SAIR CURADO PARA A VIDA E PARA O BEM: diagramas, linhas e dispersão de forças no complexus nosoespacial do Hospital de Caridade Juvino Barreto (1909-1927) RODRIGO OTÁVIO DA SILVA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA: II SAIR CURADO PARA A VIDA E PARA O BEM: diagramas, linhas e dispersão de forças no complexus nosoespacial do Hospital de Caridade Juvino Barreto (1909-1927) RODRIGO OTÁVIO DA SILVA NATAL RODRIGO OTÁVIO DA SILVA SAIR CURADO PARA A VIDA E PARA O BEM: diagrama, linhas e dispersão de forças no complexus nosoespacial do Hospital de Caridade Juvino Barreto (1909-1927) Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa II, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha. NATAL 2012 RODRIGO OTÁVIO DA SILVA SAIR CURADO PARA A VIDA E PARA O BEM: diagrama, linhas e dispersão de forças no complexus nosoespacial do Hospital de Caridade Juvino Barreto (1909-1927) Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores: _____________________________________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha _____________________________________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Arrais Pereira de Alencar _____________________________________________________________________ Prof. Dr. André Mota ____________________________________________________________________ Prof. Dr. Hélder Viana do Nascimento Natal,_____de________________de___________ RESUMO Este trabalho tem por objeto de estudo o Hospital de Caridade Juvino Barreto, instituição nosocomial localizada na cidade do Natal (RN), entre a Praia de Areia Preta e o Monte Petrópolis, focalizando-o no período compreendido entre 1909, ano em que o novo edifício hospitalar fora construído e inaugurado, e 1927, data da transferência de sua administração de domínio público para a recém-criada associação médica da Sociedade de Assistência Hospitalar (SAH). Estudamos as condições de possibilidade da emergência desse espaço hospitalar no ambiente urbano da capital do Rio Grande do Norte, buscando compreender as diferentes táticas e estratégias implementadas pelos sujeitos históricos envolvidos na constituição desse nosocômio. Partindo de um corpus documental constituído de memórias médicas (tendo o Doutor Januário Cicco como observador privilegiado), informações presentes em jornais (A República e O Diário do Natal), acervo fotográfico e extenso material de natureza administrativa e legal (Discursos, Exposições, Falas, Leis, Relatórios e Resoluções), analisamos detalhadamente a geografia médica do HCJB, relacionando os discursos da Geografia e da Medicina na escolha da localização espacial do referido nosocômio hospitalar, bem como examinamos a arquitetura do hospital, sua espacialidade interna, divisões, formas de controle do espaço, e, por fim, abordamos as práticas médicas que se desenrolaram no seu interior, conduzindo-nos, a esse respeito, a partir das experiências do chefe de clínicas do hospital, o Dr. Januário Cicco, destacando-se aí a discussão sobre a “ética” no trabalho médico-hospitalar. A percepção do HCJB como nosoespacialidade médica sempre em movimento, constituída segundo princípios taxonômicos baseados na diferença e na dispersão de forças, levou-nos a articulá- lo teoricamente a partir do arsenal conceitual-metodológico do filósofo Michel Foucault, em especial suas reflexões da fase genealógica, centradas no fenômeno do poder, posição que nos permite valorizar o espaço noso-hospitalar como construção, invenção, produto de relações de força, que conferem ao nosocômio aspecto inacabado, aparente, sempre em jogo, possibilidade perpétua de modelagem que não tem matriz previamente definida, instaurando-o no campo do possível, da virtualidade, da potência: hospital que poderia ter sido e que não foi. Com efeito, a investigação dos diversos aspectos/elementos do espaço hospitalar do Juvino Barreto revelou-nos novas dimensões da espacialidade médico-hospitalar, muito mais complexa do que a simples e corrente idéia de um lugar para abrigo de doentes: a plasticidade e fluidez do espaço, que não se deixava circunscrever aos limites da empeiria, plasmando-se ao sabor das relações de força travadas entre os diferentes sujeitos; sua constituição como espaço de transição, heterotópico, fazendo conviver no seu interior elementos modernos com pré- modernos (médicos profissionais trabalhando com religiosas, pensamento cético da medicina positivista convivendo com a fé religiosa das freiras de Santana); a impossibilidade de se pensar o espaço noso-hospitalar do HCJB enquanto unidade homogênea, estática, transistórica, naturalizando essa espacialidade, sem se considerar as profundas diferenças, fraturas e deslocamentos que animavam sua própria existência, multiplicando as suas expressões identitárias. Palavras-chave: Hospital de Caridade Juvino Barreto, espaço médico-hospitalar, práticas médicas. ABSTRACT This work has as object of study the Hospital de Caridade Juvino Barreto, nosocomial institution located in the city of Natal (RN), between the Praia de Areia Preta and the Monte Petrópolis, focusing on the period from 1909, the year in which the new hospital building was constructed and opened, and 1927, the date of the transfer of administration of the public domain to the newly created Sociedade de Assistência Hospitalar (SAH). We study the conditions of possibility of the emergence of this hospital space in the urban environment of the capital of Rio Grande do Norte, seeking to understand the different tactics and strategies implemented by the historical subjects involved in the formation of this institution nosocomial. Starting from a corpus of documents consisting of medical memories (with Dr. Januário Cicco as privileged observer), information present in newspapers (the Republic and the Christmas Journal), photo collection and extensive administrative and legal material (Speeches, Exhibitions, Reports, Laws and Resolutions), we analyzed in detail the medical geography of HCJB, relating the discourses of medicine and geography in choosing the spatial location of the hospital as we examine the architecture of the hospital, its inner spat iality, divisions, forms of space control, and, finally, we discuss the medical practices that took place within it, leading us in this regard, from the experiences of clinical hospital chief, Dr. Januário Cicco, especially the discussion on "ethics" in hospital work. The perception of HCJB as medical nosoespaciality always on the move, incorporated under taxonomic principles based on difference and dispersion forces, led us to articulate it theoretically from the conceptual-methodological arsenal of philosopher Michel Foucault, particularly his reflections of genealogical phase, focusing on the phenomenon of power, a position that allows us to enhance our space-hospital construction, invention, product of power relations, which give the unfinished aspect nosocômio, apparent, always at stake, perpetual non-modeling possibility has previously defined array, establishing it at the field of possible, of virtuality, of power: hospital that could have been and that it was not. Indeed, the investigation of various aspects/elements of hospital space Juvino Barreto revealed us new dimensions of hospital space, far more complex than the simple and the current idea of a place to shelter patients: plasticity and fluidity of space, which is not made to circumscribe the limits of empeiria, engraving up to strength relations fought between different subject; its Constitution as a transitional space, Heterotopic, doing live inside modern elements with premoderns (professional doctors working with religious thought, skeptical of positivist medicine living with the religious faith of the nuns of Santana); the impossibility of thinking hospital space of HCJB while homogeneous unit, static, transistoric, making the spatiality, without considering the profound differences, fractures and dislocations that animated his own existence, multiplying their expressions of identity. Keywords: Hospital de Caridade Juvino Barreto, Hospital space, Medical practices. AGRADECIMENTOS Sou um devedor insolvente da bondade alheia, do carinho e da paciência de muitos. Ao longo desse último triênio, em especial, tenho atravessado longuíssima e penosa estrada, repleta de obstáculos, alguns dos quais, amontoando-se sobre meus ombros como pesados fardos, me paralisavam a caminhada. Nessas horas do calvário invisível, que me assaltava a alma em desalinho, contei com mãos generosas a se estenderem em minha direção, convidando-me ao soerguimento edificante, à retomada da jornada de trabalho digno, luta e serviço... Não desdenho nem encarneço das “pedras de tropeço” que encontrei. Agradeço às flores da amizade maior que perfumou meu caminho, por que me festejavam; mas sou igualmente grato aos espinhos por que eles me ensinaram que a Caridade é um grande bem... Às flores, meu afeto: Ao professor Raimundo Nonato de Araújo Rocha, pelo aceite em orientar- me pacientemente nesta dissertação, conduzindo-a com leveza e serenidade; Ao professor Roberto Airon, amigo de épocas transatas, incansável e sempre disposto a ajudar um neófito sedento de saber; Ao professor Muirakitan, pela erudição despojada e simples de suas aulas, que me cativaram profundamente, e pelo gesto magnânimo de compreensão quando tive de frequentemente ausentar-me dos estudos em sala para cumprir obrigações profissionais; Ao professor Francisco das Chagas Santiago, pelas rápidas mas eficazes orientações teóricas sobre Foucault, que me ajudaram a escolher um ‘modo de ver’ mais apropriado para a condução da pesquisa; Ao páter-amigo de todas as horas, Francisco das Chagas Formiga, que sempre me acolheu generosamente em seu consultório nas necessidades confessionais da existência, banhando-me com palavras de carinho e amor nos moldes do Consolador Prometido; Ao amigo William, este viajante das plagas de Caicó, que me cedeu espontaneamente, num ato de generosidade desinteressada, fotos tiradas dos jornais locais A República e O Diário do Natal, sem as quais eu não realizaria a contento minha pesquisa; Ao historiador Yuri Simoni, ligado ao Departamento de Arquitetura, que prontamente cedeu-me as fotos do Hospital de Caridade Juvino Barreto, imprescindíveis para a construção da minha dissertação; À professora Aurinete Girão, pela prestimosa colaboração de normalização do trabalho, doando seu tempo precioso em meu benefício; Ao professor Raimundo Arrais, pela atenção honesta e sincera com que várias vezes me atendeu em sua sala, orientando-me sobre o uso adequado das fontes no trabalho, chamando-me atenção para os silêncios documentais; À minha eterna avó-mãe, Joana Bezerra da Silva, que, do Plano dos Imortais, continuou a velar carinhosamente por mim, sempre ao meu lado quando a alma vibrava dolorosa; À minha tia-mãe, que me suportou os desacertos da jornada, sempre acreditando nas melhores reservas morais de meu espírito fatigado; Ao meu primo Khalil Jobim, pela leitura e pelas observações honestas sobre meus escritos; Aos alunos da UERN, pela oportunidade que me deram de aprender a ensinar, sempre muito educados e generosos com os erros e equívocos de um aspirante a professor; Ao amigo Allan, pelo inolvidável auxílio na minha licença das salas de aula do Estado, sem a qual eu dificilmente daria conta desta dissertação; Ao amigo Assis Pereira, pelas palavras de incentivo e carinho fraternais com que me tratou sempre que nos encontrávamos para conversas sadias e revigorantes; Ao amigo e pesquisador espírita Soares, pelo respeito e dignidade que me dispensou ao longo desses anos de contato, que, mesmo que esporádicos e assistemáticos, sedimentaram-se em meu espírito; Ao casal Physis/ Psikhé, Anderson e Jânua, pela fraternidade constante e verdadeira que alimentaram por mim; Aos colegas do cachorro-quente Hot Dog dos Brothers, pela conversa “fora” de algumas noites, que funcionaram como verdadeiras catarses psicanalíticas; Aos espinhos, minha eterna gratidão... Dedico este modestíssimo trabalho à Espiritualidade Amiga, que me acompanhou generosamente nas vicissitudes do caminho, sempre me socorrendo nas horas em que a dor e o desânimo abatiam-se sobre mim qual abóbada celeste que ameaçasse desabar por inteira, nos momentos excruciantes da jornada, quando minh’alma ferida fraquejava, reverberando no ar a angustiosa frase do evangelho lucano, posta nos lábios do doce e meigo Rabi da Galiléia: “Eli, Eli, lema sebachtani?”. Não, não... ELE jamais me abandonou... Talvez pareça estranho enunciar, como primeiríssimo requisito de um hospital, o princípio de que ele não deve causar danos. Florence Nightingale LISTA DE ABREVIATURAS DNSP Departamento Nacional de Saúde pública DSP Departamento de Saúde Pública EF Escola de Farmácia EPEE Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras GML Gabinete Médico-Legal HC Hospital de Caridade HCJB Hospital de Caridade Juvino Barreto HUOL Hospital Universitário Onofre Lopes IGHAP Inspetoria Geral de Hygiene e Assistencia Públicas IGHSP Inspetoria Geral de Hygiene e Saúde Públicas SMC/RN Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio Grande do Norte SAH Sociedade de Assistência Hospitalar LA Laboratório de Análises LB Laboratório de Bacteriologia LMH Livro do Movimento Hospitalar RI/HCJB Regimento Interno do Hospital de Caridade Juvino Barreto LISTA DE IMAGENS Fig.01- Ana Rosa Gattorno, 1866 ................................................................................. 51 Fig.02- Casa-máter do Instituto das Filhas de Sant’Ana, em Piacenza ........................ 52 Fig.03- Fachada do Instituto Padre João Maria, Natal (RN)......................................... 53 Fig.04- Irmãs e alunos no Instituto Padre João Maria .................................................. 53 Fig.05- Asilo de Mendicidade Padre João Maria, no prédio que hoje abriga o Centro de Turismo ............................................................................................ 54 Fig.06- Casa de campo de Alberto Maranhão, anterior a 1909 .................................... 94 Fig.07- Foto do Hospital de Caridade Juvino Barreto, cerca de 1910 .......................... 94 Fig.08- Fachada do HCJB, década de 1920 .................................................................. 96 Fig.09- Corredor lateral esquerdo do HCJB, década de 1920....................................... 97 Fig.10- Jardim do HCJB, década de 1920..................................................................... 98 Fig.11- Vista geral do HCJB ......................................................................................... 101 Fig.12- Interior da sala de cirurgia ................................................................................ 109 Fig.13- Sala de cirurgia do Hospital Santo Amaro, em Recife ..................................... 110 Fig.14- Gabinete e secretaria do HCJB ......................................................................... 112 Fig.15- Capela do HCJB ............................................................................................... 118 Fig.16- Freiras da Ordem Filhas de Sant’Ana que trabalhavam no HCJB ................... 119 Fig.17- Enfermaria masculina do HCJB ....................................................................... 124 Fig.18- Sistema de arcos Tollet..................................................................................... 127 Fig.19- Planta baixa do Hôtel-Dieu .............................................................................. 128 Fig.20- Enfermaria São José Hospital Santo Amaro .................................................... 130 Fig.21- Enfermaria de Sant’Ana do Hospital Santo Amaro ......................................... 131 Fig.22- Planta baixa e fachada do Hospital Oswaldo Cruz, em Recife ........................ 132 Fig.23- Enfermaria antiga do Hospital Santa Águeda .................................................. 133 Fig.24- Planta baixa de uma enfermaria do Hospital D. Pedro II, em Recife ............... 134 Fig.25- Seção transversal da entrada de enfermaria no Hospital D.Pedro II ................ 135 Fig.26- Enfermaria feminina do HCJB ......................................................................... 141 Fig.27- Vista lateral do HCJB. Ao fundo, vê-se o Asilo de Mendicidade Padre João Maria, hoje o prédio do Centro de Turismo ............................................. 156 Fig.28- Farmácia do HCJB ........................................................................................... 166 Fig.29- Depósito da Farmácia do HCJB ....................................................................... 168 Fig.30- Cozinha do HCJB ............................................................................................. 176 Fig.31- Antiga portaria do Hospital Santa Águeda, em Recife ..................................... 205 Fig.32- Carro de transporte de doentes no século XIX ................................................. 229 LISTA DE TABELAS Tabela 1- Funcionários do Hospital de Caridade......................................................... 69 Tabela 2- Funcionários do HCJB................................................................................. 91 Tabela 3- Operações realizadas no HCJB ao longo de 21 anos................................... 106 Tabela 4- Receitas do HCJB em 1928 ......................................................................... 120 Tabela 5- Movimento de pacientes do HCJB entre 1909 e 1910 ................................ 123 Tabela 6- Inventário dos médicos do Rio Grande do Norte no século XIX ................ 142 Tabela 7- Receitas aviadas na farmácia do HCJB entre 1927 e 1928 ......................... 163 Tabela 8- Movimento da farmácia do HCJB em 1927 ................................................ 169 Tabela 9- Trabalhos realizados no Laboratório Bacteriológico em 1925 .................... 172 Tabela 10- Movimento hospitalar do HCJB entre 1909 e 1910 .................................... 196 Tabela 11- Quadro de funcionários do HCJB em 1911 ................................................. 197 Tabela 12- Grade curricular da Escola de Farmácia em Natal ...................................... 227 Tabela 13- Epidemias no Rio Grande do Norte durante o século XIX ......................... 285 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 17 CAPÍTULO I- COM MISERICÓRDIA E CARIDADE O HOSPITAL SUBIU O MONTE: as relações entre Medicina e Geografia na via crucis do espaço nosocomial Juvino Barreto ............................................................................................ 36 1.1 Em busca das pedras do Templo de Asclépio : genealogia de um espaço de cura .......................................................................................................................... 40 1.2 No rastro das pedras... ........................................................................................... 40 1.3 Hospes tropicalium : o desembarque de Asclépio.................................................... 44 1.4 “Um novo Inferno de Dante”: mas onde está Beatriz? ........................................... 45 1.5 Doença e espaço entre os esculápios: por uma topografia da cura......................... 54 1.5.1 E Esculápio disse: “Fiat lux!”......................................................................... 54 1.5.2... E a luz se fez? .............................................................................................. 60 1.6 Entre ares hipocráticos e elevações divinas: o Templo de Asclépio se ergue... ..... 68 CAPÍTULO II- VIAGEM AO INTERIOR DO HCJB: uma ‘analítica’ do espaço de cura............................................................................................................................. 85 2.1 O nascimento do hospital na escritura jurídica ...................................................... 90 2.2 De casa a hospital: o edifício do HCJB .................................................................. 92 2.3 Cortar e costurar o espaço-corpo: sejam bem-vindos à mesa de operações do professor Gosset! ..................................................................................................... 103 2.4 A emergência do espaço clínico das vozes: pode o paciente falar? ........................ 111 2.5 Não se pode servir a Deus e a Asclepius: Mas... e servir-se deles? ........................ 117 2.6 Diagrama da ordem nosoespacial: pavilhão, enfermarias e leitos na disciplina do corpo doente ....................................................................................... 122 2.7 A pharmaceutae dos pharmacopoei no hospitalium: receitas, remédios e fórmulas ................................................................................................................... 158 2.8 Entre humores e “empôlas”: exames e pesquisas da doença sem doentes ............. 169 2.9 De volta ao passeio: é hora de comer... .................................................................. 175 CAPÍTULO III- AS ARTES DE CURA NO ESPAÇO HOSPITALAR: a Medicina e as operações “ético-estéticas” de um esculápio de aldeia ............................ 179 3.1 Um curso intensivo no hospital: espelho, espelho meu... Há alguém melhor doente do que eu? .................................................................................................... 179 3.2 Peças e engrenagens da máquina hospitalar: os passos do manual para a montagem ................................................................................................................ 194 3.3 O bisturi e o cinzel do Doutor Januário: a clínica hospitalar como ateliê do corpus e da anima .................................................................................................... 236 3.4 “O homem vulgar é que é o producto normal”: o corpo ordinário na clínica hospitalar.................................................................................................................. 252 3.5 Pelos caminhos da “Matrix”... ............................................................................... 270 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 292 FONTES ......................................................................................................................... 314 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 325 ANEXOS ........................................................................................................................ 334 APÊNDICES .................................................................................................................. 337 17 INTRODUÇÃO A história da medicina é uma história de vozes. As vozes misteriosas do corpo: o sopro, o sibilo, o borborigmo, a crepitação, o estridor. As vozes inarticuladas do paciente: o gemido, o grito, o estertor. As vozes articuladas do paciente: a queixa, o relato da doença, as perguntas inquietas. A voz articulada do médico: anamnese, o diagnóstico, o prognóstico. Vozes que falam da doença, vozes calmas, vozes revoltadas. Vozes que se querem perpetuar: palavras escritas em argila, em pergaminho, em papel; no prontuário, na revista, no livro, na tela do computador. Vozerio, corrente ininterrupta de vozes que flui desde tempos imemoriais, e que continuará fluindo (SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada: história da medicina na literatura, 1996, p.7-8). Para milhões e milhões de pacientes, o verdadeiro inferno na Terra é um hospital público (LIMA, Darcy. História da medicina: um guia prático e bem- humorado, 2003, p.148.). Vozes, vozes, vozes... Moacyr Scliar tinha razão: a história da medicina é realmente uma história de vozes. O paciente fala, o médico fala, o corpo fala... “Ouvi- lhe toda a história, examinei- lhe órgãos e sentidos, quando na fossa nasal esquerda percebi extranha hypertrophia da mucosa do corneto superior, cujo volume dava a impressão de um fibroma comprimindo o sinus frontal”1, sinalizava a região nasal de uma “distinta senhora” de Ceará-Mirim, atendida pelo médico Januário Cicco, em seus primeiros tempos de clínica em Natal. Padecia há cerca de uma década de renitente cefaléia. “[...] anosmia, hhinorréa, raras epistaxis, obstrucção lateral do nariz, dôres vagas... coisa extranha na narina afectada [...] pequeno tumor séssil, accessível quase á inspecção desarmada, do volume de um grão de milho, vermelho, não ulcerado [...]”2, queixava-se o corpo de outro cliente, diagnosticado pelo referido médico como portador um tumor nasal, podendo evoluir para neoplasma (espécie de câncer). Captadas na prática da anamnese, essas vozes, ora articuladas, ora inarticuladas, às vezes silenciosas, educadas, outras vezes grosseiras, intempestuosas, sem paciência, 1 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: ensaios de crítica médico-social. Rio de Janeiro : Paulo, Pongetti, 1928. p.30-31. 2 Ibid., p.31. 18 nascem da dor, do sofrimento, da angústia, das aflições, do desespero que bate à porta dos homens, acontecimentos não desejados nem bem-vindos. Ferido à faca, um trabalhador fora conduzido numa rede durante nove dias (!) até chegar ao Hospital de Caridade Juvino Barreto, em estado desesperador: Pelo orificio da ferida herniava grande massa epiploico-intestinal, escura, exhalando cheiro nauseante e molhando as roupas uma serosidade esverdiada e fétida. Venttre destendido, doloroso, com todos os signaes de peritonite, de par com um pulso filiforme e tachpnéa [...] o peritônio adherente á massa estrangulada, azul-escuro, a cavidade cheia de sangue e fezes e transfixado o cecum. 3 Com o ventre à mostra, acometido de grave infecção, o doente levou mais três dias de sofrimentos, falecendo em grande colapso. Certamente, esse trabalhador não desejou ter seu corpo lacerado à faca, mesmo tendo se tratado de uma briga, em região distante de recursos médicos, daí a demora em chegar ao hospital. Peregrinação da dor no tempo e no espaço. O historiador inglês Richard Gordon, em seu famoso livro A assustadora história da medicina, afirmou com espírito hipocondríaco: A história da medicina não é o testamento de idealistas à procura da saúde e da vida, assim como a história do homem não é mais gloriosa do que uma lista de irracionalidade brutal e egoísta com lampejos espasmódicos de sanidade. 4 Feitos os devidos descontos ao pessimismo costumeiro de Richad Gordon, o que ele expressava era a centralidade da dor, do sofrimento e da doença para a existência do campo médico, condições de possibilidade de sua emergência. Vibrando no ar, alcançando o pavilhão auditivo externo, mergulhando no ouvido interno e sendo transformada em informação pelo cérebro, a dor é registrada na memória, ganha sentido humano, inteligibilidade. “Vozes que se querem perpetuar [...]”, que possibilitam, por isso, o registro, a fixação em algum suporte, não apenas mnemônico, mas escrito, “[...] em argila, em pergaminho, em papel; no prontuário, na revista, no livro, na tela do computador”. E é exatamente essa condição que nos permite falar da dor, nossa e dos outros, nomeá- la, agir sobre ela, produzindo saúde. Bulas, receitas, prontuários, atestados, exames, notas de jornal, ensaios e artigos científicos, literatura ficcional, entre 3 Ibid., p.50. 4 GORDON, Richard. A assustadora história da medicina . 4. ed. Rio de Janeiro : Ed iouro, 1995.p.7. 19 outras, compõem as modalidades de registro escrito sobre a doença, permitindo “que a corrente ininterrupta de vozes que flui desde tempos imemoriais” se fixe, se acumule, se preste ao exame das gerações, seja ponto de partida para o conhecimento. É isto que nos ensina a Classsificação Internacional de Doenças, o CID-10, existente desde 1992, produzida pela ONU. Conhecimento e registro do processo mórbido, travado na relação entre médico e paciente, mas que se realizou no espaço: na casa, na clínica, no consultório, no hospital etc. A cefaléia crônica da “distinta senhora” de Ceará- Mirim, o tumor nasal do “cliente de certa evidencia” (como denominou o seu paciente o doutor Januário Cicco) e o trabalhador ferido por faca, todos receberam seu tratamento em espaço médico, notadamente o hospitalar. Esta espacialidade de cura surgiu para abrigar os pobres e doentes desenganados, pelo menos desde o período medieval. Recebendo doentes de toda a espécie nosológica, em precárias condições materiais, suas funções eram mais caritativas do que terapêuticas. Uma alma a ser salva valia mais do que um corpo corruptível. Consoante à tradição portuguesa, do século XV, os hospitais no Brasil foram fundados sob a égide das Irmãs de Misericórdia: Santa Casa de Santos (1543), Santa Casa de Salvador (1549) e Santa Casa do Rio de Janeiro (1582)5, que tinham na cura dos enfermos apenas uma das sete “obras corporais” propostas em seu “Compromisso”.6 A presença de médicos diplomados era quase inexistente: poucos se aventurariam a sair da Faculdade de Coimbra ou Montpellier, grandes centros de formação médica da Europa, para clinicar nos trópicos. Os poucos discípulos de Asclépio que freqüentavam as Santas Casas o faziam irregularmente, sem determinação de freqüência ou duração.7 5 A determinação das datas sobre a fundação das primeiras santas casas é alvo de muitas controvérsias entre os historiadores. Para obter informações mais detalhadas sobre o assunto, consultar a bibliografia especializada: NAVA, Pedro. Capítulos da história da medicina no Brasil. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Morais/ Ateliê Ed itorial; Paraná: Eduel, 2003. cap. 7: Charlatães, médicos, cirurgiões, cientistas, hospitais e academias no Brasil colonial, p.151-170; SALLES, Pedro. História da medicina no Brasil. 2.ed. Belo Horizonte: COOPMED, 2004. cap. 11: Os hospitais mais antigos, p.59-73; SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História geral da medicina brasileira . São Paulo; Hucitec, 1976. Livro 8, cap. 3: Assistência hospitalar, p.234-258. 6 SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro. História geral da medicina brasileira , p.235-236. 7 MACHADO, Roberto et al. A danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.p.59. 20 Com efeito, o espaço hospitalar não era encarado pelos seus contemporâneos como lugar central nas atividades de assistência médica curativa, encontrando-se suas instalações em péssimo estado de conservação e seu funcionamento regular deficiente, recebendo, por isso, inúmeras críticas dos profissionais do campo da saúde. A identificação do hospital como lugar de morte, metáfora comum para expressar o insucesso da assistência hospitalar, costumava sair da boca dos próprios médicos: Aquele hospital era o único existente na capital, e, naquele tempo, somente ia para o hospital quem estava desenganado de tudo, e era somente aquela gente de baixíssima condição social e econômica. Aquilo era um depósito de todas as espécies citológicas: iam tuberculosos, iam doentes, doentes cardíacos, doentes de displasias nutricionais, toda essa coisa. E aquilo era a antecâmara da morte. 8 A caracterização acima foi dada pelo médico Onofre Lopes ao primitivo Hospital de Caridade, criado em 1855, em Natal. Arrastando-se por toda a segunda metade do século XIX, esse nosocômio fora alvo constante das críticas dos presidentes de província, que solicitavam frequentemente ajuda orçamentária do Governo para melhorar o quadro de abandono e penúria em que se encontrava o Hospital de Caridade. Chão de cimento, umidade excessiva, poucos leitos e quadro reduzido de médicos e enfermeiros eram apenas alguns dos principais problemas enfrentados pela instituição. Resultado: o governador Augusto Tavares de Lyra decretou o seu fechamento em 1906. Três anos mais tarde, agora no mandato de Alberto Maranhão, inaugurou-se outro edifício hospitalar, o Hospital de Caridade Juvino Barreto, que estaria sob a responsabilidade do médico Januário Cicco. Neste novo espaço trabalhariam por dezessete anos, além do referido médico, as servidoras da Ordem das Filhas de Santana (cinco ao todo) e o “prático” 9 José Lucas do Nascimento. São alguns contornos da primitiva assistência médico-hospitalar da cidade do Natal. É a ela que consagraremos nosso esforço de pesquisa, centrando-nos no estudo daquilo que chamaremos de “segunda experiência hospitalocêntrica”: o Hospital de Caridade Juvino Barreto, focalizando-o entre os anos de 1909, data de sua inauguração, e 1927, quando a sua 8 LIMA, Diógenes da Cunha. O magnífico: uma biografia de Onofre Lopes. Natal: Infinita Imagem, 2009.p.75. 9 O termo “prático”, designação bastante comum no vocabulário dos médicos nas primeiras décadas do século XX, era palavra oriunda do francês praticien e seu uso costumava designar o “médico praticante da profissão”, tendo tal fórmula duplo significado: diferenciar o médico clín ico, cujo aprendizado dava -se basicamente pelo estudo de livros e revistas, do médico-social, que trabalhava com questões de saúde coletiva; e distinguir o médico de formação superior do praticante leigo da arte de curar. O caso de José Lucas do Nascimento parece-nos ser a segunda opção. Sobre o assunto, consultar: PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001.p.25-41. 21 administração passou para as mãos da recém-criada Sociedade de Assistência Hospitalar (SAH), associação particular de médicos criada pelo doutor Januário Cicco com a finalidade de melhorar o funcionamento do hospital. Este espaço hospitalar, que hoje recebe o nome de Hospital Onofre Lopes, representava no começo do século XX, na cidade do Natal, a construção de uma experiência “moderna” na relação do Estado com a população, dos administradores da cidade com os seus habitantes: a saúde como princípio fundamental da conservação e reprodução da força de trabalho. Questão estratégica aos olhos do Estado, a saúde passou a ser vista, então, como princípio fundamental da vida urbana, sendo encarada pela ótica da ciência médica e exercida pela figura nascente do méd ico profissional. O século XIX inaugurou o direito à doença; o século XX fundou o direito à saúde, ganhando aí a instituição do hospital novo significado: de abrigo de doentes, passou a produtor de saúde. Peça importante nesse novo mecanismo da relação Estado-população, o Hospital de Caridade Juvino Barreto produziu uma ressignificação dos espaços de cura na cidade. A pequena casa da Redinha, de 1835, construída às pressas, e que albergou oito variolosos; as casas de palha levantadas em diferentes momentos de epidemias; a nossa primeira assistência hospitalar (1855), erguida contra o devastador cólera-morbus que assolava o litoral potiguar; todos estes espaços comungavam da precariedade, da fluidez e da plasticidade que as situações emergenciais requeriam, localizando-se comumente fora do perímetro urbano ou longe das zonas residenciais. Era o espaço- distância, espaço da liquidez, de nomadismo. Na primeira década do século XX, com a construção do HCJB (1909), a preocupação era fixar, reter, sedentarizar o espaço, atendendo a critérios de geografia médica. Do alto do Monte Petrópolis, nem sinal de miasmas. Acompanhando a expansão urbana da cidade do Natal, guiada na direção dos novos bairros de Tirol e Petrópolis, o espaço médico agora era pensado dentro da urbe, na sua zona imobiliária mais promissora: espaço-proximidade, contato, ponte. Buscava- se a vida e não lugar para morrer; curar doenças, e não aumentar- lhes o poder de letalidade. Além disto, a própria emergência da experiência hospitalocêntrica geograficamente localizada, sedentária, subsidiada e mantida pelo aparelho estatal, trouxe também algumas mudanças na teia das relações entre médico e paciente, entre 22 Estado e indivíduo (agora cidadão): o “nascer e o “morrer”, eventos-chaves da vida, até então tradicionalmente encenados e dramatizados no templo do ambiente doméstico, na presença dos familiares, deslocaram-se para o lugar “frio” e “isolado” do hospital, sendo a partir de então acompanhados pela figura do médico diplomado, em lugar da atividade das antigas e populares parteiras, no caso de nascimentos, e dos padres, no caso das mortes; o corpo inerme dos indivíduos agora pertencia ao Estado. Transformações na concepção do espaço hospitalar que se conectam com a emergência do Estado como produtor de serviços que tomou para si a responsabilidade na condução dos problemas relativos à saúde e à doença em âmbito coletivo, produzindo instituições e elaborando políticas de saúde pública, tanto no modelo preventivista, quanto na configuração assistencial-pronto-socorrista-previdenciária.10 Assim, a reflexão histórica pontual sobre o espaço hospitalar do Juvino Barreto abre-nos importante porta para discutir a atual situação da saúde pública na cidade do Natal. Contando com 22 hospitais públicos11 para atender a 167 municípios, que somam juntos, segundo o censo do IBGE de 2010, cerca de 3.168.027 habitantes, a precariedade da assistência hospitalar é tema recorrente nos principais jornais da cidade, como a Tribuna do Norte, O Diário do Natal e o Jornal de Hoje. O principal estabelecimento hospitalar da capital, o Complexo Hospitalar Monsenhor Walfredo Gurgel\ Pronto Socorro Clóvis Sarinho, criado na década de 1970, encontra-se diariamente apinhado de doentes, distribuídos sofrivelmente pelas alas e corredores do hospital, que não comportam a grande demanda da cidade e seu entorno, situação agravada com o processo de desmantelamento do sistema público de saúde, que direciona forçosamente a população ao sistema médico privado. Problema social, problema historiográfico. Questão contemporânea sensível, o espaço hospitalar, portanto, deve ter o mesmo foro de cidadania que os demais objetos historiográficos trabalhados até então nos diversos domínios, dimensões e abordagens do campo da História.12 Mobilizará aqui nosso interesse de pesquisa. 10 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado, p.28. 11 Esses dados podem ser consultados no site da Secretaria de Estado da Saúde Pública do Rio Grande do Norte: www.saude.rn.gov.br/contentproducao/aplicacao/sesap/gui. 12 BARROS, José D’Assunção. O campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis [RJ]: Vozes, 2004. p.8. 23 Examinaremos um conjunto de saberes e práticas médicas, políticas e arquitetônicas que ajudaram a construir/moldar os diferentes sentidos atribuídos ao espaço hospitalar do Juvino Barreto no interior da cidade do Natal: o modo como se realizou a construção de um edifício destinado ao tratamento de doentes- sua espacialidade interna, sua localização geográfica, os conhecimentos médicos nela mobilizados, sua estrutura hierárquica e funcional, com a ampla circulação de trabalhadores e pacientes em seu interior, a administração financeira de suas atividades, enfim, todo o complexo de práticas que cercaram o funcionamento da instituição hospitalar. Para este exame dos múltiplos aspectos da espacialidade médica do HCJB, precisamos mudar o olhar que lançamos a este espaço médico-hospitalar, reeducando-o para uma visada mais dinâmica e complexa. O hospital não pode mais ser reduzido a mero local de cura de doentes- embora esta continue figurando como razão de sua existência-, espaço de dor, de sofrimento e de morte. Ele é indiciador de uma “visão de mundo”, lugar de convivência, de experiências múltiplas travadas entre distintos sujeitos ou grupos sociais. O tuberculoso, o sifilítico, o operário pobre da Great Western, a prostituta da Ribeira, o funcionário público, ocupando a ala dos pensionistas, o médico diplomado, o Inspetor do Departamento de Higiene Pública, as religiosas Filhas de Santana, todos se cruzavam nos pavilhões do HCJB, se viam, se tocavam , trocavam confidências ou mesmo comentários abertos sobre as deficiências do hospital e sobre o mal atendimento dos médicos ou irmãs, os últimos acontecimentos da cidade etc., criando vínculos com as pessoas e com o espaço, conferindo sentido a ele e a si próprias. Tal proposta de análise, fundada na reeducação do olhar sobre o espaço do hospital, exige o conhecimento de uma tradição historiográfica que tematizou esse objeto, recortou-o da empeiria de modo a pô- lo em discurso, conferindo- lhe visibilidade e dizibilidade historiográficas, circunscrevendo essa espacialidade médica a certa escritura histórica, com suas regras próprias de produção. Busquemos, então, dialogar com essa historiografia médica. 24 História e espaços de cura: o hospital na historiografia brasileira A visão míope e estreita sobre o campo da medicina, incluindo o hospital, silenciado ou visto normalmente como depósito de doentes, esteve presente durante muito tempo na própria historiografia sobre a medicina, que pouco ou quase nada se debruçou sobre os espaços de cura. A História da Medicina nasceu no séc. XIX, na Europa, da confluência entre os campos da História, impulsionada pela filosofia da Scienza Nuova de Vico e pela metodologia do positivismo comteano, concebida como ciência das leis do processo histórico, e da Medicina, constituindo disciplina da História Geral. Os clássicos da arte de Asclépio não seriam mais lidos como fonte de informação para a prática médica, mas como documento histórico sobre a teoria e a prática dos médicos antigos. Foi com esta visão que o professor alemão de Patologia Kurt Sprengel pensou sua História da Medicina no Ensaio sobre a história pragmática da medicina (1800-1803). No começo do séc.XX, sob influência do historicismo alemão, o novo campo disciplinar ganhou, nos esforços de Sudhoff (1853-1938), uma Cátedra e o primeiro Instituto de História da Medicina. Sigerist (1891-1957), discípulo de Sudhoff, estudou os aspectos sociais da medicina na obra A History of Medicine, investigando problemas geográficos, históricos, econômicos e culturais da praxeologia médica.13 No Brasil, a historiografia médica tem seu marco com a criação da Cadeira de Higiene e História da Medicina ,em 1832, nas duas Escolas Médicas do Império. Todavia, a disciplina não durou além de 1891, ano em que foi desativada por uma reforma do ensino na Primeira República. Seu retorno se deu somente no final da primeira metade do séc.XX, em 1947, graças à proposta do professor Ivolino de Vasconcellos (1917-1995), que conseguiu um lugar para a disciplina na Faculdade Nacional de Medicina, tendo o mesmo Ivolino organizado o Primeiro Congresso Nacional de História da Medicina, em 1951.14 Esta disciplina acadêmica ainda não tinha no espaço hospitalar- já existente, como vimos, desde o século XVI- o sentido de extensão do aprendizado médico, local de produção do saber, laboratório vivo da prática da medicina. O hospital não era visto como produtor de conhecimento e muito menos como objeto de estudo científico. 13 GUSMÃO, Sebastião da Silva. História da Medicina: evolução e importância. Art igo presente no site da Sociedade Brasileira de História da Medicina (SBHM), www.sbhm.org.br. Não paginado. 14 Ibid. 25 A partir da segunda metade do séc.XX, vários autores começaram a escrever sobre o tema da medicina no Brasil, dessa vez incluindo em seus trabalhos algumas informações gerais sobre a assistência hospitalar. Em História Geral da medicina brasileira, no seu primeiro volume, Lycurgo Santos Filho (1910-1998) dedicou o capítulo III do Livro VIII à “Assistência hospitalar”, descrevendo em detalhes as modalidades de hospitais existentes no Brasil- Enfermarias jesuíticas, Santas Casas, Hospitais militares, Lazaretos- até o século XVIII. É uma obra do gênero tratadístico, que procurou reunir o maior número de informações, no capítulo em questão, sobre o espaço hospitalar: história predominantemente descritiva, classificatória, tipológica. Pedro Drummond de Salles e Silva (1904-1998), em História da medicina no Brasil, escreveu livro menos alentado, mas não deixou de abordar o fenômeno do hospital, dedicando a ele três capítulos: “Os hospitais mais antigos”, “Hospitais Militares” e “Leprosários”. A perspectiva historiográfica continuava a mesma de Lycurgo : história das origens primeiras, linear, teleológica. Capítulos de história da medicina no Brasil, de Pedro Nava (1903-0000), trilhou o gênero ensaístico, abordando o objeto-hospital em seu capítulo “Charlatães, médicos, cirurgiões, cientistas, hospitais e academias do Brasil Colonial”. Nele, o espaço hospitalar, que aparece rapidamente e diluído na narrativa, figura exclusivamente como cenário de atuação dos médicos, geografia de superfície. Sua identidade é estabelecida como abrigo de doentes, espaço estrito de intervenção médica. A mesma perspectiva também pode ser encontrada em História da Medicina e Vultos da Medicina Brasileira, de Carlos da Silva Lacaz (1915-2002). Esses quatro historiadores da arte de Hipócrates em nosso país constituem o que podemos chamar de Os Pillgrim Fathers da historiografia médica brasileira, os fundadores da História da Medicina no Brasil, responsáveis pelo estudo e divulgação dela no país. Em suas obras, o espaço hospitalocêntrico ganharia suas primeiras páginas. Neste momento, os trabalhos ainda eram dominados por extensa descrição, com a exaustiva compilação de documentos contendo eventos, personagens, idéias, instituições e práticas médicas que pudessem contar a trajetória da medicina em território tupiniquim, às vezes até em versão tratadista, como História Geral da medicina brasileira, de Lacaz; pela ausência de aportes teórico-metodológicos explícitos guiando a pesquisa ou qualquer incursão em terreno hermenêutico/interpretativo, apresentando um colorido de tonalidade ora positivista, quando do trabalho metodológico, ora historicista, quando da extrema valorização das 26 singularidades, característica oriunda da predominância da literatura médica alemã entre os primeiros autores brasileiros. Os historiadores do campo médico, nessa circunstância, não eram historiadores de ofício, mas profissionais da área médica, o que ajuda a explicar, em termos, a linha descritiva e não- interpretativa de suas obras. O hospital, por sua vez, afigurava-se nesses trabalhos como espaço vazio de significado, dominando as imagens de “local de amontoamento”, “depósito”, “extensão natural” da atividade médica. Espaço-uso, espaço utilitário. Epistemologicamente, o espaço hospitalocêntrico não gerava episteme, mas era objeto-essência dela, um dado pronto, bruto, cuja verdade estava na sua descrição, que captaria, sem deformações, o ser-hospital-profundo. Nos anos 1990, apareceram historiadores acadêmicos interessados em historiar o saberes e as práticas médicas no Brasil, mormente concentrados na relação entre a medicina e o Estado, no domínio da chamada Medicina Social (união da Medicina Preventiva/ Saúde Pública com a Medicina Legal), abordando temas como sanitarismo, higienismo, eugenia, epidemias, medicina hospitalocêntrica, a ciência médica como especialização do conhecimento e poder na construção da identidade nacional etc. Nessa tendência de uma História da Saúde Pública, destacam-se os trabalhos Roberto Machado e Kátia Muricy, Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil (1978); de Sidney Chalhoub, Cidade febril. Cortiços e epidemias na corte imperial (1996) e Artes e ofícios de curar no Brasil (2003); de Jurandir Freire, Ordem médica e norma familiar (1999); de Márcia Moisés, A ciência dos trópicos. A arte médica do Brasil no século XVIII (1997); de Lília Blima, O médico e seu trabalho. Limites da liberdade (1993); de André Mota, Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil (2003) e Tropeços da medicina bandeirante: Medicina Paulista entre 1892-1920 (2005); de Dominichi Miranda de Sá, A Ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935) [2006]; de André de Faria Pereira Neto, Ser médico no Brasil (2001); de Carla Berenice Starling, Medicina mestiça (2010); de Moacyr Scliar, A paixão transformada (1996), A face oculta (2001), Cenas médicas, Do mágico ao social (2005), Saturno nos trópicos (2006), Olhar médico (2005), Meu filho, o doutor (2001), Oswaldo cruz e Carlos Chagas (2002) dentre outros. Essa nova bibliografia se caracteriza pela diversidade temática e teórico-metodológica, com trabalhos que trilham desde uma História Intelectual e das Ciências, como Dominichi de Sá, preocupado com o fenômeno da especialização do campo da ciência no Brasil, incluindo-se aí a medicina; até uma História Social que busca articular o saber e a 27 prática médica como fenômeno de “poder”, encontro perceptível na aproximação entre os profissionais das “artes de curar” com o Estado, facultando a emergência do discurso médico-sanitário e o higienista. Mesmo com tal diversidade, a temática do hospital não se fez presente nessa nova historiografia sobre o campo médico. Aliás, se comparado com a historiografia não-acadêmica dos primeiros estudos históricos brasileiros sobre a Medicina, o espaço hospitalar fora esquecido, silenciado, expulso da oficina do historiadores. Dos materiais recenseados acima, somente Moacyr Scliar, no livro A paixão transformada, e Roberto Machado, na obra Medicina social e Constituição da psiquiatria no Brasil, abordaram o hospital: o primeiro dedicou duas páginas, contando a pinceladas a origem do espaço hospitalar; o segundo, um pequeno texto de seis páginas, inserto no tópico “Medicalizar as instituições”, que discutia, sob orientação foucaltiana, a relação entre hospital e espaço urbano no Brasil do século XIX. Quais as razões desse afastamento do objeto- hospital da seara dos historiadores? A bibliografia norte-rio-grandense sobre a história da medicina, a despeito do crescente volume de publicações no cenário nacional, conta com poucos trabalhos sobre o assunto. Na verdade, a produção potiguar sobre o tema, ainda que detentora de uma tradição histórica institucional, contando com uma Faculdade de Farmácia (1920), uma Faculdade de Odontologia (1923), uma Escola de Enfermagem (1924), uma Sociedade de Medicina e Cirurgia desde 1931 e uma Faculdade de Medicina em 1955, circunscreve-se a um pequeno círculo de médicos e escritores, incorporando recentemente alguns trabalhos de natureza acadêmica, concentrados nos departamentos de Farmácia, Enfermagem e História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Contamos basicamente, para ter acesso a alguma informação sobre o desenrolar da arte de Asclépio pelo Rio Grande do Norte, com a literatura cascudiana, particularmente seus livros História da cidade do Natal (1947), nos capítulos Médicos e Saúde Pública e Hospital, e História do Rio Grande do Norte (1955), no capítulo Assistência médica na Capitania e Província. Epidemias. (II) Organização, reformas e transformações. Saúde Pública na República e sua evolução, material estruturado com base em sua produção histórico- literária e jornalística entre os 1920 e 40, na publicação diária das Actas Diurnas, hoje republicadas em diversos volumes pelo IHGRN com o título de O livro das velhas figuras. 28 Além dos esparsos textos de Câmara Cascudo sobre a atividade profissional dos esculápios de nossa terra, salvamo-nos com a prolífica produção do médico obstetra Iaperí Araújo, que vem escrevendo regularmente sobre personagens, instituições, saberes e práticas ligados ao âmbito da medicina, partindo da clínica e da epidemiologia até a etnomedicina ou medicina popular. De sua lavra sobre a temática relevam-se as seguintes obras: Januário Cicco: um homem além de seu tempo (1985), História da Maternidade Escola Januário Cicco (2000), História da Faculdade de Medicina do Rio Grande do Norte (1995) e Medicina popular (2003). A esses “historiadores” do campo médico, podemos acrescer ainda alguns poucos trabalhos mais especializados, produzidos em nível de mestrado, nos já mencionados departamentos de Enfermagem e Farmácia, na UFRN, que adotaram certa perspectiva histórica, como a dissertação Passado e presente: a enfermagem do Hospital “Onofre Lopes”(2005), de Djaílson Carlos, e História do ensino farmacêutico no Rio Grande do Norte (1992), tese de doutorado transformada em livro, de Maria Cecília Ribeiro, ambos part icipando,em maior ou menor grau, da mesma corrente de Cascudo e Iaperí. Trata-se de uma produção historiográfica local de forte tendência empiricista, que considera as fontes como depositárias da verdade histórica, expulsando da zona de atuação do historiador o ato hermenêutico/interpretativo. Além disso, supervalorizam a ação dos indivíduos nos acontecimentos, menosprezando os constrangimentos histórico-culturais que pesavam sobre eles, como fora o caso do médico Januário Cicco, retratado por Iaperí Araújo como figura heróica da medicina potiguar. No departamento de História da UFRN nasceram poucos estudos sobre o campo da saúde, todos muitos recentes, iniciados no final da década de 1990, concentrados quase que exclusivamente nas monografias de Graduação do curso de História, integrando objetos que pertencem tanto ao domínio da História da Saúde e da Doença, como as doenças epidêmicas, quanto ao da História da Medicina, trabalhando com a loucura, a tanatopraxia, a saúde pública e as espacialidades médicas (maternidade, hospitais), exceção feita à dissertação de mestrado de Gabriel Lopes Anaya, intitulada Maus ares e malária: entre os pântanos de Natal e o feroz mosquito africano (1892-1932), que faz uma incursão na área da História da epidemiologia, estudando a relação entre espaço e doença sob a perspectiva da História Social, 29 alinhando-se à Linha de Pesquisa I do Programa de Pós-graduação: Natureza, Relações Econômico-Sociais e Produção dos Espaços. Como se pode notar, o número de trabalhos é pequeno, havendo apenas duas monografias que abordaram o espaço médico como objeto de pesquisa: Maternidade Escola Dr. Januário Cicco: uma abordagem histórica, de 1997, da graduanda Maria Antunes de Araújo; e A falsa medida dos homens: loucura, mulheres e eugenia no Hospital dos Alienados em Natal (1911-1930), defendida em 2005 pela também graduanda Juliana Cavalcante de Azevedo. O espaço hospitalar- no sentido primitivo de local de abrigo para doentes- tem sua emergência como objeto somente no trabalho de Juliana Cavalcante: o Hospital dos Alienados, espaço médico especializado no tratamento de distonias mentais, figurando em sua monografia como mero cenário histórico, espaço físico percorrido por sujeitos, superfície de contato, plano horizontal, entidade estritamente geográfica. Nessa perspectiva, o hospital aparece apenas como epifenômeno da medicina, lugar de médicos assepticamente vestidos, uma sombra a assustar a saúde dos sãos com seus espaços infectos, suas pestilências e morbidades. Foi considerando exatamente essa negligência historiográfica local com relação à espacialidade médico-hospitalar, que propusemos aqui como objeto de estudo o Hospital de Caridade Juvino Barreto, a segunda experiência hospitalocêntrica da cidade do Natal, a primeira experiência do regime republicano na urbe natalense, acontecimento, deleuzianamente falando, nas bordas, no limite, no ponto de viragem, de mutação, de ultrapassagem, transição: da cidade colonial, alvejada pelas elites ilustradas, para a almejada cidade “moderna”; da prática médica dispersa das rezadeiras, benzedeiras e parteiras, para a do médico diplomado profissional, a partir de então único agente autorizado pelo Estado para cuidar da saúde da população. Nosso estudo sobre este espaço de cura insere-se no Programa de Pós-graduação em História da UFRN, na Linha de Pesquisa II: Cultura, Poder e Representações Espaciais, significando isto que o objeto-hospital será esquadrinhado neste trabalho segundo uma ótica culturalista, que privilegia o campo do mental em suas análises, interrogando o hospital do ponto de vista dos valores, significados e subjetividades construídos pelos distintos sujeitos históricos envolvidos na produção e reprodução imagético-discursiva desse espaço, adotando metodologicamente uma postura baseada no enfoque da compreensão e interpretação hermenêuticos. De modo bem geral, é este o nosso posto de observação: uma História do espaço hospitalar sob o ângulo do cultural. As postulações teóricas 30 mais precisas e os modelos interpretativos que manejaremos aqui serão apresentados de forma mais detalhada ao longo do trabalho. Por enquanto, vejamos um pouco sobre a documentação disponível a respeito do Hospital de Caridade Juvino Barreto e o modus operandi de que nos valemos para analisá-la. O problema das fontes Insuflar vida ao hospital, tirá- lo do ostracismo, depende e muito das fontes disponíveis. E, nesse caso, o problema vale para todos os pesquisadores da História Local: a grande lacuna deixada pela ausência de documentação, resultado do descaso das elites com a produção escrita sobre suas vidas e sobre a cidade onde viveram, bem como com a conservação ou o acondicionamento de suas memórias, legando ao historiador dificuldades, não raras vezes, instransponíveis, um verdadeiro “silêncio dos vencidos” 15. Para o estudo da realidade hospitalar do Juvino Barreto, contamos com quatro tipos de materiais16: as memórias do médico Januário Ciccco, que trabalhou por dezessete anos no HCJB; os relatórios das autoridades políticas sobre a assistência hospitalar no Rio Grande do Norte, as Falas e Relatórios dos Presidentes de Província e as Mensagens dos Governadores; os textos legais que disciplinavam as atividades médicas no campo da saúde coletiva; e os jornais. O primeiro grupo de fontes compõe-se de textos de reflexão médico-social a respeito do campo da medicina tal como foi pensada e praticada por Januário Cicco nas três décadas iniciais do século passado, quando estava à frente do Hospital de Caridade Juvino Barreto, podendo tais fontes de pesquisa ser encontradas no IHG/RN ou em mãos de colecionadores e particulares, como é caso do jornalista Vicente Serejo e do professor do departamento de Toco-Ginecologia da UFRN Iaperí Araújo, com os quais adquirimos a maioria das obras aqui analisadas. Nessas memórias do doutor Januário Cicco, deparamo-nos com discussões sobre a clientela médica, as relações entre os médicos da província, debates sobre os avanços médicos à época (em 15 A imagem de que me utilizei acima emergiu das reflexões do professor Raimundo Arrais quando ministrava a disciplina de mestrado Historiografia dos espaços. A metáfora utilizada por ele faz referência à obra clássica da historiografia brasileira “1930 -O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução”, de autoria do historiador Edgar De Decca, de 1981, que discutia uma nova proposta teórica e metodológica para a análise dos acontecimentos da chamada “Revolução de 1930”, descortinando as alternativas revolucionárias das décadas de 1920 e 30 e discutindo o papel do Partido Co munista no movimento operário da época. 16 Para a listagem completa das fontes utilizadas neste trabalho, conferir Lista de Fontes, na parte final da dissertação. 31 particular, a endocrinoterapia e a genética), o charlatanismo, os processos mórbidos mais comuns do período (sífilis, alcoolismo, gripes, cirroses, câncer e úlceras), a destinação dos cadáveres, a polêmica eutanásia (em forma novelesca), teoria médica e terapêutica, políticas públicas, entre outras. As diferentes temáticas arroladas, quando encaradas como discursos, analisadas como “objeto de significação” e “objeto de comunicação”, na tríplice dimensão do intratexto, intertexto e contexto (sócio-histórico- cultural), fornecem-nos as pistas para rastrear o pensamento médico e as respectivas práticas não apenas referentes a Januário Cicco, mas também a outros representantes da “arte de curar”, incluído-se aí os chamados “práticos” e os “homeopatas” da medicina popular.17Das informações contidas nas memórias do doutor Januário Cicco, voltaremos nossa atenção para alguns casos médicos de pacientes tratados por ele no HCJB, concentrando o esforço de análise nos pressupostos teóricos e nas práticas médico- terapêuticas agenciadas no interior do espaço hospitalar. O segundo grupo traz os relatórios das atividades realizadas pelos presidentes da província, no Império, e as mensagens dos governadores, já na República, compostos de diferentes dados sobre finanças, obras públicas, caridade, impostos, saúde da população, criminalidade, socorros públicos, judiciário, igrejas, epidemias etc, materiais presentes na forma de livros no IHG/RN ou disponíveis para consulta virtual na Coleção Brazilian Government Documents, do Center for Research Libraries18. A tabela de conteúdos de cada relatório, às vezes acompanhado de discursos e mensagens, não possuía um padrão, um modelo fixo, mas dependia de cada presidente de província ou governador, daquilo que ele considerava importante relatar; os títulos das seções dos documentos, dos temas que eram tratados ali, não gozavam de qualquer organicidade, sofrendo incontáveis variações ao longo do tempo. Assim, se desejamos saber algo sobre a instituição do hospital, tais como doenças, epidemias, médicos, terapêutica em vigor, etc., recorremos a seções como “Caridade”, “Socorros”, “Obras “Públicas”, “Saúde”, “Saúde Pública”, “Finanças”, entre outras. O terceiro grupo conta com vasta documentação legal e administrativa, coleções de leis enfeixadas em livros, conservados nas estantes do IHG/RN, material 17 BARROS, José D’Assunção. O campo da História: especialidades e abordagens, p.134-137. 18 Os documentos dessa coleção podem ser acessados no site www.crl.edu/brazil. O Center For Research Libraries foi fundado em 1949, como uma iniciativa de algumas universidades americanas, que tinham o objetivo de criar uma forma de cooperação entre as bibliotecas de instituições universitárias estadunidenses, facilitando o acesso a livros e fontes de pesquisa. 32 que procurava regular, no âmbito do Estado, a prática médica, seja no seu exercício profissional, imediato e visível, seja no disciplinamento dos espaços médico-clínico- hospitalares, onde atuariam os profissionais da medicina. Regulavam e organizavam o serviço de saúde, autorizando doações fundiárias para construção de escolas e assistências hospitalares, como a Escola de Enfermagem e o Hospital de Caridade Juvino Barreto; autorizavam o consórcio contratual entre o Estado e estabelecimentos particulares, com vistas a melhorar o socorro médico no RN (o caso da Sociedade de Assistência Hospitalar, assumindo o HCJB, em 1927); incentivavam a produção de registros da atividade médica para esforço estatístico de interpretação do quadro da saúde pública no Estado, facilitando planejamento; e outras disposições miúdas, que nos permitem aproximar a figura do Estado ao espaço de cura do hospital, desvendando os mecanismos de produção e disciplinamento dessa espacialidade médica pela máquina estatal. Dessa documentação, destacam-se os grandes livros de registro do movimento hospitalar, da entrada e saída de enfermos do Hospital de Caridade Juvino Barreto, no período entre 1909 e 1930, contendo dados específicos sobre os doentes, como idade, tipo racial, procedência do internado, nome completo do solicitante de internamento, data da ocorrência, processo mórbido que o acometeu, prognóstico, tipo de intervenção, motivo da saída, entre outros. Considerando o volume das informações e a regularidade com que surgem na documentação, prestam-se, sem sombra de dúvida, para tratamento estatístico, como tabelas e gráficos, contando a história das intervenções técnicas de tratamento, revelando as faixas populacionais mais atingidas por determinadas doenças e/ou epidemias, a resistência dos pacientes a tratamentos no âmbito hospitalar (uma observação no campo de preenchimento “motivo de saída” pode ser indicador a esse respeito), classificar as enfermidades segundo as classes sociais, construir relações entre diagnósticos médicos e pensamento científico em voga etc., contribuindo para o nosso entendimento das relações entre sociedade, medicina e hospital no Rio Grande do Norte nessa fase de institucionalização da saúde pública. Tal fonte, todavia, embora de suma importância para nosso trabalho, não pôde ser compulsada por que estava em péssimo estado de conservação no Arquivo Público do Estado. As informações relativas ao movimento de entrada e saída de pacientes só podem ser encontradas, de forma condensada, em pequenas tabelas, nos jornais da época, principalmente no periódico A República, acondicionado no Instituto Histórico e 33 Geográfico do Rio Grande do Norte e no Arquivo Público Geral do Estado. Transformamos alguns desses dados estatísticos em quadros e tabelas, que nos permitiram saber um pouco mais sobre os doentes que freqüentavam o HCJB. As fontes do último grupo podem ser encontradas também no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHG/RN), apresentando-se relativamente conservadas, com alguns volumes mais recentes completos, e sendo os mais antigos de difícil acesso. Cumprem, por sua vez, importante papel em nosso trabalho. Por terem certa periodicidade e alcance midiático, são portadoras regulares de informações ligadas não apenas à medicina propriamente dita, com anúncios de boticas, fármacos diversos, clínicos particulares (incluindo-se charlatães), mas também as transformações urbanas, em termos de projetos médico-sanitários, com adequações construtivas e arquitetônicas rigidamente disciplinadas, segundo códigos estéticos e diretrizes higienistas advogadas e propaladas pela elite do Estado, que aspirava transformar a urbe natalense em cidade modelo, própria para uma vivência “civilizada”. O noticiário versava sobre o lixo jogado nas ruas, os maus hábitos de higiene da população, os pântanos da Ribeira, focos de doenças, as novidades do pensamento médico, como a terapêutica dos banhos de mar e os ares saudáveis da praia, os projetos de reforma urbana, que transformavam a paisagem material e simbólica da cidade, a relação entre os esportes e a saúde etc. Ainda que veículos produtores das idéias da elite potiguar, os periódicos acima listados são úteis para a nossa investigação na medida que permitem relacionar o saber e a prática médica com os interesses do Estado, forjando uma embrionária consciência médica na aproximação da medicina com a política, através do discurso higienista. O contato com esses materiais abriu-nos uma importante porta para o universo da medicina e do espaço hospitalocêntrico em Natal. Adentrar as portas do Hospital de Caridade Juvino Barreto, percorrer seus pavilhões, tomar contato com a dor alheia e acompanhar o trabalho dos médicos e irmãs que prestavam o atendimento aos enfermos nos revelam quem eram os homens e mulheres que viviam naquela cidade do começo do século passado. Para acompanhar a história dessa “segunda experiência hospitalocêntrica”, estruturamos nosso trabalho em três capítulos. 34 No Capítulo 1, buscamos compreender a relação entre Geografia e Medicina na construção do espaço hospitalar do Juvino Barreto, isto é, como as diversas teorias médicas correntes na época influenciaram na escolha da localização geográfica do hospital. Estudamos o processo de instalação de uma assistência hospitalar na cidade do Natal, iniciado com a construção do Hospital de Caridade, na segunda metade do século XIX (1855), pelo presidente de província Bernardo Pereira Passos. Acompanhamos a trajetória desse nosocômio, através dos documentos oficiais produzidos pelo governo, investigando sistematicamente as relações entre as práticas médicas e o espaço do hospital e da cidade. Depois de muitas críticas ao HC, culminando com seu fechamento em 1906, preparou-se um outro espaço para o novo hospital, que acabou por se instalar no extremo norte do Monte Petrópolis, nas proximidades da praia de Areia Preta em 1909. Por que se deu o deslocamento do antigo nosocômio da Salgadeira, no Bairro da Ribeira, para a região da Cidade Nova, espaço de plena expansão da cidade do Natal? Que fatores médicos e geográficos participaram de tal escolha? Concentrando-nos no discurso de salubridade, que vinha sendo gestado desde 1835, na fala do presidente Quaresma Torreão, acreditamos que a geografia médica do HCJB relacionou-se intimamente com certa concepção do espaço urbano e da doença, que viam nas teses médicas (os “bons ares”, a teoria dos miasmas) a solução dos problemas de insalubridade do meio urbano. Tal discurso fora apropriado pelas elites natalenses para justificar sua intervenção no espaço urbano, reordenando-o segundo seus interesses de criar uma “cidade moderna”, de “civilizar” os natalenses, tomando como modelo as cidades européias, como a Paris do Barão de Haussmman. No Capítulo 2, enveredamos pelo estudo da arquitetura do HCJB, buscando compreender a lógica que presidiu a organização da sua estrutura interna, com sua divisão pavilhonar, a distribuição dos leitos, a disposição dos espaços da sala de cirurgia, da cozinha, do almoxarifado, da farmácia, enfim, os princípios ou regras de divisão e distribuição do espaço interno do hospital. Com base nas informações dos jornais locais, nos relatórios das autoridades públicas e nas memórias do chefe de clínicas do hospital, reconstruiremos, acompanhando as mudanças sofridas pelo edifício ao longo do tempo, os diferentes espaços do interior do HCJB, descrevendo sua estrutura material e funcionamento, assim como as atividades de seus funcionários e o movimento dos pacientes. Essa “analítica” do espaço de cura enfocará o hospital do ponto de vista das relações de poder que se travaram na sua constituição, dos conflitos 35 pela repartição, distribuição e posse da espacialidade médica, valendo-se do instrumental teórico do filósofo francês Michel Foucault, especialmente os conceitos de “disciplina”, extraído das obras Vigiar e punir (1975) e Microfísica do poder (1979), que tinham como escopo uma “genealogia do poder” na modernidade, e o de “discurso”, tomado de A arqueologia do saber (1969), produzido a partir da preocupação do filósofo em obter as condições de emergência dos discursos de saber em geral de uma dada época, caracterizando aquilo que os estudiosos de Foucault chamaram de sua fase arqueológica. A escolha oferece-nos uma dupla vantagem: trata- se de um estudioso da medicina, que consagrou inúmeras obras ao estudo do campo médico; além disso, produziu uma proposta de análise do discurso que incorpora, para além do documento escrito, toda forma de materialidade, vista também como portadora de um discurso. No terceiro e último capítulo, enfocaremos strictu senso as práticas médicas realizadas no hospital: as doenças, os tratamentos, a relação entre médico e paciente e entre os próprios médicos. O nosso guia nesta tarefa será o doutor Januário Cicco, nomeado em agosto de 1909 médico do HCJB, desempenhando as atividades de cirurgião e superintendente do serviço médico-cirúrgico e do exercício de farmácia do estabelecimento. Suas reflexões de dezessete anos de experiência no hospital estão condensadas na obra Notas de um médico de província (crítica médico-social), publicada em 1928. Nessas observações elaboradas por Januário Cicco, selecionamos alguns casos médicos tratados e comentados por ele ao longo do livro. Eles nos fornecem boas pistas para analisarmos o pensamento e a prática da medicina no espaço hospitalar. Quem eram os pacientes? De que doenças eram mais comumente acometidos? Quais as terapêuticas utilizadas? Para além da prática médica propriamente dita, incursionaremos, em particular, na discussão sobre ética médica, tal como a compreendia o chefe de clínicas do HCJB. Acreditamos, com isso, poder entender mais adequadamente como se construiram, na prática hospitalar do HCJB, as experiências que nortearam a criação de um código de moralidade que ofereceu modelos de conduta e comportamento para médicos e doentes dentro da instituição hospitalar. 36 CAPÍTULO I COM MISERICÓRDIA E CARIDADE, O HOSPITAL SUBIU O MONTE: as relações entre Medicina e Geografia na via crucis do espaço nosocomial Juvino Barreto Estava ele numa cidade, quando apareceu um homem cheio de lepra. Vendo Jesus, caiu com o rosto por terra e suplicou-lhe: ‘Senhor, se queres, tens poder para purificar-me’. Ele estendeu a mão, e tocando- o, disse: ‘Eu quero. Sê purificado!’ e imediatamente a lepra o deixou (Lucas 5: 12-13). O Brasil é um imenso hospital (Miguel Pereira, catedrático da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em discurso proferido em 1916, em homenagem a Carlos Chagas). Em palestra proferida no Rotary Club de Natal, em 4 de novembro de 1954, sobre as Finalidades e realizações da Sociedade de Assistência Hospitalar, o médico Onofre Lopes descreveu em tom apocalíptico a precária situação de nossa primeira experiência hospitalar: No local do velho Quartel de Polícia, na antiga Rua da Salgadeira, havia um depósito de doentes em torturante promiscuidade: loucos, ulcerados e tudo que a nosologia da época apresentasse. Um novo inferno de Dante. Os doentes internavam-se apenas para morrer. 19 A imagem verbal do “inferno”, evocada no trecho acima, essa região de sofrimentos perpétuos, com as almas condenadas sendo consumidas em chamas devoradoras, e que serviu de importante cenário para a obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, produz uma imagem bastante negativa da gênese de nossa assistência hospitalar. De fato, tal metáfora de efeito estilístico é portadora de profundo significado. Para termos uma idéia mais completa da força de tal imagem, leiamos o canto XXIX, no qual Dante descreve a dor dos espíritos no nono fosso do Oitavo Círculo do Inferno comparando-a com a dos pacientes nos hospitais que ele conhecia na Itália: A dor de todos estes espíritos igualava A de todos os enfermos dos hospitais de Valchiana, 19 Apud ARAÚJO, Iaperí. História da Maternidade Escola Januário Cicco . Natal: EDUFRN, 2000.p.14. 37 de Maremma e de Sardenha, em Julho e Setembro, se estivessem todos reunidos num lugar, tal era naquele fosso; e tão mau cheiro saía, qual costuma exalar-se de membros gangrenados. 20 Como se lê no poema, Dante, guiado pelo poeta Virgílio, só encontrou sofrimento igualável ao dos internos dos hospitais de “Maremma”, “Valchiana” e da ‘Sardenha” no Além-túmulo: no Inferno! A fala do médico Onofre Lopes, todavia, deve ser melhor compreendida dentro de seu próprio contexto de elocução, de enunciação: o Pós-guerra, no Rotary Club, importante espaço de sociabilidade das elites natalenses da época. A palestra de Onofre Lopes foi produzida no sentido de monumentalizar o papel da Sociedade de Assistência Hospitalar (SAH), criada em 1927 pelo também médico Januário Cicco (seu amigo pessoal e com quem trabalhara na Maternidade Escola Januário Cicco, ocupando a ala de Pediatria), e que tinha a finalidade de cuidar da administração financeira do Hospital de Caridade Juvino Barreto, criado em 12 de setembro de 1909. Assim, o discurso de Onofre Lopes reforça uma certa visão progressista e linear da história da saúde e da assistência hospitalar na cidade do Natal, que teria seu apogeu em sua própria época, a década de 1950. Trata-se de um discurso que pretende celebrar uma instituição, produzir uma memória oficial. É com este cuidado, portanto, que devemos tomá- lo aqui. Embora essa imagem do hospital- inferno esteja envolta numa figura de linguagem, como metáfora de efeito estilístico, encontra-se fundada também em determinada realidade histórica, que pode ser percebida nas Falas e Relatórios de Presidentes de Província, fonte indispensável para o estudo da temática da saúde no Rio Grande do Norte durante o século XIX. Em 27 outubro 1879, em Fala que abriu a segunda sessão da Assembléia Legislativa Provincial, o Presidente Rodrigo Lobato Marcondes Machado afirmou que o edifício do Hospital de Caridade (1856) só tinha capacidade de receber 80 pacientes, amontoando em seu interior, todavia, cerca de 130! As conseqüências eram previsíveis: Da aglomeração resultava o incoveniente de ficarem os doentes no chão, por falta de leitos, impedindo que a casa fosse varrida e lavada, e ao mesmo tempo privados do conforto necessário. A este fato, vinham-se juntar os estragos do tempo, estampados nas sujas paredes, 20 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Rio de Janeiro : Otto Pierre, 1979.v.1, p.235. 38 o estado imprestável de grande numero de leitos, a falta de louça e de roupa. 21 No Relatório do mesmo ano, no tópico “Hospital de Caridade”, Rodrigo Lobato desabafou em tom de profunda tristeza e indignação: Tive occasião de visitar esse estabelecimento de caridade pública, e, confesso, que sahi compungido por vêr na capital de minha província, em plena luz da civilisação, tão pouco zelo e falta de humanidade para com aquelles, que mais precisão dos paternaes cuidados do Governo de seus concidadãos. A mais immunda enxovia, em completo abandono de todas as leis da mais grosseira hygienne, não póde a palma a esse sorvedouro de existências, que alli, procurando um remédio para seus males, no ar que respiram, na humidade do chão em que se deitam, nas negras e immundas coberturas que os envolvem, encontram noite e dia um perenne manancial de princípios deletérios, que, lhes minando a constituição e estancando as fontes de vida, os tornam impotentes para resistirem a acção entorpecedôra, de entidades pathologicas, que, de outro modo, seriam vantajosamente debelladas, Si não é uma personificação da crueldade. -é a última expressão do deleixo, a última palavra de tudo quanto há de mais deshumano e immoral; é afinal um protesto vivo de todos os sentimentos nobres, de todos os preceitos da mais chata philantropia e caridade. 22 Em junho de 1893, Juvêncio Odorico de Matos, Inspetor de Higiene Pública e Diretor do Hospital de Caridade (os cargos passaram a ser acumulados a partir de 11 de junho de 1892, conforme a Lei nº 14), comentou em seu Relatório as condições materiais do nosocômio hospitalar: São pobres salas orladas de umas camas de ferro desconjuntadas ou de uns dilacerados e miseráveis leitos de lona, as célebres camas-de- vento, sem nenhum conforto e insuficientemente providas de roupa, as enfermarias, com o seu pavimento mal cimentado e as suas lúgubres paredes alcatruadas, mais parecem antecâmaras da morte. 23 A expressão “antecâmaras da morte” mencionada acima também reaparecerá em entrevista concedida pelo próprio Onofre Lopes ao jornalista e advogado Diógenes da Cunha Lima, que a veiculou em alentada biografia sobre o referido médico.24 Isto revela que a visão sobre o Hospital de Caridade como espaço- depósito, “inferno de Dante”, é bastante antiga, já corrente entre os seus 21 RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o exm. sr. doutor Rodrigo Lobato Marcondes Machado, presidente da provincia, abrio a 2.a sessão da Assembléa Legislativa Provincial do R io Grande do Norte em 27 de outubro de 1879. [Natal]: Typ. do Correio do Natal, 1880.p.7. 22 Ibid., p.5. 23 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem do governador Dr. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão e relatórios apresentados pelos Chefes das repartições publicas Estadoaes do Rio Grande do Norte. Natal: Typ. D’A República, 1893. Saneamento, 14 de junho de 1893, p.3. 24 LIMA, Diógenes da Cunha. O magnífico: uma biografia de Onofre Lopes, p.75. 39 contemporâneos, diagnosticada pelos próprios responsáveis pela administração dessa instituição hospitalar. O momento crítico dessa difícil realidade nosocomial foi confirmado com o fechamento deste espaço de cura pelo então governador Augusto Tavares de Lira, em 1906, por considerá- lo inservível.25 O historiador Câmara Cascudo, comentando a “amputação indispensável”, acrescenta que “Para que os doentes miseráveis não fossem atirados à rua, Sinfrônio Barreto ficou responsável por uma Enfermaria, S. Vicente de Paula, no antigo prédio, quase sem auxílio ou com eles insufucientes”26. Durante cerca de três anos, fora esta a medida paliativa encontrada para a saúde da capital, até que fosse edificado o novo hospital, cujas disposições legais e materiais se iniciaram no próprio ano de 1906. Em 12 de setembro 1909, foi inaugurado finalmente o novo estabelecimento hospitalar, que passou a chamar-se Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, em homenagem ao industriário e filantropo Juvino Cezar Paes Barreto, e sob a responsabilidade do médico formado na Faculdade de Medicina da Bahia Januário Cicco. Localizado no alto do Monte Petrópolis, espaço de grande visibilidade, no lugar da antiga casa de veraneio do antigo governador Alberto Maranhão, e nas proximidades da Praia de Areia Preta, o Hospital de Caridade Juvino Barreto gozou, em meu entender, de uma geografia particular, escolhida segundo teorias médicas que viam no espaço, bem como no clima da região, fatores essenciais na luta contra as doenças. E é exatamente aqui que centraremos nossa análise da relação entre pensamento médico e espaço: como a pletora de teorias médicas intervinha no (re) ordenamento do espaço hospitalar, justificando não apenas sua construção, mas também sua própria localização no espaço geográfico. Partimos da hipótese de que o deslocamento espacial do Hospital de Caridade, saindo do bairro da Ribeira, na Rua da Salgadeira, posteriormente 2 de Julho, e dirigindo-se para o Monte Petrópolis, acompanhou um plano de expansão da cidade, devendo ser compreendido a partir da produção de um discurso higienista sobre a salubridade do meio urbano e seus inconvenientes para a saúde da população. Medicina e Geografia se entrecruzaram numa politicamente eficaz topografia médica, que serviu de matriz ideológica para os rearranjos espaciais que foram produzidos no interior da cidade. Metodologicamente, nossas reflexões apontarão para um duplo movimento analítico: primeiramente, buscar entender a construção de uma “experiência 25 ARAÚJO, Iaperí. Op. cit., p.14. 26 CASCUDO, Câmara. História da cidade do Natal. 4. ed. Natal: EDUFRN, 2010.p.333. 40 hospitalocêntrica primitiva” situada, no plano local, entre 1856 e 1906; em seguida, aprofundar essa mesma “experiência hospitalocêntrica” com a sua segunda espacialidade, o Hospital de Caridade Juvino Barreto, entre 1906 e 1909, confrontando as teorias médicas da época com a escolha da localização geográfico-espacial do novo nosocômio. 1.1 Em busca das pedras do Templo de Asclépio27: genealogia de um espaço de cura O hospital de hoje, dotado de alta tecnologia e composto de um corpo médico hiperespecializado, é o espaço central de atuação da medicina moderna, sendo nos países desenvolvidos o setor que mais recebe investimentos do estado. Tal estrutura, todavia, é fruto de uma trajetória histórica recente, remontando essencialmente à segunda metade do século XX.28 O espaço hospitalar, assim, não pode ser visto como um dado pronto, um a priori, um já-lá, uma essência transistórica; sua atual configuração tecno-científica e seu conseqüente status na sociedade moderna, que o reconheceu como lócus privilegiado-quando não exclusivo- para o tratamento e cura das doenças, liga-se a uma determinada trajetória, a caminhos trilhados ao longo do tempo, dialogando com os interesses políticos, sociais, econômicos e culturais de uma dada época. Sendo assim, procuraremos nesta seção fazer um breve histórico do estabelecimento hospitalar, buscando entender as mutações operadas ao longo da sua história e, com isso, compreender melhor a realidade hospitalar do Juvino Barreto, nosso objeto de estudo. 1.2 No rastro das pedras... No mundo clássico, a existência de hospitais era algo raro, escasso. Na Grécia de Péricles, os doentes costumavam procurar os santuários na busca da cura religiosa, hábito descartado pelos médicos hipocráticos, que encaravam as enfermidades como resultado de desequilíbrios orgânicos e, portanto, naturais. As primeiras 27 Deus grego da medicina. A lenda grega afirma que, após a morte de sua mãe, Asclépio foi enviado ao centauro Quíron, que iniciou-lhe na arte de curar. Devido aos seus grandes poderes, Zeus fulminou-lhe com um raio, temendo que ele tornasse os homens imortais. Diversos templos e santuários foram construídos em sua homenagem, sendo o mais famoso o de Epidauro. 28 PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Rio de Janeiro: Record, 2004.p.165. 41 instalações hospitalares apareceram na Roma imperial, normalmente destinados a escravos e soldados.29 Na Idade Média, a Igreja assumiu a tarefa de cuidar dos enfermos. O primeiro deles foi fundado em Roma por volta do ano 400 d.C. Na França, o nome genérico dado às instituições hospitalares era de Hôtel-Dieu, sendo o primeiro o de Lyon, de 542 d.C. e o mais famoso o de Paris, fundado no século VII por são Landry, bispo da cidade, e chegando a ter 1200 leitos, dos quais seiscentos individuais, ficando nos outros de três a cinco pacientes por leito. As seis camas destinadas a crianças recebiam duzentos pequenos pacientes (As camas eram maiores que as atuais, podendo comportar esse número de pacientes).30 Alguns desses modelos caritativo-assintenciais de hospital funcionavam como verdadeiras escolas médicas, como o Mosteiro de Monte Cassino, fundado em 529 d.C. Aí, guardavam-se muitos manuscritos médicos que serviram de manuais para os centros de estudo, como o hospital de Salerno, fundado pelos beneditinos no fim do século VII e que se tornou o primeiro núcleo da famosa escola que dominaria os estudos médicos no século XIV. 31 Eram hospitais administrados por ordens religiosas. A medicina grega fora albergada nos mosteiros e traduzida por médicos árabes e judeus. Os mo nges tratavam dos doentes e seu principal objetivo era a caridade. Vigorava, portanto, uma visão religiosa da enfermidade, vista como provação ou pecado. Os leprosos, por exemplo, tinham de ser afastados da sociedade, e tinham de usar uma matraca que anunc iasse sua presença, para que os sãos pudessem deles se afastar. Nesses hospitais, não era possível tocar o corpo do morto, ficando vedado o estudo da anatomia; e também a prática cirúrgica fora interditada, pois a Igreja concebia o sangue como manifestação de impureza. A fé era o grande instrumento de cura. 32 Embora o conhecimento médico não ainda não conhecesse a especialização, característica de nossa época, alguns hospitais eram criados para certas doenças ou situações de emergência. Assim, os leprosos possuíam asilos especiais, onde eram confinados à força. Em 1225, havia dezenove mil desses leprosários espalhados pela Europa! Com a peste bubônica, os leprosários foram transformados em hospitais para 29 Ibid., p.166. 30 SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada: história da medicina na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.p.29. 31 SALLES, Pedro. História da medicina no Brasil, p.59. 32 SCLIAR, M.Op. cit., p.29. 42 isolamento de casos, os chamados lazaretos de quarentena, nome dado em homenagem a seu santo padroeiro, São Lázaro. A primeira foi construída em Ragusa, moderna Dubrovinik, em 1377, surgindo em Veneza a partir de 1423. 33 O principal desenvolvimento dos séculos XVI a XVIII se deu no sentido da aproximação entre as instituições hospitalares e o Estado, primeiro passo rumo à sua laicização. Na França revolucionária, com seu forte anticlericalismo, o Hôtel-Dieu passou a ser administrado por leigos, abrigando e confinando órfãos, mendigos, vagabundos, prostitutas, ladrões, loucos e doentes, com atendimento de algumas necessidades básicas. Não havia critérios claros de segregação entre os internos. 34 Também eram construídos como forma de prestígio do estado, como o Allgemeine Krankenhaus (hospital geral) de Viena, com seus 2000 leitos, reconstruído em 1784 pelo imperador José II; o Charité de Berlim, reconstruído por Frederico, o Grande e o Hospital Obutchov, construído por Catarina, a grande, em São Petersburgo. Esse modelo do hospital geral se espalhou por toda a Europa e também a América do Norte, como o Hospital de Nova York (1771) e o Hospital Geral de Massachusetts (1811). No começo do século XX, a América possuía mais de 4000 hospitais!35 Outra novidade do século XVIII foi o impulso dado ao hospício, manicômio, asilo de loucos ou hospital psiquiátrico, que recolhiam os doentes mentais a uma instituição bem projetada e com caráter marcadamente terapêutico. Na verdade, essas instituições disciplinares foram usadas não apenas como medidas terapêuticas contra a loucura, mas funcionavam também para encerrar “pessoas inconvenientes”. As instituições nosocomiais tornaram-se cada vez maiores e mais abarrotadas de pacientes. Antes do processo de desinstitucionalização da década de 1960, 500.000 pessoas viram- se enjauladas nos hospitais psiquiátricos norte-americanos, e cerca de 150.000 no Reino Unido.36 Na Europa, a assistência hospitalar ministrada por religiosos, com função de auxílio material e voltada para a salvação da alma, era a realidade dominante: Antes do século XVIII, o hospital era uma instituição essencialmente de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como também de 33 PORTER, R.Op. cit., p.167. 34 Ibid., p.168. 35 Ibid., p.169. 36 Ibid., p.172. 