diferentes, quais sejam: regras jurídicas tributárias, administrativas e constitucionais. A partir desta concepção, são assim classificadas as três regras jurídicas: a tributária faz com que uma pessoa qualquer assuma posição no pólo negativo da relação constitucional, impondo-lhe um dever jurídico; a administrativa faz com que uma pessoa qualquer assuma posição no pólo positivo da relação constitucional, outorgando-lhe um direito jurídico; finalmente, a constitucional conjuga os deveres tributários com os direitos administrativos, estabelecendo uma única e contínua relação jurídica, que se caracteriza por uma correlação entre os mesmos deveres e direitos, mas que é regida por um princípio que ele denomina como da igualdade geométrica – que culmina por provocar uma desigualdade aritmética entre o montante dos tributos pagos por um indivíduo e o montante de sua participação na partilha do bem comum. Assim explica o nascimento e a perpetuação da relação constitucional, com seus desdobramentos em direitos e deveres – de forma única e contínua – “em cujo pólo positivo e negativo a incidência das regras jurídicas administrativas e tributárias estão, continuamente, colocando todas as pessoas que (em cada fração infinitesimal de tempo) são os criadores do Estado-Realidade Natural, vinculando todos a um e cada um a todos”. Neste ponto introduz a figura da ficção jurídica do Estado, condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual. § 4º Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau”. 36 Interessante o teor da Súmula nº 365 do STJ: “A intervenção da União como sucessora da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA) desloca a competência para a Justiça Federal ainda que a sentença tenha sido proferida por Juízo estadual”. 34 entidade que vai ocupar o pólo positivo da relação jurídica tributária e no pólo negativo da relação jurídica administrativa37, explicando, desta forma, o surgimento do Estado, e seu papel face ao indivíduo que o mantém. Finalmente, Hugo de Brito Machado (2008b, p. 9) exalta a importância da jurisdição, concluindo que o direito à jurisdição é essencial à efetivação das diversas normas do ordenamento jurídico38. 2.2.1. Sistema de jurisdição una Odete Medauar (1993, pp. 161-165) distingue os dois sistemas de controle jurisdicional da Administração: o sistema de jurisdição una, ou unidade de jurisdição, e o sistema de jurisdição dupla, ou dualidade de jurisdição. Caracteriza-se o primeiro pela existência de um único poder a quem compete o julgamento dos litígios em que a Administração é parte: são os juízos e tribunais comuns. Tal poder é encabeçado por um tribunal federal a quem cabe a resolução de divergências constitucionais, ou seja, um poder judiciário intimamente ligado à organização política do Estado. Aponta os argumentos pro e contra tal sistema: sua simplicidade e unidade, que não ensejam problemas quanto à competência, funcionam como pontos positivos; a não especialização de juízes, dificultando a compreensão adequada das questões referentes à Administração Pública, bem como a sobrecarga de ações contra a Administração – numa época que se caracteriza por uma maior atuação do Poder Público, o que gera, por sua vez, o aumento do número de litígios – representam os pontos negativos. 37 Assim concebe Alfredo Augusto Becker (1972, p. 236) a ficção jurídica do Estado: “Para criar esta dualidade de relações é indispensável que antes exista “algo” que possa figurar no pólo positivo da relação tributária e no pólo negativo da relação administrativa. Por este motivo, a relação constitucional (Estado-Realidade Natural), antes de criar as regras jurídicas tributárias e as administrativas que garantirão a sua continuação e realização, primeiro cria uma ficção jurídica; dá existência a uma entidade puramente jurídica (que não existia “ab initio” no plano pré-jurídico) que possa figurar no pólo positivo das futuras relações jurídicas tributárias e no pólo negativo das futuras relações jurídicas administrativas. O “Estado” que figura no pólo positivo da relação jurídica tributária e no pólo negativo da relação jurídica administrativa é esta ficção jurídica.” 38 A lição de Hugo de Brito Machado (2008b, p. 9) é a seguinte: “Na verdade, o direito à jurisdição efetiva – vale dizer, a uma jurisdição prestada por juízes independentes – é a mais fundamental de todas as garantias constitucionais. Podemos até dizer, sem qualquer exagero, que o direito à jurisdição efetiva é o direito de ter direito. Sem uma jurisdição efetiva as diversas normas do sistema jurídico não passam de simples manifestações da retórica”. 35 O sistema de jurisdição dupla, por sua vez, caracteriza-se pela existência de duas ordens de jurisdição: a jurisdição ordinária ou comum e a jurisdição administrativa. Caracteriza-se ainda pela existência de um órgão chamado “Conselho de Estado”, cujas atribuições, previstas constitucionalmente, contemplam o controle da legalidade dos atos da Administração. Como aspectos positivos do sistema de dualidade de jurisdição, aponta a especialização de juízes quanto ao direito administrativo, ao direito público e aos problemas da Administração, além do procedimento mais simples da jurisdição administrativa, que a torna menos lenta. Em contrapartida, o ponto negativo da jurisdição administrativa reflete-se nos conflitos de competência com a jurisdição ordinária. Conclui que a eficácia do controle jurisdicional sobre a Administração não está vinculada a uma ou outra forma de jurisdição acima descrita. Tanto a jurisdição una como a jurisdição dupla podem realizar satisfatoriamente o controle da Administração. No período imperial, relembra Odete Medauar (1993, p. 165) que o Brasil tendia a instituir uma jurisdição administrativa. De fato, encontra-se na Constituição de 1824 a criação de um Conselho de Estado, extinto posteriormente pelo Ato Adicional de 1834 e reintroduzido pela Lei nº 234, de 23/11/1841. É Marcos Vinicius Neder (2002, p. 69-70) quem anota que há registro de referências ao processo administrativo fiscal no Brasil desde 1761, quando foi criado pelo Marquês de Pombal o Conselho da Fazenda, cuja função era exercer a jurisdição contenciosa. Em 1831, foi excluída esta exceção à atuação do Judiciário. Em 1889, no entanto, foi abolido tacitamente pelo Decreto nº 1, de 15 de novembro do mesmo ano. A Constituição de 1891 adotou o sistema de jurisdição una, o que permaneceu desde então. Com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, no entanto, houve a previsão de criação de um contencioso administrativo, o qual não chegou, no entanto, a ser instalado. Alexandre Barros Castro (2007, pp. 45-46) demonstra como o contencioso administrativo avançou, no país, com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, em relação à Constituição de 1946, aproximando-se do instituto existente na França, onde havia clara dualidade de jurisdição. O 36 contencioso então previsto permitia que a decisão administrativa de primeira instância do Fisco substituísse a decisão de primeira instância judicial39. Tal constatação é trazida pelo doutrinador à luz dos arts. 111, 122, 153, § 4º e 204 da Constituição então vigente – a Carta de 1967 com a redação da Emenda Constitucional nº 1, de 1969, esta considerada pela doutrina – especialmente José Afonso da Silva (2007, p. 87) - um novo texto constitucional, tão profundas as transformações que trouxe. Conclui sua retrospectiva histórica afirmando que “a falta de legislação complementar não permitiu, no entanto, que a previsão constitucional se transformasse em realidade prática em nosso país” (2007, p. 46). Defende a tese de que só com a entrada em vigor da Constituição de 1988, em 05 de outubro de 1988, é que o país retornou à sistemática da jurisdição una, uma vez que a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, vigorou até a promulgação do texto atual. Celso Antônio Bandeira de Mello (1991, p. 19-21) ao examinar o procedimento administrativo, explica que processo e procedimento não são patrimônio exclusivo, monopólio da função jurisdicional, coexistindo também nas funções legislativa e administrativa. Lembra que esta idéia já havia sido expressada por Carnelutti, ao afirmar que o processo não é privativo da função jurisdicional, assim como não o é o procedimento. Esmiúça o conteúdo desta afirmação: a produção do ato próprio de cada função – seja legislativa, judicial ou administrativa – não requer apenas conformidade do ato com a norma que lhe fundamenta, mas também com os meios adequados para a produção do mesmo ato. Cabe lembrar que existe todo um modo de proceder para se chegar a uma lei: o processo legislativo está descrito no próprio texto constitucional. Da mesma forma, existe um modo de proceder para se chegar a uma sentença judicial ou a um ato administrativo final. Descreve o procedimento administrativo, destacando sua fundamental importância no Estado de Direito, com a atribuição, ao cidadão, da segurança de que o Poder Público só pode visar os fins previamente listados em leis, e ainda, que tais resultados só serão desenvolvidos por 39 Nas palavras de Alexandre Barros Castro (2007, pp. 45-46): “Evidente era, portanto, a configuração, na Emenda Constitucional n. 1, de um verdadeiro contencioso administrativo tributário, dependendo, ainda, é claro, de legislação complementar. Esse contencioso permitia ao Fisco ter seu procedimento administrativo formando um verdadeiro processo administrativo, com decisão de “primeira instância” superando e substituindo a decisão de primeira instância judicial, além de um direito a recurso, a ser interposto perante o Tribunal Federal de Recursos, que só o examinaria em grau recursal, sem ter, contudo, a possibilidade de retornar à fase probatória, ou de buscar novos elementos que de alguma maneira pudessem em matéria fática formar ou influenciar na decisão do tribunal”. 37 meios também fixados em leis: “é no modus procedendi, é, em suma, na escrupulosa adscrição ao “due processo of law” que residem as garantias dos indivíduos e grupos sociais” (1991, p. 26). As diversas etapas que antecedem a produção do ato administrativo são relatadas como indispensáveis ao cabimento do ato40. A verdade é que, com a Constituição Federal de 1988, foi adotada a unicidade de jurisdição, princípio que impõe ao Poder Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direito – também denominado princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional - configurando-se em autêntico poder estatal de solucionar litígios entre particulares ou entre particulares e o Estado. Há, no entanto, nova corrente doutrinária representada por Luís Roberto Barroso e Gustavo Binenbojm (2006, p. 173-174), dentre outros, que entende que a Administração Pública não precisa aguardar o pronunciamento do Poder Judiciário pela anulação de uma lei, mas está, sim, habilitada – pela própria Constituição - a deixar de aplicar a mesma lei. Esta possibilidade de repúdio à lei considerada inconstitucional pelo Poder Executivo, independentemente de pronunciamento do Poder Judiciário, é, no dizer de Gustavo Binenbojm (2006, p. 174), um dever jurídico41. Tal possibilidade será retomada quando da análise do questionamento que o presente trabalho traz a exame – a possibilidade da Administração Tributária acionar o Judiciário para reverter decisão administrativa favorável ao contribuinte – sob o aspecto da legalidade dos arts. 42 e 45 do Decreto nº 70.235/72, os quais são invocados como fundamento para se negar à Administração Tributária tal faculdade. Em suma, cabe consignar neste tópico que há dois sistemas existentes para o controle, pelo Estado, dos atos administrativos ilegais praticados pelo Poder Público – em suas várias esferas de atuação: o sistema inglês e o sistema francês. 