43 separação e exclusão. O pobre como pobre tem necessidade de assistência e, como doente, portador de doença e de possível contágio, é perigoso. Por estas razões, o hospital deve estar presente tanto para recolhê-lo, quanto para proteger os outros do perigo que ele encarna. O personagem ideal do hospital, até o século XVIII, não é o doente que é preciso curar, mas o pobre que está morrendo. É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento. 37 Cumprindo essa função social de acolhimento ou abrigo e religiosa de salvação, o lugar do médico na instituição era de pequena relevância: O médico era chamado para os mais doentes entre os doentes, era mais uma garantia, uma justificação, do que uma ação real. A visita médica era um ritual feito de modo irregular, em princípio uma vez por dia, para centenas de doentes. O médico estava, além disso, sob a dependência administrativa do pessoal religioso, que podia inclusive despedi-lo. 38 Mesmo com as reformas hospitalares do oitocentos, que passaram a privilegiar a necessidade da limpeza e do ar puro, contra as emanações miasmáticas mortíferas, o espaço hospitalar manteve suas características básicas no século XIX: sua administração era da responsabilidade de organizações religiosas; não havia clara diferenciação nosológica entre os pacientes, funcionando mesmo como um grande depósito humano; as finalidades não eram propriamente terapêuticas, mas de fornecimento de abrigo, alimento e consolo espiritual; continuavam sendo instituições voltadas para os pobres, pois os ricos optavam por se tratar em casa; e a permanência do alto índice de mortalidade, provocado principalmente pelos casos de infecção, que se disseminavam como rastilho de pólvora.39 A medicalização do hospital veio com as novas teorias sobre a doença como entidade ontológica, localizável no corpo enfermo. Além disso, o espaço hospitalar passou a ser lugar de conhecimento (particularmente o necrotério), onde os estudantes das faculdades de medicina, como parte de sua grade curricular, podiam acompanhar in situ a doença agindo nos pacientes enquanto entrevistavam o enfermo, anotando seus sintomas e discutindo com seus colegas e professores. Os trabalhos de Florence Nightingale, após a Guerra da Criméia (1853-1856), no campo da enfermagem, ajudaram sobremaneira a melhorar a formação das enfermeiras, que passaram então a 37 FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. In:______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.p.101. 38 Ibid., p.109. 39 PORTER, R. Op. cit., p.173. 44 freqüentar escolas de enfermagem, que enfatizavam a higiene, o ar puro, a disciplina rigorosa e o espírito corporativo como elementos indispensáveis à atuação da profissional da enfermagem.40 1.3 Hospes tropicalium : o desembarque de Asclépio O modelo da assistência hospitalar organizada no Brasil segue a trajetória da instituição em Portugal, que deve seu começo ao frade espanhol da Ordem da S. S. Trindade, Frei Miguel de Contreras. Nascido em 29 de setembro de 1431, em Valência ou Segóvia, e transferido para Lisboa em 1471, pedia esmolas entre os pobres, quando contou com o auxílio da Rainha D. Leonor, esposa de D. João II. Vendo a multidão de pedintes nas ruas, a rainha concebeu um plano mais vasto para abrigar a todos. Construiu inicialmente uma casa, onde funcionava uma enfermaria, e depois fundou a Irmandade da Misericórdia em Lisboa, baseada na regra de Florença, criada em 1350, e assumindo como obrigações o tratamento dos enfermos, casas para órfãos, expostos e desamparados, e filhos de mãe sem leite, o socorro a viúvas de bom comportamento, o pagamento de custas processuais para presos pobres etc. Com base nessa experiência, fundou a Misericórdia de Lisboa, em 1498, a primeira de Portugal e o Hospital de Caldas da Rainha. Nessa leva de construções, D. Manuel Completou a construção do Hospital de Todos os Santos, iniciado pelo seu antecessor, e erigiu o templo da Misericórdia de Lisboa, destruído pelo terremoto de 1755.41 Esse espírito de caridade foi trazido para o Brasil ainda na época da colonização, fazendo surgir estabelecimentos hospitalares com a nomenclatura de Misericórdia ou Santa Casa. Embora envolta em controvérsias, a primeira Casa de Misericórdia do Brasil teria sido fundada em 1543, por Brás Cubas, em Santos. Regressando de Portugal em 1540, Brás Cubas encontrou um novo porto na região, chamado Novo Porto de S. Vicente, que logo prosperou. Com o rápido crescimento demográfico, Brás Cubas teve a idéia de fazer um hospital para assistir aos doentes pobres da terra e aos que chegassem de navios. Iniciado em 1542, foi inaugurado em 1º de novembro de 1543, sob a invocação de Todos os Santos, daí o hospital chamar-se de Misericórdia de Santos. Essa 40 Ibid., p.177. 41 SALLES, Pedro. História da medicina no Brasil, p.60. 45 prática de construir hospitais continuou ao longo da colonização: Bahia, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais.42 Todas essas Casas de Misericórdia se caracterizavam pela extrema pobreza. A manutenção era conseguida com muita dificuldade, através de esmolas, contribuições de irmãos, legados e doações de homens ricos (benfeitores). A contribuição do poder público era mínima, geralmente com a isenção da Siza (imposto cobrado sobre a compra e venda de mercadorias) e impostos. Eram regidas pelo compromisso de Lisboa, autorizado pelo Alvará de 19 de maio de 1618, que organizava a hierarquia de trabalho nesses hospitais com as figuras do Promotor, Mordomo, Mesário e demais Irmãos. 43 Embora tenha sido o modelo dominante até pelo menos o século XIX, tal modelo de assistência hospitalar não significa que o hospital teve uma história linear, evolutiva e progressista no país, impedindo outras manifestações nos moldes hospitalocêntricos. Variavam conforme as realidades históricas de cada região, havendo Santas Casas, leprosários, lazaretos, hospitais militares, hospícios etc. Nem toda cidade brasileira, por exemplo, teve uma Santa Casa, como é o caso da capital do Rio Grande do Norte, Natal, que apresentou sua primeira assistência hospitalar somente em 1856, sem vinculações com as Irmãs de Misericórdia ou qualquer ordem religiosa. O Brasil importou o modelo português, medieval, ligado à forte tradição da Igreja Católica, que desempenhou importante papel no processo de colonização do território da América portuguesa. Daí explica-se o predomínio das Santas Casas. E a província do Rio Grande do Norte? Por que a dupla especificidade: temporal, pois só teve o seu primeiro hospital no século XIX; e político-administrativa, pois não tinha na direção da instituição nenhuma ordem religiosa? Passemos, então, a estudar este último caso mais detidamente. 1.4 “Um novo Inferno de Dante”: mas onde está Beatriz?44 No Rio Grande oitocentista, a situação da medicina não destoava do ambiente geral da Colônia, a não ser a ausência de uma Casa de Misericórdia. Não 42 Ibid., p.61. 43 Ibid., p.73. 44 Na Divina Comédia, Beatriz é um espírito de escol, de alta hierarquia na corte celestial, que velava carinhosamente pelo destino de Dante, enviando Virgílio para guiá-lo pelas regiões do Purgatório e do Inferno. 46 havendo, para além da Fortaleza dos Reis Magos, com seu isolado cirurgião de infantaria, datando historicamente de 1749, socorro médico nos moldes “hospitalocêntricos”, restava a farta terapêutica tradicional, fundada na assistência doméstica e na teoria galênica dos humores, com suas práticas de purgar e sangrar. 45 Foi somente no séc. XIX, com a epidemia do cólera-morbo, que o governo do presidente Bernardo Pereira Passos criou a nossa primeira instituição hospitalar: o Hospital de Caridade, de 1855. Encravado na Rua da Salgadeira, antigo matadouro, e hoje Casa do Estudante, a referida casa de saúde não tinha as características de um hospital terapêutico. Segundo Onofre Lopes, médico que mencionamos no começo de nosso texto, o Hospital de Caridade era “[...] um depósito de doentes”. Acompanhavam o hospital, como medidas de saúde pública, a construção do Lazareto da Piedade (1855) e o Cemitério Público no Alecrim (1856). O Cirurgião do Partido Público, médico do governo, criado nos idos de 1830, ocupava-se dos presos- de- justiça, dos pobres em geral e de quem mais pagasse. Em 1831, João José de Oliveira já ocupava o cargo de Médico do Governo, trabalhando com o boticário José Felipe; em 1842, o médico José Bento Pereira da Mota trabalhava para o governo, residindo em Natal, o mesmo acontecendo com o doutor Tomás Cardoso de Almeida, que, além de Cirurgião do Partido Público, ainda exerceu os cargos de médico da Enfermaria Militar da Tropa de Linha e deputado provincial.46 Como os salários eram baixos e as condições de trabalho muito precárias, poucos médicos se arriscavam a exercer sua profissão na Província do Rio Grande do Norte.Em setembro de 1836, o Presidente João José Ferreira Aguiar, comentando acerca do clima ameno da região e da qualidade do solo, elementos que, a seu ver, tornavam a província menos propensa a disseminação de doenças, não deixou de reclamar: “[...] infelizmente n’esta cidade, e em todo o resto da P rovíncia, não existe um só médico, ou cirurgião, que ministre os socorros da arte, seguindo-se desta falta os mais funestos rezultados”.47 Quatro anos depois, o Presidente Manuel Mascarenhas pediu aumento para o Médico do Governo, pois não encontrava nenhum que quisesse vir à cidade com os baixos salários oferecidos. 48 Resumia-se assim o quadro médico- 45 CASCUDO, Câmara. História da cidade do Natal, p.245. 46 Ibid., p.248-249. 47 RIO GRANDE DO NORTE. Fala com que o Ex.mo presidente da provincia do Rio Grande do Norte, o bacharel João José Ferreira d'Aguiar, abriu a segunda sessão da Assembleia Leg islativa da mesma provincia em 7 de setembro de 1836. Pernambuco: Typ. Fidedigna de J.N. de Mello, 1836. p.7. 48 RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado à Assembleia Leg islativa da provincia do Rio Grande do Norte na abertura da última sessão ordinária da 2º leg islatura provincial, no dia 7 de setembro 47 hospitalar de nossa província até pelo menos o final do século XIX e a primeira década do século XX. Com a República, veio o crescimento das cidades, produto do processo de industrialização/migração, aglomerando pessoas em precárias condições de vida, o que facilitava a proliferação de doenças infecto-contagiosas, agravando o quadro de saúde já existente. A saúde pública tornava-se então preocupação do governo, que desejava reverter a imagem do Brasil no exterior, cumprindo, ao mesmo tempo, a promessa ideológica de universalização de serviços públicos como saúde e educação. Nesse passo, o governo criou o Conselho de Saúde Pública (1890); regulamentou o Laboratório de Bacteriologia (1892); Criou o Instituto Sanitário Federal (1894); a Diretoria Geral de Saúde Pública (1897); o Instituto Soroterápico Municipal (1900); a notificação compulsória de doenças transmissíveis (1902) e instituiu a obrigatoriedade da vacina contra a varíola (1904).49 A transição entre o século XIX e o XX no Rio Grande do Norte será marcada pelas transformações materiais ligadas ao anseio das elites locais em “modernizar” a cidade à maneira européia, implementando-se, para isso, reformas urbanas guiadas pelo “paradigma higienista”, como “O Plano Sanitário para Natal”, de autoria do médico e Inspetor de Higiene Pública Manuel Segundo Wanderley, em 1896.50 Concentrado na saúde pública51, embrionária, de caráter preventivo e coletivo, o campo médico, todavia, continuava mergulhado epistemologicamente na velha teoria dos miasmas e clinicamente na galênica terapêutica dos humores, agora empobrecido pela extinção do único representante do modelo hospitalocêntrico no Estado (O Hospital de Caridade fora definitivamente fechado em 1906, por determinação do governador Tavares de Lyra, que o considerava inservível). de 1839 pelo Ex.mo presidente da provincia dr. Manoel de Assis Mascarenhas. Pernambuco: Typ. de Santos, 1840.p.11. 49 RIZZOTTO, Maria Lúcia Frizon. A origem da enfermagem profissional no Brasil: determinantes históricos e conjunturais. In: SAVIANI, Demerval; LOMBARDI, José Claudinei; NASCIMENTO, Maria Isabel Moura. (Org.). Navegando na história da educação brasileira-HISTEDBR. Campinas: GrafFE: Histedbr, 2006, v.1, p.6. 50 ARRAIS, Raimundo; ANDRADE, Alenuska; Marinho, Márcia. O corpo e a alma da cidade: Natal entre 1900 e 1930. Natal: EDUFRN, 2008. p.84. 51 A expressão “saúde pública”, embora figure antiga, presente na documentação desde o período colonial, só adquiriu seu sentido moderno institucional, como “política de saúde pública”, com o advento da República, quando se procurou estabelecer sistematicamente ações sobre as pessoas e sobre o meio ambiente visando à saúde do “corpo social”. Foi a partir da década de 1910, em um contexto de crescente centralização polít ica, que surgiram os primeiros movimentos preocupados com a saúde do interior do Brasil: Liga Pró-Saneamento, Liga Brasileira de Higiene Mental e o Serviço de Profilaxia Mental, pressões que resultaram na criação, em 1920, do Departamento Nacional de Saúde (DNSP). 48 Nesse contexto instável e de transformação, emerge a figura do Dr. Januário Cicco, médico formado na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1906, voltando a Natal para clinicar, instalando seu consultório na Avenida Duque de Caxias, na Ribeira. Preocupado com a desassistência aos doentes pobres-a elite tinha seus médicos particulares-, insistiu junto ao governador Alberto Maranhão para a construção de um novo hospital, em substituição ao da Salgadeira, intento alcançado com a compra de terreno no alto do Monte Petrópolis, facultando a construção do Hospital de Caridade Juvino Barreto, inaugurado em 1909. Esse terreno, no extremo norte do Monte, fora propriedade do industrial Juvino Barreto. Com a sua morte, os seus herdeiros, Alberto maranhão (genro), Pio Barreto (filho) e Inês Barreto (viúva), construíram casas de veraneio. Alberto Maranhão, antes de seu mandato, vendeu sua propriedade a um capitalista chamado Aureliano Medeiros por dez contos de réis. Ao assumir seu primeiro mandato como governador, e atendendo aos pedidos de Januário Cicco, o então governador resolveu comprar o terreno, o que também favorecera, obviamente, o capitalista Aureliano Medeiros.52 Negócio, então, e não doação. Trabalhando no hospital, durante cerca de 18 anos, como diretor e médico do HCJB, Januário Cicco assumiu não apenas o exercício da medicina no hospital como as diretrizes médico- sanitárias da saúde pública da cidade , como evidencia seu projeto, de 1920, intitulado “Como se higienizaria a Cidade do Natal”. Como vimos no tópico anterior, a assistência hospitalar na cidade do Natal não teve sua origem ligada à fundação de uma Santa Casa ou Misericórdia, guardando, portanto, algumas especificidades em relação ao modelo hospitalocêntrico dominante no país. As Falas e Relatórios de Presidente de Província, documentos indispensáveis para se estudar o período imperial no Rio Grande do Norte, citam, desde meados de 1830, pedidos para a construção de um hospital. Em 1835, por exemplo, o presidente José Ferreira D’Aguiar propôs a criação de um [...] moderado imposto para erecção, e sustentação de um Recolhimento de Orfãs desamparadas, e de um Hospital, que recebêsse pessoas de ambos os sexos, as quaes provassem, além de grave infermidade, summa pobrêsa, e desabrigo. 53 52 SOUZA, Itamar de. Nova história de Natal. 2. ed. rev.atual. Natal: Departamento Estadual de Imprensa, 2008.p.392. 53 RIO GRANDE DO NORTE. Fala com que o presidente da provincia do Rio Grande do Norte abriu a Assembleia Provincial no dia 2 de fevereiro de 1835. MS.p.13. 49 Os reiterados pedidos tomaram força legal somente em 1845, pela lei n. 132 de 1º de novembro. Mesmo amparado pela lei, o presidente Moraes Sarmento e seus sucessores não lograram verbas para a edificação do tão sonhado estabelecimento hospitalar. Somente em 1855, Bernardo Pereira Passos logrou êxito, quando o prédio do hospital fora finalmente erguido, mesmo que incompleto: Ao hospital deram-se dimensões taes que podessem acommodar 40 doentes do sexo masculino, e outros tantos do feminino, além dos repartimentos necessários para outros tantos misteres do serviço a que era destinado: dar-se-lhe amplitude era correr muito risco de sermos sorprhendidos pela epidemia sem a obra estar finda: para aventurar o menos possível, fiz construir primeiro uma casa de oitões, aonde deviam ser recolhidos os doentes; depois annezar-lhes tacaniças, em que foram accommodados os repartimentos necessários ao hospital. 54 E comentando o esforço empreendido, continuou: A maior actividade possível foi desenvolvida na construção desta obra: empregaram-se nella todos os pedreiros, e quase todos os carpinteiros da cidad (sic); e não obstante ter de comprimento 176 palmos e 53 delargura, ter-se-hia acabado em menos de dous mezes e meio, si a falta de tijôllo de ladrilho, de algumas portas, e janellas, não tivesse feito para a obra já no fim. 55 A mesma pressa se dera com a construção do Lazareto da Piedade , que teve forçosamente suas dimensões reduzidas: [...] attento o pequeno numero de passageiros que constantemente vem nos navios com direção a este porto, deram-lhe pequenas dimensões; [...], já poruqe (sic) se receava então fazer viagens, temendo-se encontrar a epidemia no termo d’ella, e outros incovenientes, e já para evitar os incommodos das quarentenas... 56 A velocidade com que o prédio fora levantado, o emprego maciço da mão- de-obra reinante, que contava com poucos braços, deveu-se à epidemia devastadora de cólera que se abatera por todo o litoral do Brasil. Na cidade não havia um único médico, tendo Pereira Passos que pedir auxílio à Paraíba e a Pernambuco um discípulo de esculápio e remédios, obtendo apenas o primeiro, o Dr. Vital, que pouco pode fazer naquela difícil situação. 54 RIO GRANDE DO NORTE. Fala que o Illm. e Exm. senhor dr. Antônio Bernardo de Passos, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, dirigiu à Assembleia Leg islativa Provincial no ato da abertura de sua sessão ordinária em o 1o de julho de 1855. Pernambuco : Typ. de M.F. de Faria, 1855.p.11-12. 55 Ibid. 56 RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado a Assembleia Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte pelo presidente, o dr. Antonio Bernardo de Passos, no anno de 1856. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1856.p.11. 50 Nesse primitivo núcleo hospitalar, a responsabilidade administrativa e financeira estava a cargo do estado, não havendo a presença de representantes de ordem religiosa. A ausência das religiosas no trabalho interno do hospital começou a figurar nas reflexões dos presidentes de província a partir da década de 1860, quando Pedro Leão Velozo aventou57, pela primeira vez, a construção de uma Casa de Misericórdia, a cujo cargo ficaria o hospital de caridade, medida que solucionaria os problemas de assistência hospitalar da capital. Em janeiro de 1887, quinze anos depois das rogativas de Leão Velozo, o presidente Antônio Francisco de Carvalho reforça a intenção de uma Casa de Misericórdia, argumentando as vantagens de iniciativa: Não me parece a mais conveniente a economia interna que actualmente possue o hospital: fora muito para desejar que o serviço de estabelecimento ficasse a cargo de irmães de caridade, o que traria não só a economia de parte do que se despende actualmente com o pessoal, como teriam os enfermos tratamento mais regular. [...] Para acquisição, porém, de três ou quatro d’essas irmães, preciso de vossa autorisação. 58 Mesmo com a Assembléia votando a autorização (Lei Provincial n° 989, de 10-03-1888), Francisco de Carvalho ainda teve outra dificuldade: as religiosas procuradas não se dispuseram a realizar a tarefa. O nome da Ordem e os motivos da recusa não foram descritos.59 A segunda obra hospitalar, contudo, gozou da presença das Irmãs Filhas de Sant’Ana, vindas da Bahia, sob a direção da Sóror Clemens Rizzi, e tendo como auxiliares Rosa Sampaio, Helena Maria Menezes, Rinalda Mereti e Alinda Gararaglia.60 Embora o hospital tivesse sua presidência nas mãos do Inspetor de Saúd e Pública, o doutor Calixtrato Carrilho, e com seu médico-chefe na figura de Januário Cicco, a atividade das irmãs à frente da enfermagem foi essencial, se considerarmos que nos primeiros anos o citado doutor Januário só tinha ao seu lado a desempenhar as funções médicas o prático José Lucas do Nascimento. E a presença delas se estendia também para o campo simbólico: 57 RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte na sessão ordinária do ano de 1862 pelo presidente da provincia, o comendador Pedro Leão Velloso. Maceió: Typ. do Diário do Commercio, 1862.p.11. 58 RIO GRANDE DO NORTE. Fala lida à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte pelo Exm. Sr. presidente da provincia, dr. Antonio Francisco Pereira de Carvalho, no dia 15 de janeiro de 1887 ao instalar-se ela ord inariamente. [Natal]: Typ. do "Correio do Natal," 1888. p.7. 59 CASCUDO, Câmara. História da cidade do Natal, p.332. 60 Ibid., p.333. 51 O setor masculino era dividido em cinco salas, todas sob o patrocínio de um santo que presidia a enfermaria [...] A enfermaria de pensionistas possuía um quadro de São Jorge; a segunda enfermaria, para soldados, de São Sebastião; a terceira, para doenças gerais, de São José; a quarta, de doenças venéreas, entregues à guarda de São Roque, ficando a quinta para marinheiros, sob a proteção do Coração de Maria. 61 Essa congregação religiosa foi criada na Itália em 1866 pela italiana Ana Rosa Gattorno (1831-1900), oriunda da Ordem Terceira de São Francisco. Em 3 de janeiro de 1866, apresentou sua nova regra ao Papa Pio IX (Cardeal Giovanni Mastai Ferreti), recebendo dele a autorização para fundar uma nova Ordem. Partiu, então, para Piacenza, em 12 de março do mesmo ano, onde, com mais cinco companheiras (Teresa Porta, Giovanna Bixio, Algela de Crossi, Anna Grasso e Luigia Rocca) fundou a congregação Filhas de Maria Imaculada e Mínimas de São Francisco de Assis, posteriormente rebatizada de Instituto das Filhas de Sant’Ana. Dedicaram-se a partir de 1868 à atividade missionária, fundando comunidades na Bolívia, Chile, Eritréia, Peru, França e Espanha.62 61 ARAÚJO, Iaperí. Januário Cicco: um homem além do seu tempo. Natal: EDUFRN, 2000.p.16. 62 REVISTA Jubileu: edição comemorativa. Papiro da memória (1884-1934): 125 anos de presença das Filhas de San’Ana no Brasil. Belém [PA]: Sobral Gráfica, 1999. p.23-24. Fig. 01 - Ana Rosa Gattorno, 1866. Fonte: Rev ista Jubileu, p. 23. 52 No Brasil, a nova Ordem aportou em 27 de outubro de 1884, na cidade de Belém, no Estado do Pará, onde começaram a trabalhar no Hospital do Bom Jesus dos Pobres, depois transformado em Santa Casa de Misericórdia, em 15 de agosto de 1900. Entre o ano de sua chegada a Terra brasilis e meados da década de 1930, a ação missionária das Filhas de Sant’Ana já se espalhava por 9 Estados brasileiros: Amazonas, Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Ceará, Minas Gerais, Bahia e São Paulo.63 A presença dessa congregação na cidade do Natal se fazia sentir desde o começo do século XX, como podemos acompanhar nas páginas do jornal A República, quando as Filhas de Sant’Ana foram convidadas pelo governador Alberto Maranhão para participar da administração do espaço hospitalar do Juvino Barreto. Na segunda- feira de 24 de agosto de 1908, o jornal assim noticiava a passagem das irmãs pela cidade: Passaram ante-hontem nesta capital, visitando o Hospital de Caridade, a convite do governador, 4 irmãs da ordem de Sant’Anna, especialmente dedicadas a serviços de assistencia publicas.// O governador combinou com as referidas irmãs as clausulas do contracto que com ellas pretende realisar, para se encarregarem do Hospital e Asylo de Mendicidade, logo depois de terminadas a reforma do serviço de assistencia, para qual solicitará autorisação do Congresso. 64 63 Ibid., p.52-54. 64 A REPÚBLICA. Varias, 24 ago. 1908. Fig. 02 - Casa-máter do Instituto das Filhas de Sant’Ana, em Piacenza. Fonte: Rev ista Jubileu, p. 23. 53 Em 12 de julho de 1909, na seção Varias, o mesmo jornal anunciava a vinda das freiras: “devem chegar n’estes dias dos sul a bordo do vapor ‘Acre’ as irmãs religiosas que vêm servir no Hospital de Caridade d’esta cidade”. 65 Três dias depois, as novas funcionárias do HCJB já haviam aportado na cidade. 66 O Asilo de Mendicidade67 e Orfanato Padre João Maria, criado em janeiro de 1912, também contou com as freiras nos serviços de administração interna, tendo à frente as irmãs Dídima Cassot, Paulina dos Santos, Natividade, Henriqueta de Freitas, Silvia Gianni, Ernestina Viana e Blandina Diógenes.68 65 Ibid., 12 ju l. 1909. 66 Ibid., 15 ju l. 1909. 67 Sua inauguração pode ser acompanhada na matéria intitulada Asylo de Mendicidade “João Maria”, publicada n’A República, em 2 de janeiro de 1912. 68 REVISTA Jubileu, p.115. Fig.04 - Irmãs e alunos no Instituto Padre João Maria. Fonte: Rev ista Jubileu, p. 115. Fig. 03 - Fachada do Instituto Padre João Maria, Natal (RN). Fonte: Revista Jubileu, p. 115. 54 Assim, a emergência do Hospital de Caridade Juvino Barreto só se tornara possível graças à presença das irmãs de Sant’Ana à frente da administração interna, cuidando dos aspectos burocráticos do nosocômio e também do atendimento aos enfermos que baixavam no hospital. O “novo” hospital, saindo de sua fase caritativo- assistencial, caminhava agora na direção da terapêutica moderna. Virgílio continuava acompanhando Dante, retirando-o das zonas infernais, agora o guiando rumo ao Purgatório... Beatriz ainda estava com eles... 1.5 Doença e espaço entre os esculápios: por uma topografia da cura 1.5.1 E Esculápio disse: “Fiat lux!” A historiografia no campo da História da Saúde tem utilizado frequentemente, para descrever as relações entre a classe médica e a sociedade, o conceito de medicalização, que apontaria para o prestígio e influência dos médicos junto ao poder público: Medicalizar. Esta expressão, introduzida de forma inovadora e criativa em algumas das obras de Foucault, traduz um conjunto de iniciativas políticas preventivas, educativas, higiênicas e curativas Fig. 05 - Asilo de Mendicidade Padre João Maria, no prédio que hoje abriga o Centro de Turis mo. Fonte: A República, 1911. 55 implementadas pelos médicos no final do século XIX e início do século XX, com o objetivo de normatizar comportamentos e atitudes individuais do doente em relação à doença, evidente ou iminente. Em termos de métodos, muitas vezes a persuasão era substituída pela coerção, muito próxima a uma política médica. 69 Embora essa visão da “imanência política do saber médico”, da “medicina social” do século XIX como instrumento tecnocientífico a serviço do Estado, tenha sofrido sérias críticas por parte de historiadores da medicina, como Flávio Coelho Edler e Gabriela dos Reis Sampaio, o pensamento médico no século XIX se caracterizou pela tentativa de dominar todos os setores da sociedade, através da aproximação entre a classe médica e o Estado, aliança que se expressava nas políticas de saúde pública. Segundo o médico e especialista em saúde pública Moacyr Scliar, a visão científica dominante sobre a saúde coletiva no século XIX esteve alicerçada em três pilares fundamentais ou, como os denominou o autor, “olhares”: o predomínio da estatística\contabilidade dos fenômenos (“olhar contábil”); o desenvolvimento da abordagem epidemiológica das doenças (“olhar epidemiológico”); e a emergência da teoria microbiana (“olhar armado”).70 O “olhar contábil” foi o produto da Era das Revoluções, a Francesa e a Industrial. Na primeira, organizou-se um processo de padronização das medidas: em 1791, uma comissão de cientistas (Laplace, Lavoisier e outros) nomeada pela Academia de Ciências da França propôs o grama como unidade de peso; em 1799, elaborou-se um novo padrão para o metro. A perspectiva numérica invadia também os trabalhos clínicos, no exame dos pacientes, através da contagem do pulso e da medida da temperatura corporal (em 1868, o médico alemão Carl Wunderlich publicou um tratado sobre termometria médica). Os registros gráficos da pulsação passaram a ser feitos através de um aparelho próprio, chamado esfigmógrafo, surgindo no mesmo período o esfigmomanômetro.71 O “olhar contábil” sobre a população expressou-se na emergente ciência da estatística. Tratava-se da aplicação dos métodos numéricos ao estudo da sociedade. Embora tal perspectiva já estivesse presente no século XVII, o processo ganhou impulso somente no século XIX, em particular na Inglaterra, berço da Revolução Industrial, 69 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado, p.123. 70 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública. 2ª ed. São Pau lo: Senac, 2005.p.58. 71 Ibid., p.58-62. 56 exatamente por aí se sentir com mais força os efeitos sobre a saúde causados pela urbanização e proletarização. William Farr (1807-1883), diretor-chefe do General Register Office da Inglaterra, registrou durante mais de quarenta anos os seus Annual Reports, relacionando os números da mortalidade com os relatos das doenças, dividindo os distritos do país em “sadios” e “não-sadios”. Em 1842, Edwin Chadwick (1800- 1890) escreveu o relatório As condições sanitárias da população trabalhadora da Grã- Bretanha. Com base nessa experiência, promulgou em 1848 uma lei criando a Diretoria Geral de Saúde, encarregada de propor medidas de saúde pública e de arregimentar médicos sanitaristas. As “medidas de capacidade mental” impulsionaram os trabalhos de eugenia de Francis Galton (1822-1911) e Karl Pearson (1857-1936), que acabaram redundando nas teorias raciais da Alemanha nazista. 72 O “olhar epidemiológico” dirige-se ao estudo do surgimento e distribuição das doenças em populações. Nesse campo, o trabalho de John Snow (1813-1858) foi pioneiro. Sobre a maneira de transmissão do cólera (1849) analisou a relação entre a epidemia de cólera que grassava em Londres e as bombas de água de Broad Street, descobrindo que a doença era causada por algo que passa do doente ao são e que se multiplica no organismo. O trabalho estava baseado nos métodos da observação e na abordagem quantitativa do surto. O surto do cólera também produziu uma acirrada polêmica nos estudos epidemiológicos da época : como nasce e se difunde a doença. Duas correntes logo se formaram: os defensores da teoria dos miasmas e os advogados do contagionismo. Os primeiros acreditavam que as doenças eram resultado de emanações morbíferas oriundas de regiões alagadas, pantanosas, zonas de acúmulo de lixo, enfim, que produziam os “miasmas”, atingindo as pessoas pelo ar que respiravam; já o contagionismo, afirmava que a doença era transmitida de indivíduo para indivíduo, tendo como método de contenção a reclusão dos indivíduos doentes na quarentena.73 Sobre estes paradigmas médicos, falaremos mais adiante, quando nos referirmos às teorias médicas que justificavam a construção do Hospital de Caridade Juvino Barreto no alto do Monte Petrópolis. O “olhar armado” diz respeito à presença da tecnologia do microscópio nos trabalhos de Louis Pasteur (1822-1895), autor da teoria microbiana da doença. A pedido das indústrias do vinho na França, Pasteur estudou os processos de fermentação (1863), 72 Ibid., p.62-64, passim. 73 Ibid., p.66-73, passim. 57 descobrindo que as leveduras eram as responsáveis pelo fenômeno e demonstrando também que o vinho tornava-se azedo pela ação de microorganismos, propondo o método do aquecimento (a pasteurização) como solução para o problema.Consultado pelo Ministério da Agricultura, estudou o germes que produziam doenças no bicho-da- seda, bem como o carbúnculo do gado e o cólera aviário. Sua teoria microbiana permitiu que se descobrissem, entre 1880 e 1890, os germes causadores da febre tifóide, da hanseníase, da lepra, da malária, da tuberculose, do mormo, do cólera, da erisipela, da difteria, da febre de Malta, do cancro mole, da pneumonia pneumocócica, das infecções estafilocócicas, do tétano, da peste, do botulismo, da disenteria, e também permitiu o desenvolvimento de vacinas e antibióticos.74 No Brasil, a saúde pública se consolidou através de um modelo sanitário centralizador, com forte controle do Estado. No período colonial, as entidades religiosas e caritativas eram as responsáveis pela assistência à população. A saúde era da alçada das autoridades locais e a responsabilidade da atenção médica individual ficava a cargo de figuras de importância e prestígio social e administrativo. Até 1828, a saúde se organizava entorno das figuras do Cirurgião-Mor, Físico-Mor e Provedor de Saúde da Corte, além de duas Escolas de Medicina, uma no rio de Janeiro e a outra em Salvador. No Segundo Império, principalmente para combater a malária, foi criada a junta Central de Higiene Pública e uma Comissão de Engenheiros, com o objetivo de reformar as condições sanitárias da cidade. Em 1885, o barão de Mamoré cria o Conselho Superior de Saúde Pública. A população era, como se pode perceber, muito mal assistida.75 As principais mudanças irão vir com o advento da República. A partir de 1889, novas instituições foram criadas com o objetivo de conter as epidemias que grassavam no país, notadamente voltadas para o ambiente urbano (ver tópico “Um novo inferno de Dante”), que passara a simbolizar o progresso e a civilização, o espaço próprio da vida moderna. Em conjunto com esta ideologia da Belle Époque, o pensamento médico dominante voltava-se, como vimos, para o estudo no campo da epidemiologia, e encontrava nos fatores ambientais o principal mecanismo explicativo das doenças: 74 Ibid., p.73-76, passim. 75 LUZ, Madel. Medicina e ordem política brasileira: polít icas e instituições de saúde (1850-1930). Rio de Janeiro: Graal, 1982.p.70-71. 58 A questão da doença ou de sua reprodução encontrava sempre como chave explicativa o ‘meio-ambiente’. Nesta perspectiva, o “meio- ambiente” era portador e o reprodutor das doenças. A única forma de eliminá-la era atingindo e transformando este meio. O “meio- ambiente” era a cidade, que precisava ser trabalhada para sobreviver aos males que nela se reproduziam. Também se dava ênfase à medicina experimental e às- assim chamadas- doenças exóticas, que encontrariam solução num projeto higienista. 76 Assim, o “higienismo” tornou-se a mola-mestra política de justificativa de intervenção do estado na sociedade brasileira, e colocou os médicos no patamar de verdadeiros reformadores da pátria nascente. A cidade do Rio de Janeiro, nos governos de Rodrigues Alves, Pereira Passos e Paulo de Frontin, foi o principal exemplo dessa postura intervencionista de remodelação do ambiente urbano e o protótipo dessa atuação no campo médico foi doutor Oswaldo Cruz, considerado, juntamente com Carlos Chagas, um dos maiores responsáveis pelo desenvolvimento da ciência no Brasil. 77 Na época de Oswaldo Cruz, as cidades brasileiras em geral eram foco de inúmeras doenças, que grassavam com facilidade: febre amarela, peste bubônica, tifo, varíola, cólera... As epidemias eram muito freqüentes e isto se dava graças ao ambiente de péssimas condições sanitárias da cidade-a rede de esgotos era precária e o abastecimento de água também, o lixo se acumulava nas ruas. Boa parte da população morava em cortiços, habitações coletivas nas quais se amontoavam dezenas de pessoas. Surgiam igualmente as primeiras favelas.78 E os habitantes não eram os únicos a sofrerem com tais doenças. Em 1895, o navio italiano Lombardia veio em visita de cortesia ao Rio de Janeiro. Dos 340 tripulantes, 333 adoeceram de febre amarela e 234 morreram. Por causa desse evento, as agências de turismo européias colocavam cartazes anunciando viagens diretas para Buenos Aires, sem escala no Brasil. Tal situação acabava por prejudicar também a economia do café, nosso principal produto de exportação. Os emigrantes da Europa compunham, com a abolição da escravatura, a principal mão-de-obra da indústria cafeeira.79 76 Ibid., p.76. 77 SCLIAR, Moacyr. Oswaldo Cruz & Carlos Chagas: o nascimento da ciência no Brasil. São Paulo : Odysseus, 2002.p.47. 78 Ibid. 79 Ibid. 59 Empossado em 1903 como diretor de Saúde Pública, Oswaldo Cruz iniciou o combate à febre amarela. E a expressão “combate” não é à-toa: seu modelo de atuação era militar. Para identificar os doentes e acabar com os focos de mosquitos, criou a brigada mata-mosquitos, devidamente uniformizada e com poderes para entrar nas casas. Onde houvesse água estagnada, latas, vasos de flores vazios, esgotos ou charcos, lá estava sua brigada. O grande problema era que, nesse mesmo período, o governador Pereira Passos punha em prática sua política do “bota-abaixo”, que consistia em demolir casas do centro da cidade, expulsando seus moradores, para a construção de ruas largas e avenidas, com o intuito de “civilizar” a capital. Assim, quando os moradores viam os agentes de Oswaldo Cruz, sentiam-se transtornados e reagiam violentamente. Ao final, contudo, a campanha foi um sucesso e os jornais acabaram admitindo os bons resultados. A mesma vitória foi alcançada no combate à peste bubônica. 80 A campanha continuou, e o alvo seguinte foi a malária. Contra ela, o único meio era a vacinação, e aí se encontrava o principal problema. Como a vacina era obtida através do líquido extraído de lesões de vacas, a população espalhou a idéia de que a vacina poderia matar ou deixar a pessoa com cara de vaca ou bezerro. Outros diziam que a vacina era feita com sangue de rato, os mesmos que foram adquiridos pelo governo na campanha contra a peste bubônica. Para tornar a situação mais tensa, a vacina era aplicada com uma espécie de estilete, nos braços ou nas pernas. Para as mulheres, isto era uma verdadeira ofensa ao pudor, pois elas tinham de mostrar partes de seu corpo nu aos vacinadores. Havia ainda, como se não fosse o bastante, uma questão trabalhista envolvida: para conseguir emprego, era necessário um atestado de vacinação, dado por médicos particulares, que obviamente cobravam caro pelo serviço.81 O resultado não podia ser outro: em 10 de novembro de 1904, eclodiu a chamada Revolta da Vacina. As ruas do centro do Rio de janeiro transformaram-se em barricadas, um verdadeiro cenário de guerra. Por trás delas, os moradores combatiam os agentes do governo, a polícia e até a Marinha. A casa de Oswaldo Cruz foi atacada, e sua família teve de fugir às pressas. Ele mesmo fora agredido e jurado de morte. O movimento terminou com 23 mortos e dezenas de feridos, quase 1000 presos, centenas 80 Ibid., p.51-54. 81 Ibid., p.56. 60 dos quais enviados à Ilha das Cobras e outros em viagem sem regresso para o Acre.82 Além disso, como era de se esperar, demitiram Oswaldo Cruz e a vacinação obrigatória foi suspensa, com resultado desastroso: em 1908 eclodiu um novo surto, com quase 10 mil casos.83 Esse movimento de incremento da presença do estado na assistência médica e na medicina preventiva consolidou-se na década de 1920, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), formalizado com o decreto- lei 14.354: [...] ele abrange, em seus 1195 artigos, desde a medicina preventiva e a educação higiênica até a assistência aos contaminados por uma das vinte doenças infecto-contagiosas submetidas à notificação compulsória (decreto-lei 14.354, artigos 99, 110, 132, 151, 258, 542, 554, 847). Sua ambição era cuidar de tudo que se referisse à saúde pública em todo país. 84 Entre 30 de setembro e 7 de outubro de 1922, realizou-se o Congresso Nacional dos Práticos, no Rio de Janeiro, que discutiu essencialmente a identidade do profissional da medicina, que passava pelo reconhecimento e apoio do Estado, através da construção de uma saúde pública nacional e unificada, tanto no modelo preventivista, como no assistencial-pronto-socorrista-previdenciário. 1.5.2... E a luz se fez? Prefaciando a obra As artes de curar, de Beatriz Teixeira Weber, a historiadora Maria Clementina, da Unicamp, comentou certa idéia corrente a respeito do campo médico: [...] somos levados a compreender que a naturalidade com que as competências médicas são encaradas em nossa vida cotidiana estão relacionadas a uma concepção a-histórica sobre o seu perfil e atribuições técnico-científicas construída ao longo de sua história. Decorre, em outras palavras, de uma idéia de que a história da Medicina não é senão uma evolução linear e progressiva de um controle crescente sobre o corpo e a doença, acumulando sem cessar novos conhecimentos dos quais resulta aquilo que conhecemos como ciência médica, que teria substituído antigas crendices, com seu poder 82 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo : Companhia das Letras, 1996.p.97. 83 SCLIAR, M. Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, p.58. 84 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser medico no Brasil: o passado no presente, p.122. 61 de oferecer respostas verdadeiras e definitivas, sedimentadas lentamente ao longo do tempo. 85 E prosseguindo sua análise, critica essa visão unívoca e progressista da medicina: [...] sob o rótulo aparentemente homogeneizador da história da Medicina, não se esconde uma evolução linear e unívoca, mas um conjunto de práticas, saberes e crenças bastante diversas em seus fundamentos e procedimentos. Portanto, as certezas de hoje se fundaram sobre a destruição de outras tantas e, muitas vezes, verdades absolutas totalmente incompatíveis dividiram o pequeno espaço de uma corporação médica sempre muito segura de si. Se são tão diversos em termos de pressupostos e procedimentos, as sangrias e a mania de analisar e pesar urinas ou excrementos, a teoria dos miasmas ou a bacteriana-entre outros exemplos- o que nos autoriza a supor entre elas a coerência de uma simples evolução? Elas certamente têm em comum o fato de ter girado em torno de um mesmo objeto- o corpo humano, e um mesmo propósito- a cura das enfermidades. Mas por que inseri-las na linha nobre do tempo (progressivo) da ciência quando outras práticas e saberes que incidiram sobre este objeto com o mesmo propósito- e frequentemente com mais sucesso- estão sumariamente excluídas? 86 A crítica de Clementina incide sobre uma visão do senso-comum que invadiu a historiografia da medicina e tornou-se dominante até os anos 1980, quando se iniciou um processo de renovação desses estudos médicos. Particularmente, a autora dirige-se a duas vertentes: a positivista, composta por médicos que produziram na primeira metade do século XX, como Pedro Drummond Salles, Carlos da Silva Lacaz e Lycurgo Santos Filho; e a perspectiva marxista, ora com pitadas foucaultianas, ora com aportes teóricos gramscianos, de autores como Roberto Machado, Kátia Muricy, Madel Terezinha Luz e Jurandir Freire Costa, do final dos anos 1970 e começo dos 80. As observações da historiadora com relação a essas correntes historiográficas se dão em dois pontos: a história linear e a exclusão de práticas de cura não-oficiais. O que nos toca aqui em particular é a idéia básica de inserir a medicina, como diria François Hartog, em um “regime de historicidade”, propondo vê- la segundo suas condições de produção. Com efeito, investigar a medicina do século XIX é reconhecer que estamos lidando com uma medicina diferente da de nosso tempo. Em O nascimento da clínica, o 85 WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: Medicina, Relig ião, Magia e Positivismo na República Rio-Grandense (1889-1928). Santa Maria [RS]: Ed. da UFSM; Bauru [São Paulo]: Edusc, 1999.p.14. 86 Ibid. 62 historiador da medicina Michel Foucault argumentou que a medicina moderna, que emergiu a partir do século XVIII, não é apenas diferente da medicina clássic a, mas trata-se de uma outra medicina. Na primeira, o princípio de inteligibilidade do fenômeno patológico era o sistema classificatório, fundado num modelo taxonômico da história natural, particularmente a botânica. Essa “medicina das espécies patológicas ” encarava a doença como uma essência nosográfica, separando sintomas e sinais na busca de um nível profundo da morbidade, abstraída de qualquer relação direta com o corpo. A medicina moderna, por sua vez, trabalha com o modelo da linguagem e do olhar, abolindo a diferença entre sinais e sintomas, vendo na superfície do corpo, nossa primeira geografia, a manifestação visível da doença, sem ocultamentos, sem profundidades. O modelo era agora o da anatomia clínica, que privilegiava, na busca do processo mórbido, o corpo do doente. A mudança é radical, é de nível de análise, remete à epistemologia: [...] a mutação existe, mas além de se situar em outro nível, é muito mais radical. Não foi na modernidade que superando as ilusões subjetivas infundadas, a medicina descobriu seu objeto ou ultrapassou o estágio de uma linguagem carregada de imagens, metáforas e analogias, tornando-se conceitual, quantitativa, rigorosa. Não foi nossa época quem ensinou a ver e a dizer. O que muda é que ela diz de outro modo e vê um outro mundo; o que muda é a relação entre aquilo de que se fala e aquele que fala; o que muda é a própria noção de conhecimento. 87 A radicalidade da mudança, a transformação inauguradora, a cesura, a emergência da medicina anátomo-clínica deve-se a um deslocamento objetal: O objeto da medicina moderna é outro não porque ela consegue ser finalmente um conhecimento objetivo, mas porque diz respeito a outra coisa. No nível do objeto, a ruptura que inaugura a medicina moderna em o recorte de um novo domínio, a demarcação de um novo espaço, a passagem de um espaço da representação, ideal, taxonômico, superficial, para um espaço objetivo, real, profundo. Mais explicitamente, a passagem de um espaço de configuração da doença, considerada como espécie nosográfica, para um espaço de localização da doença, o espaço corpóreo individual. 88 No século XIX, os médicos ainda lutavam pelo reconhecimento de sua profissão, buscando o apoio do estado na regulação e normatização do exercício da arte de curar e, naturalmente, condenando ao ostracismo os praticantes de outras atividades 87 MACHADO, Roberto. Foucault: a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.p.88. 88 Ibid. 63 de cura. A heterogeneidade e a ausência de consenso eram as marcas características dos representantes da arte de Asclépio. Um bom exemplo disto, aqui no Brasil, pode ser encontrado nas brigas travadas entre os próprios médicos e veiculadas nos jornais da época. A historiadora da medicina Gabriela dos Reis Sampaio acompanhou o caso da contenda entre os doutores Figueiredo Magalhães e Henrique Monat, reproduzida nos jornais cariocas O Paiz e Jornal do Commercio, e que se prolongou pelos meses de 1888. Os desentendimentos se iniciaram quando o doutor Monat acusou o médico Figueiredo de Magalhães de ter esquecido uma sonda dentro da bexiga de um paciente, o Sr. Rosenwald. O caso fora parar na polícia. Daí em diante, os dois passaram a se acusar mutuamente nos jornais, cada um tentando mostrar a incapacidade e a incompetência do outro no desempenho da profissão. A partir dessas declarações, Gabriela pode revelar-nos os principais problemas nos quais se via mergulhada a classe médica no Rio de Janeiro. A questão do esquecimento da sonda na bexiga do paciente mostra o médico como aquele que comete erros e imprecisões, passível de falhas, imagem diversa daquela propagada pelos próprios médicos do período, que viam na medicina uma ciência infalível. Ela aponta também para a ausência de consenso sobre os procedimentos utilizados, no caso de Rosenwald, os métodos cirúrgicos: Com relação à sonda esquecida na bexiga do Sr. Rosenwald, Magalhães disse que não extraiu o ‘corpo estranho’ porque’[...] preparava o doente para tal fim, quando ele resolveu recorrera outro cirurgião’, deixando claro que em nenhum momento considerou aquele fato uma falta grave, ou julgou ter sido negligente, como frisava Monat. Já este médico, ao ter sido acusado por Magalhães de um erro considerado bastante perigoso- teria deixado ocorrer uma infiltração de iodo na bexiga de um doente, seguida de um pequeno ‘esfacelo’- assim defendeu-se: ‘tal acidente tem sucedido a quase todos os cirurgiões, senão a todos; raros seriam os que não o acusassem em sua clínica’.89 Havia, portanto, alguns riscos para quem recorria a algum médico, e os contemporâneos percebiam isto. A sociedade carnavalesca O Clube dos Democráticos 89 SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial. São Paulo: Unicamp, 2000.p.35. 64 ironizou a situação no seu desfile com carro “Puxa-Puxa Monat e Figueiredo”, trazendo a seguinte marcha: Da sonda a grande contenda Um ponto final vos pede Parece briga de venda E já fede... [...] Nestas questões incandescentes Os que mais sofrem são os doentes Um de ferida muito moderna Vê que lhe cortam a melhor perna. Lá esquecidos eles já são; Nem mesmo tomam a sua poção. Esses desastres em tais momentos são resultados de esquecimentos 90 As divergências de procedimentos, os erros constantes e os desentendimentos entre os membros da classe médica revelam-nos uma medicina em conflito, fragmentada, heterotópica e- o que era pior- sem o reconhecimento social que pretendia: O que essa rixa entre importantes médicos desnuda é a grande disputa e rivalidade no interior da classe médica, a falta de consenso sobre os procedimentos da medicina científica, que vinha adquirindo muita influência nas transformações profundas pelas quais passava a sociedade brasileira nas últimas décadas do Império. Por mais que muitos médicos influentes, dentro e fora da corporação, tentassem frisar a superioridade de sua atividade, eles estavam longe de obter a legitimidade que almejavam em diversos setores sociais. O medo dos médicos e a suspeição contra eles, motivos de tantas ironias, pareciam predominar. 91 Como se não fosse o bastante, os médicos ainda tinham de lidar com as autoridades higienistas do Império, que, não raras vezes, contrariavam seus interesses; e também com os outros praticantes da arte de curar, que tinham mais prestígio junto à população, como benzedeiras, parteiras, herbanários, médiuns espíritas, curadores, homeopatas etc., que disputavam com os médicos importante fatia do nascente mercado de trabalho. Em termos de teoria médica, a situação não era muito diferente. A etiologia das doenças e seu mecanismo de transmissão eram assuntos que ainda geravam polêmicas. Do ponto de vista do funcionamento do corpo, a concepção geral 90 Apud SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial, p.36. 91 Ibid., p.38. 65 prevalecente era a da velha teoria dos humores, oriunda da Grécia antiga. Os estudiosos da escola de Cós sabiam que os corpos animal e humano continham vários fluidos, como o sangue e a bílis, que eram obviamente muito importantes. Isto podia ser observado através da secreção de líquidos, como o escorrimento do nariz, sintoma de resfriado na cabeça, o vômito e a diarréia como sinais de outras condições. Tais observações foram relacionadas ao conceito pitagórico de saúde como o equilíbrio do corpo, produzindo então a teoria humoral.92 Essa doutrina ensinava que a saúde era o produto do equilíbrio entre os quatro humores ou fluidos do corpo: sangue, catarro, bílis amarela e negra. Cada um desses humores estava relacionado aos quatro princípios materiais que formavam o mundo: ar, água, fogo e terra. Como os princípios materiais, os humores possuíam qualidades (quente, frio, seco, úmido) combinadas duas a duas. O sangue seria quente e úmido como o ar; o catarro, frio e úmido como a água; a bílis amarela, quente e seca como o fogo; e a bílis negra, fria e seca como a terra. O aumento ou diminuição de uma qualidade em relação a outra num humor, produzindo um desequilíbrio, gerava a doença, que era vista como um desequilíbrio interno do organismo, estando no próprio corpo a resposta para a enfermidade. Cada organismo tinha as suas próprias necessidades, recomendando-se dietas, exercício e condições climáticas e de sono como expedientes terapêuticos. Em último caso, a intervenção do médico deveria se dar no sentido de diminuir os excessos dos humores através da purga e da sangria (flebotomia) ou ministrando remédios contrários à natureza da doença (método dos contrários): manifestações mórbidas quentes eram sintoma de falta de frio no organismo, devendo o remédio ser, portanto, de natureza fria; se fossem úmidas, os remédios deveriam promover a secura do organismo.93 Mais tarde, no século II d.C., a doutrina fora ampliada pelo médico Galeno, que ligou os quatro humores aos temperamentos humanos, resultando daí a classificação das pessoas em sanguíneas (calorosas e agradáveis), fleumáticas (calmas, apáticas), melancólicas (tristes e deprimidas) e 92 RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência: da Renascença à Revolução Científica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. V.1, p.99. 93 ALFONSO-GOLDFARB, Ana Maria. O que é história da ciência. São Paulo: Brasiliense, 1994.p.22- 23. 66 coléricas (temperamento quente, explosivo).94 Quando as contendas médicas se voltavam para os mecanismos de transmissão das doenças- questão central no combate às epidemias-, havia, de forma mais ou menos organizada, dois paradigmas principais: o infeccionista e o contagionista. O contágio era a propriedade de certas doenças de se comunicar de um indivíduo para outro, diretamente, pelo contato, ou indiretamente, por meio do contato com objetos contaminados pelos doentes ou da respiração do ar que os circundava. Produzido o contágio, para se propagar não era necessária a intervenção das causas originais, reproduzia-se por si mesma, independente das condições atmosféricas do ambiente. Os contagionistas acreditavam que o aparecimento da doença se explicava pela existência de um veneno específico, que se reproduzia no indivíduo doente e se espalhava pela comunidade. A varíola, por exemplo, era considerada uma doença essencialmente contagiosa, devendo ser combatida por meio vacínico. 95 A infecção, por sua vez, era compreendida como a ação exercida por miasmas mórbidos, ou seja, era ocasionada pela ação que substâncias animais e vegetais em putrefação exerciam no ar ambiente. Com efeito, a infecção só atuava a partir da esfera do foco do qual emanavam os miasmas, embora a doença infecciosa pudesse se propagar de um indivíduo doente para um outro são: o indivíduo doente agia sobre o são ao alterar o ar que os circundava. Para esse paradigma, a idéia chave estava na noção de miasma, conceito pouco preciso para seus próprios defensores, como bem comentou Pedro Luiz Napoleão Chernovitz , no seu afamado Dicionário de medicina popular, de 1890: Tomando a palavra em sua acepção lata, consideram-se sob este título todas as emanações nocivas, que corrompem o ar, e atacam o corpo humano. Nada há mais obscuro do que a natureza íntima dos miasmas: conhecemos muitas causas que os originam; podemos apreciar grande número de seus efeitos perniciosos, e apenas sabemos o que eles são. Submetendo-os à investigação de nossos sentidos, só o olfato nos pode advertir da sua presença: não nos é dado tocá-los nem vê-los. A química mais engenhosa perde-se na sutileza das doses e combinações miasmáticas; de ordinário, nada descobre no ar insalubre ou mortífero que deles esteja infectado, e quando consegue reconhecer nela uma 94 RONAN, C. Op. cit., p.99. 95 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial, p.168-169. 67 proporção insólita, ou a presença acidental de um princípio gasoso, não nos revela senão uma diminutíssima parte do problema. 96 Na dificuldade de determinar as origens e composição dos miasmas, os infeccionistas colocavam todo e qualquer ambiente, especialmente as cidades, em suspeição e constante inspeção. Aqueles que moravam nesses espaços, norma lmente os mais pobres, também eram comumente suspeitos de portadores de doenças. A controvérsia entre contagionistas e infeccionistas não era apenas um problema teórico, mas tinha implicações notadamente políticas. No paradigma do contágio, as ações médicas tinham como táticas a aplicação da quarentena e do isolamento, o que se contrapunha aos princípios da liberdade individual e de comércio, defendidos pelas classes burguesas e pelos liberais, que se tornaram, portanto, ferrenhos anti-contagionistas. Os adeptos do contágio eram os médicos militares do Exército e da Marinha.97 Essas teorias médicas todas, juntamente com a elaboração microbiana de Pasteur, foram, cada uma a seu modo, apropriadas pelo Estado republicano na sua tentativa de reformar o ambiente urbano e dotá- lo de uma civilidade à moda européia. O discurso médico, por exemplo, foi instrumento de transformação do centro da cidade do Rio de Janeiro na época de Bernardo Pereira Passos: a destruição do cortiço Cabeça de Porco, localizado na Rua de São Félix, em 26 de janeiro de 1893, teve como justificativa “técnico-científica” - para além das teorias racistas correntes, que colocavam “os pobres” como “a classe perigosa” - a ideologia da higiene, que via nessas habitações coletivas os focos de irradiação de epidemias, tomando as teses infeccionistas com parâmetro de diagnóstico e ação de combate às doenças. 98 A maneira como tal relação se efetivou dependeu das condições sócio- históricas de cada região ou cidade, devendo ser examinada em sua própria especificidade. Na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a filosofia positivista determinou sobremaneira a concepção de saúde que seria posta em prática pelo menos até a década de 1920, e marcada fortemente pelo princípio da liberdade profissional e da descentralização do serviço de higiene e saúde pública, conforme o decreto- lei de 30 de dezembro de 1891. Não só garantia a liberdade de atuação dos médicos diplomados 96 Ibid., p.169. 97 SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada: história da medicina na literatura, p.152. 98 CHALHOUB, S. Op. cit., p.15 e 29. 68 como toda a gama de praticantes da arte de curar, desde receitistas, benzedores, feiticeiros até médiuns espíritas, o que ampliava ainda mais o leque de teorias sobre a doença. Vigorava o desinfeccionismo e o isolamento, mas com menor ingerência do estado, estando a cargo dos indivíduos escolherem a melhor maneira de tratamento. 99 1.6 Entre ares hipocráticos e elevações divinas: o Templo de Asclépio se ergue... A construção de um hospital em Natal, como vimos, já era uma necessidade sentida nos idos de 1840, quando os presidentes de província sofriam com as epidemias constantes que assolavam o estado, reclamando da precariedade da assistência médica, que contava com parcos recursos. Finalmente, em 1855, o governo de Bernardo Pereira Passos resolveu edificar o nosso primeiro hospital, onde foi o Quartel da Polícia Militar, na antiga Rua da Salgadeira. Compulsando a legislação estadual do império e as informações dos Relatórios e Falas de Presidentes de Província, não encontramos qualquer referência direta ou preocupação mais técnica visível com relação ao espaço onde seria construída a instituição nosocomial do Hospital da Caridade. Não temos nem sequer uma planta detalhada da construção, mas apenas a descrição do quadro de funcionários100, seus provimentos, hierarquia e aspectos financeiros e administrativos, fornecidos pelos próprios Relatórios e Falas dos mandatários provinciais e os jornais impressos, mormente A República e O Diário do Natal. 99 WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: Medicina, Relig ião, Magia e Positivismo na República Rio-Grandense (1889-1928), p.44. 100 Segundo o relatório do presidente Olinto Meira, todos os funcionários do Hospital de Caridade eram praças de polícia e receb iam soldo pelas novas funções, com exceção da enfermeira, do servente e do médico do Partido Público. O número de funcionários do hospital e suas funções variaram ao longo dos anos em que o HC esteve em atividade. No jornal A República de 26 de janeiro de 1891, encontramos a citação do Decreto n.86 de 27 de dezembro de 1890, que, no seu art.2º, §4º, discrimina as despesas do Estado com relação ao Hospital de Caridade, mencionando um quadro de funcionários maior do que aquele da década de 1860, comportando os seguintes empregados: amanuense e seu ajudante, enfermeiro e ajudante de enfermeiro, enfermeira e ajudante de enfermagem, Cozinheira e ajudante de cozinha e dois serventes. Em 3 de dezembro de 1908, o mes mo jornal publicou a Lei n.268, de 1º de dezembro de 1908, que “fixa a despeza e orça a receita do Estado para o anno financeiro de 1909”. No seu Art.1º, §9º, o pessoal do Hospital de Caridade aparece com outra disposição, compondo -se agora de Director, Amanuense, Almoxarife, Enfermeiro-mór, dois enfermeiros e duas enfermeiras, cinco serventes, cozinheiro e ajudante de cozinha. 69 Tabela 1- Funcionários do Hospital de Caridade Função Rendimentos Administrador 300:000 rs (anual) Amanuense 10:00 rs (mensal) Cozinheira 640 rs (diária) Enfermeira Sem soldo Servente Sem soldo Médico do Partido Público Sem soldo Fonte: Relatório apresentado pelo presidente Olinto Meira à Assembleia Leg islativa do Rio Grande do Norte, em sessão de 1863, p. 74. Devemos deixar claro que não estamos falando aqui do hospital moderno, com suas instalações providas de médicos especializados, dotado de alta tecnologia e tendo sua arquitetura determinada pela ciência médica, configuração que só veio a existir a partir da década de 1970, com a primeira portaria legislando sobre a arquitetura hospitalar. No século XIX, os hospitais eram espaços construídos sem muita preocupação com as necessidades dos pacientes nem com as teorias médicas correntes: eram lugares de repouso, convalescimento, de abrigo oferecido aos mais pobres, administrados normalmente por instituições religiosas, com fins muito mais caritativos que terapêuticos. Na experiência luso-brasileira, predominou a assistencia social voltada para a pobreza, buscando retirar das ruas todos aqueles que compunham a massa de excluídos da sociedade, como órfãos, prisioneiros, doentes, prostitutas, loucos, entre outros, perspectiva baseada nas diretrizes religiosas da Santa Casa da Misericórdia, que ditava os rumos tanto da assistência médica quanto social. Essas regras que norteavam as atividades da instituição eram conhecidas como as 14 obras da Misericórdia, divididas entre sete obras espirituais: ensinar aos ignorantes, dar bom conselho a quem pede, castigar com caridade, consolar os tristes, perdoar a quem errou, sofrer injúrias com paciência e pedir a Deus pelos vivos e mortos; e sete obras corporais: redimir cativos e visitar presos, curar doentes, cobrir os nus, dar de comer aos que têm fome, dar de beber aos que têm sede, abrigar os peregrinos e pobres e enterrar os finados. 101 101 SANGLAR, Gisele. Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guin le, a saúde e a ciência no Rio de Janeiro, 1920-1940. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008.p.48-49. 70 Esse “Inferno de Dante”, como nos descreveu o médico Onofre Lopes, fora fechado em 1906, por Augusto Tavares de Lyra, e um novo edifício já era preparado para receber os novos pacientes. Tratava-se da casa de veraneio do governador Alberto Maranhão, comprada por ele para a construção do novo hospital. Segundo Tarcísio de Medeiros102, em artigo comemorativo do cinquentenário do referido estabelecimento hospitalar, publicado em A República, a reforma da “mansão”, iniciada em 1905, estava a cargo do senhor Teodósio Paiva, Diretor do Almoxarifado Gera l do Estado, tendo Pio Barreto como empreiteiro, para a construção de sala de operações, e Cândido Henrique de Medeiros, avô do articulista, na direção geral das obras, já que este possuía experiência adquirida no serviço da Santa Casa, em Recife. Em 12 de setembro de 1909, inaugurava-se finalmente o novo estabelecimento hospitalar do Estado. Em princípio, a compra da casa por Alberto Maranhão coloca a questão do “espaço” para a construção do hospital em segundo plano, como fruto de um gesto político particular, voluntarista, circunstancial, sem o qual não haveria possibilidade de construir um outro edifício. Assim, o espaço seria concebido, de forma simplificadora, como mera superfície sobre a qual se dão os acontecimentos, morto, fixo, atemporal, estático, espaço esvaziado de sentido, de significados humanos. Configura aquilo que a geógrafa norte-americana Doreen Massey chamou de concepção tradicional de espaço, visto como “fenômeno de superfície”, “algo a ser atravessado” ou “ grande extensão através da qual viajamos”.103 A localização espacial do Hospital de Caridade Juvino Barreto era singular: repousava sobre um Monte, região altaneira da cidade, e situado nas proximidades da Praia de Areia Preta, beira-mar bastante conhecida pela elite natalense da época: Acompanhou [Januário Cicco] todas as etapas da reforma da casa de veraneio de Petrópolis, caminhando pelas dunas, para observar os serviços e modificar o que achasse conveniente. 104 Era uma região de dunas! A casa de campo de Alberto Maranhão era de “veraneio”, isto é, o governador e a sua família iam passar o verão lá, descansando, respirando “ar puro”, longe do mefítico ambiente urbano da Ribeira, local de trabalho e 102 MEDEIROS, Tarcísio de. Ontem, Hospital do Monte, hoje Hospital “Miguel Couto”. REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, 1959, vol. 53, p.34 -35. 103 MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.p.37. 104 ARAÚJO, Iaperí. Januário Cicco: um homem além de seu tempo, p.14. 71 comércio. Em 14 de outubro de 1905, o Diário do Natal publica, sob o título de Dia a dia: Pobre Rio Grande do Norte IV, um artigo que comenta sobre as vantagens do vento marinho para a saúde da população: Na arte de arranjar benemerência, ninguém melhor maneja a política que o senador Pedro Velho, e nessa especialidade fazem justiça todos, inclusive os seus mais intimo engossadores. Promovem o bem público e... inventam uma cidade nova. A idéia é bella e se lhe reconhece o que seja de genial. A nossa cidade, além de velha feia, comprimia já a população em bairros apertados e mal servidos da higyene da natureza. Precisava a população natalense de respirar o ar saturado dos alcalóides marinhos de que é portadora a viação que vem das praias do Morcego e Areia Preta. 105 Ou seja: os novos bairros da cidade, Tirol e Petrópolis, surgidos do plano de expansão urbana chamado de Cidade Nova, tinham a vantagem, em relação à insalubre Ribeira, de receber “o ar saturado de alcalóides marinhos”, tido como importante fator gerador de saúde. Em 1908, a praia de Areia Preta tornou-se uma estação balneária, sendo recebida pelas elites da época com muito entusiasmo. Em 1912, a Ferro Carril estendeu sua linha de bonde elétrico para o balneário, funcionando aos domingos e feriados.106 A praia de Areia Preta veio a tornar-se importante espaço de lazer e divertimento, partindo da Ribeira, passando pelo Monte Petrópolis e dirigindo-se à beira-mar.107 Em fins do século XIX, toda essa extensa faixa de terra ainda não fora efetivamente incorporada ao espaço urbano de Natal. A Cidade Alta terminava no sítio Cucuí, no lado direito da rua Ulisses Caldas, terreno pertencente à viúva do dr. Carneiro; do lado esquerdo, havia o antigo palacete do juiz federal Manuel Porfírio de Oliveira Santos, adquirido pelas irmãs Dorotéas e onde foi instalado, em 22 de fevereiro de 1902, o Colégio da Imaculada Conceição pelo bispo diocesano da Paraíba Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques.108 Esta última era uma larga zona coberta de matos e morros, aonde os poucos habitantes da região, abrindo picadas pelo caminho, iam a cavalo pescar ou caçar aos domingos. Era um recanto habitado por pescadores. Na época do chefe político Pedro Velho, os governadores, que costumavam passear a 105 Dia a d ia: Pobre Rio Grande do Norte IV. Diário do Natal, Natal, 14 de out.1905. 106 MARINHO, Márcia. Natal também civiliza-se: sociabilidade, lazer e esporte na Belle Époque natalense. Natal: EDUFRN, 2011.p.59-60. 107 ARRAIS, Raimundo; ANDRADE, Alenuska; Marinho, Márcia. O corpo e a alma da cidade: Natal entre 1900 e 1930, p.110. 108 MIRANDA, João Maurício Fernandes de. Evolução urbana de natal em 400 anos. Natal: [sem editora], 1999.p.64-65. 72 cavalo naquela área, já utilizavam a toponímia de Cidade Nova para identificar a região.109 Em 30 de dezembro de 1901, o intendente Joaquim Manuel Teixeira de Moura criou, pela Resolução n. 55, o terceiro bairro da cidade, a Cidade Nova. Recebendo 400$000, o funcionário Jeremias Pinheiro da Câmara demarcou as avenidas projetadas, desapropriando ou vendendo as casas e choupanas dos moradores daqueles terrenos. As novas propriedades seriam ocupadas agora pela elite natalense, que passou a construir suas residências nessas terras e a identificá- las com diferentes títulos, como Pretoria, Vila Cincinato, Solidão, Cavadonga, Senegal, Chácara de Cascudo, Betânia, Dinamarca e Sítio de Chico Coelho. Na época, chamava-se de Monte, Belmonte ou Belo Monte quase todo o atual bairro de Petrópolis, que, em sua parte norte, pertencia ao Sítio do Jacob, na zona limítrofe com a Ribeira, onde havia a Lagoa de Jacob, propriedade onde o governador Alberto Maranhão tinha sua casa de veraneio, futuro espaço do HCJB. Em 25 de fevereiro de 1908, a Intendência, através da Resolução n.118, nominou de Petrópolis a região do antigo Monte.110 A partir desse momento, o que era uma zona distante e pouco valorizada, transformou-se aos poucos em área nobre da cidade do Natal, que se expandia cada vez mais para o norte. O espaço da Praia de Areia Preta, até então visitada somente por pescadores e moradores da região, tornou-se lugar oficial para os banhos de mar conforme determinava a Resolução Nº 115 da Intendencia Municipal, de 1908. Tratava-se de uma longa faixa de terra que fechava o perímetro da cidade pelo sul até a subida do morro do Moxila, sendo praia de pescadores pelo menos até 1920, quando os ranchos começaram a ser vendidos e outras casas construídas para passar o verão. Em 1915, os bondes elétricos já cumpriam essa rota da Ribeira à praia de Areia Preta, integrando a Cidade Alta ao bairro da Ribeira.111 A transformação da Praia de Areia Preta em estação balneária deveu-se fundamentalmente à iniciativa das elites natalenses, que desejavam criar um novo espaço de sociabilidade para as suas famílias. Nesse empreendimento de caráter privado, que visava ampliar os espaços de lazer até então existentes, não podemos deixar de observar a participação de um médico nessa ação, notadamente o Inspetor de 109 CASCUDO, Câmara. História da cidade do Natal, p.435-436. 110 Ibid., p.436-437. 111 MIRANDA, J. Op cit., p.63. 73 Saúde Pública do Rio Grande do Norte, o Dr. Calistrato Carrilho, o mesmo que estaria à frente da direção do HCJB nos seus primeiros anos de vida. Essa iniciativa privada dirigida por um importante médico da capital foi ressaltada pelo jornal A República, em matéria de 8 de fevereiro de 1908, que comentava a criação da estação balneária em Areia Preta: Sabemos que um grupo de cavalheiros da nossa melhor sociedade organizou uma modesta empresa, sob a direção do ilustre clínico dr. Calistrato, destinada a preencher uma lacuna sensível de nosso meio social como o estabelecimento de uma praia de banhos, no lugar denominado “Areia Preta”, na qual encontrarão famílias que precisarem de banho de mar uma residência confortável e alegre com fácil transporte até a cidade e um serviço regular de salvamento para os banhistas. 112 Como se percebe, o espaço onde o HCJB fora edificado inseria-se em importante zona de expansão imobiliária da cidade, além de situar-se, segundo o discurso higienista, em zona de confluência dos ventos marinhos vindos da faixa litorânea, considerados pela ciência médica como elemento de caráter terapêutico. Por isso, as referências ao monte e a praia não podem ser consideradas vazias aqui. Considerando os conhecimentos médicos de Januário Cicco, formado na tradição da medicina tropicalista baiana, preocupada fundamentalmente com os fenômenos epidemiológicos, acreditamos na clara intencionalidade da escolha do local da construção do hospital, que ganha novos significados à luz das teorias médicas da época. A ascensão da beira-mar como espaço de ocupação humana mais ou menos permanente, da praia com refúgio, diversão ou terapia é uma construção moderna recente, que se situa, no caso europeu, entre os séculos XVIII e XIX. O historiador das sensibilidades, Alain Corbin, trabalhou o tema no seu livro O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. O autor mostra que essa “nova harmonia do corpo e do mar” está intimamente ligada ao discurso médico consagrado às virtudes da água fria do mar e às vantagens do contato com as ondas e da vilegiatura costeira. 113 Assim, a partir da obra de Robert Burton (1621), História da melancolia, o mar passa a ser incluído como elemento terapêutico contra o spleen. A cidade, com seus 112 A REPÚBLICA. Empresa balnear, Natal, 08 fev. 1908. 113 CORBIN, Alain. O território do vazio: a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.p.69. 74 maus ares e sujeiras, corrompe a saúde dos seus habitantes, como proclamaria Richard Smollet: O autor de Roderick Random [Smollet] junta num feixe os elementos da diatribe. Proclama sua indignação contra a poluição do ar da capital e da água do Tâmisa pela poeira, fumaça, imundícies. O ajuntamento da multidão pútrida nos salões de baile ou nos estabelecimentos balneários de Bath o revolta. O tema dos excrementos, onipresente em sua obra, reforça a denúncia da corrupção dos gostos citadinos [...]. Na cidade, produz-se uma inversão dos critérios de apreciação, triunfa a perversão dos alimentos viciosos ou adulterados, desenvolvem-se maus cheiros que passam a ser tolerados. A mobilidade social e o luxo ostentatório constituem outros tantos signos do suicídio coletivo que devasta a cidade. 114 Smollet era adepto da hidroterapia, do banho frio, costumando mergulhar nas costas francesas e italianas. As doenças da alma, como a ansiedade, a histeria, a ninfomania, as paixões de modo geral, teriam no banho de mar seu melhor tratamento. O mar, dizia Sydenham, famoso médico inglês, repunha a energia vital, o tônus muscular, sendo perfeito para o doente crônico. São exatamente essas teses médicas que mobilizaram a emergência dos balneários, praias que se acreditavam possuir virtudes terapêuticas: John Speed dizia que “o banho de mar não é somente um banho frio, é um banho medicinal”.115 O banho de mar, portanto, nasce de um projeto terapêutico, após a metade do século XVIII e avança no século XIX sem muitas modificações. As idéias da climatologia neo-hipocrática vieram reforçar também as virtudes da água do mar, acrescentando a importância dos cuidados com o solo e, sobretudo com o ar, observações retomadas de Hipócrates, em seu texto Ares, águas, lugares: Quem quer que se dedique à medicina, deve estudar os seguintes assuntos. Em primeiro lugar, deve considerar o efeito de cada uma das estações do ano e as diferenças entre elas. Depois, deve estudar os ventos, quentes ou frios, tanto os que ocorrem em todo o país, como os que são peculiares a uma região. Finalmente, o efeito da água sobre a saúde não deve ser esquecido. 116 Investia-se assim nas chamadas praias salubres, aquelas que possuíam os requisitos médicos adequados ao banho de mar: salinidade, extensão das ondas, facilidade para o trajeto do veículo, possibilidades de marcha e equitação, presença de 114 Ibid., p.72. 115 Ibid., p.77. 116 Apud SCLIAR, Moacyr. Cenas médicas: uma introdução à história da medicina. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002.p.30. 75 falésias ou dunas etc. A descoberta do oxigênio por Lavoisier, em 1783, relevou o papel do ar no tratamento das doenças pulmonares, como a insidiosa tísica, favorecendo o valor de respirar bem e, com isso, as virtudes da praia.117 Essa intensa valorização européia do banho de mar como instrumento terapêutico também podia ser acompanhada nas páginas da imprensa local do Rio Grande do Norte. Em 28 de outubro de 1912, o articulista Carlos D. Fernandes publicou extensa matéria no jornal A República, intitulada “Banhos de mar”118, comentando as inúmeras vantagens que a proximidade com o mar oferecia à saúde da população litorânea. O autor do artigo inicia seu texto dizendo que tomara contato, enquanto vasculhava a biblioteca pessoal do intelectual Henrique Castriciano, com um livro do escritor francês Chistovam Hufelaud, chamado A arte de prolongar a vida. Nessa obra, encontrou importantes argumentos sobre a importância terapêutica dos banhos de mar, tema sobre o qual já fora incumbido pelo jornal de dissertar. Segundo Carlos Fernandes, seu artigo objetivava ministrar conselhos de “medicina natural” aos norte-rio- grandenses da época “que tendes a immensa ventura de viver à beira-mar e balneário, por uma disbordante prodigalidade dos vossos destinos”. No artigo, o articulista elogiava os ‘tipos humanos’ existentes no Estado, vinculando teorias raciais correntes com determinismos de natureza geográfica: Noto na vossa multidão de homens uma honrosissima media de typos normaes, sem degenerados congênitos ou innatos, o que não é a regra geral do nosso ubérrimo e vastíssimo paiz. Não tendes essa miseranda população de idiotas, cretinos, imbecis e tarados... 119 Embora não comportasse tantos ‘degenerados’ como o restante do país, ele não entendia, contudo, o porquê de a população apresentar-se abaixo das expectativas da ciência eugênica dominante: ...mas não sois fortes e bellos como vos cumpre pela vossa situação geográfica e excelencia do vosso clima.// E não me retruqueis que não é vossa culpa desse ingente delicto muito mais funesto e grave que a maioria dos enumerados em o nosso CODIGO PENAL. Vós tendes, numa situação especialíssima de esthethica e topographia, os elementos primórdios e irrecusáveis da saúde, da força e da belleza humanas: o mar, o céo azul e o ar puro e tépido.// Deverieis ser um 117 CORBIN, A. Op. cit., p.81-84. 118 A REPÚBLICA. Banhos de mar, Natal, 28 out. 1912. 119 Ibid. 76 povo de gigantes, sem dimensões macromelicas mas com o typo franzino, esbelto, lépido e pulchro dos nossos irmãos japonezes. 120 A responsabilidade pela situação de ‘degenerescência da raça’ estaria nos maus hábitos cultivados pela própria população: E a que deveis esses recrimináveis atrasos da vossa perfeição?//Ao infame habito de dormir muito e de portas fechadas; a ausência de regime dietético; á ignorância da gymnastica e sobretudo á irreverente ausência do mar, que é o berço comum de todos nós. 121 Carlos Fernandes argumentava, então, que a população norte-rio-grandense possuía à sua disposição uma importante topografia médica, que tinha como principal fator de saúde a proximidade com o mar. Aquilo que as viagens marítimas proporcionavam aos seus passageiros, como a atmosfera marinha saturada de iodo, cloro, sódio, bromo e outros elementos salutares, o habitante do litoral poderia obter com um simples passeio à beira-mar a qualquer hora do dia e da noite ou com os chamados “banhos secos”. Na descrição dos benefícios do banho de mar, o articulista ressaltou, no contato com as águas, o sol e a areia da praia, os efeitos de bem-estar provocados nos diferentes sentidos do corpo, que transformavam a beira-mar numa paisagem, propiciadora de prazer e satisfação pessoal: E’ uma perfeita cura sérumtherapica a que se faz no contato das águas marinhas, cuja dynamica vitalidade nos penetra pelos sentidos e pelos poros, na mais doce e cariciosa volúpia. Folgam os olhos nas gradações luminosas, nas tonalidades chromicas, na (...) mutação das paysagens: no franjado de espumas, em que as ondas se desfazem; gozam os ouvidos na sonora e forte audição daquellas musicas bárbaras, que os ventos entoam; afina-se o olphato no salino aroma das águas e sargaços; deleita-se o facto nas finas o macias areias, nas frescas vegetações marinhas, que os refluxos arrojam á praia; e o próprio gosto é ás vezes sorprehendido com a súbita ingestão de um vasto gole cathartico d’agua salgada.122 Coroando o conjunto desses benefícios, para além de uma estética da saúde, Carlos D. Fernandes ainda acrescentou as vantagens do banho de mar para a pele e o metabolismo do corpo humano: A pelle é, como todos sabemos, um órgão emnnctorio (sic) por excellencia, toda crivada de poros, para absorção dos gazes nutrientes das águas e para eliminação dos resíduos líquidos do organismo, isto é: toda matéria regeitada pelas funcções biochimicas de nosso corpo. Assim, pois, quanto melhor for esse trabalho de eliminação tanto mais 120 Ibid. 121 Ibid. 122 Ibid. 77 puro será o nosso estado visceral e systema phagocytario.// Disso resulta a nossa maior resistência ás infecções por via gástrica e respiratória, implicando, logicamente, um equilíbrio de saúde, que se traduz na alegria de viver. Tudo isso, que é o maior bem da vida, obtem-se com a frequentação e o uso do mar [...] 123 A moda dos banhos de mar em Natal, que acabaram por instituir os balneários, como a Praia de Areia Preta em 1908, pela Resolução n.55 da Intendência Municipal, difundiu-se no começo do século XX, como se pode constatar nos anúncios de casas para alugar postos nos jornal A República. Em 20 de maio de 1913, anunciava- se, sob o título “Banhos de mar”, a disposição de alugar uma casa “própria para banhos”124 na avenida que desce para a Praia de Areia Preta. Era o momento não apenas de ascensão da beira-mar como também da revalorização da água como recurso terapêutico de modo geral. Assim, em 22 de março de 1913, o jornal A República comunicava a expectativa da chegada do hidroterapeuta Emiglio Coelho, vindo do Pará, com o objetivo de mostrar a “medicina” que adotava.125 O próprio Hospital de Caridade Juvino Barreto previa a instalação de uma sala de hidroterapia nas suas dependências. No final da década de 1920, o costume do banho de mar já estava bem difundido, havendo até loja de roupas especializada, como a “Casa Braz Palatnik”, na Rua Ulysses Caldas, n.205.126 A proximidade do Hospital de Caridade Juvino Barreto em relação à Praia de Areia Preta não seria assim obra do acaso, mas teria conexões com a fórmula médica dos “bons ares”. O médico e escritor Iaperí Araújo parece endossar essa posição ao comentar as reformas da casa de campo de Alberto Maranhão: O próprio governador teve a idéia de oferecer a sua casa de veraneio, situada no alto do monte de Petrópolis para ser adaptada para um hospital, por melhores condições por conta dos bons ares do mar (grifo nosso). 127 Os mencionados “bons ares” nos remetem às discussões travadas no interior dos paradigmas médicos do século XIX, que viam o meio ambiente como fator explicativo central das causas e difusão das doenças. Analisando a presença desse discurso médico no reordenamento do espaço urbano da cidade do Natal, O historiador 123 Ibid. 124 A REPÚBLICA. Banhos de mar, 20 maio 1913. Em 3 de junho do mesmo ano, o anunciante da casa para alugar ainda mantinha seu anúncio no jornal, com os mes mos dizeres, o que denota que ele não havia conseguido alugar a casa de veraneio no intervalo dos anúncios. 125 A REPÚBLICA. Cura pela água, 22 mar. 1913. 126 A REPÚBLICA. Roupas para banhos de Mar, 27 set. 1927. 127 ARAÚJO, Iaperí. História da Maternidade Escola Januário Cicco , p.15. 78 Raimundo Arrais comentou: A vinculação entre o ambiente e a propagação das doenças havia sido feita desde o século V a.C. com as teorias desenvolvidas por Hipócrates, sistematizadas no século XVII pelo médico Thomas Syndenhan. Essas concepções, nos anos posteriores, passariam a influenciar tratados médicos a partir da análise do meio ambiente, como as Topografias e Geografias Médicas, surgidas ainda no século XVIII, fazendo uma espacialização das doenças e descrição do ambiente, buscando os fatores que provocavam as enfermidades no espaço urbano. Essas doutrinas científicas ajudaram a compor o paradigma higienista que direcionou intervenções e reformas urbanas nos séculos seguintes. 128 “Paradigma Higienista” no trecho acima é sinônimo de teorias médicas aplicadas à transformação do ambiente urbano, ligado a um longo e complicado processo de modernização das cidades, com vistas a promover os “ideais de saúde, bem- estar e beleza”, de realização de um ideal urbano das elites de desejosas de uma cidade nova, à moda européia. Em 1896, o médico e Inspetor de Higiene Pública Manuel Segundo Wanderley apresentou o Plano Sanitarista para Natal, que pregava, dentre outras medidas de combate às doenças, o aterramento do Baldo, a remoção do matadouro da cidade, o aterro de mangues e o nivelamento dos espaços públicos. No próprio Relatório da Inspetoria de Higiene, o médico Segundo Wanderley descreve pesarosamente as dificuldades encontradas no “Estado sanitário da cidade”: Difficil e muito difficil, se torna o saneamneto de uma Capital nas condições em que a nossa se acha collocada, resentindo-se da falta de um calçamento regular, sem um systema de esgôto apropriado, onde a maioria dos quintaes è feita de fachina e as cloacas abertas na superfície do solo, incovenientes estes que, addicionados a uma certa dose de ignorância, condenável e incorrigível indolência de grande parte da população, nos trazem constantemente expostos a freqüentes e lamentáveis desastres mórbidos. 129 Depois de diagnosticar os problemas sanitários, dividindo responsabilidades com a “ignorância” e a “indolência” da população, mormente considerada uma das causas da insalubridade do ambiente urbano, o Inspetor de Higiene fornece algumas “Indicações úteis”: 128 ARRAIS, Raimundo; ANDRADE, Alenuska; Marinho, Márcia. O corpo e a alma da cidade: Natal entre 1900 e 1930, p.83-84. 129 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida pelo governador Dr. Joaquim Ferreira Chaves Filho ao Congresso Legislativo do Estado do Rio Grande do Norte ao abrir-se a 2ª sessão ordinária da 2ª Legislatura em 15 de julho de 1896 acompanhada do Relatório da Secretaria e annexos. Natal: Typ. d”A República, 1896. Estado sanitário da cidade, A6-2, p.2. 79 Quatro urgentes melhoramentos julgo de grande alcance sanitarto (sic) e indispensaveis à nossa capital. Primeiro: a remoção do matadouro publico para outro ponto compatível com as conviniencias Hygiennicas. Segundo: a mudança do Lazareto da Piedade, ou antes acquisição de outro edifício destinado aos mesmos mysteres situado fora do perimentro tal que os ventos sob cuja influencia esteja, não condusão as suas emanações para o centro da população. Terceiro: o arrazamento da fonte publica denominado-baldo, que, alem de ser um foco perene de moléstias miasmáticas, converte-se diariamente em theatro de escandalosas exibições, affectando não só a integridade sanitário, como attentando affrontosamente como os bons costumes e moralidade publica. [...] Quarto: augmento de capacidade do acqueducto que desvia as águas pluviaes accumuladas na campina da Ribeira para o rio. 130 A partir de 1908, com a “Carta cadastral de Natal”, produziram-se uma série de melhoramentos de natureza profilática: aterro e nivelamento da Praça Leão XXII em 1908; calçamento da rua do comércio em 1908; abertura das ruas Sachet (atual Duque de Caxias), Almino Afonso e Tavares de Lyra em 1908; a reabertura do Hospital Juvino Barreto em 1909; a instalação de poços tubulares na capital em 1911; a construção do asilo de Mendicidade no Monte Petrópolis em 1912 e do asilo para tuberculosos São João de Deus nas Quintas em 1912; o isolamento de variolosos São Roque em 1912; a pavimentação da Avenida Junqueira Aires em 1914; a abertura de poços tubulares em 1914; a construção de galerias para escoamento de águas pluviais (1925-1926); calçamento e arborização das ruas principais da Cidade Alta (1900-1914).131 O argumento dos “bons ares”, com efeito, insere-se num quadro maior de transformações por que passava a cidade do Natal no final do século XIX e começo do XX. A preocupação com o ar tanto está presente no infeccionismo quanto no contagionismo que analisamos. No infeccionismo, ele aparece ligado à conhecida teoria dos miasmas. Teriam, então, os tais “bons ares” de que falou Iaperí relação com a teoria miasmática, mesmo estando os médicos já avançados nas teses microbianas de Pasteur? A sutileza da questão é significativa, pois poderia apontar para uma certa miscelânea teórica na execução das obras referentes ao hospital, que representaria, em alguns aspectos, o desejo da modernidade hospitalar, mas, ao mesmo tempo, sinalizaria para uma era pré-moderna da espacialização médico-hospitalar. Espaço de transição, heterotopia? 130 Ibid. 131 ARRAIS, Raimundo; ANDRADE, A lenuska; MARINHO, Márcia. Op. cit., p.84-85. 80 Estudando o documento “Como se higienizaria Natal: algumas considerações sobre o seu saneamento”, de autoria do médico Januário Cicco, publicada em 1920, o especialista em estruturas urbanas e ambientais Pedro de Lima foi categórico: Por sua formação e por sua erudição, a teoria dos miasmas não faz nenhum sentido para Januário Cicco. Ao contrário, o autor enfatiza, ao longo do texto, a origem microbiótica e bacilar das doenças. Além disso, Cicco reitera a importância de variáveis sociais que contribuem para o desenvolvimento de moléstias e que dificultam o seu controle e eliminação. 132 De fato, Januário teve conhecimento durante sua formação na Faculdade de Medicina na Bahia da tese microbiótica de Pasteur, tomando conhecimento dela na disciplina de Microbiologia, criada em 1901, por uma lei que restabelecia o comparecimento compulsório às aulas de laboratório.133 Todavia, é importante salientar que Pedro de Lima faz suas observações sobre um documento da década de 1920, e o hospital que estamos estudando pertence ao começo do século XX, quando a noção de miasma ainda era bastante popular. Em matéria publicada no jornal A República, em 1901, o articulista assim se referia ao estado sanitário da cidade do Natal: O estado sanitário desta capital não é satisfatório. A febre que grassa nesta capital é a conseqüência da pouca limpeza da cidade [...] o lixo e outras porcarias espalhadas e depositadas dentro e nas imediações da cidade fermentaram e desprenderam-se os miasmas, pestilências que se foram inocular nos organismos aptos a recebê-los pela alimentação [...] ante-higiênica (grifo nosso). 134 Conquanto a doutrina de Pasteur já figurasse nos currículos acadêmicos das faculdades de medicina (Eram cinco até 1912: Bahia, Rio de Janeiro- Faculdade e Instituto Hahnemanniano-, Rio Grande do Sul e Paraná), as práticas higienistas em vigor fundavam-se no paradigma infeccionista, com as idéias de isolamento e quarentena, como forma de eliminar os focos das doenças, aterrando-se zonas de charcos e pântanos, evitando-se o lixo acumulado entre outras medidas. Essas ações implementadas pelo Estado foram, durante muito tempo, alimentadas pela velha teoria 132 LIMA, Pedro de. Saneamento e modernização em Natal: Januário Cicco, 1920. Natal: Sebo Vermelho, 2003.p.60. 133 LUZ, Madel. Medicina e ordem política brasileira : políticas e instituições de saúde (1850-1930), p.118. 134 Apud ARRAIS, Raimundo; ANDRADE, A lenuska; MARINHO, Márcia. Op. cit., p.87. 81 dos miasmas135, que persistiu ainda até por volta da década de 1920. A relação entre a “aeração” do ambiente e a elevação dos terrenos já figurava no começo do século XIX. Em 1798, por exemplo, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro, preocupado com as endemias e epidemias que grassavam pela cidade, propôs um questionário aos principais médicos da cidade sobre os problemas de salubridade da capital carioca. Nesse documento, buscavam-se as opiniões dos médicos sobre a influência do clima, das dietas alimentares e dos hábitos na incidência das doenças, da seguinte forma: 1º Quais são as moléstias endêmicas da cidade do Rio de Janeiro, e quais as epidêmicas; 2º Se é uma das principais causas das primeiras, e do mau sucesso das segundas, o clima minimamente úmido e quente; 3º Se são causas da umidade. Iº a suma baixeza do pavimento da cidade relativamente ao mar e baía [...]; IIº a pouca expedição que têm as águas das chuvas copiosíssimas, principalmente de verão [...]; IIIº a pouca circulação do ar pelas ruas da cidade e interior dos edifícios. 4º Se são causas do calor Iº o impedimento que fazem à entrada dos quotidianos ventos matutinos ou terrais [...] IIIº a direção das ruas [...]. 5º Se são causas das mesmas doenças, Iº as imundícies, que se conservam dentro da Cidade, IIº as águas estagnadas nos seus arrabaldes [...]. 6º Quanto deverá ser elevado o pavimento da Cidade, e os edifícios para remediar aquela umidade e haver saída para as imundícies. 7º Quais são as outras causas morais e dietéticas das ditas doenças. (No ano de 1789 se propôs..., 1813). 136 Responderam ao questionário os médicos Bernardino Antônio Gomes, Antônio Joaquim de Medeiros e Manoel Joaquim Marreiros, sendo o resultado da 135 Não estamos negando que a teoria micobiótica não tenha tido seus adeptos entre os esculápios norte - rio-grandenses ou mes mo que ela não gozasse de popularidade entre os médicos. Em 10 de maio de 1911, por exemplo, o jornal A República veiculou uma farta matéria defendendo o fenômeno do “microbis mo universal”, valendo-se de diversos argumentos científicos, buscando convencer os leitores da realidade dos “seres invisíveis”. Contudo, o próprio tentame de mostra aos leitores a veracidade da teoria micobiótica já indicia o desconhecimento ainda geral da população sobre a microbiótica ou até o alto grau de rejeição dos argumentos pasteurianos pelo cidadão comum. Em termos práticos, a tônica ainda recaia nos “miasmas deletérios”, invocados sempre que a salubridade do meio urbano punha em risco a saúde da população. Não raro, as duas teorias conviviam nas práticas de saúde pública promovidas pelo Estado, como as que podemos constatar na obra-diagnóstico de Januário Cicco, Notas de um médico de província . Para conferir essa miscelânea teórica, ver: ANAYA, Gabriel Lopes. Maus ares e malária: entre os pântanos de Natal e o feroz mosquito africano (1892-1932). Dissertação (mestrado)- Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Programa de Pós -graduação em História, 2011, em especial a seção Januário Cicco, o Hipócrates Inglês e os “infinitamente pequenos”. 136 FONSECA, Maria Rachel Fróes da. A saúde pública no Rio de Janeiro imperial. In : PORTO, Ângela (Org.). História da saúde no Rio de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. p.35. 82 enquete publicado no periódico O Patriota, em 1813. Dentre as várias explicações aventadas para a proliferação das doenças, o médico Bernardino Antônio Gomes descreveu claramente o nexo entre os miasmas e as elevações topográficas: Indicava [Bernardino Gomes] como uma das principais causas da incidência de moléstias o clima quente e úmido, que favorecia a putrefação das substâncias animais e vegetais, e consequentemente promovia a produção miasmas. As condições topográficas, tanto a pouca elevação quanto á proximidade dos morros, eram obstáculos para a plena circulação dos ventos, promovendo a estagnação do ar e o excesso de calor, altamente prejudiciais para a constituição física do homem. A existência de água estagnada e solos alagadiços era vista como verdadeiro manancial de vapores e, portanto, de miasmas. 137 Em geral, a medicina higienista considerava as áreas elevadas espaços mais adequados para uma vida saudável, livre da ação dos agentes patogênicos transmitidos pelo ar contaminado. Mesmo situado na parte baixa da cidade, no bairro da Ribeira, a própria localização do HC obedecia de alguma forma esta recomendação médico- topográfica, como se pode depreender da declaração do presidente Olinto Meira, quando disse que “O edifício acha-se collocado à margem do rio em uma situação’ elevada e aprazível”.138 Contudo, segundo o presidente José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, o edifício do HC, embora em “situação elevada”, estava ainda “a pouca altura”, gozando de “falta de elegância”.139Na segunda metade do século XIX, o então Inspetor de Hygiene Pública do Rio Grande do Norte, o médico Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, apontava a Cidade Alta, na época um dos dois únicos bairros existentes na cidade do Natal, como o lugar mais apropriado para se viver, pois se situava na região altaneira da urbe, recebendo, por isso, as contribuições do ar puro de origem marinha: A cidade do Natal, principalmente a parte denominada cidade alta, ocupa uma situação topográfica altamente vantajosa, no ponto de vista da higiene. Constante e largamente lavada pelas vivificantes correntes de ar marítimo, sem focos naturais de infecção. 140 Escrevendo cerca de vinte anos depois, o esculápio Januário Cicco ainda expressava o mesmo privilégio médico-topográfico concedido às zonas elevadas da cidade, ao comentar na sua obra Como higienizar a cidade do Natal as vantagens da 137 Ibid., p.35-36. 138 RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte na sessão ordinária do ano de 1863 pelo presidente da provincia, o Exm. Sr. d r. O linto José Meira. Rio Grande do Norte: Typ. do Rio Grandense, 1867. Hospital de Caridade, p.74. 139 RIO GRANDE DO NORTE..., Hospital de Caridade, 1862, p.12. 140 MARANHÃO, Pedro Velho de Albuquerque. Relatório de Pedro Velho como Inspetor de Saúde Pública em 1886. In: CASCUDO, Luís da Câmara. Vida de Pedro Velho. Natal: EDUFRN, 2008, p.144. 83 localização geográfica dos bairros de Tirol e Petrópolis: [...] situados a Sudeste de Natal nada apresentam de notável sob o ponto de vista nosologico; são ao contrário os pontos mais saudáveis de Natal, com as suas largas avenidas, sem travessas, de solo arenoso e todas as ruas normáes ás correntes dos ventos dominantes. Pouco habitados, esses dois bairros promettem a edificação da cidade mais bonita do Norte do Brasil. 141 Chamada por Januário de Suyssa Potiguar, o bairro do Tirol ainda recebeu destaque especial nessa topografia médica: Os seus ares são os melhores de Natal; os ventos que agitam aquellas franças veem do oceano bravio, em longas caminhadas atravez das densas ramarias, dando àquella zona um banho de ar puríssimo. 142 Caracterização bem diferente daquela realizada em relação à Ribeira, parte baixa da cidade: Encarando-se, porém, a questão sanitária exclusivamente sobre as condições mesographicas e nosologicas nesta parte da cidade, o higyenista não se sente á vontade, considerando que a Ribeira foi edificada de Norte para Sul, em opposição ás correntes dos ventos dominantes e cujas ruas, sufficientemente estreitas e irregulares, reclamam providencias reperadoras (sic). 143 Contudo, por enquanto, não sabemos se os “bons ares” ligavam-se exatamente ao infeccionismo da teoria dos miasmas ou a uma climatologia neo- hipocrática de valorização do ar a partir da moda dos estudos iatroquímicos. Seja como for, a pletora de idéias médicas produzidas no século XIX sobre a relação entre doença e espaço, materializada na hipervalorização do meio, não nos permite ver a associação Monte Petrópolis\ Praia de Areia Preta como casual. Embora erigido em zona urbana, quando algumas teorias médicas pregavam sua construção longe das cidades, o Hospital de Caridade Juvino Barreto localizava-se em região mais alta, distante da zona comercial da Ribeira e do núcleo da Cidade Alta, zona residencial, na época os únicos bairros da cidade. 141 CICCO, Januário. Como se hygienizaria Natal: algumas considerações sobre o seu saneamento. Natal: Atelier Typ. M. Victorino, 1920. p.10. In: LIMA, Pedro de. Saneamento e modernização em Natal: Januário Cicco, 1920. Natal: Sebo Vermelho, 2003. 142 Ibid., p.37. 143 Ibid., p.24. 84 É fato que nem todos concordavam com a sua localização, como ficou patente na matéria d’O Diário do Natal: [...] Continuamos a pensar que a casa do Monte não se presta para o hospital e que a sua instalação ali deve ser provisória. O melhor local, debaixo de todos os pontos de vista, é o antigo hospital... 144 A querela aqui, todavia, é muito mais política que científica, pois o jornal citado, opositor à família Albuquerque Maranhão e capitaneado pelo empedernido Elias Souto, não apresentou nenhum argumento médico a respeito, embora tenha insistido que a localização adequada seria o velho Hospital de Caridade “[...] debaixo de todos os pontos de vista...”. A hipótese de intervenção do pensamento médico no espaço reservado à construção do hospital parece-nos bastante consistente, pelo menos em dois pontos: a presença de médicos na condução das obras e direção da instituição nosocomial: Calixtrato Carrilho e Januário Cicco, que dirigiram o hospital, além da presença de Cândido Henrique de Medeiros, trazendo sua experiência da Santa Casa de Misericórdia de Recife (Ou seja: os médicos estavam à frente do empreendimento); a existência de um paradigma higienista, que atrelava as teorias médicas à força de execução do Estado, implementando-se reformas urbanas fundadas em um planejamento (entenda-se intencionalidade!). Assim, desespacializar o objeto hospital seria reproduzir o discurso reducionista do “Inferno de Dante” ou simplesmente apagar a carga simbólica que as espacialidades carregam, fruto de nossa própria trajetória de Homo simbolycus, incapazes de viver sem dotar as coisas de sentido, simbolizar o mundo que nos rodeia. 144 Apud MEDEIROS, Tarcísio de. Ontem, Hospital do Monte, Hoje Hospital “Miguel Couto”, p.44. 85 CAPÍTULO II VIAGEM AO INTERIOR DO HCJB: uma ‘analítica’ do espaço de cura É portanto o hospital que está faltando ao Brasil para que sua classe médica possa dar salutar lição ao mundo e melhor amparo à nação (FRADIQUE, Mendes. O Jornal, 20 de jan. 1927). A nossa crise não é de doentes para hospitaes e sim destes para aquelles. Penso, pois, que a focalização do problema deve visar, principalmente, os responsáveis pelos destinos do paiz, os homens do governo e os philantropos, para que eles, em esforços conjugados, encarem seriamente a situação e lhe deem remédio (SEIDL, Carlos. A Semana, 1928, p.18). Em 12 de setembro de 1909, num domingo, o Hospital de Caridade Juvino Barreto fora oficialmente inaugurado. O acontecimento ganhou longa matéria no jornal A República do dia seguinte, que descrevia em detalhes a solenidade festiva: Conforme noticiamos, realizou-se ontem, á uma hora da tarde, a inauguração do Hospital de Caridade Juvino Barreto. Assistiram a esse fato, entre outras pessoas, o Exmo. Dr. Alberto Maranhão, acompanhado de sua exma. Família, seu secretário e ajudante de ordens, major Joaquim soares e capitão Joaquim Anselmo, coronel Joaquim Manoel, presidente do govêrno municipal, Dr. Manoel Dantas e sua gentilíssima filha, senhorita Beatriz, Dr. Calistrato Carrilho, inspetor de Higiene, Dr. Pedro Amorim, diretor do serviço médico-legal da Polícia, coronel Joaquim Etelvino, Ricardo Barreto e Montano Emerenciano, representante desta folha. Ao servir-se um copo de cerveja, S. Excia. Congratulou-se com a diretoria do estabelecimento e com o Doutor Januário Cicco, externando a excelente impressão recebida e declarando oficialmente inaugurado o Hospital de Caridade Juvino Barreto. Tocou, durante o ato, a banda de música do Batalhão de Segurança. Terminado este, fizemos, por nossa vez, minuciosa visita às dependências do estabelecimento. 145 145 A REPÚBLICA. 13 set. 1909. 86 Bebidas, autoridades políticas e administrativas, banda de música: o hospital também era uma festa! O longo dia da celebração começara, em verdade, bem antes da 1h da tarde. Em torno das 8h da manhã, realizou-se uma missa a cargo do padre Moisés Ferreira do Nascimento, ajudado pelo acólito Antônio Fagundes, recheada de cânticos, cheiro de rosas, vela queimada e incenso. Tarcísio de Medeiros, em artigo pela revista do IHGRN, de 1959, conta com galhofa um episódio ocorrido com seu irmão durante a missa: Meu irmão Humberto Medeiros, em jejum, meio estropeado da caminhada matinal, da rua das Laranjeiras ao Monte, não resistiu. Caiu com uma vertiegm (sic), perdendo os sentidos. Removido em braços n’um quarto de primeira classe; e bastou o ar fresco do mar para reanimá-lo, más, cronológicamente, ficou sendo o primeiro assistido da seção de pensionistas. 146 E o incidente não parou por aí: Depois, serviram um lauto café, e quem dêle provou, naquela ocasião, quanto mais açúcar botava, mais salgado ficava. Foi uma hilaridade geral, quando se descobriu o equívoco. Haviam colocado nos açucareiros, sal refinado, e, quem o fez, por uma singular e feliz coincidência, não sabia que dava a provar do secular símbolo da hospitalidade. 147 A “vítima da fumaça”, e que se tornou inesperadamente o primeiro paciente do hospital, e a troca involuntária do açúcar pelo sal, são casos miúdos, banais, mas que revelam, aos olhos de Tarcísio de Medeiros, o ambiente descontraído do dia da inauguração. Opinião não compartilhada pelo Diário do Natal em matéria do dia 14 de setembro. Nela, o articulista relatou o evento de forma fria e irônica: Afinal, depois de 4 longos anos de espera, reabriu-se o hospital de caridade, não no seu antigo prédio da rua Presidente Passos, mas, na casa adquirida pelo governo do Estado para um asilo de mendicidade, que morreu antes de nascer. Mas seja como for, já não nos envergonhamos de não termos na Capital do Estado uma enfermaria, sequer para os desvalidos da sorte. [...]. 148 E depois de criticar a demora da inauguração, estendeu suas observações ao 146 MEDEIROS, Tarcísio de. Ontem, Hospital do Monte, hoje Hospital “Miguel Couto”, p.42. 147 Ibid. 148 Ibid., p.43. 87 nome do estabelecimento nosocomial: Se havia um nome, nesta terra, que merecesse figurar no alto do hospital- êsse nome era o do caridoso Padre João Maria. [...] João Maria, sim, devia denominar-se o hospital de caridade, Juvino Barreto, não. É uma engrossa aos vivos [...] Já temos praça Pedro velho, monumento Pedro velho, Vila Pedro Velho, Praça Augusto Severo, Vila Augusto Severo, Avenida Augusto Lira, Avenida Alberto Maranhão, Avenida Amaro Barreto, avenida Juvino Barreto, e agora, mais Hospital Juvino Barreto e Enfermaria Santo Alberto e Santa Inez. Oh! gente vaidosa! 149 Dirigido pelo doutor Augusto Leopoldo Raposo da Câmara, O Diário do Natal era o periódico de oposição à família dos Albuquerque Maranhão, donos do jornal A República, o que explica em parte as discordâncias presentes nas matérias jornalísticas acerca da inauguração do HCJB. Seja como for, a representação do hospital como espaço de celebração, de festa, é completamente diferente daquela relatada sobre a nossa primeira experiência hospitalar, o Hospital de Caridade, fundado 10 de setembro de 1855. Encapsulado no discurso administrativo dos presidentes de província, ou nos relatórios dos médicos que nele trabalharam, o HC era visto como “Inferno de Dante”, “Hospital-depósito”, “Ante- câmara da morte”, cadeia de suplementos150 que remetiam para uma espacialidade da doença, da morte, e não da saúde, da vida. A que se deveu, então, essa mudança de olhar? 149 Ibid. 150 Para o filósofo francês Jacques Derrida, suplemento é a qualidade da escritura enquanto forma de “manutenção” de uma “presença” que a fala não pode realizar. “[...] a fala, sendo natural ou ao menos a expressão natural do pensamento, a forma de instituição ou de convenção mais natural para significar o pensamento, a escritura a ela se acrescenta, a ela se junta como uma imagem ou uma representação. Faz derivar na representação e na imaginação uma presença imediata do pensamento à fala”. Trata -se, no dizer de Derrida, de um “socorro ameaçador” como resposta a uma situação de “miséria” da língua falada. Função suplementar do verbo que se desdobra como ‘acréscimo’, ‘excesso’ e também ‘substituição’ de uma presença. Este conceito derrideano funciona em sua teoria da escritura como um ataque à noção de representação de matriz platônica, ao considerar a escritura como criação e não mera derivação da fala, suplemento que produz imagens e ‘representações’ que não se circunscrevem a replicar os objetos primeiros. Esses suplementos podem dispor-se numa cadeia relacional, que não propriamente reproduz as coisas, os objetos da afecção, mas agora concebem outras coisas e objetos. A esse respeito, e comentando um trecho do Emílio de Rousseau, Derrida explicou: “Não se trata mais de beijar o leito, o assoalho, as cortinas, os móveis etc., nem mes mo de ‘engulir’ o ‘pedaço que ela colocara em sua boca’, mas de ‘d ispor, à sua vontade, de todo o sexo”. Assim, as imagens do HCJB são disposições mais ligadas à ‘vontade’ do autor das ‘representações’ do que ao próprio hospital enquanto objeto em si. Cf. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2011. 88 Se adotarmos uma abordagem em termos schopenhauerianos, diríamos que o HCJB do jornal A República seria mais uma “vontade de representação”151 da família Albuquerque Maranhão, que desejava ter no espaço hospitalar, ou no evento de inauguração dele, um modo de projetar-se como “moderno”, como agentes ativos da modernidade em Natal. Como vimos no capítulo anterior, o HCJB fora edificado em zona de plena expansão imobiliária, entre o Monte Petrópolis e a praia de Areia Preta, região planejada na Intendência Municipal de Joaquim Manuel Teixeira de Moura para abrigar os principais bairros da cidade: Tirol e Petrópolis, previstos na Resolução nº 55 de 30 de dezembro de 1901, no chamado Plano da Cidade Nova, “[...] um espaço criado e planejado para atender aos anseios da elite potiguar, tanto no que concerne à salubridade e higiene, quanto aos aspectos de estética urbana”152. Em frente ao HCJB, passava, desde 1915, uma linha de bonde. Espaço-valor e espaço-representação: o hospital ganhava novos contornos na ótica de uma elite que se enxergava “moderna”. Não estamos mais falando, portanto, do mesmo hospital de meados do século XIX, visto como ‘ante-câmara da morte’, ‘depósito’ de doentes, erigido às pressas para atender as exigências de um surto epidêmico, recolhendo a população pobre das ruas, evitando a difusão das moléstias em mais larga escala, tendo sua construção longe dos aglomerados urbanos. A antiga política isolacionista que costumava dispor o hospital fora do perímetro urbano cedia lugar para uma prática de inclusão do nosocômio à área urbana, perspectiva impulsionada graças à novas teorias médicas que resolviam os problemas do contágio e da infecção no interior do hospital, utilizando procedimentos de assepsia, desenvolvidos por Lister em 1867, higiene e de 151 Para o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, o mundo seria guiado por princípios irracionais, tendo a razão humana papel secundário. Nessa filosofia do impulso, que antecipa a Freud e Nietzsche, o governo da realidade estaria a cargo da “Vontade”, que é cega e irracional, espelhada na luta de todos contra todos, no domín io da discórdia e da malvadeza entre os homens, gerando o sofrimento e a dor por toda parte. Esses conflitos constituiriam uma manifestação da Coisa-em-si, espécie de autodiscórdia orig inária fruto da objetivação da Vontade. Num mundo dominado pelo ‘desejo’, pelo ‘instinto’, fadado ao desentendimento, os fenômenos da realidade dados no tempo, no espaço e na causalidade seriam transitórios, não a coisa-em-si, aparecendo sempre como “representação”. A verdade do mundo não faria parte de uma essência imutável, originária e primeira; mas resultado do combate de forças, de lutas para se impor determinado ponto de vista: “luta de representações”. É neste sentido que recorremos a Schopenhauer ao falar sobre a representação emergente sobre o HCJB presente na matéria d’A República. O HCJB descrito por Emerenciano Montano é uma representação de e para a família Albuquerque Maranhão, e não exatamente o hospital como coisa-em-si. Para melhor entendimento da filosofia shopenhaureana, cf.: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação , Iº tomo. São Paulo: Unesp, 2005. 152 FERREIRA, Ângela Lúcia et al. Uma cidade sã e bela: a trajetória do saneamento de Natal-1850 a 1969. Natal: IAB/RN: CREA/RN, 2008. p.63. 89 um trabalho de enfermagem mais eficiente.153 O hospital passou a ser espaço digno de ser visto, pois estava localizado no cimo do Monte Petrópolis, região altaneira da cidade do Natal, de onde poderia facilmente dar-se ao olhar, como também para ser dito e escrito, figurando nos artigos de jornais, crônicas, ensaios. Vizibilidade e Dizibilidade, objeto de domínios discursivos que, em certa instância, “inventam” o próprio espaço hospitalar, tornado objeto, circunscrito numa temática, remetido a teorias (conceitos) e enredado em estratégias154. Essa nova figuração do espaço hospitalar explica inclusive a própria iniciativa do articulista do jornal A República de 13 de setembro, Montano Emerenciano, quando propôs um “passeio” pelo interio r do recém-inaugurado HCJB: “Terminado êste [a exibição da banda de música], fizemos, por nossa vez, minuciosa visita às dependências do estabelecimento”. A temática da “viagem”, própria de um período de efervescência dos meios de transporte e das comunicações, com a presença constante de vapores na zona portuária, e da “hospitalidade”, com seu sentido etimológico de acolhimento, recepção, se entrelaçam naturalmente na matéria do jornal, que apresenta o espaço hospitalar como uma “casa” (Aliás, como veremos, o estabelecimento surgiu exatamente de uma casa de campo...). É assim que O Diário do Natal (14 de setembro) também o denomina: “A casa é pequena [...]”. Com efeito, acreditamos que para compreender esse novo olhar sobre o HCJB, enquanto espaço de cura, hospital terapêutico e higiênico, “comemorado” pelas elites, é necessário seguir os passos de nosso articulista d’A República, e fazer, digamos, um pequeno tour pelo interior do hospital, conhecendo seus ambientes, divisões, bem como os princípios de sua ‘analítica’ espacial, isto é, que regras ou fundamentos nortearam as múltiplas morfologias espaciais que se desdobram no interior do HCJB, dando- lhe densidade e espessura próprias, um espécie de ontos espacial, um ser do hospital que confere um volume singular à sua identidade como lugar de cura, de 153 SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guinle, a saúde e a ciência no Rio de janeiro, 1920-1940, p.180. 154 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p.43. 90 produção da saúde, nova etapa da história da assistência hospitalar no Rio Grande do Norte. 2.1 O nascimento do hospital na escritura jurídica Antes de as primeiras paredes serem levantadas e um telhado recobri- las, o hospital foi objeto da Lei, do discurso jurídico, que o instituiu e o regulamentou. Nascimento na escritura legal, transbordamento no mundo. Segundo Tarcísio de Medeiros, colhendo informações de seus irmãos, todos os preparativos tiveram início em 1905, com a reforma da casa de campo de Alberto Maranhão, atividade que estava a cargo do Diretor do Almoxarifado do Estado, Teodósio Paiva. O casarão fora comprado pelo Estado com parte do dinheiro deixado por Juvino Barreto para doação aos mais pobres, contando ainda com auxílio de dona Inês, viúva do mencionado industriário, utilizado para adaptação do prédio. O próprio pai de Tarcísio, contando com experiência na Santa Casa de Misericórdia de Recife, e convidado por Alberto Maranhão, tomou a direção das obras, sendo também o responsável, terminados os trabalhos, por viajar a Recife e travar contato com a Ordem das Filhas de Santana, que se ocupariam da administração do futuro hospital. 155 Em 17 de julho de 1909, conforme noticiou O Diário do Natal, as irmãs de Santana desembarcaram do vapor ‘Acre”, instalando-se no próprio prédio em remodelação. Eram cinco ao todo- Cosma Campani, Rosa Sampaio, Helena Maria de Menezes, Renoleta Mesati e Olindina Garavachia-, que vinham desempenhar inicialmente funções de enfermagem, pelo menos até que o governo contratasse os serviços de cuidados com os pacientes, e tendo a remuneração de 200$000 réis. 156 Um mês depois, em 10 de agosto, as irmãs Anna Ancilla Briccolli e Anna Benedetta Carrega realizaram com Alberto Maranhão as últimas negociações sobre a administração interna das enfermarias do hospital, ficando ajustado que a referida administração seria da alçada da Inspetoria de Higiene Pública e que o Estado pagaria à irmã regente a quantia mensal de 350$000 réis.157 155 MEDEIROS, T. de. Ontem, Hospital do Monte, hoje, Hospital “Miguel Couto”, p.34 -35. 156 Ibid., p.35. 157 Ibid. 91 O decreto nº 205, de 21 de agosto de 1909, sacraliza a direção das irmãs no ainda Hospital de Caridade (o nome era antigo, mas o estabelecimento já era o de Petrópolis): O Governador do Estado do Rio grande do Norte, autorizado pelo art. 7º, §3º, da lei n. 268, de 1º de dezembro do ano passado, DECRETA: Art. 3º- O serviço do Hospital de Caridade será mediante contrato, por irmãs da Ordem das filhas de Santana, a cujo cargo ficará a administração interna do estabelecimento e direção das respectivas enfermarias. § Único- A irmã regente do serviço do Hospital se comunicará oficialmente com o Governador do Estado por intermédio da Inspetoria de Higiene, repartição a que fica subordinado o estabelecimento. 158 Tínhamos, então, as primeiras “funcionárias” do hospital, cujo novo nome só aparecerá em 31 de agosto de 1909, no decreto n. 206: “Estabelece a tabela do pessoal interno do Hospital de Caridade Juvino Barreto...”159 Neste decreto, temos já a lista dos outros funcionários do HCJB, que podem ser vistos na tabela abaixo: Tabela 2- Funcionários do HCJB CLASSIFICAÇÃO GRATIFICAÇÃO Mensal Anual Um enfermeiro 50$000 600$000 Uma enfermeira 50$000 600$000 Um cosinheiro 50$000 600$000 Uma lavadeira 20$000 240$000 Uma servente de pharmacia 15$000 180$000 Um empregado do motor d’água 30$000 360$000 Um servente de enfermaria 30$000 360$000 Um hortelão jardineiro 30$000 360$000 Um creado para compras e recados 30$000 360$000 Fonte: Decreto n.206, de 31 de agosto de 1909. O antigo prédio do HC foi cedido para a instalação da Escola de Aprendizes Artífices. Todo o material remanescente do hospital foi levado para o HCJB, sob os cuidados do médico Januário Cicco, médico-cirurgião, e os antigos funcionários tiveram 158 RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.205, de 21 de agosto de 1909. Reorganiza o Hospital de Caridade, médico de polícia e Batalhão de Segurança. Actos Legislativos e Decretos do Governo. Natal: Typ. d’A República, 1910.p.85-86. 159 RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.206, de 31 de agosto de 1909. Actos Legislativos e Decretos do Governo. Natal: Typ. d’A República, 1910.p.87-88. 92 destino diverso: uns foram reaproveitados no novo hospital; outros em repartições; e o restante esteve à disposição do Estado para realocamento funcional. 160 2.2 De casa a hospital: o edifício do HCJB O Hospital de Caridade Juvino Barreto nasce a partir de uma casa. Ou melhor, da casa de campo do governador Albuquerque Maranhão, comprada em 1905 pelo próprio Estado. Localizada em parte da propriedade Sítio do Jacob, fora adquirida por Alberto Maranhão e depois vendida para Aureliano Chaves, que a transacionou com o Estado.161 Já falamos bem disso em capítulo anterior. O HCJB não nasceu do nada, do vazio, mas de um espaço até então destinado ao lazer do governador e sua família, daí talvez a festa de inauguração, a celebração, não somente do rebento hospitalar, mas da própria família Albuquerque Maranhão. “O mundo é minha representação”.162 O hospital é hospital para... A representação é sempre para um sujeito. Em 30 de abril de 1981, em comemoração ao centenário do nascimento do médico Januário Cicco, Enélio Lima Petrovich, antigo presidente do IHGRN, conta-nos com emoção seu primeiro contato com o Doutor Januário: Confesso. Tinha apenas 18 anos, em 1º de novembro de 1952, data em que faleceu o homenageado. Mas dois instantes de sua presença em mim se impregnaram. Um dia, meu pai, que negociava à rua Coronel Bonifácio, hoje Câmara Cascudo, vendo-o passar, apontou: ‘Aquele é Januário Cicco, ‘médico de família’.163 “Médico de família”, falou com orgulho o pai de Enélio. Essa figura da medicina detinha grande prestígio na época, principalmente na ausência de um hospital higiênico ou terapêutico. Câmara Cascudo, acometido de tifo quando criança, fora tratado por Januário Cicco, médico da família Maranhão, ficando de quarentena164. Ninguém esperava ser curado no Hospital de Caridade do século XIX. As famílias abastadas contratavam os serviços dos médicos em domicílio ou compareciam a sua clínica. O próprio Januário clinicava na Ribeira, na rua Dr. Sachet, em prédio onde 160 MEDEIROS, T. de. Op cit., p.39. 161 MIRANDA, João Maurício Fernandes de. Evolução urbana de Natal em 400 anos: 1599-1999, p.65. 162 SCOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação , Iº tomo. São Paulo: Unesp, 2005. p.43. 163 PETROVICH, Enélio Lima. Januário Cicco-uma ressonância no tempo. In: Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, vol.28, n.16, Nov. 1980/1981. p.20. 164 CICCO, Januário. Luiz da Camara Cascudo na intimidade. In : Luiz da Camara Cascudo (depoimentos): homenagem dos seus amigos. Natal: Centro de Imprensa, 1947. p.13. Opúsculo constante na biblioteca da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. 93 morava, no primeiro andar. Com efeito, pensar a emergência do HCJB a partir de um espaço familial é estar atento a uma tática e estratégia de poder: associar, de um só golpe, o hospital nascente com as imagens do espaço familiar, com seu corolário positivo de acolhimento e proteção, e, por conseguinte, com a própria administração de organização familiar dos Albuquerque Maranhão. A cadeia de suplementos é formada pela sequência médico-hospital- família- Albuquerque Maranhão... Aí está mais um motivo para a festa! Aliás, a própria etimologia da palavra “hospital” guarda toda essa densidade da relação com o íntimo, com o privado historicamente construído do ambiente familiar, explorada na reportagem: A palavra hospital é de origem latina (Hospitalis) e de origem relativamente recente. Vem de hospes – hóspedes, porque antigamente nessas casas de assistência eram recebidos peregrinos, pobres e enfermos. O termo hospital tem hoje a mesma acepção de nosocomium, de fonte grega, cuja significação é – tratar os doentes – como nosodochium quer dizer – receber os doentes. Outros vocábulos constituíram-se para corresponder aos vários aspectos da obra de assistência: ptochodochium, ptochotropium, asilo para os pobres; poedotrophium, asilo para as crianças; orphanophium, orfanato; gynetrophium, hospital para mulheres; zenodochium, xenotrophium, refúgio para viajantes e estrangeiros; gerontokomium, asilo para velhos; arginaria, para os incuráveis. Hospitium era chamado o lugar em que se recebiam hóspedes. Dêste vocábulo derivou-se o termo hospício. A palavra hospício foi consagrada especialmente para indicar os estabelecimentos ocupados permanentemente por enfermos pobres, incuráveis e insanos. Sob o nome de hospital ficaram designadas as casa para tratamento temporário dos enfermos. Hotel é o termo empregado com a acepção bem conhecida e universal. 165 De fato, a construção do Hospital de Caridade Juvino Barreto teve sua gênese na adaptação da casa de campo de Alberto Maranhão, reforma iniciada em princípios de 1905. Porém, não conhecemos, além dos nomes de alguns trabalhadores, todas as mudanças que foram implementadas na casa. Os jornais com que pesquisamos, A República e O Diário do Natal, se calam a esse respeito. 165 BRASIL. Ministério da Saúde. História e evolução dos hospitais, 1944, p.7. 94 Fig. 06 - Casa de campo de Alberto Maranhão, anterior a 1909. Fonte: MIRANDA, 1999, p. 67. O material mais antigo de que dispomos é uma fotografia, provavelmente do começo da década de 1910, considerando na imagem alguns signos: precariedade das instalações, sendo as paredes levantadas na técnica da “taipa”, visivelmente dois “pavilhões” separando os doentes, a cerca de madeira delimitando o terreno do hospital. Fig. 07 - Foto do Hospital de Caridade Juvino Barreto, cerca de 1910. Fonte: BODAS de Ouro das Filhas de Sant’Anna, 1934, p. 121. 95 Através desta fotografia, identificamos a antiga casa de veraneio de Alberto Maranhão, feita em madeira, e que possuía, do ponto de vista arquitetônico, característica curiosa: a presença de várias águas (inclinações do telhado), na frente e nas laterais, denuncia um modelo arquitetônico europeu setentrional, preocupado com o rigor do inverno, e tendo, por isso, de ter maior número de escoadouros para a neve não se acumular no telhado. Modelo estrangeiro de construção em solo de dunas, em zona de elevadas temperaturas! A importação de um modelo estrangeiro para a casa de campo do governador não é tão estranha quanto pode aparecer à primeira vista. Na época, a noção de “progresso” levava as autoridades administrativas, que tomavam contato com essas idéias através de viagens ao estrangeiro ou da leitura de livros e jornais, a buscarem novos rumos para as suas cidades, tomando de empréstimo os modelos europeus de “civilidade”, adotando os ideais de uma urbe “sã e bela”, num movimento frenético de intervenção nos espaços urbanos, febre de transformações, com a construção de teatros, jardins, praças, escolas, bondes, clubes, ruas e avenidas arborizadas, dirigidas pelo discurso dos médicos e engenheiros. Esse otimismo com o futuro esteve bem expresso na expansão planejada da própria Cidade Nova, onde se encontrava a casa que dera início ao hospital. Em 21 de março de 1909, em palestra proferida no Salão de Honra do Palácio do Governo, na praça André de Albuquerque, o expositor Manuel Dantas descreveu em colorido futurista e apoteótico a cidade do Natal daqui a cinqüenta anos, revelando o “desejo do novo” alimentado pelas elites natalenses. Ele conta ficcionalmente a chegada do Trem da estrada de ferro transcontinental que, partindo de Londres, passa o canal da Mancha, percorre a Europa e o norte da Ásia, atravessando o Estreito de Behring, corta a América do Norte, galga o cimo dos Andes, desce pelos campos gerais de Mato Grosso e Goiás, segue o Vale do S. Francisco, paira sobre a cachoeira de Paulo Afonso- uma fantasmagoria através das luzes de miríades de lâmpadas elétricas- e cem terminar em Natal. Milhares de passageiros fizeram esta viagem [...] Além disso, [...] o transatlântico Cidade do Natal, palácio flutuante de 40.000 toneladas, lançou ferro, despejando no cais, ruas e parques milhares de passageiros... 166 166 Apud LIMA, Pedro de. Cidade sempre nova e outros escritos. Natal: Plena, 2008.p.61. 96 Cidade cosmopolita, mas também tecnológica: Para irmos ao (morro do) Perigo Iminente há somente a dificuldade da escolha nos meios de transporte: tubos pneumáticos, aeroplanos, tramways e ascensores elétricos. [...] Num dos ângulos da praça Augusto Severo, admira-se o palácio d’A REPÚBLICA, com seus vinte andares, donde saem o diariamente três edições... [...] No alto desse edifício, num mostrador enorme, que, à noite, a eletricidade ilumina de cores caprichosas, são exibidas, de minuto a minuto, as notícias de última hora que vão chegando de todas as partes do mundo pelo telégrafo sem fio e as linhas especiais. [...] Nos hotéis e cassinos, teatros ao ar livre servidos pelo telefone e a fotografia á distância, exibem em telas luminosas as óperas e as outras peças de efeito que a esta mesma hora entusiasmam as casas de espetáculo de paris, Londres e Nova Iorque. 167 “Num mundo tão ansiosamente aberto aos valores provenientes do exterior...”168, como bem diagnosticou o historiador Raimundo Arrais, uma cópia ou decalque sem mediação cultural não configurava problema. À esquerda da mencionada foto (fig. 07), vemos uma construção que, seguramente, consistiu em expansão da casa original, distando dela poucos metros, e configurando-se como outro espaço nosofuncional, um dos pavilhões que abrigaria os enfermos. São os primórdios do HCJB, que ainda sofrerá profundas transformações. Já no final da década de 1910, temos uma fachada distinta da original, apontando estilo eclético, contando com jardim e corredores laterais. 167 Ibid., p.62. 168 ARRAIS, Raimundo. O mundo avança! Os caminhos do progresso na cidade de Natal no início do século XX. In: BUENO, Almir de Carvalho (Org.). Revisitando a História do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2009.p.169. Fig. 08 - Fachada do HCJB, década de 1920. Fonte: Fotografia “Chic”, João Crisóstomo Galvão. 97 Frontões, aberturas em arco (entrada do edifício, janelas e colunas do corredor lateral), frisos e colunas falsas (sem função estrutural, produzidas em alto relevo, aparentemente em gesso), combinadas com linhas retas que correm na fachada e na lateral, produzindo a sensação de volume, massa, solidez. Edifício ao mesmo tempo compacto e também vazado nas diversas aberturas, contrabalanço entre peso e leveza. A escolha do estilo era comum em diversas partes do Brasil até pelo menos a década de 1930, quando o modelo arquitetônico do monobloco americano começou a imperar. Comentando a arquitetura de alguns hospitais cariocas no começo do século XX- Hospital da Beneficência Portuguesa, Hospital São Sebastião e o Hospital Evangélico-, Renato da Gama-Rosa Costa descreveu o estilo que os caracterizava: Quanto à linguagem arquitetônica, vê-se o uso do neoclássico, conjugado no estilo challet da decoração e no uso dos materiais construtivos. De forma geral, o neoclássico aparece nos edifícios principais do conjunto, com destaque para as fachadas de acesso [...]. As opções pela linguagem neoclássica e em challet permaneceriam ainda em alguns hospitais na primeira década do século XX, embora já inseridos na releitura proporcionada pelo movimento do ecletismo arquitetônico, como no Hospital da Cruz Vermelha, no Hospital de Manguinhos, e naquele construído para o Instituto nacional para a Educação de Surdos. 169 169 GAMA-ROSA COSTA, Renato da. Arquitetura e saúde no Rio de Janeiro. In: PORTO, Ângela (org). História da saúde no Rio de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), p.123. Fig. 09 - Corredor lateral esquerdo do HCJB, década de 1920. Fonte: Fotografia “Chic”, João Crisóstomo Galvão. 98 A presença da figura dos jardins, por sua vez, obedecia a um triplo movimento: respondia a preceitos estéticos e filosóficos, importados da Europa, que viam nesses ambientes artificiais o domínio do Homem sobre a Natureza (por extensão, do Homem sobre a Doença); ligava-se a motivos propriamente urbanísticos, buscando “integrar” o espaço hospitalar ao restante do ambiente urbano, perspectiva nova de inclusão do hospital, de interiorização do espaço de cura na malha da urbe, resultado de um novo olhar que enxergava agora o nosocômio hospitalar como lugar de produção da saúde, e, portanto, necessário ao bom funcionamento de uma sociedade de cidadãos ; e fundava-se em critérios médicos de salubridade, que costumavam associar os jardins a ambientes aerados, capazes de dispersar os agentes patogênicos. 170 Além de introduzir uma nova sensibilidade em relação às plantas, em particular árvores e flores, o jardim operava uma função de tornar o ambiente do hospital familiar, levando o paciente a se identificar com o espaço. Aqui atuaram os mecanismos daquilo que nós chamaremos de dispositivo familiar, que intentou produzir nos saberes sobre o hospital o efeito de ‘lugar de encontro’, de ‘proximidade’, de ‘laço familiar’. 170 Ibid., p.123-127. Fig. 10 - Jard im do HCJB, década de 1920. Fonte: Fotografia “Chic”, João Galvão. 99 Tomamos emprestado o termo dispositivo no sentido em que o filósofo Michel Foucault o empregou: [...] conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. 171 O conceito aparece na década de 1970, na chamada fase genealógica, quando Foucault deslocou sua atenção para a questão do poder, desejando entender, sem se remeter ao aparelho de Estado ou ideologias, os mecanismos de dominação : “discursos”, “instituições”, “práticas” e “táticas instáveis”, isto é, técnicas, estratégias e formas de assujeitar desenvolvidas pelo poder. 172 Assim, aplicamos o vocábulo aqui no seu uso latu senso, primeiro, menos formalista que aquele manejado depois por Foucault após a publicação de A vontade de saber (1976), em que operou uma teorização completa sobre o dispositivo. 173 Embora partamos da produção de um discurso que tem como foco a família Albuquerque Maranhão, não pensamos o dispositivo expresso nos enunciados que analisamos como originários daquele núcleo familiar. O poder não está nas mãos desse grupo ou de qualquer outro, mas os atravessa, percola-os, apenas momentaneamente condensando-se nessas figuras. O dispositivo familiar é um conjunto de táticas e estratégias que buscam assujeitar os indivíduos da cidade a uma determinada configuração urbana específica. Região provinciana, no Rio Grande do Norte do começo do século XX, as referências a modelos familiares, ao espírito de comunidade, produz efeitos positivos de acolhimento, recepção e proteção que a noção de família pode oferecer: [...] a cidade ideal era moderna, arejada, limpa, com ruas retas e largas, longe dos vícios e dos antros de vícios, longe das doenças. Era o espaço da família, das boas vizinhanças, da higiene, e ar assim que 171 FOUCAULT, Michel. Sobre a sexualidade. In:______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.p.137. 172 REVEL, Jacques. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro : Forense, 2011. p.43. 173 Ibid., p.44. 100 se pretendiam as cidades, era assim que as elites e os governos pretendiam a cidade do Natal. 174 Assim, os discursos jurídicos, médico, administrativo e arquitetônico trabalharam na direção de construir figuras de integração, inclusão, buscando “soldar” os indivíduos ao espaço da urbe. É bom lembrar que o espaço hospitalar nunca fora bem visto pelas autoridades e pela população, que tinha de ser convencida de que o hospital era, naquele momento, o lugar adequado para os eventos relativos ao nascimento e à morte; que o padre, a parteira, a rezadeira e a benzedeira deveriam dar espaço ao médico, legítimo detentor do saber de cura; que a casa, espacialidade do mundo privado por excelência, não se constituía como locus adequado para o tratamento das doenças. Enfim, era preciso valorizar o hospital como espaço de cura, justificá- lo aos olhos dos habitantes, levando-os a aceitar a presença e efetividade da rede hospitalar no cotidiano das pessoas. Daí porque afirmarmos que a arquitetura do HCJB exerceu a função de integração e familiarização do hospital com o ambiente da cidade, bem como criou os liames do corpo doente com corpo hospitalar sadio. Essas tentativas de integração do hospital ao espaço urbano acompanham um largo movimento que se desencadeou no século XX, buscando destruir a antiga imagem de hospital-doença: Os hospitais urbanos cessaram progressivamente de representar potenciais focos de infecção. O número de leitos hospitalares tende a diminuir. O hospital, que antigamente se refugiava do mundo atrás de seus altos muros, abre-se à cidade e se organiza em torno de uma rua comercial onde se acotovelam profissionais de saúde e pacientes. As tentativas de hospital-dia, e depois de tratamento em domicílio, duzentos anos depois da reinvidicação da abolição dos hospitais, corroboram a ideia de uma coabitação fraternal, ou até de uma equivalência entre enfermos e saudáveis. 175 O material (imagético e discursivo) de que vão se nutrir os enunciados sobre o hospital apontam-no agora como o espaço “de dentro”, “o dentro” da cidade. Esta integração é operada não somente no nível da arquitetura, da localização espacial no Monte Petrópolis, e nas proximidades do balneário de Areia Preta. Podemos acrescentar 174 VIEIRA, Enoch Gonçalves. A construção da natureza saudável em Natal (1900-1930). 2008. Dissertação (Mestrado em História)- defendido no programa de Pós-graduação em História da Universidade federal do Rio Grande do Norte. 2008, p.111. 175 MOULIN, Anne Marie. O corpo diante da medicina. In: COURTINE, Jean-Jacques (Dir.). História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. 3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. p.17. 101 com igual télos a presença da linha de bonde, inaugurada em 1915, interligando o bairro da Ribeira com a Cidade Nova, alçando o HCJB à posição de equipamento urbano indispensável a uma cidade que cresce em população e se expande espacialmente. Não é de estranhar, com efeito, que o primeiro paciente oficial do HCJB, atendido na manhã de 10 de setembro de 1909, tenha sido um operário da Great Western, tomado de um inchaço na mão direita produzido por um “fleumão.”176 Tratava-se de um sujeito histórico próprio do ambiente urbano. O próprio Plano da Cidade Nova já previa a construção de ruas e avenidas arborizadas, bem como praças ajardinadas, que se baseava em modelos europeus, como a Paris do Barão de Haussmann, espelhando os ideais da cidade-jardim propostos por Ebenezer Howard na década de 1890.177 176 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Livro do Movimento Hospitalar, 1909, t.1. 177 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo : Companhia das Letras, 1988. p.247. Fig. 11 - Vista geral do HCJB. Fonte: CICCO, 1920. 102 Esta febre das praças ajardinadas aportava também na cidade do Natal no final do século XIX e começo do XX, conforme analisou o historiador Raimundo Arrais: Foi na construção de jardins nas praças da cidade que se deu fortemente essa convergência entre o zelo sanitarista e a busca do prazer estético. Os jardins, espaços públicos dotados de arborização, bancos, chafarizes e pequenas edificações como quiosques japoneses ou pagodes chineses (tributos prestados ao espírito cosmopolita do fim de século), estátuas e monumentos proporcionavam aos moradores um ambiente público aprazível para passeios e deleite artístico com as exibições das bandas de música. 178 E a iniciativa não provinha somente do Estado, mas a própria população se engajava na construção desses jardins, mostrando o quanto esta “sensibilidade” estava difundida entre os habitantes da cidade: Ainda no final do século, alguns moradores das vizinhanças da Praça André de Albuquerque, na Cidade Alta, estavam reunindo recursos para construir um jardim que deveria dispor de bancos e de um caramanchão. O governador prometia ao público ‘uma boa praça, formosa e saneada’. O jardim foi concluído em 1909, com projeto do arquiteto Herculano Ramos, incluindo um pavilhão central e um coreto de ferro, além de uma fonte encomendada da Europa, ‘toda em ferro fundido e de alto valor artístico’. 179 Embora o jardim do HCJB que figura na foto seja simples geometria de disposição das plantas, não abarcando o complexo ajardinado de praça-banco-quiosque , ele participa do mesmo movimento de acolhimento dos “vegetais’ no espaço urbano, de paisagem para descanso da visão (estética), de fatores de saúde (ar limpo) e sociabilidade. Espaços que separam os indivíduos, delimitam “o fora” e “o dentro”, estabelecem posições, atribuem lugares e outorgam funcionalidades: a arquitetura do HCJB, com sua fachada, seu corredor lateral, seu pequeno jardim, paisagem exterior de nossa imagem fotográfica, impõe ao olhar do transeunte os limites visíveis entre o espaço do doente e o do homem sadio, distinção espacial calcada no modelo do “encarceramento”.180 Podem ser tratados como enunciado181, que funciona segundo o 178 ARRAIS, R. Op. cit., p.164-165. 179 Ibid. 180 REVEL, J. Op. cit., p.50. 181 Em sua proposta teórico-metodológica de ‘análise do discurso’, Foucault define o conceito de enunciado de um modo diferente das abordagens tradicionais. Nos aportes metodológicos convencionais, o enunciado é visto como uma unidade atômica primária, recortada segundo modelos de uma ordem gramat ical ou lógica, conduzindo a escolhas analíticas que normalmente recaem no nível da frase, da proposição, ou do ato de fala (speech act), por exemplo. Para Foucault, é inútil “procurar o enunciado 103 princípio do externo/interno, dentro/fora, construindo um ontos do espaço hospitalar, descrevendo os elementos que separam o HCJB da cidade, dando- lhe sua existência própria. Ao mesmo tempo, tais elementos do enunciado integram o espaço hospitalar na urbe, fazem-no parte da cidade e não um Outro fora dela. A arquitetura funciona como membrana permeável, que separa dois mundos sem pertencer por completo a nenhum deles: um espaço em negativo, um entre- lugar. 2.3 Cortar e costurar o espaço-corpo: sejam bem-vindos à mesa de operações do professor Gosset! Admirar a fachada no estilo eclético, passear pelos corredores, sensibilizar- se com o jardim... Mas ainda estamos fora do HCJB, e o convite do articulista d’A República, Emerenciano Montano, era para um tour pelo interior do hospital, um “passeio” pelas suas dependências. Sigamos então nosso anfitrião: Na sala de cirurgia, vimos a moderna mesa de operações do professor Gosset, mesa para curativos, lavabo-ambulância, mesa prateleira para pensos, um armário com o arsenal cirúrgico, contendo ferros para as necessidades e alta cirurgia, pulverizador a vapor, para desinfecção das salas, estufa para esterilização dos ferros etc. A escolha da sala de cirurgia como primeiro espaço da “visita” é sintomática: ela não obedece a critérios de orientação espacial tomada por qualquer transeunte, isto é, quem entrava no HCJB não topava de frente com esta sala, mas com o lugar da recepção e da capela, descrita pelo jornalista em momento posterior. A “moderna mesa” e os “ferros” funcionam como materiais para composição de enunciados sobre a modernidade, que justificam a celebração do espaço médico, da cirurgia, que é intervenção no corpo individual, tal como desejavam junto aos grupamentos unitários de signos. Ele não é nem sintagma, nem regra de construção, nem forma canônica de sucessão e de permutação, mas sim o que faz com que existam tais conjuntos de signos e permite que essas regras e essas formas se atualizem”. O enunciado, então, não é um princíp io de individualização dos conjuntos significantes, mas uma função que situa as unidades significativas em um espaço de replicação e cumulação, devendo preencher, para que possa ser caracterizada como tal, pelo menos mais três condições, além da já mencionada fuga do campo dos signos: pertencer a um domín io associado, adquirir existência material, possuir uma relação funcional com o sujeito do enunciado. Assim, detectar enunciados sobre o espaço hospitalar não se confunde com a escolha metodológica desta ou aquela frase ou proposição considerada nuclear do ponto de vista do significado e, a partir dela, construir um ed ifício interpretativo. É preciso apreender a ‘lógica’ das relações enunciativas ‘internas’ que conferem sentido às afirmações no nível dos signos, a força do jogo de relações entre os enunciados, sem buscar fora do texto a causa ou origem do sentido do enunciado. Cf.: FOUCAULT, Mich el. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 104 higienistas e sanitaristas investir no corpo social, tornando-o saudável. O corpo individual que se estende na mesa do “professor Gosset” também é o corpo da cidade. De ferro são os bondes, os trens da Great Western, os coretos das praças, os postes de iluminação pública, os automóveis, os transportes marítimos... Daí a primazia deste espaço na vizibilidade do nosso jornalista, que, ao dizer a sala de cirurgia, objetiva-a no discurso, promove a construção discursiva do espaço cirúrgico familiar, asséptico. “Nós vimos...”, afirmou o articulista-guia, quer dizer, somos testemunhas da tecnologia ali empregada, do aparato técnico, do “arsenal” (afinal, é uma guerra contra a doença...) à disposição do médico-cirurgião, função desempenhada, àquela altura, pelo doutor Januário Cicco, conforme decreto n.205 de 21 de agosto de 1909.182 Aliás, o exercício da cirurgia no HCJB esteve exclusivamente nas mãos de um único médico, o doutor Januário Cicco, por longos anos a fio. O também médico José Tavares da Silva, que conviveu pessoalmente com Januário, relatou com admiração seu trabalho no âmbito da cirurgia e as dificuldades encontradas no seu exercício do bisturí: [...] enveredou pela cirurgia, conquistando destarte a estima e consideração de seus contemporâneos. Para isso construiu um centro cirúrgico, onde operava pobres e ricos de todo o Estado. [...] Bem se pode imaginar a carência dos recursos daquela época e os riscos a que se expunha o cirurgião numa cidade pequena. 183 E ainda acrescentou ao seu repertório de elogios uma espécie de “ars” ou “aistesis” da técnica cirúrgica: 182 No jornal A República de 4 de fevereiro de 1911, aparece na Parte Official, referente a 2 de janeiro, um acto do governador nomeando Januário Cicco para o cargo de médico -cirurgião e, na mesma mensagem, encarregando o referido médico de outros gabinetes do HCJB, como segue: O Governador do Estado resolve nomer nomer o dr. Januário Cicco para exercer o logar de médico-cirurgião encarregado da sala de operações e das enfermarias civis do Hospital, inclu indo a de maternidade, e da sala do banco para o receituário externo, ficando-lhe marcado o praso de 8 dias para solicitar o t ítulo e assim o exercício. O Governador do Estado resolve nomear o medico-cirurg ião do Hospital de Caridade dr. Januário Cicco para encarregar-se dos Gabinetes bacteriológico e electro-hydrotherapico com a gratificação annual de 1:800$. Oficialmente, portanto, o dr. Januário fora nomeado medico-cirurgião em janeiro de 1911, embora exercesse as funções desde 1909. 183 SILVA, José Tavares da. Januário Cicco. Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, ano 23, n.11, 1974, p.35. 105 No início da minha vida profissional, tive muitas vezes o ensejo de testemunhar suas qualidades inatas de cirurgião. Sua habilidade manual, a destreza e elegância de seus gestos, a rapidez e firmeza com que impunhava o bisturí, tudo isso deixou indelevelmente em meu espírito, a convicção de que ele teria sido um grande cirurgião, se em outro ambiente tivesse vivido. 184 Pensava-se aqui a cirurgia como dom, habilidade desenvolvida mediante o domínio pleno da técnica. O corpo ferido era a Natureza que precisava ser corrigida, reequilibrada, assujeitada ao Homem. A cirurgia era um tour de force, uma invasão em um corpo já invadido, dilacerado, multilado, doente. Por isso, a necessidade de uma “tecno-estética” apurada, de um “arsenal” para a guerra contra Natureza. Os resultados dessa luta sem trégua podia ser medida pela ousadia da intervenção no corpo enfermo: Embora a alta cirurgia fosse uma temeridade naquela época, ninguém lhe pode tirar [a Januário Cicco] o mérito de ter sido o primeiro no Estado a praticar uma laparatomia. Conhece-se a história de um enorme cisto de ovário por ele operado. 185 A “laparatomia” é uma intervenção cirúrgica realizada no abdômen com o propósito de obter um diagnóstico preciso, examinando-se os órgãos abdominais e tratando das áreas afetadas, podendo-se até retirar partes de tecido para exame de biópsia. A operação do cisto de ovário deu-se em 1913 e tornou-se caso famoso, relatado extensamente no jornal A República. Luís da Câmara Cascudo, em discurso de recepção a Januário Cicco na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, em 15 de outubro de 1939, comentou elogiosamente o desempenho cirúrgico de Januário no HCJB, caracterizando a gênese do trabalho na cirurgia dos primeiros tempos a partir dos instrumentos 186 utilizados: “Como estamos distantes do velho Hospital, abrigado na indiferença, com seu serrote para amputação, sua meia dúzia de cegos bisturis e suas pinças sem pontas?...” 187. Já é possível imaginar quão penosa deveria ser uma sala de cirurgia nos primeiros anos... 184 Ibid. 185 Ibid., p.36. 186 Os instrumentos cirúrgicos do Hospital de Caridade, segundo o despacho n.173, publicado no jornal A República de 19 de agosto de 1908, eram adquiridos mediante compra realizada fora do Estado, e tinham liv re direito de aduana. Talvez a prática se estendesse posteriormente também ao HCJB. Cf.: A REPÚBLICA. Varias, 19 ago. 1908. 187 CASCUDO, Luís da Câmara. Saudação do dr. Luís da Câmara Cascudo ao acadêmico Januário Cicco. Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, vol. 1, 1951, p.50. 106 Cascudo ainda nos fornece uma caracterização da cirurgia abdominal, pintando-a em cores tenebrosas: Aí assistimos vossas batalhas cirurgicas, comentadas pela cidade, a cirurgia abdominal, a mais misteriosa, irregular e inesperada de todas, aquela que escolhe como campo operatório o que se chama, para todos os médicos do Mundo, a boite de surprise ... 188 Os relatórios médicos sobre o HCJB contidos nas Mensagens dos Governadores (1900-1930) não especificam com clareza as modalidades de cirurgia praticadas na época, embora comecem a aparecer na década de 1920 registros de pequenas e médias cirurgias realizadas nas Seções de Oftalmologia (6 em 1923; 3 em 1924: o gabinete fora instalado em 1923, sob a responsabilidade do oftalmologista Adolfo Ramirez), Odontologia ( 63 em 1925: o primeiro cirurgião-dentista fora contratado em 1923!) e no próprio Ambulatório ( 86 em 1924). Isto não significa que outras intervenções cirúrgicas não fossem realizadas anteriormente, mas apenas uma falta de registro sistemático, que só veio a surgir com a criação da Diretoria Geral de Higiene e Saúde Pública, reorganização da antiga Inspetoria Geral de Higiene e Assistência Públicas, pelo decerto n.148 de 1 de setembro de 1921, que instaurou a prática dos Boletins de Estatística Demografo-Sanitária.189 A tabela abaixo reproduz os números a respeito das cirurgias praticadas no HCJB e toma como referência os relatórios, mensagens e discursos dos governadores do Rio Grande do Norte entre 1910 e 1930: Tabela 3- Operações realizadas no HCJB ao longo de 20 anos ANO Nº DE OPERAÇÕ ES TIPOS TO TAL Pequena Média Grande 1910 42 - - - 42 1911 31 - - - 31 1912 39 - - - 39 1913 20 - - - 20 1914 - - - - - 1915 - - - - - 1916 - - - - - 1917 - - - - - 188 Ibid. 189 RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.148, de 1º de setembro de 1921. Dá regulamento á Directoria de Hygiene e Saúde Pública. Actos e Legislativos e Decretos do Governo . Natal: Typ. d’A República, 1922. p.146-197. 107 1918 410 67 - - 410 1919 - - - - - 1920 - - - - - 1921 55 10 - - 55 1922 107 - - - 107 1923 42 - - - 42 1924 146 - - - 146 1925 128 - - - 128 1929 812 39 302 471 812 TOTAL 1746 operações cirúrgicas Fonte: Mensagens dos governadores (1910-1930). Como se percebe, o ano de 1929 teve o maior índice de cirurgias das três primeiras décadas, talvez refletindo as reformas empreendidas no hospital ou a maior confiança do pacientes em se submeter ao processo cirúrgico no HCJB. Segundo o médico José Tavares, durante o primeiro terço do século XX, muitos pacientes preferiam ser cirurgiados em outros estados.190 As 1746 operações que nos revela a tabela, de alguma forma, apontam para um privilégio da atividade cirúrgica no século XX. Até o século XVIII, pelo menos, a figura do cirurgião fora persona non grata entre a população e vista como hierarquicamente inferior ao próprio médico. A valorização se deu na França, quando a concepção de doença passou pelo exame das lesões corporais: a enfermidade era agora localizada em um órgão específico, que necessitava de intervenção em um local definido, condição que possibilitou o surgimento da medicina hospitalar. 191 Como diagnosticou o filósofo francês Michel Foucault192, o hospital transformara-se em um espaço de “acúmulo e formação de saber”. Olhar “o ser da doença” para saber mais sobre ela... Saber que nem sempre se apoiava nessa experiência essencial com o corpo, que fundou o paradigma da anatomopatologia, mas continuava muitas vezes profundamente livresco, como criticou em seus apontamentos o médico do HCJB Januário Cicco: Por um defeito immanente do ensino médico no Brasil, entulhado de programmas e sem recursos para a exemplificação, sem laboratórios nem hospitaes, o jovem doutor em sciencias medico-cirurgicas conhece apenas pelos livros algumas doenças que teve tempo de 190 FERREIRA, José de Anchieta. Fatos e fotos. Natal: RN Gráfica e Editora, 1996. p.2-3. 191 BYNUM, William. História da medicina. Porto Alegre: L&PM, 2011.p. 56. 192 FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. In:______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p.110. 108 passar para as provas de habilitação, e nem uma porque houvesse procurado diagnosticar, pondo em pratica desde os auxílios da anamnese aos recursos da therapeutica. 193 E continuou: Sem esse convívio á borda dos leitos, ouvindo historias dissemelhantes, mas muitas vezes com a mesma natureza mórbida e origem única; sem a constante observação de todos os dias, inquirindo e perquirindo, meditando e comparando, ninguém é capaz de, sem sobressaltos no coração, encara o primeiro doente, impassível e confiante. 194 O comentário de Januário mostra o seu reconhecimento da importância da experiência clínica hospitalar para a formação dos médicos-cirurgiões. Isto para não falar nos poucos profissionais que trabalhavam nos hospitais das regiões provincianas do Brasil. Na Mensagem do Governador Alberto Maranhão 195, de 1910, elogiou-se a iniciativa do médico Affonso Barata, Inspetor de Saúde do Porto, quando, “sem remuneração e accedendo espontaneamente”, auxiliava ao médico Januário Cicco em algumas operações cirúrgicas. Em entrevista cedida ao jornal A República196, em 18 de novembro de 1928, o cirurgião José Tavares, médico do HCJB, mencionou algumas causas de intervenções cirúrgicas realizadas no hospital, como “quisto de ovário”, “hérnia”, “pedra na bexiga”, “fibroma uterino”, “histerectomia”, “annexites” (inflamação de trompas e ovário). E não poderia faltar, é claro, “a mais misteriosa, irregular e inesperada de todas”: Não faz muito tempo que entrou no nosso serviço procedente de Ceará-Mirim um homem com um ferimento penetrante no ventre por carga de chumbo. Fizemos a Laparotomia exploradora e encontramos uma alça intestinal muito lesada e assim também o grande epiplon. Praticamos a ressecção do intestino numa extensão de 25 centímetros de comprimento seguida de anastomose latero-lateral e também a do grande epiplon que estava quase todo infiltrado de chumbo. 197 Operação “misteriosa”, mas vencida pela técnica do cirurgião: Hoje esse homem se acha perfeitamente restabelecido, comendo tudo e de tudo, apesar de lhe faltar ao ventre aquela porção do intestino. E é 193 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: ensaios de crítica médico -social, p.7. 194 Ibid. 195 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da sétima Legislatura em 1º de Novembro de 1910 pelo Governador Alberto Maranhão. p.11. 196 FERREIRA, José de Anchieta. Op. cit., p. 1-4. 197 Ibid., p.2. 109 deste modo que vamos ganhando pouco a pouco a confiança do público. 198 A preocupação com a “esterilização” do material cirúrgico em estufas e a “desinfecção” do ambiente eram práticas comuns nas salas de cirurgia, e se baseavam na teoria bacteriológica de Pasteur, que atribuía aos microorganismos a causa das doenças em geral.199 Submeter os equipamentos cirúrgicos a altas temperaturas impediria a proliferação de bactérias e vírus. Já a desinfecção, que consistia no lançamento de “vapores de ar quente” nos espaços, era prática mais antiga ligada à pseudoteoria dos miasmas: vaporizar o ambiente limparia automaticamente o ar dos “miasmas deletérios”. Fig. 12 - Interior da sala de cirurgia. Fonte: Fotografia “Chic”, João Galvão. Na fotografia acima, provavelmente na década de 1920, quando a sala fora reformada, vemos a ergonomia do ambiente cirúrgico, que se configura em amplo espaço físico, de piso mosaico e paredes de cimento-armado. Aliás, essa escolha do piso ligava-se às concepções de asseio e limpeza do ambiente advogado pelo discurso higienista no século XIX e começo do XX. No antigo Hospital de Caridade, o da Salgadeira, os presidentes de província ou os próprios médicos em seus relatórios já reclamavam da poeira/sujeira que se acumulava no chão do hospital, resultado de um 198 Ibid., p.2-3. 199 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública, p. 74-76. 110 piso frágil que soltava detritos. A poeira que vinha da rua também era considerada perniciosa ao espaço hospitalar, pois estava relacionada à proliferação de microorganismos patogênicos, afinal “[...] Os micróbios existiam aos bilhões, e nenhum lugar estava a salvo de sua presença”.200 Coextensivamente, um piso liso, contínuo, sem fraturas, facilitava a limpeza do ambiente por meio do varrimento e da lavagem com água e desinfetante. O processo de identificação e soldagem da poeira à sujeira remete ao tema fundamental do acúmulo, do excesso, do transbordamento, que vai dirigir o discurso higienista para a limpeza das ruas, das casas, da retirada dos monturos, do lixo, e até das pessoas, motivo de um medo da “aglomeração”, da “multidão” (dispositivo de controle instituído na nova relação entre Estado e população), substituindo este espaço irregular, sinuoso, fraturado, pelas “superfícies lisas, retas, leves e velozes”, modelares das novas formas físicas dos corpos modernos.201 200 SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Higiene e h igienis mo entre o Império e a República. In: DEL PRIORE, Mary; AMANTINO, Márcia (Org.). História do corpo no Brasil. São Paulo: Unesp, 2011. p.306. 201 Ibid., p.305. Fig. 13 - Sala de cirurgia do Hospital Santo Amaro, em Recife. Fonte: Bodas de Ouro..., 1933, p.66. 111 Uma certa sensibilidade social atravessava o espaço hospitalar e cruzava com o discurso higienista na temática da limpeza. Havia no final do século XIX, já bem difundida entre a população de renda mais modesta, uma relação entre a educação, hospitalidade e espaço: ... a exposição de uma casa limpa também significava uma prova de trabalho honrado e virtuoso. As roupas brancas, lavadas e penduradas nos varais dos quintais, assim como as panelas areadas- com areia misturada à água- e expostas para secar sobre o peitoril das janelas, também possuíam tal função, assemelhando-se a troféus obtidos pela labuta diária. 202 “Trabalho honrado e virtuoso” que se comunica com a cor do próprio espaço: o branco dominante em nossa sala de cirurgia será o significante maior da limpeza do lugar, da transparência das instalações e do “caráter” dos funcionários. Não eram somente os corpos que se banhavam, num momento de valorização crescente da higiene e da assepsia, mas os espaços também. Combate às impurezas visíveis e invisíveis a olho nu. As portas, janelas e o teto são de madeira, resquícios do velho casarão de campo de Alberto Maranhão. Preenchendo o interior, os instrumentos de trabalho do cirurgião: cama de ferro, duas mesas cirúrgicas, um armário com os instrumentos de ferro utilizados na cirurgia, prateleira móvel, estufa e pias, escarradeiras com tripé. A altura e a posição das janelas também obedeciam a imperativos higiênicos, pois se relacionavam à medida de “insolação” que o ambiente deveria acolher e ao movimento de “aeração” do espaço, daí a posição das mesas cirúrgicas e a cama de ferro, colocadas em frente às aberturas representadas pelas janelas. Aeração, insolação, brancura dos espaços: domínio do tema filosófico da Luz kantiana que esclarece, liberta e cura, fazendo irromper um espaço de abertura plena ao olhar, uma espécie de pan-opticon. 2.4 A emergência do espaço clínico das vozes: pode o paciente falar? O re-conhecimento do hospital como espaço terapêutico não poderia dispensar uma boa conversa entre o médico e o paciente. O médico e escritor Moacyr 202 Ibid., p.293. 112 Scliar comentou, em linguagem literária, a respeito da importância das vozes na medicina: A história da medicina é uma história de vozes. As vozes misteriosas do corpo: o sopro, o sibilo, o borborigmo, a crepitação, o estridor. As vozes inarticuladas do paciente: o gemido, o grito, o estertor. As vozes articuladas do paciente: a queixa, o relato da doença, as perguntas inquietas. A voz articulada do médico: a anamnese, o diagnóstico, o prognóstico. Vozes que falam da doença, vozes calmas, ansiosas, vozes curiosas, vozes sábias, vozes resignadas, vozes revoltadas. Vozes que se querem perpetuar; palavras escritas em argila, em pergaminho, em papel; no prontuário, na revista, na tela do computador. Vozerio, corrente ininterrupta de vozes que flui desde tempos imemoriais, e que continuará fluindo. 203 Esse papel do som e da voz, do contato direto entre médico e paciente, não foi esquecido pelo articulista d’A República. Depois de “ver” a sala de cirurgia, Emerenciano Montano, acompanhado das autoridades políticas presentes no evento de inauguração do HCJB, convida o leitor do jornal a conhecer mais um espaço da “casa”. Entremos então com o jornalista, sem cerimônia: Penetrámos, em seguida, na Secretaria e Parlatório, que serve ao mesmo tempo de gabinete de consultas do médico, onde vimos o retrato do saudoso coronel Juvino Barreto, patrono do estabelecimento, e o d Exmo. Dr. Alberto Maranhão seu fundador. 203 SCLIAR, M. A paixão transformada: história da medicina na literatura, p.7-8. Fig. 14 - Gabinete e secretaria do HCJB. Fonte: Fotografia “Chic”, João Galvão. 113 Como nos descreve Emerenciano, o espaço clínico era partilhado com a Secretaria do hospital, desempenhando uma dupla função: administrativa e médica. Essa convivência de funções distintas em um mesmo local se explica através da própria história do hospital. Nascido da adaptação de uma casa de campo, o HCJB foi se expandindo pouco a pouco conforme as circunstâncias que se apresentavam. Remodelações, pequenas reformas (caiação, limpeza, troca do piso etc.), aumento das dependências (novas enfermarias, jardim, seção de maternidade etc.), tudo realizado ao sabor do momento, muitas vezes produto de doações, como foi o caso de parte da herança deixada pelo industriário Juvino Barreto (citado por Emerenciano) para a construção do próprio hospital. Aliás, a disposição da Secretaria, tendo na entrada do espaço as fotos emolduradas de Juvino Barreto e do governador Alberto Maranhão, guarda importante relação. Hábito burguês clássico do autoretrato em posição hierática, indicando sobriedade, austeridade, controle, poder, os quadros cumprem função de identificar os personagens com o espaço hospitalar, fazendo com que o expectador que entrasse no ambiente visse nessas figuras os significantes do espaço familiar, do chefe de família que “cuida” de seus parentes, que zela pelo bem-estar deles. Dispositivo sempre presente nos enunciados que objetivam construir o hospital como espaço da cidade, da família. Completando o conjunto dos quadros, vemos ao centro superior e à direita, respectivamente, a representação de uma madona (Rosa Gattorno ou Santa Ana?) acolhendo uma criança e de um papa (Pio IX?). Tais referências guardam correspondência direta com as responsáveis pela administração do HCJB: as Filhas de Santana. O temporal e o espiritual convivem na direção do nosocômio, que, embora seja construído e festejado pelo nosso articulista como “moderno”, contém traços indeléveis do “antigo”. Todavia, há um quadro de Alberto Maranhão, à direita da foto, ocupando a mesma linha imaginária horizontal que as obras da madona e do papa, o que aponta para “relações de poder” travadas no hospital entre as representantes da Ordem de Santana e as autoridades político-administrativas: “efeitos de poder” no interior da Secretaria- Gabinete. Hospital- limite, transição, dehors... As freiras exerceram importante papel nesse espaço de cura: durante oito anos, só havia um médico trabalhando no hospital, o 114 doutor Januário Cicco, sendo auxiliado posteriormente pelo prático José Lucas do Nascimento, conhecido como “José enfermeiro”, e o médico Octávio Varella, em 1915. Uma pequena mesa de madeira sustentando um livro aberto, uma caneta- tinteiro, um banco estilo barroco e um suporte para chapéus e bengalas (todos masculinos), eis o consultório médico e a Secretaria. Espaço reduzido em se tratando de atividades tão importantes, talvez a fala, a língua ou o sopro da alma204, como diria Derrida em sua análise de Rousseau, fosse secundária em relação à escritura do lugar e das práticas. Ou seja: a doença falava por si só, não necessitando de suplementos da voz do paciente. O que diziam médico e paciente? Que espécie de diálogo entabulavam no interior do gabinete? E as freiras, que conversas entretinham com médicos e doentes? Não sabemos exatamente. Mutismo das fontes, tradição do segredo médico ou simplesmente Mal de arquivo. Silêncio bastante estranho se considerarmos que o HCJB atendeu, de acordo com as anotações do médico Januário Cicco 205, ao longo de 19 anos, cerca de 19000 casos de internação! Somente em 1919, de acordo com a Mensagem do Governador Ferreira Chaves206, foram cerca de 926 atendimentos no consultório médico. A clínica hospitalar certamente foi bastante requisitada... As conversas entre médico e paciente podem ser recuperadas no registro das anotações do Dr. Januário Cicco, compiladas e publicadas no livro Notas de um médico de província (ensaios de crítica médico-social), em 1928. As anamnese da casuística clínica que aí aparece é reproduzida em discurso indireto, isto é, com as palavras do médico em lugar do paciente, o que torna quase impossível saber em detalhes a “fala” do doente, seus sentimentos, emoções, gestos e impressões pessoais. O registro do médico dirige-se ao plano da positividade dos casos a analisar, detendo-se aqui e acolá em curiosidades sobre a visão de mundo dos pacientes. Vejamos um exemplo típico: Entre os innumeros processos de tratamento usados pelo povo rustico, um me parece interessante pela originalidade. 204 Sobre uma análise concreta da relação entre língua e escritura, ver: DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2011.p.173-202: “Este perigoso suplemento...”. 205 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: ensaios de crítica médico -social, p.247. 206 RIO GRANDE DO NORTE. Memsagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da décima legislatura em 1º de novembro de 1919 pelo governador Desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. Commercial J. Pinto, 1919. p.37. 115 A esplenomegalia, isto é, o augmento de volume ou hyperthrophia do baço, é conhecido na classe pobre pela designação de “dureza”; e para cural-a, referiu-me um doente da clinica hospitalar que fizera, sem resultado, “o tratamento do ovo”, que consistia em fervel-o na propria urina e collocar na bocca de um formigueiro; e á medida que as formigas comem o referido ovo, a moléstia vae também desapparecendo. 207 Podemos até imaginar as reações de um médico de formação positivista ao escutar um tal relato no seu gabinete... Januário, no entanto, não se preocupou em registrar qual fora seu prognóstico em relação ao paciente nem qual receituário prescrevera a ele. Mera banalidade para uma ciência tão séria como a Medicina! Em outro caso, mais extensamente abordado, Januário deixa-nos entrever melhor os procedimentos clínicos do contato entre médico e doente, valendo a pena acompanhar passo a passo suas observações: Occupou, certa vez, o leito n.24 do Hospital “J.B.”, um rapaz de 19 annos, muito pálido, pardo, solteiro, agricultor, cujo passado e antecedentes familiares não acusavam manifestações luéticas. Contou que, numa limpa de roçado, fora mordido por uma cascavel, bem no tendão de Achilles, onde se notava uma cicatriz de queimadura, que lhe fizera um curandeiro para livral-o da morte. Disse mais que, quando menino, teve “as febres”, designação genérica que se prende ás infecções febris do apparelho digestivo e ao paludismo; sarampão e “papeira” ou cachumba.208 A descrição é precisa e segue um roteiro: dados gerais do internado (cor de pele e profissão, aspectos comportamentais imediatos: não é “luético”), anamnese que se compõe de conhecimento dos antecedentes familiares (já teve “febres”, remetendo a doenças com sarampo, cachumba ou paludismo), sintomas e sinais do paciente (cicatriz de queimadura no tendão). Após essas observações, chega a hora dos exames: A’ palpação não se sentia nenhum órgão abdominal mudado de relações; a percussão limitava os lugares occupados normalmente por cada órgão. A’ escuta, ouvia-se nitidamente sopros por todos os focos; os ápices nada revelaram, e sentia-se, de alto a baixo, claramente, a integridade dos pulmões. 209 Deitado em um leito, nosso doente era examinado diretamente pelo médico, recebia a afecçção experiente e disciplinada, como preconizava o diagnóstico físico das 207 CICCO, J. Op cit., p.81. 208 Ibid., p.318. 209 Ibid. 116 Faculdades de Medicina: inspeção (olhar para o paciente), palpação (toque), percussão (bater no peito ou abdômen) e auscultação (sons do corpo). Corpo a corpo entre médico e paciente, agora só restavam os exames laboratoriais, que auxiliariam no diagnóstico da doença: O exame nyctemeral da urina, cujo volume foi de 890 c.c., accusava vestígios de albumina, baixa de uréa e do chloreto de sódio e não havia cylindruria. As pesquisas coprologicas demonstraram apenas ovolus de tricocephalus. Que deveria ser? Nephrose? De que natureza? A baixa de hemoglobina era de 60%. Não havia ruído de galope; tudo indicava que os sopros eram anorgânicos. 210 O exame da urina e das fezes ainda não permitia conclusão satisfatória. Restava a hipótese da nefrose (aumento da taxa de proteínas na urina), aguardando-se as reações do corpo do paciente para se dar um diagnóstico mais preciso. Enquanto isto, Januário observava o enfermo e reavaliava as apreciações preliminares do diagnóstico físico: Fiquei, entretanto, na hyphotese de uma nephrite, cuja natureza escapou na história pregressa do enfermo, que não usavam bebida alcoólica e datavam de muitos annos as ‘febres” que contrahira. Submettido á regime lácteo e á medicação electiva da funcção renal, o estado do enfermo, a principio immutavel, foi-se aggravando a pouco e pouco até a morte, quando pelo nariz, boca e anus sahiram innumeros ascaris, com surpresa do laboratório official, que assignalou na ficha do rapaz apenas óvulos de trococephalus. 211 A análise deste caso mostrava aos médicos toda a sua limitação diante da doença. Mesmo pondo em prática todos os procedimentos recomendados, anamnese, diagnóstico físico e exames de laboratório, o enfermo veio a falecer. A voz do paciente, a fala plena, não se condensou na escritura médica: foi capturada por esta, “confiscada” na “ordem do discurso”. O paciente não pôde falar por si só, precisava ser representado, re-apresentado segundo as categorias e esquemas da medicina científica, que o classificava como “rústico”, “supersticioso”, incapaz de falar sobre si mesmo. Daí a despreocupação em registrar a fala viva dos doentes, a não ser de forma indireta, com deslocamentos, metaforizações. A voz do enfermo precisa ser traduzida, substituída pelo léxico correto da medicina especializada: 1) “febres” significa paludismo, cachumba ou sarampão; 210 Ibid., p.318-319. 211 Ibid., p.319. 117 2) “ ...escapou na história pregressa do enfermo”, quer dizer, o doente não conhece a história da sua própria doença, a ponto de esquecer de informar ao médico alguns sintomas, que merecem a caracterologia científica de “ hyphotese de uma nephrite”; 3) O corpo doente é suporte, receptáculo para a “medicação electiva da funcção renal”, “ascaris”, “óvulos de trococephalus”. O problema da rarefação do discurso do paciente212 no consultório, no gabinete ou até no leito não se explica apenas por uma ausência de fontes, por uma relação esgarçada com a memória, por deficiências no processo de arquivamento ou qualquer outra motivação. Ainda que mais médicos relatassem diálogos com seus pacientes e reproduzissem essas conversas in totem, na forma do registro escrito, ainda assim os doentes não falariam, pois suas vozes continuariam a depender da escritura médica. O doente fala, o corpo enfermo significa, mas é o médico que escuta e interpreta os sinais. 2.5 Não se pode servir a Deus e a Asclepius: Mas... e servir-se deles? O gabinete do doutor é um espaço privado, de intimidade entre o médico e o paciente. Tudo o que for dito ali não será revelado para mais ninguém... Funciona co mo um confessionário, onde a verdade se mostra por inteira, em seu ontos; regime de exame e investigação do saber-poder médico. Contudo, como nos quadros da parede do consultório- Secretaria-Parlatório, o profano teve de conviver com o sagrado, o temporal com o espiritual. Em pleno hospital festejado como símbolo do moderno, dominado pela medicina positivista e tendo um médico como diretor, o doente que transpusesse o umbral do HCJB não encontraria um busto de Hipócrates, como na Antiguidade, mas uma singela capela, 212 Em a Ordem do discurso, aula inaugural proferida no Collége de France, em 2 de dezembro de 1970, Foucault chamou de “rarefação” a um procedimento de controle do discurso, que impõe aos indivíduos que os pronunciam certas regras de acesso, vedando a outros a possibilidade de dizê-lo. Segundo Foucault, haveria três grupos de procedimentos de controle e delimitação dos discursos: os que buscam limitar seus poderes; os que dominam suas aparições aleatórias e os que selecionam os sujeitos que falam. A rarefação constituía, portanto, instrumento pertencente ao último grupo, pois dizia respeito às possibilidades do sujeito falar: “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê -lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, á disposição de cada sujeito que fala” (FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 21. ed.São Paulo: Loyola, 2011.p.36-37). 118 espaço que lembra as próprias origens do hospital, quando sua criação e administração estavam a cargo de instituições religiosas, e sua função era abrigar os pobres de rua, alimentar os doentes e salvar as suas almas. Embora invertendo a orientação espacial, o nosso jornalista-observador d’A República, não se esqueceu de “visitar” o espaço do “Médico das almas”: “Visitamos, depois, a capela, preparada com gôsto, e provida de alfaias e ornamentos, os mais necessários”. A descrição é rápida, e supomos que a vistoria também o foi. Os objetos descritos no enunciado de Emerenciano remetem ao domínio da Estética: “com gôsto”, “ alfaias” e “ ornamentos”. Aqui o que contava era a Beleza, mas somente “os mais necessários”, ordem visual do espaço, ordem do olhar que repudia o acúmulo, o excesso, o transbordamento, signo do irregular. A capela como espaço de espiritualidade não mereceu comentário do articulista do jornal, é de uma outra ordem. A capela situava-se logo na entrada do hospital, à esquerda do visitante, quase ao lado da recepção. Localização estratégica, tática, que procurava ligar diretamente o espaço do hospital à noção primitiva de lugar para “salvação da alma”: primeiro cuidamos da anima, depois do corpus... Presença da Ordem das Filhas de Santana, que provavelmente impuseram esta geografia durante a construção do HCJB, Fig. 15 - Capela do HCJB. Fonte: Fotografia “Chic”, João Crisóstomo Galvão. 119 iniciada em 1905. Relações de poder, de forças, que atravessam a espacialidade hospitalar, mas que tecem liames com a dimensão econômica. Em 1921, o governador Antônio José de Mello e Souza lamentava a falta de uma Santa Casa no Estado- reclamação antiga, que remonta ao Império-, pois com ela as despesas com o estabelecimento hospitalar poderiam ser divididas, diminuindo os gastos do Estado: Sendo o nosso Estado um dos mais pobres, mantem exclusivamente á sua custa serviços de assistência publica, que o não envergonhariam si comparados com os de outros mais favorecidos pela fortuna. Essa feição tão sympathica, embora custosa, de Estado providencia, é comprehensivel e justificável nos paizes novos, onde a iniciativa e a riqueza particulares ainda não podem, ou não ousam, chamar a si os deveres de solidariedade humana, mas onde o desejo de progredir e o emprego reflectido dos meios de satisfazel-o faz parte das obrigações dos dirigentes. Não pudemos conseguir até hoje a formação entre nós de uma dessas instituições conhecidas pelo nome de “Santa Casa”, ou outras de natureza similhante, por meio das quaes a acção individual, embora auxiliada pelo poder publico, desempenha essa categoria de deveres. 213 213 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da undecima leg islatura em 1º de Novembro de 1921 pelo governador Antonio J. d e Mello e Souza. Natal: Typ. Commercial J. Pinto, 1921. p.17-18. Fig. 16 - Freiras da Ordem Filhas de Sant’Ana que trabalhavam no HCJB. Fonte: Fotografia “Chic”, João Crisóstomo Galvão. 120 O contrato com as irmãs de Santana previa salário apenas para a irmã Regente, numa quantia mensal de 350$000 réis. Conforme a lei n.14 de 1892, ainda no antigo HC, o Inspetor de Higiene receberia o “ordenado” de 2400$000 réis!214 O desejo de compartilhar as despesas do Hospital era séria preocupação das autoridades políticas e dos próprios médicos que trabalhavam no nosocômio, de tal sorte que, em 1927, a administração do HCJB é transferida para uma sociedade médica particular, a Sociedade de Assistência Hospitalar (SAH), coordenada pelo médico Januário Cicco, mediante contrato com o Estado. Ainda com o objetivo de desonerar o tesouro do Estado, a própria criação do hospital, em 1909, incluía uma seção para pensionistas, ou seja, aqueles que podiam pagar pelo atendimento, o que gerava significativa receita, como nos mostra a tabela das receitas do HCJB entre julho de 1927 e julho de 1928: Tabela 4- Receitas do HCJB em 1928 ATIVIDADES RECEITAS Pensionistas 41:172$000 Laboratório de Análises 2:169$000 Diversos 20:181$290 Subvenções do Estado 100:000$000 Juros e Descontos 263$340 Contribuições e Donativos 2:422$000 Subvenção Municipal 4:800$000 TOTAL 171:008$430 Fonte: Mensagem de 1928. Os números são claros: a receita relativa aos pensionistas (41:172$000) era a segunda maior do HCJB, quase 50% da principal arrecadação do hospital, que eram as subvenções do Estado (100:000$000). A capela como estratégia de poder não se circunscreveu somente ao hospital Sua presença acompanhou a própria expansão da “rede nosoespacial”215 que se configurava na década de 1920, com a difusão de outros espaços de assistência médica, como asilos e leprosários. Em alguns casos, o Estado mesmo, agora em teoria laico, se 214 RIO GRANDE DO NORTE. Lei n.14 de 11 de junho de 1892. Crea no estado uma repart ição sanitária. Leis do Congresso. Natal: Typ. d’A República,1896.p.25-28. 215 Utilizamos aqui a noção de ‘rede nosoespacial’ de uma forma um tanto imprecisa. Em nosso texto, serve para agrupar todas as expressões espaciais de atendimento médico -assistencial postas em funcionamento pelo Estado, desde as de caráter emergencial até as de cunho permanente. A perspectiv a da ‘rede’ aponta-nos uma articulação sistemática das espacialidades médicas dentro de um âmbito estratégico estatal. 121 incumbia de velar pelo “conforto espiritual” dos enfermos: O Governo do Estado tem envidado todos os meios capazes de proporcionar aos enfermos o preciso conforto material e espiritual, chagando mesmo a dar-lhes não só o necessário como o dispensável, o que muitas vezes acontece [...]. 216 Comentando a construção de casas para abrigar os “morféticos” do Leprosário São Francisco de Assis, iniciadas em 14 de janeiro, o governador menciona a edificação de uma capela: Dois desses grupos [de casas] foram inaugurados no dia 26 de maio e, nesse mesmo dia, lançada a pedra fundamental de uma capella. 217 É importante notar em alguns discursos o espaço da capela muitas vezes aparece como um item indispensável de uma lista, composta por objetos de mesmo valor, quantificáveis, enumeráveis, ordenáveis, instalados no campo da medida. É desta forma que o encontramos na Mensagem de Juvenal Lamartine ao Congresso Legislativo, em 1930: Hoje a Villa S. Francisco de Assis, apezar de modestamente installada, possue abastecimento d’agua, exgotto, luz Electra, cinema, telephone, apparelho de radio, salão e musica, victrollas e Capella. 