40 “Com efeito, como o ato administrativo não surge do nada e não é aleatório, fortuito, para que se produza uma decisão final cumpre que a Administração haja sido provocada por alguém ou, então, que, nos casos em que atua de ofício, haja ocorrido algum evento justificador de sua atuação. Este evento terá de ser verificado, sopesado e avaliadas as providências cabíveis diante dele. Tudo isto supõe um conjunto de providências a serem documentadas e implicará, com grande freqüência, sejam ouvidos os interessados, analisadas razões postas em cotejo, apurados fatos, consultados órgãos técnicos e expendidas considerações administrativas. É esta totalidade que servirá de aval do ato ou – pelo contrário – que permitirá exibir seu descabimento” (1991, p. 27). 41 “Com efeito, fundando-se juridicamente a atividade administrativa direta e primariamente na Constituição, não há como negar à Administração Pública a condição de intérprete e executora da Lei Maior. E, se assim é, corolário lógico de tal condição é a possibilidade (e, de resto, o dever jurídico) de deixar de aplicar leis incompatíveis com a Constituição, sob pena de menoscabo à supremacia constitucional” (2006, p. 174) . 38 O sistema inglês, já apresentado sob a denominação de sistema de jurisdição una ou sistema de controle judicial é aquele no qual todos os litígios podem ser resolvidos pelo Poder Judiciário; este órgão é o único competente para dizer o Direito em definitivo, o que se traduz pela característica de seus pronunciamentos, os quais adquirem força de “coisa julgada”. Ressalve-se que a adoção de tal sistema não veda a adoção de outras alternativas de solução de litígios no âmbito administrativo, exatamente como ocorre no Brasil, por exemplo, em que é disponibilizado aos contribuintes o processo administrativo fiscal, para solução de suas lides em matéria tributária, ou o processo administrativo disciplinar, específico para os servidores públicos que se encontrem na iminência de sofrer aplicação de punições. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, o sistema jurídico-administrativo é completamente diferente do francês: não há outorga de prerrogativas especiais aos organismos administrativos, sendo as relações da Coroa Inglesa e do Governo Norte-Americano com os particulares sujeitas a ação dos Tribunais, subordinando-se ao common law e a equity, aplicados pelos Tribunais, e aos statute law, elaborado pelo Parlamento Inglês e pelo Congresso nacional americano. Nos Estados Unidos, data de 1924 a instalação de um Tribunal de Apelação de Tributos, o qual funcionava independente do Departamento de Justiça americano, apreciando casos como o de um contribuinte que questiona a exigência de imposto de renda por um agente do Poder Público. Em 1942 o tribunal passou a denominar-se Corte de Tributos, e a partir de 1969 tornou-se parte do poder judiciário federal42. Já o sistema francês veda ao conhecimento do Poder Judiciário os atos da Administração Pública, os quais se sujeitam aos tribunais administrativos. Esta dualidade de jurisdição é representada, portanto, por uma jurisdição administrativa, com jurisdição plena em matéria administrativa, e por uma jurisdição comum, com a competência de apreciar todos os demais litígios, à exceção dos submetidos aos tribunais administrativos. 2.2.2. Sistema de jurisdição dupla 42 “Tax Court.” Encyclopaedia Britannica. Encyclopaedia Britannica Online. Encyclopaedia Britannica, 2010. Web 16 Mar. 2010 39 Já se discorreu anteriormente sobre os dois sistemas administrativos de jurisdição ou regimes adotados pelo Estado para o controle de seus atos administrativos, os quais podem, em tese, conter ilegalidades ou ilegitimidades em seu bojo. Os dois grandes modelos – o inglês e o francês – foram adotados nos demais países, cujo registro cabe mencionar. Adverte Alexandre Barros Castro (2008, p. 60-61), no entanto, que “a complexidade do mundo jurídico atual praticamente impede a existência de um modelo puro de exercício da função jurisdicional”. Gustavo Binenbojm (2006, p. 13), ao transcorrer sobre a gênese do Direito Administrativo, demonstra como a criação da jurisdição administrativa na França não conteve, em sua origem, a idéia de conferir garantia de direitos aos administrados, baseando-se sim na desconfiança dos revolucionários franceses contra os tribunais judiciais. As autoridades administrativas revolucionárias pretendiam, com a supressão dos litígios administrativos ao crivo do Poder Judiciário, impedir que a hostilidade dos membros daquele Poder contra a Revolução Francesa limitasse a sua ação. Perpetuava-se, portanto, um modelo que o Antigo Regime já consagrara: um contencioso em que a Administração julgaria a si própria, e em que sua liberdade decisória é ampliada, tornando-a imune a qualquer controle judicial. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (2007, p. 122-130) expõe a competência da justiça administrativa na França: cabe-lhe o julgamento dos feitos suscitados pelo funcionamento dos serviços públicos – existem, no entanto, atividades da Administração Pública distintas dos serviços públicos, como as do poder de polícia, assim como atividades comerciais e industriais; além disso, muitas atividades de utilidade pública encontram-se a cargo dos particulares, os quais colaboram com a Administração Pública. Explica que algumas lides são apreciadas pelos Tribunais Administrativos se uma das partes, embora particular, for concessionária de atividade pública ou participe da prestação de atividade pública. Por outro lado, outros litígios, tais como o contencioso dos impostos indiretos, de transportes postais, de desapropriação de bens que causem dano à propriedade e atinjam a liberdade individual são de competência dos Tribunais Comuns. Relata ainda que há conflitos de competência entre os dois tipos de tribunais, os quais são dirimidos através do Tribunal de Conflitos. 40 Encontra-se em André de Laubadère (1963, p. 327-328) a razão de ser deste sistema dual na atualidade: a razão primitiva, representada pela desconfiança do Judiciário, a qual, à época da Revolução Francesa, foi determinante para interpretar o princípio da separação dos poderes com a instituição do Conselho de Estado na solução dos conflitos entre os particulares e a Administração, desapareceu; a nova razão prática que substituiu a razão primitiva é a desconfiança em face dos tribunais judiciários – uma desconfiança que concerne sua aptidão técnica, mas não seu comportamento político. Explica tal exigência quanto a uma aptidão específica dos julgadores pela especialização do direito administrativo naquele país43. Na Bélgica e na Itália os tribunais comuns não podem anular os atos administrativos considerados ilegais, nem dar ordens à Administração Pública. De fato, a Constituição belga em vigor – de 1946 – estabelece a criação do Conselho de Estado, órgão destinado a apreciar em última instância os litígios em que a Administração é parte. Da mesma forma a Constituição italiana contempla em dispositivo específico a instituição do Conselho de Estado, o qual funciona como Tribunal Administrativo, competindo-lhe a apreciação das lesões aos interesses legítimos dos administrados. Crisafulli, em comentário à Constituição italiana (1990, p. 681), demonstra que o seu art. 11344 contem, em sua estrutura, a cláusula geral de impugnabilidade dos atos administrativos contida na Grundgesetz alemã, que a doutrina tedesca define como prevalência da norma da lei fundamental. Tal cláusula garante a jurisdição administrativa geral para a tutela dos interesses legítimos, paralela àquela da jurisdição ordinária responsável pela tutela dos “direitos subjetivos” – aos particulares lesados por atos da administração pública. Ao tratar da coexistência entre recursos administrativo e jurisdicional na Bélgica, André Mast (1966, p. 305-308) - após explicar que, no direito positivo belga, a proteção ao administrado é assegurada tanto pela organização interna da Administração Pública quanto pelo manuseio de ações judiciais que os cidadãos podem fazer valer diante das cortes e tribunais e diante das 43 “C’est que le droit administratif, applicable au contentieux administratif, est devenu um droit très spécial, foncièrement différent du droit civil, exigeant une juridiction spécialisée. Cette autonomie du droit administratif est du reste due en France, on le sait, aux tribunaux administratifs eux-mêmes; ce sont eux qui ont élaboré le droit administratif et lui ont donné sa physionomie originale” (1963, pp. 327-328). 44 O dispositivo tem a seguinte redação: “Contro gli atti della pubblica amministrazione è sempre ammessa la tutela giurisdizionale dei diritti e degli interessi legittimi dinanzi agli organi di giurisdizione ordinaria o amministrativa. Tale tutela giurisdizionale non può essere esclusa o limitata a particolari mezzi di impugnazione o per determinate categorie di atti. La legge determina quali organi di giuridizione possono annullare gli atti della pubblica amministrazione nei casi e com gli effetti previsti dalla legge stessa. 41 jurisdições administrativas - leciona que o Conselho de Estado pode tornar obrigatória a submissão do recurso administrativo antes do recurso jurisdicional, sob pena de não ser este último conhecido. Espanha e Portugal, por sua vez, seguem o sistema francês de dualidade de jurisdição, já reportado. Encontra-se na Constituição espanhola menção ao Tribunal Administrativo, enquanto que são previstas para o órgão funções equivalentes às da Constituição portuguesa. De fato, a Constituição da República Portuguesa em vigor prevê o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva em seu artigo 20, enquanto que no artigo 268, ao tratar dos direitos e garantias dos administrados, assegura aos mesmos tutela jurisdicional efetiva, incluindo a impugnação de quaisquer atos administrativos que os lesem. Na Alemanha, foi criado em 1952 o Tribunal Supremo Administrativo o qual tem atribuição genérica, cabendo-lhe decidir sobre qualquer questão de impugnação de atos jurídico- administrativos, bem como sobre litígios de direito público, à exceção dos litígios sobre inconstitucionalidade, reservados ao Tribunal Constitucional Federal Alemão. Explica Celso Antônio Bandeira de Mello (1991, p. 20) que o primeiro Código de Procedimento é de origem da Áustria, tendo sido produzido em 1925. Seguiram-se a ele: os códigos polonês e checoslovaco, em 1928, e o iugoslavo em 1930. Estes foram os primeiros países a possuir um Código de Processo ou Procedimento Administrativo, por influência do Império Austro-húngaro. Analisando o questionamento que constitui o objeto do presente trabalho – se é possível à Administração Tributária acionar o Judiciário para anular decisão administrativa desfavorável a Fazenda Pública, e, portanto, favorável ao contribuinte – à luz dos dois diferentes sistemas de controle da Administração – jurisdição dupla e una - presentes respectivamente na Alemanha e nos Estados Unidos, pode-se concluir como a seguir. Na Alemanha, a matéria – o litígio entre Administração Tributária e contribuinte - seria apreciada pelo Tribunal Financeiro, o qual integra a jurisdição especial naquele país. Como as decisões do mesmo tribunal têm a força da coisa julgada, a definitividade da decisão proferida – favorável ou desfavorável à Administração Tributária, ou Fazenda Pública - restaria atingida pela mesma decisão do Tribunal Financeiro, logo não há possibilidade de se submeter a outro tribunal a matéria, a não ser que matéria constitucional 42 estivesse envolvida. Somente neste caso caberia o pronunciamento do Tribunal Federal Constitucional. Diferentemente do que ocorre na Alemanha, nos Estados Unidos da América o litígio entre Fazenda Pública e contribuinte seria julgado pelos tribunais comuns por força da unicidade de jurisdição naquele país, e, sem um contencioso administrativo tal como há no Brasil, a definitividade da decisão se daria tão logo houvesse seu trânsito em julgado. Klaus Vogel (1985, pp. 13-25) explica como ocorre a proteção legal diante dos tribunais fiscais na República Federal da Alemanha, na vigência da Lei Fundamental de 1949, a qual criou tribunais financeiros totalmente independentes em toda a Alemanha ocidental45. Conclui-se assim que o exame da questão se coaduna com o sistema de jurisdição dupla praticado naquele país. 2.3. O processo administrativo fiscal da União e sua lei geral A Constituição Federal, em seu art. 146, III46, remete à lei complementar o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária. Trata-se de dispositivo que recepcionou a Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – denominada “Código Tributário Nacional” (CTN) pelo Ato Complementar nº 36, de 13 de março de 1967, publicado em 14 de março de 1967, baixado pelo 45 A lição de Klaus Vogel (1985, pp. 13-25) é a seguinte: “Su organización y su procedimiento están hoy en día determinados en una ley especial de procedimiento, el Código de los Tribunales Fiscales de 6.10.65. Los jueces están sujetos a supervisión sólo hasta donde su independencia en las decisiones no se vea afectada; (...) La competencia de los tribunales fiscales en el campo del Derecho Tributario es amplia. De acuerdo al § 33 del Código de los Tribunales Fiscales (FGO), éstos deciden en todos los juicios de Derecho Público sobre tributos baseados en la legislación de la federación, y que, además, sean administrados por las autoridades fiscales estatales o federales, y no por las municipales. Sólo en casos relativamente insignificantes en materia de gravámenes estatales o comunales los tribunales de la jurisdicción pública administrativa entiendem en lugar de los tribunales financeiros”. 46 O dispositivo constitucional tem a seguinte redação: “Art. 146. Cabe à lei complementar: (...) III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239”. 43 Presidente da República - como lei complementar, uma vez que trata de matéria reservada a tal espécie normativa47. Ora, o lançamento tributário representa ato unilateral da Administração Tributária, previsto no art. 14248 do CTN, a fim de exigir a obrigação tributária do sujeito passivo. Contrapõem-se, com o lançamento, direitos: no pólo ativo da obrigação jurídico-tributária, a Administração Tributária em sua pretensão de exigir o tributo; no pólo passivo da mesma obrigação, o sujeito passivo resistindo à pretensão. Deve ser, portanto, assegurado ao sujeito passivo o direito de discordar da exigência, com o intuito de conferir segurança e transparência à relação tributária. Tal conflito impõe, portanto, a tutela administrativo-tributária que será prestada por ritos, formas e competências previamente definidos. O processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União e o de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal, conhecido como processo administrativo fiscal federal (PAF), é regido pelo Decreto nº 70.235/1972, e alterações posteriores. Tal ato, editado por delegação do Decreto-lei nº 822, de 05 de setembro de 1969, tem status de lei, pois regula e não só regulamenta o processo de determinação e exigência dos créditos tributários da União. Sua origem remonta, portanto, à Constituição de 1969 – aprovada pela Emenda 47 Leandro Paulsen (2006, p. 695) registra que a Lei nº 5.172/1966 foi aprovada como lei ordinária da União, uma vez que, à época – sob a égide da Constituição de 1946 - a espécie “lei complementar” não apresentava o caráter ontológico-formal que lhe foi conferido com a Constituição de 1967. No entanto, com a entrada em vigor da Constituição de 1967, a Lei nº 5.172/1966 adquiriu eficácia de lei complementar, pelo fato de regrar matéria reservada exclusivamente a esse tipo de ato legislativo. Luciano Amaro, por sua vez, ao tratar da eficácia de lei complementar do Código Tributário Nacional (2006, pp. 170-172) explica que a Lei nº 5.172/1966 foi inicialmente denominada “Lei do Sistema Tributário Nacional” e que, à época, foi veiculada como lei ordinária, mas contendo normas gerais de direito tributário, regulando as limitações constitucionais ao poder de tributar, e dispondo sobre conflitos de competência em matéria tributária. Sua entrada no ordenamento jurídico nacional obedeceu à Constituição de 1946, a qual não previa a figura de lei complementar como espécie legislativa distinta da lei ordinária, tal como fez a Constituição de 1967, em vigor a partir de 15 de março de 1967. Esclarece que, na véspera da Constituição de 1967 entrar em vigor, foi baixado, pelo Presidente da República, o Ato Complementar nº 36/1967, “batizando” a Lei nº 5.172/1966 de “Código Tributário Nacional”. Lembra que à época se discutiu se o CTN sobreviveria após a nova Constituição, uma vez que, formalmente, ele não era uma lei complementar. Lembra que tal problema se resolve a partir do princípio da recepção, segundo o qual “as normas infraconstitucionais anteriores à Constituição são recepcionadas pela nova ordem constitucional”, com a exceção de conterem contrariedade aos preceitos substantivos do novo ordenamento jurídico. Roque Antonio Carrazza (2010, pp. 1005-1006), por sua vez, se insurge contra tal entendimento, defendendo que “a Lei nº 5.172/1966 continua, sim, sendo formalmente uma simples lei ordinária”, muito embora, por seu conteúdo, seja lei de cunho nacional. Conclui, no entanto, que, pelo fato da matéria da qual a lei cuida – normas gerais em sede de legislação tributária - ser privativa de lei complementar, por determinação: (i) do art. 18, § 1º, da Carta de 1967; (ii) do art. 146 da CF/1988, só cabe revogação ou modificação da mesma lei por outra lei formalmente complementar. 48 Assim está redigido o dispositivo: “Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível”. 44 Constitucional nº 1, de 1969 à Constituição de 1967 - a qual facultava, em seus arts. 111 e 153, § 4º, a criação de contenciosos administrativos pela legislação ordinária. O status de lei ordinária ao PAF vem sendo confirmado pelas diversas alterações que já foram promovidas ao seu texto, sempre pela via de lei ordinária. Cabe distinguir no processo administrativo fiscal, o processo de determinação e exigência do crédito tributário de outros processos administrativos, os quais também se desenvolvem perante a Administração Tributária Federal, tais como: o de consulta sobre a interpretação e aplicação da legislação tributária; o processo de reconhecimento de direito creditório – o qual engloba a restituição, o ressarcimento, o reembolso e a compensação de tributos federais; o pedido de reconhecimento de isenção ou imunidade. Na verdade, há várias modalidades através das quais o processo administrativo fiscal pode se expressar, além das três já citadas, dentre elas as seguintes: o processo de perdimento de mercadorias; o processo de vistoria aduaneira; o processo de exclusão do Simples Nacional; o processo de liquidação de termo de responsabilidade (firmado pelo importador de mercadorias); a discussão administrativa sobre a retificação de documento de arrecadação de tributos federais (Darf); o processo de arrolamento de bens e direitos; o processo de revisão do lançamento previamente à apresentação de impugnação – decorrente de revisão das declarações de imposto de renda da pessoa física e de imposto territorial rural; o processo de revisão de declarações apresentadas à Receita Federal do Brasil. Logo, o processo administrativo de que trata este estudo é o que contempla uma controvérsia entre contribuinte e Fazenda Pública, esta compreendida na esfera política da União (Fazenda Nacional). Em linhas gerais, o processo administrativo fiscal federal em vigor prevê o julgamento dos processos em três instâncias ordinárias: uma nas Delegacias de Julgamento da Receita Federal e duas nos Conselhos Administrativos de Recursos Fiscais – anteriormente designados por Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, os quais contam uma instância especial – a Câmara Superior de Recursos Fiscais, que também faz parte do organograma do CARF. James Marins (2001, pp. 247-299) distingue quatro etapas na fase litigiosa do processo administrativo fiscal federal: (i) a fase de instauração, correspondente à apresentação da impugnação diante da notificação de lançamento ou do auto de infração; (ii) a fase de preparação e instrução, a cargo da autoridade local competente do órgão encarregado da administração do tributo – Delegados da Receita Federal do Brasil (DRFB) ou Inspetores da Receita Federal do Brasil (IRFB); (iii) a fase de julgamento, o qual compete às Delegacias da Receita Federal de 45 Julgamento (DRJ), órgãos colegiados de primeira instância; e, finalmente, (iv) a fase recursal, a qual cabe ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão colegiado de julgamento em segunda instância. Vale mencionar as vantagens do processo administrativo fiscal, para compreender o porquê da preferência dos contribuintes a esta forma não tradicional de solução de conflitos. Esta preferência se revela pela análise de dados publicados no relatório CARF 200949, o qual aponta para um total de R$ 260 bilhões (duzentos e sessenta bilhões de reais) o valor dos créditos tributários em julgamento em 31.12.2009. Se for comparada tal cifra ao Produto Interno Bruto (PIB) de 200950 – o qual corresponde à soma de todas as riquezas geradas no país no mesmo período - verifica-se que corresponde a 8,27% (oito inteiros e vinte e sete por cento)51: trata-se de valor significativo, o que demonstra a relevância desta forma de solução de conflitos. Já restou claro que, em razão da adoção do sistema de jurisdição una no ordenamento jurídico brasileiro, a apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direitos cabe ao Poder Judiciário, a quem compete expedir decisões com a força de coisa julgada. Assim, os litígios em matéria tributária que chegam às instâncias administrativas representam uma alternativa de solução posta à disposição dos contribuintes, os quais podem, a qualquer tempo – mesmo sem esgotar a via administrativa – acionar o Poder Judiciário. E quais seriam as vantagens para o contribuinte em optar por esta forma alternativa de apreciação de litígios? A primeira vantagem para o contribuinte é a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, prevista no inciso III do art. 15152 do CTN. Ao lado das reclamações e dos recursos no âmbito do processo administrativo, o CTN só autoriza a suspensão da exigibilidade do crédito tributário se o contribuinte for beneficiário de uma medida judicial favorável, tal como liminar em mandado de segurança, medida liminar ou tutela antecipada em outras espécies de ação judicial, e, 49 O relatório CARF 2009 está disponível no sítio do CARF na Internet, no seguinte endereço eletrônico: . O arquivo utilizado foi o seguinte: . Acesso em: 30 mai. 2010. 51 O percentual foi encontrado dividindo o valor correspondente ao crédito tributário em julgamento no CARF em 31/12/2009, igual a R$ 260 bilhões, pelo PIB em 2009 (a operação matemática é a divisão de R$ 260 bilhões por R$ 3.143 bilhões). 52 O dispositivo tem a seguinte redação: “Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (...) III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;”. 46 é claro, enquanto tal medida estiver em vigor. O contribuinte pode ser, sim, surpreendido, durante a tramitação do processo judicial, pela suspensão da medida cautelar concedida, por força da atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional, que representa a União em juízo em matéria tributária. Por outro lado, estando em curso o processo administrativo, o contribuinte estará resguardado de cobranças, inscrição do débito em dívida ativa da União, dos Estados ou dos Municípios, com direito à emissão de certidão positiva de débitos com efeito de negativa. A segunda vantagem é o informalismo do processo administrativo: o contribuinte pode agir em seu próprio nome, ele mesmo firmando as petições e declarações que vão instruir o processo administrativo fiscal; não precisa juntar cópias autenticadas em cartório, pois o servidor que receber a impugnação ou o recurso pode atestar, a vista do documento original, que se trata de cópia, ou seja, o contribuinte tem mais liberdade de coleta e manuseio de documentos para expor seus argumentos do que num processo judicial. A terceira vantagem fala por si só: trata-se da gratuidade do processo administrativo. Aqui cabe lembrar que já houve, em épocas passadas, obrigatoriedade de depósito prévio para seguimento do recurso administrativo, o que foi banido após rechaçado pelos tribunais superiores, prevalecendo a tese de que tal exigência feria o direito do contribuinte a ampla defesa e ao contraditório. Anteriormente à matéria ser sumulada pelo STF53, em Sessão Plenária de 29/10/2009, o STF já havia declarado a inconstitucionalidade do art. 33, caput e parágrafos, da Medida Provisória nº 1.699-41/1998, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.976-7 em 28 de março de 2007. Na lei de conversão da medida provisória - a Lei Federal nº 10.522, de 19 de julho de 2002 – o depósito prévio foi substituído pelo arrolamento de bens e direitos como condição de admissibilidade do recurso administrativo. Mas o STF entendeu que tanto a exigência do depósito como a do arrolamento prévio de bens e direitos como condição de admissibilidade de recurso administrativo constituem obstáculo sério e intransponível, para consideráveis parcelas da população, ao exercício do direito de petição, previsto no inciso XXXIV do art. 5º da CF/1988, além de caracterizar ofensa ao princípio do contraditório, contido no inciso LV do art. 5º da CF/1988. Finalmente, a quarta vantagem é a especialização dos tribunais administrativos em matéria tributária: o contribuinte, ao submeter sua lide à esfera administrativa, tem certeza de que a 53 A matéria é objeto da Súmula Vinculante nº 21, do STF, cuja redação é a seguinte: “É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”. 