218 Assim, “Capella” para o Estado era apenas mais um equipamento “urbano” da vida considerada civilizada, ligado ao “conforto”, um objeto da civilização material, como bem diria Fernand Braudel. A reprodução do espaço da capela era a repetição e, ao mesmo tempo, intensificação de determinadas relações de força, de um poder que buscava espacializar- se, territorializar-se, tornar-se cada vez mais íntimo, familiar: dispositivo que deslocava metaforicamente os sentidos do espaço-capela, de modo que ele pudesse abrigar distintas práticas, instituições e discursos. Geometria ou diagrama de forças que replicava não apenas os interesses conflitantes entre as freiras da Ordem de Santana e os representantes da medicina no hospital, mas também jogava para adiante, no espaço, a 216 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo exmo. Dr. Juvenal Lamartine de Faria, Presidente do Estado do Rio Grande do Norte á Assembléa Legislativa por occasião da abertura da 3º Sessão da 13º Leg islatura em 1º out. 1929. p.67. 217 Ibid., p.67. 218 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo presidente Juvenal Lamartine de Faria a Assembléa Legislativa, por occasião da abertura da 1º Sessão da 14ª Legislatura. Natal: Imprensa Official, 1930. p .68. 122 “fronteira” que separava o doente do são, o normal do patológico. Sempre avançando na direção da zona- limite, a “capela” também medicalizava. 2.6 Diagrama da ordem nosoespacial: pavilhão, enfermarias e leitos na disciplina do corpo doente Na missa realizada em 9 de setembro de 1909, o irmão de Tarcísio de Medeiros desmaiou de tanto exalar a fumaça emanada das velas e incensos queimados durante a homilia, sendo atendido e “internado” imediatamente no hospita l. Mas onde exatamente? Que espaços eram destinados aos enfermos no HCJB? Depois de ser apresentado ao espaço capelar, Emerenciano Montano fora levado, junto aos demais convidados, para conhecer o lugar do corpo doente, descrevendo-o na seguinte passagem: Percorremos ligeiramente o dormitório e rouparia, passando-nos, em seguida, para as enfermarias Santa Inez e Santo Alberto, onde já se acham internados três mulheres e seis homens. Mostraram-nos também, as confortáveis dependências para pensionistas de 1º e 2º classes, livres de comunicações com as enfermarias, e a bem montada farmácia, sob a direção de uma das irmãs religiosas e sob a imediata inspeção do diretor clínico. Cada uma das dependências do Hospital, sejam as enfermarias ou cômodos para pensionistas, tem o seu banheiro próprio e o seu water- closed. Enfermarias! Este era o espaço para o qual eram conduzidos os doentes que adentravam ao HCJB, sendo aí internados. Tratava-se de amplos espaços fechados e contínuos. O nosso articulista descreve duas enfermarias e dependências para pensionistas (pessoas que podiam pagar). Cada uma dessas “enfermarias” destinava-se ao acolhimento de doentes de um mesmo sexo, homens para uma, mulheres para outra, e dividiam-se em unidades menores chamadas de “salas”, compostas de “leitos” (camas de ferro) que abrigavam um grupo pequeno de pacientes, como informava o jornal O Diário do Natal de 14 de setembro: Há uma enfermaria para homens, com 15 leitos, e outra com 12 para mulheres. Além dessas enfermarias, existem mais quatro quartos com leitos cada um. 219 O número de leitos e dependências variou ao longo do tempo, com as 219 O DIÁRIO DO NATAL. 14 set. 1909. 123 sucessivas reformas e ampliações. Luís da Câmara Cascudo 220 falava que na inauguração “O hospital tinha dezoito leitos”, informação corroborada pelo médico e estudioso da medicina em Natal Iaperí Araújo: O Hospital já nascera pequeno para a população. Dezoito leitos divididos em seções de homens e mulheres. Pouco a pouco, atendendo às necessidades, foi sendo ampliado, chegando o número de camas a setenta, incluindo uma enfermaria de mulheres com treze leitos e uma de parturientes. 221 Um ano depois da inauguração, entre 1º de outubro de 1909 e 30 de setembro de 1910222, os relatórios do movimento hospitalar organizados pelas freiras de Santana já apontavam significativo fluxo de pacientes nas dependências do HCJB, como mostra a tabela abaixo: Tabela 5- Movimento de pacientes do HCJB entre 1909 e 1910 DOENTES HOMENS MULHERES TOTAL Existiam 20 16 36 Entraram 180 150 330 Saíram 165 132 297 Faleceram 14 14 28 Ficaram em tratamento 21 18 39 Fonte: Mensagem de 1910, p. 10. Mesmo contando com pequeno número de funcionários, a equipe do hospital se desdobrou para atender esses pacientes. Conforme dados do HCJB, foram aviadas 2692 receitas aos doentes internos, 5221 para doentes de consultas e 798 para praças do Batalhão de Segurança, com 42 operações de alta e pequena cirurgia. Numa movimentação como esta, a ampliação das dependências tornou-se indispensável, demandando alterações na estrutura material do edifício: Estão sendo construídas três grandes salas destinadas ao recebimento de pensionistas de 1ª e 2ª classes, e serão brevemente installados gabinetes de bacteriologia e anatomia pathologica, bem como uma sala de hydroterapia e electricidade medica. 223 Não somente o número dos leitos fora ampliado, mas o de enfermarias também, passando a comportar tipologias diversas de pacientes: 220 CASCUDO, L. da C. História da cidade do Natal, p.333. 221 ARAÚJO, I. Januário Cicco: um homem além de seu tempo, p.16. 222 RIO GRANDE DO NORTE..., 1910, p.10. 223 Ibid. 124 O setor masculino era dividido em cinco salas, todas sob o patrocínio de um santo que presidia a enfermaria, [...]. A enfermaria de pensionistas possuía um quadro de São João; a segunda enfermaria, para soldados, de São Sebastião; a terceira, para doenças gerais, de São José; a quarta, de doenças venéreas, entregues à guarda de São Roque, ficando a quinta para marinheiros, sob a proteção do Coração de Maria. 224 A estrutura básica composta de “enfermarias”, “salas” e “leitos” constituía o modelo comum dos hospitais da época, chamado de Pavilhonar ou Higiênico. Sua organização atendia a imperativos de higiene, pois o pavilhão isolava o paciente internado evitando o contágio com outras pessoas. O princípio do isolamento que regia a espacialidade médica tomava seu argumento da nascente bacteriologia, que advogava o combate às doenças em espaço separado, ou seja, em um pavilhão, seguindo este as recomendações de um hospital higiênico: amplas varandas, pé direito alto e sistema de refrigeração, que facilitavam a aeração e proporcionavam melhor conforto nos quartos.225 224 ARAÚJO, I. Op. cit., p.10. 225 GAMA-ROSA COSTA, Renato da. Arquitetura e saúde no Rio de Janeiro. In: PORTO, Ângela (Org). História da saúde no Rio de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), p.124. Fig. 17 - Enfermaria masculina do HCJB. Fonte: Fotografia “Chic”, João Crisóstomo Galvão. 125 Na foto acima, vemos o interior da enfermaria masculina do HCJB, com as salas e os leitos dos doentes. Como se pode perceber, as salas se comunicavam através de aberturas em forma de arco, sem portas. Tal disposição se relacionava com a preocupação geral que dominava a respeito da boa circulação dos ares no ambiente interno, princípio fundado na aeração-miasmática e posteriormente na microbiologia pasteuriana, teorias frequentemente combinadas pelo menos até a década de 1920, ares esses que deveriam ser purificados pelos ventos que provinham da praia de Areia Preta. Dessa maneira, a organização espacial da enfermaria acompanhava as razões do discurso médico que dirigiram a própria localização do Hospital de Caridade Juvino Barreto: no alto de um monte e disposto em posição privilegiada do ponto de vista da qualidade e da direção dos ventos que sopravam da região da praia, no chamado clima de altitude. Os ares do oceano foram motivo de elogio do médico Januário Cicco, na obra “Como se higienizaria Natal”, em 1920: A´margem do oceano e cercada por montanhas de areia ou dunas, cobertas de exuberante vegetação, è batida pelo vento éste-sueste constante e moderado, trazendo às riquezas de um ar marinho, leve, puro e tonificador. De clima temperado, a sua temperatura não excede de 32º á sombra. 226 Disposição médico-topográfica da cidade que ganhava contornos especiais na localização do hospital, que recebia seus elogios também na linguagem literária pintoresca de Câmara Cascudo: No cimo dos morros, o nosocômio olhava o mar, com as alegrias da luminosidade e os perfumes de cajueiros das dunas e salsugens das praias. 227 “olhava para o mar” e “alegrias da luminosidade”: duas imagens estéticas que remetem a discursos de veridicção médica para a arquitetura do “nosocômio” hospitalar. Na foto da enfermaria masculina, as janelas se portam à altura dos leitos, permitindo a entrada dos ventos “este-sueste” e da luminosidade solar, que preenchia todo o ambiente. Princípios médicos que anunciavam a emergência do hospital terapêutico ou patológico na cidade do Natal. Como vimos ainda no primeiro capítulo, o antigo Hospital de Caridade 226 CICCO, Januário. Como se hygienizaria Natal: algumas considerações sobre o seu saneamento. p.7.Reprodução fac-similar encartada no livro: LIMA, Pedro de. Saneamento e modernização em Natal: Januário Cicco, 1920, 2003. 227 CASCUDO, L. da C. Op. cit., p.333. 126 desempenhava basicamente funções assistenciais, funcionando em péssimas condições, tendo, por isso, fechado suas portas em 1906. Comungava da velha ordem hospitalar de asilo para os pobres e indivíduos perigosos, com a desvantagem de não poder ofertar o consolo da “alma” que tanto distribuíam as instituições religiosas, como a Santa Casa de Misericórdia. Diferentemente de seu antecessor, o HCJB nasce com funções de cura, buscando no espaço físico possibilidades de tratamento para os fenômenos patológicos. Daí as preocupações com localização geográfico-espacial do estabelecimento hospitalar, com o ar, a luz, a limpeza, a posição das camas, a altura das janelas, as roupas dos enfermos etc, tudo aquilo que circunscrevesse o corpo doente. Tal mudança de perspectiva remonta ao século XVIII, mais particularmente ao ano de 1780, quando o inglês Howard, que percorreu prisões, hospitais e lazaretos entre 1775 e 1780, e o francês Tenon, a pedido da Academia de Ciências, fizeram visitas- inquérito que produziam uma observação sistemática e comparada dos estabelecimentos hospitalares na Europa com o objetivo de formular um novo programa hospitalar para a reconstrução do Hôtel-Dieu, em Paris, parcialmente destruído em um incêndio. A correlação entre fenômenos patológicos e espaciais, realizadas nessas visitas, deveria mudar o olhar sobre os nosocômios, propondo reformas e reconstruções dos hospitais seguindo novo princípio: a arquitetura tem papel de cura no processo mórbido.228 Nessa perspectiva, coube ao engenheiro Casimir Tollet (1892), na obra Les édifices hospitaliers depuis leur origine jusqu'a nos jours, a ideia de projetar as paredes das enfermarias em forma de arco, facilitando a renovação do ar nestes locais. Suas conclusões eram baseadas em uma completa revisão da arquitetura hospitalar, tendo estudado sistematicamente as características físicas das unidades hospitalares: o espaçamento das camas, a insolação, a ventilação, a circulação do ar, comparando os resultados com parâmetros internacionais.229 228 FOUCAULT, Michel. O nascimento do Hospital. In:______. Microfísica do poder, p.99-100. 229 Do Hospital Terapêutico ou Tecnológico. Anais do III Fórum de Tecnologia Aplicada à Saúde, Bahia, Salvador, Arquitetura hospitalar e Engenharia cínica, 2002.p.5 -6. Versão extraída do site: http:// 127 Fig. 18 - Sistema de arcos Tollet. Fonte: Do hospital terapêutico ou tecnológico, 2002, p. 6. Como solução para o problema das altas taxas de mortalidade no ambiente hospitalar, propôs-se a construção de estruturas em forma de pavilhão, cada qual abrigando um grupo de pessoas portadoras de uma mesma doença, isoladas das demais do hospital. Em resumo, a Academia de Ciências de Paris sugeriu as seguintes mudanças para o Hôtel-Dieu: 1. Redução do número de leitos de cada hospital – 1.200 leitos; 2. Redução do número de leitos de cada enfermaria; 3. Maior isolamento das salas, umas das outras; 4. Condenação das salas contínuas do Hospital São Luís; 5. Disposição das salas de modo a se constituirem aberturas de todos os lados, para renovação do ar; 6. Colocação dos pavilhões em ordem, paralela e orientados no senti- do mais favorável; 7. Exposição das fachadas uma ao Norte e outra ao Sul; 8. Construção de um só pavilhão destinado aos enfermos, dois pavimentos em caso de escassez de terreno; 9. Concessão para 3 andares; em certos casos, o mais elevado para os empregados, o térreo e o intermediário para os enfermos. 230 Tais mudanças sugeridas pelo programa da Comissão, em verdade, só foram seguidas à risca setenta anos mais tarde, por ocasião da construção do Hospital Lariboisière, em 1854.231 230 BRASIL. MINISTÉRIO da Saúde. 1947, p.42. 231 Ibid. 128 Fig. 19 - Planta baixa do Hôtel-Dieu. Fonte: Do hospital terapêutico ou tecnológico, 2002, p. 5. O modelo de pavilhões era organizado segundo diferentes disposições espaciais. Iberti propôs um edifício em forma de cruz com cúpula central, de acordo com as linhas do Hospital de Florença, sendo os pavilhões de dois pavimentos, o inferior para os serviços gerais e o superior para as enfermarias, situando-se a cozinha na cúpula central. Petyt projetava salas em forma de estrela, com cúpula central e capela embaixo desta, enquanto Payet desejava a forma estrelar, mas com galerias periféricas ligando os raios.232 232 Ibid., p.43. 129 Em 1890, a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra encomendou um estudo para a construção de um novo hospital de ensino. Firmaram-se, então, as bases da divisão espacial, fundada em pavilhões isolados, enfermarias de 30 leitos, sem superposição de pavimentos, três quartos de isolamento, “casa para distração de doentes de pé”, variadas casas para enfermeiros, cozinha, banhos, lavatórios e latrinas. Um dos membros da comissão, Costa Simões, indicou, em dois anteprojetos de 1833, a necessidade de pavilhões separados, ideia que só veio a observar na exposição de Paris de 1878, espelhado no sistema Tollet. Os pavilhões isolados de um único andar eram considerados por ele como ideais.233 No Brasil, o modelo pavilhonar pode ser buscado nas epidemias que tomaram conta das cidades brasileiras, na segunda metade do século XIX. A proliferação das doenças, como varíola e cólera, forçou mudanças na forma arquitetônica dos hospitais, adotando-se novas práticas que levaram ao investimento na separação das alas de enfermos, no isolamento das grandes concentrações urbanas e na atenção aos benefícios da aeração e do combate à umidade. A Santa Casa do Rio de Janeiro passou por longas reformas entre 1840 e 1852, com a construção de dez alas e seis pátios internos, sob a supervisão do arquiteto- engenheiro, José Domingues Monteiro, ex- integrante do Imperial Corpo de Engenheiros e arquiteto da câmara. Mesmo com tais mudanças, incluindo o cuidado com o espaçamento das camas, o tamanho dos corredores e o jardim, o hospital ainda tinha o inconveniente da localização aos pés do morro do Castelo, considerado anti- higiênico.234 O modelo pavilhonar, contudo, fora implantado pela primeira vez quando da construção do Hospício Pedro II, na praia Vermelha, lugar afastado da cidade e de boa aeração. Adotou-se a forma pavilhonar, com seis pátios internos, configuração comum aos estabelecimentos nosocomiais de Paris, que tinha no Hôtel-Dieu o grande modelo, composto de enfermarias, farmácia, salões e capela. A partir de então, até o final do século XIX, outros estabelecimentos nosoespaciais foram construídos, como o Hospital da Beneficência Portuguesa, o Hospital São Sebastião e o Hospital Evangélico.235 233 Ibid., p.42-43. 234 GAMA-ROSA COSTA, Renato da. Arquitetura e saúde no Rio de Janeiro. In: PORTO, Ângela (Org). História da saúde no Rio de Janeiro: instituições e patrimônio arquitetônico (1808-1958), p.122. 235 Ibid., p.122-123. 130 Essa breve digressão histórica do modelo pavilhonar serve apenas como pano de fundo de nossa “analítica espacial” do HCJB. Como vimos, o pavilhão admite inúmeras disposições gerais, tal como arranjo estrelar, simetria paralela, como cruzeiro, justaposto ou isolado, de acordo com práticas, discursos e instituições que o tornem visível e enunciável. Com efeito, acreditamos que os pavilhões do Juvino Barreto tenham sua genealogia ligada aos protótipos hospitalares do Norte e Nordeste, particularmente aqueles ligados à Santa Casa de Misericórdia do Recife. De lá, como nos informou o historiador Tarcísio de Medeiros, veio seu avô, Henrique Cândido de Medeiros, trazendo a experiência de anos de trabalho na Santa Casa, e aqui fora o principal agenciador da edificação do HCJB. Os modelos espaciais de influência/correlação que devemos investigar, portanto, devem ser preenchidos por espaços hospitalares de Recife que tenham contado com a presença da Ordem Filhas de Santana. Nessa linha de investigação, encontramos o Hospital de Santo Amaro, em Recife, que teve seu começo como Asylo de Mendicidade, construção iniciada em 25 de setembro de 1872, tendo sua conclusão somente em 14 de abril de 1873, sob a administrada pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia Manoel Clementino Carneiro da Cunha. A estrutura material desse nosocômio é similar à do Juvino Barreto, possuindo capela, sala de cirurgia e enfermarias para homens e mulheres. As salas e os leitos guardam estreita similitude com os do HCJB, organizado em sala, com espaçamento regular entre as camas, janelas baixas e pé-direto alto.236 236 BODAS de Ouro das Filhas de Sant’Anna no Brasil: 1884-1934. O Asylo de Mendicidade em Recife- Pernambuco. Rio de Janeiro: Escola Typ. Pio X, 1933.p.61-62. Fig. 20 - Enfermaria São José Hospital Santo Amaro. Fonte: BODAS de ouro das Filhas de Sant’Ana, 1934, p. 63. 131 Como se pode ver nas fotos acima, as salas são amplas e contém grande número de leitos regularmente dispostos um ao lado do outro, acompanhados alguns de cadeira de espaldar em frente à cama. Todo o espaço das enfermarias, tanto a masculina, quanto a feminina, constituem uma unidade espacial homogênea, sem as separações de parede vazadas em arco entre os leitos tal qual encontramos no HCJB. Especificidade da nosoespacialidade médica do Juvino Barreto. Outro importante hospital ligado à Santa Casa de Misericórdia do Recife foi o Hospital Santa Águeda, também conhecido como “Oswaldo Cruz”. Sua construção iniciou-se em novembro de 1884, na Freguesia de Boa Vista, graças ao auxílio do governo solicitado pelo ex-governador Capitão João Vicente Torres Bandeira. As instalações hospital eram muito precárias, composta de uma grande casa em rua arborizada, alguns barracões e pequenas dependências de construção insegura. Administrada inicialmente por funcionários do governo, em 1897, a Santa Casa de Misericórdia requisitou o auxílio da Ordem das Filhas de Santana, que desde então passaram a tomar conta do estabelecimento, cuidando dos portadores de doenças infecto-contagiosas que acorriam ao hospital, mormente variolosos. 237 237 BODAS de Ouro das Filhas de Sant’Anna no Brasil: 1884 -1934. O Hospital “Oswaldo Cruz” Pernambuco, p.67-68. Fig. 21 - Enfermaria de Sant’Ana do Hospital Santo Amaro. Fonte: BODAS de ouro das Filhas de Sant’Ana, 1934, p. 62. 132 Piso e teto de madeira, a enfermaria masculina desse hospital era pequena e contava com poucos leitos. As janelas, talvez as mesmas do casarão da Boa Vista, localizavam-se no alto das paredes, o que não respeitava a “teoria” geral sobre a circulação do ar no ambiente interno e a medida adequada de insolação. Situação que se perpetuou até 1924, quando o doutor Amaury de Medeiros, à frente dos serviços sanitários de Pernambuco, resolveu reformá-lo. Nesse ano, o hospital Santa Águeda contava com cerca de (5) pavimentos para doentes e uma casa velha para a communidade Religiosa do estabelecimento, contidos em vasto parque. Desses pavilhões, só um, o ultimo, construído não faz muito tempo, apresentava aspecto hospitalar, edificado especialmente para tuberculosos, por doação do senhor A. Muniz Machado, á Santa Casa, que deu ao novo pavilhão o nome do generoso doador. Fig. 22 - Planta baixa e fachada do Hospital Oswaldo Cruz, em Recife. Fonte: Arquivo Público de Pernambuco, Seção de Mapoteca, gaveta M2/G4, mapa 216. 133 Os demais edifícios eram verdadeiros barracões, sem ar e sem luz e sem installações sanitárias dignas deste nome. Á entrada do Hospital havia um quartinho á guisa de portaria onde os doentes, médicos e visitantes recebiam desinfecção a vapores e de gaz sulfuroso, sem o que não entravam nem sahiam. 238 Como se percebe, as enfermarias desses hospitais pernambucanos – Hospital de Santo Amaro e Hospital Santa Águeda – apresentam forte homologia estrutural com as enfermarias do HCJB, mostrando que o plano original que guiou a edificação do Juvino Barreto pautou-se na experiência de tais nosocômios, ancoragem realizada, segundo o historiador Tarcísio de Medeiros, pelo seu avô, Henrique Cândido, que trabalhou longos anos na Santa Casa de Misericórdia do Recife, instituição que administrava inúmeros espaços de assistência médico-hospitalar em Pernambuco. Em resumo, as semelhanças nosoespaciais podem ser assim descritas: 1. Amplitude axial ou radial das enfermarias; 2. A divisão clássica em leitos (camas dos doentes), espaçadas segundo uma determinada medida de regularidade; 3. Disposição das janelas em pontos estratégicos de modo a facilitar a 238 Hospital “Oswaldo Cruz” Pernambuco. Bodas de Ouro das Filhas de Sant’Anna no Brasil: 1884-1934, p.69. Fig. 23 - Enfermaria antiga do Hospital Santa Águeda. Fonte: BODAS de Ouro das Filhas de Sant’Ana, 1934, p. 68. 134 circulação do ar no ambiente e permitir a insolação adequada; 4. A adoção de pé-direto alto, com igual medida profilática de aeração; 5. O nascedouro dessas espacialidades a partir de espaços domésticos, produtos de benemerência e caridade pessoal, necessitando sempre de intervenções adaptativas às novas funcionalidades do local. Esses traços comuns, todavia, também são partilhados por outros modelos hospitalares pelo Brasil do final do século XIX e começo do XX, uma vez que tiveram sua gênese ligada ao Hospital Religioso ou Terapêutico. O que torna nossa comparação dos espaços importante é a aproximação histórica que desenhamos entre o HCJB e os nosocômios recifenses a partir de dois elementos: a presença das Filhas de Santana e o ponto de apoio para a dispersão/influência/contato do modelo, encarnado na figura do empreiteiro Henrique Cândido. No Arquivo Público de Pernambuco, na Seção de Mapoteca, encontramos plantas baixas do Hospital D.Pedro II, que nos permitem visualizar a estrutura física de uma enfermaria no final do século XIX. A foto abaixo foi tirada de uma dessas plantas e reconstrói o ambiente interno das enfermarias. Fig. 24 - Planta baixa de uma enfermaria do Hospital D. Pedro II, em Recife. Fonte: Arquivo Público de Pernambuco, Seção de Mapoteca, gaveta Mz/G4, mapa 213. 135 Nesta seção da planta baixa, vemos a enfermaria dividida em cinco salas, sendo as duas mais extremas compostas de 4 leitos, as duas seguintes de 8 leitos e a central de 10 leitos, totalizando cinco salas e 34 leitos. Ao longo do espaço longilíneo, há janelas (ou portas?) estrategicamente dispostas, perfazendo 9 ao todo, espalhadas em uma enfermaria de 30 m de comprimento por 6,5 m de largura. Tais medidas já apontam as dimensões do próprio hospital, que contava com várias dessas enfermarias. A “Secção Transversal”, na escala 1/50, mostra a entrada da enfermaria, a porta retangular com complemento em arco e o piso mais alto que o nível do solo, provavelmente para evitar a entrada da poeira/sujeira no interior do edifício, elemento indispensável dos espaços considerados higiênicos. A simetria espacial que as dependências das enfermarias desses hospitais apresentam com relação à disposição encontrada no HCJB não deve nos levar a concluir que o Juvino Barreto configurou-se como uma cópia de outros estabelecimentos nosocomiais, uma citação de outras citações, um elemento de uma cadeia de replicações necessárias, fundada no princípio de similitude, e tendo uma origem Fig.25- Seção transversal da entrada de enfermaria no Hospital D.Pedro II. Fonte: Arquivo Público de Pernambuco, Seção de Mapoteca, gaveta Mz/G4, mapa 891. 136 natural. Nossa analítica do HCJB não o coloca para reflexão a partir da tríade platônica Original-Cópia-Simulacro, divisão que funda o pensamento clássico da representação, valorando positivamente ou negativamente cada um dos conceitos em termos de verdade, conforme a distância que se percorra entre os extremos da cadeia: o simulacro é imagem sem semelhança, inferior à cópia que se assemelha ao original, mas é inferior, por sua vez, ao conceito fundador.239 Os liames histórico-espaciais que ligam o HCJB aos hospitais de Recife não tem a função aqui de dizer a verdade do Juvino Barreto em termos de “influência”, “legado” ou “herança”; trata-se de método que busca criar aproximações, pontes, contatos, sem qualquer tipo de determinações. Movimento analítico de história, que parte dos traços de comunicação para, em seguida, desenhar singularidades, acontecimentos. Assim, por mais que o modelo pavilhonar tenha sua “história geral”, percebida por nós na semelhança dos modelos pavilhonares dos hospitais estudados, cada estrutura nosoespacial terá sua especificidade, mergulhada no fluxo de diferentes elementos formadores: práticas, discursos e instituições. Vejamos isto um pouco melhor. A enfermaria masculina do HCJB, por exemplo, repartia o espaço interno através de paredes vazadas em arco, permitindo a circulação do ar e das pessoas pelo ambiente interno, elemento que não estava presente nas outras enfermarias estudadas. Este processo de separação e isolamento fora marcado por esta singularidade arquitetônica, que ao mesmo tempo em que intensifica o encarceramento, fracionando progressivamente o espaço, produz o contato e a aproximação. Os doentes, mantidos em seus leitos, podiam conversar uns com os outros, comunicar-se pelo vão dos arcos. O corpo individual e solitário que dominará o pós- Segunda Guerra ainda não tinha feito sua aparição nas enfermarias do HCJB, que mostrava uma espécie de “espírito de comunidade”, próprio de um espaço ainda provinciano, mesmo querendo se autoperceber como moderno.240 O HCJB deve ser encarado como dispersão de forças, espaço montado segundo princípios heterogêneos, cujas peças/partes se aproximam não por um 239 MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. p.41-49, passim. 240 MOULIN, Anne Marie. O corpo diante da medicina. In: COURTINE, Jean-Jacques (Dir.). História do corpo: As mutações do olhar. O século XX, p.21 e 53. 137 movimento espontâneo de atração solidária formadora de uma unidade/identidade estável, natural, mas mediante um jogo de forças, imposição, contranatureza, fazendo emergir unidades instáveis, prontas a se desfazerem nos sismos dos primeiros movimentos de desagregação. A genealogia dessa dispersão pode ter sua descrição logo nos princípios ou regras de ordenamento do espaço nosocomial do HCJB. Como vimos, o espaço das enfermarias manifestava critérios médicos na sua edificação: o contagionismo de com base na aeração-mismática e na bacteriologia de Koch e Pasteur justificavam, em princípio, as janelas à altura dos leitos, os corredores, as espaçamento entre as camas, o piso liso e a aversão a poeira/sujeira, os arcos à Tollet, as roupas brancas e sempre lavadas. Contudo, as regras de distribuição dos corpos no nosoespaço apresentavam outras relações mais complexas e que não se balizavam estritamente em enunciados médicos: A enfermaria de pensionistas possuía um quadro de São João; a segunda enfermaria, para soldados, de São Sebastião; a terceira, para doenças gerais, de São José; a quarta, de doenças venéreas, entregues à guarda de São Roque, ficando a quinta para marinheiros, sob a proteção do Coração de Maria. 241 As enfermarias do pavilhão estavam divididas entre a dos pensionistas (1ª e 2ª classes) e as daqueles que não podiam pagar pelo atendimento, subdivididas, por sua vez, entre homens e mulheres. Critérios heterogêneos para a repartição dos espaços internos do HCJB, costurados como necessários ou naturais: princípios biológicos (separação por sexo: homens X mulheres), princípio econômico (separação por renda), princípio nosológico (separação por doenças: “gerais”, “venéreas”), princípio funcional (separação por função: soldados, marinheiros). O que comunica esses múltiplos princípios classificatórios são as linhas de força que se cruzam entre a enfermaria dos pensionistas e as demais, ou seja, a divisão entre as tendências embrionárias de um hospital para particulares e um outro para o público em geral. É isto o que a expressão “sem comunicação”, utilizada por Emerenciano Montano para descrever o sistema de diferenças entre as enfermarias do HCJB, quer nos comunicar: o hospital é a figura que condensa essas linhas de força, as faz aparecer, torna-as visíveis, territorializam-na, descrevendo o espaço hospitalar como uma combinação de fraturas que se encaixam, mas que revelam as linhas que as separam. Placas tectônicas que se 241 ARAÚJO, I. Op. cit., p.16. 138 movem silenciosas na superfície, mas guardam no fundo a violência do magma. As diferenças de princípios de repartição espacial revelam as tensões e diferenças que marcaram a construção e o funcionamento do hospital, fazendo emergir um novo olhar sobre esta espacialidade: a concepção do HCJB como dispersão, unidade instável. Médicos, irmãs de Santana, funcionários da Inspetoria de Higiene Pública, pacientes, todos conviviam no mesmo estabelecimento nosocomial, espaço que fora alvo das investidas políticas desses sujeitos e que territorializa essa relações de força, muitas vezes sutis e complexas (simples quadros dispostos na parede do consultório médico). Atravessado por tais forças, o HCJB de alguma forma as regulariza, dá-lhes direção, intensidade, ainda que em trânsito. A disciplinarização do espaço hospitalar é o tema comum dessas diferenças. Segundo Michel Foucault242, o hospital terapêutico nasceu no século XVIII como uma técnica do poder disciplinar e de intervenção médica do meio ambiente, fundada nos princípios de separação e exclusão. A questão central, então, que atingiu os hospitais do Setecentos foi de natureza espacial ou de reoganização dos espaços em geral, e tem a ver “maneira de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá- las ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade, graças a um sistema de poder suscetível de controlá- los”243. Essa tecnologia política, que tinha como ponto de apoio o corpo, funcionava a partir de quatro mecanismos: 1. Distribuição dos indivíduos no espaço, inserindo os “corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório”; 2. Controle sobre o desenvolvimento das ações; 2. Vigilância perpétua e constante dos indivíduos; 4. Existência de um registro contínuo das atividades. Esse “programa” de exercício do poder disciplinar que emerge no século XVIII é que possibilitou o surgimento do hospital como espaço de cura, terapêutico. Percebendo-se a correlação entre o fenômeno da doença e o hospital (muitas pessoas morriam dentro dele e algumas pestes se difundiam em seu interior), os médicos (lembremos-nos de Howard e Tenon) intervieram no ambiente, estudando como tal 242 FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. In:______. Microfísica do poder, p.105. 243 Ibid. 139 lugar poderia ajudar na cura dos doentes. Foi assim que emergiu a preocupação em controlar intensivamente o espaço do hospital, passando-se a levar em conta o cálculo de sua localização, a distribuição interna do espaço e a organização de um sistema de registro permanente. Como todos esses cuidados funcionavam como um instrumento terapêutico, que visava à cura, o médico passou a ser o principal responsável pelo poder no interior do hospital, até então nas mãos de instituições religiosas, que viam no hospital lugar para salvação das almas e alimentação das pessoas internadas. A forma do claustro como diretriz organizadora do hospital fora substituída pelo espaço medicalizado. Com sua presença permanente e seus rituais de visita, a figura do médico se impõe, decidindo agora todos os aspectos da organização hospitalar.244 Esses princípios de reordenamento do espaço podem ser encontrados no HCJB. A técnica da “clausura” ou “cerca”, que fala de um “local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo”245 aparece na própria arquitetura do hospital que, com seus muros, cria um espaço em separado do restante da cidade, local protegido. A técnica da “localização imediata ou quadriculamento” se materializa na divisão interna do hospital em pavilhões, salas, enfermarias, leitos, que buscava colocar “cada indivíduo no seu lugar; em cada lugar, um indivíduo”. Cada sala do HCJB era composta por leitos regularmente espaçados uns dos outros criando fronteiras invisíveis; entre as salas, paredes separando-as, intensificando o fracionamento espacial, facilitando a circulação das pessoas e possibilitando encontrar os indivíduos e vigiá- los. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico. 246 A regra das localizações funcionais consiste em codificar todos os espaços 244 Ibid., p.108-110. 245 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.p.137. 246 Ibid., p.138. 140 livres, criando espaços úteis. As reformas arquitetônicas no HCJB buscavam essa eficácia. Construção de jardins, pavilhões, anexos, “casas” dos leprosos etc. procuravam utilizar ao máximo o espaço construtivo nas proximidades, pondo ao olhar vigilante uma ordem decodificável, “necessidade de distribuir e dividir o espaço com rigor”. Preocupação que é primeiro econômica e administrativa, depois médica: As distribuições da vigilância fiscal e econômica precedem as técnicas de observação médica: localização dos medicamentos em caixas fechadas, registro de sua utilização; um pouco mais tarde é estabelecido um sistema para verificar o número real de doentes, sua identidade, as unidades de onde procedem; depois se regulamentam suas idas e vindas; são obrigados a ficar em suas salas; a cada leito é preso o nome de quem se encontra nele; todo indivíduo tratado é inscrito num registro que o médico deve consultar durante sua visita; mais tarde virão o isolamento dos contagiosos, os leitos separados. Pouco a pouco um espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico; tende a individualizar os corpos, as doenças, os sintomas, as vidas e as mortes; constitui um quadro real das singularidades justapostas e cuidadosamente distintas. Nasce da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico. 247 Exemplificando a regra com o surgimento do hospital militar e marítimo de Rochefort na França, Michel Foucault descreveu as transformações que levaram as técnicas de controle das mercadorias do porto a serem aplicadas ao hospital nascente. O tema do isolamento e do registro médico são essenciais ao funcionamento hospitalar. A separação progressiva dos doentes em espaços cada vez mais fracionados, buscando individualizá- los é perceptível na enfermaria masculina; as pranchetas colocadas sob os leitos identificando os doentes também figuram nas salas do HCJB. Todos os princípios de separação utilizados no Juvino Barreto, renda, nosológico, sexual, social, cumpriam função de exclusão, isolamento dos doentes. Os livros do Movimento Hospitalar registravam os dados do paciente em colunas e linhas, decompondo cada indivíduo em unidades menores de apreciação, valoração e julgamento. 247 Ibid., p.139. 141 Por último, a organização do espaço serial, que se funda no cruzamento de linhas diversas, constituindo um lugar de classificação. A posição na fila é o determinante. A posição e ordem no espaço definem a função dos sujeitos: doentes deitados ou sentados; médicos e enfermeiras (os) em pé; enfermarias para internados, gabinete ou consultório para os médicos; filas de doentes em espaço reticulado, sendo atendidos segundo a ordem desses leitos no horizonte de uma linha. Essas posições marcam distinções de hierarquia e capacidades. As disciplinas, organizando as ‘celas’, os ‘lugares’ e as ‘fileiras’ criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais, pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. 248 Contudo, essas caracterizações do espaço disciplinar, na ótica foucaultiana, como “um conjunto de técnicas de coerção que se exercem segundo um esquadrinhamento sistemático do tempo, do espaço e do movimento dos indivíduos”249, 248 Ibid., p.142. 249 REVEL, Jacques. Dicionário Foucault, p.36. Fig. 26 - Enfermaria femin ina do HCJB. Fonte: Fotografia “Chic”, João Galvão Filho. 142 não podem ser aplicadas in totem ao Hospital de Caridade Juvino Barreto. Este espaço tem suas especificidades. É preciso aclimatar as reflexões de Foucault ao contexto do espaço hospitalar na cidade do Natal. Isto significa que, antes de aplicar o conceito foucaultiano de disciplina, devemos examinar o alcance do discurso, das práticas e instituições médicas na sociedade natalense nas primeiras décadas do século XX. Em todo o século anterior, a circulação de esculápios pela província do Rio Grande do Norte foi pequena, contingente vindo de fora, em situações normalmente epidêmicas. Luís da Câmara Cascudo, na obra O livro das velhas figuras, coletânea de artigos de sua coluna Actas Diurnas publicadas n’A República, fala que Natal teve em todo o século XIX não mais do que seis médicos.250 Em História da cidade do Natal251, Cascudo inventaria alguns nomes de esculápios que atuaram na província, a maioria vinda de fora e atuando em regime de emergência: Tabela 6- Inventário dos médicos do Rio Grande do Norte no século XIX ANO MÉDICOS FUNÇÃO/ESPECIALIDADE 1814 Luís da Silva Manso Cirurgião-mor da Companhia de Infantaria e Linha da Guarnição 1831 João José de Oliveira Cirurgião do Partido Público 1837- 8 Cipriano José Barata de Almeida Cirurgião formado pela Universidade de Coimbra 1842 José Bento Pereira da Mota Médico do Partido Público 1843 Tomás Cardoso de Almeida 1852 Joaquim Antão de Sena Médico do Partido Público 1854 Joaquim Antônio Alves Ribeiro, José de Barros Accioli P imentel e Antônio Vital de Oliveira, combatiam epidemia de paludismo em Boca-da-Mata e Ponta Negra e Extremoz Não especificado 1855 Firmino José Doria, José Joaquim de Souza, José Augusto de Souza Pitanga, Francisco Antônio Vital de Oliveira Não especificado 250 CASCUDO, Luís da Câmara. O livro das velhas figuras, v.VII, p.22. 251 Idem. História da cidade do Natal, p. 245-257. 143 1857 Luís Carlos Lins Wanderley, Inspetor de Higiene Pública Inspetor de Higiene Pública 1859 Vicente Inácio Pereira, nascido em Natal Não especificado 1871 Henrique Leopoldo da Câmara Não especificado 1882 Paula Antunes Não especificado 1886 Pedro Velho de Albuquerque Maranhão Inspetor de Higiene Pública 1892 Artur de Albuquerque e Afonso de Loyola Barata Não especificado 1896 Manoel Segundo Wanderley Inspetor de Higiene Pública Em 1888, segundo a Inspetoria Geral de Higiene Pública, havia apenas 15 médicos para toda a província do Rio Grande do Norte! Quando o HCJB é inaugurado, em 1909, apenas dois médicos diplomados saltam da documentação disponível: Januário Cicco, médico-cirurgião, e Calixtrato Carrilho, Diretor da Inspetoria de Higiene Pública, sediada então no próprio hospital. Para auxiliar Januário, um prático, José Lucas do Nascimento, e, em 1915, o Doutor Otávio Varella. Em 1910, a Mensagem252 do governador Alberto Maranhão ao Congressso Legislativo menciona Afonso Barata, Inspetor do Porto, auxiliando Januário Cicco em pequenas cirurgias. O corpo “médico” do HCJB, pelo menos até a década de 1920, será composto pelas Freiras de Santana. No mais, nenhuma notícia de médicos d iplomados... Poucos representantes da “arte de Hipócrates” e ainda sem contar com qualquer tipo de associação profissional que os representasse: médicos isolados e lutando por reconhecimento. Somente em 1931, fundou-se a Sociedade Médico- Cirúrgica do Rio Grande do Norte e em 14 de junho de 1933 adotou-se em sessão plenária o Código de Deontologia Médica, criado nacionalmente dois anos antes, em 1931.253 A SMC/RN e o CDM são expressões das mudanças por que passavam o país, com o surgimento de diversos institutos de amparo aos trabalhadores, como o Instituto de Aposentadoria e Pensão (IAP), que se desdobrou no Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos (IAPM), o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários 252 RIO GRANDE DO NORTE..., 1910, p.11. 253 DAVIM, Pau lo. A Sociedade de Medicina e os anos 1930. In: ______ (Org.). Médicos de ontem por médicos de hoje. Natal: co-edição do Autor:EDUFRN, 1999. p.24 e 27. 144 (IAPC), o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários (IAPB), e o Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Industriários (IAPI). O Departamento Nacional de Saúde fora criado nesse movimento, com base no decreto n. 19402, de 1930. 254 Em 1923, Anfilóquio Câmara, delegado do Rio Grande do Norte na Exposição Internacional do Centenário, publicou um livro, ainda no governo de Antônio de Mello e Souza, em comemoração ao centenário da Independência do Brasil. Nesta obra, ele descreveu as dependências do HCJB, afirmando que as especialidades que o hospital oferecia naquele momento, como odontologia, farmácia, oftalmologia e hidroterapia, eram todas ocupadas “por profissionaes idôneos, nomeados mediante concurso [...]”255. Assim, a década de 1920 trouxe para o HCJB os primeiros profissionais diplomados e aprovados em concurso, e não por indicação. É nessa década, então, que o discurso médico-higienista ganhou poder de intervenção efetiva no espaço urbano, constituindo aquilo que Michel Foucault256 chamou de Medicina Urbana. Em 01 de setembro de 1921, por meio do decreto n.148, a antiga Inspetoria Geral de Higiene e Assistência Públicas passou a denominar-se Diretoria Geral de Higiene e Saúde Pública, trazendo no seu bojo toda uma legislação de intervenção médico-sanitária no ambiente da cidade, incluindo até o espaço doméstico: Art. 85º - O isolamento domiciliário parcial será empregado para a tuberculose e a lepra (enquanto não houver no estado uma leproseria) de acordo com o preceituado pela Diretoria de Hygiene. Art.86 – Na febre amarella e no impalludismo far-se-á como regra o isolamento domiciliário de rigor. Art. 87 - O isolamento domiciliário de rigor fica dependendo das seguintes condições: 1º- Prestar-se a casa ao isolamento; 2º- ser o doente collocado em um quarto arejado e independente do resto da casa; 3º - Conservar, quando necessário, fechadas todas as portas de entrada, excepto uma, na qual se postará um guarda para impedir, segundo as instrucções, a sahida de pessoas e objectos e a entrada de outras que não sejam o médico assistente e as que apresentarem autorização escripta, e ficarem sujeitas a medidas prophylaticas... 257 254 NEVES, Nedy Maria Branco Cerqueira; SIQUEIRA, José Eduardo de. Conselhos de Medicina: criação, trajetória e consolidação. Brasília Médica. 46(2):140-14. 2009 , p.142. 255 CÂMARA, Anphilóquio. Scenarios norte-riograndenses. Rio de Janeiro: “O NORTE”, 1923.p.56. 256 FOUCAULT, Michel. O nascimento da Medicina Social.1977. In: Ditos e escritos VII: arte, epistemologia, filosofia e história da medicina. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p.410. 257 RIO GRANDE DO NORTE..., 1922, p.171-172. 145 Isolamento e vigilância dos indivíduos, prática de encarceramento : regras da disciplina dos espaços. Modelo de intervenção da “quarentena”, de gênese baixo- medieval, aplicada em países europeus e que hoje poderíamos chamar de uma espécie de “plano de urgência”.258 Essa preocupação com o corpo do indivíduo, com a sua localização espacial precisa, se estende para o próprio espaço, determinando as características próprias de um ambiente de isolamento. O Regulamento do Serviço Sanitário do Estado, de setembro de 1921, determinava as regras de construção das habitações da cidade do Natal: Art. 175º - Haverá para toda construcção uma superfície livre, dos lados, afim de que o immovel seja arejado e bem illuminado; Art. 176º - As paredes contiguas aos terrenos de nível superior serão revestidas de material impermeável, de modo a evitar as infiltrações e a consequente humidade; Art. 177º - Todos os pavimentos térreos, porões habitáveis ou não, areas, pateos, terrenos, etc., terão revestimento impermeavel; Art. 178º - Todas as construcções deverão, salvo casos especiais, ter o piso do seu primeiro pavimento a dez centímetros, no mínimo, acima do terreno exterior circunvizinho; Art. 179º - Todos os compartimentos do immovel terão sempre aberturas, portas ou janellas, para o exterior, de modo que recebam luz e ar directamente; Art. 180º - Todas as habitações deverão ter canalização especial de conducção das águas pluviaes para os esgottos ou sargetas das ruas; Art. 181º - as casinhas serão installadas longe dos aposentos de dormir, e não deverão communicar com as latrinas; Art. 182º – As chaminés de tiragem deverão exceder pelo menos um metro e cincoenta centímetros dos telhados das casas vizinhas; (...) Art. 183º - Haverá uma latrina para cada grupo de 15 indivíduos, e os banheiros e lavatórios indispensáveis. 259 Os objetivos de tais regulamentações tiravam seus fundamentos do campo médico: 1º - Prevenir e corrigir os vícios de construcção dos prédios, no que diz respeito aos interesses da saúde publica; 2º - Prevenir e corrigir as faltas de hygiene, provindas dos proprietários, arrendatarios, locatários e moradores; 3º - Evitar a manifestação e a propagação das doenças transmissíveis. 260 Em 1924, o governador Antônio José de Mello e Souza descreveu as inúmeras atividades da responsabilidade do “Departamento de Saúde Pública”, revelando o quão o Estado estendera sua atuação na cidade por meio da autoridade do 258 FOUCAULT, M. Op. cit. , p.413. 259 RIO GRANDE DO NORTE..., 1922, p.189-190. 260 Ibid., 185. 146 discurso médico, controlando as mais diferentes funções da vida social: Os serviços referentes á saúde e hygiene publicas no Estado do Rio Grande do Norte tiveram incontestavelmente um desenvolvimento considerável a partir de 1º de Janeiro do corrente anno. A policia sanitária, a verificação de óbitos, a fiscalização da limpeza publica e do matadouro, a inspeção meio-escolar por ora limitada á capital, os serviços de notificação, vigilância sanitária, fiscalisação das profissões de médicos, pharmaceuticos, etc, a remoção de enfermos, em caso de accidentes de rua, a hygiene das habitações, o serviço de vaccinação anti-variolica e anti-typhica, a estatística demographo-sanitaria, a assistência hospitalar sob as suas variadas formas, a construcção de fossas sanitárias, o exame dos empregados domésticos, a construcção de gabinete especial para exame do leite, de tudo isso e de muita coisa mais o Departamento de Saude Publica tem cuidado com um desvelo que muito recommenda os responsáveis pela sua direcção. 261 “de tudo isso e muita coisa mais”, eis o domínio infinito de aplicação do poder normalizador262. Praticamente todas as atividades que se desenrolavam no 261 RIO GRANDE DO NORTE. MENSAGEM lida perante o Congresso Legislativo na abertura da Primeira Sessão da 12ª Leg islatura em 1º de Novembro de 1924 pelo governador José Augusto Bezerra de Medeiros. 1924. p.20. 262 Em Foucault, a Norma relaciona-se às “disciplinas” no sentido de distanciamento do discurso jurídico da lei. A Norma opera segundo um código que não é legal, estende-se para além da regra ju ríd ica, alcança onde a lei não pode comparecer. A partir do século XIX, ela vai extrair suas regras do campo das ciências humanas e do saber clínico. As novas tecnologias do comportamento, com o avanço da medicalização social, farão emergir uma nova configuração do poder, que é nossa atual. Foucault procedia, então , a uma divisão dos sujeitos responsáveis pela criação de padrões de comportamento social em legais e normativos, detendo-se mais em seus estudos na segunda modalidade. O objetivo era mostrar que o controle sobre os indivíduos não se restringia à mecânica legalista, mas se expandia de outras maneiras, muitas vezes invisíveis à ordem legal. Como essas noções estão espalhadas entre a massa de entrevistas, artigos e livros de Foucault, recorremos às exp licações e comentários do historiador Jurandir Freire Cost a quanto às diferenciações entre essas ordens, apresentadas como se segue: A ordem da lei impõe-se por meio de um poder essencialmente punitivo, coercitivo, que age excluindo, impondo barreiras. Seu mecan ismo fundamental é o da repressão. A lei é teoricamente fundada na concepção ‘jurídico-discursiva’ e histórico-polit icamente criada pelo Estado medieval e clássico. A norma, pelo contrário, tem seu fundamentos [sic] histórico - políticos nos estados modernos dos séculos XVIII e XIX, e sua compreensão teórica explicitada pela noção de ‘dispositivo’. Os dispositivos são formados pelos conjuntos de práticas discursivas e não discursivas que agem, à margem da lei, contra ou a favor delas, mas de qualquer modo empregando uma tecnologia de sujeição própria.//As práticas discursivas que os integram compõem-se dos ‘elementos teóricos’ que reforçam, no nível do conhecimento e da racionalidade, as técnicas de dominação. Estes elementos são criados a partir dos saberes disponíveis –enunciados científicos, concepções filosóficas, figuras literárias, princíp ios relig iosos, etc... – e articulados segundo as táticas e os objetivos do poder. As práticas não - discursivas são formadas pelo conjunto de instrumentos que materializam o dispositivo: técnicas físicas de controle corporal; regulamentos administrativos de controle do tempo dos indivíduos e instituições; técnicas de organização arquitetônica dos espaços; técnicas de criação de necessidades físicas e emocionais etc.// da combinação destes discursos teóricos e destas 147 ambiente urbano foram objeto de normalização do Estado, de extensão de seu poder sobre a coletividade, a população. Bio-poder: governar não somente o indivíduo, mas gerir a vida. A disciplina aqui se constrói como mais uma técnica no domínio mais amplo da biopolítica. A passagem acima assinala a transição no tempo da disciplina para a governamentalidade, ou seja, da preocupação com os indivíduos por meio de uma série de procedimentos disciplinares para um interesse sobre as “instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas”263, que tem por finalidade a população com o propósito de governar a sua vida. É nessa perspectiva que o governador Juvenal Lamartine, em 1928, informou orgulhoso que o Rio Grande do Norte era o “Estado que, em relação á sua receita, mais fundos públicos dispende com a saúde de suas populações”, gestão bem mais complexa que necessitava de toda uma organização estratégica. 264 O crescimento das modalidades de intervenção do Estado na sociedade requer o reordenamento permanente da administração. Assim, o decreto n.239, de junho de 1924, diante de um emaranhado de funções do Departamento de Saúde Pública, reorganizou seus serviços criando três inspetorias e uma sub-Inspetoria Sanitária, cada uma chefiada por um médico, e com atividades específicas a desempenhar: São atribuições da 1ª Inspetoria: A remoção de enfermos, a hygiene das construcções, a vacinação ante-variolica e ante-typhica, a inspeção dos empregados domésticos e commerciaes, fiscalização do exercício da medicina e profissões correlatas, o registro de nascimentos, a notificação obrigatória, a vigilância sanitaria e a prophylaxia geral das moléstias transmissíveis. regras de ação prática o dispositivo ext rai seu poder normalizador. A lei, através da repressão, busca principalmente negar desqualificar, obstruir a via de acesso indesejável. A norma, embora possa incluir em sua tática o momento repressivo, visa prioritariamente a prevenir o virtual, produzindo fatos novos. A regulação é o mecanismo de controle que estimula, incentiva, diversifica, ext rai, majora ou exalta comportamentos e sentimentos até então inexistentes ou imperceptíveis. Pela regulação os indivíduos são adaptados à ordem do poder não apenas pela abolição das condutas inaceitáveis, mas, sobretudo, pela produção de novas características corporais, sentimentais e sociais.// Segundo Foucault, o século XIX assistiu à invasão progressiva do espaço da lei pela tecnologia da norma. O Estado moderno procurou implantar seus interesses servindo-se, predominantemente, dos equipamentos de normalização, que são sempre inventados para solucionar urgências políticas (COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 5. ed. Rio de Janeiro : Graal, 2004.p.50-51). 263 FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. Curso do Collège de France, 1º fev. 1978. In: ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.p.291. 264 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo presidente do Estado do Rio Grande do Norte Juvenal Lamartine á Assembléa Leg islativa e lida na abertura da primeira sessão da 14º Leg islatura em 1º out. 1928. p.27. 148 Da 2º Inspetoria: a policia sanitária, serviço cadastral, fiscalização dos gêneros alimentícios e fiscalização do leite. Da 3ª Inspetoria: a verificação de óbitos, a hygiene do matadouro, mercado e feiras-livres. Da sub-Inspetoria: a fiscalização dos gêneros alimentícios em geral e da venda de moveis e utensílios domésticos feita em leilão. 265 E nesta “invasão” médico-sanitária nem os móveis e utensílios domésticos postos a venda em leilões escaparam: Alguns dias antes de sua venda, são os moveis visitados e exigidas as necessárias medidas de limpeza e de envernizamento, de exposição ao sol e desinfecção, no caso de terem servidos a doente atacados de moléstia contagiosa. 266 Codificação médica total, cotidiana, que não visa apenas o ato, mas a potência, a virtualidade: o “horizonte de espera” mais que o presente; extensão ilimitada das superfícies de contato, por onde corre frenético o perigo constante, a ameaça de morte, a finitude dos seres. A doença pode estar em todos os lugares, e um simples móvel doméstico pode conter todo um perigo à população. Olhar pan-óptico... ... Da cidade e também do campo, que recebera a ação dos serviços de Saneamento Rural em acordo firmado entre o governo federal e Estado do Rio Grande do Norte em 1921. Sob a direção de Waldemar de Sá Antunes, as atividades desse programa se dividiam em sete seções: Saneamento Rural, Profilaxia da Sífilis e das doenças venéreas, Profilaxia da Lepra e Assistência aos Leprosos, Profilaxia da Febre Amarela, Laboratório Bacteriológico, Profilaxia da Tuberculose e Gabinete de Radiologia, acrescidas em 1927 do Gabinete de Radiologia, Laboratório de manipulação de ampolas e do Serviço Pré-Natal.267 A secção de Saneamento Rural, por sua vez, contava com oito postos sanitários (Central, Alecrim, Ceará-Mirim, Canguaretama, São José, Caicó, Lages e Volante) e quatro sub-postos (Acary, Angicos, Goianinha e Baixa- Verde).268 Todavia, embora essa documentação administrativa seja prolífica em descrever as incontáveis operações de intervenção médico-sanitária no “corpo social”, 265 Ibid., p.27. 266 Ibid., p.28. 267 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante a Assembléa Legislativa na terceira sessão da 12º Legislatura em 1º out. 1926 pelo Presidente José Augusto Bezerra de Medeiros [...]1927.p.53. 268 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da 12ª legislatura em 1º de novembro de 1925 pelo governador José Augusto Bezerra de Medeiros. Natal: Typ. d’A República, 1925.p.38-39. 149 tentando nos convencer das ações eficazes implementadas pelos governos na “guerra” diária contra os fenômenos mórbidos, isto não significa que essas ações tenham ocorrido efetivamente tal como nos são descritas e a-presentadas. Natal nas primeiras décadas do século XX não era a Paris do Barão de Hausmmann, nem a Inglaterra do Health Serv ice e do Health Office do final do século XIX, nem muito menos o Rio de Janeiro de Pereira Passos. Nossas estatísticas eram modestas: segundo o Anuário Estatístico do Brasil269, Natal tinha em 1920 uma população de cerca de 30.696 habitantes (o médico Januário Cicco falava em 22 mil pessoas!270; o Departamento de Saúde, em publicação no jornal A República de 1º de julho de 1929, estimava em 22.722), enquanto a população do Rio Grande do Norte contava com apenas 537.135 moradores.271 Dimensões reduzidas de população e espaço urbano que nos levam a questionar a presença de tantos médicos pela cidade e também nos demais municípios do Estado. Em 1912, na Mensagem do Governador Alberto Maranhão 272, reclamava-se da “ausencia de médicos na mor parte dos municípios” e da “irregularidade com que se faz o registro civil”, o que impedia “a organização de uma estatística geral nesse departamento da administração”. Problemas no registro demográfico-sanitário que se prolongarão por outras administrações, produzindo queixas ainda em 1917 273, 1921274 e 1923275, estes últimos quando já fora implantada a Diretoria Geral de Higiene e Saúde Pública e seus Boletins de Estatística Demografo-Sanitária. Toda essa pletora de funcionários, departamentos, atividades e funções médico-sanitárias que pululam nas Mensagens de Governo pode nos induzir ao 269 INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA. Anuário estatístico do Brasil. Rio de Janeiro: tipografia do Departamento de Estatística e Publicidade, 1936, p.46. 270 CICCO, Januário. Como se hygienizaria Natal: algumas considerações sobre o seu saneamento. 1920. Reprodução fac-similar encartada no livro: LIMA, Pedro de. Saneamento e modernização em Natal: Januário Cicco, 1920, p.14. 271 CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Rio de Janeiro: Achiamé; Natal: Fundação José Augusto, 1984.p.51. 272 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da Terceira Sessão da Sétima Legislatura em 1º de Novembro de 1912 pelo governador Alberto Maranhão. Natal: Typ. d’A República, 1912. p.16. 273 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da nona legislatura em 1º nov. 1917 pelo Governador Desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. d´A República,1917.p.8. 274 RIO GRANDE DO NORTE..., 1921, p.16. 275 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da terceira sessão da undecima legislatura em 1º de Novembro de 1923 pelo governador Antônio José de Me llo e Souza. Natal: Typ. d’A República, 1923. p.31. 150 equívoco de imaginar uma cidade homogênea, uniforme, completamente disciplinada: cidade benthaminiana por excelência. A descrição exaustiva das atividades médico- sanitárias deve ser relativizada, deslocada para um contexto discursivo, podendo ser apreendida como “vontade de representação”, “desejo” que os administradores da cidade e do Estado tinham de representar-se como modernos, portadores de um ideal de civilidade segundo modelos europeus. Discurso político que intentou instaurar uma ordem de dizibilidade e vizibilidade para o espaço urbano e para os seus habitantes. A suposta desordem da cidade justificaria as reformas dessa espacialidade, a reorganização dela de acordo com parâmetros higiênicos e sanitários europeus, reestruturação levada a cabo pelas autoridades da administração local. Essa relativização do poder disciplinar, que possibilita desvelar suas táticas e estratégias, ao mesmo tempo que lhe anuncia horizontes, limites, é o fio condutor para compreendermos a complexidade das relações que instituem e fazem funcionar o espaço nosocomial do Hospital de Caridade Juvino Barreto. Deslizando a abordagem teórica do HCJB-objeto como um instrumento disciplinar da biopolítica para um tratamento mais localizado, específico, que canalize a disciplina para uma reflexão em torno de uma ordem espacial particular, com suas zonas de tensão próprias, veremos que o “Hospital do Monte” se constituiu num mosaico de forças que não se deixaram subsumir a uma noção de poder disciplinar strictu senso. As relações de força que emergiam do processo de “docilização” do espaço hospitalar sinaliza-nos na direção de um poder proto-disciplinar, isto é, esquadrinhamento do espaço e distribuição dos indivíduos nele conforme princípios de encarceramento e exclusão, realizado em permanente conflito na luta pela posse e significação do espaço. Tal redirecionamento e aclimatação do referencial teórico foucaultiano a contextos espaço-temporais distintos é requisito indispensável na reflexão a que nos propomos aqui. Devemos pensar a reflexão de Foucault sobre o poder a partir de uma perspectiva histórica, como nos alerta o filósofo Roberto Machado: [...] é preciso observar que as análises de Foucault sobre o poder fazem parte de investigações históricas delimitadas, c ircunscritas, com objetos bem demarcados. Por isso, embora ás vezes suas afirmações tenham uma ambição englobante, inclusive pelo tom não raro provocativo e polêmico que as caracteriza, é importante não perder de vista que se trata de análises particularizadas, que não podem e não devem ser aplicadas indistintamente a novos objetos, fazendo-lhes assumir uma postura metodológica que lhes daria universalidade. 276 276 MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber, p.172. 151 E esclarecendo o contexto de produção de Foucault sobre a temática do poder, comentou: Se Foucault começou a formular explicitamente a questão do poder foi em resposta a questões levantadas pela pesquisa que realizava sobre a história da penalidade, quando apareceu para ele o problema de uma relação específica de poder sobre os indivíduos enclausurados que incidia sobre os corpos e utilizava uma tecnologia própria de controle. E essa tecnologia não era exclusiva da prisão; encontrava-se também em outras instituições como o hospital, a caserna, a escola, a fábrica, como indicava o texto mais explícito sobre o assunto, o Panopticon, de Jeremy Bentham. 277 É assim que preferimos falar em proto-disciplina e não em disciplina strictu senso, considerando as especificidades que recobrem a análise do espaço hospitalar do Juvino Barreto. Em resumo, a análise do HCJB como efeito de técnica disciplinar deve considerar as seguintes tensões: 1. Ausência de uma “classe médica” com seu corolário institucional (associações, legislação etc.) e discursivo (campo do discurso formado por enunciados puramente médicos); 2. Convivência de diferentes concepções sobre o télos do espaço hospitalar: Hospital Religioso X Hospital Terapêutico ou Patológico; 3. Fracionamento do atendimento hospitalar segundo duas tendências: as enfermarias dos “pobres” e as enfermarias dos pensionistas, que podiam pagar pela internação, tensão embrionária entre “hospital particular” e “hospital público”; 4. Heterogeneidade dos princípios de divisão do espaço hospitalar, que reunia a um só tempo critérios de classificação nosológicos, sexuais, econômicos e sociais. Nas primeiras décadas do século XX, Natal não contava com um vasto “corpo” médico espalhado pela cidade. Durante quinze anos, por exemplo, as atividades do Hospital de Caridade só tiveram à frente um médico diplomado, o doutor Januário Cicco, e um prático, José Lucas do Nascimento. Nem mais nem menos. O próprio Januário, na ausência de concorrência dos colegas de profissão, desempenhava outras funções além do trabalho hospitalar: ele atendia em clínica particular na Av. Dr. Sachet, atual Av. Duque de Caxias, no prestigioso bairro da Ribeira. Médico-cirurgião, Diretor do HCJB e chefe de clínicas dessa mesma instituição: acúmulo de funções e escassez de 277 Ibid., p.172-173. 152 médicos formados. Aos poucos, outros médicos apareciam no cenário da cidade. Seus nomes e especialidades começam a ser estampados em anúncios nas páginas do jornal A República: “médico-cirurgião”, “médico de boca, garganta e nariz” (atual otorrinolaringologia, especialidade de Januário!), “médico de estômago”, entre outros. Na década de 1920, os nomes de médicos já surgem com facilidade. À equipe do HCJB, ainda no governo de Antônio de Mello Souza (1920-1924), somaram-se Clidenor Lago, na chefia da clínica de Odontologia, e Adolfo Ramires, na batuta da clínica de Oftalmologia. Em 1927, incorporam-se os médicos Ernesto Fonseca, Luís Antônio e Aderbal de Figueiredo.278 “Manchas” de esculápios no mapa da cidade, mas não uma classe para si de profissionais. Como vimos, a nossa primeira agremiação médica do Estado fora a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio Grande do Norte (SMC/RN), fundada em 1931, data posterior ao período que estudamos aqui (1909-1927). Nessa sociedade médica, o número dos esculápios presentes já era significativo da existência de uma classe de profissionais da medicina: A sessão inaugural foi presidida pelo médico Ernesto Fonseca e contou com a presença dos médicos Nélio Tavares, Luiz Antonio, José Tavares, Otávio Varela, Baia Monteiro, Aderbal de Figueiredo, Manuel Vitorino, Aníbal Azevedo, Paulo de Abreu, Oscar Gordilho, Januário Cicco, Abdon Farkatt e José Neves [...]. 279 Mostrando seu caráter classista, a associação ainda registrou a adesão de médicos de outras cidades e Estados: Foram consignadas em ata as adesões dos médicos Alfredo Lira, Varela Santiago, Antonio China, Afonso Barata, Paulo Roanet e Ricardo Barreto, de Natal; Mariano Coelho, de Currais Novos; José Varela, de Caicó; Armando China, de Macau; Pedro Amorim e Ezequiel Fonseca Filho, de Açu; Lauro Wanderley, de João Pessoa; Caldas Bivar de Recife; Heitor Carrilho e Aristides Monteiro, do Distrito Federal. 280 Aliás, embora não fosse propriamente uma sociedade para os médicos, a Sociedade de Assistência Hospitalar (SAH), associação médica particular criada em 1927 e presidida por Januário Cicco, já esboçava, quatro anos antes da SMC/RN, um espaço comum de reunião dos representantes da “arte de Hipócrates” na cidade do 278 ARAÚJO, I. Januário Cicco: um homem além de seu tempo, p. 18-20. 279 Ibid., p.108. 280 Ibid., p.108-109. 153 Natal. Um código de conduta formal, elaborando uma ética profissional a ser seguida pelos médicos, teve sua primeira aparição nacional somente em 1931, sendo aceito pela nossa SMC/RN apenas em sessão plenária de 1933. Tratava-se do Código de Deontologia Médica. No período anterior a década de1920, e se estendendo um pouco para além dela, não encontramos, portanto, uma classe médica coesa, forte, impondo seu poder ao restante da sociedade natalense: o processo de medicalização ainda não encontrara seu termo absoluto. Essa virtualidade ou potência da ação médica serve como medida clara do alcance do poder disciplinar,seus limites, e que se manifesta no próprio interior do HCJB. Em torno de 1915, o Hospital de Caridade só contava com uma equipe de dois médicos, Januário Cicco e Otávio Varela, tendo como auxiliares as irmãs Filhas de Santana, que desempenhavam as mais diferentes funções no hospital: “enfermeiras”, administradoras, capelãs, auxiliares de cirurgia, entre outras manifestações habituais de polivalência. Perspectivas de Hospital Terapêutico e Hospital Religioso tinham, assim, de conviver no mesmo ambiente: hospital mestiço. Mestiçagem espacial que se expressou na multiplicidade de critérios de individualização da espacialidade do HCJB. Essa diferença de princípios classificatórios, em seus rastros, sinaliza sugestivamente para uma compreensão mais elástica de alguns aspectos do espaço hospitalar do Juvino Barreto. Com efeito, uma concepção ontológica do espaço de cura não conseguiria capturar as várias linhas de fuga que se desenhavam em seu interior, o jogo das diferenças que se manifestavam sob sua aparente identidade. Pensar o hospital como devir, vir-a-ser, potência, virtualidade, máscara... Em oposição ao hospital como ontos, ato, realidade, identidade. Hospital em permanente movimento, em construção, que se desvela no tempo e no espaço, sem se mostrar por completo, pois não tem inteireza. Essa perspectiva ajuda a explicar as diferenças e conflitos sem recorrer ao autoritarismo do expurgo, o caráter demissionário de algumas abordagens, que costumam historiar o espaço-hospital sob o prisma da continuidade, da semelhança, que buscam o eternamente latente no embrião da futura planta. O HCJB não pode ser visto, sob o risco de perder sua dinâmica própria, como o gérmen de nenhum hospital de hoje, equívoco da retrodicção do historiador. O HCJB não é o atual Hospital Universitário 154 Onofre Lopes (HUOL)281!... O léxico utilizado para designar o espaço hospitalar do HCJB era cambiante, indício de divergências de entendimento acerca da razão de ser do hospital na cidade, de desfamiliarização com aquele espaço. Os contemporâneos ora chamava-no de Hospital do “Monte”, ora de Hospital de Caridade, ora de Hospital Juvino Barreto, ora de Hospital de Caridade “Juvino Barreto” (com aspas mesmo...), discordâncias ligadas à dificuldade de assumir a fratura espacial operada pela emergência do HCJB: da Ribeira para a Cidade Nova; da zona pestilencial e pantanosa para os ventos salubres oriundos do oceano Atlântico. Na documentação legal, quando da mudança de localização do hospital, falava-se em “reforma”, pensando que o antigo Hospital de Caridade continuaria na figura do HCJB. No jornal O Diário do Natal, de 14 de setembro de 1909, discutia-se até a propriedade do patronímico “Juvino Barreto”: em seu lugar, o nome mais indicado seria o do “Padre João Maria”, falecido em 1905. Dinâmica da nomenclatura, que se replica no processo de expansão das dependências e funções do HCJB. Casa de veraneio e pequeno pavilhão em 1909, o hospital ganhou progressivamente novos espaços, passando a compor verdadeira “rede nosoespacial”. Em 1910, um ano após a inauguração, já se planejavam ampliações: Estão sendo construídas três grandes salas destinadas ao recebimento de pensionistas de 1ª e 2ª classe, e serão brevemente installados gabinetes de bacteriologia e anatomia pathologica, bem como uma sala de hydroterapia e electricidade medica. 282 Em 1914, falava-se da necessidade de aumentar os compartimentos, do tamanho dos banheiros e colocação de aparelhos sanitários; em 1917, mencionava-se uma “remodelação completa”, sem descrição dos detalhes; em 1921, abria-se um posto de profilaxia de moléstias venéreas; em 1923, surgiam os gabinetes de Odontologia e Oftalmologia; em 1924, ensaiava-se o Laboratório de Analyses (só inaugurado em 1925), sob a responsabilidade do químico Francisco Gomes Varella, ampliação das enfermarias das mulheres e um Laboratório Bacteriológico. Todas essas reformas no prédio do HCJB eram realizadas de modo pontual, sem a existência de um projeto que 281 O nome de Hospital Universitário Onofre Lopes foi produto da resolução n.68, de 1º de novembro de 1984, aprovada pelo Conselho universitário (CONSUNI) da UFRN. Tratava-se de uma homenagem ao médico e ex-Reitor da UFRN Onofre Lopes. Anteriormente, o hospital recebera as denominações de Hospital de Caridade “Juvino Barreto” (1909), Hospital Miguel Couto (1935) e Hospital das Clínicas (1960). 282 RIO GRANDE DO NORTE..., 1910, p.10. 155 guiasse o conjunto delas. A primeira menção que encontramos às figuras de um engenheiro e um arquiteto nesse processo de ampliações só veio a aparecer em 1929, no governo de Juvenal Lamartine: As obras de reconstrucção e ampliação que estão sendo feitas sob a orientação do engenheiro Dr. Decio Fonseca, obedecem ao plano de um projecto de architecto extrangeiro. Concluidas ellas, o Hospital apresentará um aspecto imponente e ficará apparelhado de acordo com as exigências modernas da sciencia. 283 “Reconstrucção” planejada que continuava no ano de 1930, buscando conferir ao Hospital ares de modernidade, ligando arquitetura e engenharia a serviço do olhar: [...] [o] prédio está passando por uma verdadeira reconstrucção, sob a direcção technica do benemérito engenheiro Decio Fonseca. Vamos ter em breve, um edifício de vastas proporções e grande valor architectonico, ao lado dos benefícios cada dia maiores, que lhe deve a população do Estado. 284 As ampliações no espaço médico do Juvino Barreto entre 1910 e 1930, na maioria das vezes intervenções localizadas e mais ligadas ao voluntarismo do que ao planejamento, corroboram, portanto, a nossa visão de um espaço em movimento, em trânsito. Expansão de estruturas e funções na forma de uma espécie de aritmética espacial: mais uma enfermaria, mais um gabinete, mais um anexo, mais sala de cirurgia... Soma das partes que não chegam ao todo, peças adicionadas que pedem outras peças, lógica da disciplina infinita do espaço médico. Infinita, sim... mas não absoluta em todo lugar e tempo! 283 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo exmo. Dr. Juvenal Lamartine d e Faria, Presidente do Estado do Rio Grande do Norte á Assembléa Legislativa por occasião da abertura da 3º Sessão da 13º Leg islatura em 1º out. 1929. p.71. 284 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo presidente Juvenal Lamartine de Faria a Assembléa Legislativa, por occasião da abertura da 1º Sessão da 14ª Legislatura. Natal: Imprensa Official, 1930.p.80. 156 Segundo Foucault285, “A disciplina é uma técnica de poder que implica uma fiscalização constante e perpétua do indivíduo”, que “supõe um registro permanente: anotações sobre o indivíduo, relação dos acontecimentos, elemento disciplinar, comunicação das informações para os escalões superiores [...]”, cujo principal instrumento de atuação reside no exame. Ainda de acordo com Michel Foucault, O exame é a vigilância permanente, classificadora, que permite repartir os indivíduos, julgá-los e avaliá-los, localizá-los e, assim, utilizá-los ao máximo. Por meio do exame, a individualidade se torna um elemento para o exercício do poder. 286 No HCJB, tal vigilância se materializava nos Livros do Movimento Hospitalar, que registravam a entrada e saída dos pacientes no hospital. Neles, anotavam-se informações como nome do paciente, tipo racial, idade, data da entrada, motivo do internamento, razões da saída etc. No interior das enfermarias, havia sobre cada leito uma prancheta com os dados pessoais dos doentes, prontuários de sua condição de saúde. Além dessas formas de registro, as freiras de Santana organizavam estatísticas periódicas, publicadas semestralmente no jornal A República e reunidas nas 285 FOUCAULT, Michel. A incorporação do hospital na tecnologia moderna, 1978. In:______. Ditos e escritos VII: arte, ep istemologia, filosofia e história da medicina. Rio de Janeiro: Forense, 2011.p.453. 286 Ibid. Fig. 27 - Vista lateral do HCJB. Ao fundo, vê-se o Asilo de Mendicidade Padre João Maria, hoje o prédio do Centro de Turismo. Fonte: DAVIM, 1999. 157 Mensagens dos Governadores. Os rituais de visitas287, tópico específico do exame, não são descritos na documentação relativa ao hospital, mas podemos presumir, com base em fotografias e anotações de Januário Cicco, que a presença médica deveria ser diária, além da frequência visitadora das “enfermeiras”. É preciso, todavia, atentar para os elementos que, segundo Foucault, estruturam o exame. Os “rituais de visita” tinham um caráter específico: [Era] um desfile quase religioso conduzido pelo médico e seguido por toda a hierarquia do hospital: assistentes, alunos, enfermeiras etc. que se apresentavam diante do leito de cada doente. 288 Não era exatamente assim que se processava a presença dos médicos e “enfermeiras” no Juvino Barreto. A descrição de Foucault introduz um outro ingrediente além do olhar cotidiano dos funcionários do hospital, do contato entre médico e paciente: a existência de faculdades de Medicina que utilizassem o hospital como lugar de aprendizado e experiência. Isto nossa assistência hospitalar não detinha. A primeiro estabelecimento de ensino superior do Rio Grande do Norte foi a Escola de Pharmacia de Natal, criada em 2 de dezembro de 1920 (Lei nº 497) e instalada em 1923, durante o governo de Antônio de Mello e Souza. Em 1923, surgiu o curso de Odontologia, anexo ao prédio da instituição, que passou a chamar-se Escola de Pharmacia e Odontologia. Faculdade de Medicina só mesmo em 1955, fruto da Semana de Estudos Médicos Cirúrgicos.289 Neste sentido, podemos afirmar que o poder disciplinar no espaço do HCJB não produziu o seu correspondente saber, isto é, o espaço hospitalar não se constituiu como lugar de formação do médico, onde ele estagiaria à beira do leito dos doentes, aprendendo sobre a doença observando-a in loco, ao vivo, escutando atentamente as informações do professor mais experiente, que treinava o olhar dos alunos, abrindo as portas da chamada medicina hospitalar290. Para Michel Foucault, todo poder, ou mais propriamente as “relações de poder”, produz necessariamente um tipo de saber objetal sobre os indivíduos e dos indivíduos. Segundo Jacques Revel291, o saber ligou-se ao poder quando na Idade Clássica o discurso da racionalidade- separação entre científico e 287 Ibid., p.457. 288 Ibid. 289 ARAÚJO, Iaperí. História da Faculdade de Medicina (1955-2005). Natal: EDUFRN, 2007.p.15 e 27. 290 BYNUM, William. História da medicina, p.53. 291 REVEL, Jacques. Dicionário Foucault, p.134-135. 158 não-científico, normal e anormal, racional e não-racional- produzirá uma reordenação do mundo e dos indivíduos mediante uma forma de governo e procedimentos disciplinares que assegurassem a constituição de saberes locais, entendidos como instrumentos de acumulação: técnicas de arquivamento, conservação e registro, métodos de investigação e pesquisa, aparelhos de verificação etc. A tese do dispositivo saber-poder está ligada à fase genealógica de pesquisas realizadas por Foucault, a partir dos anos 1970, que tomavam como objeto a questão do poder, quer exercido sobre os indivíduos (disciplina e modos de subjetivação), quer sobre as populações (biopoder). O saber, por sua vez, não poderia ser definido como ciência-conhecimento, isto é, um discurso com pretensão de verdade, composta de proposições articuladas sistematicamente, “sobre classes de objetos considerados cognoscíveis”, obtidos por “um processo complexo de racionalização, de identificação e classificação dos objetos independentemente dos sujeitos que os apreende”292. Saber, em Foucault293, designa “aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva”, constituída por um domínio de objetos, tipos de enunciação, conceitos e estratégias. No HCJB, produziu-se uma massa documental que condensava informações sobre os doentes internados, como nos LMHs, prontuários e receitas. Registros médico- administrativos e boletins estatísticos surgiam como “técnicas de arquivamento, conservação e registro”, mas não se davam à aplicação de “métodos de investigação e pesquisa”, típicos do ambiente acadêmico. O que se sabia sobre os doentes fora resultado de aprendizado dos médicos em seus cursos regulares nas faculdades da Bahia e do Rio de Janeiro, e não no Hospital Juvino Barreto. A prática discursiva que permitia dizer o HCJB vinha de outros espaços... 2.7 A pharmaceutae dos pharmacopoei no hospitalium 294: receitas, remédios e fórmulas Dormitório, rouparia, enfermarias e farmácia..., eis o trajeto a que nos convidou o jornalista Emerenciano Montano. A ordem da “visita” não é aleatória, é estratégica: a descrição englobou tais espacialidades segundo critérios de necessidade funcional/terapêutica: o doente que será internado precisa vestir-se com roupa 292 Ibid., p.134. 293 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, p.204. 294 Palavras em Latim que significam respectivamente “farmácia”, “farmacêuticos” e “hospital”. 159 apropriada ao espaço hospitalar, sendo, posteriormente, conduzido ao seu leito, onde receberá os cuidados do médico e enfermeiras, incluindo-se aí os medicamentos para a cura. Por isso, dar vizibilidade à farmácia depois das enfermarias, que exercem função nuclear no hospital: relação centro-periferia, dependência funcional. A “rouparia” era o espaço que guardava as roupas utilizadas pelos internados. Esse vestuário que os doentes internados costumavam vestir era resultado ora da benemerência295, doações de empresários, como Juvino César Pais Barreto, ação perpetuada após sua morte pela esposa Inês Barreto, ora de contratos co m empresas, como a Companhia Indústria Reunidas, que, em 1927, passou a fornecer sabão e tecido para o HCJB, obrigação registrada na cláusula XX do contrato com a Sociedade de Assistência Hospitalar (SAH): O Governo do Estado, por intermédio do respectivo Almoxarifado, continuará a fornecer ao Hospital, da quantidade que recebe da Companhia Industria Reunidas, em virtude do contrato existente, 1500 kg de sabão e 4500 metros de tecidos de algodão para vestuário dos enfermos pobres. 296 Na farmácia, a responsabilidade estava a cargo das freiras de Santana, que exerciam a função provisoriamente, auxiliadas pelo médico Januário Cínico: ...e a bem montada farmácia, sob a direção de uma das irmãs religiosas e sob a imediata inspeção do diretor clínico. 297 A tabela dos funcionários do HCJB, publicada no jornal A República em 6 de agosto de 1909, menciona uma “servente de farmácia” para o exercício da função.Por que não um (a) farmacêutico (a)? Dificuldades de dois tipos: encontrar um 295 As doações para os estabelecimentos hospitalares constituíam prática comu m, relacionadas ao caráter religioso da gênese dessas instituições. Os ideais de filantropia e caridade eram frequentemente estimulados pelas autoridades políticas do Estado, que viam na in iciat iva privada o melhor meio de manter adequadamente as instituições de assistencia social, principalmente nos Estados com problemas de receitas, como foi o caso do Rio Grande do Norte. No expediente do dia 7 de abril de 1898, constante no jornal A República, discriminou-se em detalhes uma lista de doações ao Hospital de Caridade e seus respectivos doadores: Juvino Barretto & C., com 500 jardas de algodão; Angelo Roselli, com 67 fronhas e 40 toalhas; Silva Mesquita & C., com 20 talheres; José Gomes Tinôco, com 39 “casaes” de chícaras de Agatha; Manoel Maria Lobato, com 23 jardas de madrepolão; Nicolão B. Gois, com de ex Ford (sic); Mello & C., 24 colheres de sopa, de metal; Olympio Tavares, com 35 calças; Urbano dos reis & C., com 30 calças; Miguel Joviniano, com 4 bules de flandres; José Lucas da Costa, com 1 pá de ferro e 2 grelhas; Antônio de Paulo, com 1 tacho; Matheus Petrovich, com 29 metros de chita; Pedro Duarte, com 16 metros de chita; Vicente Cicco, com 15 metros de chita; e Fabrício & C., com 16 cobertores de algodão. Ter seu nome ligado a uma lista de doação conferia status ao doador, vizib ilidade social. 296 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante a Assembléa Legislativa na terceira sessão da 12º Legislatura em 1º out. 1926 pelo Presidente José Augusto Bezerra de Medeiros [...]1927.p.63. 297 MEDEIROS, Tarcísio de. Ontem, Hospital do “Monte”, hoje Hospital Miguel Couto. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte . Natal, vol.53, 1959, p.43. 160 (a) e ter como pagá-lo (la). Segundo dados da Inspetoria Geral de Higiene Pública, em julho 1888, a Província do Rio Grande do Norte reunia minguados quinze médicos e apenas quatro farmaceuticos!298 Durante as epidemias no século XIX, não era raro encontrarmos leigos atuando como farmacêuticos ou boticários. A reforma médica de 1832 intentava criar curso farmacêutico nas faculdades de medicina do Império. O aluno deveria, antes ou após o curso, praticar por três anos numa botica de um boticário diplomado. A formação desse profissional era bastante difícil, a ponto de Manoel Francisco Peixoto, diplomado farmacêutico pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, reclamar em discurso na Academia Imperial de Medicina, em 1838, a respeito do esvaziamanento do curso de farmácia em comparação com o curso médico. A Legislação Imperial preferiu revalidar os antigos exames de farmácia a incentivar os antigos praticantes frequentarem curso superior. 299 O ensino farmacêutico durante todo o Império esteve concentrado nas faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, com exceção feita apenas para a Escola de Farmácia de Ouro Preto, criada em 1839. Na República, com a primeira Constituição, em 1891, o sistema de ensino fora descentralizado, possibilitando a criação de cursos em outros Estados. Mesmo assim, os farmaceuticos tinham à disposição poucos cursos, todos dependentes das faculdades de Medicina, sem contar a ausência de representação corporativa. No final do Império e começo da República, fundou-se o Centro Farmacêutico Brasileiro (1893), iniciativa do general farmacêutico Augusto César Diogo e do farmacêutico Antônio Silva Braga, e, no mesmo ano, a Associação Brasileira dos Farmacêuticos (1893), presidida pelo farmacêutico Luiz Oswaldo de Carvalho.300 Assim se explica a presença de uma irmã de Santana como “servente de farmácia”, atuando como “prática”, função a título precário, tendo de ser acompanhada por médico diplomado. Em Natal, uma instituição superior só seria criada em 2 de janeiro de 1920, pelo decreto n.192, autorizado pela Lei 497. Seu funcionamento só ocorreria três anos depois, em 1923, no governo de Antônio José de Melo e Souza. Em sua Mensagem ao 298 CASCUDO, Câmara. História da cidade do Natal, p.256. 299 EDLER, Flávio Coelho. Boticas & Pharmacias: uma h istória ilustrada da farmácia no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2006.p.63-64. 300 Ibid., p.85. 161 Congresso Legislativo, relatou a criação legal da instituição e o funcionamento da Escola naquele ano: Embora com difficuldades de varia ordem, das quaes a primeira em data era a do próprio local para a sua installação, poude ser inaugurada no corrente anno a escola de Pharmacia creada pelo decreto n.192, de 8 de janeiro deste anno, conforme auctorização dada pela lei n.497, de 2 de Dezembro de 1920. Comquanto sem nenhuma dotação, não foi difficil encontrar médicos e pharmaceuticos, dos mais conhecidos e conceituados da capital, que se incumbiram da regência das cadeiras do curso, facto lisonjeiro que certifica o patriotismo e o desinteresse desses profissionaes. 301 O “patriotismo e desinteresse” significava, muitas vezes, trabalhar com seus próprios recursos, sem o auxílio do Estado. No mesmo ano, por exemplo, inauguraram-se os gabinetes Odontológico e Oftalmológico, montados ambos com recursos dos próprios médicos. A Seção de Odontologia recebeu proventos dos dirigentes da antiga sociedade cooperativa de operários e funcionários da Estrada de Ferro Central, incluindo um prédio na Vila de Lages. Já na seção de Oftalmologia, Adolpho Ramires trabalhou com seu próprio material, adquirido em Paris por 13000$.302 Mesmo com as reformas do ensino superior de 1910 e 1915, que permitiam, respectivamente, a criação de instituições de ensino superior por iniciativa de particulares e a fiscalização do ensino livre pelo Conselho Federal de Ensino 303, a garantia da presença de farmacêuticos ainda era condicionada pelo voluntarismo do “patriotismo e desinteresse”. Ainda que contando com essas dificuldades, a Escola de Farmácia abriu suas portas para os futuros farmacêuticos do Estado: Assim as aulas do primeiro anno tiveram começo em 16 de abril, fazendo a primeira preleção, da cadeira de História natural, o notável clinico Dr. Adolpho Ramires. Matricularam-se apenas quatro alumnos, previamente approvados no exame vestibular, mas alem desse a Congregação permittiu a frequência a 22 “ouvintes” que, uma vez preenchidas em tempo as formalidades regulamentares, poderão ser admitidos a exame do primeiro anno. A assiduidade, quer dos professores, quer dos alumnos, tem sido sempre a mesma do primeiro dia, e tudo parece indicar que a Escola preencherá cabalmente os fins a que se destina. Para facilitar o estudo 301 RIO GRANDE DO NORTE..., 1923, p.13. 302 Ibid., p.35-36. 303 EDLER, F. Op. cit., p.110-111. 162 das sciencias physicas e naturaes do primeiro anno, foi permitida a utilização dos gabinetes do Atheneu Norte-Rio-Grandense, em cujo edifício funcciona a escola, enquanto não dispõe esta de gabinetes proprios. 304 Mesmo com a Escola em pleno funcionamento, parece-nos que a presença de farmacêuticos no HCJB não foi uma constante. Em todos os relatórios contidos nas Mensagens dos Governadores nas três primeiras décadas do século XX, nenhum nome de profissional de farmácia fora mencionado, embora normalmente se preste contas do aviamento de receitas no chamado “Movimento de Farmácia”. Essa ausência de farmaceuticos habilitados se estendia para além do hospital e fora alvo das críticas do médico Januário Cicco, que em suas “Notas” narrava casos desastrosos de intervenção de falsos profissionais de farmácia: Não faz muito tempo entrou no Hospital “Jovino Barreto” um doente operado por um pharmaceutico, sem pharmacia, mas negociante e agricultor, que nas horas vagas pratica a medicina. Consequente a estreitamento urethral, formaram-se fistulas, após um abcesso urinoso, em toda a região urethro-prostatica; e o senhor pharmaceutico, pensando resolver muito bem a situação do infeliz, golpeou cegamente o desgraçado, deixando-lhe desnuda toda a região perineal por onde se esvasiava a bexiga, e deixou a sorte terminar o resto. A irritação do excreta manteve uma vasta ferida, e a suppuração se encarregou de destruir toda a urethra exposta, tendo-se-lhe feito no Hospital a restauração autoplastica, com resultado parcial. 305 Em outro caso pitoresco de usurpação das funções de farmaceutico, Januário relata-nos a história do Dr. Manoel Portugal Ramalho, que se instalara na cidade de Canguaretama e fazia fama com suas curas. Januário estranhara que tal médico, que fora seu “companheiro de formatura” na Faculdade de Medicina da Bahia, não o tivesse visitado. Certo dia, em viagem a Recife, pela Great Westearn, encontrou-se casualmente com o afamado médico na estação de Canguaretama, tendo a surpresa de deparar-se com “um mocinho de 20 e poucos annos, sympatico e cynico”, que certamente não era seu colega de profissão: [...] protestei contra o roubo do titulo e a usurpação do nome do collega que se doutorou na minha turma, e obriguei o falso médico a baixar os olhos, empallidecer e... sorrir também; e de volta, consegui saber das autoridades de Alagôas que o verdadeiro Dr. Manoel Portugal Ramalho, medico do Laboratorio de Analyses daquelle Estado, fallecera em consequência de peste, contrahida accidentalmente numa inoculação experimental, e esse alguém, que se não soube nunca como se chamava, adoptara o nome do inditoso 304 RIO GRANDE DO NORTE..., 1923, p.13. 