47 matéria vai ser apreciada por profissionais que militam na área tributária. De fato, é inconteste que as grandes discussões em direito tributário – especialmente aquelas que envolvem os planejamentos tributários – se desenvolvem na esfera administrativa, a rigor na segunda instância de julgamento, distribuídas nas Turmas de Julgamento do CARF. Cabe introduzir a lei geral do processo administrativo, aprovada pela Lei Federal nº 9.784, de 29/01/1999, a qual é aplicável ao processo administrativo da Administração Federal Direta e Indireta. Tal diploma legal conjuga a proteção dos direitos dos administrados ao melhor cumprimento dos fins da Administração, tendo por destinatário a função administrativa em geral, inserta em quaisquer dos três poderes estruturais do Estado, tal como disposto no parágrafo primeiro de seu art. 1º54. Sua base principiológica é abrangente; foi bastante festejada pela doutrina nacional quando positivada, e a ela será dado maior destaque em subtópico a seguir. Por hora, cabe ressaltar que sua aplicação ao processo administrativo fiscal de determinação e exigência dos créditos tributários da União é supletiva, como seu próprio texto indica. A aplicação da Lei nº 9.784/1999 ao processo administrativo fiscal federal vem sendo pouco a pouco construída, sendo inconteste sua importância por força da enunciação de princípios basilares que devem guiar a ação da administração pública. O art. 5655 da mesma lei, por exemplo, que prevê o duplo grau de instância, é um princípio que não pode ser afastado, e, mesmo que não haja previsão em legislação específica para o recurso a uma referida decisão administrativa, tendo em vista as garantias do contraditório e da ampla defesa, o recurso deve ter seguimento, aplicando- se o dispositivo em referência. É importante destacar também que a mesma lei geral do processo administrativo, em seu art. 9º56, relaciona os legitimados como interessados no processo administrativo, incluindo aqueles que, sem terem iniciado o processo, têm direitos ou interesses que possam ser afetados pela 54 O dispositivo mencionado tem a seguinte redação: “§ 1º Os preceitos desta Lei também se aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa.” 55 O dispositivo tem a seguinte redação: “Art. 56. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito”. 56 O art. 9º está transcrito a seguir: “Art. 9º. São legitimados como interessados no processo administrativo: I - pessoas físicas ou jurídicas que o iniciem como titulares de direitos ou interesses individuais ou no exercício do direito de representação; II - aqueles que, sem terem iniciado o processo, têm direitos ou interesses que possam ser afetados pela decisão a ser adotada; III - as organizações e associações representativas, no tocante a direitos e interesses coletivos; IV - as pessoas ou as associações legalmente constituídas quanto a direitos ou interesses difusos.” 48 decisão a ser tomada. Os seus arts. 31 e 3257 estabelecem que poderá o órgão competente admitir intervenção do amicus curiae e até realizar audiência pública para possibilitar mais debates sobre o tema objeto do processo. Trata-se de uma figura ainda muito tímida no ordenamento jurídico brasileiro, mas que pode influir decisivamente no rumo das decisões em que são parte. 2.3.1. O devido processo legal Este tópico se justifica por ser o postulado do devido processo legal a base principiológica do processo administrativo fiscal. De fato, toda a atividade da Administração Pública deve se curvar a este postulado. Definindo-o, Vladimir da Rocha França assim se expressa (2007, p. 264): “o devido processo legal representa o conjunto de princípios e regras constitucionais que devem ser observados pelo Estado em sua processualidade”. Sobre a importância dos princípios, cabe apresentar o entendimento de Vladimir da Rocha França, que os define como normas jurídicas fundamentais a conduzir a evolução da sociedade58. E quanto à aplicação dos mesmos princípios pelo intérprete, especialmente no âmbito da administração pública, fica a sua lição pela prevalência da Constituição (2007, p. 194): os princípios jurídicos que consagram os valores representam, no seu entender, uma diretiva a ser observada pelos agentes públicos, pois, embora não haja uma justiça universal, “não se deve afastar a existência de uma justiça conforme a Constituição”59. 57 A redação dos dispositivos citados é a seguinte: “Art. 31.Quando a matéria do processo envolver assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte interessada. § 1º A abertura da consulta pública será objeto de divulgação pelos meios oficiais, a fim de que pessoas físicas ou jurídicas possam examinar os autos, fixando-se prazo para oferecimento de alegações escritas. § 2º O comparecimento à consulta pública não confere, por si, a condição de interessado do processo, mas confere o direito de obter da Administração resposta fundamentada, que poderá ser comum a todas as alegações substancialmente iguais. Art. 32. Antes da tomada de decisão, a juízo da autoridade, diante da relevância da questão, poderá ser realizada audiência pública para debates sobre a matéria do processo.” 58 Vlaldimir da Rocha França (2007, p. 194) assim destaca o papel dos princípios: “Qualquer estudo da dogmática jurídica do direito administrativo deve render a necessária homenagem aos princípios jurídicos. São normas jurídicas fundamentais tanto para a definição do interesse público como para sua concretização. São os preceitos que procuram dar à sociedade um campo mais ordenado para sua evolução”. 59 Com suas palavras: “Cabe ao intérprete, autêntico ou não, atentar para os valores consagrados na Constituição. Embora seja correta a assertiva de que não existe uma justiça universal, não se deve afastar a existência de uma justiça conforme a Constituição. Os princípios jurídicos representam o norte indispensável para uma procura menos arbitrária 49 Em breve retrospectiva, cabe lembrar o papel dos princípios ao longo da história da Ciência do Direito: ele foi se modificando com o tempo. Nos primórdios, os princípios ostentavam um papel quase metafísico, e eram desprovidos de caráter normativo. Com a criação dos códigos – o que se deve à Escola da Exegese – os princípios são inseridos no texto normativo. Num cenário pós-positivista, tal como se vivencia atualmente, os princípios passam a ser compreendidos como norma. Deve-se a Crisafulli o desenvolvimento da teoria da força normativa dos princípios. Os doutrinadores mais festejados na área jurídica – especialmente os constitucionalistas e os hermeneutas - também tratam os princípios desta forma: princípio como espécie do gênero norma jurídica. Canotilho, Robert Alexy, John Rawls são exemplos deste enfoque. Canotilho (19__, pp. 1123-1151), ao apresentar o sistema jurídico do Estado de direito democrático português como um sistema aberto de regras e princípios, abandona a distinção tradicional entre normas e princípios, para sugerir a seguinte: regras e princípios como duas espécies do superconceito “norma”. E questiona qual a função dos princípios: têm uma função retórico-argumentativa ou são normas de conduta? Questiona também se existe um denominador comum entre princípios e regras: há diferença apenas quanto ao grau, ou há uma diferença qualitativa? Ao responder ao primeiro questionamento, Canotilho distingue princípios hermenêuticos de princípios jurídicos. Os primeiros desempenham uma função argumentativa. Quanto ao segundo questionamento, o mestre se posiciona pela diferença qualitativa entre princípios e regras, concebendo os princípios como normas impositivas de uma otimização, permitindo o balanceamento de valores e interesses conforme seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes. Mais adiante será abordada a tensão entre princípios, retornando à técnica do balanceamento. Dentre os princípios constitucionais que informam o processo administrativo fiscal e delineiam o sistema tributário nacional, serão contrapostos os da legalidade, da inafastabilidade da dos elementos axiológicos e teleológicos que devem ser levados em consideração pelos agentes titulares de competências administrativas”. 50 prestação jurisdicional e do devido processo legal, com os da segurança jurídica, da coisa julgada e da verdade material – definindo-se cada um deles e analisando-os em conjunto. O processo administrativo fiscal integra o rol dos direitos fundamentais elencados pela Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, uma vez que é reconhecido, ao lado do processo judicial, como garantia individual do administrado. Trata-se, portanto, de direito assegurado ao administrado para se opor contra ato da Administração, cuja origem, idêntica a do processo judicial, é o postulado do devido processo legal, herança do direito inglês que o direito romano incorporou e os demais ordenamentos jurídicos dos países de língua latina, por influência daquele, também o adotaram em seus textos. A primeira formulação do due process of law é atribuída à Carta Magna de 1215, a qual traz, em seu capítulo 39, o seguinte conteúdo: “nenhum homem será detido ou preso, nem privado de seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra”. Ensina Alexandre Barros Castro (2008, p. 140) que as rivalidades entre o trono inglês e a nobreza, cuja força se concentrava na atuação do Parlamento, evoluíram a situação insustentável no governo de João Sem Terra, razão da outorga, por ele, em 1215, aos senhores feudais, da Carta Magna, estatuto que blindava o baronato revoltoso contra a supressão do direito à vida, liberdade e propriedade, assegurando obediência à lei da terra. O “juízo legal de pares” compreende o rito específico por autoridade legítima e pré- constituída, enquanto a “lei da terra” refere-se ao direito costumeiro, decorrente da sedimentação de decisões passadas, especialmente decisões judiciais, e a razão. O direito costumeiro no século XVII gozava, portanto, de supremacia, e estava associado à idéia do devido processo legal e do juízo imparcial, este lembrado sempre pela doutrina através do paradigmático leading case Bohnan versus Lorde Coke, quando foi decretada a impossibilidade do privilégio de julgar em causa própria. A Constituição Federal de 1988 trouxe, como inovação, a extensão ao processo administrativo, sempre que haja litigantes, das garantias do contraditório e da ampla defesa. Não se faz necessário que haja “acusados” no processo administrativo. De fato, o desdobramento da cláusula do devido processo legal alcança assim três planos: o jurisdicional, em que as garantias 51 do contraditório e da ampla defesa passam a ser expressamente reconhecidas como tais tanto para o processo penal como para o não-penal; o plano das acusações em geral, em que a garantia alcança as pessoas objeto de acusação; e, finalmente, o plano do processo administrativo, sempre que haja litigantes. O Min. Celso de Mello, ao relatar o Mandado de Segurança 26358 MC/DF60, conclui que a Constituição não mais limita o contraditório e a ampla defesa aos processos administrativos de caráter punitivo em que haja acusados, estendendo as garantias a todos os processos administrativos, não-punitivos e punitivos, ainda que neles não haja acusados, mas simplesmente litigantes. Esclarece a acepção do termo litigantes: existem sempre que, num procedimento qualquer, surja um conflito de interesses. Basta que os partícipes do processo administrativo se anteponham face a face, numa posição contraposta. Pode haver litigantes – e os há – sem acusação alguma, em qualquer lide. A questão da aplicabilidade e da extensão, aos processos de natureza administrativa, da garantia do “due process of law”, é pacífica no STJ, cujo entendimento é pela observância obrigatória do contraditório em caso de anulação de ato administrativo com repercussão no campo de interesses individuais61. Concluindo, cabe relacionar os elementos essenciais à configuração da garantia constitucional do due process of law : direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex post facto”; direito à igualdade entre as partes; direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; direito ao benefício da gratuidade; direito à observância do princípio do juiz natural; direito ao silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); direito à prova. Não há dúvida, portanto, que o mandamento constitucional abrange processos judiciais e administrativos, sendo necessário haver litígio, ou seja, interesses conflituosos suscetíveis de 60 Fonte: Informativo STF nº 457. A ementa do decisum é a seguinte: “Tribunal de Contas da União. Procedimento de caráter administrativo. Situação de conflituosidade existente entre os interesses do Estado e os do particular. Necessária observância, pelo Poder Público, da fórmula constitucional do “due process of law”. Prerrogativas que compõem a garantia constitucional do devido processo. O direito à prova como uma das projeções concretizadoras dessa garantia constitucional. Medida cautelar deferida (DJU 2.3.2007)”. 61 A decisão da 2ª Turma do STJ (RTJ 156/1042), cujo relator foi o Min. Marco Aurélio, está assim ementada: ATO ADMINISTRATIVO – REPERCUSSÕES – PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE – SITUAÇÃO CONSTITUÍDA – INTERESSES CONTRAPOSTOS – ANULAÇÃO – CONTRADITÓRIO. Tratando de anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada”. 52 apreciação e decisão; inclui produção da prova, acompanhamento de atos processuais, vista ao processo, interposição de recursos, bem como toda intervenção que a parte entender necessária para provar suas alegações. Cabe ainda lembrar que o art. 3862 da Lei nº 9.784/1999, a qual será a seguir comentada, abre ao interessado – na fase instrutória e antes da tomada de decisão – requerer diligências e perícias. 2.3.2. A aplicação da lei geral do processo administrativo ao processo tributário da União A Lei nº 9.784/1999, também conhecida como a lei geral do processo administrativo, é de aplicação supletiva ao processo administrativo fiscal, por força do princípio da especialidade. De fato, seu art. 69 assim estabelece: “os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta lei”. A Lei nº 9.784/1999 tem, portanto, caráter geral, uma vez que suas disposições são aplicadas a todos os poderes, quer o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário, no âmbito federal, enquanto o Decreto nº 70.235/1972 só alcança o processo administrativo fiscal. É fato notório que a Lei nº 9.784/1999 tem uma base principiológica muito forte, ex vi da enumeração de critérios que devem ser observados no processo administrativo. Seu art. 2º, após determinar no caput a obediência da Administração Pública aos princípios da finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público, legalidade, moralidade e eficiência – os três últimos reproduzidos do texto do art. 37 da Constituição Federal - explicita os seguintes critérios em seu parágrafo único: atuação conforme a lei e o Direito (inciso I); atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei (inciso II); objetividade no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou autoridades (inciso III); atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé (inciso IV); divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas na Constituição (inciso V); 62 A redação do dispositivo é a seguinte: “Art. 38. O interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo. § 1º Os elementos probatórios deverão ser considerados na motivação do relatório e da decisão. § 2º Somente poderão ser recusadas, mediante decisão fundamentada, as provas propostas pelos interessados quando sejam ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias.” 53 adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público (inciso VI); indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão (inciso VII); observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados (inciso VIII); adoção de formas simples, suficientes para propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados (inciso IX); garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e nas situações de litígio (inciso X); proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas as previstas em lei (inciso XI); impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo da atuação dos interessados (inciso XII); interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação (inciso XIII). Ressalte-se que alguns desses critérios envolvem verdadeiros princípios, como é o da legalidade objetiva, contido no inciso I acima, o da oficialidade, envolto no inciso XII, o da publicidade, referido no inciso V, e o da razoabilidade, constante do inciso VI. Os arts. 3º63 e 4º64 da mesma lei contemplam direitos e deveres dos administrados, ressaltando-se, dentre os primeiros, o tratamento respeitoso devido ao administrado e a necessária lealdade no trato com a Administração, dentre os últimos. Nos formulários que o administrado utiliza, ao procurar a RFB, por exemplo quando ele declara ter tido união estável com um contribuinte já falecido – ao solicitar o resgate do imposto de renda a restituir apurado em declaração de rendimentos do de cujus, que não tenha deixado outros bens a inventariar ou arrolar - ele sempre firma o termo sob compromisso de se tratar de verdade, e é esclarecido, no próprio formulário, que constitui crime faltar com a verdade em documento oficial, o que está previsto na legislação penal. 63 A redação do dispositivo é a seguinte: “Art. 3º. O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: I - ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações; II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente; IV - fazer-se assistir, facultativamente, por advogado, salvo quando obrigatória a representação, por força de lei”. 64 O dispositivo está assim redigido: “Art. 4º. São deveres do administrado perante a Administração, sem prejuízo de outros previstos em ato normativo: I - expor os fatos conforme a verdade; II - proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé; III - não agir de modo temerário; IV - prestar as informações que lhe forem solicitadas e colaborar para o esclarecimento dos fatos”. 54 O art. 1065 cuida da capacidade para ser parte em processo administrativo, estabelecendo faixa etária acima de dezoito anos, com a ressalva de previsão diversa em ato normativo. Aqui cabe lembrar os processos administrativos que tramitam nas Delegacias da Receita Federal do Brasil versando sobre isenção de IPI na aquisição de automóveis de passageiros para portadores de deficiência mental ou visual, os quais podem, em tese, ter idade inferior a dezoito anos. Como a isenção legal é destinada a esta categoria de pessoas, independente da sua idade, o menor pode vir a figurar como interessado em processo administrativo desta natureza. Também no processo administrativo fiscal o menor de dezoito anos pode ser sujeito passivo de obrigação tributária, fazendo-se representar ou ser assistido, caso seja maior de 16 anos – caso de herdeiro órfão que não ofereceu à tributação os rendimentos de aluguel provenientes dos imóveis recebidos por herança, sendo os referidos rendimentos objeto de lançamento tributário de Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). O art. 2266, por sua vez, estabelece que os atos independem de forma determinada salvo quando a lei o exija expressamente: trata-se da concretização do princípio do informalismo no processo administrativo. O mesmo dispositivo obriga a que os atos devam ser produzidos por escrito, em vernáculo, contendo a data e o local de sua realização e a assinatura do responsável. A título de exemplo, o auto de infração, peça principal do processo administrativo fiscal, contem, por expressa determinação do Decreto nº 70.235/1972, as seguintes informações, dentre outras: o local e a data de sua lavratura; a assinatura do auditor fiscal que o está emitindo; a ciência pessoal do contribuinte ou a forma como esta ciência se dará, caso não seja pessoal: por via postal ou por edital. O art. 2967, por sua vez, contempla a concretização do princípio da oficialidade na instrução processual, sem prejuízo do direito às partes de requerer a produção das provas que 65 A redação do dispositivo é a seguinte: “Art. 10. São capazes, para fins de processo administrativo, os maiores de dezoito anos, ressalvada previsão especial em ato normativo próprio”. 66 O dispositivo tem a seguinte redação: “Art. 22. Os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir. § 1o Os atos do processo devem ser produzidos por escrito, em vernáculo, com a data e o local de sua realização e a assinatura da autoridade responsável. § 2o Salvo imposição legal, o reconhecimento de firma somente será exigido quando houver dúvida de autenticidade. § 3o A autenticação de documentos exigidos em cópia poderá ser feita pelo órgão administrativo. § 4o O processo deverá ter suas páginas numeradas seqüencialmente e rubricadas”. 67 A redação do art. 29 é a seguinte: “Art. 29. As atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações probatórias. § 1o O órgão competente para a instrução fará constar dos autos os dados necessários à decisão do processo. § 2o Os atos de instrução que exijam a atuação dos interessados devem realizar-se do modo menos oneroso para estes.” 55 melhor aproveitarem o direito que pretendam ver mantido. Adiante será tratado o tema da prova no processo administrativo fiscal, fundamental para o entendimento do rito e da conclusão do mesmo processo. O art. 3668 impõe o ônus da prova à parte que produz a alegação; no entanto, existindo na repartição registros que servem de interesse probante ao administrado, o responsável pela instrução do processo deve providenciar, de ofício, os documentos ou cópias, a teor do art. 3769. Os arts. 4870 e 4971 tratam do dever da Administração de emitir decisão em todos os processos administrativos em matéria de sua competência, em obediência ao direito do administrado de ver solucionados os seus pleitos. Os mesmos dispositivos estipulam prazo de 30 (trinta) dias para apreciação do processo, cabendo prorrogação por igual prazo; a prática, no entanto, revela que tal prazo não é obedecido. O relatório CARF 200972 atesta que em 2009 foram apreciados 14.860 (quatorze mil oitocentos e sessenta) processos entrados no órgão, mas mesmo assim a Administração Tributária não consegue dar vazão à enxurrada de pleitos que são instaurados continuamente em decorrência de autos de infração, notificações de lançamento e apreensões de mercadorias efetuadas. Em tópico a seguir, será abordado o contencioso administrativo, especialmente a sua composição e sua legitimidade e este problema aflorará com certeza. Aqui cabe lembrar, exemplificando, os despachos denegatórios que são emitidos sumariamente quando o contribuinte pleiteia, em papel, compensação de débitos com créditos aos quais entende fazer jus, quando a forma de tal pedido é por meio eletrônico, e não em formulário. Os arts. 5073 a 5274 tratam do relevante tema da motivação necessária aos atos da Administração. Muito embora a Constituição restrinja tal obrigatoriedade às decisões judiciais (art. 68 O dispositivo está assim redigido: “Art. 36. Cabe ao interessado a prova dos fatos que tenha alegado, sem prejuízo do dever atribuído ao órgão competente para a instrução e do disposto no art. 37 desta Lei”. 