305 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: ensaios de critica medico -social, p.68. 163 medico alagoano, e andava por estes brasis clinicando, com as habilitações de um pratico de pharmacia, ou de enfermeiro de quinta ordem. 306 Identificado o “charlatão”, então, a questão era agora das autoridades e o falso médico teria sua penalidade na forma da lei... Não foi bem assim. Januário contou- nos com uma boa dose de sarcasmo o desfecho surpreendente dessa história: Foi preso; confessou em depoimento que não era coisa alguma; quis me subornar, offerecendo-me o seu arsenal cirúrgico (fórceps, caixa de amputação, etc.). Deram-lhe, por fim, um habeas-corpus, o drastico da justiça, e quando tornou ao seu arraial foi recebido festivamente, ouvindo-se pelas ruas daquella civilizada cidade “vivas’ ao Dr. Manoel Portugal Ramalho e “morras” ao autor destes cavacos. 307 O “vivas” ao Dr. Ramalho, além de simbolizar a luta de Januário contra o exercício ilegal da medicina, mostra também a rarefação de profissionais de farmácia no Estado, motivo pelo qual as freiras de Santana estavam à frente desse serviço no HCJB pelo menos até a década de 1920. Nas estatísticas do “Movimento de Farmácia” do HCJB, o trabalho era bem intenso, atendendo não somente aos internados mas a outros estabelecimentos e instituições, como nos revelam os dados coletados entre o segundo semestre de 1927 e o primeiro semestre de 1928308: Tabela 7- Receitas aviadas na farmácia do HCJB entre 1927 e 1928 Receitas aviadas para pensionistas 735 Receitas aviadas para indigentes internados 2676 Receitas aviadas ambulatório 4083 Receitas aviadas Isolamento da Piedade 368 Receitas aviadas São João de Deus 217 Receitas aviadas para São Roque 23 Receitas aviadas para Força Pública 1282 Receitas aviadas para Casa de Detenção 367 Receitas aviadas para Orphanato João Maria 451 Operações de alta cirurgia 48 Operações de pequena cirurgia 304 Operações de pequena cirurgia ambulatório 224 Seção de Ophtalmologia-curativos 2375 Odontologia-extrações 1374 Obturações 519 Clínica médica-doentes examinados 926 Ambulatório-exames especiais 362 Consultas 1640 Fonte: Mensagem de 1928. 306 Ibid., p.240. 307 Ibid., p.240-241. 308 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo presidente do Estado do Rio Grande do Norte Juvenal Lamartine á Assembléa Leg islativa e lida na abertura da primeira sessão da 14º Leg islatura em 1º de Outubro de 1928.p.37. 164 As estatísticas mostram que várias seções do hospital recorriam aos serviços da farmácia, como a clínica de cirurgia, o ambulatório, o gabinete odontológico e o oftalmológico. Elas não nos esclarecem, contudo, quanto ao conteúdo das “receitas aviadas” nem a natureza dos pedidos feitos pelas seções do hospital. A partir de 1923, funcionou anexo à farmácia o gabinete de manipulação de “empolas”, pequenos frascos selados de vidro contendo produtos farmaceuticos. Em 1930, foram manipuladas 4245 ampolas de água bi-distillada, 3367 de Arrhenal, 4494 de Mercúrio, 1569 de Strichnina, 42 de iodureto de sódio, 24 citrato de sódio, 36 de salycilato de sódio, todas de 20 c.c., aplicadas na forma de injeções.309 A maior parte dessas “empolas” destinava-se ao tratamento da sífilis, doenças venéreas e lepra (esta principalmente com injeções de anti-Leprol, Alepol, Antilebrina e óleo de Chaulmoogra310), que vinham sendo combatidas sistematicamente pelo Serviço de Profilaxia da Sífilis e Doenças Venéreas e pelo Serviço de Profilaxia da Lepra e Assistência aos Leprosos. Injeções de ampolas também eram aplicadas em portadores de verminoses diversas, impaludismo, ancilostomíase, tifo e paratifo, varíola, febre amarela, peste bubônica e leishmaniose. Só para a malária, doença epidêmica que trouxe a Fundação Rockfeler para o Estado no fim dos anos 1920, havia as inoculações de “paludan”, “chloridrato de quina”, “quinoformio”, “maleizin”, “quinozyl”, “azul de metyleno” e “óleo camforado”.311As ampolas utilizadas nas inoculações provinham do Rio de Janeiro, centro de fabricação dos medicamentos. A partir de 1924, algumas delas, como a de água bi-destilada, para neosalvarsan “914”, usada contra sífilis e doenças venéreas, e sais mercuriais, começaram a ser confeccionadas no recém-criado Laboratório Bacteriológico.312 Essas “empolas” para injeção continham drogas orgânicas compostas de sais com ácidos, os famosos alcaloides, produtos químicos da era da farmacodinâmica. Em geral, cabia à farmácia o aviamento de receitas, isto é, a produção de medicamentos indicados pelos médicos. Porém, uma farmacopeia oficial só apareceu em 1926, quando foi publicada a Farmacopéia dos Estados Unidos do Brasil. Até 309 RIO GRANDE DO NORTE..., 1930, p.79-80. 310 Produto de origem vegetal surgido na década de 1920 e que fo i utilizado como principal remédio no tratamento da lepra pelo menos até a década de 1950. Sobre o combate ao Bacilo de Hansen no Brasil, cf.: SANGLAR, Gisele. Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guinle, a saúde e a Ciência no Rio de Janeiro, 1920-1940, p.213-224. 311 RIO GRANDE DO NORTE..., 1930, p.70. 312 RIO GRANDE DO NORTE..., 1924, p.31. 165 então, durante todo o século XIX, funcionaram as farmacopeias lusitanas, coleções de receitas, tratados de matéria médica, os formulários de Chernoviz e Langaard, o Codex medicamentarius gallicus, indicado pela Junta Central de Higiene Pública. Na República, publicou-se o Formulário Oficial e Magistral (1889-1892), de Pires de Almeida, contendo seis mil fórmulas.313 Os medicamentos contidos nesses manuais poderiam ser officinaes (xaropes, vinhos, extratos, tinturas, conservas, emplastros e unguentos), que se encontravam nos códigos farmaceuticos e já prontos na farmácia, ou os remédios magistraes, preparados segundo fórmulas dos médicos específicas para os pacientes. Na produção, nas fórmulas, distinguiam-se a base, agente principal; o adjuvante, que aumentava as propriedades ou virtudes da base; o corretivo, que enfraquecia o sabor ou cheiro, podendo reduzir sua atividade corrosiva; o excipiente, substância-veículo para as outras três; e, por fim, o intermédio, que tornava o medicamento miscível em água.314 Com relação à forma, havia os bálsamos, cataplasmas, cáusticos, clisteres, elixires, emplastros, emulsões, espíritos, extratos, sangrias, sanguessugas, sinapismos, vesicatórios e ventosas. Os medicamentos poderiam ser classificados consoante a ação de reequilíbrio e harmonia fisiológica que proporcionassem: adstringentes, antiperiódicos, antiflogísticos, antiescorbúticos, antissépticos, antiespasmódicos, anti- sifilíticos, calmantes, diaforéticos, diuréticos, eméticos, emolientes, estimulantes, febrífugos, narcóticos, purgativos, sudorífaros, tônicos, temperantes, vermífugos e vomitivos.315 Essas classificações estavam presentes em quase todas as farmacopeias entre o final do Império e começo da República, o que nos autoriza a pensar que a farmácia do HCJB também manipulasse tais fórmulas, substâncias e modalidades. A fotografia abaixo, tirada na década de 1920 por João Crisóstomo Galvão Filho, oferece-nos uma boa ideia de como estava organizado o interior da farmácia no HCJB. 313 EDLER, Flávio Coelho. Boticas & Pharmacias: uma h istória ilustrada da farmácia no Brasil, p.76. 314 Ibid., p.78. 315 Ibid., p.79. 166 A imagem traduz uma típica farmácia da época: estantes envernizadas de madeira guardando vasos de porcelana ou vidro hermeticamente fechados e contendo matérias-primas para as manipulações; balança de metal para dosimetria, vaso de vidro cheia de rolhas e balões fusiformes de vidro encimando um balcão de madeira envernizado; pequena mesa também de madeira, com gavetas, contendo em seu estrado inferior almofarizes/pistilos de bronze (?) e cadinhos de porcelana para maceração e mistura dos ingredientes sólidos e pastosos; e, por último, um portador de boiões de vidro vazios. No mesmo “álbum” do hospital, há ainda a fotografia de uma drogaria, para onde eram destinadas as substâncias e os remédios manejados pelos “farmacêuticos” de acordo com as receitas aviadas pelos médicos. Um depósito lotado de estantes e prateleiras de madeira sustentando vidros rotulados e pequenas caixas de papelão etiquetadas. Deitados no piso, caixas de madeira, garrafas vazias, funis metálicos, botijões de água destilada com torneira, e encimando um balcão uma balança metálica, certamente para pesar as medidas dos produtos utilizados nas fórmulas químicas. Uma das caixas de madeira que se encontram no chão está pintada com a identificação Fig. 28 - Farmácia do HCJB. Fonte: Fotografia “Chic”, João Galvão. 167 HCJB/848/NATAL, mostrando tratar-se de material farmacêutico comprado316 pelo hospital, enquanto outra pequena caixa sobre o latão tem inscrito na sua face lateral “Souza Machado”, nome de importante laboratório farmaceutico. Como se pode notar, a chamada farmácia oficinal, fundada no preparo artesanal de substâncias, convivia com os medicamentos industrializados dos laboratórios, hibridismo nada incomum se imaginarmos a expansão dos laboratórios farmaceuticos no começo da República: em 1907, o censo já revelava cerca de sessenta desses estabelecimentos. 317 316 Na documentação pesquisada, segundo os ofícios da Inspetoria de Geral de Hygiene e Assist encia Públicas, os remédios eram fornecidos normalmente por empresas farmacêuticas ou distribuidores de Pernambuco e Rio de Janeiro. Em 5 de janeiro de 1911, por exemplo, o jornal A República, na sua Parte Official, divulgou um ofício enviado ao Inspetor do Tesouro, tratando de pagamento a uma firma prestadora de serviços ao hospital: Officios Ao Inspetor do Thesouro: Mandai entregar a regente do hospital “Juvino Barreto” a quantia de 478$200 para pagamento de medicamentos fornecidos aquelle estabelecimento pela firma Silva Braga & C. de Pernambuco, conforme solicitou a Inspetoria Geral de Hygiene em officio n.75 de 2 do corrente mez. Em 30 de março do mes mo ano, numa quinta-feira, também veiculado na Parte Official d’A República, o ofício n.70 cita mais uma empresa fornecedora de medicamentos: Ao mesmo [Inspetor do Thesouro]: Mandai entregar a Regente do Hospital de Caridade “Juvino Barreto” a quantia de 1:192$000, para pagamento de medicamentos fornecidos pelo srs. Victor Uslaenders & C., no Rio de Janeiro. No começo da República, na ú ltima década do século XIX, ainda no antigo Hospital de Caridade, o serviço de fornecimento de remédios estava ligado ao nome dos irmãos Garcia, de Pernambuco. Em 26 de julho de 1898, num sábado, o jornal A República publicou o ofício n.64, que revela um desses contratos com os farmacêuticos pernambucanos: Officio: Ao thesouro do Estado – Approvando o acto da junta da fazenda em ter contractado com o pharmaceutico Jose Gervasio de Amorim Garcia o fornecimento de remédios ao hospital de caridade, no semestre de junho a dezembro deste anno, com o abatimento de 5% sobre as peças do formulário que sérvio de base á respectiva arrematação. Em tom marcadamente “nativista”, algumas matérias criticavam asperamente o domínio dos Garcia nos serviços de remédios ao HC, argumentando que eles cobravam preços muito altos, aproveitando-se do fato de serem prat icamente os únicos fornecedores. 317 EDLER, Flávio Coelho. Boticas & Pharmacias: uma h istória ilustrada da farmácia no Brasil, p.96. 168 Embora outras “farmácias” já figurassem na cidade do Natal (em 1927, registravam-se 4 farmácias licenciadas e legalmente em funcionamento, e outras tantas sem licença oficial) e algumas fossem abertas exclusivamente para atender a demanda das atividades do serviço de Saneamento Rural, seja na repartição central, sejam nos postos e sub-postos de atendimento, o estabelecimento farmaceutico do HCJB era estratégico para o Departamento de Saúde, não se limitando ao aviamento de receitas referentes somente aos internados. Em 1927, o governo do Estado assinou um contrato com a Sociedade de Assistência Hospitalar (SAH), legando a esta a responsabilidade pela administração do HCJB por um período de 20 anos. Na cláusula XI desse contrato, especificava-se: A Sociedade obriga-se a continuar a serviço de manipulação, na respectiva pharmácia, das receitas dos outros estabelecimentos de assistência a cargo do Estado, pelos preços communs da praça, com o abatimento de 30% (trinta por cento). Desse fornecimento fará extrahir factura mensal, que enviará, no princípio de cada mez, á Secretaria Geral, com o pedido de pagamento. 318 318 RIO GRANDE DO NORTE..., 1927, p.72. Fig. 29 - Depósito da Farmácia do HCJB. Fonte: Fotografia “Chic”, João Galvão. 169 Dentre os “outros estabelecimentos de assistência” a que se refere o documento, contabilizam-se o Orfanato Padre João Maria, o Leprosário São Francisco de Assis, a enfermaria do Batalhão de Segurança, o Dispensário “Oswaldo Cruz”, a Casa de Detenção, o Ambulatório do Posto de Profilaxia de Doenças Venéreas, o Hospício dos Alienados, o Isolamento de São Roque, o Isolamento São João de Deus e a Enfermaria Militar. Pela insistência do Estado em manter o controle dos serviços da unidade farmaceutica do hospital e pelo número de estabelecimentos citados, podemos ter uma boa ideia da movimentação da farmácia do HCJB nos anos 1920. Só no ano de 1927, no governo de Antônio José de Melo e Souza319, foram aviadas um total de 14.050 receitas, assim distribuídas: Tabela 8- Movimento da farmácia do HCJB em 1927 ESTABELECIMENTOS NÚMERO DE FÓRMULAS HCJB- doentes internados 5000 HCJB- doentes da Sala do Banco 4000 Casa de Detenção 200 Orfanato 500 Isolamento de Alienados 2000 E. de Cavalaria 500 Batalhão de Segurança 1100 Isolamento São João de Deus 600 Isolamento São Roque 150 Fonte: Mensagem de 1927. 2.8 Entre humores e “empôlas”: exames e pesquisas da doença sem doentes Espaço virtual em 1909, a figura do laboratório aparece como necessidade um ano depois da inauguração do hospital, quando se falava das providências para a instalação de tal gabinete, cujo trabalho de construção continuava ainda em 1911, “muito adeantados”320 segundo o depoimento do governador Alberto Maranhão... Tão “adeantados” que as lamentações sobre a ausência desse espaço ainda ecoavam mais de dez anos depois! Em 1922, o chefe das clínicas do HCJB descrevia as dificuldades de se 319 Ibid. 320 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da Segunda Sessão da Setima Legislatura em 1ª de novembro de 1911 pelo governador Alberto Maranhão. Natal: Typ. d’A República, 1911.p.11. 170 lidar com a “syphilis devastadora”, que consumia grandes recursos do hospital, a ponto de não ser possível dispensar tratamento para todos: das 1510 pessoas matriculadas, as 2102 injeções de neosalvarsan “914” a disposição só garantiam aplicações completas a 1438 pacientes, que ainda receberam aplicações de sais de mercúrio, chegando a 2744 o número de curativos.321 Segundo o chefe de clínicas do HCJB, tratava-se de despesas onerosas para o Estado: [...] o calculo das despesas effectuadas pelo Estado com os diversos medicamentos e os acessórios do serviço dividido pelo numero de doentes, que delle se teem aproveitado, dá para cada série de “914”, alli applicada, o custo de 8$, e para esta, seguida de outra de tratamento especifico, constando de 36 injecções de saes de mercúrio, o custo total de 20$ por doente. Si comparardes essa despesa com a que qualquer desses enfermos faria na clinica civil para obter o mesmo tratamento, e sobretudo si vos lembrardes que a maioria delles não poderia recorrer a esta, verificareis a utilidade dos serviço. 322 Para o chefe de clínicas do hospital, as ampolas de neosalvarsan não eram o suficientes para o tratamento, pois “[...] falta- lhe o laboratório indispensável á verificação de resultados, que o decreto da sua creação previa, mas que a penúria financeira do Estado tem impedido de fundar coma apparelhagem sufficiente”.323 Parto difícil, mas que trouxe à luz definitivamente o laboratório “apparelhado” que desejava Januário Cicco, já em 1923324, com suas primeiras pesquisas e exames: fezes (66044), micróbios (4388), urina (957) e reações de Wasserman (2), teste utilizado para detectar sífilis e doenças venéreas em geral. Nesse mesmo ano, Edgar Filgueiras, um dos responsáveis pelo programa de Saneamento Rural no Estado, criou um laboratório na repartição central, contendo uma seção de parasitologia. O objetivo era reforçar a produção de diagnósticos mais precisos, que agora se iniciavam na clínica ou consultório médico e passavam a ter o apoio dos exames laboratoriais na confirmação das doenças. 325 Tal Laboratório de Análises, criado por Antônio José e chefiado pelo químico Francisco Gomes Valle Miranda, só veio a funcionar a partir de fevereiro de 321 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da undecima Legislatura em 1º de Novembro de 1922 pelo Governador Antonio J. Mello e Souza. p.30. 322 Ibid. 323 Ibid. 324 RIO GRANDE DO NORTE..., 1923, p.33. 325 Ibid., p.34. 171 1925, localizado anexo ao HCJB.326 Paralelo ao funcionamento desse LA, edificou-se um Laboratório Bacteriológico, que dirigia sua atenção principalmente para a identificação de agentes patogênicos ligados à ação de bactérias. Segundo Mensagem do governador José Augusto Bezerra de Medeiros327, o LB estava capacitado para realizar “todos os exames microscópios e pesquizas biológicas” necessários “á elucidação dos casos clínicos”, bem como fabricar “empôlas de água bi-distillada (para injeções de 914), de saes mercuriaes e outros medicamentos”. Trabalho que parecia englobar um programa completo de exames, diagnósticos e pesquisas: De 1º de Janeiro até 30 de setembro do corrente anno, tinham sido executados os seguintes trabalhos: 1868 exames de urina, 564 pesquizas-directivas de micróbios, sendo: 176 do bacilo de koch, 64 de Ducrey, 31 de Hansen, 3 de Leoffler, 8 do grupo coly-typhico, 298 de Neisser, 1 de Vincent e 2 de treponema-pallidum; 73 exames de micróbios em culturas, sendo 14 em caldo peptonado, 18 em gelose, 3 em meio de Endo e 38 hemoculturas para o grupo coly-typhico e innoculações experimentaes para em cobayas; 295 pesquizas de hematozoarios de Laveran, 24 Diazo-reações de Ehrlich, 180 reações de Wassermann, 16 sôro-agglutinação, 4 contagens globular, 1 taxa de hemoglobina, 3auto-vaccinas de Wright e 3 pesquizas de Leishmania brasiliense. Fabricou 595 empôlas de 20 c.c. de água bi-distillada para applicação de 914, 1390 empôlas mercuriaes, sendo umas de 2 c.c. e outras de 5 c.c. e 650 de Arrehnal de 2 c.c. 328 Exames clínicos, de micróbios, inoculações experimentais e produção de ampolas: o LB ampliava as funções do LA, dotando-o de uma capacidade de realizar não apenas exames-diagnósticos mas também ser polo de pesquisa e fabricação de medicamentos! Atividades que permitiram progressivamente baratear os custos com medicamentos. Os serviços executados por este laboratório são uma verdadeira fonte de informações sobre as doenças mais comuns que afligiam a população do Estado do Rio Grande do Norte. Na tabela abaixo, podemos ver as estatísticas dos trabalhos desenvolvidos no LB no ano de 1925329: 326 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da 12ª legislatura em 1º de novembro de 1925 pelo governador José Augusto Bezerra de Medeiros. Natal: Typ. d’A República, 1925.p.32. 327 RIO GRANDE DO NORTE..., 1924, p.31. 328 Ibid. 329 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da 12ª legislatura em 1º de novembro de 1925 pelo governador José Augusto Bezerra de Medeiros. Natal: Typ. d’A República, 1925. p.41-42. 172 Tabela 9- Trabalhos realizados no Laboratório Bacteriológico em 1925 PESQUIS AS Nº EXAMES E CULTURAS Nº AMPOLAS MANIPULADAS Nº Bacilo de Koch direto 201 Exame de Sangue para Filaria 6 6 Mercúrio E 29837 Bacilo de koch por inoculações 2 Culturas em gelose 49 Arrehnal 1853 Bacilo de Hansen 60 Hemoculturas para o grupo coli-typhico 16 Strychinina 433 Bacilo de klebs 13 Sôro Agglutinações de Widal 6 Água bi-distillada 261 Hematozorario de Laveran 1081 Dosagem de albumina 30 Leishmannia Brasilienses 3 Dosagem de glycose 1 Treponema Pallidum 26 Exames de leite materno 3 Toenia Saginata 1 Amobas 9 Outras pesquisas 161 Fonte: Mensagem de 1925. Esse domínio técnico do laboratório na vida médica do hospital inseria-se no amplo movimento de especialização das ciências no Brasil e de crítica à inflação do saber livresco em detrimento da prática. Em 1890, a Escola Politécnica fora reformada, abolindo os cursos de ciências físicas, matemáticas e naturais e investindo nas engenharias. O Museu Nacional começava a investir em estudos experimentais em ciências naturais, como zoologia, botânica e antropologia física, criando um laboratór io de fisiologia em 1880.330 No final do século XIX, as faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia iniciaram sua adesão à microbiologia pasteuriana, abandonando-se paulatinamente o antigo paradigma climático-telúrico. Para esta última, o diagnóstico e a terapia médica necessitavam do conhecimento de fatores ambientais, como clima e geografia (miasmas, pressão atmosférica, calor, umidade, parasitas, gases químicos e temperatura), e hábitos sociais anti-higiênicos, o que demandava longos estudos de profilaxia, higiene, química, física, fisiologia, anatomoclínica, fisiologia, meteorologia, botânica, climatologia, topografia e geologia.331 Em contraposição a essa climatologia médica, os pastorianos propunham uma etiologia única, a dos micróbios, postura que alterou o rumo e o ritmo das pesquisas. Parte dos cientistas começou a dedicar-se ao estudo dos microorganismos 330 SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895- 1935). Rio de Janeiro : Fiocruz, 2006.p.109. 331 Ibid. 173 causadores de doenças infectocontagiosas, incrementando a construção de laboratórios nas faculdades e instituindo a obrigatoriedade de provas práticas bem como a extinção das sabatinas, dos pontos e compêndios de literatura estrangeira. O currículo fora alterado e novas cadeiras criadas pela lei n. 7.247 de 1879, dando espaço a especialidades ligadas ao domínio da clínica, e conduzindo a prática médica do leito de hospital para o laboratório, a chamada “medicina sem doentes”. Os profissionais passaram a especializar-se em pequeno número de fenômenos, utilizando-se de microscópios, termômetros, estufas, reagentes químicos, instrumentos de vidro (pipeta e empolas). Dominavam, então, os estudos experimentais nos laboratórios de análises e bacteriologia.332 Graças a esse movimento de especialização, que se afastava cada vez mais do ensino livresco e se aproximava dos experimentos333, multiplicaram-se as disciplinas que buscavam dar conta do mundo do “infinitamente pequeno”, de aspectos da doença invisíveis a olho nu. Derivados da doutrina pasteuriana e da fisiologia de Claude Bernard, apareceram a bacteriologia, parasitologia, infectologia, imunologia, biologia celular, endocrinologia, neurofisiologia experimental, genética e importantes estudos de nutrição.334 Em consonância com essas transformações, emergia uma nova concepção sobre o corpo, visto agora como um conjunto de sistemas químicos, eliminado a barreira que separava os compostos vitais encontrados nos seres vivos e as substâncias químicas comuns. As estatísticas apresentadas na tabela do LB, de 1925, descreveram o corpo doente em termos químicos, proposta que fora inaugurada ainda no século XIX pela Escola de Liebig, como nos descreve o historiador Roy Porter: O corpo, afirmava Liebig, era um conjunto de sistemas químicos.A respiração introduzia oxigênio no corpo, onde ele se misturava com os amidos para liberar energia, dióxido de carbono e água. A matéria nitrogenada era absorvida pelos tecidos musculares; a urina era o produto excrementício final, juntamente com fosfatos e uma mescla de outros subprodutos químicos. Fizeram-se análises químicas de sangue, suor, lágrimas e urina, a fim de quantificar as equações entre o consumo de alimento e oxigênio e a produção de energia nos organismos vivos. Dando início à investigação sistemát ica da nutrição e do metabolismo, Liebig e sua escola inauguraram o que viria a chamar-se bioquímica. 335 332 Ibid., p.109-110. 333 BYNUM, William. História da medicina, p.101. 334 PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina, p.111-121. 335 Ibid., p.102. 174 Com a síntese da ureia em 1828, façanha realizada por Friedrich Wöhler, que demonstrava o parentesco do mundo orgânico com o inorgânico, o materialismo científico sepultava a filosofia romântica do vitalismo e o laboratório tornou-se o símbolo da ciência, que tomava a química, a física e fisiologia como a grade explicativa essencial dos fenômenos vitais.336 Essa moda do laboratório e da abordagem físico-química dos organismos vivos provocaram profunda reformulação identitária do indivíduo no século XX, transformação marcada pelo movimento de interioridade e profundidade corporais, como nos mostram os grandes avanços no campo da Genética, com a possibilidade de controle dos genes e sua reprogramação segundo mecanismos da hereditariedade, e da produção de imagens sobre o corpo, centradas nas tecnologias da radiografia, cintilografia, ultra-sonografia, scanner e ressonância magnética nuclear.337 Os exames realizados no LB anexo ao HCJB atendiam tanto a população dos doentes internados quanto a requisições externas ao hospital. Em 1930, relatando os serviços realizados pelo LB, o governador Juvenal Lamartine comentou a extensão das atividades laboratoriais: “O laboratório continua a attender gratuitamente com a máxima solicitude todos os exames pedidos pela classe médica local, além dos serviços que presta aos doentes matriculados nas diferentes seções”338. Ou seja, Laboratório Bacteriológico que estava ligado ao hospital, mas que não lhe era exclusivo, que lhe escapava como célere linha de fuga, espaço transospitalar... A existência do laboratório marcava, de alguma forma, a passagem do HCJB para a “era” do hospital tecnológico, representado pela introdução de aparelhagem científica no seu interior, como o microscópio, a radiografia e radioscopia, instrumentos para produção de vacinas e ampolas, o arsenal cirúrgico dos diferentes gabinetes, a tecnologia da produção de medicamentos na farmácia, o uso da energia elétrica iluminando o ambiente entre outros. Essas mesmas alterações demandavam pessoal especializado, com formação técnica em nível superior, ampliando o corpo médico do HCJB. No final dos anos 1920, já aparecem com frequência nos registros sobre o 336 Ibid., p.102-103. 337 MOULIN, Anne Marie. O corpo diante da medicina. In: COURTINE, Jean-Jacques (Dir.). História do corpo: as mutações do olhar: o século XX, p.62-76. 338 RIO GRANDE DO NORTE..., 1930, p.79. 175 hospital médicos e enfermeiros diplomados, que pouco e pouco vão substituindo as funções até então exercidas pelas Filhas de Santana. Em 1923, por exemplo, o governador Antônio José de Melo e Souza demonstrava preocupação com a formação de futuras profissionais da enfermagem, determinando a construção de “um ambulatório, com serviços de polyclinica, para escola pratica de enfermeiras [...]”339. Quatro anos depois, o contrato do Estado com a Sociedade de Assistência Hospitalar rezava na cláusula IX que “A Sociedade obriga-se a conservar os actuaes medicos, o cirurgião-dentista, o enfermeiro-chefe e o barbeiro do Hospital, que continuarão a ser pagos pelo Thesouro e a gozar as mesmas vantagens concedidas pelas leis do estado aos seus funcionários”.340 O título de “enfermeiro-chefe” traz consigo a ideia de uma equipe coordenada por um dos enfermeiros, da mesma forma que “medicos” pressupõe a existência de vários deles atuando no hospital, questão que já elucidamos em momento anterior. 2.9 De volta ao passeio: é hora de comer... Acompanhamos disciplinadamente o percurso da visita de nosso amigo e anfitrião Emerenciano Montano e, como qualquer tour que se preze, tomamos a liberdade de um breve desvio “temporal” a caminho do laboratório, virtualidade ainda em 1909, dia da inauguração do HCJB, mas importante realidade alguns anos depois. Entregamos nossas solicitações de exames e, confesso, estamos exaustos da caminhada... E famintos! Que tem no hospital para comer? Tudo começava na cozinha. Este espaço já existia na inauguração, contando com um cozinheiro que recebia o numerário de 50$00 réis, o mesmo salário de “enfermeiro” e “enfermeira”, e mais valorizado do que o “servente de farmácia”! Equipe? Parece que não... Com o tempo, a cozinha passaria a contar com vários funcionários, pois o movimento do hospital crescia todos os anos. Na foto abaixo, podemos ver bem parte da cozinha e alguns funcionários, pousando devidamente para o “clic” do fotógrafo. 339 RIO GRANDE DO NORTE..., 1923, p.34. 340 RIO GRANDE DO NORTE..., 1927, p.62. 176 A cozinha era simples. Dois cozinheiros negros uniformizados (barrete e avental branco) aparecem lado a lado de um fogão industrial, sobre o qual estão tachos, bules, caçarolas, panela de pressão, um caldeirão e outras vasilhas. As gavetas em frente ao fogão serviam como espaço para colocar carvão, matéria-prima que fornecia o calor. À esquerda, uma mesa sustentando uma panela de águeda e marmitas para os pacientes; à direita, uma grande balança de pesagem dos alimentos, que chegavam a granel para os cozinheiros. O espaço aqui já se encontrava reformado, a julgar pela presença dos ladrilhos nas paredes e do grande forno ao centro. Estamos provavelmente na década de 1920. A posição hierática do cozinheiro da esquerda denuncia a artificialidade da cena fotográfica, que fora produzida como simulacro, representação de um espaço da ordem e da limpeza, preparado para atender os pacientes. O autor da fotografia foi João Galvão Filho, tesoureiro do hospital e depois auxiliar na Diretoria, muito estimado por Januário Cicco. A ideia era compor um “álbum” do HCJB, mostrando as boas condições de trabalho do espaço hospitalar. Daí toda a preparação do ambiente, angulação central da foto, que enquadra quase por completo toda a cozinha, que se encontra bem Fig. 30 - Cozinha do HCJB. Fonte: Fotografia “Chic”, João Galvão. 177 iluminada e aparentemente limpa. A lâmpada no lado esquerdo da imagem, fixada à parede por um torno metálico em “S”, informa que o hospital dispõe de energia elétrica, o que pode ser confirmado pelo contrato da SAH em 1927. Que faziam então os cozinheiros da foto para as refeições dos pacientes internados? Questão difícil de responder com precisão. Há contudo algumas pistas. Em 1927, alguns alimentos figuram como “gêneros condemnados” pela “Inspectoria Sanitaria”, e que deviam ser, por isso, de uso comum entre os habitantes da cidade: frutas, carne verde e de sol, “bacalháo”, carne de “xarque”, batatas, peixe salgado e “seco”, ossos, farinha, feijão, queijo, milho, bofe e linguiças. 341 Deviam fazer parte, portanto, da dietética comum, alguns deles sendo utilizados na elaboração do cardápio hospitalar. O médico Januário Cicco, chefe de clínicas do HCJB, deixou importantes comentários sobre a dietética do brasileiro em geral, fazendo severas críticas a ela. A certa altura de suas reflexões sobre o regime alimentar nacional, ele descreveu com fina ironia o comportamento dos pacientes nas enfermarias hospitalares, contando um caso de cirrótico internado que teimava em alimentar-se de carne, considerada à época um verdadeiro veneno para os doentes: Quem moireja nas enfermarias dos hospitaes e se acostumou a observar o doente e o homem, guarda de certo a convicção de que a besta-féra escabuja como um corvo sobre a carniça, e nada a demove do propósito que lhe morde o bestunto. A convicção de todo o doente hospitalizado é que o querem matar de fome, e dahi o insucesso do seu tratamento; e mais lamentável é que a família do enfermo, nos dias de visita, consiga levar-lhe “jabá” e farinha, e algumas vezes um vidrinho de cachaça, sem que a vigilância possa obstar a quebra de regimen do cirrhotico ou do brigthico. 342 A dieta hospitalar, às vezes, se fazia acompanhar às escondidas da dietética popular mais arrojada... Comida de hospital não parecia muito bem vinda aos pacientes, que estavam habituados ao consumo diário de carne, farinha e cachaça. Nas dietas prescritas pelos médicos clínicos, a família do enfermo tinha papel fundamental, pois devia estar a par da alimentação adequada recomendada pelo médico ao paciente, o que nem sempre ocorria: 341 RIO GRANDE DO NORTE..., 1927, p.67-68. 342 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: ensaios de crítica médico -social, p.197-198. 178 Quando o clínico termina os seus exames e toma a pena para prescrever a medicação que convém ao caso, muitas vezes mesmo antes das indicações therapeuticas, a família do doente pergunta logo “o que elle pode comer?” A esta ou aquella dieta, conforme a natureza da infecção ou afecção, as pessoas interessadas pelo enfermo objetam o regimen prescripto, dizendo que o doente não gosta de tal alimento, de qual massa, vomita os caldos, não supporta o leite, e indagam com azedume “si faria mal um bifezinho feito na manteiga fresca, sem banha nem pimenta do reino”?343 Para alguém habituado ao bom “bifezinho feito na manteiga fresca”, certamente um simples caldo ou canja e o leite do hospital não satisfaziam o estômago. Era difícil, assim, educar um doente acometido de “esclerose atrophica” que costumava se alimentar de “feculentos”, “ovos”, “carne salgada” e “carangueijo”, a tomar um singelo copo de leite ou dar uma mordiscada em uma fruta tropical, questões que, segundo Januário Cicco, tinham sua explicação também na economia: Uma garrafa de leite no Brasil custa uma fortuna, e o pobre nem se abalança a desejar uma chicara, ao menos, para matar o capricho do paladar! As frutas? Não há; laranjas acidas, mangas, limas, a peso de oiro, e em certas epochas do anno. 344 Desses relatos e descrições, podemos deduzir então que parte da dietética hospitalar deveria ter sido composta de caldos, canjas, leite e frutas, alimentação caracterizada pela leveza. 343 Ibid., p.198. 344 Ibidem, p.202. 179 CAPÍTULO III AS ARTES DE CURA NO ESPAÇO HOSPITALAR: a Medicina e as operações “ético-estéticas” de um esculápio de aldeia O curso médico ensina todas as técnicas da Pintura, mas não pode criar o Pintor (CASCUDO, Câmara. Pequeno manual do doente aprendiz, 2010, p.33). A fisiologia da Visão não explica o Olhar! (CASCUDO, Câmara. Pequeno manual do doente aprendiz, 2010, p.27). 3.1 Um curso intensivo no hospital: espelho, espelho meu... Há alguém melhor doente do que eu? Noite de 3 de agosto de 1967. Em conhecida casa assobradada da Av. Junqueyra Aires, um homem já septuagenário padecia terrivelmente em sua cama de estranha moléstia, que assaltava sem tréguas o seu corpo, promovendo variações bruscas de temperatura e alterações na tonalidade da epiderme da pele, logo tomada de agressivo enrubescimento: Acordei tiritante, com a sensação de atravessar despido uma planície polar. Na treva, passavam ursos brancos, arrastavam-se focas, gritavam pinguins. Todos os agasalhos foram ineficazes, apesar do volume e densidade. Simultaneamente, sopravam-se bafos ardentes e breves como se abrissem, intencionalmente, as forjas flamejantes de Vulcano. Estava, ao mesmo tempo, deitado numa banquise e abandonado no Saara. 345 Noite de agonia, que se prolongou pela madrugada, deixando na manhã seguinte novos sinais: Pela manhã, a meia perna esquerda vestia-se numa púrpura digna do cardeal Richelieu. E uma dor de queimadura urente, como uma brasa com urticária. 346 As sensações dessa “visita” inesperada ganharam uma ars poetica na descrição do enfermo... Mas demandaram mesmo, em verdade, uma práxis médica. Destino: Hospital das Clínicas. Às pressas, o doente fora conduzido ao apartamento 203, sendo aí prontamente internado e recebendo os primeiros cuidados. Com a bateria 345 CASCUDO, Luís da Câmara. Pequeno manual do doente aprendiz: notas e maginações. 3. ed. Natal: EDUFRN, 2011. p.84. 346 Ibid. 180 de exames, detectou-se que se tratava do Streptococcus erysipelatis, mais conhecido como erisipela. De imediato, o médico Jairo Leite aplicou- lhe a medicação própria ao tratamento dessa doença bacteriana, composta de antibióticos e sulfas, ictiol e sulfoictiolato amônico. Foram doze dias de internamento hospitalar no combate ao persistente bacilo. Foi assim, então, que o escritor Câmara Cascudo fizera sua inscrição- forçada, é claro - no “Curso de doente aprendiz” ofertado pelo amigo de última hora Sr.Streptococus. O curso ainda contou com um segundo encontro em 8 de abril de 1968, um domingo, quando, num jantar, uma mesa desabou, atingindo o dorso da mão direita de Cascudo, dor insuportável que logo provocou seu desmaio. Novo internamento, e mais 18 aulas para completar o curso, sem nenhum desejo, por parte do doente, de profissionalização. Essas experiências de internamento hospitalar renderam a Cascudo a publicação do opúsculo Pequeno manual do doente aprendiz: notas e “marginações”, levado a público já em abril de 1968, mês de seu retorno imediato ao lar da Junque ira Aires. São memórias de um doente, anotações quase diárias de suas impressões do hospital, de médicos e funcionários, acerca da presença da família e amigos à beira do leito, de remédios e exames, divagações diversas sobre saberes e práticas médicas, enfim, toda sorte de imagens e reminiscências que lhe acorriam à mente no reticulado de seu apartamento. Reencontro do presente com o passado, deslocamentos espaço- temporais, “maginações” produzidas na geografia carcerária do quarto de hospital, deslizando arrastadas entre a janela, a poltrona e a cama. Nessa espécie de “diário”, tomamos contato com o cotidiano de um doente hospitalizado nos idos da década de 1960, no Rio Grande do Norte.Tendo seus movimentos espacialmente restringidos a um leito de hospita l, além das naturais limitações impostas ao corpo pela doença, e tendo sua vida regulada pelos horários de medicação e visitas de parentes e amigos, como se desenrolava o dia-a-dia de um paciente? Que opções lhe restavam, ao fim e ao cabo, nessa disciplinada economia terapeutica? Tentando lidar com essas questões, Cascudo organizou o conjunto de suas memoires a partir dos pontos de deslocamento possíveis ao enfermo no interior do quarto, lugares estratégicos de apoio para o movimento do paciente, “limites 181 dimensionais” de sua mobilidade, articulados na “triangulação funcional” de Janela, Poltrona e Cama. Voyage autour de ma chambre, assim nos lançou o convite Cascudo em seu Prefácio... Debruçado sobre um dos janelões do apartamento 203, nosso doente ilustre divisa abaixo o casario acinzentado e pobre dos moradores situados ao pé do Monte Petrópolis, suas hortas de milho e feijão subindo a colina, as roupas estendidas no varal e as crianças brincando descalças nas ruas barrentas, meninos e meninas voltando da escola, microcosmo de gente simples. As luzes do Grande Hotel, o “mar sem fim” da Ponta do Morcego e imediações de Mãe Luiza, com seu Farol de 37 metros de altura, “Grande círio velando o cadáver da Noite”, citando o poeta Jayme Wanderley. Nas suas divagações de janela, ainda sobrou espaço para comentário sobre o hábito de frequentar as praias e de tomar banho de mar: As praias marítimas de toda a Europa, Mediterrâneo, Atlântico e Báltico, estão desertas fora das estações elegantemente regulares. Idem, pelo continente americano, em ambos os lados. Penso que essa fidelidade à buliçosa e sonora lúdica do banho é uma poderosa presença puramente ameríndia. Os indígenas brasileiros, não todos os grupos étnicos (alguns profissionalmente inimigos de banhar-se), eram malucos pelos pulos, cambalhotas e mergulhos nos rios e lagoas, várias vezes, diários. Africanos e europeus foram mais restritos e tímidos. O banho de mar é relativamente recente, em maior percentagem. Pouco mais de dois milênios e meio, se tanto, e sempre em caráter terapêutico, vale dizer, ocasional, grupal, jamais vulgar. 347 Traço histórico que ele contrasta com os usos contemporâneos dessa prática: Atualmente, o banho de mar nada tem a ver com a Saúde ou Higiene. É excitação, ginástica, tonificação solar, alegria de convívio, fermento erótico pela visão próxima das formas coleantes e minivestidas. 348 Nessa e em outras passagens de suas memórias, o Cascudo-doente marca a importância da janela como espaço de contato com o mundo exterior, porosidade de vaso comunicante que regula o plano da imagética, a troca entre o que entra e o que sai, “o dentro” e “o fora”, equilíbrio homeostático do olhar... O enfermo tem na abertura da janela um vasto campo de possibilidades, paisagens diversas, comportamentos a se rem decifrados, uma vasta hermenêutica do mundo, que, por vezes, tranquiliza, em outras inquieta, incomoda e reintegra, por isso, o paciente na órbita dos viventes. De seu posto de observação, Cascudo acabou por fundar uma nova especialidade nas ciências humanas: a “etnografia de janela”! 347 Ibid., p.31. 348 Ibid. 182 Essas memórias cascudianas de janela terminam com o registro percuciente e um tanto indiscreto do encontro de um casal de adolescentes na praia de Areia Preta, flagrante da fluidez das novas relações amorosas dos anos 1960. A descrição do evento feita por Cascudo é pura alcovitice disfarçada de antropologia dos costumes: A menina coquetel, com o amor fiel, subiu a escadinha para a balaustrada onde deu curto volteio, as nádegas dançando bambelô sem bateria. Mãos dadas. Proximidade esfregante, excitadora. O namorado tomou o ônibus para a cidade e, pela janela, abanou a mão, já saudoso. O broto ficou olhando a paisagem, absorta. Da Avenida Getúlio Vargas surgiu um rapaz magruço e sacudido, camisa arco-íris, bem escancarada, mostrando a titela, cabeleira donzel, gingando como campeão olímpico. A guria fez que não via. O boy chegou para perto e sacudiu conversa, gesticulando como cinema mudo. Parecia exigir explicações porque a pequena interrompia as falas, rodava nos pés, sorria pondo a mão no ombro do cara ressentido. A mímica esmoreceu em pausas pegajosas de ternura. Creio que se entenderam, estabelecendo armistício e pacto mútuo de não agressão temporária. Rumaram à Praia do Meio. Mãos dadas. Proximidade esfregante, excitadora. Mesma técnica contagiante de efervescência interna. 349 Bem, é hora de fechar a janela, pois o vento frio da noite já sopra gélido nas costas do doente... O movimento agora é do janelão para a poltrona, clinóstase médica forçada, segundo ponto de apoio das memórias de nosso enfermo. Que se pode fazer numa poltrona de hospital? Receber visitas, é claro... Parentes, funcionários do Hospital das Clínicas, amigos de primeira hora, médicos, irmãs de Santana, uma tal comitiva que Cascudo resolveu classificá- los em três tipos: os Comparativos, os Negativos e Familiares ou Concordantes. Os primeiros desprezam o estado de saúde do doente, pondo na conta dos exageros e descrevem sem omitir detalhes padecimentos infinitamente maiores como forma de acalmar o enfermo: Convencidos de que a exposição das câmaras de tortura e reportagens de necrotério dissipará a impressão do enfermo em face de seu incômodo físico, pormenorizam os horrores das agonias e estertores dos moribundos. Evocando o Dilúvio, ninguém vai queixar-se de uma enchente do rio Potengi. Não esquecem fraturas expostas generalizadas e longas intervenções cirúrgicas sem anestesia, suportadas com estoicismo inverossímil. É um sadismo na intenção didática, educadora, confortativa. 350 Por seu turno, os Negativos não veem sentido no internamento ho spitalar, 349 Ibid., p.48. 350 Ibid., p.49. 183 estão convencidos de que se trata de um exagero das circunstâncias, não havendo mal que justifique tal internamento, mas apenas “dengo” do doente, “cavilação”. O doente não está doente, é uma questão de psicologia do afeto, carência de ternura. Cascudo descreve mordaz o sentimento do doente diante desses visitantes: Riem. Zombam. Ironizam. O amigo, no leito ou na poltrona de embalo, amarrado de restrições, dietas, doces ameaças, não sabe se deva agradecer ou proferir palavrão desabafador. Esse processo humilhante denomina-se “Animar o doente! Incutir-lhe coragem!”. Gonçalo Correnteza, um popular do natal em meus tempos de menino, queria curar um defunto com chá de papaconha! 351 Chegam finalmente os Familiares, sempre alegres e concordando em tudo com o doente. Trazem novas informações, evitam conversas desagradáveis, mantendo o ambiente tranquilo para o repouso do paciente. São os visitantes louvados por Cascudo, mencionados ao longo de suas memórias sem poupança de tinta: Ilma Melo Diniz, presidenta da fundação José Augusto; Enélio Lima Petrovich e sua esposa Miriam; a irmã Superiora Maria Zélia, irmã Cleófa, Olavo Medeiros, Oswaldo de Souza, a companheira Dahlia, os médicos Onofre Lopes, Paulo Bittencourt, Grácio Barbalho, e quem mais viesse. O presença dos visitantes preenchiam de alguma forma a solidão do leito, o corpo singular do doente no moderno hospital tecnológico, embora Cascudo se esforce, em suas memórias, por mostrar um espírito de comunidade que habitava o espaço do Hospital das Clínicas. Assim, sempre havia com quem conversar no interior do hospital, ainda que fosse assunto para a filosofia do desespero de Sören Kierkgaard: Ao café, pela manhã, o Capelão, Padre Tenório (Alfredo Tenório dos Santos, SDB) conta-nos que um doente, ontem, internado, coberto de úlceras, evadiu-se durante a noite e, fazendo prodígios de simulação e paciência, conseguiu atingir o extremo do parque. Não recuperar a liberdade e sim encontrar a Morte. Agora, sete e meia de 23 de abril, o cadáver está tocando o solo, quase ajoelhado pela proximidade da terra, onde vai ficar para sempre... 352 E na ausência dessa população de visitantes e suas conversas, que restava ao doente? Recostar-se na poltrona, o scimpodium dos antigos, e deixar vagar a imaginação... Cascudo releu o livro L’Homme Iconnu (1935), do médico Alexis Carrel. 351 Ibid., p.50. 352 Ibid, p.58. 184 Detalhe importante: o livro era um verdadeiro alfarrábio de mais de mil páginas e, como se pode notar, em língua estrangeira! Segundo nosso “Doente aprendiz”, Carrel elogiava os avanços da Ciência, vendo nela o complemento orgânico das limitações humanas. Cascudo retrucou essa conclusão, afirmando que o aparato tecnológico da Ciência não respondia às necessidades humanas, como defendia Carrel. Aliás, nem a ele se reportava: Escapam as dimensões irradiantes. Os fenômenos inexplicáveis pelas teorias correntes são negados. Esse animal não existe! O idemonstrável não merece atenção científica ou dos professores prestigiosos no momento. O homem dos especialistas não é o concreto nem real. As ciências mecânicas, físicas e químicas não nos trazem a Moralidade, a Inteligência, a saúde, o Equilíbrio Nervoso, a Segurança e a Paz. 353 Concorda, todavia, com a crítica do Dr. Carrel a respeito dos excessos do conforto numa civilização tecnológica que produzia maravilhas e dispensava cada vez mais o esforço do homem: Vamos pelo conforto, abandonando as mais legít imas defesas do organismo. [...] Já não mastigamos, porque os alimentos são preparados para evitar o excesso mandibular. Refrigeração, aquecimento, transporte, diminuem assustadoramente a verdadeira colaboração muscular na produção humoral. O elevador derrotou a escadaria, velha ginástica apreciável, notadamente para o coração. Falta-nos o jejum dietético, eliminador de saltos perigosos. Apanhar chuva e vento. Pisar terá com pés nus. Cansar-se. 354 O problema era de meta, de natureza psicológica: fixação obsessiva no êxito econômico como finalidade existencial, como objetivo de uma vida mais saudável, e esquecimento do trabalho, da execução, do esforço inteligente. “A cruel e criminosa batalha entre o Ser e o Haver”, arrematava Cascudo. Fim das reflexões? De Poltrona, sim. Mas... a bateria continua em novo cenário: a Cama. No arquivo de memórias de nosso doente do 203, sempre sobrava espaço para catalogação e armazenamento de mais informações.Em linguagem informática, diríamos que seu HD já estava para lá de um Tera de memórias! Pulsação cardíaca, pressão arterial, check-up, assim os discípulos de Asclépio submeteram Cascudo na malha dos exames hospitalares. Nas suas “memórias 353 Ibid., p.72. 354 Ibid., p.72-73. 185 de Cama”, ele registrou o trabalho de assistência dos médicos, com particular atenção para os remédios e medicamentos. Pílulas e fórmulas populares de combate ao morbus se confundem na história de uma farmacologia mais atrativa ao doente, processo de “dulcificação” descrito com graça em sua experiência de internado: Tenho pílulas e comprimidos discoides, redondos, esféricos, cilíndricos, azul-rei, vermelho-sangue-de-boi, doirados, de prata brilhante, róseos como pétala de Paul Neron, agradáveis ao olhar como fáceis de deglutição. Um xarope cor-de-rosa é tão melífluo que o julgo digno de um batizado de bonecas. Evoco os remédios do meu Tempo-Menino, engolidos sob ameaça de chinela ou promessa de brinquedos. Tomar era uma antevisão apavorante! Laxantes, purgativos, fortificantes eram formas penitenciais com que Higeia cobrava seus benefícios. Remédio ruim é bom! Amargos, acres, mau- olor, de aspectos repulsivos, eram garantias de eficácia. E havia os segredos miríficos da Medicina caseira, invioláveis tantas vezes no prestígio tantas vezes secular. Urina de vaca em jejum, chá de grilo, caldo de largatixa, lambedor de fedegoso, fora a estercoterapia, não sabendo o doente o que toma [...]. Purgante de mastruz, jalapa, rícino, de manhã cedo, cinco horas sem comer, sem beber, sem dormir [...]. 355 Tomar remédio amargo, ruim, era cantado como símbolo de masculinidade, virilidade, força. O martírio e a dor eram tidos pelos médicos como inimigos, que deviam ser eliminados, daí a vitória dos sedativos, analgésicos e anestésicos. No Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, a anestesia local, a chamada raquianestesia, só fora introduzida no final da década de 1910, pelo cirurgião José Tavares da Silva. Segundo Cascudo, o medo da dor não era privilégio do paciente: Uma estória muito gozada, no velho tempo do Hospital Juvino Barreto, foi o doutor Januário Cicco, diretor e cirurgião devoto, grande sacerdote do bisturi, ter sido compelido a extrair um molar com o Clidenor Lago, chefe dessa seção. Clidenor deu a injeção e voltou-se abrindo a gaveta para escolher o boticão. Quando olhou para a cadeira, Januário havia desaparecido, com injeção e tudo [...] 356 Nem o chefe de clínicas do hospital resistiu à ameaça de uma simples extração de molar... Por isto, todo o investimento farmacológico e laboratorial no sentido de amenizar a dor: clorofórmio, éter, novocaína, opiácios variados, morfina. O mesmo para os remédios, que passaram a apelar na propaganda impressa para os sentidos do paladar e da visão. Cascudo recordou-se do Xarope Jataí-Prado e do Elixir Sanativo, ambos sendo anunciados nos jornais com recursos poéticos. As cores entusiasmavam o doente do apartamento 203: 355 Ibid., p.78. 356 Ibid., p.79. 186 Dá-me vontade derramar os meus remédios na colcha da cama e brincar com eles, como fazia, na fase juvenil, com botões. Não juro que sejam úteis, mas garanto que são bonitos. Muito deve ter andado a indústria farmacêutica apresentando seus produtos em formas amáveis e graciosas. 357 A presença de amigos e parentes, a constância dos médicos no cuidado habitual, as Filhas de Santana nas visitas de rotina, o padre Capelão, mesmo ressaltando o convívio humano perene, Cascudo não olvidou os momentos de solidão propiciados pela fragilidade do corpo na debilidade causada pela doença. O doente é obrigado a ficar consigo mesmo, aturar-se, ver-se no espelho, entabulando auto-conversação diária e frequente. Contudo, ainda que admitindo a solidão como companheira, nosso enfermo do Hospital das Clínicas não a tomou como inimiga, personificação da Ausência, da Falta, da Morte. A solidão se manifestava como positividade, instrumento, alavanca. No mundo da velocidade, ressalta Cascudo, a doença é a melhor oportunidade do gnôthi seautón358 délfico-socrático: “Quem não adoece,/Não se conhece...”, dizia. Solidão capturada na racionalização a posteriori de Cascudo, no reordenamento das memórias pós-hospital, tornada oportunidade de autoconhecimento, aprendizado de si consigo mesmo. O doente internado pintou assim sua solidão psicanalítica: A doença é um processo de análise. Rara oportunidade para o autoencontro, a intimidade reveladora da própria personalidade. Estar realmente consigo. Entender-se. Pesquisar-se. Fusão ideal com o alter ego, disperso na diversidade das preocupações centrífugas. A moléstia nos reaproxima, restituindo-nos a velha unidade psicológica da nossa meninice, quando estabelecíamos a entidade total, na naturalidade, no milagre da conversa dialogal, falando sozinho, com nós mesmos. Reencontramo-nos no final do labirinto perturbador. O sofrimento, a relativa imobilidade da clinóstase, as horas solitárias, o desinteresse pela vida pública, reduzida a uma farfalhante atividade de superfície, valorizam a delicadeza, a curiosidade mental, a jornada sutil, nos meandros da Percepção, emergida dos abismos inconscientes. 359 E falava aí um doente surdo, duas vezes solitário, portanto. Especialista no silêncio sonoro. Para ele, “estar só” não era problema de convivência, ausência de pessoas em derredor, ou qualquer espécie de “mal do século”. Era ausência de exercício, hábito, questão individual: “A solidão é ausência de fauna e flora anterior e pessoal. 357 Ibid., p.81. 358 “Conhece-te a ti mesmo”, famosa frase grega presente na fachada do Templo de Delfos, e tornada imortal na obra do filósofo Sócrates. 359 Ibid., p.82. 187 Isolamento para aqueles que não sabiam andar sozinhos e a pé, dizia o conde de Ficalho. O espírito não se esvazia ao deter-se, como a Arca de Noé...”. Últimas memórias sobre o tema da solidão. O “Doente aprendiz” terminou suas lições em 26 de abril de 1968, pela manhã, com o telefonema de Onofre Lopes anunciando sua alta do hospital. Tornou-se mestre no assunto e escreveu seu “Pequeno manual”, ensinando aos interessados como um doente deve se comportar em um hospital. A dupla experiência hospitalar de Câmara Cascudo (agosto de 1967 e abril de 1968), contada na modalidade do gênero memorialístico, nos revela um pouco do cotidiano de um doente hospitalizado na década de 1960, no Hospital das Clínicas. Nessas experiências, Cascudo descreveu o espaço circunscrito e limitado da mobilidade funcional do enfermo, obrigado a se movimentar dentro de um reticulado cujos principais pontos de apoio são uma janela, um sofá e uma cama, dos quais a fuga só era possível através da imaginação, da inventividade, as “maginações” das notas cascudianas. Cotidiano que se desenrolava no recebimento de visitas de amigos e parentes, conversas com o Capelão, irmãs de Santana, médicos e demais funcionários do hospital. Todavia, não devemos nos deixar levar pelas seduções literárias da escrita de Cascudo, doce e esteticamente atraente como as pílulas coloridas que ele pretendera derramar na colcha da cama ou como os anúncios poéticos do Xarope Jataí-Prado e do Elixir Sanativo. Poucos doentes comemorariam seu aniversário de casamento com champagne dentro do hospital nem tampouco teriam tantos médicos amigos à disposição, assim como parentes a receber em visita. Um indigente transferido para o hospital (havia um espaço próprio reservado para eles) certamente não gozaria das mesmas regalias que o nosso doente-memorialista. A solidão do paciente era a marca registrada do processo de singularização dos corpos levado a cabo no século XX – isto ele não poderia negar -, intensificando a sentimento de “estar só”. O neoindividualismo próprio de nosso tempo trouxera os benefícios de uma medicina tecnologicamente avançada, que cada vez mais devassava a opacidade do corpo humano na busca quase mítica pela eliminação da dor e do sofrimento, substituindo-as pelo prazer sem limites. O reino do indivíduo autônomo, saído da quebra das solidariedades comunitárias e corporativas, agora cobrava seu 188 preço: O penhor dessa evolução foi o aumento da solidão. A solidão é o mal do século, solidão dos doentes, solidão dos operados, dos moribundos, daqueles a quem de hora em diante compete decidir sobre a sorte de um corpo que não se assemelha a nenhum outro. Tudo concorre para intensificar essa solidão. Em nome da modernidade, os hospitais fizeram desaparecer as salas comuns. 360 As dores lancinantes do ulcerado que escapara da vigilância do hospital, na noite de 22 de abril de 1968, dando cabo de sua vida no parque, certamente não contaram com a alegria contagiante das muitas visitas de parentes e amigos que Cascudo recebera no apartamento 203. Como o indigente ulcerado pudera fugir sem que ninguém o notasse? Invisibilidade do corpo doente na era do olhar panóptico? Indubitavelmente, essas diferenças de tratamento com relação aos doentes, inferência para o caso citado, configuram-se como uma das séries de comportamento passíveis no interior do ambiente hospitalar. Nesse sentido, as memórias de Cascudo se apresentam ao historiador como uma fonte rica para o entendimento da vida que se desdobra no interior de um estabelecimento nosocomial, trazendo à tona os detalhes do dia-a-dia presentes no funcionamento de um espaço de cura. Ela ajuda a responder ao seguinte complexo de perguntas: “Como funciona um hospital?”, “Que se faz dentro dele?”, “Como um doente é tratado?”, “Quem são os profissionais que trabalham nessa instituição?”. Nomeando sujeitos envolvidos na dinâmica hospitalar, com sua rede de relações horizontais e verticais, descrevendo espaços internos e comentando práticas médicas, como operação de cirurgias, aplicação de injeções, uso de anestesias, consumo de medicamentos diversos, Cascudo adensa o arquivo, ainda precário, que nos informa sobre o espaço hospitalar, possibilitando-nos conhecer mais a respeito das atividades desenvolvidas em seu interior. Além de se prestar à constituição de uma positividade do saber sobre o hospital, tais memórias acabaram por funcionar também como uma verdadeira escrita de si mesmo para Cascudo, oportunidade, nas operações discursivas, de se construir como sujeito diante da enfermidade. Internado no Hospital das Clínicas, Cascudo, como os demais doentes, precisava viver sob as regras ou o conjunto prescritivo do “código moral” do nosocômio, isto é, respeitar seu regimento interno, sua lei, e igualmente as 360 MOULIN, Anne Marie. O corpo diante da medicina. In: COURTINE, Jean-Jacques (Org.). História do corpo: as mutações do olhar: o século XX, p. 53-54. 189 normas, decorrentes da lei ou mesmo estranhas a ela, de qualquer modo, adequar-se aos valores e regras propostas pela instituição. Permitir a bateria de exames, check-ups, tomando regularmente os remédios indicados, constituem um tipo de relacionamento com o código, neste caso, de anuência ou confirmação. Ficar no quarto enquanto interno do hospital e dele sair somente quando autorizado pelo corpo médico é um exemplo dessas regras prescritas pelo estabelecimento. Por sua vez, o doente ulcerado que escapara furtivamente na noite de 22 de abril desobedeceu as regras, burlou o código. Embora respeitando o regulamento interno do hospital, ele o fazia a seu modo. Tomava os remédios brincando com suas cores e fórmulas de anúncio; no seu aniversário de casamento, a Superiora enviou- lhe champagne, que se convertia em clara burla dietética, mas consentida pelo hospital na consideração da festividade ímpar (o doente declarou nas memórias não ter bebido); usufruía da sua clinóstase médica lendo na elogiada poltrona livro de medicina de Alexis Carrel beirando as mil páginas e em língua estrangeira. “Moralidade de comportamento” particular, própria, identidade iridácea. O Cascudo que se descreveu doente em suas memórias é um sujeito que tem como télos o domínio de si mesmo, no caminho de uma espécie de sabedoria. Ao longo de suas descrições, seu comportamento sempre é atravessado por uma série de lições históricas, demonstrações de erudição, viagens da imaginação que não se deixou capturar pelas paredes do apartamento do hospital: “maginações”. Cascudo plasmou em suas reminiscências um modelo de doente-sábio, que se integrou consigo mesmo, que vê na solidão oportunidade de autoanálise, mergulho profundo na alma, satisfação e alegria de uma convivência consigo mesmo. Sua escrita teve, assim, essa orientação psicanalítica, de movimento da alma que se quer fazer conhecer, que conta para si mesmo aquilo que acredita ser ou que gostaria de ser, em perpétuo treino ou exercício (áskesis) de auto-elaboração enquanto sujeito moral. A escrita nele era uma técnica de si mesmo, espécie de desempenho de uma “arte da existência”, escultor que resolveu insculpir na alma as obras da exterioridade. Que tipo de doente ele desejaria encarnar na lembrança de seus contemporâneos e na posteridade? Aí nasce o Cascudo-doente... Com efeito, mais do que o simples registro escrito de memórias esparsas, vivências e impressões gerais de suas duas experiências de internamento hospitalar, as 190 anotações de Cascudo falam de um duplo movimento escritural: como literatura de si, servem ao propósito individual de autogestão, técnica de constituição do sujeito moral, modalidade de autoconhecimento dado por si mesmo, na solidão da escrita: escrever é, antes de mais nada, falar consigo mesmo; como pedagogia, visam ensinar os outros a se autogerirem, fornecer modelos de comportamento para o corpo enfermo, adestrar o doente na “arte” de ser doente ( o titulo do livro-memória de Cascudo não é “Pequeno manual do doente aprendiz”?). Seus apontamentos dizem a positividade da experiência de um doente hospitalizado, registram as observações diárias que lhe impressionaram os sentidos, marcaram sua permanência no Hospital das Clínicas, enfim, a vida que pulsava nesse espaço de cura; mas o dizia sob o trabalho intenso de agrupamento de elementos para a composição de si mesmo, de seu autorretrato, da formulação hermenêutica de si. Cascudo buscava entender a si mesmo como sujeito de um corpo doente, dar-se uma “identidade”, sempre fugidia, no horizonte distante, procura incessante para dizer-se quem era; no mesmo movimento, dava vizibilidade ao aparato da máquina hospitalar, com suas peças e engrenagens, mecanismos de funcionamento, espacializando o corpo doente, fixando posições, estados, deslocamentos, etiquetando gestos, dicionarizando o vocabulário desse comportamento espacial, numa verdadeira economia moral do doente internado. Formas do “governo de si mesmo e dos outros”, diria Michel Foucault. O olhar de Cascudo sobre o hospital partia de sua experiência como doente. Suas observações colhiam o espectro visível e audível para um determinado sujeito, o doente do apartamento 203, e a matéria-prima era colhida segundo as possibilidades que ela oferecia para a autoanálise do nosso enfermo, sua autocompreensão de si mesmo, constituindo suas notas um tipo de hupomnêmata361 moderno, isto é, uma caderno 361 Michel Foucault estudou profundamente as hupomnêmatas da cultura greco-romanas, parte de uma série de estudos sobre o que ele chamava de “as artes de si mesmo”, “a estética da existência” e “o domín io de si” no mundo antigo. Trata-se de um longo trabalho sobre o projeto de uma genealogia da ética, uma das três modalidades de estudo sobre as relações de poder, das vinculações entre “sujeito” e “verdade” na história: “sujeitos de saber”, “sujeito de ação sobre outros” e “agentes morais”. Com relação ao gênero da hupomnêmatas, temos uma boa caracterização na entrevista cedida por Foucault a Dreyfus e Rabinow em 1983, em Berkeley, Califórnia, material que figura no apêndice do livro Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalis mo e da hermenêutica, na seguinte passagem (p.318- 319): No sentido técnico, os hypomnemata poderiam ser livros de apontamentos, registros públicos, cadernos de anotações pessoais que serviam como memória. Seu uso como livro de vida, guias de conduta, parece ter se tornado uma coisa comum entre as pessoas cultas. Neles apareciam citações, fragmentos de trabalhos, exemplos, ações testemunhadas, descrições, reflexões ou arrazoados que tinham sido ouvidos ou que tinham vindo à mente. Constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas 191 individual de anotações, livro de vida, guia de conduta, contendo reflexões e pensamentos para serem lidos e relidos consigo mesmo e com os outros. Os relatos de Cascudo sobre seu internamento no Hospital das Clínicas na década de 1960 constituem apenas uma entrada possível do problema, um lado do prisma a partir do qual podemos investigar o espaço hospitalar: a visão do paciente. Sob esta angulação, eles nos sugerem um caminho de pesquisa, uma abordagem, que consiste em pensar o hospital como um espaço altamente complexo, que, a um só tempo, funciona: 1) como locus estratégico de constituição de sujeitos (de poder, de saber e de moral), “fábrica” de indivíduos por meio da disciplinarização dos corpos doentes, tornando-os “dóceis e úteis”, onde se aprende (função pedagógica) a “ser doente”, a “ser médico”, a “ser enfermeira” etc.; 2) como espaço institucionalizado de cura, lugar do combate contra a dor, o sofrimento, a enfermidade, máquina de produção da saúde; 3) “lugar-encontro” das diferenças no vasto espectro sócio-cultural: soldados, marinheiros, operários, indigentes, médicos, religiosas, autoridades da saúde pública (inspetor de higiene, policiais sanitários, vacinadores) entre outros, espaço de relações, contato, convivência, trocas culturais. Vasto campo temático e objetal metodologicamente explorável segundo as experiências dos sujeitos envolvidos na dinâmica do espaço hospitalar. A pergunta “O que se faz dentro do hospital?”, em torno da qual orbitam as memórias e reflexões do Cascudo-enfermo, pode ser respondida a partir de uma ou pensadas- um tesouro acumulado para ser relido e para meditação posterior. Também formavam uma matéria-prima sobre a qual tratados mais sistemáticos podiam ser escritos, onde eram apresentados os argumentos e as formas de lutar contra algum defeito (tal como a raiva, a inveja, a maledicência, a bajulação) ou de ultrapassar alguma situação difícil (um luto, um exílio, uma depressão, uma desgraça). No texto A escrita de si, de fevereiro de 1983, presente nos Ditos e Escritos, volume V, encontramos outra passagem esclarecedora (p.148-149), que complementa a definição da entrevista anterior: Não se deveria considerar esses hupomnêmata como um simples suporte de memória, que se poderia consultar de tempos em tempos, caso se apresentasse uma ocasião. Eles não se destinam a substituir as eventuais falhas de memória. Constituem de preferência um material e um enquadre para exercícios a serem freqüentemente executados: ler, reler, meditar, conversar consigo mesmo e com outros etc. (...) Por mais pessoais que sejam, esses hupomnêmata não devem ser entendidos como diários, ou como narrativas de experiência espiritual (tentações, lutas, derrotas e vitórias), que poderão ser encontradas posteriormente na literatura cristã. Eles não constituem uma ‘narrativa de si mesmo’; não tem como objetivo esclarecer os arcana conscientiae, cuja confissão- oral ou escrita- tem valor de purificação. O movimento que eles procuram realizar é o inverso daquele: trata-se de não buscar o indizível, não de revelar o oculto, não de dizer o não-dito, mas de captar, pelo contrário, o já dito; reunir o que se pôde ouvir ou ler, e isso com uma finalidade que nada mais é que a constituição de si. 192 abordagem ético-moral, que considere o estudo do espaço hospitalar segundo os diferentes comportamentos, prescritos ou efetivamente realizados, dos sujeitos que “praticam” essa espacialidade. Pensado dessa maneira, o hospital emerge, assim, como lugar em permanente construção, nunca pronto, acabado, espaço de fluxo e negociação entre regras, regulamentos e a “moralidade de comportamento” dos sujeitos que nele plasmam suas experiências. Quatro décadas antes do Streptococus erysipelatis atormentar a vida de Cascudo, conduzindo-o ao leito hospitalar, o médico Januário Cicco também publicava suas Notas de um médico de província, conjunto de memórias de suas atividades clínicas no Hospital de Caridade Juvino Barreto, pai do Hospital das Clínicas. Nessas “notas”, o sujeito que fala sobre o cotidiano do hospital não é o doente, como em Cascudo, mas um médico, o chefe das clínicas no nosocômio. A problematização do espaço hospitalar toma outra direção, guinada na perspectiva do Doutor, orientada pelos ensinos da ciência médica de seu tempo, pelo “código deontológico” de conduta no qual fora formado, tenha sido ele oral ou escrito, por suas experiências no trabalho hospitalar ou mesmo clínico, entre outros. Nas “Reflexões”, seção que abre suas “Notas”, Januário Cicco anuncia sua perspectiva logo na epígrafe tomada do fisiologista francês Claude Bernard: Em science, le mot critique n’est point synonyme de dénigrement; critiquer signifie rechercher la verité en separant ce qui est vrai de ce qui est faux; en distinguent ce qui est bom de ce qui est mauvais. 362 Os princípios da ciência médica (“science”) norteando sua prática, acompanhadas do programa moral e humanista de distinção entre o que é bom e o que é mal (“en distinguent ce qui est bom de ce qui est mauvais”): o farol positivista da Ciência a serviço de um Humanidade transformada para “melhor”. Para não deixar pairar dúvidas acerca força da epígrafe, Januário desdobra a idéia em bom português, esclarecendo a natureza e a finalidade de seus escritos: Estou muito certo da inutilidade das paginas que se seguem; fio, entretanto, que em critica scientifica, vale menos aquillo que se não diz. Uma narrativa aproveita, ás vezes, pelo conceito moral que encerra; um episodio abre margem a commentarios burlescos, ou firma princípios de moral social. Um estudo nunca e estéril, e a critica aproveita-lhe pelo menos a ideia. 362 “Em Ciência, a palavra crítica não é sinônimo de denegrir; crit icar significa buscar a verdade, separando o que é verdadeiro do que é falso; distinguindo o que é bom do que é mau” (tradução do autor). 193 O que se vae ler não é bem um estudo, mas um apanhado de conceitos, entre episódios e observações, colhidos na arduissima tarefa de um medico de província, que há vinte e um annos arasta o doce sacrifício de “ver” doentes, e ri da fraqueza humana.363 O cotidiano do hospital tem foco narrativo diferente, pois é contado por um médico. Guarda, contudo, dupla homologia com nosso “Doente aprendiz”: funciona como um livro de memórias, que reúne “episódios e observações” agregados ao longo de sua prática hospitalar; tem como escopo o desejo de incursionar no campo moral, ensinar regras, normas, fornecer modelos de comportamento individual e coletivo (“conceito moral”, “princípios de moral social”). Essas semelhanças entre as memórias cascudianas e os escritos januar ianos nos forneceram as pistas para a elaboração de uma proposta teórica e metodológica adequada à problematização do espaço hospitalar do Juvino Barreto. Considerando como fonte principal – mas não exclusiva - sobre as práticas médicas no HCJB as “Notas” do doutor Januário Cicco, responderemos à questão norteadora “O que se faz dentro do hospital?” tomando como bússola as experiências clínicas de um médico que trabalhou no nosocômio, exercendo diferentes funções nesse espaço de cura: diretor, médico-cirurgião e chefe de clínicas. As práticas médico-hospitalares de Januário serão examinadas sob o signo da genealogia da ética364 teorizada por Foucault, que procura não separar a ação moral propriamente dita (sistemas de valores, regras, códigos, proibições) da atividade realizada pelo sujeito sobre si mesmo, aproximando sujeito moral dos “modos de subjetivação”.365 Assim, a intervenção do médico no espaço hospitalar, manejando as teorias, técnicas e instrumentos de sua profissão, lidando com os pacientes internados, não 363 Cicco, Januário. Notas de um médico de província: crítica médico-social, p.5-6. 364 Para uma v isão panorâmica sobre esta linha de investigação de Foucault, sugerimos: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Pau l. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. Apêndice da segunda edição (1983): Foucault entervistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow, p.296-327. Um acompanhamento mais detalhado, em língua portuguesa, das discussões na obra de Foucault requer as seguintes leituras: História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988; História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984; História da sexualidade: o cuidado de si. Rio de Janeiro : Graal, 1985; A hermenêutica do sujeito: curso dado no College de France (1981-1982). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010; O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982 -1983). São Pau lo: WMF Martins Fontes, 2010; Ditos e escritos V: ética, sexualidade e polít ica. Organização e seleção de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense, 2010. 365 FOUCAULT, Michel. O uso dos prazeres e as técnicas de si. In: ______. Ditos e escritos V: ética, sexualidade e polít ica. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.p.214. 194 incide apenas nos objetos, nas enfermarias ou no corpo do doente, mas, antes de tudo, no próprio agente das ações, que se constituiu como tal somente no exercício dentro de um campo de práticas. Daí Foucault encarar a ética sob um tríplice aspecto: 1) a moral, como “o conjunto de valores e de regras de conduta que são propostas aos indivíduos e aos grupos por meio de diversos aparelhos prescritivos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas etc.” 366; a moralidade dos comportamentos, sendo “o comportamento real dos indivíduos em sua relação com as regras e valores que lhe são propostos” 367; e a maneira de conduzir-se, isto é, a maneira pela qual o indivíduo deve constituir este ou aquele aspecto dele próprio como matéria principa l de sua conduta moral” 368. A substância ética (substance éthique) 369, como denominava Foucault essa “maneira de conduzir-se”, é que conferiria ao sujeito moral a individualidade da sua conduta, a parte dele, e somente dele, que participa da relação com o código moral. 3.2 Peças e engrenagens da máquina hospitalar: os passos do manual para a montagem Em 26 de setembro de 1911, o governador Alberto Maranhão mandou publicar na “Parte Official” do jornal A República o Regimento Interno do Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, sistematizado pelo Inspetor de Hygiene e Assistênc ia Públicas, o médico José Calistrato Carrilho de Vasconcelos. Esse Regimento Interno já era previsto legalmente pelo Decreto n.238 de 15 de dezembro de 1910, que dava outra orientação à assistência pública do Rio Grande do Norte.370 Fazendo parte dessa reformulação do serviço assistencial, o RI do HCJB forneceria as normas para o funcionamento adequado do hospital, buscando regular o comportamento do corpo de funcionários que trabalhavam na instituição e dos doentes que ali desejassem internar-se. O documento era composto de um conjunto de sessenta e cinco artigos, que abordavam diferentes temas relativos ao trabalho no interior do hospital: quadro completo do corpo médico, com especificação de funções e remuneração; atribuições de cada funcionário em particular, descrevendo-se detalhadamente seu escopo e limites; regras de admissão dos enfermos nas instalações do nosocômio, o comportamento nas enfermarias, as roupas consideradas convenientes, 366 Ibid., p.211. 367 Ibid. 368 Ibid., p.211-212. 369 Ibid., p. 212. 370 A REPÚBLICA. Regimento Interno do Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, 26 set. 1911.p.1. Os artigos se estendem pelo jornal ao longo dos dias 26, 27 e 28 de setembro. 195 os espaços de circulação etc., codificação que acompanhava a entrada dos trabalhadores e doentes até a saída deles, regras que procuravam cobrir o variado espectro de comportamentos no espaço hospitalar, disciplinar tanto os corpos doentes quanto os sãos, imprimindo-lhes a marca do Desejo e da Lei. Funcionavam como um manual para a montagem das peças e engrenagens da máquina hospitalar; constituíam o “código moral” 371 no sentido foucaultiano: as prescrições que determinavam os “atos permitidos ou proibidos” 372, agregando- lhes, por extensão, a axiologia dos valores positivos ou negativos, dupla codificação do campo comportamental. Como se pode perceber, esse “código moral” não recebeu sua escritura e força legal quando o HCJB começou seu funcionamento efetivo, em setembro de 1909, vindo à baila um ano e três meses depois da inauguração do hospital, e tornando-se de domínio comum a partir de sua publicação nas páginas do jornal A República, em 1911, respirando com a reforma do sistema assistencial. Nesse intervalo de ausência do Regimento Interno, que regras dirigiram o nosocômio do Juvino Barreto? Não sabemos. Talvez aquilo que o médico Januário Cicco, cirurgião e depois chefe de clínicas do hospital, chamava frequentemente, ao discutir a ausência de uma Deontologia médica escrita, de “tradição” 373, “as regras de conduta da própria moral profissional” 374, o que se aprendia no exercício da profissão, que era dito e praticado ao longo dos anos pelos profissionais do campo médico. Esse “código tradicional”, do qual conhecemos pouco ou quase nada no que diz respeito ao hospital, parecia não trazer problemas à realidade do pequeno quadro funcional do HCJB, que contava com reduzido número de trabalhadores. Segundo a tabela fornecida no Decreto n.206 de 31 de agosto de 1909, o pessoal interno era composto por uma equipe de nove empregados: uma enfermeira, um enfermeiro, um cozinheiro, uma lavadeira, uma servente de farmácia, um empregado do motor d’água, um servente de enfermaria, um hortelão jardineiro e um criado para compras e recados.375 Neste decreto ainda não constava a presença de um médico diplomado, que só viria na força da lei ao fim do mês de setembro, função ocupada pelo médico 371 Apêndice da segunda edição (1983): Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In : DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalis mo e da hermenêutica, p.307. 372 Ibid., p.307. 373 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: crítica médico-social, p.37. 374 Ibid., p.37-38. 375 A REPÚBLICA. Parte Official, 6 set. 1909. 196 Januário Cicco. O movimento interno no estabelecimento ainda não demandava maior numero de funcionários. Entre 1º de outubro de 1909 e 30 de setembro de 1910, os dados coletados pela Regente Cosma Campani, registrados no relatório do Inspetor de Hygiene José Calistrato Carrilho, dão conta de um pequeno fluxo de doentes, como está registrado na tabela abaixo: Tabela 10 - Movimento hospitalar do HCJB entre 1909 e 1910 DOENTES HOMENS MULHERES TOTAL Existiam 20 16 36 Entraram 180 150 330 Saíram 165 132 297 Faleceram 14 14 28 Ficaram em tratamento 21 18 39 Fonte: Mensagem de 1910. No período de um ano, entraram cerca de 330 pacientes, obtendo alta 297 deles, o que dá uma média de 23 internados ao mês, quase um por dia. Ainda constando dessa estatística do “movimento hospitalar” inicial, os trabalhos realizados dividiram-se na aviação de receitas para os doentes internos (2692), para os doentes de consulta (5221) e para os praças do Batalhão de Segurança (798), promovendo-se 42 operações de alta e pequena cirurgia.376 Entrada e saída de pacientes que ainda podia ser controlada por um pequeno contingente de funcionários. Contudo, já em 1910, eram previstas mudanças na estrutura física do HCJB, com o objetivo de ampliar os serviços médicos. Anunciavam- se a construção de três grandes salas para pensionistas de 1ª e 2º classes, a instalação de gabinetes de bacteriologia, anatomia patológica, e salas de hidroterapia e eletricidade medica.377 Mesmo sendo o movimento inicial de pacientes pequeno, já se vislumbrava o seu aumento progressivo, o que requeria também a incorporação de novos funcionários ao hospital. No Regimento Interno, publicado em 26 de setembro de 1911, 376 RIO GRANDE DO NORTE..., 1910, p.10. 377 Ibid. 197 o quadro da equipe do HCJB já apresentava algumas alterações, assim discriminadas: Tabela 11- Quadro de funcionários do HCJB em 1911 FUNCIONÁRIOS ORDENADO GRATIFICAÇÃO TOTAL TOTAL GERAL Um médico-cirurgião encarregado da sala de operações e das enfermarias civis, inclusive a de maternidade, e da sala do banco para receituário externo 2:800$000 1400$000 4:200$000 4:200$000 Um médico encarregado dos gabinetes bacteriológico e hidroterápico 1800$000 1:800$000 1:800$000 Oito Irmãs de Caridade contratadas para se encarregarem da direção dos estabelecimentos das farmácias e das enfermarias 480$000 480$000 480$000 Um enfermeiro 720$000 720$000 720$000 Uma enfermeira 600$000 600$000 600$000 Três serventes de enfermaria 360$000 360$000 1:080$000 Um barbeiro 800$000 400$000 1:200$000 1:200$000 Uma cozinheira 1:000$000 1:000$000 1:000$000 Uma servente de farmácia 400$000 400$000 400$000 Uma lavadeira 400$000 400$000 400$000 Um jardineiro- horteleiro 400$000 400$000 400$000 Um criado 200$000 200$000 200$000 Soma 12:480$000 Fonte: A República, 1911. A tabela, que resume o quadro dos médicos e do pessoal interno, com seus respectivos ordenados e gratificações, mostra cerca de 21 funcionários previstos para o hospital, número que dobrou em relação ao ano de 1909. Nela, já surgem as funções de 198 medico, dois ao todo, um deles especialista em cirurgia; mais três irmãs de Santana além das cinco existentes na inauguração; mais dois serventes de enfermaria; um barbeiro; e desaparecia o responsável pelo motor d’água (?). Ligeiramente diferente da tabela do pessoal interno, o Art.1º do RI do HCJB ainda previa alguns outros membros: o §5º acrescentava duas ajudantes de enfermaria; o §6º incluía quatro serventes para o trabalho interno e externo, à disposição da Regente; e o§7º falava de duas ajudantes de cozinha.378 Em 1912, ano da inauguração do Asilo de Mendicidade Padre João Maria, parte das ampliações do hospital que se dariam ao longo das décadas de 1910, 20 e 30, o HCJB registrava a entrada de 693 pacientes, o dobro daqueles de 1910, o que talvez justificasse as alterações no quadro funcional.379 Isto não quer dizer que todos os funcionários discriminados na tabela e os espaços a eles destinados efetivamente existissem. Vimos no capítulo anterior que, até meados de 1915, o único médico do quadro no hospital era o Dr. Januário Cicco, que contava com a ajuda de um prático, José Lucas do Nascimento. Neste ano, o Estado presenteou-o com outro colega de profissão, o médico Otávio Varela. Nada mais. O enfermeiro e a enfermeira380 do RI tinham certamente suas funções usurpadas pelas irmãs de Santana, sendo uma delas, previstas no mesmo regimento, habilitada para exercer o trabalho, sob a supervisão do medico-cirurgião; o barbeiro, a lavadeira, o criado e o jardineiro-horteleiro escasseiam na documentação oficial disponível. O Laboratório de Analyses fora criado por Antônio de Melo e Souza em 1923, estando sob a responsabilidade do químico Francisco Gomes Valle Miranda, mas debutou em fevereiro de 1925.381 O mesmo ocorrendo com o Laboratório Bacteriológico, dando o ar de sua graça somente em 1924.382 A Seção de Hidroterapia, por sua vez, já se encontrava funcionando em 1916, 383 cinco anos depois das 378 A REPÚBLICA. Regimento Interno do Hospital de Caridade “Juvino Barreto”. 26 set. 1911, art. 1º, parágrafos §1º a §8º, p.1. 379 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da Terceira Sessão da Sétima Legislatura em 1º de Novembro de 1912 pelo governador Alberto Maranhão. Natal: Typ. d”A República, 1912. Seção de Hygiene e Assistência, p.16. 380 Os nomes desses funcionários nunca aparecem na Seção Oficial de publicações do Governo, nem em termos de contratação. Januário Cicco, em suas Notas de um médico de província, também silencia a questão, sendo todas as suas referências à função de enfermagem remet idas ao trabalho das irmãs de Santana. 381 RIO GRANDE DO NORTE..., 1925, Seção Departamento de Saúde Pública, p.36. 382 Ibid., p.31. 383 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da nona legislatura em 1º de novembro de 1916 pelo governador desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. d’A República, 1916. Seção de Assistência Pública, p.20. 199 determinações do RI. O código, num sistema de controle, deve trabalhar tanto com as ações conhecidas, já efetuadas, matéria de arquivo, quanto com as virtualidades, as potências, as possíveis movimentações, deslocamentos, operações de comportamento previsíveis, atenção aos mínimos gestos corporais, treinamento e exercício intensivo dos indivíduos no aprendizado das regras. O poder normalizador, materializado nos regulamentos, códigos e normas, opera dirigindo as práticas no espaço e no tempo, articulando-as num télos que informa as modalidades de governo dos outros. Funções e espacialidades fabricam os sujeitos. Nesse complexo jogo de distribuição funcional e espacial dos indivíduos, de formulação de estratégias e táticas de controle, antecipações de desvios, orientado segundo a “regra das localizações funcionais” 384 no “espaço útil” 385, o domínio hospitalar do HCJB trazia uma importante particularidade com relação a outras instituições nosocomiais. O prédio que abrigava os médicos e o pessoal interno do hospital também servia como sede da própria Inspetoria Geral de Hygiene e Assistência Públicas no Rio Grande do Norte, principal órgão regulador do sistema assistencial do Estado. Isto significa, para o que estamos discutindo, que todo o corpo de funcionários do IGHAP/RN se encontrava alocado no mesmo edifício do HCJB, espaço simultaneamente político-administrativo e médico-hospitalar, mescla de hierarquias e funções, pedindo fluidez, desintegração das posições sólidas em favor da liquidez do movimento, racionalização utilitária do espaço, ergonomia do viver-junto. Essa inflação de funcionários no hospital pode ser medida pela lista que aparece na Tabela n.8 da lei n.336 de 2 de dezembro de 1912, que orçava as despesas para o exercício financeiro de 1913, no governo de Alberto Maranhão. Nela, a “Higyene e Assistência Públicas” registrava no seu quadro de funcionários os seguintes empregados: um Inspetor, uma secretária, um fiscal, um escriturário, o pessoal empregado na desinfecção pública e visitas domiciliares, um médico para visitas ao Asilo “João Maria”, um médico para os isolamentos da Piedade (alienados) e S. João de Deus (tuberculosos), um zelador para o Isolamento de Variolosos, outro para a Piedade e, por fim, mais um para o S. João de Deus.386 Esse conjunto ainda era bem maior, se 384 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 38. ed. Rio de Janeiro : Vozes, 2010.p.139. 385 Ibid. 386 A REPÚBLICA. Tabela n.8, Higyene e Assistência Públicas, 2 jan. 1913. 200 considerarmos os enfermeiros, irmãs e pessoal interno de cada estabelecimento nosocomial administrado pela IGHSP, corpo de funcionários que exerciam suas funções diretamente nos estabelecimentos para os quais estavam designados. A construção de um prédio próprio para abrigar os serviços da Inspetoria só ocorrera muitos anos depois. Em 1º de janeiro de 1929, iniciou-se o levantamento de um novo edifício para o então “Departamento de Saúde”, localizado agora na Av. Junqueira Aires, tendo como diretor o médico Varela Santiago. A planta teve a autoria do arquiteto Giacomo Palumbo e as obras foram supervisionadas pelo engenheiro civil Octavio Tavares. A inauguração, realizada em 1º de outubro, contou com a presença do governador Juvenal Lamartine e do vice Joaquim Ignacio de Carvalho, além de outras autoridades políticas387 do Estado, com grande festividade regada a champanhe e música tocada pelas bandas do 29º Batalhão de Caçadores e do Regimento Policial. A partir de então, o Departamento de Saúde passara a funcionar em local apropriado, e seus funcionários, antes lotados no HCJB, foram agora remanejados para a sede da Junqueira Aires.388 Além da listagem dos funcionários do quadro médico-hospitalar, descritos no art.1º, o Regimento Interno do HCJB regulava também as funções e modos de exercício de cada um dos integrantes da equipe do nosocômio, descrevendo em deta lhes como eles deveriam proceder no interior do hospital, sua área de movimentação e deslocamento, seu turno de atividades, a determinação dos limites de seu exercício funcional, o jogo dos signos que recobriam sua identidade e comportamento, as sanções previstas para os desvios, enfim, a disciplinarização dos corpos e o controle das atividades segundo uma ordem taxonômica389, que exige o exercício, o treino e a repetição como técnicas de fixação, daí o dispositivo na forma da Lei, do código e da regra: o dever-fazer, a regulamentação como instrumento do poder da Norma390. No topo da escala hierárquica do hospital, estava a Regente responsável pela administração interna do HCJB, conforme assinalava o contrato firmado em 10 de 387 Além do “presidente” e do “vice-presidente” do Estado, compareceram à solenidade o desembargador Francisco de Albuquerque, representado o desembargador Dionísio Figueira, Presidente do Superior Tribunal de Justiça, o bispo diocesano, vigário geral da Diocese, diretores de departamentos, deputados, chefes de serviços internos e municipais, altas patentes da marinha, do exército e da polícia. A inauguração teve início às 10 horas da manhã, com a bênção do bispo diocesano ao prédio, continuando com os discursos do presidente do Estado e do clínico Varela Santiago. 