69 É a seguinte a redação do dispositivo: “Art. 37. Quando o interessado declarar que fatos e dados estão registrados em documentos existentes na própria Administração responsável pelo processo ou em outro órgão administrativo, o órgão competente para a instrução proverá, de ofício, à obtenção dos documentos ou das respectivas cópias”. 70 O dispositivo tem a seguinte redação: “Art. 48. A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência”. 71 A redação do dispositivo é a seguinte: “Art. 49. Concluída a instrução de processo administrativo, a Administração tem o prazo de até trinta dias para decidir, salvo prorrogação por igual período expressamente motivada”. 72 O relatório CARF 2009 está disponível no sítio do CARF na Internet, no seguinte endereço eletrônico: . O arquivo utilizado foi o seguinte: . Acesso em: 06.11.2010. 139 Recurso Extraordinário nº 607642, cujo Relator foi o Min. Dias Toffoli, o qual reconheceu a repercussão em 07/10/2010. 140 “Não vejo, assim, concessa venia, como aplicar-se à espécie o § único do art. 1º da Lei 7.347/1985, que veda a propositura de ações civis públicas, pelo Ministério Público, para veicular pretensões relativas a matéria tributária individualizáveis. Isso porque a ação civil pública não foi ajuizada para proteger direito de determinado contribuinte, mas para defender o interesse mais amplo de todos os cidadãos do Distrito Federal, no que respeita à integridade do erário e à higidez do processo de arrecadação tributária que apresenta, a meu ver, natureza manifestamente metaindividual”. (RE 576155, STF, Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, data de julgamento 12/08/2010, publicação DJE 24/08/2010). Fonte: Informativo STF nº 601. 95 ADC – sim, o lapso de tempo decorrido entre o lançamento e o julgamento na segunda instância administrativa pode possibilitar tal ocorrência – e assim a decisão do CARF ou da CSRF seria precipitada no sentido de poder conferir à matéria interpretação divergente daquela a ser adotada pelo Judiciário. Como exemplo, reproduz-se ementa de acórdão da CSRF, através do qual se deu provimento ao recurso especial do Procurador da Fazenda Nacional, em 02/10/2010, em processo administrativo cujo crédito tributário refere-se ao ano calendário 1989 – ou seja, vinte anos antes do julgamento141. Lembrando a estrutura do ato administrativo, já analisamos os motivos expressos pelas diversas hipóteses previstas na Portaria PGFN nº 820/2004 para a prática do ato. Mas o que está em debate é a finalidade do ato: atacar – acionando o Poder Judiciário - uma decisão do CARF ou da CSRF que poderia, em tese, ter o status de terminativa ou irreformável na esfera administrativa nos termos do art. 42 do Decreto nº 70.235/72 seria possível? Aqui também vale reproduzir a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, quando destaca a necessidade de se verificar não só a acepção corrente das palavras constantes do ato administrativo, mas também o seu enfoque contextual no sistema normativo (2000, p. 30)142. Ora, o Decreto nº 70.235/1972, ao tratar do rito do processo administrativo fiscal, o qual se inicia, como já visto, com a impugnação do lançamento pelo sujeito passivo (tal como estabelecido no art. 14 do mesmo ato) traz em seu art. 42 as decisões que seriam terminativas do mesmo rito: as decisões de primeira instância, esgotado o prazo para recurso voluntário sem que este tenha sido interposto; as decisões de segunda instância, de que não caiba recurso ou, se cabível, quando decorrido o prazo sem sua interposição; as decisões de instância especial. É coerente tal dispositivo com o rito impresso ao processo administrativo fiscal: ele se inicia, se desenvolve, e conclui ou termina com um ato da Administração Tributária. Trata-se do princípio da oficialidade em ação: é dever da Administração Tributária se pronunciar sobre qualquer demanda dos seus administrados, dever este também contido na Lei nº 9.784/99 (arts. 48 e 49) e previsto constitucionalmente como direito de petição, no rol dos direitos fundamentais (inciso 141 “Embargos de declaração. Retificação de acórdão para que fique esclarecido que a sentença judicial não abrange todo o período objeto do pedido de revisão”. (Recurso nº 143129. Processo nº 10280.002654/98-46). 142 “Além disso, tem-se que admitir, ainda, que uma interpretação destes conceitos fluidos, também chamados de “indeterminados”, se faz contextualmente, ou seja, em função, entre outros fatores, do plexo total de normas jurídicas, porque ninguém interpreta uma regra de Direito tomando-a como um segmento absolutamente isolado. Ao se usar a expressão segmento, já se está a indicar que é parte de um todo. Ora, as partes só entregam sua realidade exata quando se tem conhecimento do todo”. 96 XXXIV, alínea “a” do art. 5º). O processo administrativo fiscal não pode ficar eternamente em aberto, ele deve ser terminativo, disto não resta dúvida. Mas o que não pode prevalecer é a tese de que, em prol deste dever de atender ao direito de petição – sim, a todo direito corresponde um dever e vice-versa – possa ser menosprezado o princípio da legalidade ou mesmo o da razoabilidade, e o da proporcionalidade. De fato, não se justifica que o lançamento permaneça tal qual consta na decisão do CARF ou da CSRF quando há vícios de legalidade que comprometam a mesma decisão. Este vício sim deve ser afastado, e a última palavra há de ser do Judiciário neste caso, pois a Administração errou, mas não constatou o erro a tempo – antes de expedir o ato nem cinco anos após, prazo do art. 54 da Lei nº 9.784/99 para a Administração Tributária rever o ato – o qual, como já foi destacado, visa a confirmação de ato anterior, o lançamento tributário, este sim carregado da exigência de total vinculação à lei. Justifica-se, portanto, por dois motivos o acesso ao Judiciário: primeiro por ser o lançamento ato administrativo vinculado à lei, e, sendo a decisão mera confirmação do lançamento, não há como não ser também totalmente vinculada à mesma lei; segundo por ser o Judiciário o último, no ordenamento jurídico brasileiro, a dar seu pronunciamento sobre a legalidade e constitucionalidade em matéria tributária. Já foi exposta a necessidade dos atos administrativos serem motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, o que se tornou regra consubstanciada no art. 50 da Lei nº 9.784/1999; a motivação da mesma Portaria PGFN nº 820/2004 consiste em declaração de concordância com fundamento do Parecer PGFN nº 1.087/2004, emitido anteriormente. Naquele ato, o embasamento jurídico para a submissão de uma decisão final do Conselho de Contribuintes143 ao Judiciário é o inciso XXXV do art. 5º da CF/88, dado que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito pode escapar do Judiciário. Ora, já houve tentativa de reversão de decisão definitiva do CARF favorável ao contribuinte através de recurso hierárquico impetrado pela PGFN junto ao Ministro da Fazenda. O STJ acolheu o Mandado de Segurança nº 8.810/DF impetrado pelo contribuinte para afastar o recurso hierárquico, tendo a PGFN recorrido ao STF, o qual ainda não apreciou a matéria. Trata-se do RE 535.077, desde 15/10/2007 concluso ao relator. A Portaria PGFN nº 820/2004, portanto, está com seus efeitos suspensos até o deslinde da questão. 143 Órgão responsável pelo julgamento administrativo dos processos fiscais federais em segunda instância, à época da edição do Parecer, em 23/08/2004. 97 A Lei nº 9.784/1999 trouxe as seguintes premissas para decretação da nulidade ou anulabilidade dos atos administrativos em qualquer esfera de atuação desta: o seu art. 53 explicita o dever da Administração de anular seus próprios atos ilegais; já os seus arts. 54 e 55 trouxeram duas hipóteses de convalidação de atos administrativos defeituosos, contrariando frontalmente a doutrina tradicional, para a qual não poderiam existir atos administrativos anuláveis – seriam eles ou nulos ou válidos. Se nulos, seriam incapazes de produzir efeitos, salvo em relação aos terceiros de boa-fé, atingidos pelos efeitos do ato anulado. As hipóteses de convalidação previstas nos arts. 54 e 55 da Lei nº 9.784/99 são as seguintes: quando os efeitos do ato viciado forem favoráveis ao administrado, a Administração dispõe de cinco anos para anular o mesmo ato; trata-se de prazo decadencial, findo o qual, se não houver manifestação da Administração, o ato estará convalidado e os seus efeitos serão definitivos, salvo comprovada má-fé do beneficiário; a segunda hipótese é a possibilidade de convalidação expressa, por iniciativa da Administração, quando, dos efeitos do ato, não resulte lesão ao interesse público ou a terceiros. A distinção entre ato nulo e anulável é necessária e vai repercutir nos efeitos de um e de outro: enquanto o ato nulo não produz efeitos no mundo jurídico, o ato anulável tem validade provisória - até a pronúncia de nulidade. Os efeitos da nulidade para um e outro ato, no entanto, se igualam, pois a declaração ou decretação de nulidade tanto para o ato nulo como para o anulável implicam a restituição das coisas ao estado anterior. Ao apresentar suas conclusões quanto à invalidação do ato administrativo, Carlos Ari Sundfeld (1990, p. 94) afirma serem competentes para tal tanto o Poder Judiciário como a Administração Pública. Ressalva quanto a esta última os atos em relação aos quais a sua competência para assim proceder já se esgotou, hipótese na qual só poderá provocar a revisão judicial. Descreve os prazos para a invalidação dos atos tanto pelo Poder Judiciário – cento e vinte dias se por provocação do interessado através de mandado de segurança; cinco anos através de outras ações judiciais; cinco anos por provocação de qualquer cidadão, através de ação popular; por provocação da Administração Pública, distingue dois diferentes prazos: cinco anos para os atos convalidáveis e vinte anos para os inconvalidáveis; finalmente, para a invalidação pela Administração Pública, aplica o prazo de cinco anos para os atos convalidáveis e de vinte anos para os não-convalidáveis, quer cuidem de invalidação por provocação – do interessado ou de qualquer pessoa – ou de ofício. 98 Vladimir da Rocha França (2007, pp. 136-140), ao discorrer sobre invalidação e convalidação do ato administrativo, distingue as invalidades sanáveis das insanáveis: as sanáveis, ou anulabilidades, são as que incidem sobre o conteúdo do ato administrativo, mas permitem a manutenção dos efeitos jurídicos do mesmo ato, através de ato administrativo de convalidação; as insanáveis, por sua vez, ou nulidades, são as que não permitem a repetição do ato viciado, pois comprometem seu conteúdo. Explica que tal distinção tem por fundamento a finalidade que norteia a restauração da validade dos atos administrativos: a restauração da juridicidade aliada à segurança jurídica. Alfredo Augusto Becker (1998, pp.450-470), ao tratar da inexistência, nulidade, anulabilidade e ineficácia do ato jurídico afirma que a nulidade e a anulabilidade pressupõem a existência do ato no plano jurídico, assim sendo tratado – como ato existente – até ser desconstituído por sentença transitada em julgado. Assim, tanto o ato nulo como o anulável existem como ato humano no mundo; entram no mundo jurídico com defeito congênito; quanto à produção de efeitos, o ato jurídico nulo é totalmente ineficaz desde o momento de sua entrada no mundo jurídico, enquanto que o ato jurídico anulável – embora também seja portador de defeito congênito em sua validade - tem eficácia jurídica até a sentença que decreta sua anulabilidade, produzindo, portanto, os efeitos jurídicos do ato jurídico perfeito enquanto não for declarado nulo. Outra distinção entre ambos é a exigência de ato de alguém para que a nulidade produza sua conseqüência: enquanto no ato nulo inexiste tal exigência, no ato anulável se exige ato de alguém – sentença – para que a anulabilidade produza sua conseqüência, que é a ineficácia. Finalmente, conclui que (1998, p. 458) “a sentença que decreta a anulabilidade atinge a existência jurídica e a eficácia jurídica do ato, donde não haver, depois da decretação da nulidade, qualquer diferença entre o ato jurídico nulo e o ato jurídico anulável”. No entanto, a sentença que decreta a inexistência do ato jurídico é declarativa, enquanto que a sentença que decreta a nulidade ou anulabilidade do ato desconstitui o ato jurídico anulável. Como exemplo de supressão de ato legal à apreciação do Judiciário, cabe lembrar a impossibilidade de concessão, pelo Poder Judiciário, de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, prevista no art. 1º da Lei Federal nº 9.494, de 10/9/1997, e confirmada por decisão do STF em ação cautelar de Ação Declaratória de Constitucionalidade, esta ajuizada pelo Poder 99 Público. Tece Francisco Gérson Marques de Lima (2009, p. 331) apropriada crítica à atuação do Supremo Tribunal Federal neste episódio144. Este episódio funciona como um anti-exemplo do que é desejável numa democracia: um Poder Judiciário forte e independente. Críticas à composição dos tribunais no Brasil são constantes, e são particularmente contundentes nos litígios entre o Poder Público e seus administrados, uma vez que as sentenças proferidas contra a Fazenda Pública obrigatoriamente chegam aos tribunais145. Aurélio Pitanga Seixas Filho (1983, pp. 72-73) explica que a solução natural para a correção do ato administrativo inválido é submetê-lo à consideração da autoridade administrativa cuja hierarquia é imediatamente superior àquela que praticou o ato. Expõe sua idéia quanto à transformação do lançamento, em ato administrativo simples que é – basta um único agente do poder público para lhe dar existência e eficácia jurídica – para um ato administrativo decisório, melhorando desta forma a qualidade do lançamento tributário: tal transformação exige uma seqüência procedimental, a qual se iniciaria com um relatório descritivo propondo o tributo e a multa por acaso cabíveis, e concluiria com a notificação para o pagamento do crédito tributário ou a ordem para arquivar o mesmo relatório, se fosse o caso. Escrevia Aurélio Pitanga Seixas Filho à época que o lançamento tributário, com a supressão dos controles hierárquicos, estava se tornando “ato administrativo estratificado, inflexível, e dificultosamente reformável”. Por tal motivo propõe a melhoria do lançamento já descrita. Atualmente, a fiscalização federal já incorporou parte das sugestões descritas, com a obrigatoriedade de emissão do Mandado de Procedimento Fiscal 144 “Veja-se: o STF suspendeu, com efeito vinculante a todos os demais órgãos do Judiciário, qualquer antecipação de tutela contra o Poder Público e proibiu a magistratura de apreciar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 9.494/1997. ... o STF achou por bem excluir do Judiciário o poder de prestar a tutela efetiva e rápida em face dos abusos do Estado. Com isto quem se robusteceu não foi a máquina estatal como um todo; foi, sim, o Poder Executivo, pois as medidas seguidamente baixadas contrárias aos direitos subjetivos e às liberdades públicas provieram (e provêm, até hoje) essencialmente dele. Com a decisão, ficou o Executivo isento da apreciação do Judiciário, salvo no caso de sentença ou decisão definitiva, cuja via crucis é por demais conhecida, muitas vezes terminando no âmbito do próprio STF”. 145 Francisco Gérson Marques de Lima (2009, pp. 328-329) assim explica o vínculo entre a impossibilidade do Judiciário diressa sua decepção pela forma de composição dos tribunais no Brasil: “Proibindo a concessão de liminares, qualquer condenação do Estado só poderia ocorrer mediante amplo contraditório (a Fazenda Pública federal, estadual, municipal e o Distrito Federal possuem prazo em quádruplo para se defenderem) ou na sentença final. Sucede que as sentenças proferidas contra a Fazenda Pública só surtem efeitos quando (e se) confirmadas pelo Tribunal competente (art. 475, CPC). E isto sem falar na demora natural do processo, desde a petição inicial até a sentença, passando pelos incidentes corriqueiramente criados pela Administração Pública e por uma infinidade de recursos. Os processos contra a Fazenda Pública acabam chegando aos Tribunais, de uma forma ou de outra. E quem nomeia os integrantes dos Tribunais Regionais (TRFs, TRTs), Superiores e Supremo? Adivinhou: o Presidente da República”. 100 antecedendo o início do procedimento fiscal146, muito embora reconheça eventuais falhas nos procedimentos fiscais, o que não compromete a qualidade do trabalho do seu corpo funcional, haja vista a manutenção, na esfera administrativa, nos últimos cinco anos, de 82,5% (oitenta e dois vírgula cinco por cento) dos autos de infração lavrados. Em dados de 2009, foram fiscalizados aproximadamente 400.000 (quatrocentos mil) contribuintes, o que gerou lançamentos de créditos tributários na ordem de R$ 90 bilhões147. 146 A Portaria SRF nº 11.371/2007 tornou obrigatória a emissão do MPF previamente ao início da ação fiscal. O MPF especifica, entre outros, os seguintes elementos: tributo e período ou ano calendário a ser fiscalizado. O contribuinte a quem é direcionada a ação fiscal tem acesso aos mesmos dados, através de consulta à página da RFB na Internet . 147 O Subsecretário de Fiscalização da Receita Federal do Brasil, Marcos Vinicius Neder de Oliveira, em entrevista ao jornal Valor Econômico publicada na edição de 22/09/2010, apresenta estes dados, além de afirmar que a RFB controla as disputas administrativas, junto com o número de contribuintes fiscalizados e o valor total de autos lançados. 101 4. A FAZENDA PÚBLICA ENTRE O PODER E O DEVER DE REVER SEUS PRÓPRIOS ATOS Weida Zancaner (1990, pp. 44-45) ao questionar o poder-dever da Administração Pública de invalidar seus atos viciados, afirma que não há discricionariedade no que se refere à teoria da invalidação, pois o exercício de faculdades discricionárias origina-se da lei, e, como não há lei que estabeleça a faculdade da Administração Pública para decidir se invalida ou não um ato seu, a invalidação é sim um dever ao qual a Administração está obrigada. Já se localizou o lançamento tributário dentre os atos administrativos, em tópico anterior, classificando-o como ato administrativo vinculado – à lei – razão pela qual goza, portanto, de presunção de validade. O conceito de validade é encontrado em Hans Kelsen como a conformidade do ato com a ordem jurídica (1984, pp. 28-35) A invalidade, por sua vez, é conceito oposto ao de validade, consistindo, no dizer de Weida Zancaner (1990, p. 47) “na desconformidade do ato produzido com o sistema jurídico-positivo em que pretende se inserir”. De fato, é o princípio da legalidade – sustentáculo do Estado Democrático de Direito - que impõe sejam excluídos, dos atos inválidos, os vícios que os acometem. Weida Zancaner (1990, p. 47) explica que tal expurgo pode ocorrer sob três modalidades: por invalidação do ato, por convalidação do ato, e por saneamento, esta última modalidade, por sua vez, comportando duas espécies – por decurso do tempo ou por ato do particular afetado. Conclui Weida Zancaner (1990, p. 51) que “... em tese, ou a Administração Pública está obrigada a invalidar ou, quando a convalidação for possível, esta será obrigatória (com ressalva de ato discricionário exarado com vício de competência)”. Miguel Seabra Fagundes (1957, pp. 61-62) também admite a invalidação como faculdade, cujo exercício depende de análise de cada caso concreto: “pode acontecer que a situação resultante do ato embora nascida irregularmente, torne-se útil àquele mesmo interesse (público). Também as numerosas situações pessoais alcançadas e beneficiadas pelo ato vicioso podem aconselhar a subsistência dos seus efeitos”. No mesmo sentido Miguel Reale (na obra de Weida, p. 44-45), para quem compete à Administração Pública invalidar seus atos viciados, pois, se a nulidade não decorre de ato doloso, nem causa dano ao erário ou atinge direitos ou interesses legítimos dos administrados, não se 102 obriga a autoridade a decretar a invalidação do ato viciado. Ora, como o estudo compreende justamente os lançamentos tributários, portanto, o dano ao erário público com a não invalidação - e conseqüente convalidação – é eminente. Logo, em matéria tributária, não existe faculdade, mas sim dever somente de perseguir a perfeição do ato a que o Código Tributário Nacional qualifica como vinculado (e não discricionário). Miguel Reale (1980, pp. 33-34) remete ao ensinamento de Rui Barbosa para quem o Executivo “descumpre a lei para cumprir a Constituição”, concluindo que é legítima a recusa do Executivo a cumprir uma lei que reconhece ser inconstitucional, posto que nula de pleno direito, antes e depois de declarada a sua inconstitucionalidade pelo Judiciário. O que se constata na atualidade é que não só a lei, mas a jurisprudência através de suas súmulas indicam um norte para a Administração Pública, levando-a a desistir de eventuais recursos e não constituir crédito tributário fundado em matérias que já se encontram pacificadas no Judiciário: é o caso da Lei nº 10.522/2002, a qual, em seu art. 19148, autoriza a PGFN a não contestar, a não interpor recurso ou a desistir de eventual recurso já interposto nas matérias enumeradas. A lista de matérias para as quais cabe dispensa da constituição do crédito tributário comporta, por exemplo: empréstimo compulsório na aquisição de veículos e combustíveis; sobretarifa ao Fundo Nacional de Telecomunicações; Adicional de Tarifa Portuária; imposto de renda sobre verbas recebidas a título de Programa de Demissão Voluntária; imposto de renda sobre o pagamento de férias não gozadas. João Antunes dos Santos Neto (2006, pp. 232-237) ao apresentar critérios que devem ser observados para posicionamento futuro quanto à revisão do ato administrativo, afirma que as Súmulas nº 346 e 473149 do STF perderam sua atualidade, devendo-se reconhecer que a Administração tem o dever de invalidar seus atos ilegais, podendo revogar seus próprios atos quando inoportunos ou inconvenientes ao interesse público, com respeito aos direitos adquiridos a partir da produção de seus efeitos. Entende ainda que a atividade invalidatória de ofício deve 148 O dispositivo tem a seguinte redação: “Art. 19. Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional autorizada a não contestar, a não interpor recurso ou a desistir do que tenha sido interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese de a decisão versar sobre: I – matérias de que trata o art. 18; II – matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, ou do Superior Tribunal de Justiça, sejam objeto de ato declaratório do Procurador-Chefe da Fazenda Nacional, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda”. 149 As súmulas estão assim enunciadas: “346 – A administração pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”; “473 – A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.” 