388 A REPÚBLICA. O “novo” edifício da Saúde Pública, 1 out. 1929. 389 FOUCAULT, M. Vigiar e punir: o nascimento da prisão, p.143. 390 Ibid., p.176-177. 201 agosto de 1909. Os contatos entre a Ordem das Filhas de Santana e o Governo do Rio Grande do Norte já se davam pelo menos desde 1908, quando um grupo dessas irmãs esteve em Natal, conforme noticiou o jornal A República em 24 de agosto: Passaram ante-hontem [22] nesta capital, visitando o Hospital de Caridade, a convite do governador, 4 irmãs da Ordem de Sant’Anna, especialmente dedicadas a serviços de assistência pública. O governador combinou com as referidas irmãs as clausulas do contrato que com ellas pretende realisar, para se encarregarem do Hospital e Asylo de Mendicidade, logo depois de terminada a reforma do serviço de assistência, para qual solicitará autorização do Congresso. 391 O cargo fora preenchido pela Superiora Cosma Campani, secundada pelas irmãs Rosa Sampaio, Helena Maria de Menezes, Renoleta Mesati e Olindina Garavaghia392, que aportaram em Natal, a bordo do vapor “Acre”, um mês antes da assinatura do contrato, em 14 de julho.393 Toda a escrituração do hospital, a responsabilidade de todos os registros, encontrava-se em suas mãos, podendo contar com o auxílio de uma das irmãs para o posto da secretaria. 394 A presença delas no hospital era permanente, dormindo todas no interior do próprio estabelecimento, no espaço que era inicialmente a casa de campo de Alberto Maranhão. Na ausência da Regente, situação rara ao longo dos anos, assumia o posto uma das irmãs, por ela mesma designada, não sendo o serviço prestado por elas interrompido. Em 16 de fevereiro de 1915, numa quinta- feira, o jornal A República, na sua coluna Várias, noticia uma ocasião sui generis de suspensão das atividades: De hoje [15] até o dia 22 do corrente serão suspensas as consultas do receituário externo do Hospital Juvino Barreto, em virtude do retiro espiritual das irmãs de Sant’Anna encarregadas daquelle estabelecimento de caridade. Os doentes, porém, continuarão a ter entrada naquelle Hospital. 395 O receituário externo dizia respeito aos pedidos de receitas feitos por pessoas que não estavam internadas no HCJB, que normalmente eram atendidas na sala 391 A REPÚBLICA. Varias, 24 ago. 1908. 392 MEDEIROS, Tarcísio de. Ontem, Hospital do Monte, hoje Hospital “Miguel Couto”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, v. 53, p. 35, 1960. 393 A REPÚBLICA. Varias, 15 jul. 1909. O trecho que informa a chegada é o seguinte: “Chegaram ontem do norte as irmãs religiosas que vem servir no Hospital de Caridade”. O anúncio da partida delas de Recife apareceu no jornal em 12 de julho: “Devem chegar n’estes dias do sul a bordo do “Acre”, as irmãs religiosas que vem servir no Hospital de caridade desta cidade”. 394 A REPÚBLICA. Regimento Interno do Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, Capítulo IV, art. 6º e 7º. 395 A REPÚBLICA. Várias, 16 fev.1911, p.1. 202 do banco ou no gabinete médico. O jornal não explica, todavia, quem substituiu as irmãs na administração do hospital naquela semana de retiro ou se a ausência fora efetivamente total ou parcial, tendo permanecido algumas delas na condução dos trabalhos administrativos. Trata-se de evento único registrado na documentação sobre o HCJB em 30 anos de funcionamento. Ao lado da Regente e suas auxiliares, ocupava posição central nas atividades do hospital a figura do médico-cirurgião, cargo pertencente ao doutor Januário Cicco, nomeado pelo governador Alberto Maranhão em 23 de agosto de 1909, assumindo as funções em 1º de setembro.396 Enquanto as irmãs se dedicavam ao serviço interno, Januário Cicco praticava e supervisionava o serviço médico-cirúrgico e o exercício de farmácia, a cargo de uma irmã. De acordo com o RI do HCJB, ele deveria comparecer ao estabelecimento nosocomial às oito horas da manhã e aí permanecer visitando os doentes o tempo que julgasse necessário para o expediente, podendo repetir as visitas sempre que os doentes assim necessitassem. Sua atuação estava submetida à Regente, que podia solicitá-lo a qualquer momento do dia, como em casos graves dessem entrada no hospital. A rotina do médico-cirurgião do hospital parecia ser bastante intensa, com muitas responsabilidades e atividades a desenvolver ao longo do dia. Além das visitas aos doentes, Januário tinha por obrigação atender aos casos de cirurgia, tanto aquelas chamadas de “alta cirurgia”, pois necessitavam do uso de anestésico, quanto as denominadas de “pequena cirurgia”, que podiam dispensar sedativos, incluindo aí as intervenções na sala de maternidade. O trabalho cirúrgico era muito requisitado, e os casos de operações 396 Ibid., 23 ago. 1909. O trecho da nomeação é o seguinte: O Governador do Estado resolve nomear o dr. Januário Cicco para exercer o logar de medico cirurgião encarregado da sala de operações e das enfermarias civis do Hospital, inclusive a de maternidade, e da sala do banco para o receituário externo, ficando-lhe marcado o prazo de 8 dias para solicitar o titulo e assumir o exercício. Em 4 de fevereiro de 1911, na Parte Official, Expediente, Actos, referente a 2 de janeiro, o governador incumbe Januário de outras funções complementares: O governador do Estado resolve nomear o medico cirurgião do Hospital de Caridade dr. Januário Cicco para encarregar-se dos Gabinetes bacteriológicos e electro- hydrotherapico com a gratificação annual de 1:800$000. 203 delicadas se multiplicavam. Em 1º de agosto de 1911, em Baixa-Verde, no município de Taipú, o funcionário da Estrada de Ferro Central Antônio Barbosa Filho teve um dos terços superiores da coxa esmagado pelas rodas de um dos vagões quando tentava passar de um para outro. Antônio, que tinha apenas 24 anos de idade, fora levado às pressas, transportado no mesmo trem que o esmagara, pelo maquinista João Franco até a cidade do Natal, onde fora operado com urgência pela equipe médica do HCJB. Infelizmente, horas depois do procedimento cirúrgico veio a falecer, sendo seu corpo levado ao Cemitério do Alecrim para sepultamento. 397 O médico-cirurgião, em seu trabalho para salvar vidas, tinha de conviver também com a morte... Embora não tenha sido o caso, o RI permitia que o médico realizasse exames anatômicos no corpo dos mortos e laboratoriais das substâncias estranhas nele encontradas, podendo ainda realizar autópsias. 398Além do médico-cirurgião, a autópsia era normalmente uma incumbência do legista do Gabinete Médico-Legal. Em 11 de agosto de 1928, o médico do GML fora solicitado para fazer o exame no cadáver de Pedro Torres, depositado no necrotério do HCJB. 399 O deslocamento do corpo numa padiola e o seu sepultamento poderiam ser feitas a cargo do hospital, mas como um serviço “terceirizado”, custando aos cofres do governo. Um exemplo dessa prática foi o enterramento das praças do Batalhão de Segurança, Manoel Justino e Chrispim de Souza, em dezembro de 1913. As despesas de quatrocentos e dez mil réis foram pagas à empresa Francisco Madureira & Filho.400 Em abril de 1923, realizou-se na sala de operações do HCJB uma perigosa cirurgia de laparotomia numa jovem de 18 anos. Abriu-se integral o ventre da moça para a retirada de um tumor estranho, um “quisto” de nada mais nada menos que 10 kg, composto de substância semi-fluida em grande quantidade, cabelos, ossos, cartilagens e substância sebácea. A operação durou mais de uma hora e foi dirigida pelo doutor Januário Cicco com os auxiliares Otávio Varela, médico ajudante do HCJB, e Guilherme Lins, tendo como “chloroformizador” o Dr. Adolfo Ramires. A paciente, dada a gravidade da operação, tivera de absorver cerca de 70 gramas de clorofórmio, grande quantidade de anestésico, mas, por sorte, não houve intoxicação. A jovem 397 Ibid., 1 ago. 1911. 398 Fora do hospital, a tarefa era da responsabilidade do médico-legal do Departamento de Saúde, o qual, dependendo do caso, também poderia examinar os cadáveres no próprio HCJB, quando, por exemplo, tratar-se de um criminoso. 399 A REPÚBLICA. Gabinete Médico-Legal, 15 ago. 1928. 400 A REPÚBLICA. Offícios, 2 dez. 1913. 204 apresentou boa recuperação no pós-operatório, tendo a cirurgia, dessa vez, sido bem sucedida.401 As enormes dificuldades enfrentadas no trabalho de intervenção cirúrgica, que dispendiam naturalmente tempo e energia do “especialista”, não isentavam o médico-cirurgião de outras incumbências no hospital. Nesse rol de obrigações, cabia- lhe ainda dar expediente no receituário da sala do banco, atendendo os indigentes, providenciando tratamentos e curativos. Essa “sala do banco” era o espaço reservado ao atendimento dos doentes pobres, que, ali mesmo, sentados em um pequeno banco, recebiam as recomendações, advertências e, se necessário, a receita aviada pelo médico. Era uma forma de resolver mais rapidamente os problemas dos pacientes não internados. Cada doente que desse entrada no hospital recebia um número de registro, e o médico-cirurgião era o responsável por fornecê- lo. Assim, o controle dos pacientes, com sua acomodação nas enfermarias, teria maior eficácia no disciplinamento dos indivíduos no espaço. Nas enfermarias, Januário Cicco tinha de registrar, nas suas visitas diárias, os diagnósticos das moléstias, as prescrições medicamentosas e a dietética própria a cada doente internado, tudo anotado nas papeletas que encimavam os leitos dos pacientes. Essa produção de apontamentos ajudava a acompanhar o histórico clínico de internamento do enfermo. O RI exigia que as observações clínicas do médico- cirurgião fossem feitas do “próprio punho”, prova inconteste de sua presença no espaço das enfermarias. Incorporação do hospital na moderna tecnologia política... A fiscalização constante e perpétua e o sistema de registro permanente e completo que se depreende das funções médicas de Januário Cicco constituem dois mecanismos importantes das técnicas disciplinares no espaço hospitalar. As visitas do médico-cirurgião às enfermarias dos doentes funcionavam como uma forma de vigilância sobre os corpos, garantia de sua localização funcional no reticulado dos pavilhões, enfermarias, salas e leitos, prescrevendo imobilidade no corpo doente, nominado a sua verdade nas papeletas da cabeceira das camas, dizendo a identidade de cada paciente, moldando seu 401 A REPÚBLICA. Uma importante intervenção cirúrg ica, 20 abr. 1923. 205 comportamento, exercitando o seu governo sobre o Outro. 402 Nesse exercício do poder médico, os olhos e as mãos se completavam na disciplina do espaço e dos indivíduos. A Visão coordenava os demais sentidos do aparelho perceptivo, articulando, na forma de subordinação, o movimento do corpo- objeto à diretividade dos agregados sensíveis. Ver o corpo dos doentes, massa/volume tangível, percorrendo-o sistematicamente por inteiro, na superfície epidérmica e na profundidade orgânica, higienizando-o, ministrando- lhe medicamentos, invadindo-o nas intervenções cirúrgicas, assujeitando-o ao leito individualizante. Nada podia escapar ao olhar perscrutador do médico, nem o ordinariamente invisível. Assim, o RI previa que a entrada dos doentes nas enfermarias deveria ser precedida por uma desinfecção completa, vaporização do corpo enfermo, com vistas à eliminação de microorganismos deletérios à saúde, de ordem miasmática ou bacteriana. No Hospital Santa Águeda, em Recife, essa “limpeza” era feita logo na entrada do prédio, na portaria,“ onde os doentes, medicos e visitantes recebiam desinfecção a vapores de gaz sulfuroso, sem o que não entravam nem sahiam”403. 402 FOUCAULT, Michel. A incorporação do hospital na tecnologia moderna. 1978. In : ______. Ditos e escritos VII: arte, epistemologia, filosofia e história da medicina, p.453. 403 Hospital “Oswaldo Cruz” Pernambuco. In: BODAS de ouro das Filhas de Sant’Anna no Brasil: notas históricas (1884-1934). Rio de Janeiro : Escola Typ. Pio X, 1933. p.67. Fig. 31 - Antiga portaria do Hospital Santa Águeda, em Recife. Fonte: BODAS de ouro das Filhas de Sant’Ana no Brasil, 1934, p.67. 206 A questão da desinfecção do corpo dos doentes não configurava uma preocupação estritamente médico-hospitalar, ligada à tese microbiótica dos trabalhos de Pasteur e Koch. Havia uma sensibilidade social latente acerca da limpeza em geral, que vinculava a aparência com a higiene total, verdadeira. As vestimentas e o corpo eram considerados limpos quando se submetiam a lavagens constantes, melhor forma de eliminar as sujeiras. Os sabonetes apareciam nas propagandas como aliados da higiene corporal e ainda proporcionavam, com seu perfume, atrativos para aqueles que os utilizassem, como alardeava o anúncio dos sabonetes Reuter, que advertia às mulheres do poder sedutor do produto, pedindo para que elas não entrassem na igreja, pois nem os santos resistiriam aos cheiros do sabonete, convite irresistível ao pecado.404 Com efeito, a des-infecção extrapolava o ambiente hospitalar, e não dizia respeito exclusivamente ao corpo, mas incorporava o espaço físico. Em 1º de janeiro 1929, o jornal A República anunciava a propaganda de um “desinfetante doméstico”, que podia ser utilizado em quaisquer espaços da casa: A “Cruswaldina”, então, era a extensão doméstica da prática da desinfecção, podendo ser aplicada nas instalações sanitárias das residências e na lavagem da casa. Os lugares de criação de animais, como estábulos e galinheiros, também deviam ser higienizados, como medida profilática contra doenças. Essas referências a animais falam um pouco da própria vida urbana na cidade do Natal, que a inda guardava na década de 1920 um caráter marcadamente rural. Aliás, Januário Cicco, o médico- 404 SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Higiene e hig ienismo entre o Império e a República. In: AMANTINO, Márcia; DEL PRIORE, Mary. História do corpo no Brasil. São Paulo: Unesp, 2011. p.307. 207 cirurgião do hospital, compareceu inúmeras vezes ao seu trabalho montado em um alazão, o mesmo que o conduzia ao município de Macaíba para clinicar aos sábados. As visitas aos doentes realizadas pelo médico-cirurgião se estendiam aos espaços da Farmácia e do Laboratório. No primeiro, Januário verificava se as substâncias e medicamentos estavam bem acondicionados no depósito, se as receitas haviam sido aviadas corretamente, conferir os pedidos de materiais feitos pela servente de farmácia. A manipulação das fórmulas discriminadas nas receitas médicas era fundamental no tratamento dos pacientes, e necessitava de acompanhamento constante do médico-cirurgião. No Laboratório, presente no hospital somente na década de 1920, realizavam-se exames médicos habituais de urina, fezes e muco, análises químicas, produziam-se algumas ampolas de injeção contra doenças infecto-contagiosas, como sífilis e lepra, e pesquisas de culturas bacterianas causadoras de moléstias. Para compreender melhor o que era realizado no laboratório podemos recorrer às estatísticas do Departamento de Saúde Pública. O Laboratório de Análises do HCJB, por exemplo, desenvolveu entre 1º de julho de 1926 e 30 de outubro de 1927405, os seguintes serviços: 405 A REPÚBLICA. Departamento de Saúde Pública, Laboratório de Analyses, 8 out. 1927. 208 Essa rotina de inspeção era essencial para o chefe de clínicas, que necessitava do auxílio constante dos aviamentos farmacêuticos e dos produtos do laboratório (injeções, como a de emetina, óleo camforado e quinofórmio, e vacinas, como a anti-gonocócica) no diagnóstico e na terapêutica médico-hospitalar. O Laboratório Bacteriológico se incumbia, por sua vez, de identificar algumas doenças bacterianas, helmínticas e outros exames específicos. No mesmo ano de 1927, o DSP listou algumas de suas pesquisas no LB: bacilo de Koch 135, bacilo de Hansen 75, bacilo de Klebs-loeffler 5, bacilos de Ducrey 38, gnococus de Neisser 370, treponema pallidium 11, spirilo fusiforme de Vincent 2, stafilococus 38, streptococus 9, micrococus catarralis 5, leishmania brasiliensis 10, filaria bancrofti 1, hematozoário de Laveran 495, hemoculturas para germens do grupo coli-tífico 10, pesquisas de ovos de helmintos nas fezes 4538, pesquisa de tenia saginata 8, tenia solium 25, exames de urina 1027, outros exames de laboratório 118, Reação de Wasserman 201, vacinas de Wright autogens 8. 406 Os cuidados com o funcionamento do HCJB também pediam grande atenção com a qualidade dos alimentos comprados e armazenados. Em geral, a dietética hospitalar parecia girar em torno do consumo de carne verde, café, açúcar, pães e bolachas. Pelo menos, é o que se encontra nos despachos e ofícios dos governadores. Em 20 de abril e 2 de setembro de 1923, Manoel Eugênio apareceu cobrando ao Inspetor do Tesouro pagamento pelo envio de carne verde ao hospital407; no mesmo ano, Francisco Câmara cobrava pelos de 110 kg de café moído fornecido aos estabelecimentos de assistência, no mês junho408, e os 95 kg do mês de agosto409; em novembro, O. J. O’Grady exigia o pagamento do açúcar vendido para a Assistência Pública410; em 8 de maio de 1929, no expediente do diretor geral, o Departamento de Saúde Pública expediu um ofício mandando pagar à Senna & Irmão os pães e bolachas vendidos ao DSP411. Esse padrão de consumo baseado nos sólidos também fazia parte de outras instituições asilares. No Hospital Santa Águeda, por exemplo, pães, bolachas e carne compunham a dieta básica do hospital em 1902. 412 406 A REPÚBLICA. Departamento de Saúde pública. Laboratório Bacteriológico, 7 out. 1927. 407 A REPÚBLICA. Despachos, 20 abr. e 12 set. 1923. 408 Ibid., 9 jun. 1923. 409 Ibid., 15 ago. 1923. 410 A REPÚBLICA. Despachos, 24 nov. 1923. 411 A REPÚBLICA. Departamento de Saúde: Expediente do Diretor Geral, Ofícios expedidos, 15 maio 1929. 412 DINIZ, Luís Carlos. A História do Hospital de Santa Águeda . Recife: Avellar, 1994. p.58. 209 Havia certamente outros alimentos no hospital, mas a documentação não deixou registro direto sobre o tema. Podemos deduzir alguns deles a partir dos editais publicados pela Enfermaria Militar e pelo 29º Batalhão de Caçadores. Em 23 de maio de 1911, a EM do Natal, sob o comando do 2º tenente intendente Henrique do Nascimento Gonçalves, lançou um edital com a lista de produtos exigidos aos comerciantes interessados, nela constando os seguintes itens: arroz, ovos, pães, frango, leite, vinho do Porto, goiabada, geleia, macarrão, feijão preto, farinha de mandioca, manteiga nacional e estrangeira, peixe fresco, tapioca, sal, chá verde, chá preto, carne de carneiro, carne verde de vaca, carne verde de porco, carne de charque, batatas, verduras, banha de porco, cerveja, massa para sopas, temperos diversos, linguiça, banana e laranja.413 Talvez fossem os mesmos utilizados na preparação das refeições no HCJB. A vistoria dos alimentos feita pelo médico-cirurgião objetivava averiguar o estado em que se encontravam os víveres, pois era comum que alguns produtos viessem a se estragar, principalmente carnes. O DSP, nas suas inspeções sanitárias, divulgava regularmente os produtos vetados na fiscalização, e as frutas e carnes verdes costumavam frequentar a lista dos alimentos deteriorados. Daí a preocupação do Regimento Interno do HCJB em vigiar os alimentos do hospital, recomendando a tarefa diária ao médico-cirurgião. Pode-se, com efeito, perceber então a alta responsabilidade que o cargo de Januário Cicco demandava. Cabia- lhe cuidar de todo e qualquer aspecto médico que envolvesse o funcionamento do hospital, dos casos mais graves de internamento, como as altas cirurgias, ao receituário da sala do banco, numa simples conversa; das visitas diárias aos enfermos, anotando suas observações nas papeletas, à preocupação com o estado dos alimentos que seriam utilizados na preparação das refeições dos doentes. Esse “olhar esmiuçante das inspeções” 414, esse “controle das mínimas parcelas da vida e do corpo” 415, fazem parte de uma “racionalidade econômica ou técnica” 416 que se volta para o “cálculo místico do ínfimo e infinito” 417, hipervalorizando o detalhe dentro de uma analítica do espaço e do indivíduo. Todas essas atividades desenvolvidas durante o trabalho do médico-cirurgião visam disciplinar 413 A REPÚBLICA. Enfermaria Militar do Natal, 23 maio 1911. 414 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão, p.136. 415 Ibid. 416 Ibid. 417 Ibid. 210 os corpos, dando- lhes uma função específica, criando para eles uma identidade: o espaço hospitalar é uma “fábrica” de sujeitos, de médicos e doentes. Nesse processo de produção de indivíduos, o nosso médico-cirurgião, além das tarefas já desempenhadas no hospital, ainda conseguia tempo para treinar (askesis) suas habilidades em outras instituições. O trabalho no HCJB não era a única ocupação de Januário Cicco. Desde 1906, quando regressara a Natal, abriu uma clínica na Av. Sachet, no térreo da casa onde morava. Quando assumiu a função médica no hospital, suas atividades como clínico geral tiveram continuidade, praticamente sem interrupção. No jornal A República418, ele costumava anunciar seu trabalho, informando especialidade e horários de consulta: Pelo horário das consultas, de 11h às 16h, podemos inferir que suas atividades no hospital se resumiam ao turno matutino. Em 1910, ano desse anúncio, também mudara sua clínica de endereço, atendendo agora na rua Senador José Bonifácio, n.17. Na época de Januário, a formação médica era geral, não havendo especialidades como conhecemos hoje. Ao longo da carreira, o próprio médico buscava se identificar com alguma área ou domínio de sua profissão. Assim, Januário informava receber qualquer caso de operação e ainda acrescentava a “otorrinolaringologia”. Com o tempo, percebemos que as escolhas feitas com relação às “especialidades” acabavam 418 A REPÚBLICA. Dr. Januário Cicco, 26 jul. 1910. 211 mudando, talvez com o objetivo de atrair mais a clientela. Vejamos este novo anúncio da clínica de Januário, agora em dezembro de 1913419: Além do retorno à av. Sachet, seu consultório atendia agora a “senhoras”, usando-se “os processos mais modernos”, utilizando, inclusive, sua experiência na “seção de gynecologia” do HCJB como argumento de competência. Fazia exames de urina, sangue, escarro, líquido cefalorraquidiano e aplica injeção de 914, utilizada contra a sífilis. Teria ele instalação laboratorial própria ou recorria ao Laboratório de Análises do HCJB? O horário de atendimento também configura um problema: ele diz atender das 9h30min às 11h e das 15h às 17h. Em que turno comparec ia então ao hospital? De 12h às 15h? De 8h às 9h30min? Talvez isto fosse possível desde que ele comparecesse às 8h e fosse substituído, na ausência, por um facultativo, como previa o RI, no Capítulo IV, art.14º: “O cirurgião medico será substituído nos seus impedimentos por um facultativo designado pelo Governador do Estado” 420. O RI assim seria obedecido. 419 A REPÚBLICA. Dr. Januário : médico operador e parteiro, 1º dez. 1913. 420 A REPÚBLICA. O Regimento Interno do Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, cap.IV, art.14º, 27 set. 1911. 212 Se, à esta altura, estamos com dificuldade de compatibilizar seu exercício da medicina no hospital com as atividades extra-hospitalares, acrescente-se a tudo isto ainda o trabalho do receituário dispensado na Farmácia Torres 421, uma das quatro farmácias situadas na capital ao longo das três primeiras décadas do século XX422. Nela, outros integrantes do hospital aparecem receitando: Na propaganda, o Inspetor Geral de Hygiene e Assistência Públicas, Dr.Calistrato Carrilho, aparece dando consultas no “consultório da pharmacia” das 16h às 17h. O Dr. Afonso Barata era Inspetor de Saúde do Porto, e já comparecera mais de uma vez ao HCJB socorrendo Januário em operação cirúrgica. O doutor Januário Cicco, por sua vez, dava rápido expediente, das 15h às 17h, uma hora apenas, certamente para harmonizar suas consultas do receituário com a atividade clínica e o movimento do hospital. A carga de trabalho do medico-cirurgião do HCJB não causa estranheza se pensarmos que Natal, no começo do século XX, era uma cidade tacanha, que mal ultrapassava a casa das 30 mil pessoas423, com alto percentual de analfabetos. O número 421 A REPÚBLICA. Annúncios, dez.1910. 422 As outras eram a Farmácia Monteiro, a Farmácia Maranhão e a Farmácia Popular. 423 CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal, p.108-109. 213 de médicos disponíveis acompanhava o caráter provinciano da urbe natalense: entre 1909 e 1913, os anúncios de médicos no jornal A República oferecendo seus serviços contavam pouco mais de uma dezena, podendo ser facilmente contabilizados. Entre eles, estavam Pedro Nunes de Sá, cirurgião-dentista; Mario Lyra, clínico geral; Paula Antunes, oculista; Nizário Gurgel, cirurgião-dentista; Januário Cicco, “otorrinolaringologista” e parteiro; Trajano Gomes, dentista; Clidenor lago, dentista; Paulo de Abreu, clínico geral; Celso Caldas; Antônio China, médico da Polícia; Cavalcante Mello e Isaac Salazar, oculistas. É assim que vemos esse pequeno grupo de médicos tomarem as páginas do jornal e a clientela da cidade. Avançando um pouco mais no tempo, mais precisamente em 16 de abril de 1927, o secretário da Diretoria Geral de Hygiene e Saúde Públicas, Anysio de Souza, publicou uma lista de médicos comprovadamente diplomados com registro na instituição, e o número deles ainda era reduzido se considerarmos que tais esculápios atenderiam a todo o Estado do Rio Grande do Norte424: 424 A REPÚBLICA. Diretoria de Hygiene, 24 abr. 1927. 214 A conta é simples: são 26 médicos e 12 cirurgiões-dentistas para, teoricamente, uma população de meio milhão de habitantes. A maior parte desses médicos registrados no DGHSP surgiu na sua contabilidade a partir da década de 1920, com a expansão do Estado brasileiro no caminho da nacionalização das políticas de saúde e saneamento, redefinindo a identidade profissional de um grupo de médicos e também dos profissionais da saúde pública, investindo em faculdades e cursos de formação médica. A criação do Departamento Nacional de Saúde Pública pelo Decreto n.3987 (publicado em 2/1/1920), reorganizando os serviços sanitários federais, e sob a chefia de Carlos Chagas, constituiu o marco das mudanças que já se processavam desde a década de 1910.425 Uma dessas transformações podia ser percebida na contratação de novos médicos realizada pelo HCJB. Em 26 de setembro de 1923, teve início o concurso para o provimento do cargo de cirurgião dentista do hospital. Às oito horas da manhã, reuniram-se no HCJB os médicos Januário Cicco, Otávio Varela e Adolfo Ramires, que compunham a banca examinadora do concurso, e os candidatos Clidenor Lago e Godrizardo Barros426. O edital previa duas fases nesse concurso. A primeira constaria de uma prova escrita a ser realizada no prazo máximo de duas horas, e tendo como tema, sorteado no dia da prova, um dos dez pontos do programa estipulado: Dentição, Cárie, Pulpite, Abscessos, Moléstias da boca, Gérmens da boca, Analgesia dentária, Periostite maxilar e Vantagens da assistência dentária. Na segunda, realizada no dia seguinte, às 8h, no HCJB, os candidatos fariam um exame “prático oral”, consistindo na realização de uma conferência dentro da enfermaria e à cabeceira do leito de um doente. Na prova escrita, o tema sorteado foi As vantagens profiláticas da assistência dentária. Ao final do concurso, o candidato aprovado foi o médico Clidenor Lago, que passou, a partir de então, a dirigir o gabinete dentário do HCJB.427 O preenchimento dessa vaga não solucionava, contudo, o problema da escassez de médicos. Mesmo assim, além do cirurgião dentista, o RI do HCJB estabelecia a presença no hospital de um outro médico, com funções complementares ao 425 HOCHMAN, Gilberto. A Era do saneamento: as bases da política de Saúde Pública no Brasil. São Paulo: HUCITEC:ANPOCS, 1998. p.143. 426 Não é possível definir com clareza o nome exato deste concorrente, pois a página do jornal em que ele aparece encontra-se em péssimo estado de conservação. Portanto, Godrizardo, aqui, vai por risco e conta do autor. 427 A REPÚBLICA. Hospital Juvino Barreto: concurso de odontologia, 26 set. 1923. 215 de médico-cirurgião. Sua função básica era cuidar dos gabinetes bacteriológico e hidroterápico, conservando e limpando os aparelhos, providenciando análises bacteriológicas e aplicações eletro-hidroterápicas. O HCJB estava autorizado a receber pedidos de particulares, computados como receita extraordinária, mas a preferência pelos exames deveria ser dada às necessidades do hospital, sendo tudo contabilizado e registrado por escrito. Se o médico-cirurgião tiver conhecimentos comprovados na especialidade laboratorial, poderá gerir o movimento desses gabinetes. Curiosamente, os responsáveis por essas atividades, no decorrer de 30 anos, jamais foram mencionados na documentação oficial. Quem eram esses profissionais? O primeiro e único da lavra oficial que conhecemos foi o químico Francisco Gomes Valle Miranda, que trouxe do Rio de Janeiro toda a aparelhagem do Laboratório de Análises do HCJB. 428 Duas vezes por semana, o barbeiro devia comparecer ao hospital para cortar a barba e o cabelo dos pacientes internados. Em caso de necessidade, a Regente poderia convocá- lo em qualquer outro dia da semana, pedido ao qual ele não podia recusar. Todos os seus serviços só seriam pagos mediante um “atestado de eficácia” emitido pela Regente ao Inspetor Geral de Hygiene e Assistência Públicas. A função do enfermeiro era vital para o funcionamento do HCJB. Em nenhum momento, poderiam se ausentar do hospital, só dele saindo se deixasse um de seus ajudantes no serviço durante a noite. Se houvesse alguma emergência que exigisse sua presença, teriam de permanecer a noite no estabelecimento. Trabalhavam nas enfermarias auxiliando o médico-cirurgião nas visitas, anotando as indicações dele e executando-as diligentemente. Eram os responsáveis pela condução dos tratamentos dos pacientes, sempre conforme as recomendações do doutor. Faziam junto com as irmãs a limpeza do instrumental cirúrgico e cuidavam de sua conservação, e, nas operações, desempenhavam o papel de auxiliares, realizando as tarefas designadas pelo médico. Todo o material cirúrgico ficava sob a responsabilidade da irmã de enfermaria, que entregará diariamente aos enfermeiros o necessário, recebendo ao final do trabalho, depois de realizados os curativos, o instrumental cirúrgico limpo e os medicamentos que sobraram. 428 A REPÚBLICA. Governo do Estado, Expediente do governador: despacho, 23 nov. 1923. O despacho do governador manda pagar a Valle Miranda, no Rio de Janeiro, na casa n.50 da rua Figueiras, a quantia referente à aparelhagem enviada, incluindo a passagem. 216 Nas enfermarias, cuidavam da mudança de roupa daqueles pacientes que não podiam fazê- lo, sendo auxiliados nessa tarefa pelos serventes de enfermaria. No caso da morte de um doente, cabia aos enfermeiros preparar o cadáver para o enterro, vestindo a mortalha no defunto e arrumando-o no caixão, contando para isso mais uma vez com a ajuda dos serventes. Para vestir o morto, seguia-se uma regra simples: os serventes vestiam os homens e as serventes, as mulheres. No trabalho, deveriam sempre comparecer “decentemente vestidos”, tratando com “maior zelo e carinho” os pacientes e cuidando do asseio e disciplina das enfermarias, sendo coordenados pela Regente ou irmã de enfermaria. Hierarquicamente, suas funções subordinavam-se, do ponto de vista econômico e administrativo, às ordens da Regente e, quando envolvesse questões de saúde, ao médico-cirurgião. Cada enfermeiro ou enfermeira exercia suas responsabilidades em determinada enfermaria, para a qual fora alocada, não lhes sendo permitida a entrada em outra instalação do hospital, sem a devida autorização de superiores. Como se percebe, o escopo legal dos enfermeiros era vasto e de grande responsabilidade. No Regimento Interno do HCJB, esses funcionários eram os únicos que contavam com sanções legais que puniam o comportamento desviante no trabalho: Art.25ª As faltas praticadas pelos enfermeiros serão punidas. a- com censura; b- com suspensão de trez a quinze dias; c- com demissão. Art.26ª É competente para impor as penas a, b e c, a Regente, por conhecimento próprio da falta, por queixa do cirurgião medico ou da irmã da enfermaria. 429 Esses artigos do RI/HCJB, em particular, mostram o alto grau de vigilância e controle que a Inspetoria de Higiene e Assistência Públicas desejavam impor ao estabelecimento hospitalar. Não eram somente os doentes o objeto da disciplina, mas todos os funcionários do nosocômio estavam envolvidos nela. O exercício do poder disciplinar fazia de cada sujeito seu instrumento de atuação, seu órgão fiscalizador, oferecendo a todos o olhar permanente e totalizante da vigilância hierárquica: o Inspetor de Higiene “observa” a Regente e esta controla o médico, que, por sua vez, volta sua atenção para os enfermeiros, cada um deles registrando os eventos por escrito, 429 A REPÚBLICA. Regimento Interno do Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, 27 set. 1911. 217 produzindo massa documental para exame. No art.26º, os enfermeiros devem ser bastante cuidadosos, pois a vigilância pode vir de todos os lados: da Regente, do médico ou da irmã de enfermaria. Nesse olhar disciplinar, a questão-chave é de escala, de extensão do controle, e, para este fim, a estrutura da “pirâmide” garantia resultados mais eficientes: [...], a pirâmide podia atender a duas exigências: ser bastante completa para formar uma rede sem lacuna – possibilidade em consequência de multiplicar seus degraus, e de espalhá-los sobre toda a superfície a controlar; e entretanto ser bastante discreta para não pesar como uma massa inerte sobre a atividade a disciplinar e não ser para ela um freio ou obstáculo; integrar-se ao dispositivo disciplinar como uma função que lhe aumenta os efeitos possíveis. É preciso decompor suas instâncias, mas para aumentar sua função produtora. Especificar a vigilância e torná-la funcional”. 430 Essa moeda da vigilância em escala piramidal vem acompanhada do anverso de uma sanção normalizadora que, alicerçada no mecanismo penal e no modelo do tribunal, se dedica a reduzir os desvios através de uma modalidade corretiva, punindo a infração na ordem do exercício. No RI, a punição pelas faltas é estrutura-se na forma de gradação/progressão, que vai da censura (simples admoestação, talvez), passando pela suspensão em dias, até atingir a demissão, possibilitando no tempo o aprendizado, a reflexão reparadora. A Norma aí se institui no “esforço para organizar um corpo médico e um quadro hospitalar [...] capazes de fazer funcionar normas gerais de saúde” 431. Essa normalização legal não prescinde da composição de um “corpo de enfermagem” no hospital. O preenchimento da vaga de enfermeiro (a) apresentava algumas dificuldades, como encontrar pessoal formado na área. Em algumas de seus apontamentos, o próprio médico-cirurgião do HCJB, comentando as deficiências do Serviço de Profilaxia Rural, reclamava do uso indiscriminado pelo governo de mulheres que não possuíam qualidades para desempenharem o trabalho na enfermagem: E agora, com o advento da Prophylaxia Rural (na capital), cresceu formidavelmente o numero de charlatães, com a creação de um corpo de enfermeiras, que mal assignam o nome, indo de casa em casa injectar aquelles que solicitarem da “Sede do Serviço” uma pessoa para os fins acima referidos [...]. 432 430 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento das prisões, p.168. 431 Ibid., p.176-177. 432 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: crítica médico-social, p.68. 218 Por não saberem ler e escrever, destituídas de formação técnica, ainda causavam, segundo o médico, sérios danos nos pacientes: Não devo deixar sem a devida censura outra espécie de malfeitoras, aquellas que se arvoram de “assistentes” e junto ao mais admirável dos sacrifícios, o da Maternidade, mutilam, inutilizam vidas, e riem da impunidade de seus crimes. 433 É provável que o serviço de enfermagem do HCJB, nas duas primeiras décadas, tenha sido ocupado por “práticos” ou “habilitados”, isto é, pessoas que possuíam alguma experiência reconhecida na prática de enfermagem, processo de seleção bastante comum no começo da República. No Rio de Janeiro, por exemplo, o Jornal do Commercio costumava publicar anúncios pedindo enfermeiros para a prática do cuidado. Em 28 de maio de 1890, um enfermeiro estampou nas páginas do jornal: Enfermeiro- Um moço pratico em pharmacia e a todos os trabalhos pertencente a uma casa de saúde ou hospital, como curativos, operações, banhos, limpezas e outros trabalhos como dietas, deseja encontra um lugar onde possa exerce sua profissão, dando conhecimento de sua conducta e attestado de sua profissão. 434 Nesse anúncio, vê-se que o trabalho de enfermagem não se reduzia apenas ao encargo de ministrar remédios, mas incluía auxiliar os médicos nas cirurgias, aplicação de curativos e operações de ablução e limpeza no doente. Um ano antes, em 26 de março de 1889, um hospital pedia o comparecimento de um “habilitado” com “boas referências de seu comportamento”, mostrando aí os critérios de escolha para o trabalho: a moralidade social.435 O enfermeiro ou enfermeira se caracterizava pelo trabalho mais braçal, de complemento às atividades do médico diplomado, sendo requerido alguma prática comprovada e um atestado de bom comportamento, princípio mais moral que técnico. Isto porque ainda não havia durante o Império um espaço para formação de enfermeiros, coisa que só aconteceu no começo da República, com o Decreto n. 791/1890, que criava a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (EPEE), vinculada ao Hospital de Alienados. O curso tinha duração mínima de dois anos, tendo suas aulas ministradas por médicos três vezes por semana, constando na sua grade as seguintes disciplinas: Noções 433 Ibid., p.69. 434 ARAÚJO, Luciene de Almeida; MOREIRA, Amerinda; PORTO, Fernando; AMORIM, Wellington. Anúncios para enfermeiros (as) no alvorecer da República (1889-1890). In: PORTO, Fernando; AMORIM, Wellington (Org.). História da enfermagem: identidade, profissionalização e símbolos. São Paulo: Yendis, 2010.p.38. 435 Ibid. 219 Práticas de Propedêutica Clínica, Noções Gerais de Anatomia, Fisiologia, higiene Hospitalar, Curativo, Pequenas Cirurgias, Cuidados Especiais e Certas Categorias de Enfermos, Aplicação de Balneoterapia, Administração Interna, “Escripturação” do Serviço Sanitário e Econômico das Enfermarias.436 A matrícula no estabelecimento deveria ser feita por maiores de 18 anos, que soubessem ler e escrever, conhecessem aritmética elementar e apresentassem atestado de bons costumes. Na EPEE, os estudantes poderiam se submeter ao regime de internato ou externato, tendo à disposição aposento, alimentação e gratificação, devendo ajudar os empregados do estabelecimento no serviço hospitalar. 437 O nascimento da EPEE, porém, não impedia que se proliferassem os práticos e habilitados de outrora. Basta lembrar que a Escola fora criada em 1890, mas encontro-se desativada por muitos anos por causa do desvio de verbas, sendo reinaugurada em 1905 e formando na primeira turma apenas cinco enfermeiros: José Joaquim dias Paredes, Aureliano Francisco de Carvalho, Albertino Gomes Barreto, Conceição da Silva Carvalho e Henriqueta Rosa.438 Em geral, a enfermagem hospitalar ainda era praticada por religiosas ou leigos. O ponto de viragem na institucionalização da enfermagem brasileira se deu em 1921, quando o então diretor do DNSP, Carlos Chagas, foi convidado pela Fundação Rockfeller para conhecer os trabalhos desenvolvidos nos EUA com a enfermagem visitadora e estabelecer tratados de cooperação com a fundação. Assim, com a ajuda da International Health Board e o patrocínio da Fundação Rockfeller, criou-se a Missão de Cooperação Técnica para o Desenvolvimento da Enfermagem no Brasil, que trouxe várias inovações nessa área. Como resultado efetivo dessa cooperação internacional, delineou-se um curso de emergência com duração de 6 meses e outro de 10 meses para formar Enfermeiras Visitadoras, que começou a funcionar em abril de 1922, mesmo ano da criação do Serviço de Enfermeiras, sob a direção da norte- americana Ethel Parsons.439 Esse curso contava com a participação de 11 enfermeiras americanas e canadenses trazidas ao país pela Missão de Cooperação Técnica, todas elas formadas 436 Ibid., p.29-30. 437 Ibid., p.30. 438 Ibid. 439 FREIRE, Maria Ann Menezes; AMORIM, Wellington. O Relatório Goldmark e a enfermagem de saúde pública na capital do Brasil. In: PORTO, Fernando; AMORIM, Wellington (Org.). Op. cit., p.104. 220 segundo os princípios de Florence Nightingale. O objetivo era substituir progressivamente as enfermeiras de origem social popular e iletradas pelas formadas na nova escola. O projeto de Enfermagem assim concebido era reconhecidamente elitista. Os critérios de seleção das alunas levava em consideração o perfil socioeconômico das candidatas, sendo exigido delas instrução entre sete e dez anos, “boa aparência” e saúde. No exame de admissão realizado 29 de janeiro de 1923, os examinadores da banca de seleção, composta por Carlos Chagas, Theophilo Torres e Plácido Barbosa, aprovaram apenas 13 alunas.440 No Congresso Nacional dos Práticos de 1922, realizado entre 30 de setembro e 7 de outubro, no Rio de Janeiro, Ethel apresentou o trabalho As enfermeiras de saúde pública, apresentando a proposta da Escola de Enfermagem e buscando garantir o monopólio do serviço de enfermagem às novas enfermeiras. 441Em 1926, como fruto dessas discussões, foi criada a Associação Brasileira das Enfermeiras Diplomadas, organizada pela própria Ethel Parsons e uma de suas discípulas, Edith de Magalhães Fraenkel.442 Ainda assim, os ganhos dessa luta vieram lentamente, concentrados na capital federal, e distribuindo-se ao longo do país segundo as condições locais. Em Natal, as notícias sobre enfermeiras nas primeiras décadas do século XX são muito pontuais. Em 1º de março de 1911, o HCJB lançou no jornal A República um anúncio de vaga para segunda enfermeira do hospital443. Não sabemos se houve contratação efetiva, pois o jornal silenciou a respeito. Em 31 de agosto de 1912, uma matéria do mesmo jornal louvava a criação em São Paulo de uma Escola de Enfermeiras, afirmando que o Rio Grande do Norte já estava tentando implantar uma idéia semelhante. Nessa Escola paulista, a cronista Júlia Lopes de Almeida, do jornal Imparcial, cujo comentário fora reproduzido na íntegra, falava das novas qualidades que as enfermeiras deveriam possuir na profissão: Para ser uma excellente enfermeira não basta a ninguém o ser carinhosa, attenta e abnegada. A estes predicados criados pela natureza e desenvolvidos pela educação, devem-se reunir outros, que só se podem adquirir pela pratica, pelo estudo, pela disciplina moral que domina a commoção e estabelece a calma, -sem a qual nenhuma 440 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado, p.73-74. 441 FREIRE, Maria Ann Menezes; AMORIM, Wellington. Op. cit., p.104-105. 442 Ibid., p.113. 443 A REPÚBLICA. Annúncios, 1º mar. 1911. 221 enfermeira poderá observar com efficácia as modalidades das doenças, nem medir com precisão ás crises dos enfermos que lhe estejam confiados. 444 Aquilo de que Januário Ciccco mais reclamava no exercício da enfermagem aparecia aqui, já em 1912, como o horizonte das novas “cuidadoras”: a preparação mediante os estudos. Esse espírito de valorização da educação e da prática reunidos numa formação mais técnica dos enfermeiros esteve nos planos do governador Antônio de Melo e Souza. Em 1923, Waldemar Antunes, responsável pelo Serviço de Profilaxia de Doenças Venéreas, fundou um ambulatório, lotado com serviços policlínicos, que serviria de ponto de partida para uma futura “escola prática de enfermeiras”445, que, todavia, parece não ter logrado êxito, desaparecendo dos relatórios dos governadores subsequentes. A problemática da formação de um corpo de enfermeiros tecnicamente preparado era uma grave necessidade para os estabelecimentos hospitalares, que se viam o número de pacientes aumentarem sem poder contar prontamente com enfermeiros formados. O Hospício dos Alienados, por exemplo, dirigido pelo Doutor Varela Santiago, reclamava dos poucos enfermeiros existentes para dar conta da alta demanda no nosocômio: Lembra o relatório do chefe do serviço a conveniência de ser argumentado com mais dois o numero, muito reduzido, dos enfermeiros, sobretudo porque, crescendo sempre o numero dos internados, há, como se sabe alguns que precisam de vigilância inmediata e permanente, sendo assim, em certos momentos, muito difficil aos poucos enfermeiros existentes servirem ao mesmo tempo nas duas principaes secções do estabelecimento. 446 Essa escassez aliada à urgência de enfermeiros talvez explique o uso frequente de práticos ou habilitados nas instituições asilares, como as muito frequentes enfermeiras contratadas pelo Serviço de Saneamento Rural, criticadas duramente pelo médico Januário Cicco. Se a situação era precária na capital, as regiões interioranas deviam padecer maiores dificuldades. O Sub-Posto de Baixa-Verde, um dos quatro sub- postos sanitários do Saneamento Rural no Rio Grande do Norte, só havia uma única enfermeira “normalista”, com as atividades limitadas à vila, dando conta do tratamento de doenças como impaludismo, realizando vacinações contra a varíola e cuidando dos 444 A REPÚBLICA. Escola de Enfermeiras , 31 ago. 1912. 445 RIO GRANDE DO NORTE..., 1923, p.34. 446 Ibid., p.38. 222 serviços de propaganda sanitária447, transbordamento de ações para uma única enfermeira, provavelmente uma prática/habilitada. Os nomes próprios desses enfermeiros não costumam aparecer nas fontes, sendo reconhecidos apenas pela função exercida e, ainda assim, não são esclarecidos a natureza da formação deles nem o mecanismo de contrato. Em 8 de agosto de 1929, encontramos um caso de registro de diploma efetuado pelo Departamento de Saúde, no expediente do Diretor Geral. Tratava-se da “enfermeira especialista” Adelaide Silva, que teve sua titulação concedida pela Associação Pro-Matre, do Rio de Janeiro, na qual se especializou em Obstetrícia e Ginecologia.448 Mesmo ano em que houve em Monte Real, no Canadá, o importante encontro do International Concil of Nurses, reunindo representantes da enfermagem mundial, inclusive do Brasil, que lá esteve com a presidente da Associação de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras, Edith Frankel, e com Marina Bandeira de Oliveira, enviadas ambas pelo Departamento Nacional de Saúde Pública.449À esta altura, a situação já parecia ser um pouco diferente: no HCJB, os enfermeiros do hospital já contavam com uma pequena equipe, que era encabeçada agora por uma “enfermeiro chefe”, ganhando salário de 3:800$000, superior ao do Oftalmologista (3:600$000) e ao Cirurgião Dentista (3:600$000), e imediatamente abaixo do chefe de clínicas (7:200$000). 450 Valorização que inclusive ganhou espaço nas telas do cinema em Natal. Em 12 de agosto de 1927, O Royal Cinema e o Polytheama exibiam no jornal A República a programação daquele fim de semana, e uma das “películas” tinha na enfermagem sua inspiração451: 447 RIO GRANDE DO NORTE..., 1925, Saneamento Rural, p.39. 448 A REPÚBLICA. Enfermeira especialista, 4 set. 1929. 449 Ibid. O Brasil representado no Canadá, 5 jun. 1929. 450 Ibid. Departamento de Saúde Pública , Quadro n.6, 24 nov. 1927. 451 Ibid. Royal Cinema e Po lytheama, 12 ago. 1927. 223 No final da década de 1920, embora ainda contando com problemas de formação profissional, certamente a enfermagem já não era um desconhecido entre a população nem sua concepção se restringia a cuidados maternais com a higiene e limpeza, mas exigia conhecimentos específicos e treinamento que só poderiam ser realizados em instituições preparadas para esse fim. O rápido painel que pintamos sobre os enfermeiros no Rio Grande do Norte nas três primeiras décadas do século XX mostram as dificuldades institucionais e técnicas de encontrar no Estado um enfermeiro ou enfermeira preparado (a) para trabalhar na assistência pública. A escassez e até ausência de informações revelam não somente as lacunas da documentação disponível, mas também a precariedade da própria situação da enfermagem no Estado. As irmãs de Santana supriram essa falta no HCJB durante anos, contribuindo com um papel que a tradição religiosa e le iga da “prática de cuidados” consagrou. Além de prestarem os cuidados aos doentes, a equipe médica dos hospitais autorizava as irmãs a exercerem as funções de enfermagem, subordinadas às Ordens Religiosas.452 452 ARAÚJO, Luciene de Almeida; MOREIRA, Amerinda; PORTO, Fernando; AMORIM, Wellington. Anúncios para enfermeiros (as) no alvorecer da República (1889-1890). In: PORTO, Fernando; AMORIM, Wellington (Org.). Op. cit., p.35-36. 224 O trabalho em cada enfermaria do HCJB, que já contava com um enfermeiro (a) e uma irmã de Santana, recebia ainda o complemento de serventes. Em número variável conforme as necessidades da enfermaria, os serventes auxiliavam os enfermeiros responsáveis com a limpeza e desinfecção do espaço, realizando suas tarefas sob o olhar atento da Regente. Todos os serviços feitos por eles tinham de contar com a autorização da irmã de enfermaria, de ordem mais imediata, ou da própria Regente. Assim, a entrada matinal na enfermaria só seria possível com a liberação prévia pelas superiores. Normalmente dormiam no hospital, como o devido consentimento da Regente. Dentre as atividades que lhes cabiam, estava a condução dos cadáveres para o necrotério, onde seriam mortalhados pelos serventes. Eram, por assim dizer, os amigos mais íntimos da Morte. A pedido do médico, que poderia ser o cirurgião do hospital ou o médico-legal do DSP, eles participavam das autópsias, lavando o corpo do morto e auxiliando no que mais fosse solicitado. Na volta à enfermaria, antes de transpor seus limites, os serventes deveriam ser desinfectados adequadamente, só então podendo adentrar a este espaço, cuidados necessários num ambiente bastante sensível à disseminação de doenças epidêmicas. Esse trabalho de preparação do corpo para o enterro não deve ser visto exclusivamente - embora também tenha linhas de pertencimento a uma história das sensibilidades453 - como parte de um longo processo de “humanização”, mas de um controle mais efetivo dos focos de doença: sentido médico. Limpar o cadáver, vesti- lo e acondicioná- lo num caixão, punham em segurança os habitantes da cidade, diminuindo os riscos de o morto tornar-se epicentro da proliferação de doenças contagiosas, como a lepra, a varíola e a peste bubônica que, no passado, dizimaram populações inteiras. Os serventes eram, assim, aqueles funcionários mais numerosos, que não exigiam, para o desempenho de suas obrigações, qualificação técnica ou instrução escolar mínima, como saber ler e escrever. Na divisão do trabalho, ocupavam-se mais das tarefas braçais, mecânicas, que demandavam soma maior de esforço físico. Por se dedicarem a esse tipo de atividades, o HCJB não encontrava dificuldades de conseguir essa mão-de-obra, mais abundante, não sendo preciso recorrer a anúncios de jornais, como nas funções de médicos e enfermeiros. 453 Para um rápido sobrevoo sobre alguns aspectos da questão do “lugar do cadáver”, conferir: CORBIN, Alain. Dores, sofrimentos e misérias do corpo. In : ______ (Dir.). História do corpo: da Revolução à Grande Guerra. 2. ed. Rio de Janeiro : Vozes, 2008. v.2, p.297-304. 225 Na composição da equipe de funcionários do hospital, o Regimento Interno completava o quadro com a figura do farmacêutico. No caso do HCJB, o art.29º colocava a Farmácia e o depósito sob a guarda de uma irmã de Santana com “habilitação precisa” e escolhida pela Regente. Por que não contratar um farmacêutico diplomado? A situação tinha suas peculiaridades, que remetiam à própria formação técnica desse profissional. Segundo o decreto- lei 11.530 de 1915, o exame de admissão do candidato ao curso de Farmácia compreendia uma prova escrita, consistindo na tradução de um fragmento de um livro de literatura francesa e outro de alemão ou inglês, sem recorrer a dicionário. Depois haveria os exames orais de português, geografia, aritmética, física, química e história natural. Aprovado o candidato, ele ainda teria de arcar com o pagamento de taxas de exame, matrícula e frequência, devendo ter presença obrigatória durante os três anos da faculdade. Some-se a isto o gasto com apostilas, livros, alimentação e vestuário, que não estavam previstos formalmente. Investimento financeiro alto, que só poderia ser sustentado pela elite socioeconômica. 454 Outra opção possível poderia recair no “prático”. De acordo com o decreto de 1920, o prático só poderia assumir uma farmácia por um período inferior a oito dias, na ausência do farmacêutico. Para gozar dessa prerrogativa, suas habilidades e conhecimentos deveriam ser testados pelo Inspetor da Fiscalização do Exercício da Medicina, Farmácia, Arte Dentária e Obstetrícia, sendo declarado então, se aprovado, “oficial de farmácia”. Se esse “oficial” não possuísse habilitação, a farmácia poderia ter suas portas fechadas, conforme decreto 14.354, art.183. 455 Como se percebe, o “oficial” sempre trabalhava no regime de subordinação ao farmacêutico. Antes de 1920, a abertura de farmácias tinha maior flexibilidade. Em maio de 1912, o prático Rodolpho Maranhão requereu à Inspetoria Geral de Higiene e Assistência Públicas a licença para abrir um estabelecimento farmacêutico em Macaíba, no Rio Grande do Norte. A IGHAP organizou então, no laboratório da Farmácia Torres, um “exame de habilitação”, que contou na banca com a participação do Inspetor Geral de Higiene Calistrato Carrilho e os farmacêuticos Joaquim Torres, presidente da Farmácia Torres, e Pedro Cancio Dias Guimarães. Ao término da arguição, candidato 454 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado, p.69. 455 Ibid., p.67-68. 226 recebeu a esperada aprovação.456 Quatro meses antes, em 4 de janeiro, o mesmo processo conferiu ao farmacêutico Joaquim Lino de Medeiros a abertura da Farmácia Medeiros, em Mossoró.457 Numa legislação como a implementada na década de 1920, o número de farmacêuticos diplomados era muito reduzido, a maioria concentrados na capital federal. Com o diploma em mãos, certamente o caminho desejado era abrir uma farmácia particular, administrando seu próprio negócio. Conseguir o alvará de abertura de uma farmácia pelo Departamento Nacional de Saúde Pública, implicava submeter-se a dois tipos de exigências: condições adequadas de iluminação, arejamento e impermeabilização do local; e a compra de remédios e acessórios, como vasilhames, livros e rótulos. Isto sem falar no capital necessário para a construção do estabelecimento. 458 Tais exigências explicam o pequeno número de farmácias em Natal. Para o período que estamos estudando aqui, as três primeiras décadas do século XX, catalogamos no jornal A República cerca de nove estabelecimentos farmacêuticos: Farmácia Torres, Farmácia Maranhão, Farmácia Monteiro, Farmácia Popular, Farmácia Santana, Farmácia Pereira, Farmácia Ferreira, Farmácia do Brasil e Farmácia Natal. Uma forma de aumentar o número desses profissionais podia se dar pela iniciativa local. Assim, em 8 de janeiro de 1923, pelo decreto n.192, criou-se uma Escola de Farmácia em Natal459, que funcionaria como curso farmacêutico de formação superior. No primeiro ano, os professores seriam os médicos e farmacêuticos funcionários do Estado, sendo posteriormente os cargos ocupados por aprovados em concurso público. Os candidatos teriam de ser maiores de 16 anos, portar atestado de “idoneidade moral”, identidade de pessoa e pagar taxa de inscrição, submetendo-se a provas de Português, Francês, Geografia, Aritmética, Física, Química e História Natural, todas supervisionadas por uma banca de três professores. O curso teria duração máxima de três anos, como as demais faculdades de Farmácia, contando com as seguintes disciplinas na sua grade curricular: 456 A REPÚBLICA. Várias, 8 maio 1912. 457 A REPÚBLICA. Várias, 4 jan. 1912. 458 Ibid., p.68-69. 459 A REPÚBLICA. Decreto n.192, 16 jan. 1923. 227 Tabela 12 – Grade curricular da Escola de Farmácia em Natal PRIMEIRO ANO Física História Natural Química Mineral e Orgânica SEGUNDO ANO Química Analítica Farmacologia (1º parte) Microbiologia TERCEIRO ANO Farmacologia (2º parte) Toxicologia e legislação farmacêutica Bromatologia (alterações e falsificações dos alimentos) Higiene Fonte: A República, 1923. A direção da Escola de Farmácia de Natal foi entregue ao doutor Januário Cicco460, que também chegou a ministrar a disciplina de Toxicologia. Não temos a lista completa dos professores e suas respectivas disciplinas, mas sabemos que o médico Otávio Varela lecionou as cadeiras de Química Analítica e, posteriormente, Higiene Geral; o farmacêutico Jayme Guimarães Wanderley cuidava da disciplina de História Natural e o também farmacêutico João Cyrineu de Vasconcelos, da cadeira de Química Mineral e Orgânica.461 Da mesma forma que sua congênere nacional, a EF era reduto científico para poucas pessoas. Conforme o decreto n.192, Capitulo V, art.24º, a EF de Natal cobrava várias taxas de seus alunos: exame vestibular, matrícula, exame de ano, certidão de aprovação em cada matéria, diploma de Farmacêutico, registro de título, caderneta de matrícula, certidão de diploma conferido, toda e qualquer certidão, regulamento e programas.462 Gastos que marcavam indelevelmente o “espírito de elite” da Escola, como bem afirmou elogioso o articulista A. A. Júnior, na matéria d’A República “Escola de Pharmacia”. Elitismo que se evidenciou nos resultados do primeiro ano de exames, quando somente três alunos foram aprovados: Álvaro Torres Navarro, José de Almeida Júnior e Marcos Paiva.463 460 A REPÚBLICA. Despachos, 8 mar. 1923. 461 Ibid. Offícios, 20 abr. 1923. 462 Ibid. Decreto n.192, 17 jan. 1923. 463 Ibid. Escola de Pharmácia, 18 dez. 1923. 228 Essa situação da formação profissional de farmacêuticos influiu, portanto, na redação do Regimento Interno do HCJB, que outorgou a responsabilidade da Farmácia do hospital a uma irmã de Santana, que detinha uma simples habilitação na área. As funções que o RI prescrevia também eram de ordem mecânica, que não necessitavam de conhecimentos técnicos. Esperava-se da “irmã de farmácia” a limpeza da Farmácia e dos Depósitos, o registro em livro apropriado dos objetos que entravam no hospital, fossem adquiridos no mercado local ou comprados fora, anotando as quantidades, qualidades, preços e procedência dos produtos. Ficava responsável por aviar as receitas ordinárias e extraordinárias para os pacientes do hospital e da sala do banco, dos Asilos de Mendicidade e dos Alienados, Isolamento dos Tuberculosos, variolosos, e da enfermaria da Polícia. Os pedidos de desinfetantes feitos pela Inspetoria de Higiene deviam também ser agilizados pela irmã de enfermaria. As fórmulas aviadas tinham de ser registradas em “livro especial”, recebendo obrigatoriamente a rubrica do Inspetor de Higiene. Esses cuidados com o registro de materiais se estendia às faturas dos medicamentos, que deviam ser conferidas com relação à quantidade dos artigos enviados. Em caso de falta, fazia-se o registro e depois informava-se à Regente da incongruência dos dados da fatura. Todo o movimento de entrada e saída de receitas e produtos da farmácia era enviado pela Regente à IGHAP. Se fosse necessário, a irmã encarregada da Farmácia poderia contar com a ajuda de serventes e ajudantes, que lhe seriam designados pela Superiora. Como se vê, a função se caracterizava mais como trabalho de natureza administrativa, própria de almoxarifado, logística do estoque e circulação de materiais. Cirurgião, médicos, enfermeiros, serventes e ajudantes, juntos, eles engrossavam o caudal de toda uma “população” de funcionários que transitavam diariamente pelos pavilhões e enfermarias do HCJB. Eram as peças e engrenagens da máquina hospitalar. Contudo, havia nesse maquinismo da saúde a necessidade de combustível, energia que pusesse a máquina em movimento. Faltava o doente, o corpo enfermo. O Regimento Interno dedicou a ele seus últimos artigos, desfechando a lógica hierárquica da pirâmide. Nela, o doente estaciona na base, não como massa, quantidade aritmeticamente superior que sustenta o topo, mas como peça menor, inferior na escala hierárquica, subordinada ao movimento de cima, dos médicos e enfermeiros. A máquina de saúde que transparece no regulamento era mais da ordem coercitiva e punitiva do que persuasiva. 229 Para o RI, havia dois tipos de doentes: os indigentes, que não podiam pagar pelo atendimento, e os pensionistas, que custeavam seu próprio internamento. No caso dos primeiros, a entrada464 no HCJB só era permitida se eles comprovassem que eram “reconhecidamente indigentes”. O Regimento não esclarece quais os critérios utilizados para isto, nem se era necessário alguma documentação comprobatória. Para o segundo caso, o doente, atendido na portaria, só teria seu acesso permitido se apresentasse “obrigação assignada por pessoa idônea que se responsabilize pelo pagamento da contribuição, como principal devedor”, garantia de que o paciente realmente solveria sua estada no hospital. 464 No século XIX, os doentes mais graves ou aqueles portadores de enfermidades infecto -contagiosas costumavam ser conduzidos ao hospital por meio de uma rede, padiola ou carro de transporte, sendo este último mais raro. No caso específico do Hospital de Caridade, os jornais e os documentos emitidos pelas autoridades públicas de saúde mencionavam, ainda no dezenove, redes, macas (para uso interno) e padiolas, mas não citavam os carros puxados a tração animal, utilizando cavalos ou burros. O mes mo ocorreu com o HCJB: em cerca de trinta anos de documentação compulsada, não encontramos referências explícitas a qualquer tipo de carro a serviço do hospital. Fig. 32 - Carro de transporte de doentes no século XIX. Fonte: DINIZ, 1994, p. 47. 230 É importante lembrar que na época da elaboração do RI, os pacientes estavam divididos em pensionistas de 1º classe, 2º classe, 3º classe e indigentes. Ou seja, dois terços do nosocômio hospitalar destinavam-se àqueles que tinham condições financeiras de arcar com o internamento, daí a preocupação antecipada em garantir os emolumentos. Aos nossos olhos, prática estranha em se tratando de um hospital público! A entrada de um indigente contava com maior burocracia. Além de ter de provar que não tinha condições, sua entrada só seria possível com a permissão de uma das seguintes autoridades: Governador, Inspetor de Higiene, Regente, médico-cirurgião, autoridades policiais, comandante do Batalhão de Segurança, cônsules (com relação a seus cidadãos) e o médico da Saúde do Porto, e ainda mediante a emissão de um ofício dirigido à Regente. Um caso ilustrativo, recolhido no jornal A República de 30 de setembro de 1910: Ocorrência policial no mínimo pitoresca. Após ferir gravemente com uma facada Luiz Justino de Andrade, no bairro da Ribeira, o criminoso Manoel Ignacio de Oliveira acabou entregando-se à Polícia logo depois do crime... Após o registro na Chefatura de Polícia, a vítima, Luiz Justino, foi levada para o hospital, conseguindo a entrada por se tratar de um caso policial, com o consentimento do 1º Delegado major Joaquim Soares. O “ofício” requerido pelo RI do HCJB talvez tenha sido entregue após o atendimento, que era de emergência, ou mesmo na hora do internamento, não sendo mencionado pelo jornal, que pouco estava preocupado com essa burocracia, concentrando-se mais no evento do crime. Nessas situações emergenciais, é 231 compreensível que o hospital não negasse o atendimento. Casos como o de Maria Gonçalves de Farias, viúva de 50 anos de idade, que dera entrada no hospital em 13 de agosto de 1913, vítima de sérias queimaduras originadas de uma tentativa de suicídio no bairro do Alecrim, não podiam esperar pela aplicação integral do RI. 465 De modo geral, o nome do paciente era escrito no “livro de nome do doente”, que ficava na portaria, devendo ser anotados a idade do internado, nacionalidade, estado civil, naturalidade, residência, filiação e qualquer outra informação que fosse considerada necessária. Esse “livro”, ou melhor, os vários “livros” que registravam a entrada e saída dos doentes do hospital estão guardados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Norte. São quase 20 volumes contendo os dados gerais dos pacientes. Os objetos que pertenciam aos doentes ficavam sob a guarda do hospital, principalmente arma ou instrumento de defesa, armazenados em local próprio e só eram devolvidos quando saíam do hospital. No interior do HCJB, havia regras estritas codificando o comportamento dos doentes. O silêncio e a obediência aos funcionários davam a tônica ao regulamento: Dos deveres dos enfermos Art.31ª Todo o enfermo que entrar para as enfermarias do hospital deverá sujeitar-se aos seguintes prescrittos: I. Conservar-se sempre de mudo descente ao leito que lhe for designado, não gritar, altercar, jogar ou fumar, e guardar completo silêncio das oito horas da noite ás seis da manhã. II. Observar fielmente as determinações do medico, quanto aos remédios e as dietas que lhe forem prescritas. III. Tratar com respeito e deferência a todos os empregados do estabelecimento. IV. Não sahir do leito e enfermaria em que for colocado para outro leito e outra enfermaria, nem andar pelos corredores e jardim sem permissão do facultativo inscripta na respectiva pappeleta. V. Permanecer no seu leito ou junto delle, com todo acatamento, quando na enfermaria administra-se o Sagrado Viatico ou tiverem logar as orações da manhã e da noite. 466 As determinações estabeleciam as proibições e ao mesmo tempo descreviam os comportamentos habituais dos doentes nas enfermarias ou em outras dependências do hospital. Assim, ficamos sabendo que os pacientes, com a devida autorização registrada na papeleta, podiam passear pelo jardim, andar pelos corredores, alpendres e 465 A REPÚBLICA. Várias, 16 ago. 1913. 466 A REPÚBLICA. Regimento Interno do Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, Capítulo X, Art.31º, 27 set. 1911. 232 pátios, e até sair do leito para “visitar” outra enfermaria. A presença de rituais da Igreja Católica constavam do regulamento: as irmãs faziam as orações “coletivas” durante as manhãs, às 8h, e durante a noite, às 20h, quando terminavam os trabalhos do dia, e podiam também ministrar a Sacramento da Eucaristia aos acamados. No art.58º, afirmava-se que os doentes poderiam comparecer à Capela nos dias de missa, mas somente nessa ocasião solene e em nenhum outro dia mais. A saída do doente do hospital deveria ser condicionada pela “alta” conferida pelo médico-cirurgião. Aos pensionistas, todavia, era permitido, de vez em quando, sair do estabelecimento, sempre com o consentimento médico. Outra possibilidade era a remoção para outro estabelecimento asilar/nosocomial. Nesse caso, o doente, portador de doença “enfecto-contagiosa, loucura, invalidez”, seria transferido numa padiola pelos serventes, levando consigo uma guia da Regente autorizando internamento no estabelecimento de destino, todas as operações sendo informadas ao Inspetor de Higiene e Assistência Públicas. As guias expedidas e as informações registradas nas papeletas do doente removido ficarão arquivadas na secretaria do HCJB. Voltando aos direitos do internos, se as roupas do hospital não agradassem ao doente pensionista, ele poderia receber de casa suas vestimentas pessoais. As distinções entre pensionistas e indigentes, marcadas pelo critério econômico e sancionadas pelo Regimento Interno, desapareciam no momento de aplicação das penalidades. No código moral do RI, havia as indispensáveis sanções normalizadoras, que igualavam os doentes na infração à regra: Art.34ª O enfermo indigente ou pensionista qual faltar scientemente aos preceitos que lhes são impostos neste capitulo, será punido: I- Com admoestação pelo medico, regente ou irmã de enfermaria. II- Com prohibição de sair de seu leito, privação de passeio, suspensão de parte de suas refeições, por um ou mais dias, expulsão e prisão no xadrez, nos casos de insubordinação, só podendo, porem, esta ultima pena ser imposta pelo Inspector de Hygiene e Assistências Públicas. III- No caso de falta mais grave por qualquer enfermo indócil ou recalcitrante, a regente levará o facto occorrido ao Inspector Geral de Hygiene e Assistência Públicas, para que elle providencie, participando ao Governador do Estado, afim de que seja tomada uma deliberação definitiva. 467 Nessa economia das penalidades, as sanções seguem a lógica da progressão, tal como aquela imposta aos enfermeiros, marcada pelo signo do tempo, da duração: sua 467 Ibid., 28 set. 1911. 233 aplicação só tem sentido na consideração da expiação e do arrependimento, embora não se reduzam a elas. Cada pena funciona como um exercício, repetição que permite o cálculo das vantagens e desvantagens da infração. Admoestado pelo “médico, regente ou irmã”, o doente temporaliza suas ações, medita, reflete e conclui por repetir o ato proibido ou recusar a ação danosa. Da positividade da palavra para a ausência, a negação, o solo da nadificação: a privação do movimento (leito, passeio), o ataque à manutenção (alimento). Em última instância, o corpo massa/volume é o alvo direto, atingido com a expulsão ou o encarceramento. Estão presentes aí todas as operações características da “arte de punir”: 1) O mecanismo penal; 2) A inobservância à regra como desvio; 3) O corretivo, que castiga exercitando; 4) a gratificação-sanção, que qualifica os comportamentos entre os pólos positivo e negativo; 5) o jogo das classificações.468 Ainda segundo o RI, a entrada de autoridades no hospital deveria ser acompanhada do toque de sinetas, avisando da presença delas. Os doentes tinham direito a visitas nas quintas-feiras e domingos, das 14h às 17h, sendo qualquer outro dia e horário proibidos, a não ser que o médico permitisse. As visitas que fossem consideradas suspeitas seriam acompanhadas pelo enfermeiro e seu ajudante. A medida era para evitar que os visitantes trouxessem alimentos prejudiciais ao doente, o que era comum, aliás. No capítulo anterior, vimos que, certa vez, os parentes de um enfermo levaram para a alimentação dele farinha, carne e cachaça, “pacote” dietético nada recomendável para um corpo debilitado. Todas as refeições preparadas pela cozinheira deviam passar pela inspeção da Regente ou irmã de enfermaria, que verificariam se a qualidade das refeições estava sendo observada. Nesse sentido, os próprios doentes poderiam sinalizar reclamando da comida ou pedindo algum alimento diferente da dieta distribuída pelo hospital. Essas eram então as diretrizes do Regimento Interno com relação aos médicos e doentes do hospital. Elas terminam com algumas Disposições de caráter geral, tentando preencher as lacunas de casos omissos no corpo do documento. Seja como for, o RI do HCJB constituiu um importante texto legal que continha os dispositivos de funcionamento do hospital, as regras e as normas que “determinavam” as ações dos sujeitos envolvidos na dinâmica hospitalar. Tratava-se de um documento 468 FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento das prisões, p.171-176. 234 produzido pelas autoridades políticas de saúde, mais explicitamente o Inspetor Geral de Higiene e Assistência Públicas, o doutor Calistrato Carrilho de Vasconcelos, configurando-se, assim, como um instrumento de controle do Estado sobre os corpos doentes, disciplinando-os no sentido da preservação de mão-de-obra “útil e dócil” para o trabalho. A este respeito, o próprio médico-cirurgião do hospital Januário Cicco reclamava inflamado com o descaso das autoridades públicas em relação aos graves problemas gerados pela venda de bebidas alcoólicas, que minavam a resistência da população, e a cada homem “[...] mata as suas energias, encurtando assim os seus dias, degenerando a descendência e empobrecendo o seu paiz” 469. Suas reflexões de base eugênica apontavam na direção da classe operária, considerada por ele a principal mão- de-obra do país, e, por isso, merecedora de cuidados especiais do governo. As medidas intervencionistas/preventivistas foram por ele assinaladas: Além da educação escolar, das sociedades de temperança, onde os abstêmios encontrarão todos os recursos para o desenvolvimento physico e cultura do espírito, os governos taxariam de tal modo as bebidas alcoólicas, que fosse difícil o seu uso á população operária, a mais volumosa columna de homens úteis á pátria, os incumbidos da riqueza nacional. 470 Preocupado com o corpo-máquina do operário e com o “aperfeiçoamento da raça”, Januário disparou duras críticas ao comportamento dos comerciantes de bebidas e da gente rica que zombavam epicuristas acerca das consequências da perigosa “alcoolose”: O resto, essa gente que enche os theatros, os bars, dirige o commercio, regula o cambio e habita palácios e passa a vinho e todas as bebidas comndenáveis, si teimasse em viver passando os copos da bocca do amante aos lábios da bacchante, que morresse de uma vez, porque só assim o paiz se livraria da ruindade de homens que pretendem justificar não valer a pena privar-se dos vícios, quando a morte é certa também para os abstêmios, como si a sua vida não fosse uma parcella do corpo nacional que deve ser respeitado e amado, e não houvesse peiores desgraças antes da morte. 471 Daí se explica porque durante todo o texto do RI poucas foram as menções ao bem-estar dos enfermos e sua saúde, ficando o tópico relativo ao doente no fim das disposições do Regimento, recebendo mais uma abordagem moral na modalidade do proibido/permitido, do valor positivo/negativo do comportamento, do que propriamente 469 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: ensaios de crítica médico -social, p.98. 470 Ibid., p.98-99. 471 Ibid., p.99. 235 tratando de aspectos ligados ao tema da saúde, principal guinada no pensamento médico do século XX. Bem esclarecido, o RI expressava fundamentalmente os desejos e as expectativas dos médicos e do Estado, e não exatamente as práticas que se realizavam no interior do hospital. Horizonte de espera para um determinado grupo, mas que permite captar uma tendência mais ou menos difundida sobre o espaço hospitalar. Os caracteres que moldam o Regimento do HCJB apontam para um perfil higienista da instituição, tema de discussão latente nas primeiras décadas do século XX e que acompanhava todo o esforço da classe médica de reconhecimento profissional perante o Estado e a sociedade. A década de 1920, com a nacionalização dos serviços de saúde, tornou-se ponto de inflexão desse esforço dos médicos, principalmente com a realização do Congresso Nacional dos Práticos, em 1922, que discutiu temas como o perfil da prática médica, questões ético-profissionais, o segredo profissional e a padronização dos anúncios médicos.472 Além de ser palco de debates que envolviam a profissão médica, serviu fundamentalmente como instrumento de legitimação dos médicos diante dos outros praticantes da arte de curar, como enfermeiros, farmacêuticos, parteiras, curandeiros, espíritas e homeopatas, limitando essas práticas e consolidando a soberania e autoridade do médico no mercado dos serviços de saúde. 473 Essa “soberania” do médico na hierarquia nas artes de cura foi fruto de uma lenta construção, mas já se podia observar esse esforço na elaboração do Regimento Interno do HCJB. Nele, o médico-cirurgião situava-se no topo da hierarquia funcional do hospital. Todos os demais funcionários subordinavam-se às ordens deles, servente de farmácia, enfermeiros, ajudantes, cozinheiros, jardineiro-hortelão, e até outros médicos de especialidades diversas. Perspectiva que acompanhava a formulação de uma identidade médica fundada na divisão do trabalho em especialidades e no estabelecimento de hierarquias entre elas: No hospital, o trabalho seria compartimentalizado de forma distinta. A equipe de saúde hospitalar se comporia de farmacêuticos, enfermeiras e médicos, cada qual em sua respectiva especialidade. O trabalho do médico, para ser exercido com êxito, careceria de profissionais, que se tornariam seus auxiliares, de atuação efetiva, competente e submissa. 474 472 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado, p.52. 473 Ibid., p.63. 474 Ibid., p.49. 236 Esse poder do médico na instituição hospitalar do HCJB, todavia, era repartido com a Regente, representante da ordem religiosa das Filhas de Santana e responsável pela parte administrativa do estabelecimento nosocomial. O hospital ainda não era espaço de cura completamente secularizado como defendiam os profitentes da ciência médica, tendo esta de conviver com a tradição religiosa e leiga das antigas assistências hospitalares, no velho modelo sacerdotal. A precisão no diagnóstico e na cura combinava-se aos ideais do sacrifício, da abnegação e do altruísmo. O trabalho de equipe, embora centrado na cura do indivíduo, caminhava no sentido coletivo da prática médica e no caráter científico da medicina. O Regimento Interno do HCJB assumia, com efeito, um perfil higienista, que se balizava pela normatização de hábitos e costumes, pela preocupação preventivista e pela orientação de uma lógica eugênica.475 RI como técnica de poder disciplinar... E também código de uma moral. Ele fornecia as regras para uma conduta, orientação para os comportamentos desejados, penalidades para os desvios, correção com base na pedagogia do exercício. Modelo ético-moral de primeira instância, pedindo complemento da moralidade dos comportamentos e da substância ética de cada indivíduo regido pelo código. 3.3 O bisturi e o cinzel do Doutor Januário : a clínica hospitalar como ateliê do corpus e da anima “Eu sou o espião desses delictos monstruosos, que a sociedade condemna, mas não pune, e contra os quaes os poderes públicos sacodem o hombro numa indiferença pasmosa” 476, assim se autodefiniu o médico cirurgião do HCJB, o doutor Januário Cicco, ao se referir à ineficiência do poder público em combater o exercício ilegal da medicina, uma dos principais motivos que alimentavam seu processo de autoelaboração enquanto sujeito moral. Ao longo de várias páginas de suas Notas de um médico de província, ele discutiu, essenciamente na sua fase clínica pré-hospitalar, uma demorada casuística, colhida aqui e ali, acerca das relações entre os médicos no interior da profissão e entre o médico e seus pacientes. É um rico repositório de informações sobre a profissão médica no começo do século XX, e que pode nos ajudar a esclarecer melhor as concepções que Januário detinha sobre questões deontológicas que guiavam a prática médica exercida por ele e seus colegas de profissão. 475 Ibid., p.50. 476 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: crítica medico-social, p.69. 237 Sua compreensão da arte do Bom477 na Medicina não era estática, mas ganhava inteligibilidade com a observação e a prática, através do ensino dos mestres nas instituições oficiais. Por isto, ele descreveu seu aprendizado no campo ético-médico através de casos vividos por ele ou que lhe foram contados por outrem. Sua ética é materialista e nasceu da experiência dos homens, daquilo que eles fazem realmente. Ainda quando fazia o curso na Faculdade de Medicina da Bahia, iniciou sua carreira clínica no internato de cirurgião da cadeira do doutor Pacheco Mendes e depois na clíníca médica do doutor Bráulio Pereira, praticando intervenções cirúrgicas no Hospital Santa Izabel. Foram quatro anos de experiências com doentes, que lhe facultaram a primeira cirurgia pública, logo realizada no próprio pai. Foi uma intervenção contra uma polipotomia, retirando 22 pólipos mucosos em três seções. Experiência familiar, exitosa, benfazeja, mas que lhe ensinou a primeira regra da relação com o paciente: “a ethica medica aconselha declinar para outro profissional a assistência aos seus” 478. A regra acima torna-se compreensível quando Januário comenta os possíveis insucessos da empreitada. Ele nos conta que um cliente importante apareceu- lhe queixando-se de frequentes dores no nariz. No exame de rinoscopia, acusou-se um pequeno tumor, do tamanho de um grão de milho, vermelho, acessível à inspeção direta, o que levou Januário a intervir com uma pinça de Schaeffer, contendo a hemorragia pela pressão. Alguns dias mais de cauterização e o problema parecia resolvido. Todavia, o problema retornou e o paciente preferiu submeter-se aos cuidados de um cirurgião no Rio de Janeiro, vindo a falecer após a intervenção, vítima de choques operatórios e hemorragias secundárias. O insucesso, que ele não sabia a quem atribuir exatamente, inspirou- lhe outra orientação na conduta médica: “é improbidade profissional attribuir ao colega o que é intrínseco á incurabilidade das moléstias” 479. Princípio de autodefesa da constituição de uma classe médica, mesmo em se tratando de um câncer contra o qual não se podia lutar. O insucesso cirúrgico, todavia, não fora perdoado nas ruas, onde o nosso cirurgião chegou a ouvir de um caixeiro de venda na Great Western que Januário ele teria matado o homem que fora operado. 480 Muitas vezes, ocorria de um médico ser substituído por outro em determinado tratamento, sem aviso prévio. Em certa ocasião, cuidando de um amigo 477 MARCHIONI, Antônio. Ética: a arte do Bom. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. p.17. 478 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.27. 479 Ibid., p.33. 480 Ibid. 238 acometido de tifo, Januário teve a surpresa de, no dia seguinte, ser impedido de continuar a terapeutica por causa de um parente do enfermo que convidou outro médico para tomar conta do doente, o mesmo parente que anos antes fora sa lvo de uma úlcera gástrica no consultório do próprio Januário Cicco! A experiência acima ensinara outra regra de procedimento: “a inteira liberdade do cliente na escolha do seu médico, como é muito da ethica medica o dever do collega de não se intrometter clandestinamente no tratamento de um doente assistido” 481. Para este preceito, Januário ainda lançou mão de um comentário explicativo: E’ bem verdade também que o medico não adquire nenhum direito de propriedade na sua clientela domiciliaria; mas a tradição criou uma espécie de privilegio, mantido e respeitado por toda a classe e em todos os tempos, salvo vontade expressa do doente, sendo do consenso universal exigir-se dos médicos esse tratado de respeito á clientela de cada um, pelas razões firmadas no uso de ser a mesma pessoal e durável. 482 Como se pode notar, o fundamento das ações deveria se pautar pelo consagrado na “tradição”, que seria de “consenso universal”, afirmando a relação médico-paciente como estritamente pessoal. Há presente nesse traço da identidade profissional resquícios de uma visão do médico como produtor individual de serviços de saúde, orientado por uma moral, guarnecendo a relação entre médico e paciente na base do segredo profissional, na confiança recíproca, ideias que dominavam a prática da medicina no século XIX e começo do XX.483 Por mais que se queira constituir numa Ética social, a codificação dos comportamentos guarda concomitante uma Ética pessoal.484 Isto não anula o poder de uma “ética para a coletividade”, traço que dominava o panorama de nossa Modernidade. Para Januário, o modelo de funcionamento era o de círculos concêntricos, cada qual ligado por vasos comunicantes, estabelecendo contatos hierárquicos que começavam na moral social, mais ampla e determinante, se espalhando por diferentes grupos menores, até atingir a escala do indivíduo: Ao iniciar estas considerações, disse que o medico assume com a sociedade compromissos, que são recíprocos, e cujas obrigações obedecem a regras de conducta da própria moral social. 481 Ibid., p.36. 482 Ibid., p.36 483 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado, p.19-21. 484 MARCHIONI, A. Op. cit., p.22. 239 Não há realmente nenhum código escripto, traçando o caminho por onde cada um de nós trilhe a recta do dever, se não aquelle bem trabalhado pelo caracter, coisa que se não compra nas mercearias e nem se adquire nas Faculdades, constituindo uma honra para quem o possua, porque nobilita ainda mais o lar que o formou. A tradição é que consagrou esse respeito que devemos uns aos outros, como uma necessidade de viver, e a moral social o defende como um principio de ordem e disciplina mental, exigindo apenas de cada um de nós honestidade e trabalho. 485 A “honestidade” e o “trabalho” surgem aí como virtudes exigidas na formação do “caráter” no plano individual. A responsabilidade dos atos, portanto, é produto desse trabalho de elaboração do indivíduo, que pode estar de conformidade com a moral social ou se distanciar dela. É a isto que Foucault, mais interessado na ética como “cuidado de si”486, denominava de “moralidade dos comportamentos”487. Essas virtudes advogadas por Januário Cicco derivavam um conjunto de outras tantas, que deviam ser igualmente observadas. Assim, o médico deveria atender ao doente precisamente naquilo que ele necessitava, procurando não enganá- lo com qualquer outra atitude. Se não se sentisse capaz de dar um diagnóstico preciso, informasse suas dúvidas ao paciente, não o iludindo quanto a seus conhecimentos. Sobre este procedimento, Januário simula didaticamente uma situação frequente entre médicos que, em seus consultórios, não respeitavam a virtude da “honestidade”: E’ é curioso vel-os a bordo d’um leito; inquirem, uns, coisas de pouca monta, percutem, simulam auscultar e garatujam, por fim, o nome de umas drogas perigosas, cuja posologia ignoram, e tornam mais tarde, pela noite, inquiettos pela indiferença da moléstia á sua medicação. Outros, mais cheios de si, tomam o pulso e o relógio, como si sob os dedos falasse a moléstia e fosse fácil interpretar a natureza mórbida pelo simples bater da radial, cujo estuar polymorpho esconde o universo da patologia; tiram o thermometro de uma caixa de ouro, toma o calor axillar do cliente e, calados, mysteriosos, seguem a pratica dos primeiros, transportando para o domicilio de seu assistido as pharmacias da província. E o dignostico? Talvez depois da morte, ou da cura. 488 Segundo Januário, esse mesmo “saber” deveria impedir também os esculápios de prometerem a cura de certos males que a ciência ainda não encontrou, disposição que os próprios órgãos da Saúde Pública já defendiam. E isto porque os jornais da época costumavam estampar em suas páginas exemplos de curas milagrosas, 485 CICCO, J. Op. cit., p.37-38. 486 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o cuidado de si. 9º ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p.49. 487 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. p.34. 488 CICCO, J. Op. cit., p.40. 240 trazendo depoimentos de pacientes e médicos que comprovavam as mencionadas curas. Em 2 de maio de 1912, um anúncio veiculava a cura de um câncer no nariz somente com o uso do preparado “elixir nogueira”489: Em outra propaganda490, em 29 de abril do mesmo ano, a Drogaria Rabello oferecia a cura da lepra, mal que entulhava os leprosários pelo país, com o Elixir de Carnaúba e Sucupira Composto, usado na posologia de 24 vidros ! O anúncio ainda veio acompanhado da imagem terrífica de um leproso, reforçando o temor pela doença e o desejo de adquirir o medicamento milagroso: 489 A REPÚBLICA. Annúncios, 2 maio 1912. 490 Ibid., 29 abr. 1912. 241 Não prometer curas milagrosas era só uma parte da regra do “saber”. Ela também englobava os diversos casos de falsos médicos e enfermeiros (as) que se “arvoravam” nas artes da cura sem deterem a qualificação técnica em instituições autorizadas pelo Estado. Entravam nesse rol as enfermeiras iletradas que trabalhavam nos serviços de Profilaxia, os farmaceuticos sem farmácia, os médicos sem diploma, as falsas parteiras e toda sorte de curandeiros que usurpavam as funções médicas oficiais. Nessas situações, Januário Cicco denunciava as consequências danosas advindas da prática ilegal da medicina. A novidade na sua argumentação foi a inclusão da clínica hospitalar no conjunto de preceitos extraídos das experiências de clínica domiciliária. No HCJB, ele se deparava com quadros nosológicos que evidenciavam a importância da ética médica no cuidado com o doente. Um desses casos foi uma operação realizada na região da próstata por um negociante e agricultor que se dizia farmaceutico mas sem possuir diploma. O estado do doente quando chegou ao hospital era desanimador, tendo de ser feita uma intervenção cirúrgica restauradora da zona atingida: 242 Consequente a estreitamento uretral, formaram-se fístulas, após um abcesso urinoso, em toda a região uretro-prostatica; e o senhor pharmaceutico, pensando resolver muito bem a situação do infeliz, golpeou cegamente o desgraçado, deixando-lhe desnuda toda a região perineal por onde se esvasiava a bexiga, e deixou a sorte terminar o resto. A irritação do excreta manteve uma vasta ferida, e a suppuração se encarregou de destruir toda a urethra exposta, tendo-se-lhe feito no Hospital a restauração autoplástica, com resultado parcial. 