103 observar lapso temporal, seja definido por lei seja estabelecido por analogia aos prazos de decadência determinados pelo ordenamento jurídico, para que o princípio da segurança jurídica seja respeitado. Leonardo Martins (2008, pp. 248-257) ao abordar a complexidade do controle normativo brasileiro – e especificamente a delimitação entre ação direta de inconstitucionalidade e argüição de descumprimento de preceito fundamental - aponta como grande problema do controle de constitucionalidade em relação aos atos administrativos ou atos executórios da Administração Pública a definição quanto ao órgão jurisdicional competente para realizar o seu controle específico. Explica inicialmente Leonardo Martins que os atos da Administração Pública em sentido amplo são todos vinculados – mesmo os denominados “discricionários” – à lei e à Constituição. Respondendo ao seu próprio questionamento, afirma que este controle de constitucionalidade é exercido, mesmo em países como a Alemanha, que adotam o controle concentrado, por todos os órgãos do Poder Judiciário competentes em razão da matéria, além dos próprios órgãos da Administração, e especificamente pelos órgãos da Justiça Administrativa – esta última constituindo-se em ramo da Justiça Especial na Alemanha. A razão de assim ser naquele país é atribuída à parcimônia e ao cuidado necessários para o exame, em sede de controle concreto, de atos normativos provenientes do parlamento, e promulgados após a entrada em vigor da Constituição150. Mais adiante, revela a fragilidade do sistema de controle de constitucionalidade e a fraqueza do argumento segundo o qual o processo constitucional brasileiro seria objetivo, ao registrar (2008, p. 253) que o STF “equivocadamente não tem admitido as ações diretas de inconstitucionalidade contra leis, atos normativos e administrativos infralegais (ou recursos extraordinários contra decisões que os apliquem) quando se tratar de “ofensas meramente reflexas 150 Explica Leonardo Martins (2008, p. 252): “A necessidade de concentração do controle concreto é pautada na parcimônia e cuidado prescritos em razão dos princípios constitucionais da separação de funções estatais e do princípio do Estado democrático, em face de atos normativos provenientes do parlamento e promulgados após a entrada em vigor da Constituição. A declaração de inconstitucionalidade do ato normativo, ainda que incidental, resolve plenamente o problema, pois o administrado não se vê mais obrigado a um “fazer” ou a um “não fazer” ou “tolerar””. 104 ou oblíquas””. E expõe sua crítica a esta atuação do STF, entendendo que não se coaduna com o disposto no art. 102, I, “a” nem no art. 102, III da CF/1988151. 4.1. A composição e a legitimidade do contencioso administrativo O dever, portanto, de rever os atos da Administração Pública, é exercitado, no âmbito da Administração Tributária Federal, principalmente através do controle da legalidade do processo administrativo fiscal ou processo administrativo tributário. Este controle de legalidade é efetuado mediante um rito que tem sede no “contencioso administrativo”. Por contencioso administrativo compreende-se, assim, no âmbito do presente trabalho, os órgãos responsáveis pelo julgamento das reclamações e dos recursos administrativos na esfera da administração tributária federal, os quais estão previstos no art. 151, III,152 do Código Tributário Nacional. A primeira instância de julgamento dos processos administrativos tributários compreende as Delegacias da Receita Federal de Julgamento, as quais pertencem à estrutura da Secretaria da Receita Federal do Brasil; é órgão colegiado, cujas turmas de julgamento são compostas por Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil. O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) tem sua composição administrativa e judicante definida em seu Regimento Interno, o qual foi aprovado pela Portaria do Ministro da Fazenda (MF) nº 256, de 22/06/2009. Seu corpo judicante é composto, paritariamente, de representantes da Fazenda Nacional - ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil – e de representantes dos Contribuintes, indicados pelas seguintes confederações - 151 A seguir sua crítica: “Vale-se, para tanto, do problemático fundamento segundo o qual toda vez que para a aferição da inconstitucionalidade do ato normativo hierarquicamente inferior tiver-se que enfrentar o seu fundamento imediato de validade, qual seja, o ato normativo emanado do legislativo, a ofensa seria meramente reflexa ou indireta não podendo ser afastada em sede de ação direta de inconstitucionalidade ou recurso extraordinário. É difícil conceber em quais situações a aferição da inconstitucionalidade de tais atos normativos dispensaria a análise das leis nas quais encontram seu fundamento de validade. Se não se tratar de mera ilegalidade, que deverá ser afastada definitivamente pelo STJ em sede de recurso especial, mas de inconstitucionalidade, que de certa forma será sempre indireta se pensarmos na estrutura do ordenamento, essa jurisprudência do STF passa ao largo do disposto no art. 102 I “a” e no art. 102 III da CF. 152 O dispositivo está assim redigido: “Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (...) III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;” 105 Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF), Confederação Nacional da Indústria (CNI), Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNS) e Confederação Nacional do Transporte (CNT) - e representantes dos trabalhadores, indicados pelas seguintes centrais sindicais – Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical (FS), União Geral dos Trabalhadores (UGT), Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) e União Geral dos Trabalhadores (UGT)153. A atividade judicante do CARF está distribuída em três Seções de Julgamento: primeira, segunda e terceira Seção de Julgamento, as quais possuem competências específicas, definidas em seu Regimento Interno, exatamente nos arts. 2º a 4º154 do seu Anexo II. 153 A forma de escolha dos conselheiros foi reformulada recentemente, contando em 2010 com uma seleção entre candidatos ao cargo submetidos por análise de currículo a um comitê de notáveis, formado entre outros por Paulo de Barros Carvalho e Eurico Marcos Diniz de Santi. Foram eleitos 102 novos conselheiros que iniciaram suas atividades em março de 2010. Fonte: IGNACIO, Laura. Conselho terá nova composição. Valor Econômico, Brasília, 12 fev. 2010. Legislação. 154 A redação dos dispositivos é a seguinte: “Art. 2º À Primeira Seção cabe processar e julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de primeira instância que versem sobre aplicação da legislação de: I - Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ); II - Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); III - Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF), quando se tratar de antecipação do IRPJ; IV - demais tributos, quando procedimentos conexos, decorrentes ou reflexos, assim compreendidos os referentes às exigências que estejam lastreadas em fatos cuja apuração serviu para configurar a prática de infração à legislação pertinente à tributação do IRPJ; V - exclusão, inclusão e exigência de tributos decorrentes da aplicação da legislação referente ao Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte (SIMPLES) e ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, na apuração e recolhimento dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mediante regime único de arrecadação (SIMPLES- Nacional); VI - penalidades pelo descumprimento de obrigações acessórias pelas pessoas jurídicas, relativamente aos tributos de que trata este artigo; e VII - tributos, empréstimos compulsórios e matéria correlata não incluídos na competência julgadora das demais Seções. Art. 3º À Segunda Seção cabe processar e julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de primeira instância que versem sobre aplicação da legislação de: I - Imposto sobre a Renda de Pessoa Física (IRPF); II - Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF); III - Imposto Territorial Rural (ITR); IV - Contribuições Previdenciárias, inclusive as instituídas a título de substituição e as devidas a terceiros, definidas no art. 3º da Lei nº 11.457, de 16 de março de 2007; e V - penalidades pelo descumprimento de obrigações acessórias pelas pessoas físicas e jurídicas, relativamente aos tributos de que trata este artigo. Art. 4º À Terceira Seção cabe processar e julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de primeira instância que versem sobre aplicação da legislação de: I - Contribuição para o PIS/PASEP e Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), inclusive as incidentes na importação de bens e serviços; II - Contribuição para o Fundo de Investimento Social (FINSOCIAL); III - Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI); IV - Crédito Presumido de IPI para ressarcimento da Contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS; V - Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF); VI - Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira(IPMF); VII - Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro e sobre Operações relativas a Títulos e Valores Mobiliários (IOF); VIII - Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE); IX - Imposto sobre a Importação (II); X - Imposto sobre a Exportação (IE); XI - contribuições, taxas e infrações cambiais e administrativas relacionadas com a importação e a exportação; XII - classificação tarifária de mercadorias; XIII - isenção, redução e suspensão de tributos incidentes na importação e na exportação; XIV - vistoria aduaneira, dano ou avaria, falta ou extravio de mercadoria; XV - omissão, incorreção, falta de manifesto ou 106 Sua composição compreende doze Câmaras, cada uma composta por duas Turmas, totalizando vinte e quatro Turmas Ordinárias. Há também doze Turmas Especiais, o que perfaz trinta e seis colegiados; como cada colegiado é composto por seis membros, o quadro do CARF chega a duzentos e dezesseis julgadores. Em 2009, no entanto, funcionou em média com cento e sessenta e três (163) conselheiros, como consta de seu relatório de gestão155. Nesse ano, foram apreciados 14.860 processos, permanecendo em estoque em 31/12/2009 sessenta e cinco mil (65.000) processos, o que representa um acréscimo de trinta por cento (30%) em relação ao existente em 31/12/2008. Sua competência é, portanto, específica para cada Seção de Julgamento, por matéria. Sua natureza jurídica é a de órgão da administração direta do Poder Executivo, destacando- se sua vinculação ministerial com o Ministério da Fazenda. A missão do CARF é assegurar à sociedade imparcialidade e celeridade nas soluções dos litígios tributários. Sua atividade é julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de primeira instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil. Fernando Netto Boiteux (2007, pp. 177-202) traça o regime jurídico dos Conselhos de Contribuintes (atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), após discorrer sobre sua importância e sua composição, distinguindo o regime aplicável aos conselheiros da Fazenda – Auditores Fiscais da Receita Federal, responsáveis pelo lançamento de tributos – e aquele aplicável aos conselheiros representantes dos contribuintes. Afirma que os Conselhos de Contribuintes não têm competência para modificar o conteúdo dos lançamentos tributários; somente podem mantê-los ou anulá-los. Limitam-se, portanto, a apreciar a legalidade dos lançamentos tributários. documento equivalente, bem como falta de volume manifestado; XVI - infração relativa à fatura comercial e a outros documentos exigidos na importação e na exportação; XVII - trânsito aduaneiro e demais regimes aduaneiros especiais, e dos regimes aplicados em áreas especiais, salvo a hipótese prevista no inciso XVII do art. 105 do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966; XVIII - remessa postal internacional, salvo as hipóteses previstas nos incisos XV e XVI, do art. 105, do Decreto-Lei nº 37, de 1966; XIX - valor aduaneiro; XX - bagagem; e XXI - penalidades pelo descumprimento de obrigações acessórias pelas pessoas físicas e jurídicas, relativamente aos tributos de que trata este artigo. Parágrafo único. Cabe, ainda, à Terceira Seção processar e julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de primeira instância relativos aos lançamentos decorrentes do descumprimento de normas antidumping ou de medidas compensatórias”. 155 O relatório CARF 2009 está disponível no sítio do CARF na Internet, no seguinte endereço eletrônico: . O arquivo utilizado foi o seguinte: . O arquivo utilizado foi o seguinte: . Acesso em: 6 nov. 2010. MAJADAS, Márcia Fratari. Recursos administrativos no direito comparado: brasileiro e argentino. Revista de Direito Administrativo, n. 230, pp. 315-345, out./dez. 2002. MELLO, Rafael Munhoz de. Processo administrativo, devido processo legal e a lei nº 9.784/99. Revista de Direito Administrativo, n. 227, pp. 83-104, jan./mar. 2002. NOBRE JUNIOR, Edílson Pereira. Administração pública e disregard doctrine. Revista da AJURIS, v. 35, n. 112. pp.57-68, dez. 2008. PADUANI, Célio César. Natureza jurídica da jurisdição. 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