491 Mais do que a má-fé dos chamados “charlatães”, Januário criticava asperamente a negligência do Estado na fiscalização e punição dessas situações. No próprio serviço de Profilaxia Rural, o corpo de enfermeiras era recrutado entre pessoas que não sabiam ler e escrever, mas que visitavam as residências administrando tratamentos de saúde.492 O exemplo desse falso farmaceutico que operava nas horas vagas na era único. Na Maternidade do HCJB, algumas mulheres davam entrada com sérias complicações de parto, fruto de intervenções malsucedidas feitas por “parteiras” despreparadas, pondo em risco a própria vida e à de seus bebês: Certa vez recolheram na seção de Maternidade do Hospital de Caridade uma pobre mulher, cujo producto do seu amor, ao vir ao mundo, teve a cabeça arrancada, ficando o corpo onde a natureza o criou. [...] ainda outra vez foi ter em estado de infecção gravíssima, ao mesmo Hospital, uma infeliz creatura, apresentando lesões anatômicas profundas, interessando da bexiga ao recto, feitas no delivramento, em cujo trabalho foi sacrificado o feto e infeccinada a infeliz, que falleceu dois dias depois da sua hospitalização. 493 O caráter trágico desse partejamento talvez não tivesse se originado propriamente da ausência de formação da “parteira”. O século XIX fora do minado por parteiras leigas, isto é, pessoas que não sabiam ler nem escrever e haviam aprendido a arte de partejar na prática do dia-a-dia, observando as situações e treinando quando apareciam as oportunidades. Em 1832, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia deram início ao primeiro curso de parteira. A interessada devia saber ler e escrever e possuir atestado de “bons costumes” emitido pelo juiz de paz da freguesia. Requisitos que foram pouco a pouco aumentando na direção de um academicismo elitista. Em 1854, por exemplo, já se pedia além da leitura e escrita, o domínio das quatro operações da aritmética e da língua francesa. Nesse momento, o curso já se prolongava, tendo duração de dois anos. O art.82 do decreto-lei de 1854 incluía obrigatoriamente a frequência à cadeira de partos do 4º ano médico e atividade clínica 491 CICCO, J. Op. cit., p.68. 492 Ibid. 493 Ibid., p.69. 243 na Santa Casa de Misericórdia. Em 1879, adicionava-se ao vestibular o estudo de português, geometria e álgebra. Ao longo do curso, os alunos (as) tinham de inscrever- se e ser aprovados nas disciplinas de anatomia descritiva, física geral, química geral, fisiologia obstetrícia, farmacologia e clínica obstétrica e ginecológica. 494 Com uma modalidade de ingresso cada vez mais restrita, que sobrevalorizava a instrução, um curso de média duração, que requeria investimentos constantes de capital, e um currículo especializado, não sobrava muito espaço para as parteiras leigas e nem, obviamente, para a maioria da população, composta de alta percentagem de analfabetos. Comentando em suas Notas a situação daquilo que ele chamou de “um povo sem forças e triste”, Januário Cicco cifrava em mais de 80% o número de pessoas que não sabiam ler e escrever em plenos anos 1920 495. A necessidade diária era muito mais urgente que a legislação sem pressa, que mourejava na letra pouco dinâmica da Lei. Depois de criticar as falsas propagandas que ofereciam curas impossíveis, Januário continuou a desfiar seu rosário contra as malversações da ética médica, agora voltadas para os cuidados com os enfermos. Para ele, uma das obrigações médicas com o paciente seria não abandoná- lo jamais, acompanhando o tratamento no tempo que fosse necessário. Muitas vezes, dependendo da doença, o resultado do afastamento do esculápio poderia ser a própria morte do cliente. Para exemplificar o caso, JC relatou com precisão um evento que aconteceu com um amigo médico: Contou-me um collega que certa madrugada fora acordado por um amigo para acudir a um doente gravemente acamado. Era, ao que dizia, um uremico; deixara-o o seu medico assistente de muitos dias para ir a 120 killometros “ver” outro doente. Tratava desde o começo por grippe, e a medicação concordava com seu diagnóstico; e quando avisou á família do moribundo que se ia ausentar, deixando o padecente em óptimas condições, nada significando aquella somnolência, atribuindo a anuria á falta de liquido alimentar, foi encontral-o o outro collega com visíveis contracturas das extremidades, torpor, indifferença e delírio. 496 O problema da ausência estava no fato de os diagnósticos médicos não serem precisos, merecendo o doente acompanhamento constante do doutor, pois qualquer sinal diferente apresentado pelo enfermo, caberia ao médico resolver de 494 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado, p.79-80. 495 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.63. 496 Ibid., p.45-46. 244 imediato. E o diagnóstico realmente se revelou outro, bem distinto de uma simples gripe: A muito custo conseguiu o medico uma colher de sopa de urina, que revelou ¾ partes de albumina; e os três dias seguintes foram de agonia, não surtindo effeito a medicação empregada, o concurso de medicos de outro Estado, nem as supliccas a Deus pelo restabelecimento do querido chefe de família. Um ataque de uremia de forma gástrica, desde o começo, processado num systema renal miopragico, meses antes esboçada por um edema maleolar e retenção chlorurica, tratada por gripe apenas. 497 A inofensiva gripe que diagnosticara o médico assistente na verdade era um grave problema de insuficiência renal, provocado pelo aumento da percentagem de ureia no sangue. A sintomatologia precoce, que parecia apontar na direção da influenza, enganou o médico desavisado, muito mais preocupado com o aumento de sua clientela. Essas mortes ocasionadas pela imperícia dos médicos foi uma característica da medicina do final do século XIX, e punham a credibilidade de sua profissão sob suspeita aos olhos da população. Nos jornais brasileiros, abundavam as piadas que satirizavam o trabalho dos esculápios. Em 25 de janeiro de 1880, no jornal carioca O Paiz, a seção “Ecos de toda parte” publicou uma curtíssima piada sobre a fragilidade da atuação médica: O doente ao médico: - Mas acha que eu me poderei salvar, doutor? - Certamente. É uma cura infalível. Os autores mais notáveis provam com estatísticas, que nas condições em que você está, de cem escapa um... -E então? -Então, você completa o número de cem que tenho tratado, e os noventa e nove anteriores já morreram. 498 Ainda no mesmo jornal, agora em 16 de fevereiro de 1888, o humor afiado dos articulistas continuou a desfechar suas críticas à classe dos médicos, em resposta ao texto de protesto de um doutor chamado Carolino Santos, que não gostara das piadinhas: - Então, como vai nosso doente? Diz o médico a um amigo à entrada do quarto de um cliente. - Foi-se ‘agorinha mesmo”. Parece que, se o doutor tivesse vindo a mais tempo, há mais tempo ele teria ido. 499 497 Ibid., p.46. 498 Apud SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro Imperial, p.73. 499 “Ecos de toda parte”, O Paiz, 16/02/1888, p.2. In: Ibid., p.77-78. 245 Essa descrença com relação à terapeutica médica persistiu ainda por longos anos, encontrando sempre um poeta ou gracejador a produzir troças com os esculápios. Em Natal, não temos essas tiradas de humor com a mesma frequência que na então capital federal, mas algumas piadas dirigidas a médicos apareciam aqui e ali nas páginas d’A República. Em abril de 1890, a coluna “Echos alegres” publicou uma piadinha espirituosa envolvendo os honorários pagos ao médico depois de um atendimento de emergência. A brincadeira revela um pouco dessa desconfiança em relação aos esculápios, vistos não raras vezes como gananciosos: Um ricaço muito entendido em negócios, quebrou uma perna e sejeitou-se [sic] por isso aos cuidados de um cirurgião. O homem da sciencia cuidou-o tão bem, que em pouco tempo pol-o bom da fratura. Passado um mez mandou a conta ao ricaço. Este achou-a salgada e recambiou-a ao doutor com este bilhete: Doutor. – O senhor que reduziu com tanta habilidade a fractura, não poderá fazer o mesmo a factura? 500 De duas uma: ou o “ricaço” fora acometido da moléstia da sovinice aguda, ou o preço do atendimento fora realmente demasiado alto, considerando que o doente se tratava de um homem muito rico. Ficamos pela segunda opção, pois o ricaço era “entendido em negócios”, percebendo fácil o disparate da “factura”. Muitos anos depois, em 11 de dezembro de 1929, encontramos um poemeto elegante, mas bastante funesto, que, em pleno século XX, trazia sua contribuição ao repertório das zombarias aos representantes da arte de Asclépio. Homenagem lírica de Paulo Benevides a Câmara Cascudo, contando com a descrição de uma genealogia certamente não reclamada pelos médicos: O PRIMEIRO DOUTOR EM MEDICINA Ao escriptor Câmara Cascudo Assim Que Caim Assassinou Abel, seu próprio irmão, Foi, com mãos de cólera divina, Que elle se fez então O primeiro doutor em medicina... E teve, como Hippócrates, a sorte De, calmo [...], 500 A REPÚBLICA. “Echos alegres”, 24 abr. 1890, p.4. 246 Exercer, com perícia, o magistério, Que transforma, constantemente, Em defunto qualquer doente, Para encher mais depressa o cemitério!... 501 A marca bíblica da descendência de Caim, como afirma a genealogia do poema, evidencia a relação intríseca entre o médico e a morte, seu eterno algoz. Januário descrevera algumas situações em que seus pacientes morreram sob o seu tratamento ou após ele, vendo nisto algo natural, desde que não tenha sido ocasionado por negligência ou imperícia do doutor. Por isto, ele costumava preconizar, nos casos de morte do paciente, ter-se todo o cuidado para não acusar indevidamente seus colegas de profissão (habilitados, é claro) ou seus assistentes, muitas vezes responsabilizados pelos insucessos terapêuticos do esculápio. Os erros cometidos pelos médicos devem ser imputados ou à sua imperícia ou às limitações que a própria doença oferece. Procurando mais uma vez ilustrar seus argumentos, Januário deu como exemplo o caso de um senhor rico da região Norte, que apresentava sintomas de disfunção no sistema circulatório, estando permanentemente acompanhado por um méd ico de sua inteira confiança. O esculápio prescreveu-lhe a medicação, mas o... [...] estado se agravava minuto a minuto. Por fim, a família convocou uma conferência, e os medicos da redondeza fizeram uma assembleia. Pediram a urina do enfermo, que até então não tinha sido examinada. O infeliz não governava mais a vontade; procuraram extrahir o liquido desejado, mas a sonda não o trouxe. Decidiram, então, a punção vesical, e por sete vezes o ferro atravessou o ventre do martyr e nas sete vezes só veio o sangue das feridas. Concluíram, afinal, que não havia urina, e... o rico senhor entregou a alma a Deus, e os jornaes, noticiando a sua morte, disseram que para o salvar, exgottaram-se todos os recursos médicos [...] 502 Nessa situação em particular, a conferência não responsabilizou o médico do paciente assim como os jornais não acusaram os médicos da reunião extraordinária de terem matado o cliente. Tanto a imprensa quanto o conselho dos médicos que atenderam o doente entenderam que tudo o possível havia sido fe ito, não tendo a perda do paciente sido ocasionada por erro clínico. Aliás, o tema das conferências também entrou na pauta da discussão sobre ética médica. Januário Cicco dizia abominar essa prática, pois, em geral, os médicos são egoístas, fazendo valer suas opiniões em detrimento das do colega, não importando o real diagnóstico do paciente: “cada medico 501 A REPÚBLICA. O primeiro doutor em medicina, 11 dez. 1929. 502 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.47. 247 é um sábio, não admitte a menor observação, que se lhe conteste a menor coisa”503. Esta postura revela os desentendimentos que havia entre os esculápios na cidade do Natal, conflitos que dificultavam a aproximação entre eles e, consequentemente, a formação de instituições de representação pública da profissão no Estado. E isto sem falar nos riscos que corriam os pacientes: Adoecera um menino de 14 annos, cujo estado inspirava cuidados, dia a dia; os Paes, desesperados e descrentes da therapeutica do medico, porque nem diagnóstico fizera, pediram conferência, indicando-me ao assistente, que sem recusar, furtou-se todavia a estar presente, dizendo bastar-lhe conhecer a minha opinião. Fui e dei por escripto o meu parecer, que não foi acceito pelo doutor. O pobre rapazinho morreu. 504 Divergência de opiniões que podia ser agravada ainda pela intromissão de familiares nas conferências. Assistindo uma criança enferma, o médico Januário Cicco experienciou de perto essa situação delicada das reuniões médicas: [...] firmei um diagnostico de febre amarella, depois de todos os exames e observação meticulosa. O pae-avô do pequenino revirou os beiços, sacudiu os hombros e eu exigi uma conferencia, a qual compareceram três medicos, que confirmaram meu raciocínio clínico. E ainda assim, ficou no espírito do tal senhor uma dolorosa interrogação a respeito da nossa capacidade, aggravada com a morte do seu neto. 505 Desentendimentos entre os esculápios e desconfiança da parte dos clientes criavam um ambiente profundamente desfavorável ao reconhecimento da Medicina como ciência por excelência da saúde. Superar essas dificuldades era o objetivo a que se propunha Januário Cicco. Para ele, o primeiro passo que devia ser dado nessa direção era a realização de uma crítica sem peias, tanto às instituições públicas responsáveis pela saúde, quanto ao comportamento da própria população, que, segundo ele, vivia mergulhada em “crendices” e “misticismo”. Daí toda a virulência de seu discurso, que não poupava nem a médicos nem a clientes: A feição que dei ás minhas notas, colhida no convívio de todos os clientes e entre os medicos, parecerá a muitos refletir uma intolerância maior do que a observação real dos costumes e defeitos na província, e quiça no país inteiro. Mas si fosse dado inverter as profissões, estariam todos os profanos desilludidos da sinceridade que simulam muitos medicos e quase todos os clientes, promettendo estes aquillo que não têm, aquelles 503 Ibid., p.57. 504 Ibid. 505 Ibid., p.58. 248 prenunciando vantagens que só a Deus é dado repartir com os viventes da Terra. Serei, por outros, acoimado de demolidor; mas tenho certeza de que na consciência de todos estou com a verdade, faltando-lhes apenas essa franqueza de contar o que todos sabem e ninguém quer dizer. 506 Nesse trabalho intenso de correção dos desvios a que se lançou, alçando-se a crítico dos “costumes e defeitos”, Januário se constituiu como o guardião das virtudes abandonadas por médicos e clientes nas suas relações. Sua alvejada “intolerância”, antecipando-se aqui a seus leitores, arrombava as portas da “franqueza” e da “sinceridade” que impediam as águas da “verdade” de vazarem demolidoras sobre a planície humana de um “povo triste e fraco”. O problema da ausência de exercício dessas virtudes não era gnosiológico ou epistêmico, mas relativo à aliança entre vontade e linguagem: desejo de falar, vontade de dizer. Todos sabiam do simulacro que se distanciava da cópia e do original, mas ninguém rompia os diques da linguagem. Em seu discurso, Januário se construiu, então, como um mestre da “coragem da verdade”, aquele que ensina como mobilizar as forças da alma para dizer o “real” e o “ser” em toda a nudez primitiva. Razão para escolher e Vontade para mobilizar. O discurso januariano deve ser bem medido, contextualizado dentro de uma tendência geral de afirmação da profissão médica na sociedade, de imposição mesmo da figura do médico e seus conhecimentos diante dos demais praticantes da arte de curar. A ética januariana formava sua substância moral no modo de sujeição espelhado na austeridade das ações que buscavam correspondência estrita com o código legal, com a tradição cultural que guiava a deontologia médica ainda ágrafa. Ele praticava a medicina na forma de um combate permanente, ora no campo da Lei, ora no campo da Norma, atuando na brecha, na fissura do “real”: ele não era o “espião” dos “delictos monstruosos, que a sociedade comndena, mas não pune”? O télos de sua conduta moral não apontava tão somente para uma adequação aos valores e às regras, mas configurava um modo de ser particular. Seu alvo não era propriamente a Lei, fundir-se a ela numa integração que anularia o indivíduo num puro panteísmo legal; a teleologia moral de suas ações convergia para a satisfação íntima de servir à sociedade, uma forma de espiritualidade cósmica507, de integração da parte no todo. Suas ações morais tendiam a 506 Ibid., p.86-87. 507 A expressão espiritualidade cósmica utilizada aqui não deve ser confundida com uma Ética cósmico- espiritualista, que tem seu fundamento, paradigma ou modelo, isto é, o Bom Sumo, como a Natureza habitada pelo Espírito, tal qual as filosofias orientais (budismo, hinduísmo, taoismo, confucionismo, xintoís mo, sikhis mo e jain ismo), nas filosofias platônicas de Atenas e Roma ou nas filosofias modernas 249 realizar-se segundo uma lei de afinidades: [...] o medico honesto e o cliente de distinção criam uma afinidade espiritual honrosa para ambos, não prescindindo este dos conselhos daquelle, que é o depositário da história mórbida da família, nas decisões que devem influir no bem-estar do lar, nem o medico se afasta do cliente que o ataca, considera e presa (sic), ouvindo também o amigo nas questões sociaes que, por vezes, empolgam a vida afanosa do clínico. E dessa espiritualidade tira o medico o melhor proveito para a sua satisfação intima, podendo contar na sociedade com os melhores elementos de reacção contra a ingratidão e a má fé da maioria dos clientes. 508 Para Januário Cicco, o sentido ético das ações estaria no entendimento mútuo entre o médico e seu cliente. Essa relação amistosa seria regada pelas virtudes da “sinceridade”, da “confiança” e da “franqueza”, permitindo a aproximação entre “os melhores elementos” da sociedade na luta contra os vícios da “ingratidão” e da “má fé”. O trabalho ético é visto assim como uma batalha de valores, uma luta contínua e permanente pelo Bom Sumo. Nessa guerra, as táticas e as estratégias mobilizadas têm como foco as “questões sociaes”, a dimensão coletiva da existência. Por isto, Januário se apresentou como crítico dos “costumes”, pois enxergava nos hábitos e comportamentos sociais o lugar das graves mazelas da sociedade brasileira, daí o porquê de sua abordagem moral no estudo sobre a medicina clínica, doméstica e hospitalar, praticada no Rio Grande do Norte. Sua Ética era essencialmente social, baseada no princípio agostiniano frui, non uti, isto é, servir o outro e não servir-se do outro.509 Ética social que não exclui Ética pessoal. Isto porque a Ética pessoal “faz a pessoa encarnar o Bom e vestir-se do Bom”510. Caráter coletivo que não dispensa o molde individual. As ações morais presentes no discurso do médico Januário Cicco não podem ser encaradas como tendo seu horizonte exclusivo na transformação do comportamento dos outros. Devemos pensar aqui a “moral” como um sistema complexo que engloba tanto o código, com suas regras e valores, quanto o modo de de Espinoza e Hegel. A Ética pensada por Januário tem fundo materialista, crendo que a Razão Humana é o único árbitro do pensar e do agir. Nessa postura, relevam-se três princípios: o Absoluto é a matéria, a origem de tudo; o Homem é uma matéria sem espírito, sendo a alma uma palavra que diz respeito ao corpo; e a Ética é uma forma de amor como o Outro, sem qualquer metafísica de leis eternas com verdades absolutas. Moral sem Deus nem Religião. Espiritualidade em Januário é um modo de relação pautado em virtudes afins. Para uma discussão mais extensa sobre o tema da Ética Geral, conferir: MARCHIONNI, Antônio. Ética: a arte do Bom. 2º ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. 508 CICCO, J. Op. cit., p.86. 509 MARCHIONNI, Antônio Marchioni. Ética: a arte do Bom, p.22. 510 Ibid. 250 relacionamento dos indivíduos com este código e consigo mesmo. Assim, segundo Michel Foucault, [...] para ser dita “moral” uma ação não deve se reduzir a um ato ou uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor. É verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real em que se efetua, e uma relação ao código a que se refere; mas ela implica também um acerta relação a si; essa relação não é simplesmente “consciência de si”, mas constituição de si enquanto “sujeito moral”, na qual o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo; e, pata tal, age-se sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se. Não existe ação moral particular que não se refira à unidade de uma conduta moral que implique a constituição de si mesmo como sujeito moral; nem tampouco constituição do sujeito moral sem “modos de subjetivação”, sem uma “ascética” ou sem “práticas de si” que as apoiem. A ação moral é indissociável dessas formas de atividade sobre si, formas essas que não são menos diferentes de uma moral a outra do que os sistemas de valores, de regras e de interdições. 511 O que Foucault chama a atenção é para a parte individual da conduta ética, “a maneira como é preciso conduzir-se, ou seja, a maneira como se deve constituir a si mesmo como sujeito moral, agindo em referência aos elementos prescritivos que constituem o código”512. Esse trabalho particular e individual de autoelaboração, as diferenças na maneira de comportar-se diante das regras e valores, se realizam segundo quatro pontos chaves: a determinação da substância ética, o modo de sujeição, as formas de elaboração do trabalho ético e a teleologia moral. Nas relações entre médicos e clientes, Januário Cicco elencou, dentro de um vasto leque de qualidades, a “reciprocidade” como o princípio de uma “afinidade espiritual honrosa”. Esse fluxo contínuo das trocas entre os sujeitos marcaria o essencial da ética médica, o dar-se ao ouvido e à palavra, escutar os conselhos e aceitar as críticas, criando laços de “confiança” entre os esculápios e os pacientes. Essa “reciprocidade” constituiu a substância ética da relação, a forma particular com que Januário praticou a virtude da fidelidade com relação a seus colegas médicos e a seus clientes. O ouvido e a palavra remetem à prática milenária da clínica, contato, proximidade por excelência dos corpos, narrativa da doença e de seus sinais. 511 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres, p.37. 512 FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos V : Ét ica, Sexualidade e Po lít ica. Organização de textos feita por Manoel Barros da Motta. 2. ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2010. p.211. 251 A construção dessa confiança mútua entre médico-médico e médico-cliente tinha sua motivação numa “tradição” médica de que Januário se considerava herdeiro: a do produtor individual de serviço médico do século XIX, que tinha como lema “Ciência e Caridade”, constituindo aquilo que o historiador da medicina André Pereira Neto chamou de “perfil generalista” 513. Nessa condição, o médico era comparado ao sacerdote, marcado pelos valores do altruísmo e do sacrifício. Mais do que curar, sua função era consolar o doente, dar- lhe lenitivo diante da dor. A relação com o paciente era individualizada, caracterizada pela confiança recíproca presente na figura do segredo profissional. Era uma relação menos econômica e mais moral. Essa era a concepção do médico José Bonifácio Costa, em discurso constante nas Actas e Trabalhos do Primeiro Congresso Nacional dos Práticos: a prática médica comporta [...] um caráter de moralidade, de desinteresse, de abnegação e sacrifício [...] que merece ser identificada a um sacerdócio religioso – e este caráter consagra sua originalidade profissional. 514 Essa “tradição” em que se apoiara Januário era o seu modo de sujeição às regras e valores. E ele o fazia num trabalho de autoelaboração baseado na austeridade, no combate contínuo e permanente, que incluía a denúncia de falsos médicos (“charlatães”), a crítica a instituições políticas de saúde pública, defesa de princípios deontológicos, ocupando postos importantes no Estado, escrevendo ensaios diversos etc., práticas (askesis) que singularizavam seu comportamento entre os médicos da cidade do Natal. Nenhum outro esculápio tinha tanta força política na medicina social do Rio Grande do Norte. Todas essas “práticas de si” encontravam sua teleologia na satisfação pessoal de Januário, na relação de “afinidade espiritual” travada com os pacientes. Trabalho lento que requeria fuga da vaidade e dos elogios: “Quando volverdes as últimas páginas deste trabalho, leitor amigo, traçai, então, a vossa crítica, pondo em linha de conta que o auctor não é um vaidoso, nem caçador de elogios”515. Apagamento na Luz... Esconder-se como “espião” sendo conhecido médico chefe de clínicas do HCJB. Paradoxo que faz parte de um exercício incessante de si mesmo, de uma construção permanente, de uma “cultura de si”516. Trabalho parnasiano do sujeito, que 513 PEREIRA NETO, André de Faria. Ser médico no Brasil: o presente no passado, p.43. 514 Ibid., p. 43. 515 CICCO, J. Op. cit., p.86. 516 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 3: o cuidado de si, p.49. 252 se constitui entre a Arte e a Estética: “possuir-se a si mesmo, dar forma a si mesmo, plasmar-se, esculpir-se como uma estátua” 517. 3.4 “O homem vulgar é que é o producto normal”: o corpo ordinário na clínica hospitalar Nesse processo ad infinitum do governo de si e dos outros, o alvo principal é o corpo, que precisa ser conhecido e adestrado. No HCJB, as intervenções médicas nessa massa/volume revelavam alguns aspectos importantes do modo como o corpo ferido era assujeitado pelas técnicas e instrumentos dos esculápios. O corpo descrito pelo médico Januário Cicco no HCJB era o do homem comum, anônimo, embora tivesse seu registro mais completo nos Livros do Movimento Hospitalar. Em seus apontamentos, o corpo ordinário servia melhor para a contabilidade da Regra, da Lei, para a compreensão do Homem Universal. O corpo fato, estatístico, científico. Nele, a linguagem assenhoreava-se da superfície epidérmica e da profundidade orgânica, dizendo a verdade do corpo ferido. Essas características podem ser vistas nas descrições de alguns casos de que ele tratou no Hospital. Comentando o ferimento à bala de uma senhora no interior do Estado do Rio Grande do Norte, ele narrou passo a passo o estado e os cuidados dispensados à vítima do disparo de arma de fogo: Pela inspecção verificou-se um único orifício de entrada, de bordos regulares, escuros e por onde não soprava o ar, nem escorria sangue, entre as linhas para-axillar posterior e a escapular. Feita a radioscopia, constatou-se a bala quase exactamente no mesmo logar opposto, tendo o projecto descripto no seu trajecto um arco de circulo por entre o tecido sub-pleural, coisa que se não extranha no percurso curioso dos projectis. E lá ficou o innofensivo corpo extranho, não aconselhando eu a intervenção por innoportuna e talvez desastrosa, continuando a sua portadora a se não queixar de nenhum incimmodo. 518 A bala atingira a mulher na altura do braço, atravessando os tecidos e indo se alojar em seu interior, de onde não fora, por precaução, removida pela equipe cirúrgica. A partir de então, ela teria de conviver com aquele corpo estranho por toda a vida, ou pelo menos enquanto não provocasse maiores incômodos. A linguagem utilizada pelo médico para descrever a intervenção compunha um jargão próprio da prática médica profissional. Esse jargão operou a transformação da “carne” em “corpo” 517 MARCHIONNI, A. Op.cit., p.221. 518 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.49. 253 para o campo médico, agora espaço vital domado na sua extensão visível e profunda. A clínica cirúrgica, dentre as demais existentes, representava sem igual esse poder sobre o outro, que é invadido naquilo que lhe é mais “íntimo”, “interior”. Não é à toa que a maior parte dos casos relatados por Januário Cicco tenha sido aqueles das mesas de cirurgia, considerada, depois de muitos séculos de ostracismo, a parte nobre do curso médico. As escolhas de casos relativas à prática cirúrgica no HCJB também têm ligação com a formação generalista do médico à época. Câmara Cascudo, no seu livro de memórias Pequeno manual do doente aprendiz, falava que “Antigamente não havia especialista, mas o médico bom para determinadas enfermidades. Médico bom para as febres era o Doutor Celso Augusto Santiago Caldas (1858-1927), Pedro Velho era bom para os partos e doutor Paulo Antunes para o estômago, empacho, dor incausada, ventosidade”519. O caso da clínica cirúrgica não era diferente. No começo do século XX, a cirurgia não era uma especialidade, mas somente uma cadeira obrigatória. Isto significa que todo e qualquer médico diplomado conhecia um pouco das técnicas cirúrgicas. Entre 1909 e 1927, o HCJB não contava com uma clínica cirúrgica para indigentes. As operações de pequena cirurgia e urgência eram realizadas pelo próprio Diretor do hospital, e os pacientes submetidos a operações ficavam nas enfermarias ordinárias. Em 1927, finalmente inaugurou-se um setor especializado para cirurgia geral, com enfermarias para homens e mulheres. O clínico responsável foi José Tavares da Silva, que permaneceu na função até 1934. Nesse período, os doentes indigentes ficaram sem atendimento, realizando-se somente cirurgias mais simples e de urgência.520 A atividade cirúrgica realizada era bastante variada, praticando-se a cirurgia abdominal, do pescoço, dos membros superiores e inferiores, das varizes, dos aneurismas arteriais periféricos, cirurgia reparadora, traumatológica, urológica e obstétrica. Nessas últimas, os obstetras usavam com habilidade o fórceps, mas não praticavam a cesárea, porque não tinham formação cirúrgica. 521 Com efeito, as operações ganhavam nas notas januarianas importante 519 CASCUDO, Câmara. Pequeno manual do doente aprendiz: notas e maginações, p.87. 520 SARINHO, Clóvis Travassos. Hospitais do Rio Grande do Norte: notas, apontamentos, história. Natal: Nordeste Gráfica, 1988. p.47. 521 Ibid., p.48. 254 espaço, sempre comentadas com precisão: Não faz muito tempo um brigão recebeu um tiro na bocca, cujo projectil quebrou-lhe dois incisivos superiores, e dirigindo-se obliquamente de cima para baixo, e de fôra para dentro, atravessou-lhe a língua, arrancou-lhe dois grossos molares, e apanhando a face interna do ramo direito do maxilar inferior deslizou de cima para baixo, atravessando os tecidos moles e alojou-se entre o feixe vasculo- nervoso e o esterno-cleido-mastoideo. O edema da língua e do pescoço, difficultando-lhe a respiração e a deglutição, quase vitimou o turbulento, aggravando-lhe o estado serias epistaxis posteriores, abundantes e repetidas. O exame radioscopico confirmou a localização do projectil no sitio acima referido, e antes de trinta dias tudo cedeu, sahindo do Hospital o paciente com os ferimentos cicatrizados e levando o projectil encystado no logar onde se alojou, não lhe difficultando nenhum movimento, nem lhe causando o menor incommodo, até que rompa a tolerância e seja indicada a intervenção. 522 Em ambos os casos relatados, o corpo fora submetido a uma agressão violenta causada por armas de fogo. A descrição minuciosa da trajetória da bala no corpo atingido torna o evento mais dramático, mais intenso. A “peça” então encenada produz o efeito desejado: mostrar a perícia do cirurgião, artista do bisturi, que conhece cada região do corpo avariado, seus espaços mais recônditos, acompanhando o percurso do objeto estranho e localizando-o com precisão. Conhecimento profundo do corpo que o leva a recusar a retirada da bala, estabelecendo a convivência do organismo com metal invasor. A descrição de corpos atingidos por projéteis ocupa importante posição nos comentários médicos. Essa experiência do corpo ferido guarda relação umbilical com a multiplicação dos traumatismos físicos nas guerras. Inaugurava-se uma nova forma de violência em que os ferimentos e a morte estavam mais ao alcance das armas. Os conflitos militares travados quase frequentemente acabavam conferindo às armas de fogo um papel preponderante não somente nas guerras, mas deixando marcas na própria vida civil, com o uso dessas armas para fins particulares. Comentando a força destrutiva das novas armas usadas na guerra, a historiadora Stéphane Audoin-Rouzeau afirmou: A bala moderna, impelida pelas pólvoras em fumaça que apareceram no fim do século XIX, causou ferimentos de gravidade inédita em razão de sua força de penetração e do efeito de sopro que acompanhava o impacto. Quanto aos estilhaços projetados em alta velocidade no momento da explosão dos obuses, sua força viva é tal que permite aos maiores dilacerar os corpos, arrancar qualquer uma 522 Cicco, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico-social, p.49-50. 255 das partes do organismo humano. 523 A potencial destrutivo desses projeteis traziam novos desafios para os corpos, agora trespassados por inimigos cujos traços eram um certo anonimato dos ferimentos e da morte. Por isto o vivo interesse de Januário na descrição dos corpos feridos à bala. Os dois casos mencionados por Januário são paradigmáticos: numa cidade provinciana como Natal, contando com uma população que mal alcançava a casa de 30 mil habitantes ao longo de toda a década de 1920, os ferimentos por arma de fogo já faziam suas vítimas no HCJB. Esses corpos violentados pelas balas, ainda que se restringissem a casos vulgares de brigões ou acerto de contas, anunciavam novas formas de violência que dominariam ao longo do “Breve século XX”. Feridos por projeteis ou não, era o corpo dilacerado que estava em jogo nas observações januarianas. A “arma branca” causava seus estragos e incursionava na lista de casos comentados pelo médico do HCJB, situações muitas vezes bastante difíceis. Era o que ocorreu a um trabalhador do interior do Rio Grande do Norte, ferido à faca na região ventral, e que fora levado pelos companheiros em uma rede numa peregrinação que demorou sete dias até chegar ao hospital. A descrição do seu estado não parecia animadora: Pelo orifício da ferida herniava grande massa epiploico-intestinal, escura, exhalando cheiro nauseante e molhando as roupas uma serosidade esverdeada e fétida. Ventre destendido, doloroso, com todos os signaes de peritonite, de par com um pulso filiforme e tachpnéa. Como um recurso extremo, não demorei a intervenção, encontrando o peritoneo adherente á massa estrangulada, azul-escuro, a cavidade cheia de sangue e fezes e transfixado o cécum. Lavada a cavidade com soro physiologico e ether, fiz a sutura de Lambert, e abandonei o intestino no ventre, drenando o peritoneo. Ainda assim, com toda essa infecção, tendo resistido á etherificação, levou o infeliz mais três dias de sofrimento, fallecendo num grande colapso. 524 Com um corte profundo, que rasgou o intestino, o doente chegou ao hospital com uma enorme abertura no ventre, que derramava na roupa sangue, fezes e outras substâncias gástricas. Situação bastante delicada, se considerarmos que o ferido ainda levou sete dias para aportar na mesa de cirurgia do HCJB. Januário, tentando minimizar a dor, ministrou- lhe doses de éter, um dos anestésicos utilizados no hospital, em parceria com o clorofórmio, e destinou seus cuidados mais imediatos para o peritônio, 523 AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane. Massacres- o corpo e a guerra. In: COURTINE, Jean-Jacques (Dir.). História do corpo: as mutações do olhar: o século XX, p.383. 524 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.50-51. 256 membrana que cobre as paredes abdominais e a superfície inferior do diafragma, e que forma cobertura para estas partes. O caso era grave, tendo-se que internar rapidamente o intestino para se evitar infecções. Ainda assim, o paciente acabou não resistindo à violência dos ferimentos e à intervenção cirúrgica. A cirurgia acima descrita bem poderia figurar nas As lições de anatomia do dr. Tulp, de Rembrant (1632). O corpo vasculhado por Januário funciona como uma experiência pedagógica, uma aula de anatomia e cirurgia destinada certamente a entendidos, pois a linguagem é técnica, constitui jargão inteligível para médicos e especialistas. Neste “quadro”, os leitores são a audiência, que observa impassível a intervenção clínica do “mestre”, passo a passo, didática, clássica: diagnóstico físico, limpeza do local, anestesia, operação, sutura e espera pela reação orgânica. Januário se comportou como se estivesse numa sala de aula da faculdade, ministrando uma aula prática da cadeira de Cirurgia Geral, ele que tanto reclamara da deficiência do ensino nas instituições médicas superiores: Por um defeito immanente no ensino medico no Brasil, entulhado de programmas e sem recursos para a exemplificação, sem laboratórios nem hospitaes, o joven doutor em sciencias medico-cirurgicas conhece apenas pelos livros algumas doenças que teve tempo de passar para as provas de habilitação, e nem uma porque houvesse procurado diagnosticar, pondo em pratica desde os auxílios da anamnese aos recursos da therapeutica. Sem esse convívio á borda dos leitos, ouvindo historias dissemelhantes, mas muitas vezes com a mesma natureza mórbida e origem única; sem a constante observação de todos os dias, inquirindo e perquirindo, meditando e comparando, ninguém é capaz de, sem sobressaltos no coração, encarar o primeiro doente, impassível e confiante. 525 Ao criticar o ensino médico brasileiro como demasiadamente livresco e sem espaços de experimentação, característica essencial da Ciência do século XIX, Januário Cicco se coloca como “mestre” de si e dos outros; expõe-se como modelo da prática científica, aprendida nas vicissitudes diárias da medicina ao longo de anos de clínica domiciliária e hospitalar. Só o aprendizado, contudo, não resolveria. Sua mestria fora o encontro de Ciência e Arte, combinadas a um gênio pessoal: A escola, o aprendizado e o exemplo são elementos de grande monta para a especialização; mas do mesmo educandário sahem sábios e 525 Ibid., p.7. 257 ignorantes. O artista que levou dias a fio modelando as obras que a escultura copia hoje nos muzeus, e nas quaes parece só faltar a alma para a verdadeira humanização, “seria incapaz de escrever as phantazias de Wagner”.526 Nesse intenso aprendizado, a medicina surge como uma prática que requer conhecimento e sensibilidade, acionados pelo adestramento dos movimentos do corpo do médico, o exercício do olhar agudo e penetrante, o toque correto na superfície epidérmica, o ouvido preparado para as mínimas sonoridades interiores, o olfato desenvolvido para os diferentes cheiros, e a mente atenta a processar os sinais e sintomas registrados pelos sentidos. O apuro das sensibilidades só poderia ser conquistado nas lides diárias do esculápio, no contato com o corpo dos pacientes. Não se aprende o que é um corpo ferido por projétil ou arma branca por intermédio de desenhos e imagens assepticamente dispostos nas páginas de um manual de anatomia. Como saber que um “único orifício de entrada, de bordos regulares, escuros e por onde não soprava o ar, nem escorria sangue, entre as linhas para-axillar posterior e a escapular” revelava a invasão de uma bala? Como reconhecer o “cheiro nauseante” e “fétido”, o “pulso filiforme” e a cor da “serosidade esverdeada” sem ter um corpo à mostra, ali em frente, sem filtros? E mais: de que significados esses sinais eram portadores? Que queriam dizer? Uma semiologia do corpo doente, embora seja uma mescla de signos naturais e signos artificiais, não prescinde da massa/volume palpável, sensível, táctil, visível, olfatível e audível. Contudo, essa mesma pedagogia da experimentação emergira irremediavelmente atada à necessidade de normalização do próprio corpo ferido. Impunha-se uma visão educativa do corpo em detrimento de uma visão miserabilista, que centrava-se no caráter insuportável da enfermidade, reforçando uma imagem do corpo como algo repugnante, miserável, estragado, deformado, diminuído. O dilema do século XIX era conferir normalidade ao corpo enfermo e fazer desaparecer sua aparência chocante ao mesmo tempo que mostra sua anormalidade. 527 Por isto, a importância crucial da linguagem médica, que higienizava o chocante das deformidades, dilacerações e mutilações. A linguagem suaviza o corpo enfermo, normaliza-o, sem deixar de acentuar os seus perigos e fantasmagorias. É dessa forma que Januário Cicco 526 Ibid., p.9. 527 STIKER, Henri-Jacques. Nova percepção do corpo enfermo. In: CORBIN, Alain (Dir.). História do corpo: Da Revolução à Grande Guerra, p.352. 258 consegue descrever situações extremas de dor e sofrimento cobrindo-os com o manto da linguagem fria e asséptica do jargão médico. Os casos não deixam de causar certo mal- estar, mas agora ele tornou-se suportável. Assim, uma vítima grave de ferimento com navalha poderia ser investido de um caráter didático e exemplar, sem que a s ituação de dor e sofrimento incomodasse tanto a “audiência”: Fui acudir certa vez, pela madrugada, um ferido por arma branca, que ingressara no Hospital “J.B.”, apresentando um ferimento de navalha com 15 centímetros de extensão, na face anterior do thorax, interessando quatro cartilagens costaes, pleura e pulmão, e outra na face antero-interna da coxa, com 28 centimetros de comprimento, atingindo todos os tecidos molles e por milagre não ferindo o feixe vasculo-nervoso. O estado do ferido, embriagado e anemiado por profusa hemorrhagia, contraindicava qualquer anesthesia, a alli mesmo, no próprio leito, depois de uma ligeira pincelagem de tintura de iodo, afastei os bordos da ferida thoracica para me orientar sobre as condições da lesão e o caminho a seguir, quando um jorro de sangue borbulhou atravez da abertura, por onde soprava o ar com ruído humido espantando a asssitencia. O pulso do enfermo era incontável, e pensando mais em recompor um cadáver do que na refecção de planos anatômicos, suturei apenas com pontos separados, os tecidos molles e abandonei o doente às suas próprias defesas. E quando mais tarde, de novo no hospital, abordei o leito do turbulento, quase não o reconheci: passara a embriaguez, e agora sentia-se bem, e antes de trinta dias pediu alta curado. 528 A navalhada de 15 cm dada nas costas e o corte de 28 cm feito na coxa durante uma briga já não causam o mesmo horror que provavelmente impuseram àqueles que presenciaram o evento; o “jorro de sangue” que borbulhou da abertura da lesão, embora tenha espantado os assistentes da cirurgia, não angustiam mais a “audiência”; a figura do cadáver, com a qual o enfermo fora comparado em virtude da baixa pulsação, já não se recobria da antiga imagem de miserabilidade do corpo que arrastava ainda no século XIX. A representação que domina agora é a do corpo forte, resistente, que ultrapassa os conhecimentos da medicina. Após a sutura dos chamados tecidos moles, Januário abandonou “o doente ás suas próprias defesas”, num gesto paradigmático de assunção das limitações da ação médico cirúrgica e da confiança no poder regenerador da Natureza. Ainda que cultivasse a Ciência como arma contra a doença, o horizonte januariano admitia ainda, com especificidades, a antiga tese de que era Natureza que, em última instância, curava e não o Homem. Esse caráter “misterioso” do organismo humano, essa capacidade conhecida e inexplicável de 528 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.310-311. 259 recuperação, davam a tônica dos seus relatos médicos, que sempre ressaltavam, ao final da descrição das operações, a surpresa de uma vida que, aos seus olhos, se esvaía e, inesperadamente, ressurgia da morte quase certa, pulsando novamente entre os vivos: Deu entrada no Hospital “J.B.” um operário, que demolindo um prédio, foi precipitado do alto com o desabamento de uma parede, que lhe esmagou um pé, fracturou-lhe a clavícula e duas costellas esquerdas, escoriando-se ainda grande parte da face posterior do thorax. O accidentado entrou sem sentidos, com 120 pulsações e 42 respirações por minuto. Preparado para a intervenção, fez-se-lhe amputação, a chloroformio, augmentando-se-lhe, assim, o choque; aggravou-se-lhe o estado geral na intenção de salval-o, e durante 24 horas o desgraçado continuou sem esperanças de vida; e quando ninguém mais acreditava na sua salvação, eil-o que desperta e volta muito mais tarde a trabalhar, arrimado, embora, numa perna de pau. 529 Mesmo tendo contado com a intervenção do choque de clorofórmio, ou seja, com o trabalho da equipe médica, a ação humana teve de combinar-se aos caprichos da vida orgânica, que deu sua cota de contribuição para a recuperação do enfermo. A linguagem utilizada para expressar esse limiar entre a vida e a morte era de cunho religioso: “salvação”, “eil-o que desperta”, aludindo à ressurreição do corpo, expressões que guardam resquícios de uma concepção mágico-religiosa do mundo, que não desaparecera com o positivismo da ciência médica. Luta contra a Natureza, contando com o auxílio da Técnica, como pensavam os iluministas, ou trabalho de cooperação com a Natureza, dimensão holística do mundo? A vida humana ainda parecia indecifrável para a Medicina do começo do século XX, e o tão propalado “desencantamento do mundo” parecia não ter ainda se entronizado por completo nos templos de Esculápio. A temática da resistência orgânica a grandes traumas correspondia-se com os mistérios do corpo humano ainda desconhecido pela Medicina, e os casos graves de contusão serviam de verdadeiros modelos paradigmáticos para o estudo dos limiares do saber médico. Do ponto de vista discursivo, os corpos trabalhados pelo bisturi do doutor Januário Cicco recebiam o tratamento típico de objetos de estudo, que serviam como experiências acerca dos limites do corpo-máquina, de suas potencialidades, possibilidades desconhecidas. A mesa de cirurgia era o espaço de uma Paidéia do corpo enfermo, que ali estava como elemento pedagógico, com o fim de promover ensinamentos e aprendizados: espaço-laboratório, de teste, experimentação. A cada 529 Ibid., p.307. 260 corpo examinado, uma pergunta: que pode ele ensinar? O que as faculdades não proviam, segundo Januário, a clínica hospitalar prodigalizava: o corpo real, de carne e osso, entre a vida e a morte, ou simplesmente morto. Nesse processo de ensino- aprendizagem do corpo doente, a estupefação com a variedade de disposições imunológicas individuais alarmava Januário Cicco, que procurava explicações para tamanha resistência de determinados doentes que sofriam de acidentes gravíssimos e ainda conseguiam sobreviver enquanto outros “escorregam num grão de milho, caem e morrem”. No seu mostruário de exempla, ele comenta o caso de uma briga de dois agricultores por questões de terra. Um deles desferiu com o “olho” da enxada um violento golpe na região fronto-parietal esquerda da cabeça do adversário, lesionando seriamente a região cerebral da vítima. A narrativa do calvário desse agricultor fora realmente dramática: Ainda assim poude o ferido montar a Cavallo e andar três léguas para chegar á sua casa, onde não poude mais apear-se, nem fallar. E nove dias depois, aphasico, hemiplégico, procurou o Hospital “J.B.” onde os primeiros curativos descobriram uma ferida circular, com três centimetros de diâmetro, destruindo todo o couro cabelludo correspondente e afundamento da lamina óssea, nos limites da ferida. Retiradas as esquirulas, em numero de oito, ficou a duramater á flôr da ferida, sem lesão apparente, pulsando as meningéas num rythmo bradycardico, e deixando prever claramente a imminencia de uma esclero-meningite. A historia clinica do caso, expressada na aphasia, na paralysia brachial direita, ausência do cremasteriano correspondente e na bradycardia, fallavam no interessamento da terceira circunvolução frontal, sede da lesão. A reeducação da palavra, passando os enfermos pelas agruras da dysarthria, os vexames da dyslalia, trouxe, por fim, o restabelecimento da articulação dos sons, e meses depois o paciente poude voltar á sua actividade, ainda que com as resistências diminuídas. 530 O golpe da enxada havia atingido o crânio do agricultor, chegando às imediações das membranas que envolvem o encéfalo, as meninges, que estão entre os órgãos e os ossos crânio e das vértebras, protegendo o Sistema Nervoso Central. A pancada fora tal que a dura-máter, meninge mais externa, podia ser vista pelo médico pulsando! A região cerebral atingida era responsável pela função da fala, por isso as dificuldades de se expressar logo após a intervenção cirúrgica, necessitando de trabalho “reeducação da palavra” durante meses até recuperar parcialmente a articulação dos 530 Ibid., p.307-308. 261 sons. O que chamava a atenção de Januário no caso era a extrema violência do golpe contra o crânio, afundando uma lâmina óssea e se aproximando do encéfalo. Mesmo tendo atingido uma área nobre do cérebro, na altura da terceira circunvolução, o doente, com “prognostico dos mais terriveis, pelo estado séptico da ferida, pele séde lesional, pelo complexo de alterações motoras, pela encenação mórbida de que se revestiu o caso, deixando duvidas sobre alterações somáticas irremovíveis do systema cerebral”531, ainda conseguiu sobreviver e recuperar a função da fala. Como fora possível? De onde viera tamanha resistência do corpo? Depois de inúmeras análises de casos, como o apresentado acima, Januário resolveu apontar um caminho para se explicar essas diferenças de resistência que oferecia o corpo humano: O determinismo mórbido é intrínseco á vida celular. As resistências fallecem naquelles cujas defesas nasceram minguadas. A semente que é má e chega a germinar não esconde a pequenez do talhe e supporta mal os raios de luz que nutrem os outros animais. 532 Segundo ele, a resposta estava no determinismo da célula! A “vida celular” ditaria os rumos da engenharia do corpo humano, dotando a uns de alta resistênc ia a traumatismos e doenças diversas, e a outros não. A resposta não constituía novidade na Biologia. A teoria das células como unidade básica dos seres vivos, deixando para trás o humoralismo, o modelo tissular e o padrão orgânico, já se encontrava em meados de 1830 reconhecida pela comunidade científica acadêmica. Entre 1838 e 1839, contando com o auxílio de microscópios regulados, Mathias Schleiden (1804-1881) e Theodor Schwann (1810-1882) sugeriram as células como elementos da estrutura de plantas e animais, e não somente de plantas como defendera Hooke. Todavia, o trabalho de difusão das novas ideias ganhou solidez com o médico alemão Rudolf Virchow (1821- 1902), que aplicou a teoria celular ao campo médico, mostrando que elas derivavam de uma célula-máter por um processo de divisão (Omnis cellula e cellula).533 Embora os conhecimentos sobre a célula já tivessem algumas décadas de avanço na época de Januário Cicco, o estudo do núcleo celular e de seu material hereditário tiveram um desenvolvimento mais lento. Em 1865, o monge Gregor Mendel descobrira as leis de transmissão dos caracteres visíveis dos organismos vivos, mas foi 531 Ibid., p.309. 532 Ibid. 533 BYNUM, William. História da medicina, p.104-106; PORTER, Roy. Das tripas coração: uma breve história da medicina, p.104-105. 262 ignorada por quase cinquenta anos. A palavra “genética” só foi introduzida em 1903, por Bateson, e a palavra “gene”, em 1909, por Wilhelm Johannsen. A primeira identificação do gene em laboratório deu-se em 1910, por Thomas Morgan. Os experimentos com raios-X de Hermann Miler promoveram a produção das primeiras mutações genéticas, relacionando-se genes e proteínas. A compreensão, todavia, do processo de transmissão hereditária ocorreu com a descrição da dupla hélice da molécula de ADN, feita por James Watson e Francis Crick, em 1953. 534 Ou seja, a genética que circulava no começo do século XX, e à qual Januário fazia referência, ainda estava dando os seus primeiros passos. Em seus apontamentos, as suas rápidas menções à vida celular e à genética se faziam a partir de um enfoque de teorias raciais e de concepções eugênicas. Suas posturas se acomodam bem às discussões travadas no começo do século XX no Brasil, quando médicos e sanitaristas começavam a se preocupar com os destinos da raça brasileira e com os laços que uniam a pátria. Segundo alguns estudiosos, vivendo num ambiente difícil, com clima inóspito, natureza traiçoeira e solo pobre, o brasileiro era um povo triste e fraco, que nada produzia. Essas mazelas que atingiam o povo brasileiro podiam ser superadas com o estudo da população, utilizando índices como educação, condições de saúde e moradia, costumes e manifestações culturais. Esse estudo empírico da população permitiria um diagnóstico adequado das causas que impediam o progresso nacional. Nesse amplo projeto, os médicos se colocavam como instrumentos da “regeneração nacional”, invadindo os sertões e as cidades em busca do conhecimentos precisos acerca da raça brasileira, diagnosticando seus problemas e propondo soluções.535 É nesse contexto que devemos situar as preocupações de Januário Cicco com relação à temática das “resistências” do corpo humano. Com base em uma história positivista e determinista, ele acreditava que o desenvolvimento das “civilizações” estava regido pelas leis da hereditariedade. De acordo com essas leis, o caminho histórico-eugênico das civilizações passava por um período de crescimento e apogeu, no fim dos quais elas encontrariam uma fase de decadência humana e racial, de 534 KECH, Frédéric; RABINOW, Paul. Invenção e representação do corpo genético. In: COURTINE, Jean-Jacques (Dir.). História do corpo: as mutações do olhar: o século XX, p.86. 535 MOTA, André. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p.19-20. 263 abastardamento da família e da sociedade. Era o que os eugenistas chamavam de lei do “retorno à mediocridade”. As razões da degenerescência das raças eram encontradas em diversos fatores: As graves transgressões cometidas pelo homem contra a sua espécie seriam primeiramente as guerras, que concorreriam apara a eliminação dos melhores elementos e a conservação dos inferiores (doentes, degenerados, incapazes); a filantropia contra-seletiva, que favoreceria a conservação de elementos que, abandonados à sua sorte, teriam fatalmente de desaparecer; a filantropia médica que não só permitiria a vida dos que deveriam sucumbir, como prolongaria a de outros, cuja existência constituía sobrecarga para os válidos; o sentimentalismo, sempre a agir em favor dos fracos e incapazes. Outros fatores seriam a imigração residual, que favoreceria os cruzamentos entre genes incompatíveis; o urbanismo artificializador e degenerador; e a higiene, que reduziria ao mínimo os fatores que concorreriam para o banimento dos incapazes. 536 Ancorado numa série de ideias oriundas do darwinismo social, conjunto de postulados diversos que buscavam aplicar in totem a Teoria da Seleção Natural de Charles Darwin às sociedades humanas, da Antropologia Física de Gall e na Criminalística de Lombroso, Januário Cicco discutiu longamente as diferenças hsitórico-biológicas que se processavam no chamado “homem normal”, mostrando como a genética atuava na degeneração da fisiologia dos corpos: O homem normal, sem herança mórbida nem taras, ainda não veio á terra. Os distúrbios da gênese acentuam falhas no syncronismo orgânico, refletindo-se ora no systema da corticalidade, e creando typos inadaptáveis, ora travando a physiologia deste ou daquelle outro systema, creando o hypo-funccional. 537 Constatadas as deficiências “naturais” humanas, Januário agora inicia a explicação dos fatores de degeneração do homem “civilizado”: A seleção, em espécie, seria o refinamento de qualidades, atravez a diluição millenaria de gerações; e o caldeamento de typos superiores deveria quintessenciar o homem, creando o hypercivilizado; mas “a própria essencia degenera, de começo pelas predisposições e por fim pela desharmonia, isto é, pelo conjunto de defeitos hereditários ou adquiridos, trazendo novas aptidões mórbidas”. Lombroso vê nas prisões e na sociedade o criminoso e o criminaloide, e por causas ennumera os factores communs á cardiopathias e ás degenerações. Ora, a syphilis, o alcoolismo, os vícios elegantes e ainda mais a miséria sob todas as formas, fizeram o homem 536 Ibid., p.41. 537 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.10. 264 contemporâneo com uma mentalidade tal que se lhe desvirtuaram todos os traços de normalidade. 538 Januário argumenta, com base em Cesare Lombroso, que além de possuirmos tendências mórbidas, que poderiam nos levar à criminalidade, ainda contamos com diversos fatores que contribuem para enfraquecer as resistências da espécie, como a sífilis, o alcoolismo, os vícios “elegantes” e a miséria social, que não somente atingem o corpo como a própria capacidade mental dos indivíduos. O “homem contemporâneo” já traria na sua constituição física e mental as marcas de sua própria decadência. Ainda conforme Januário, a situação tornava-se ainda mais precária devido às políticas de controle da natalidade implementadas e que pareciam estar em desacordo com as leis naturais, tornando o quadro mais sombrio: Sabe-se que a seleção faz a elite e desta adveem as capacidades. Ora, a seleção pede a proliferação da espécie, e na modernidade do momento, em que todos batem palmas ao neo-malthusianismo, de par com fatores mórbidos que mínguam as possibilidades de higidez, o índice mental desce na proporção da fallencia individual. 539 E o resultado desses desarranjos da hereditariedade poderia trazer repercussões desastrosas para a própria espécie humana: [...] sabe-se que as raças altamente civilizadas perdem, por fim, os seus característicos physio-psyquicos, tecendo nevropathias e degenerações do próprio typo, voltando especie á primitividade dos ascendentes, si não á morte da própria raça. 540 Como se pode perceber, Januário Cicco encampou as teses básicas do discurso eugenista da época, adotando a fórmula da degenerescência das civilizações fundada em princípios histórico-biológicos da doutrina do darwinismo social. Para se evitar essa débâcle da raça, os eugenistas envidavam esforços no estudo da composição das sociedades, buscando um índice de homem ideal que possibilitasse reconhecer e distinguir a percentagem de indivíduos mais preparados e daqueles considerados mais atrasados. O critério da para se determinar a bioespecificidade dos indivíduos estavam na tríade hereditariedade, meio ambiente e educação. Cada povo era detentor de um valor genético que, combinado ao ambiente, favoreceria, em maior ou menor grau, o desenvolvimento das características hereditárias. Por isto, Januário tomava como baliza para o diagnóstico das raças a “elite” de uma sociedade, o grupo que simbolizaria os 538 Ibid., p.10-11. 539 Ibid., p.11. 540 Ibid., p.12. 265 avanços de determinada civilização. Era o índice almejado. De posse dele, a avaliação dos caracteres físicos e mentais forneceria a medida do progresso ou retrocesso da civilização à que pertencia aquela “elite”. 541 Para Januário, os países mais adiantados podiam ser assim reconhecidos pelos investimentos que faziam em “instrução geral” e “saúde collectiva”. Dentre eles, a Alemanha ganharia destaque pelo crescimento do seu povo, graças às despesas efetuadas com assistência social e educação, enquanto a França via a sua população estacionada ou até diminuída devido às políticas neo- malthusianistas.542 Ainda de acordo com Januário, o povo brasileiro, por sua vez, não possuía “alegria” nem “força consciente”, pois não gozava de boa saúde e não tinha acesso à instrução. Era, enfim, um “povo sem forças e triste”: [...] Ora, apurando-se bem, “o Brasil é um grande hospital”, na phrase de Miguel Pereira, e é o paiz dos anlphabetos; e aqui está porque somos um povo sem forças e triste, vivendo-se num território onde 50% do obituário geral pertencem às creanças e mais de 80% de sua população global são anlphabetos. Fracos? Deixo sem comentários; basta o exemplo diário da nossa ruína moral... E querem ver como somos tristes? Por occasião das festas da nossa Independência, o meu espírito de provinciano teve emoções tão fortes, vendo o desfile da massa heterogênea festejando os feitos de Pedro I, que não passariam indifferentes a quantos procurassem interpretar as contracções dos meus músculos de expressão, um a um desenhando na face e na attitude aquilo que a musica, a marcha marcial e a agglomeração, numa tonalidade confusa, levavam á minha vida interior. Felizmente as attenções eram para as forças armadas, as escolas, para o povo, deixando-me muito bem com os meus nervos. 543 O desfile do 7 de Setembro causou- lhe forte impacto emocional, a ponto de se manifestarem as emoções interiores nas expressões do rosto. Januário faz referência direta ao fenômeno do nacionalismo, do tão decantado “amor à pátria”. Esse mesmo valor que o tomava nas fímbrias da alma parecia não contagiar o povo que festejava. Para ele, esta era a demonstração máxima da pusilanimidade que dominava a multidão: Felizmente ainda só eu pensei na tristeza que mora na alma deste povo indifferente, apathico, incapaz de uma vibração, de uma emoção mais forte que o estremeça, fazendo sentida a grandeza da pátr ia, cem annos depois. Entre nós não há differença entre uma homenagem posthuma e uma festa nacional. A multidão move-se numa attitude de quem se encaminha para o Campo Santo. O clarim, as bandas militares, a marcha dos soldados, o ruflo dos tambores, tudo, nada differe do 541 MOTA, A. Op. cit., p.42. 542 CICCO, J. Op.cit., p.62. 543 Ibid., p.62-63. 266 cortejo da morte a caminho do cemitério. E foi a impressão que eu tive quando assisti o desfilar das escolas e do povo de minha terra em procura do altar que ia receber de todos nós aquella sagração de um centenário de independência, fazendo reviver naquella hora magnífica toda a phalange dos heroes que redimiram o Brasil da servidão portuguesa. 544 Essa apatia da “multidão” diante da data comemorativa da Independência seria fruto da falta de instrução do povo e de cuidados com a saúde coletiva, princípios que deveriam guiar as nações ditas civilizadas. Para Januário, a Medicina assumia um papel central nesse processo de melhoria e aperfeiçoamento das raças humanas, devendo conduzir, com seus conhecimentos sobre a saúde e a doença, o destino das coletividades humanas. À ciência médica, Januário rendia seu preito: As minhas homenagens á sciencia medica attingem os limites supremos; as graças concedidas á humanidade, desde Pasteur aos mais novos investigadores, de cujos trabalhos nasceu quase toda a pathologia actual; a somma de benefícios, o legado precioso que os governos adquiriram de taes estudos, organizando a defesa collectiva contra a morte nas epidemias de outr’ora e nas endemias actuaes, erigindo um templo único para todos os povos adorarem a mesma deusa, fazendo da Hygiene a redemptora da humanidade, bastam como o maior penhor da civilização contemporânea. 545 Para remediar essa situação desalentadora do povo brasileiro, um único caminho se descortinava aos olhos de Januário Cicco: a aplicação dos princípios da Higiene. Considerada uma “ciência independente”, e fazendo interface com uma gama variada de ciências especializadas como a física, a psicologia, a biologia, a sociologia, a patologia, a geologia, a terapêutica e a antropologia, a Higiene englobava o estudo de todos os aspectos individuais e coletivos do homem, agindo sobre o meio (solo, ar, água, habitação), sobre o indivíduo (biometria, cuidados corporais e vestuário) e sobre as populações (estatística, demografia e problemas sociais, como o alcoolismo, a puericultura e as doenças transmissíveis). 546 Esse esforço eugênico no Brasil tomava duas direções possíveis: a de caráter negativo ou restritivo e a abordagem construtiva. Na primeira, as ações eugênicas centravam-se em medidas restritivas, como a regulamentação do casamento, a segregação e a esterilização. Essas práticas proibitivas e limitantes buscavam impedir a reprodução dos indivíduos considerados incapazes, como epilépticos, alienados e 544 Ibid., p.63-64. 545 Ibid., p.20. 546 MOTA, A. Op. cit. , p.43. 267 deficientes mentais. Agindo assim, os defensores do eugenismo esperavam eliminar todos os problemas de uma descendência “anormal”, que pusesse em risco o futuro de uma raça, civilização ou povo. Na segunda posição, a aposta recaía sobre a educação higiênica e a propaganda como meios mais eficazes de divulgar os mecanismos de controle eugênico.547 Entre esses dois horizontes, Januário Cicco pendia mais para a perspectiva “construtiva”, como se pode constatar no trecho a seguir: A educação sanitária, cujos preceitos deveriam constituir assumptos de leituras e provas escolares, de par com os vários prolegomenos da cultura humana, iniciando-se a creança na sciencia da vida, ao em vez desse suplicio heteróclito de se lhe embotar a razão com o papaguear de arengas poéticas e queixumes de amor, seria o caminho mais curto á longevidade, levando uma existência saudável a extremos de séculos. 548 Com a difusão dos “credos da Hygiene”, principalmente entre as crianças na escola, Januário acreditava que os povos teriam uma vida mais saudável e consequentemente mais longeva, proporcionando à nação a força de trabalho de que esta carecia. Aliás, esta era outra preocupação fundamental do movimento higienista. O esforço de médicos e sanitaristas no processo de “regeneração da pátria” dedicava um lugar especial em suas atividades para a temática da reprodução da força de trabalho. Em virtude da sua importância política e econômica, a figura do trabalhador, notadamente o operário, se convertia no elemento chave do progresso da nação, sendo, por isso, alvo dos interesses higienistas. Constituía, antes de tudo, uma nova maneira de lidar com o corpo fomentada pelo capitalismo industrial, que buscava disciplinar o corpo como mão-de-obra, transformando em instrumento útil à produtividade, moldando comportamentos, gestos e posturas adequadas às exigências de eficiência e rendimento conformes à racionalidade do capital. Segundo a historiadora Sônia de Deus Rodrigues Bercito, instaurava-se então a Era do corpo-máquina: A concepção que se coaduna com o advento da sociedade industrial relaciona-se com a constituição de um corpo-ferramenta “definido pelos músculos, pela força, pela resistência, pela disciplina e pela rentabilidade”. O que, em última instância, interessava ao capitalismo industrial, seria a constituição de corpos dóceis, úteis e produtivos. A energia humana orientava-se para a atividade industrial e o corpo se tornava uma ferramenta mercadorizada como força de trabalho. 549 Esse corpo-ferramenta do trabalhador passou então a ser progressivamente 547 Ibid., p.44. 548 CICCO, J. Op. cit., p.25. 549 RODRIGUES BERCITO, Sônia de Deus. Corpos -máquinas: trabalhadores na produção industrial em São Paulo (décadas de 1930 e 1940). In : DEL PRIORE, Mary; AMANTINO, Márcia (Orgs.). História do corpo no Brasil. São Paulo: Unesp, 2011. p.374. 268 incorporado aos cuidados de médicos e sanitaristas, que se preocupavam com a saúde do proletariado enquanto força de trabalho forjadora das riquezas da nação. Tal era a relevância dos trabalhadores para os higienistas que algumas analogias médicas mediam a importância dos obreiros para a nação comparando-a a uma árvore: nela, os operários e agricultores ocupariam os lugares da raiz e do tronco, isto é, a base da planta. 550 A este respeito, Januário Cicco manifestou claramente seu ponto de vista. Segundo ele, cabia ao governo a responsabilidade pela saúde do operário, devendo proporcionar- lhe os meios básicos de subsistência e promover nessa classe operária hábitos e costumes saudáveis, afastando-a dos principais problemas que afligiam essa valiosa força nacional. Dentre esses males, Januário insistia na questão do alcoolismo. Ele reclamava inflamado com o descaso das autoridades públicas em relação aos graves problemas gerados pela venda de bebidas alcoólicas, que minavam a resistência da população, e a cada homem “[...] mata as suas energias, encurtando assim os seus dias, degenerando a descendência e empobrecendo o seu paiz” 551. Suas reflexões de base eugênica apontavam na direção da classe operária, considerada por ele a principal mão-de-obra do país, e, por isso, merecedora de cuidados especiais do governo. As medidas intervencionistas/preventivistas foram por ele assinaladas: Além da educação escolar, das sociedades de temperança, onde os abstêmios encontrarão todos os recursos para o desenvolvimento physico e cultura do espírito, os governos taxariam de tal modo as bebidas alcoólicas, que fosse difícil o seu uso á população operária, a mais volumosa columna de homens úteis á pátria, os incumbidos da riqueza nacional. 552 Preocupado com o corpo-máquina do operário e com o “aperfeiçoamento da raça”, Januário disparou duras críticas ao comportamento dos comerciantes de bebidas e da gente rica que zombavam epicuristas acerca das consequências da perigosa “alcoolose”: O resto, essa gente que enche os theatros, os bars, dirige o commercio, regula o cambio e habita palácios e passa a vinho e todas as bebidas comndenáveis, si teimasse em viver passando os copos da bocca do amante aos lábios da bacchante, que morresse de uma vez, porque só assim o paiz se livraria da ruindade de homens que pretendem justificar não valer a pena privar-se dos vícios, quando a morte é certa também para os abstêmios, como si a sua vida não fosse uma parcella do corpo nacional que deve ser respeitado e amado, e não houvesse 550 MOTA, André. Quem é bom já nasce feito: sanitaris mo e eugenia no Brasil, p.37. 551 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: crítica médico-social, p.98. 552 Ibid., p.98-99. 269 peiores desgraças antes da morte. 553 Essa elite social e econômica, que no entender de Januário deveria fornecer o exemplo, acabava por difundir e chancelar as mazelas produzidas pela bebida alcoólica. Sua crítica a essa elite desregrada no álcool assume tom nada condizente com os princípios da “educação sanitária”, vendo inclusive na “eliminação” desse grupo uma possibilidade de solução para a questão, “porque só assim o paiz se livraria da ruindade de homens que pretendem justificar não valer a pena privar-se dos vícios”. Sacrificar a Parte para garantir a sobrevivência do Todo, eis a concepção de sociedade orgânica que vigoraria nos estados totalitários. O álcool, considerado veneno na visão do toxicologista Januário Cicco, era um dos principais “entraves á normalidade” da fisiologia do corpo humano, produto do “mais irracional dos animaes, que, dotado de tanta inteligência, não vê o precipicio cavado por suas próprias mãos, enquanto os seres inferiores fugindo da cicuta, e entre o joio escolhendo o trigo, só se não defendem da fúria humana”554.Isto preocupava bastante o médico-cirurgião do HCJB, que costumava medir o índice de civilização de sua época através da “soma de vícios e degradação”, mostrando que os números obtidos em seu tempo equiparavam-se aos das orgias dos imperadores romanos, quando a “impudicícia dos excessos e as bacchanaes nivelavam regulos e dirigentes”555. Para se ter uma noção desse consumo de bebidas alcoólicas, Januário fez um cálculo baseado no número de casas que comerciavam o mencionado “veneno”. Segundo ele, em 1926, foram consumidos 437.596 litros, o que dá uma média de 50 litros e 546 gramas a cada habitante, cerca de 139 gramas por dia! O gasto com esse consumo alcançou a cifra de 1.375:750$000 réis, quantia que, de acordo com Januário, daria no prazo de dez anos uma boa poupança individual na caixa econômica, além de uma vida mais longeva.556Essa relação estabelecida entre a bebida alcoólica e a saúde do trabalhador era também objeto das investidas dos estudiosos da eugenia, que vinculavam esse “vício” às questões da hereditariedade e da degeneração da espécie. Correlacionando meio social, costumes e genética, os eugenistas apontavam os perigos da associação entre determinadas raças e certas afecções: A degenerescência na espécie implica que se busquem as suas raízes: 553 Ibid., p.99. 554 Ibid., p.91. 555 Ibid., p.92. 556 Ibid., p.96. 270 a hereditariedade oferece a solução. Hereditariedade que é menos vista como ligada a um dado biológico (as ideias de Mendel não penetraram ainda os meios científicos e menos ainda as mentalidades) do que como transmissão de taras resultantes de certas circunstâncias dos meios de vida. Meios físicos, certamente, mas também ambientes sociais. O alcoolismo é o tipo disso: nos ambientes pobres se bebe, se transmite a tara aos filhos, isso provoca degenerescências. Desta maneira se pode ver com bastante clareza o paralelismo entre esta concepção e o que se disse em outro lugar das “classes laboriosas, classes perigosas”. 557 Com efeito, os cuidados com esse corpo operário que merecia as atenções do médico Januário Cicco inseriam-se dentro do contexto de uma biopolítica, que via nesse mesmo corpo a oportunidade do exercício de um poder medicalizador, que conferia aos esculápios um espaço epidérmico de controle. Os princípios raciais e eugênicos aplicados à classe operária por Januário desempenhavam papel fundamental na estruturação de seu trabalho moral, entendido como reação ao corpo de regras de um código, tanto no sentido aproximação/distanciamento do código quanto no de autoelaboração de si como sujeito moral. 3.5 Pelos caminhos da “Matrix”... Na esteira dos princípios eugênicos e raciológicos que abraçava, Januário Cicco recobriu o corpo-máquina do operário de cuidados médicos, envolveu-o no manto sagrado da Medicina e “estatizou” as preocupações com a massa/volume desse corpo, inserindo-o na malha de poder do Estado liberal, cujos interesses na “saúde da população” se encontravam no campo das razões socioeconômicas: a reprodução da força de trabalho. Essa biopolítica alimentada pelo Estado tendia sempre ao crescimento, à incorporação de novos corpos-objetos ao seu domínio, visando a um controle e disciplinarização intensivas do fenômeno populacional. Dominado o corpo-máquina, peça-chave da engrenagem, agora o movimento se dirigia à Fonte, à Origem da produção de corporeidades, uma outra massa/volume primeira: a mulher. Os governadores norte-riograndenses do começo da República, através de suas Mensagens anuais à Assembléia Legislativa, demonstravam frequentemente toda a sua preocupação com o destino do corpo feminino, transformando-o agora em elemento estratégico do Estado. Em 1920, o governador Antônio de Mello e Souza destacou uma importante 557 STIKER, Henri-Jacques. Nova percepção do corpo enfermo. In: CORBIN, Alain (Dir.). História do corpo: Da Revolução à Grande Guerra, p.367. 271 seção do seu relatório à temática da “Maternidade”, mostrando os problemas da ausência de um tal serviço e os benefícios imediatos de sua instalação: Entre os serviços de assistência publica, dispendiosos como noutra arte desta mensagem se refere, mas cuja organização não envergonha a nossa pobreza, um há que exige, pelo seu particular alcance social, certo desenvolvimento: é o da seção de maternidade, annexa ao Hospital Jovino Barreto. Não é necessário salientar a importância de uma instituição que, alem do lado philantropico, apresenta esse outro de immediata utilidade pratica e, para dizer claro, econômica – a conservação de novas vidas, que poderão ser futuras forças para o trabalho e a prosperidade do Estado. 558 E continuando sua argumentação sobre a necessidade da manutenção dessa força de trabalho, Antônio de Mello completou: Assistindo ás mães desvalidas da fortuna e assegurando-lhes a boa vinda dos filhos, são mais filhos que o Estado CREA para si; e carecendo de braços, que outras circumstancias alem do seu clima impedem de conseguir pela immigração, este ponto de vista deve ser encarado antes de qualquer outro. ‘E evidente que não podemos crear e organizar desde agora um estabelecimento, como outros mais ricos já possuem; mas é realizável e intelligente ampliar o que temos no Hospital Jovino Barreto, construindo um pavilhão especial, similhante ao de pensionistas, com a capacidade precisa para vinte ou trinta leitos, e dotando-o da apparelhagem necessária para o seu nobre fim. 559 O corpo da mulher também entrava no arquivo das razões sociotécnicas do Estado, pois ele era responsável por gerar a futura força de trabalho, a “matrix” da população, devendo este ponto de vista ser “encarado antes de qualquer outro”. Não eram, portanto, os sentimentos românticos que orientavam a prática política do Estado com relação às mulheres, ou um progresso no sentido da “humanização” crescente dos cuidados com a saúde dos cidadãos; houve, sim, um deslocamento ou deslizamento dos interesses desse Estado sobre o corpo, motivado pelo Capitalismo em mutação. O que estava em jogo não era um interesse provinciano localizado, mas o próprio desenvolvimento nacional, na contabilidade do qual a população se configurava como um fator indispensável. A questão da natalidade, central nesses debates envolvendo o problema populacional no início do século XX, era vista tanto pela medicina quanto 558 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da terceira sessão da décima legislatura em 1º de Novembro de 1920 pelo governador Antônio José de Mello e Souza. Natal: Typ. Commercial J. Pinto, 1920.p.17-18. 559 Ibid., p.18. 272 pela política como fundamental para a continuação da espécie e da sociedade. 560 Por isso, o télos de Antônio de Mello e Souza não se retringia a uma concepção particular, surgida exclusivamente em sua administração. Ela se torna um tropos que emerge em outros relatórios de governadores. Em 1924, por exemplo, José Augusto Bezerra de Medeiros insistiu na importância de se investir no corpo do cidadão como a chave do sucesso de um povo: Pertenço ao número dos que reputam necessidade fundamental da nossa terra o velar pela saúde do homem que a povôa, para dar-lhe o vigor physico de que carece para ser uma força propulsora do nosso progresso sob todos os seus aspectos. 561 E comentando o problema da sífilis no Estado, páginas adiante no relatório, ele suplementa: E’ meu pensamento dar, no decurso de minha administração, a maior amplitude aos serviços que entendem com a hygiene, a saúde e a assistência publicas. Tudo farei para vel-os ampliados, melhorados, certo, como estou, de que o mais valioso dos capitaes com que póde contar um povo é o capital homem, de cujo vigor physico e de cuja saúde moral dependem o progresso e a felicidade sociaes. 562 Domínio da visão econômica do Homem: sendo capital, deve receber investimentos que possam reproduzi- lo, agregando- lhe valor de mercado. No caso específico do corpo feminino, uma das primeiras providências aventadas fora a criação de um espaço para funcionar como maternidade, tal qual asseverou Antônio de Mello. Até 1916, os relatórios dos governadores não mencionam qualquer informação mais precisa sobre cuidados com as mulheres. A partir de 1917, começam a surgir nessas Mensagens informações sobre nascimentos de crianças e pedidos para criação de uma casa de maternidade. Neste último ano, o governador Ferreira Chaves, examinando os estudos “demographo-sanitarios” feitos pela IGHAP, comentou os índices de mortalidade no Estado e apontou uma possível solução: Do quadro representativo das cifras aqui mencionadas, organizado pela Repartição de Hygiene, verifica-se que as affecções do apparelho digestivo foram a causa mais frequente da lethalidade infantil nesta capital, affecções que se originam de factores diversos, entre os quaes a falta dos cuidados que devem ser prodigalizados á infância, e o esquecimento dos preceitos aconselhados pela hygiene infantil. (...) 560 DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011. p.144. 561 RIO GRANDE DO NORTE..., 1924, p.20. 562 Ibid., p.26. 273 Uma casa de maternidade para assistência á mães desprotegidas, e um estabelecimento de proteção á infância desvalida dariam, estou certo, nesse particular os melhores resultados.563 Embora houvesse no HCJB uma seção de maternidade, que se pode deduzir nos documentos pelo menos desde 1915 (eles falam em nascimentos de crianças, 24 neste ano), ela não dava conta das necessidades da população feminina. O pedido de Ferreira Chaves dirigia-se à construção de uma “casa de maternidade”, ou seja, um prédio particular para realizar os cuidados com as parturientes. Enquanto não obtinham respostas positivas quanto à construção desse espaço, os governadores insistiam na ampliação e melhoramentos da seção de maternidade do HCJB e das enfermar ias femininas. Assim, em 1921, Antônio de Mello enviou uma proposta de orçamento com verba especial para a ampliação da seção de maternidade. 564 Em 1923, o pedido era de verbas para iniciar a construção de um pavilhão de maternidade, 565 reiterado em 1924.566 Em 1926, os cuidados são estendidos para além de um espaço físico, propondo o médico Varela Santiago “A creação de um serviço especial de assistencia pre e post natal, o qual, sem grande dispêndio para o Estado, irá concorrer para diminuir cada vez mais a cifra da morbilidade e mortalidade infantis”567, devidamente instalada somente em 1930, no governo de Juvenal Lamartine.568 A preocupação com uma casa de maternidade para as mulheres parturientes extrapolava os círculos do Estado e ganhava incentivadores nas muitas festas filantrópicas realizadas para a construção do sonhado espaço. Em agosto de 1929, o jornal A República anunciava para 1º de setembro uma grande festa no Aero Club visando divulgar os interesses dos “circulos sociaes natalenses” na edificação de uma maternidade para o Estado. As senhoras responsáveis pelo evento se reuniram na residência do coronel Fernando Pedroza, dividindo-se em comissões para preparar a festividade, que contaria com muitas diversões: Será uma linda tarde, essa que reservará á utilíssima instituição. Preparam-se diversões interessantes, brincos para creanças, surpresas jocosas, prêmios custo aos [sic], leilão de quinquilharias, telegraphia sem fio e outras distrações elegantes. 569 563 RIO GRANDE DO NORTE..., 1917, p.8. 564 RIO GRANDE DO NORTE..., 1921, p.18. 565 RIO GRANDE DO NORTE..., 1923, p.36. 566 RIO GRANDE DO NORTE..., 1924, p.27. 567 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante a Assembléa Legislativa na terceira sessão da 14º Legislatura em 1º de Outubro de 1926 pelo Presidente José Augusto Bezerra de Medeiros, 1926, p.61. 568 RIO GRANDE DO NORTE..., 1930, p.78. 569 A REPÚBLICA. Maternidade de Natal: a festa que se realizará nestes dias, 9 ago. 1929. 274 Segundo os idealizadores do evento, a maternidade se destinava tão somente a receber parturientes e ministrar-lhes cuidados pré e pós-natal, mas a ensinar verdadeiros princípios de educação higiênica, civilidade e patriotismo: Dentre quantas instituições possuímos, nenhuma se nos afigura mais patriótica do que essa que se materializa na eugenização do nosso povo e na multiplicação das nossas forças, porque a Maternidade deixa de ser o logar commum do grande sacrifício, para se modelar numa escola, onde se aprende a puericultura sob todos aos seus aspectos, preparando a mulher para a regeneração social e gerações fortes para a felicidade da pátria. 570 O mesmo princípio eugenista que orientava a política do Estado com relação ao corpo do operário incluía também o corpo da mulher como questão estratégica, objeto de uma biopolítica. O terreno de atuação desse biopoder, como bem explicamos, era ilimitado e tendia a abranger todo o espectro social ao seu alcance. Seu modelo de controle se expandia no sentido familial. A maternidade e a primeira infância ainda não completavam o conjunto de seus objetos, sendo necessário estender seus cuidados à paternidade: Para proteger as creanças torna-se indispensável proteger os Paes. E a proteção dos paes consiste em defendel-os dos vícios e das moléstias contagiantes, educando-os hygienicamnete e a o mesmo tempo saneando o meio em que elles vivem pela erradicação de todas as entidades mórbidas, endêmicas e dysgenisantes, como sejam a syphilis, moléstias venéreas, paludismo, tuberculose, alcoolismo, verminoses, etc. 571 Como se pode notar, em torno da maternidade, o Estado montou uma rede de poder que englobava as figuras da criança e o do pai, formando uma tríade familial, nucleada pela mulher, fonte geradora dos corpos-máquina, ela mesma constituída agora em corpo-máquina da produção. Essa preocupação com o corpo da mulher tinha ligação também com as transformações processadas no mundo do trabalho, quando as mulheres começaram a participar em atividades profissionais no mercado, ainda que incipientemente. No início do século XX, o trabalho feminino ainda não era bem visto pelas famílias e pela sociedade. O ideário dominante era o do casamento, que garantiria para as mulheres ascensão social e capital simbólico. Após a Primeira Guerra Mundial, com a industrialização brasileira, as mulheres aparecem na imprensa ocupando cargos de professoras, datilógrafas, telefonistas, secretárias, operárias da indústria têxtil e 570 A REPÚBLICA. Maternidade de Natal, 17 ago. 1929. 571 RIO GRANDE DO NORTE..., 1929, p.65. 275 alimentícia, e enfermeiras. Em geral, suas ocupações profissionais se limitavam ao ensino, assistência social e atividades paramédicas, típicas do trabalho feminino. Outras conseguiam cargos de posição intermediária de nível médio, como quadro administrativo e técnico.572 Participação que se tornava mais visível nas várias associações, ligas e agremiações femininas que se formavam, além da luta árdua travada em torno do voto feminino. No Rio Grande do Norte, por exemplo, esse voto fora instituído pioneiramente no Estado através do artigo 77 da lei eleitoral de 1927. 573 Esse corpo-fábrica, estratégico na problemática da população, passava a receber atenção crescente também nos meios de comunicação de massa, principalmente nas propagandas comerciais veiculadas na imprensa escrita no começo do século XX. Em 1910, no jornal A República, o laboratório Daudt & Lagunilla, do Rio de Janeiro, oferecia o remédio “Saúde da Mulher”que curava “moléstias das senhoras”574: 572 ARIAL AYRES, Lilian Fernandes; AMORIM, Wellington; PORTO, Fernando; LUCHESI, Luciana Barizon. As enfermeiras visitadoras da Cruz Vermelha Brasileira e do Departamento Nacional de Saúde Pública do início do século XX. In: PORTO, Fernando; AMORIM, Wellingto n (Org.). História da enfermagem: identidade, profissionalização e símbolos, p.131. 573 A REPÚBLICA. O Rio Grande do Norte e o voto femin ino, 17 nov. 1927. 574 A REPÚBLICA. Bromil, nov. 1910. 276 Moléstias de mulheres? Quais? Em 28 de novembro de 1928, a fórmula dos granulados Hemocleine esclarecia: “[...] regras excessivas, escassas, retardadas ou difficeis. Colicas e catarro uterino. Corrimentos, etc, etc”. A Menstruação e as diferentes secreções uterinas constituíam profundos incômodos às mulheres da época, sendo alvo constante da publicidade: Em propaganda de 2 de maio de 1912, ainda no jornal A República, as preocupações com a saúde feminina se dirigiam para as manchas da pele, voltando-se para a questão da visibilidade do corpo, apelando para a aparência física da mulher. “Sardas-Pannos-Rugas-Espinhas” teriam seus dias contados com o uso de Anti- echymose Faral, produto que anunciava o casamento entre medicina e estética 575: 575 A REPÚBLICA. Anti-echymose Faral, 2 maio 1912. 277 O perfume, a delicadeza e a imagem imaculada se misturam na sinestesia de uma proposta de civilidade (o “Bom Gosto”) que a lógica do consumismo começava a impor ao público feminino. Impunha-se uma nova visão sobre o corpo da mulher, que não estava ligada à determinação hereditária, mas a uma questão de escolha e vontade, disciplina individual. Ser Bela, propagandeavam os fabricantes de beleza, não dependia mais da herança genética. Contudo, embora apontassem para uma emancipação do corpo feminino, essas atitudes perceptivas e comportamentais, de natureza estética, ainda conviviam com os valores e ideologias conservadores que definiam a feminilidade através do “corpo natural”, representado pela maternidade.576 Toda essa preocupação com o corpo da mulher, investido pelo Estado, pela publicidade e pelo discurso da medicina, ganharam semelhante relevância nas notas de memórias do médico Januário Cicco. Seus relatos e comentários sobre o corpo feminino traziam à tona os principais problemas de saúde que atingiam as mulheres na cidade do Natal, e permitem registrar suas percepções médico-sociais a respeito do corpo feminino no começo do século XX. Entre esses inúmeros casos tratados por ele, Januário revelou uma preocupação especial com o câncer que atingia grande número de mulheres que se internavam no HCJB: Entre os carcinomas do seio, contam-se no registro do mesmo Hospital 28 casos, uma dos quaes, três meses após a sua exerese seguida do esvasiamento axillar, deu uma metastase gastrica e morte rápida. O câncer do collo uterino, tão frequentemente observado na clínica de indigentes, orça, ainda no mesmo registro, em 68 casos, e num apenas pude fazer a respectiva amputação, cujo resultado não posso precisar, porque a doente obteve alta antes da cicatrização completa e nunca mais tive suas notícias. As demais morreram, e o estado de destruição do órgão e a cachexia contraindicavam qualquer intervenção. 577 O prognóstico era assustador: o carcinoma que atacava a região uterina era tão letal que de um total de 68 casos registrados, somente uma mulher acabou sobrevivendo, e ainda com a amputação do colo uterino! As outras 67 morreram definhando sem poderem contar com a intervenção cirúrgica, tamanha era a destruição do órgão. A letalidade da ação do câncer no corpo tornava quase impossível a agência do médico no caso, tal era o caráter devastador dessa doença: 576 VILHENA NOVAIS, Joana de. Beleza e feiura: corpo feminino e regulação social. In: DEL PRIORE, Mary; AMANTINO, Marcia (Org.). História do corpo no Brasil, p.492-493. 577 CICCO, Januário. Notas de um médico de província: ensaios de critica medico -social, p.225. 278 Estou bem lembrado de uma senhora que, vindo ao meu consultório se queixar de regras abundantes e prolongadas, levou ao seu marido a triste nova de que eu lhe diagnosticara um epithelioma do collo, aconselhando-lhe apenas a radiumtherapia. Recolheu-se a infeliz dama á Pró-Matre, no Rio, e de lá sahiu para morrer dias depois, tal foi a devastação que lhe fez o câncer. 578 Embora a maioria das mulheres acometidas de neoplasias fosse composta de indigentes, com afirmou Januário, a estatística não isentava as “damas” da doença, que tinham suas vidas ceifadas sem distinção. Na época, havia várias hipóteses para explicar a origem do câncer, indo das teses parasitológicas até as abordagens da degeneração celular. Contudo, a solução do problema continuava em aberto: “Não há argúcia deductiva que escolha o melhor caminho no dedalo desse labyrintho de hypotheses”579, afirmava Januário Cicco. Os conhecimentos médicos podiam no máximo apontar fatores de predisposição como traumatismos, distrofia, idade, natureza do tecido etc. 580 Nos casos envolvendo mulheres tratadas por Januário no HCJB, a maior parcela deles concentrava sua atenção na região do “útero”, zona sensível na “fabricação” de novos corpos-máquinas para o Estado. As operações realizadas nessa delicada região interna do corpo eram comuns no HCJB. Em 3 de julho de 1911, Januário Cicco operou com êxito uma doente de colpo-hysterectomia, fazendo uma lavagem do útero pela via vaginal581. Em 12 de agosto de 1927, os médicos Ernesto Fonseca e José Tavares realizaram uma importante intervenção cirúrgica de esterectomia vaginal numa indigente do HCJB, obtendo bom resultado. 582 Tais operações de histerectomia consistiam numa incisão através da vagina para a retirada do útero, podendo ser a extração tanto do colo do útero quanto do próprio corpo, e ainda incluindo, nos casos mais graves, a retirada das trompas e ovários. Normalmente a histerectomia era provocada por um câncer ou patologias anteriores, hemorragia pós-parto, infecção pélvica ou a prática indiscriminada de abortos. As fontes não nos permitem saber exatamente as causas das cirurgias de histerectomia praticadas no HCJB. Contudo, as consequências dessas intervenções na vida da mulher eram graves. Uma operação dessa natureza impossibilitava a mulher de ter filhos, o que não 578 Ibid., p.225-226. 579 Ibid., p.222. 580 Ibid. 581 A REPÚBLICA. Várias, 3 ju l. 1911. 582 A REPÚBLICA. Assistencia Hospitalar-Hospital Jovino Barreto, 23 ago. 1927. 279 era muito bem visto pelos eugenistas que apregoavam o crescimento populacional que acionava o gatilho da “seleção natural”, mecanismo responsável pela escolha dos mais “fortes”. Bem visto pelos eugenistas, mas uma fonte de tormentos para as mulheres. Pelo menos é assim que uma propaganda do medicamento Regulador Gesteira tratava essa área ginecológica. A lista de males advindos do útero transformavam essa região do corpo feminino num verdadeiro Inferno de Dante, e num paraíso para os hipocondríacos de plantão: Palpitações do Coração, Aperto e Agonia no Coração, Falta de Ar, Sufocações, Sensação de Aperto na Garganta, Cansaços, Falta de Sono, Falta de Apetite, Incommodos de Estomago, Arrotos Frequentes, Azia, Boca Amarga, Ventosidades na Barriga, Enjôos, Latejamento e Quentura na Cabeça, Peso na Cabeça, Pontadas e Dores de Cabeça, Dores no Peito, Dores nas Costas, Dores nas Cadeiras, Pontadas e Dores no Ventre, Tonturas, Tremuras, Excitações Nervosas, Escurecimentos da Vista, Desmaios, Zumbidos nos Ouvidos, Vertigens, Ataques Nervosos, Estremecimentos, Formigamentos Súbitos, Caimbras e Fraquezas das Pernas, Suores Frios ou Abundantes, Arrepios, Dormencias, Sensações de Calor em diferentes Partes do Corpo, Vontade de Chorar sem ter Motivos, Enfraquecimento da Memória, Moleza de Corpo, Falta de Animo para Fazer Qualquer Trabalho, Frio nos Pés e nas Mãos, Manchas na Pele, Certas Feridas, Certas Coceiras, Certas Tosses, ataques de Hemorróidas, etc., etc. Tudo isto pôde ser causado pelas Moléstias do Utero!!! 583 Nessa lista, o útero aparece como a causa única de todos os problemas femininos: A prova de tudo vem do Utero Doente é que com a Cura deste Orgão todos os outros males desaparecem e a Mulher sente-se outra, como que ressuscitada, alegre com a Vida e com o Mundo que lhe parecia durante a Molestia um Verdadeiro Inferno! 584 No mesmo anúncio, o uso do Regulador Gesteira era indicado para os males do útero em parceria com outra panaceia, chamada de Uterina. Esta atuaria mais diretamente na zona vaginal, controlando a saída de secreções e seus odores: é o único Remedio que cura Flores Brancas, os Corrimentos Antigos e Recentes das Senhoras, as Purgações e a Blenorragia da Mulher!! Só! Só! Só e Somente Uterina é que cura o Máu Cheiro e o Fétido dos Corrimentos e das Flores Brancas! 585 583 A REPÚBLICA. Que Inferno! Utero Doente! Que Soffrimentos Horriveis! Horriveis!!, 5 abr.1923. 584 Ibid. 585 Ibid. 280 Em outra publicidade voltada para as mulheres, a do Fluxo-Sedatina, estampada no jornal A República, a região uterina vê-se enredada numa imagística de natureza escatológica, que bem ressalta o paroxismo de um órgão estratégico para uma biopolítica do Estado ao mesmo tempo que lhe é imputado uma imagem tão aterradora, amedrontadora: “UTERO DOENTE/ faz da mulher um/ CADAVER VIVO”586. O corpo da mulher, sem os cuidados adequados com o útero gerador, ganhava contornos “vampirescos” da literatura de Abram Stocker: a figura heterotópica de uma morta-viva. Corpo ambíguo, da fluidez dos “corrimentos”, da inconstância dos humores, o corpo feminino ainda era concebido como algo a decifrar, escondido, oculto, profundo. O útero era a figura que catalisava este desejo de decifração e controle, que localizava espacialmente o primus movens, a sede, a causa primeira do modo de ser feminino. Essa centralidade estratégica conferida ao útero esteve bem presente na casuística do médico Januário Cicco. Em um de seus apontamentos, ele relatou o caso de uma mulher casada, de 27 anos de idade, que, após dar à luz a seu filho, passou a gozar de uma saúde frágil, sendo muito pálida e sofrendo de fortes hemorragias nos períodos da menstruação, perdendo muito sangue. A princípio, a situação não parecia denotar gravidade. Januário conversou com a paciente, obtendo da anamnese o seguinte histórico: [...] aos três anos soffrera de icterícia, contou que fora “môça” aos 12, casou aos 17, e onze meses depois teve o seu único filho, que nasceu forte e continua sadio. Disse ainda que no dia do supremo sacrifício, três horas depois do inicio do trabalho, sentaram-n’a na borda de uma cadeira, ao mesmo tempo que a curiosa, assentando-se no chão, a seus pés, “mammando” um cachimbo sarrento, logo foi agindo, rompendo o “saco”, e arrancando a creança, a placenta e o útero!... Por entre as dores que sentira, poude perceber que a malvada quebrava alguma coisa, que depois lhe disseram ter sido a placenta, que a maldita descollava, fazendo em seguida uma expressão violenta, tentando repor o órgão invertido e donde arrancara as “secundinas”. Referiu também que nessa hora perdeu a noção do logar, sentiu fugir-lhe a vida e o mundo rodava-lhe em torno, a hemorrhagia extenuou-a, e difficilmente conseguio fallar, mais tarde, para pedir “água, muita água”. Levou perdendo sangue cerca de vinte dias, tendo tido febre apenas na primeira semana [...]. 587 Feita a anamnese clássica, Januário examinou a paciente com a ajuda de mais dois colegas do HCJB e percebeu que se tratava de um caso de inversão total do utero causada pela tração do cordão umbilical promovida no partejamento pela tal 586 Ibid. 587 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.324-325. 281 “curiosa”, que não tracionou adequadamente o cordão sobre o fundo do útero, deixando a placenta ainda ligada a essa zona da região uterina. Da anamnese, agora devia-se proceder à inspeção para saber o real estado do útero: [...] Ao simples contacto do speculum, o endométrio sangrou, cujo aspecto vermelho-escuro e sujo de muco-pus denotava seria alteração tissular. Trazido o útero para o exterior, com a pinça própria de tracção, vimos precisamente o seu polo posterior formado pelo collo, cujo diâmetro parecia, á simples inspecção, seis vezes inferior ao globo uterino, assegurei ao marido da infeliz senhora que só um a intervenção sangrenta resolveria a situação, acreditando mesmo que o sacrifício do órgão seria condição essencial á vida da paciente. 588 O caso era gravíssimo. Januário e sua equipe indicaram a forte possibilidade de uma histerectomia, deixando a mulher infértil por toda a vida. Ironia: o útero que produzia e albergava a vida em seu nascedouro, agora tem de ser extirpado em benefício da vida da paciente. Mais do que a temática da extirpação uterina, o evento confere a Januário nova oportunidade de demonstrar suas habilidades como médico-cirurgião. Etapa por etapa, Januário oferece ao seu leitor uma aula sobre a atividade médica, sendo o útero exemplo didático de uma intervenção científica do esculápio. Feita a anamnese, a fase seguinte era a do diagnóstico físico, mediante a inspeção da região lesionada. Com o pequeno espelho, ele olha a cavidade uterina e com uma pinça de tração revolve cautelosamente o útero para o exterior, podendo observar a lesão realizada no colo. O diagnóstico, então, é dado: inversão total do útero, tendo como prognóstico a perda do órgão através de intervenção cirúrgica “sangrenta”. A descrição e a análise levadas a cabo funcionam como um manual para estudantes de Medicina. Semelhantemente ao corpo-máquina do operário, o corpo feminino é um molde para a constituição de uma Paideia. Nessa aula sobre o corpo ferido, Januário abre espaço para uma discussão teórica, apontando os autores e suas abordagens sobre o caso em análise, mostrando todo seu conhecimento sobre o vasto campo da obstetrícia, e revelando as ideias que norteariam sua intervenção posterior: Todavia iria praticar os conselhos de Pozzi, tentando uma redução á taxis, ainda porque no “Traité Médico-Chirurgical de Gynécologie”, de Labadie, Lagrave e Lagueu, há um caso de Audigé reduzido por processos compressivos, numa inversão de trinta annos. Começaria, pois, por pressão contínua e persistente, aconselhada ainda por Hofmeier, que, a seu ver, nunca falhou. O tamponamento com a gaze iodoformada, aconselhada por Pozzi, renovada de três em três dias, dá, segundo este mestre, resultados surprehendentes. 589 588 Ibid., p.326. 589 Ibid. 282 Nessa análise, Januário discute a possibilidade de evitar a extração do útero da paciente, buscando retirar o órgão parcialmente e reinseri- lo na posição correta. Esta perspectiva de intervenção estaria baseada na experiência do médico Audigé e sua técnica de compressão e na técnica do tamponamento com gaze de Pozzi. O debate teórico requeria posições contrárias, e Januário apresentou a postura defendida por Oliveira Mello, que pregava a histerectomia: Ora, é corrente hoje em gynecologia que as inversões agudas são de reducção faccil e efficaz; e a propósito li na “Revista de Gynecologia e d’Obstetrícia”, que se publica no Rio de Janeiro, no seu numero 8, de agosto de 1927, um estudo muito interessante do Doutor Oliveira Mello, dando varias observações colhidas na Maternidade das Laranjeiras e na Pró-Matre. Affirma aquelle illustre collega que as inversões, consoante vem observando nos estabelecimentos acima e o affirmavam Fernado Magalhães, o príncipe da Obstetrícia no Brasil, e outros especialistas, ainda que de reducção fácil, expõem á morte, por gangrena, ruptura do útero e colapso, por hemorrhagias; e commentando as inversões crhonicas, entende que so a histerctomia resolve as situações taes. Discorrendo sobre o momentoso assumpto, não se refere ao Doutor Oliveira Mello ás tentativas de reversão nas inversões crhonicas; e certamente conhece os estudos de Pozzi e a observação de Audigé. 590 O jogo de argumentos e contra-argumentos, característico do debate científico-acadêmico, reforçam nas descrições e análises de Januário o caráter didático do caso em estudo. Eles mostram que a intervenção cirúrgica deve ser precedida de um estudo sério das diversas posições existentes sobre o assunto, avaliação criteriosa das ações a serem realizadas. Dessa forma, Januário assume a posição do professor, ensinando para a audiência virtual como se deve proceder em casos de alta complexidade como o que ele analisa. A interrupção da descrição dos procedimentos cirúrgicos para o comentário analítico do útero doente desvitaliza o corpo enfermo, tiram dele o fluido vital que o animava enquanto corpo, transforma-o em “carne”, corpo orgânico, pulsional, repõe-no à Natureza. Mudo, sem sentimentos e emoções, o corpo feminino torna-se objeto da Paideia médica: O corpo construído pela medicina é objetivo, recheado apenas por um conjunto de órgãos e um amontoado de vísceras, cujo funcionamento mecânico se dá de forma impecável e quase infalível, o que, embora fascinante, perde em sua dimensão mais rica, a simbólica, que não é constituída de carne e osso, mas de sonhos, crenças, medos. 591 590 Ibid., p.326-327. 591 VILHENA NOVAIS, Joana de. Beleza e feiura: corpo feminino e regulação social. In: DEL PRIORE, Mary; AMANTINO, Márcia (Org.). Op cit., p.497. 283 Depois de apresentar os prós e os contras da intervenção cirúrgica, Januário decidiu por iniciar a operação na tentativa de realizar uma taxis, tal qual previra Audigé e Pozzi. A ideia era salvar o útero, preservando a possibilidade de a mulher engravidar. Se o procedimento não obtivesse êxito, a extirpação do órgão seria a única solução. Os procedimentos da cirurgia, então, foram reiniciados: [...] no dia seguinte, depois dos cuidados preliminares de desinfecção e assepsia, iniciei os primeiros curativos. Comecei por trazer para fóra o órgão invertido, com a pinça de tracção de Collin, fazendo tracção moderada e prudente sobre os ligamentos largos, como que para romper possíveis adherencias peritoneo-annexiaes; e em seguida repuz o órgão na cavidade que o alojava há nove annos, tamponando-a em seguida, fortemente, com gaze iodoformada. Esses mesmos cuidados foram renovados de três em três dias, deixando, porem, do 3º tratamento em deante, de proceder as tracções. E a medida que o útero se descongestionava, diminuindo sensivelmente de volume, eu via que cada vez elle insinuava sobre o anel, deixando prever uma reducção á taxis. 592 A técnica da taxis parecia trazer bons resultados, mas eram necessárias ainda algumas observações médicas, realizadas com auxílio de uma “conferência”: Quase sempre assistido pelos Drs. Ernesto Fonseca e Luis Antonio, cheguei a lhes affirmar que a solução deste caso seria semelhante a da observação de Audigé, isto é, seria remediado pela taxis, deante dos progressos do amollecimento do collo e flacidez do globo uterino. E quando uma manhã, applicando o speculum, observei o fundo da vagina, encontrei apenas o collo largamente aberto, dando passagem a um dreno de Mouchotte nº 8 e medindo o hysterometro 7 centimetros de profundidade. Chamei os medicos que acompanhavam esta observação; viram demoradamente, examinaram com cuidado e interesse, e não puderam conter exclamações de surpresa, feliz. Combinada a palpação com o toque rectal, no seu legitimo logar ficou o órgão integro, reduzido sem taxis, apenas pelo tamponamento serrado e bem orientado, evitando-se assim a hysterectomia preconizada, e provando mais uma vez a Natureza que o homem ainda não resolveu definitivamente nenhum problema vital. 593 Devemos prestar atenção aqui para o caráter experimental da intervenção médica. A este respeito, Januário era detentor de uma concepção bem particular acerca do trabalho do médico. Este era o primeiro caso de inversão total crônica do útero com que se deparava e em que a paciente permitisse o tratamento, ou seja, ele jamais havia operado uma doente com tal problema. Daí a preocupação em recorrer aos tratados ginecológicos para encontrar uma orientação de como proceder nesses casos singulares. 592 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.327-328. 593 Ibid., p.328. 284 Januário “arriscou” uma intervenção que era condenada pelos especialistas, optando pela taxis em lugar da histerectomia, revertendo o útero e pondo-o corretamente na cavidade que o alojava. Às vezes, o caráter experimental das cirurgias encontrava sua precariedade nos próprios conhecimentos extraídos dos cânones médicos: Certa vez fui acudir uma pobre mulher, que tiritava de frio, havia dias, de uma maleita continua, e que resistia a doses maciças de sulfato de quinina. Querendo agir melhor, mandei vir soro fisiológico, 40 centigrammas de chlorydrato neutro de quinina, numa empoula autoclavada. Injectei previamente meio miligramma de adrenalina, e, minutos depois, apanhei a veia mediana e injectei o específico; e antes de terminar, a meio da injecção, a despeito dos bellos resultados obtidos nas observações de tantos medicos, e firmado nos conselhos de diversos formulários, a desditosa mulher falleceu alli mesmo, antes que eu retirasse a agulha da veia, e foram inúteis todos os meus esforços para chamal-a á vida. 594 Ou seja: os médicos não podiam confiar cegamente nas lições da academia, tendo de extrair suas próprias lições na prática diária da medicina, em seus consultórios ou nos hospitais. O self-made man dos esculápios. No começo do século XX, o profissional de medicina recém-formado não saía da faculdade preparado para lidar com todas essas situações que o cotidiano lhe oferecia. Em suas notas, Januário constantemente expressava essa deficiência do ensino médico no Brasil, afirmando que muitos estudantes além de não se identificarem com a profissão ainda encontravam nas faculdades um ensino livresco, defasado. As duas variáveis juntas fariam o insucesso dos esculápios e a frequente desconfiança da população. Sua concepção sobre o médico e a medicina revelava, sempre com fina ironia, uma boa dose de pessimismo: [...] no estado actual de nossa civilização, o que resta ainda ao homem é fugir das molestias, pela Hygiene, para nunca ter necessidade dos medicos, que acertam por acaso e curam com as resistensias individuaes; não esquecendo os candidatos á medicina a celebre resposta de Sydenhann a um jovem clínico, que lhe perguntando “que livros aconselhava para se tornar um bom pratico”, respondeu “o Hippocrate Inglez”: meu amigo, leia Dom Quixote; eu o leio sempre”.595 Thomas Sydenhan (1624-1689) foi um dos precursores da epidemiologia na Inglaterra, que, baseado na metodologia de Francis Bacon (1561-1626), propunha a classificação das doenças em gênero e espécie, como as plantas, e traçar a história natural da enfermidade, acompanhando sua evolução. 596 A menção a este médico inglês 594 CICCO, J. Op cit., p.297. 595 Ibid., p.329. 596 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública, p.66. 285 tem a ver com as próprias leituras de Januário sobre a medicina social, outro de seus focos na atividade médica. Sydenhan, ao responder a rogativa de um aluno, chamava a atenção para a importância da prática médica em detrimento do ensino livresco. Para ele, a medicina era sempre uma grande surpresa, o lugar do imprevisível e da impotência humana diante da doença e da morte. As artes da cura mais se assemelhavam a uma comédia, em que o médico fazia o papel do Dom Quixote, vendo um mundo de “ilusões” guiado pelas páginas dos livros... O médico era esse romântico que sempre acreditava estar salvando o mundo, quando este lhe escapava. A autocrítica januariana desembocava no estímulo ao ditirambo da sapiência oriental: gnóti seautón, Nosce te ipsum. Ser médico de si mesmo! A ética januariana ganhava um tom libertário, partindo do ceticismo sobre mundo para a redescoberta de si... Seja seu próprio “mestre”, era o caminho que ele apontava. Caso contrário, toparás com um desses esculápios e suas promessas de cura... Se os médicos “acertam por acaso e curam com as resistensias individuaes”, então a cura está dentro de cada doente ou enfermo. Que fazer então? Adotar os preceitos de “Hygiene”, apostando na prevenção. A perspectiva januariana baseava-se na própria história das doenças ao longo do século XIX no Rio Grande do Norte. Segundo Cascudo, entre 1850 e 1896, o Estado fora acometido por cerca de 11 epidemias: Tabela 13- Epidemias no Rio Grande do Norte durante o século XIX ANO EPIDEMIAS 1850 Febre Amarela 1854 Febres intermitentes (paludismo) 1856 Cólera-morbo 1858 Vermes lombricais 1860 Bexigas 1872 Varíola 1882 Bexigas 1882 Febres miasmáticas 1883-1893 Bexigas, cataporas, Beribéri 1894-1900 Tuberculose 1896 Varíola Fonte: FERREIRA, A. 2008, p.50. Tais epidemias, que ceifavam centenas ou milhares de vidas, não encontravam na Medicina resposta imediata, continuando sua sina de destruição. As altas taxas de mortalidade somavam-se à impotência do conhecimento médico sobre 286 grande parte das doenças que atacavam a população. Por isto, Januário Cicco insistia na prevenção com base nos preceitos da Hygiene como melhor forma de lidar com as doenças, atuando antes de elas se manifestarem. Em 28 de março de 1921, o governador Antônio de Souza lançou o Serviço de Profilaxia da Sífilis e Moléstias Venéreas, abrindo inicialmente um posto no HCJB e outro no Batalhão de Segurança. O objetivo era cuidar dos enfermos e investir na prevenção da doença. A iniciativa fora inclusive elogiada pelo Office Internacional D’Hygiène Publique, órgão que congregava cerca de 43 países.597 Esse esforço ressaltado por Januário se dava entre outras coisas porque a medicina da época desconhecia a etiopatogenia da sífilis, cuja terapêutica demandava muito tempo e capital, sendo bastante onerosa para o Estado, e sem a certeza do restabelecimento ou cura. Ainda se debruçando sobre o corpo feminino, Januário contou um interessante caso: Foi ao Posto do Hospital “Jovino Barreto” uma senhora de 62 annos de edade, casada, mãe de muitos filhos e apresentando na commissura labial esquerda um cancro duro, leucoplasias na bocca e garganta, bem como syphilides papulo-maculosas na face, thorax e braços. Contando sua história disse que havia dois meses lhe apparecera aquella ferida no “canto da bocca” e havia poucos dias encheu-se-lhe o corpo daquellas manchas, a ponto de não poder comer nem dormir, taes as dores que sentia. Interrogada sobre a origem da sua moléstia, contou ainda que tratava de um filho, que ficára em casa entrevado e cheio também daquella “feridagem”, acreditando que apanhara tudo aquillo, porque costumava fumar o resto do cigarro que o filho deixava. Dessa anamnese, vê-se que um núcleo familiar inteiro era portador da sífilis, e no caso da mulher, o prognóstico de Januário era desalentador: A medicação arsenobenozoica fez o milagre da cicatrização rápida das lesões da pelle, e a pobre senhora voltou ao lar e ao trabalho, certa de estar curada, e sem saber que o terciarismo virá mais tarde terminar os seus dias... 598 A popularidade da sífilis levou à produção de manuais de venereologia. Estudava-se o desdobramento da doença nos rins, no fígado e no sistema nervoso, 597 CICCO, J. Op. cit., p.105. 598 Ibid., p.116. 287 costumando-se usar de forma abusiva o mercúrio nas feridas fétidas. Em 1910, o químico alemão Paul Ehrlich (1854-1915) sintetizou os compostos arsenicais 606 e 914, que passaram a ser utilizados contra o Treponema de Fritz Schaudinn.599 Os sintomas da sífilis primária eram muito difíceis de se reconhecer nas gestantes, e acreditava-se que o sêmen do primeiro parceiro, infectado, ficava impregnado na mulher, sendo transmitido para os segundos e terceiros filhos, que daí recebiam a doença. Por isto, normalmente a moral social impunha severa responsabilidade aos homens, considerados culpados pela proliferação da doença.600 A crença na hereditariedade da sífilis não era mera crendice popular. Obtinha seus fundamentos na observação dos casos de crianças que apresentavam sintomas diversos próprios que anunciavam a presença da morbidade sifilítica. Em muitas ocasiões, a doença encontrava-se encoberta sob a aparência de uma úlcera, que rapidamente atacava os tecidos moles e os ossos. Em seus apontamentos, Januário registrou um caso dessa natureza, envolvendo uma criança no HCJB. O drama da situação estava na decisão que ele teria de tomar, ao sugerir a amputação da perna do infante: Lembro-me de um caso muito interessante, passado há alguns annos, de uma ulcera que destruiu a tíbia, da sua extremidade inferior ao terço superior, cuja circumvisinhança fora invadida por um processo de suppuração fétida e tão propagado a todo membro que lembrei a amputação da perna, como medida de defesa á seu portador. O pae da creança negou permissão a qualquer intervenção cirúrgica, mesmo a raspagem; e nada tendo a fazer, deixei o doentinho com uma medicação mercurial e cuidados tópicos, e nunca mais tive noticias do caso. Annos depois, recebi no meu consultório um rapaz robusto, corado, já casado, vindo consultar-me sobre incômodos gástricos; e contou-me que fora elle o doente de quem eu quis amputar a perna, por necrose da tíbia, narrando, então que o osso cahira, largando-se “das suas amarras”, e vivendo agora com o peroneo, sem claudicar, nem sentir qualquer differença na marcha. Examinei-o, de facto, a perna era muito mais fina do que a outra e sensivelmente arqueada para fóra. 601 A insuficiência do conhecimento médico de que falava Januário não se restringia somente a doenças mais complexas como a sífilis. O próprio funcionamento de determinados órgãos era um verdadeiro mistério para a Medicina. A glândula hepática era um deles. Januário exemplificou os caminhos sinuosos da semiologia 599 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública, p.78. 600 DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil, p.97 601 CICCO, Januário. Notas de um medico de província: ensaios de critica medico -social, p.251. 288 hepática da época, que não permitia o diagnóstico preciso somente pela palpação do médico. Os únicos recursos à disposição eram indiretos, se limitavam à consulta da urina e do trabalho digestivo. As dificuldades enfrentadas podem ser conferidas no caso de uma sertaneja casada que dera entrada no HCJB. Ela não possuía antecedentes de problemas na glândula hepática nem qualquer tipo de intoxicação intestinal. Ainda assim, tudo levava a crer tratar-se de alguma disfunção hepática: O emmagrecimento da hospitalizada, contrastando com um ventre enorme e apparencia de relativa saúde, por sua vivacidade e cor rósea das faces, davam nenhuma ideia de cirrhose, tanto mais quanto o volume do abdômen excedera a todos os limites até então por nós conhecidos, e de tal modo que também a face posterior do tronco deixou-se distender pelo liquido que se collectara no peritoneo, durante nove annos, sem que ninguém minorasse o peso, nem os soffrimentos da infeliz senhora. Fez-se a paracenthese, e quarenta litros de um liquido claro, espumoso, foram retiradas de uma assentada, sem que a paciente mudasse de attitude nem acusasse o menor incommodo. Procedido o exame da cavidade abdominal, o baço occupava o seu logar anatômico, o fígado mantinha os seus limites normaes; a urina não revelou albumina; os órgãos genitaes nada accusavam; o coração tinha o seu rythmo normal, e apezar daquelle volume de liquido tomando todos os logares distensíveis, a ponta batia no quarto espaço, para dentro da linha mamillar. 602 Depois de todos os exames feitos no corpo da paciente, para além da produção excessiva de um líquido espumoso, nenhuma observação apontava para o sofrimento do fígado, embora se notasse sua participação no processo mórbido. Mais exames foram então realizados, porém a resposta do enigma parecia teimar em não se apresentar: Não se fez exame do liquido ascitico. Quinze dias depois, nova puncção tirou 24 litros de liquido, da mesma cor do da primeira, e seis dias mais tarde a doente pediu alta, por não querer ser mais “furada”. E a observada, que se prestou a todos os exames e tratamento, voltou para o seu lar soffrendo do mesmo mal e deixando os medicos que a trataram ainda mais ignorantes. E’ facto: não havia icterícia, o fígado occupava seus limites normaes, não se tratava de tuberculose, nem de syphilis hepática; falharam os signaes de câncer, de degeneração amyloide, cysto, etc., etc. Nada ficou mais apurado do que a nossa ignorância. 603 “Ignorância” das causas do processo mórbido que se tornava patente nas 602 CICCO, J. Op. cit., p.190-191. 603 Ibid., p.191. 289 estatísticas do obituário geral fornecidas pelos relatórios dos governadores. No relatório de 1924, coletado entre 1º de outubro de 1923 e 30 de junho do ano seguinte, foram apontadas 110 mortes de “doenças ignoradas ou mal definidas” dentro do universo de 903 descensos, ficando atrás somente das 302 causadas por afecções do aparelho digestório. Resultado semelhante fora reproduzido na estatística de 1925, na qual, das 789 mortes registradas no HCJB, entre 1º de julho de 1924 e 30 de julho de 1925, 67 foram denominadas de “doenças ignoradas ou mal definidas”, número que secundava as 267 mortes provocadas pelas campeãs “afecções do aparelho digestivo”.604 Decididamente, o pessimismo januariano acerca da Medicina e seus esculápios parecia nutrir-se de boa alimentação fornecida pela estatística demográfico-sanitária do Estado. Esse discurso crítico dirigido ao campo da saúde pública e da medicina social guarda sua riqueza não apenas como fonte para a compreensão da dimensão coletiva das políticas de saúde pública empreendidas no começo do século XX. Operários-máquinas, mulheres-maternidade e crianças-trabalhadores-potência, vistos como força de trabalho e conectados numa abstrata tríade familial, apresentavam-se como objeto de interesse e intervenção do Estado moderno, configurando uma nova relação do aparelho estatal com a “população”, entendida como o conjunto dos seres vivos com traços biológicos e patológicos específicos, naquilo que Michel Foucault convencionou chamar em seus escritos de biopolítica. O corpo dos cidadãos transformava-se agora em realidade objetal estratégica para o Estado, que buscava criar instrumentos de controle sobre esses corpos; governar tanto os indivíduos por meio de uma série de técnicas disciplinares quanto os próprios seres vivos, ocupando-se das temáticas da higiene, gestão da saúde, alimentação, sexualidade, etc., convertendo-as em matéria de investimento político.605 Contudo, além dessa perspectiva da governamentalidade que emerge nas notas de Januário Cicco, há espaço também para um outro importante viéis, concomitante ao tema do biopoder, auxiliando a entender a prática médica concreta: estamos falando da ética médica. Não se trata aqui daquela ética pensada tão-somente nos termos da combinação código/comportamento, reflexionando-se sobre o maior ou o menor grau de ajustamento do sujeito moral em relação a uma dada moral. Januário 604 RIO GRANDE DO NORTE..., 1920, p.29-30. 605 REVEL, Judith. Dicionário Foucault, p.24. 290 Cicco construía-se enquanto sujeito ético doando partes de si mesmo na sua conduta como médico. Para além de um código e de uma moralidade de comportamento, havia ainda uma substância ética a compor o quadro. Ele falava da ética social moldando-se a si mesmo enquanto médico, falava dos outros para falar de si mesmo, multiplicando-se infinitamente nos incontáveis espelhos do seu Jardim de Alice. Ao discutir as relações travadas, no plano horizontal, entre médicos e, no plano vertical, entre médico e paciente, ele iniciava uma busca particular por constituir-se como sujeito de suas ações, esculpir-se como agente moral singular, “mestre” de si mesmo. Januário Cicco se fez como o guardião da “tradição”, da ética médica ágrafa, conservadora, que guiava o comportamento dos esculápios na profissão, tomando a satisfação íntima de servir o outro sem servir-se dele como a substância de seu agir. Ele se apresentava como o professor e mestre da sua arte, cirurgião-esteta do corpo doente. Suas intervenções cirúrgicas no corpo ferido seguiam a precisão científica do bisturí sem abdicar do cinzel modelador do artista. Assim, Januário alçava-se ao posto de “mestre de si”, ensinando o caminho que as faculdades, defasadas no ensino, não mostravam. Com seu pessimismo em relação à medicina, sugeria o “cuidado de si” (epiméleia heautou) como proposta, indicando que cada indivíduo deveria zelar pela própria vida, ser médico de si mesmo: uma hermenêutica do sujeito. Na sua prática hospitalar, concluía por uma Natureza ainda misteriosa, mas que, em última instância, encarregava-se da cura. Medicos probant, Natura curat... O corpo oferecia respostas desconhecidas e inesperadas, aliás, sua própria massa/volume ainda não fora suficientemente decifrada. Contudo, funcionava como um mostruário de exempla, legando oportunidades de aprendizado. Januário fez dele uma Paideia, recobrindo-o dos signos médicos, colando as palavras às coisas para dizer outridades além do visível da epiderme e da profundidade orgânica. Para Januário Cicco, a verdade só poderia ser alcançada mediante a aplicação das regras ou leis internas do conhecimento, posição típica da “espiritualidade”606 moderna, do que Foucault chamou 606 Espiritualidade, segundo Foucault, era compreendida como “o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como as purificações, as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc., que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade”. In: FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p.15. 291 de “momento cartesiano”607. Daí a crença nas lições da Higiene, na prevenção, na antecipação. Instrução e Higiene impediriam a degeneração da espécie, promoveriam a construção de um tipo superior, o Além-Homem nietscheniano, o Zaratustra, Über Munch racial. 607 Foucault utilizava esta expressão, assumidamente imprecisa, para designar o momento na história da filosofia em que o preceito do “cuidado de si” fora esquecido ou abandonado, sobrelevando -se o gnôthi seautón socrático. Consultar: FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). 3ª ed. São Paulo: WMF Mart ins Fontes, 2010. 292 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos, a assistência médico-hospitalar no Rio Grande do Norte deu seus primeiros passos somente na segunda metade do século XIX. Por volta de 1850, uma devastadora epidemia de cólera atingiu as províncias do nordeste brasileiro, fazendo grande número de vítimas entre a população. Nessa onda epidêmica, a província do Rio Grande do Norte também sofreu as consequências do cólera-morbus, que dizimou cerca de 2563 vidas.608Como legado dessa mortandade, o presidente Bernardo Pereira Passos mandou construir às pressas o Hosp ital de Caridade, núcleo de nossa primitiva experiência hospitalocêntrica. No mesmo conjunto de medidas de “saúde pública”, autorizou a construção do Lazareto da Piedade (1855), destinado aos acometidos pela doença da lepra, e do Cemitério do Alecrim (1856). Durante quase meio século, este foi o único hospital da província. Sua fundação guardava a peculiaridade de não ter sido obra de uma irmandade ou ordem terceira, como era comum na época. No Rio de Janeiro do século XIX, por exemplo, dos 15 estabelecimentos hospitalares existentes 9 estavam ligados a irmãos confessionais, incluindo o poderoso complexo da Santa Casa de Misericórdia (Hospício Pedro II, Hospício São João Baptista da Lagoa, Hospício de Nossa Senhora da Saúde, Hospício de Nossa Senhora do Socorro e o Hospital de Nossa Senhora das Dores).609 A maioria dos estabelecimentos hospitalares vinculava-se à iniciativa das Santas Casas ou Misericórdia, existentes aqui desde o século XVI. A administração do HC, todavia, era da completa responsabilidade do Estado, como bem demonstrava seu quadro funcional. Não que as autoridades públicas houvessem negligenciado o prestimoso auxílio da Misericórdia, mas os recursos financeiros da província pareciam não permitir a contratação dos serviços dessa instituição. Pelo menos é o que está registrado nos relatórios produzidos pelos presidentes da província do Rio Grande do Norte. O Hospital de Caridade, como os demais espalhados pelo país, não fora pensado para responder a uma fórmula terapêutica ou patológica, isto é, com a intenção de curar os doentes. Seu objetivo era assistir a população pobre em geral, ministrando- 608 CASCUDO, Câmara. História da cidade do Natal. 4ª ed. Natal: EDUFRN, 2010. p.329. 609 SANGLARD, Gisele. Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guinle, a saúde e a ciência no Rio de janeiro, 1920-1940. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2008. p.137-138. 293 lhe cuidados básicos, fornecendo alimentação e abrigo. Trabalho de assistência social equacionado pela nova relação entre Estado e população: a questão estratégica da conservação e reprodução da mão-de-obra. Tratava-se de uma forma de controle da “população” pela entidade política do Estado, que visava, pela disciplinarização dos corpos, aumentar a produtividade dos homens. Biopolítica e governamentalidade, resumiria Michel Foucault. Do predomínio de sua função caritativo-assistencial em detrimento da terapêutico-patológica, resultavam as críticas desfechadas ao HC no século XIX, que vinham nas denominações de “antecâmara da morte”, “hospital-depósito” entre outros títulos desnobilitantes. A falta de leitos e a ausência de higiene constituíam objeto de constantes reclamações das autoridades políticas em seus relatórios anuais, situação que teve seu auge com o fechamento do nosocômio em 1906, por ordem do governador Tavares de Lira, em pleno período republicano. E aqui começou a nossa história... O Estado ficou três anos sem um nosocômio, havendo apenas uma enfermaria funcionando no prédio do antigo HC, chamada de São Vicente de Paulo, administrada por Sinfrônio Barreto. Após insistências do médico Januário Cicco, o governador Alberto Maranhão determinou a construção de um novo hospital, agora localizado no alto do Monte Petrópolis, nas proximidades da praia de Areia Preta. Esta segunda experiência hospitalocêntrica já começava com uma importante diferença em relação ao antigo HC: sua localização geográfica. Situada no Monte Petrópolis, região altaneira da cidade, o Hospital de Caridade Juvino Barreto fora edificado segundo os moldes do paradigma higienista dominante na época, levando em consideração na construção do nosocômio hospitalar as diretrizes da difundida topografia médica. A proximidade da praia proprocionaria aos doentes o contato com os ares benfazejos do litoral, afastando os “miasmas deletérios” causadores das doenças, conforme propalava a teoria vigente do contagionismo. Respondendo, portanto, a critérios médicos, a localização espacial do HCJB anunciava sua finalidade terapêutica: o escopo agora era curar os doentes. Obviamente, isto não significou uma mudança radical com as características dos hospitais brasileiros do período, ingressando-se automaticamente na era da moderna hospitalização, com a presença de aparelhagem científica e o domínio técnico do hospital sendo levado a cabo por médicos. 294 Ainda no capítulo 1, acompanhamos esse processo, mostrando que a administração do HCJB estava nas mãos da Ordem das Filhas de Santana, vindas de Recife e contratadas pelo Estado em 1909. A elas, subordinavam-se os médicos do hospital e os demais funcionários. Ciência e Religião ainda teriam de conviver por anos a fio no estabelecimento. Sob esse aspecto, o nascente HCJB emergia como um espaço de transição, um lugar situado entre a espacialidade médica pré-moderna, de função predominantemente caritativa, de repouso para o corpo e cuidados para a alma, administrado normalmente por irmandades ou ordens terceiras, e a espacialidade moderna, de cunho terapêutico, regida pela ação médica e voltada para a cura das doenças. Heterotopia do espaço de cura... Esse espaço de transição estava presente nas próprias teorias médicas que justificavam a localização do hospital: de um lado, a pseudo-teoria dos miasmas, de ancestralidade medieval; de outro, a moderna teoria pasteurina da microbiótica, que se baseava na existência de microorganismos reais, observáveis em laboratório, causadores de grande número de moléstias conhecidas. A “confusão” podia ser percebida nos escritos do médico Januário Cicco, que incentivou a construção do HCJB. Mesmo tendo conhecimento da Microbiologia, que estudou na Faculdade de Medicina da Bahia, suas ideias não descartavam, do ponto de vista da medicina social, a velha teoria dos miasmas. Seu projeto Como higienizar Natal, publicado em 1920, fornecia bom exemplo dessa interface teórica. Além das teorias médicas que tinham no espaço e no clima fatores essenciais na luta contra as doenças, enfeixadas no discurso higienista sobre a salubridade do meio urbano, outro importante aspecto da localização geográfica do HCJB mereceu destaque: sua edificação se deu em plena área urbana de Natal. Em 30 de dezembro de 1901, conforme a Resolução Municipal Nº 15, a administração de Joaquim Manuel criou a Cidade Nova que compreendia os bairros de Tirol e Petrópolis, um área de 164,85ha, dividido em 48 quarteirões. Entre 1901 e 1904, o agrimensor italiano Antônio Polidrelli trabalhou na expansão das largas avenidas do Master Plan, que dera origem aos novos bairros de Natal. Tratava-se de uma zona de franca expansão imobiliária, construída para albergar a elite da cidade. E o hospital fora levantado exatamente nesta área nobre, em parte da antiga propriedade do Sítio do Jacob, onde Alberto Maranhão construiu uma casa de veraneio, vendida a Aureliano Chaves e depois readquirida pelo Estado para a edificação do HCJB. 295 Natal expandia-se cada vez mais para o norte. Em 1908, pela Resolução Nº 115 da Intendencia Municipal, a praia de Areia Preta fora escolhida oficialmente para os banhos de mar. Tratava-se de uma longa faixa de terra que fechava o perímetro da cidade pelo sul até a subida do morro do Moxila, sendo praia de pescadores pelo menos até 1920, quando os ranchos começaram a ser vendidos e outras casas construídas para passar o verão. Em 1915, os bondes elétricos já cumpriam essa rota da Ribeira à praia de Areia Preta, integrando a Cidade Alta ao bairro da Ribeira. Diferentemente da política isolacionista que costumava dispor o espaço do hospital fora dos núcleos urbanos, distante de seus habitantes, agora o HCJB fora planejado para situar-se dentro da urbe, próximo da população. Era o nosso primeiro ‘hospital urbano’. Essa urbanidade do HCJB tornava-se possível graças às novas teorias da transmissibilidade das doenças, que solucionavam os problemas de contágio e infecção nos hospitais através dos procedimentos de assepsia, higiene e do trabalho eficaz da enfermagem. O hospital passava, então, a ser encarado como ‘equipamento urbano’. ‘Hospital urbano’ e ‘medicalizado’, portanto, são características que faziam do HCJB uma espacialidade médica singular no Rio Grande do Norte das primeiras décadas do século XX. Sua integração ao meio urbano foi realizada também pela arquitetura escolhida para o hospital. O estilo eclético que foi utilizado, com seus frontões, frisos, arcos e colunas falsas, aproximava o nosocômio da rua, do espaço externo. A construção de uma pequena praça ajardinada no interior do HCJB completava esse movimento de integração urbana. O hospital não mais se escondia da população atrás de seus muros ou paredes, localizado distante das aglomerações urbanas. Ele agora era chamado a participar do movimento de expansão da cidade, dando sua cota de contribuição ao forjar uma população saudável, apta ao trabalho na cidade. No alto do Monte Petrópolis, sua vizibilidade era máxima. Ser vista e também dita... O jornal A República de 13 de setembro de 1909, dia seguinte à inauguração do HCJB, dedicou longa matéria ao evento, relatado pelo articulista Montano Emerenciano. Nessa matéria, o hospital era apresentado com características de um ambiente familiar, estratégia discursiva que conectava o nosocômio e as representações de natureza familial à administração da família Albuquerque Maranhão, que dominou a política do Estado por muitos anos. 296 Com Emerenciano, iniciamos nosso segundo capítulo, que se dedicou a analisar o espaço interno do HCJB, sua divisão e os critérios de classificação utilizados na repartição espacial. Acompanhamos, como estratégia expositiva, o caminho percorrido pelo articulista do jornal no dia da inauguração, decompondo o espaço interior do HCJB em distintas partes, buscando entendê- las a partir de uma lógica imagético-discursiva, tomando como referência fundamental o arsenal teórico de Michel Foucault, particularmente aquele proveniente de sua fase genealógica, iniciada a partir dos anos 1970, preocupado essencialmente com o fenômeno do poder. A construção do HCJB como ‘lugar familial’ pode ser apreendida considerando o conjunto de quatro pistas: a matéria do jornal A República, a casa de veraneio de Alberto Maranhão, a concepção do médico de família, e a própria arquitetura, com destaque para a análise da praça ajardinada do hospital. No estudo desses elementos de composição dos enunciados sobre o hospital, a imagem da família tornou-se central, unificando os diferentes materiais. Construiu-se, então, aquilo que chamamos de ‘dispositivo familial’, que buscava aproximar o espaço hospitalar do espaço familiar, criando uma imagem positiva do hospital. Era preciso convencer a população de que esta espacialidade médica era o lugar adequado ao tratamento das doenças; de que o médico, com seu jaleco branco e impecavelmente limpo, era o profissional que deveria cuidar da saúde das pessoas, e não as rezadeiras, benzedeiras e parteiras da medicina milenarmente popular. A poderosa imagem da família, então, era a alternativa mobilizada para conseguir esse intento. Esclarecido o dispositivo familial, voltamos nossa atenção para o espaço interno propriamente. A divisão do espaço hospitalar parecia à primeira vista confusa, tomando como critérios diferentes aspectos: sexo, doença, renda e função. Essa mescla de princípios de repartição espacial apontava, como vimos, para as tensões e diferenças que marcaram a própria construção do hospital: médicos, irmãs de Santana, funcionários da Inspetoria de Higiene Pública e pacientes compunham o cenário dos sujeitos que conviviam no mesmo estabelecimento nosocomial, travando relações de força, promovendo investimentos políticos na espacialidade médica. O HCJB devia ser encarado como espaço de dispersão de forças e não como uma unidade homogênea de interesses. Não havia um hospital monolítico, definido em seus contornos, mas nele realizava-se um exercício de construção permanente, tornando-se um espaço em 297 disputa, atravessado por distintos interesses, consoante os sujeitos envolvidos nas relações de força. A genealogia dessa dispersão de forças espressava-se na disposição dos espaços internos. A posição da capela, por exemplo, situada logo na entrada, fazia referência ao passado da instituição hospitalar, quando as irmandades ou ordens terceiras estavam à frente do empreendimento nosocomial. As Filhas de Santana demarcavam, assim, território dentro do hospital. No gabinete médico ou Secretaria, a posição dos quadros com personagens religiosos e autoridades políticas do Estado indiciava o embate pelo espaço entre as irmãs e os médicos, entre o modelo caritativo e o modelo terapêutico de assistência. Tais diferenças não eram necessariamente excludentes, mas se cruzavam em modalidades diversas com num jogo, em que o diagrama de forças comportava também alianças. Na análise do espaço capelar, observamos que a expansão dos espaços nosocomiais pelo Estado sempre se dava segundo o modelo binário capela-espaço médico. Ou seja: o aparente conflito entre as perspectivas da Ciência médica e da Religião cedia lugar para um modelo de crescimento e expansão em que as duas forças se completavam. De modo geral, a arquitetura recebeu seu motivo da estrutura pavilhonar de matriz francesa do século XIX. O pavilhão era um espaço longo, dividido em enfermarias, salas e leitos. A adoção do modelo pavilhonar ligava-se às teses contagionistas que viam no isolamento dos doentes o melhor tratamento: separação dos serviços e aeração dos pavilhões. Essa disposição espacial baseava-se nos argumentos do paradigma higienista, que defendia a doença como resultado da ação do meio ambiente. Para evitar o contágio, isolava-se o paciente do restante da população. No caso do HCJB, a arquitetura teve como modelo os hospitais pernambucanos da Santa Casa do Recife, referências provavelmente trazidas de lá por Henrique Cândido de Medeiros, um dos responsáveis pela construção do Hospital de Caridade Juvino Barreto. Tal modelo pavilhonar cumpria, para além da finalidade médica, importante função política: o controle e disciplinarização dos corpos. O hospital como máquina de produção de saúde funcionava segundo princípios de exclusão, segregação e separação. Cada doente ocupava um lugar determinado na enfermaria, uma sala, um leito. Essa localização funcional permitia ao médico encontrar os pacientes e vigiá- los. Todas as atividades do nosocômio tinham o seu devido registro: papeletas na cabeceira do leito 298 dos doentes e os Livros do Movimento Hospitalar são exemplos desse registro médico permanente. Os doentes, portanto, eram submetidos ao isolamento e controle constante pela equipe médica do hospital, configurando este espaço de cura uma ‘tecnologia política moderna’. Contudo, este ‘espaço disciplinar’, como o denominava Foucault, apresentou suas especificidades na cidade do Natal. O poder de intervenção conferido aos esculápios não podia ser exagerado. Ao longo do século XIX, a cidade contava com poucos médicos: em 1888, eram apenas 15 para toda a província do Rio Grande do Norte. Até 1915, o HCJB tinha no seu quadro funcional apenas um médico diplomado, o Doutor Januário Cicco, recebendo somente neste ano mais um colega de profissão, o Doutor Otávio Varella. Os primeiros médicos aprovados em concurso apareceram na década de 1920, enquanto uma associação que os representasse só veio a existir em 1931, ano de fundação da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio Grande do Norte. Como se pode perceber, embora a documentação oficial seja prolífica no registro de regras de disciplina dos espaços sob a tutela médica, os esculápios ainda não formavam uma classe médica coesa com atuação definida sobre o corpo social. Indubitavelmente, o HCJB era uma prática de encarceramento, técnica de isolamento e vigilância, moldando o comportamento dos indivíduos. Todavia, encontrava limitações para o exercício pleno do poder disciplinar, tal como o teorizou Foucault. À luz das fontes disponíveis, preferimos afirmar que no HCJB atuava um ‘poder proto-disciplinar’, perceptível no esquadrinhamento do espaço hospitalar e a distribuição dos indivíduos nele, baseado em princípios de encarceramento e exclusão, plasmado por meio de um permanente conflito pela posse e significação do espaço hospitalar. O HCJB, como já comentamos, não pode ser pensado como um a priori, uma essência transistórica, mas um espaço em permanente mudança, em construção, um eterno devir, devendo ser analisado segundo determinadas condições históricas constituintes. Não havia, assim, o HCJB ad eternum, mas o HCJB para determinados sujeitos, em determinada temporalidade, segundo a divisão espacial interna considerada. Nossas reflexões sobre as relações entre “espaço” e “medicina” tomaram como ponto de partida, sem nelas se ancorar por completo, a direção das primeiras aproximações teóricas foucaultianas realizadas sobre o prob lema do espaço, ainda na década de 1960, encarado por ele nas análises sobre as diferentes modalidades 299 encarceramento, como o asilo, o hospital e a prisão. Seu pensamento articulava-se segundo os pares binários do interior/exterior, inclusão/exclusão, valorizando a capacidade coercitiva, limitante e disciplinadora das espacialidades. Essa perspectiva era acompanhada por uma série de discussões sobre a organização do espaço dos saberes, considerado por Foucault como idêntico à dimensão espacial do mundo material, perceptível nas hierarquizações, distribuições e delimitações, procedimentos de afastamento semelhantes aos papéis exercidos por paredes e cercas. 610 Assim concebido, o espaço não possui uma dimensão autônoma, essencia l, transistórica ou apriorística. Não pode ser encarado como mera materialidade, que se dá por inteira ao aparelho perceptivo, desnuda ao olhar perscrutador, total ao conhecimento. Ele se constrói sob a convergência de dispositivos de saber e poder, que o conferem vizibilidade e dizibilidade. Foucault ainda produziu duas séries de análises sobre o espaço, que destoavam das reflexões iniciais sobre o espaço associado ao poder, à distribuição de categorias e ao distanciamento que permitia à norma designar e dominar o “outro”: a primeira na década de 1970, inspirada nas leituras de Bataille e Blanchot, que teorizava a temática do espaço como resistência e transgressão, pensado enquanto “simulacro”, “bifurcação” e “metamorfose”, articulados nas figuras do “limite” e do “exterior”; e a terceira série de discursos, preocupada com o fenômeno do espaço urbano, das migrações e da colonização, buscando relacionar o problema da mobilidade dos homens, o tema da produção e gestão das populações, que pode ser amarrada na grade conceitual dos estudos sobre biopolítica.611 Esta última série de discursos, enfeixados no conceito de “biopolítica”, também foi incorporada em nossas análises do espaço médico do HCJB. A discussão sobre o espaço neste trabalho, portanto, não considerou o HCJB uma unidade estável, primeira, homogênea, nem se limitou à sua materialidade visível, sua fhysis; pensou-o como modalidade de relação, negociação, agenciamento. A espacialidade hospitalar deveria fugir das imagens desgastadas de “fenômeno de superfície”, “algo a ser atravessado”, “grande extensão através da qual viajamos”. Como afirmou a geógrafa norte-americana Doreen Massey, “lugar-encontro”, “lugar-múltiplo”, “condição geral de estar juntos”. O espaço visto sob o ângulo da Cultura, como “lugar praticado”, diria 610 REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro : Forense, 2011. p.50. 611 Ibidem, p.50-51. 300 Michel De Certeau, que ganha sua vizibilidade na relação com os homens, no processo incessante de ressignificação. Perspectiva semelhantemente adotada pelo geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan, que, entrelaçando a dimensão biológica com a cultural, mostrou que o espaço só pode ser pensado a partir da “experiência”, pois ele “assume uma organização coordenada rudimentar centrada no eu, que se move e se direciona”612. Para Tuan, o espaço é movimento, “dado pela capacidade de mover-se”613, enquanto o lugar, fisicalidade captada pelo aparelho sensório, constituiria mera “classe especial de objetos”614. Ou seja: para discutir a espacialidade do HCJB precisamos, evidentemente, tomar a sua materialidade como variável, mas devemos refletir sobre ela como uma construção humana intermediada pelo simbólico, que tem sua existência dependente dos sujeitos que com ela se relacionam. “Lugar” e “espaço”, neste sentido, são inseparáveis. Guardadas as devidas diferenças teóricas entre os autores mencionados, ambos convergem para a percepção do espaço como devir, vir-a-ser, mudança, pertencente ao mundo do sublunar. A desmaterialização do espaço tem sido uma tendência das abordagens pós-modernas, que seguem as descobertas da Física atômica, cada vez mais voltadas para o conceito de energia, e fugindo da concepção kantiana do espaço como receptáculo ou condição a priori do fenomênico. Nos termos foucaultianos, o espaço liga-se ao poder e à linguagem, sendo através dele que emergem os dispositivos de controle, os diagramas de força, os esquadrinhamentos e as repartições, os locais e a organização do trabalho. O próprio campo linguístico teria um funcionamento espacializante, tendo sua expressão condicionada por metáforas espaciais como: fratura, dispersão, diferença, digressão, distância e intermediário. O espaço, portanto, é uma construção imagético-discursiva moldada por relações de saber e poder. Pensar o Hospital de Caridade Juvino Barreto em suas especificidades, naquilo que ele tem de único, singular, próprio. Nessa perspectiva, encontramos quatro tensões inerentes ao HCJB enquanto técnica disciplinar: 1) Ausência de uma “classe médica” com seu corolário institucional (associações, legislação etc.) e discursivo 612 TUAN, YI-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Pau lo: Difel, 1983. p.13. 613 Ibidem, p.14. 614 Ibidem. 301 (campo do discurso formado por enunciados puramente médicos); 2) Convivência de diferentes concepções sobre o télos do espaço hospitalar: Hospital Religioso X Hospital Terapêutico ou Patológico; 3) Fracionamento do atendimento hospitalar segundo duas tendências: as enfermarias dos “pobres” e as enfermarias dos pensionistas, que podiam pagar pela internação, tensão embrionária entre “hospital particular” e “hospital público”; 4) Heterogeneidade dos princípios de divisão do espaço hospitalar, que reunia, a um só tempo, critérios de classificação nosológicos, sexuais, econômicos e sociais. Ao longo do capítulo 2, descrevemos e analisamos cada divisão interna do hospital, tomando como referência o prédio inaugurado em 1909, mas incorporando as modificações materiais e técnicas que se foram processando ao longo dos anos. O objetivo era seccionar ao máximo o espaço interno, não para encontrar uma unidade mínima estável, numa espécie de gramática hospitalar, mas para salientar as diferenças no seu corpo, que revelavam as diversas fraturas dessa espacialidade, as profundas diferenças que dominavam sua constituição espacial aparentemente homogênea, cuja edificação material monolítica e o título atomizador de ‘hospital’ podiam transparecer. Despedaçar a unidade hospitalar para fazer emergir os fragmentos, os pedaços, com sua trajetória particular. Dessa maneira, observamos a fachada e o jardim do hospital, a entrada do nosocômio, percorremos o gabinete médico, a sala de cirurgia, a farmácia e drogaria, a capela das irmãs, o laboratório bacteriológico e o laboratório de análises e, por último, a cozinha. Cada um desses espaços apresentava suas especificidades, a lógica própria de seu funcionamento. Daí optarmos pela divisão relativamente estanque dessas repartições espaciais em subitens, acompanhando as espacialidades em sua trajetória histórica particular, com os seus mecanismos de funcionamento, e a operação dos sujeitos praticantes do espaço. Com efeito, selecionamos nas diversas espacialidades do HCJB, considerando também as ampliações, reformas e construções, alguns traços visíveis e relevantes segundo nossas hipóteses de trabalho e o referencial teórico adotado. O espaço capelar, por exemplo, proporcionava discutir os conflitos internos entre a presença de religiosos na administração do hospital e as diretrizes médicas do nosocômio, trazendo à tona, no próprio nosoespaço em análise, as relações de força, as táticas e estratégias que produziram o reticulamento das espacialidades do HCJB. A simples disposição de quadros no gabinete médico permitia adensar essa hipótese do 302 conflito materializado no espaço de cura. A sala de cirurgia serviu para destacarmos o poder medicalizador dos esculápios. Domando o corpo enfermo na mesa de cirurgia, manejando habilmente o bisturi e o estojo de instrumentos metálicos importados da França, o médico tornava-se senhor do espaço corpóreo, percorrendo-o como o agrimensor corre a superfície de seu terreno sem fim, enterrando os marcos de limite/posse de sua propriedade com a linguagem científica. A sala de cirurgia representava também a “modernidade hospitalar”, expressa na tecnologia aplicada, ali presente no uso do ferro, na eterificação ou cloroformização do corpo exposto na mesa de cirurgia, nas medidas de assepsia do ambiente. Ainda não se tratava do hospital moderno como o conhecemos, dominado por vasta aparelhagem eletro-eletrônica que auxilia o trabalho médico, mas já contava com a perspectiva higienista dos cuidados com o paciente. A farmácia do HCJB, por sua vez, nascera como um pequeno nicho para depósito de medicamentos, tendo sua administração a cargo de uma irmã habilitada. Por longos anos, não se ouviu falar do nome de qualquer farmacêutico diplomado a cuidar dela. As orientações para manuseio de receitas e medicamentos tinham o acompanhamento do médico chefe de clínicas do hospital. Nada tão estranho assim se levarmos em consideração que durante quase trinta anos a cidade do Natal abrigava minguadas cerca de quatro farmácias. Na década de 1920, o Departamento de Saúde Pública registrava nos seus boletins estatísticos reduzido número de farmacêuticos diplomados, mesmo depois da fundação da Escola de Farmácia de Natal. A farmácia do HCJB funcionava mais como um depósito de remédios e matérias-primas do que espaço de produção de medicamentos. Os laboratórios, criados na década de 1920, marcavam a entrada do HCJB na era do hospital tecnológico, com a introdução de aparelhagem científica (microscópio, radiografia e radioscopia), a produção de vacinas e ampolas, a realização de exames diversos, a pesquisa e os estudos bacteriológicos e o uso de energia elétrica. O espaço do laboratório anunciava a especialização profissional que dominaria o território científico do país, com a exigência de formação de pessoal no nível superior para o corpo técnico do hospital. É o momento em que os médicos do HCJB começaram a tomar conta dos espaços até então nas mãos da ordem religiosa das Filhas de Santana. Ponto de viragem no tour de force entre o Hospital Religioso e o Hospital Patológico. 303 Por último, entramos na cozinha do HCJB. As fontes eram escassas a seu respeito, mostrando certo desinteresse pelo lugar. No dia da inauguração do hospital, o jornal A República mal tocara no nome desse espaço. O mesmo esquecimento projetou- se nas memórias de Januário Cicco, que deixou poucas informações sobre a alimentação dos doentes. Reconstituímos alguns aspectos do ambiente, dos funcionários e das refeições, sempre de forma precária, muitas vezes de modo indireto, deduzindo das fontes disponíveis. A alimentação parecia ser precária, à base de carnes, sopas, leite e frutas, o que não satisfazia aos doentes, acostumados a uma dietética mais ‘arrojada’, que incluía cachaça, farinha de jabá, feculentos diversos, carne de caranguejo, entre outros acepipes. Estávamos longe ainda da indústria alimentícia e da dietética da saúde que tomaria conta dos meios de comunicação e da vida dos indivíduos na segunda metade do século XX. O terceiro capítulo voltou-se para as práticas médicas realizadas no interior do HCJB, descritas a partir do olhar de um dos sujeitos envolvidos nas atividades regulares do hospital, o médico-cirurgião Januário Cicco. Esta parte do trabalho se iniciou com a narrativa de duas experiências de um doente na década de 1960, no então Hospital das Clínicas. Tratava-se do intelectual Luís da Câmara Cascudo, que internara- se no HC vítima de erisipela. Suas memórias foram transformadas em livro, intitulado Pequeno manual do doente aprendiz, levado a público em 1968, ano de sua última baixa no hospital. À guisa de introdução, as memórias cascudianas exerceram aí uma dupla função: traçar, ainda que brevemente, as experiências hospitalares do sujeito-paciente, um dos observatórios possíveis para se abordar o espaço hospitalar interno, sua estrutura e funcionamento, servindo, a posteriori, de elemento comparativo com outras vivências de internamento nosocomial de distintas temporalidades; encetar a discussão sobre o comportamento dos distintos sujeitos que faziam parte do cenário hospitalar sob a ótica de uma ‘ética médica’, perceptível no código do Regimento Interno e nas observações presentes nas notas, apontamentos e memórias do médico chefe de clínicas do HCJB, o Doutor Januário Cicco. A análise dessas fontes foi realizada segundo a orientação teórica foucaultiana, na perspectiva de uma ‘genealogia da ética’, uma das três áreas de estudo da sua genealogia, que enfoca as nossas relações com a moral, o modo como nos 304 constituímos em agentes éticos. Tal eixo de pesquisas foi desenvolvido principalmente nos seus livros sobre a “História da sexualidade”. O trabalho foucaultiano sobre a temática da ética distingue-se das abordagens habituais porque não separa a ação moral propriamente dita (código e valores) da atividade realizada pelo sujeito sobre si mesmo, mostrando que a moral não pode ser entendida sem a inclusão na análise dos diferentes “modos de subjetivação” do sujeito. Sua análise, então, deslocou-se na direção do “modo de conduzir-se” do sujeito em relação a um determinado código; a maneira particular com que o sujeito participa das ações morais, a parte dele, e só dele, que empresta a essas ações. Os estudos de Foucault se aproximam assim do interesse pela constituição de uma ‘ética pessoal’, típica de algumas abordagens filosóficas do pós- estruturalismo. Nesse aporte teórico, a ação moral deve ser considerada sob um tríplice aspecto: a moral do código, a moralidade dos comportamentos e a maneira particular de conduzir-se perante as regras e valores. A ética, então, desembocaria sempre numa construção do indivíduo, que teria suas ações morais desempenhadas seguindo, em última instância, as regras de seu próprio universo. A moral seria coletiva, e a ética pessoal. Sua abordagem tem o mérito de chamar a atenção para o caráter eminentemente subjetivo e arbitrário da escolha de valores, sem descartar sua força e existência coletivas. Toda discussão sobre valores é atravessada por subjetividades, e não encontra pontos de apoio essenciais e universais. Daí Foucault insistir na metáfora da arte, pois, para ele, o indivíduo era um escultor de si mesmo, a obra-prima e primeira do trabalho de construção de si mesmo: “Nos preocupamos tanto de ter em casa um lustre criado por um designer, e depois nos esquecemos de nós mesmos”. O manejo das categorias da genealogia da ética foucaultiana trouxe-nos a vantagem de poder explorar concomitantemente as regras do cód igo que regia os comportamentos no ambiente hospitalar do HCJB e não perder de vista seu caráter arbitrário, a subjetividade de sua elaboração. Dessa maneira, as memórias cascudianas, por exemplo, não são relatos estanques e monolíticos de eventos que ocorreram no Hospital das Clínicas, meras factualidades ou acontecimentos que espelham a realidade do hospital onde se internara. É mais do que isso: é um complicado processo que envolve, a um só tempo, o registro positivo do funcionamento do espaço hospitalar e a tentativa de construção de uma identidade particular do sujeito-autor das memórias. Tomando elementos de sua experiência hospitalar, Cascudo buscava responder à 305 pergunta: “Que desejo fazer de mim mesmo?”, “No que devo me tornar para satisfazer esse desejo?”, e assim moldar seu comportamento. Suas memórias constroem um Cascudo “sábio”, o “mestre” de si e dos outros, ensinando aos leitores a arte de ser doente no hospital. Em cada lembrança, ele queria transmitir um ensinamento: importância da solidão como forma de conviver bem consigo mesmo, a valorização da amizade, a celebração da doença como aprendizado, entre outros. A narrativa cascudiana e a abordagem de Foucault sobre a ética inspiraram- nos na construção do capítulo 3. Nele, buscamos entender o cotidiano do HCJB a partir das memórias do médico Januário Cicco. Para isto, dedicamos uma seção do trabalho ao Regimento Interno do HCJB, objetivando conhecer o código moral que regulava as ações dos funcionários do estabelecimento hospitalar. O RI continha as expectativas das autoridades públicas de saúde com relação ao comportamento da equipe médica e dos pacientes: as leis, parágrafos e incisos do código tinham por finalidade produzir um determinado conjunto de condutas. Como essas autoridades esperavam que os médicos e os doentes internados se comportassem? E por que estas condutas? A que elas conduziam? O RI do HCJB foi criado pela Inspetoria de Higiene e Assistência Públicas, encabeçada pelo médico Calixtrato Carrilho, através do Decreto n.238 de 15 de dezembro de 1910. Esse documento, publicado um ano e três meses depois da inauguração do hospital, permitiu-nos conhecer melhor o corpo de funcionários e suas atribuições no estabelecimento bem como os distintos espaços de trabalho. Desvendando as relações hierárquicas, podemos perceber os conflitos travados no interior do HCJB, principalmente entre as Filhas de Santana, que estavam à frente da parte político-administrativa, e a equipe médica do hospital. A Regente era por determinação legal a responsável pelo HCJB, o ponto de contato entre o hospital e as autoridades políticas do Estado. Em teoria, os médicos subordinavam-se às suas ordens, situação que remete ao modelo clássico do Hospital Caritativo ou Assistencial. Nesse processo, o HCJB funcionava como uma tecnologia política de controle, tal como Foucault analisou. O quadriculamento do espaço interno, determinando o lugar que cada paciente deveria ocupar, a vigilância constante, expressa nas visitas dos médicos e nos registros das papeletas que encimavam as camas, a codificação exaustiva dos comportamentos, tanto de médicos quanto de doentes, todos 306 estes aspectos conferiam ao HCJB um papel de disciplinamento dos corpos. O hospital podia ser visto como uma máquina que cuidava dos corpos doentes, restituindo-lhes o tônus vital para o mundo do trabalho, moldando esses corpos através de regras de comportamento que deveriam guiá- los na vida social da cidade. O RI revelava um hospital muito mais da ordem coercitiva e punitiva, voltado para o controle da população. As menções ao bem-estar dos doentes são escassas, só aparecendo no fim do Regimento, e obtendo mais uma abordagem moral do que médica. Isto não significa que o HCJB não era espaço terapêutico, voltado para a cura dos doentes. A preocupação com a normatização de hábitos e costumes era apenas uma das suas faces. Como máquina de produção de saúde, aspecto inaugurado pelo século XX, o HCJB apresentava um perfil notadamente higienista, calcado no caráter preventivo das doenças e orientado por uma certa lógica eugênica de preservação e melhoramento da ‘raça’. O modelo que guiava a prática médica do Doutor Januário Cicco, chefe de clínicas do HCJB, ainda, em boa parte, era o do produtor de serviços individuais do século XIX, alimentado nos ideais cristãos, embora ele se declarasse ateu, que se caracterizava por uma relação médico-paciente mais individualizada, alimentada pelos valores do altruísmo e do sacrifício, nos moldes do velho modelo sacerdotal, valorizando a dimensão moral do trabalho. O HCJB se transformara, como vimos, em um aparelho urbano, funcionando segundo os princípios do paradigma higienista. Como tentamos mostrar, o HCJB era uma espacialidade heterotópica, complexa, espaço de transição entre um modelo de assistência herdeiro das ordens religiosas e o modelo nascente do hospital tecnológico, com fins claramente terapêuticos e administrado por médicos profissionais. No seu interior conviviam sujeitos e entendimentos distintos do que deveria ser o espaço hospitalar, por isso nos preocupamos em descrever seu espaço interno e a relação dele com os sujeitos que o praticavam, evidenciando o quanto cada repartição espacial parecia ser um mundo à parte no todo hospitalar. Nesse movimento analítico, enfocamos a face moral do trabalho médico, sempre acompanhados pelas informações do Doutor Januário Cicco. Baseados em suas memórias, reconstruímos as suas práticas médicas no interior do hospital, conciliando o trabalho nas diversas clínicas com o processo de autoelaboração ética que Januário 307 escolheu para si mesmo. Cuidar do doente, cuidando a si mesmo. Mergulhamos então na construção da ética januariana no ambiente hospitalar, erigida ao sabor de uma longa “tradição” de aprendizado com os mestres das faculdades e com as práticas médicas cimentadas ao largo de gerações. Januário valorizava sobremaneira o papel da experiência na atividade do médico. Por isto, criticou veementemente o ensino de sua época, alcunhando-o de livresco. Segundo ele, o ensino de medicina no Brasil era defasado, pois ainda se fundava nos manuais e em detrimento da prática clínica, hospitalar ou doméstica que conferisse ao aluno conhecimentos vivos sobre a realidade da doença e do doente. Este posicionamento explica a profusão de casos que amealhou na sua prática médica e comentou no seu livro Notas de um médico de província, de 1928. A longa casuística apresentada nesta obra visava esclarecer a importância da experiência médica no aprendizado do estudante de medicina. Januário abriu as suas memórias “médico-sociais” descrevendo sua trajetória de clínica pré-hospitalar, anterior à sua atuação no HCJB, destacando o aspecto moral da atividade médica. Nessa fase, Januário concentrou suas atenções na ética médica, destacando algumas regras de comportamento dos esculápios e “propondo” um modelo de conduta. Naquele momento, os profissionais da medicina ainda não possuíam um código de deontologia oficial escrito que balizasse sua relação com outros médicos e com os doentes, vindo a aparecer somente em 1931. Nos diferentes casos que comentou, Januário ressaltava o valor da “tradição” na formação do médico. Com isto, ele queria dizer o conjunto de experiências acumuladas entre os médicos profissionais, transmitidas pelos professores nas universidades, enfatizando o caráter da prática médica, da experiência que só se adquire no trabalho do dia a dia. Tal interesse pela mencionada tradição colocava o peso nas questões éticas, nas regras de relacionamento entre os esculápios e os doentes. E isto ocorria, antes de tudo, porque os médicos viviam em um contexto de construção identitária da profissão e de reconhecimento de seu trabalho pelo Estado e junto à população. Era necessário fortalecer a medicina enquanto conhecimento e os médicos como classe profissional. A tradição, com efeito, se apresentaria como importante fator de coesão entre os esculápios. Assim, Januário escolheu como centro desse padrão ético o entendimento entre médico e paciente, aquilo que ele chamou de “afinidade espiritual honrosa”. Essa 308 ligação entre doutor e doente se pautava pelo exercício frequente e contínuo de virtudes como “honestidade”, “trabalho”, “sinceridade”, “confiança” e “franqueza”. O médico deveria ter a preocupação voltada para a coletividade. Sua recompensa seria a satisfação íntima de servir à sociedade, à dimensão coletiva do viver-junto. O grande problema da ativação dessa proposta ética não se encontrava na episteme ou qualquer incursão gnosiológica, mas na Vontade dos indivíduos de a porem em prática, e na Linguagem, pois não deveriam temer dizê- la, mesmo tendo de criticar alguns aspectos da tradição livresca que vigorava. Ter, em suma, “coragem de verdade”... Por isso, ele praticava a ética com base no princípio da austeridade, no respeito estrito ao código ainda ágrafo da medicina, na conformidade com a Lei. Constituía, de certo modo, uma forma de espiritualidade cósmica que tinha como télos o Bom Sumo, o princípio agostiniano do frui non uti, do “servir sem servir-se de”. Sua crítica aos “costumes” elevava a ética à dimensão social, coletiva da existência, e expressavam a crença de que os comportamentos e hábitos sociais eram os grandes responsáveis pelos problemas da sociedade. A reforma desses costumes proporcionaria a correção dos “vícios” sociais. Sua incursão no terreno da ética social passava necessariamente pela subjetividade que edificava sua ética pessoal. Nos termos foucaultianos, não poderíamos entender a abordagem januariana do código moral sem nos aprofundarmos na substância ética de que Januário o revestia, isto é, a parcela de si que ele doava na relação com o código, tornando-se sujeito de suas ações morais. Para compreendermos este processo particular e individual de autoelaboração, tivemos de seccionar as ações morais januarianas em quatro aspectos: a determinação da substância ética, o modo de sujeição, as formas de elaboração do trabalho ético e a teleologia moral. Para Januário, as relações entre médicos e pacientes deveriam ser pautadas pela “reciprocidade”, princípio exigido pela “afinidade espiritual honrosa” que pregava. A troca de informações e a confiança estabelecida entre o esculápio e doente formavam a substância ética dessas relações. O “dar-se ao ouvido e à palavra” funcionava como a senha de uma relação harmônica, de confiança mútua, sendo praticada na modalidade da “reciprocidade”. Esse entendimento estava atado a uma perspectiva histórica do trabalho do médico no século XIX, que dizia respeito à prática clínica, caracterizada pela proximidade, tangência dos corpos, afetação recíproca. 309 O “perfil médico generalista” de que Januário era herdeiro, acionada pelos valores do desinteresse, abnegação e sacrifício, constituíam uma “tradição médica” que oferecia regras e valores aos praticantes da medicina. Januário se relacionava positivamente com essa tradição, buscando replicá- la em suas práticas cotidianas: austeridade e disciplina, confiança e reciprocidade. Essa relação de reprodução era chamada por Foucault de “modo de sujeição”. O exercício dessa modalidade de sujeição dava-se através de uma autoelaboração inscrita no combate permanente e contínuo por uma conformidade à tradição esposada. Essas práticas de autoelaboração do sujeito moral vinham por meio de denúncias de falsos médicos (charlatães), de crítica a instituições políticas de saúde pública, da defesa de princípios deontológicos, da ocupação de postos importantes no Estado, da escrita de ensaios diversos etc. O conjunto dessas práticas de si mesmo esculpia seu comportamento profissional, geria suas ações, controlava seus discursos, singularizando seu exercício no campo da medicina, fazendo-o único no universo dos esculápios do Rio Grande do Norte. Todo esse esforço de autoelaboração empreendido por Januário Cicco não se consubstanciava sem um exercício de poder sobre o outro, sem um governo do corpo-outro. Nas suas notas e apontamentos, os doentes que entravam no HCJB eram descritos e analisados como corpos pedagógicos, que serviam ao exercício do poder médico sobre o paciente e proporcionavam o ensino de lições sobre a arte de curar. A clínica cirúrgica, não à-toa, foi a mais mobilizada nos comentários acerca dos doentes que se internavam no HCJB. A operação do corpo enfermo, anônimo e comum representava o assujeitamento dos indivíduos à técnica e instrumento dos esculápios. A linguagem utilizada era precisa, específica, fria. O jargão médico encobria as asperezas e monstruosidades do corpo, dando-lhe aspecto apresentável, digno de ser comentado, mostrado, invadido. Nas intervenções cirúrgicas, o foco recaía sobre a perícia do médico, a habilidade, a competência no manejo do bisturi. O cirurgião podia ser visto como um escultor que mobilizava seu cinzel buscando as formas perfeitas de expressão no molde distendido e inerte na mesa do professor Gosset. Os corpos feridos por projéteis de bala e a golpes de faca encontravam nas mãos do médico-cirurgião os instrumentos de sua reabilitação. Do mostruário de exempla do Doutor Januário Cicco, emergia uma verdadeira Paidéia do corpo enfermo, que, concebendo o espaço corporal como 310 laboratório, teste e experiência, dava a Januário a condição de alçar-se a mestre de sua arte. O corpo pedagógico era objeto do professor, que descrevia para a audiência seleta as minúcias de sua superfície, passeando pela epiderme, mergulhando nos volumes orgânicos e localizando as raízes da dor, do desequilíbrio, da desarmonia. Januário construía-se nessas memórias como um “mestre”, capaz de suprir as deficiências do ensino médico com a vasta casuística de seu “laboratório particular”, desenvolvido ao longo de anos de clínica doméstica e hospitalar. Nesse trabalho de autoelaboração como sujeito moral, vivido nas experiências do HCJB, encontramos nas suas memórias a forte influência de princípios eugênicos e raciológicos. Ele defendia a tese da degenerescência da raça, segundo a qual a espécie humana se desenvolveria até atingir um patamar- limite, de onde começaria a degenerar, podendo inclusive cair em extinção. Essa tese motivou suas preocupações com a medicina social, impulsionando-o a aplicar os conhecimentos da medicina para regenerar o povo brasileiro, que, segundo ele, vivia sem “forças e triste”. Ele exigia a participação do Estado no controle às doenças que grassavam entre a população, como sífilis, tuberculose e o alcoolismo. Para Januário, a Higiene era o único meio de remediar essa situação desastrosa, pois se apresentava como uma ciência completa, agindo, ao mesmo tempo, sobre o meio natural, o indivíduo e a população. Contudo, os princípios eugênicos que esposava não eram de caráter negativo, restritivo, como as práticas da segregação e da esterilização. Sua eugenia era de cunho “construtivo”, defendendo a educação higiênica e a propaganda como os melhores meios de combater o atraso do povo brasileiro. Essa “regeneração da pátria” caminhava lado a lado com uma nova maneira de lidar com o corpo no capitalismo, que buscava disciplinar o corpo aumentando- lhe o potencial produtivo. O corpo-ferramenta do trabalhador começou, então, a receber atenção dos médicos e sanitaristas, que viam nele o melhor investimento para a produção da riqueza da nação. Não foi à toa que o primeiro paciente do HCJB viera da construção dos trabalhos da Estrada de Ferro Central, vitimado por um “fleumão” na mão esquerda. Foi nesta perspectiva que Januário Cicco trabalhou no HCJB, cuidando do corpo ferido dos operários. Esse investimento político do corpo inaugurado no capitalismo industrial, que ensejara, como já mostramos, uma nova relação entre o Estado e o emergente problema da ‘população’, incluía os cuidados sociais com a mulher e a criança. O corpo 311 feminino passou ser estratégico para o Estado na medida em que a questão da natalidade e da mortalidade tornou-se premente para as autoridades políticas preocupadas em gerir adequadamente as forças humanas que produziam a riqueza das nações. No HCJB, esse deslocamento do olhar sobre a mulher pode ser notado nas insistentes discussões que apareciam nos relatórios oficiais dos governadores do Rio Grande do Norte. Neles, a temática recorrente era a da construção de uma casa de maternidade destinada às mulheres parturientes. No HCJB, havia uma seção destinada à maternidade pelo menos desde 1915, mas parecia não ter condições de atender a grandes demandas. A partir de 1915, no governo de Ferreira Chaves, os pedidos pela ampliação, construção de um pavilhão ou casa de maternidade tornaram-se cada vez mais frequentes e as estatísticas começaram a figurar nas Falas dos Governadores, contando inclusive com a participação da sociedade civil, que reunia homens e mulheres da elite natalense em campanhas públicas para arrecadar fundos, fazendo-se festividades diversas, como quermesses, loterias, missas etc. Os casos médicos comentados por Januário Cicco na clínica do HCJB e que envolviam o corpo feminino concentravam-se em grande número nos problemas relativos ao útero, região nuclear da produção de novos corpos-máquinas para o Estado. Por isto a narrativa dramática de tantas cirurgias de histerectomia, que impossibilitavam a mulher de gerar filhos. Sob a angulação eugenista januariana, os problemas médicos na zona do útero eram graves na medida em que freavam o crescimento populacional, diminuindo, segundo a Lei da Seleção Natural, as possibilidades estatísticas de formação de um número mais expressivo de homens “fortes”, capazes de alavancarem a nação a um destino glorioso. No capítulo 3, escolhemos alguns casos emblemáticos dessa preocupação eugênica com o corpo feminino, destacando os cuidados como útero relacionados com o partejamento e as doenças da sífilis e do câncer, morbidades que mais afligiam as mulheres, conforme as informações do doutor Januário Cicco. No caso último caso que comentamos, que relatava uma inversão total do útero, de extrema gravidade para a mulher, Januário insistiu na descrição do evento, revelando toda a mobilização médica da equipe do hospital para a singularidade do acontecimento, demonstrando a centralidade do interesse médico no órgão feminino. O corpo feminino, assim, aliava-se ao corpo-máquina do operário na tendência de uma biopolítica, do controle da população pelo Estado. Paralelo a essa temática própria de uma genealogia do poder, as ações médicas de Januário Cicco 312 permitiam a leitura de suas práticas médicas no interior do HCJB como produto de uma elaboração ética de si mesmo, moldando seu comportamento de modo a construir a sua autoimagem na direção de uma sabedoria, de uma mestria de si. Januário colocava-se em suas memórias como professoras e mestre de sua arte, capaz de ensinar os atalhos da profissão, afastando os jovens médicos dos meandros obscuros do campo de atuação dos futuros esculápios, ofertando o buraco da agulha para a passagem do camelo. Ele se propunha a unir “a agulha e a linha” machadiana no mesmo propósito de fortalecimento da classe médica, vencendo o ensino livresco e investindo na experimentação, no trabalho-teste, na observação à beira do leito, no exame do laboratório. Retomando o princípio da epiméleia heautou dos greco-romanos, o “cuidado de si”, Januário Cicco apontava para o ideal do indivíduo que zela pela própria vida, ocupando-se de si mesmo, que se constitui em médico de si. Num mundo em que os médicos não podem curar, seja por incompetência, seja por limitações epistemológicas ou terapêuticas, cada indivíduo deve velar por sua vida. A Natureza ainda não abrira de todo suas florestas ao desbravamento dos médicos, contendo suas doses de mistério. O corpo oferecia respostas inesperadas e desconhecidas, proliferando o terreno das hipóteses científicas. Em um quadro de incerteza como este, Januário indicava que o melhor a fazer era investir na higiene e na instrução como forma de prevenir as doenças. Investir na máxima do homem como médico de si mesmo não implicava necessariamente o abandono dos cuidados prestados pelos profissionais da medicina nem muito menos a desativação dos espaços clássicos de exercício da arte de curar. As desconfianças de Januário Cicco sobre a efetividade da prática médica não o conduziam, como poderia parecer, às raias do niilismo. Para ele, as limitações da ciência médica acabavam por exigir dos esculápios mais rigor no seu trabalho diário, mais atenção com as promessas correntes de cura que grassavam nos jornais e academias, maior esforço no sentido de divulgar a medicina, mesmo que imperfeita, como a melhor arma contra as doenças. O mesmo se aplica quanto aos espaços de cura. É importante lembrar que seus apontamentos foram escritos com base nas experiências travadas ao longo de 18 anos no Hospital de Caridade Juvino Barreto, epicentro da saúde pública do Rio Grande do Norte. Todos os programas de saúde coletiva implementados pelo Estado tinham 313 nesse hospital seu ponto de partida: as campanhas contra a sífilis, a lepra e a malária são exemplos concretos da centralidade estratégica do espaço hospitalar. Na concepção januariana, o HCJB devia ser encarado como algo mais do que um simples espaço de cura para o corpo físico avariado, mais do que uma máquina de curar: o hospital criava valores morais, moldava comportamentos, disciplinava almas. 314 FONTES ARQUIVO PÚBLICO DE PERNAMBUCO. Sessão de Mapas, Hospital Pedro II, gaveta MZ/G4, plantas n.213 e n.891; Asilo de Mendicidade, gaveta M2/G3, plantas n.212 e n.1007; Hospital Oswaldo Cruz, gaveta M2/G4, planta n.216; Hospital dos Alienados, plantas n.234 e n. 1059. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Livro do Movimento Hospitalar, 1909. t. 1. . BODAS de ouro das Filhas de Sant’Ana no Brasil: 1884-1934. Rio de Janeiro: Typ. Pio X, 1933. CÂMARA, Amphiloquio. Scenarios norte-riograndenses. Rio de Janeiro: “O Norte”, 1923. CICCO, Januário. Como se hygienizaria Natal: algumas considerações sobre o seu saneamento. Natal: Atelier Typ. M. Victorino A. Câmara, 1920. ______. Euthanasia: ensaio de critica medico-social. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1937. Fac-similar editado pela NOSSAEditora, da Fundação José Augusto. ______. Ligeiras considerações sobre o destino dos cadáveres perante a higiene e a medicina legal. Bahia: Typ. do Salvador, 1906. ______. Notas de um médico de província. Rio de Janeiro: Empreza Graphica Editora, 1928. CÓDIGO de Deontologia Médica, aprovado pelo 1º Congresso Médico Sindicalista. Boletim do Syndicato Medico Brasileiro, n. 8, ago. 1931. CORREIA, Frank Tavares. Presença de Oswaldo Cruz no Rio Grande do Norte. Natal: Sebo Vermelho, 2008. DIÁRIO DO NATAL. Natal, 1893. DIÁRIO DO NATAL. Natal, 1895-1896. DIÁRIO DO NATAL. Natal, 1898-1899. DIÁRIO DO NATAL. Natal, 1904. FOTOS do arquivo organizado pelo grupo de estudos História da Cidade e Urbanismo, do Departamento de Arquitetura da UFRN, coordenado pela professora Dr. Ângela Lúcia Ferreira. INSPETORIA de Hygiene do Rio Grande do Norte, Natal, 27 de Junho de 1893. In. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem do Governador Dr. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão. 1893. A REPÚBLICA. Natal, 1889-1901. 315 A REPÚBLICA. Natal, 1903-1906. A REPÚBLICA. Natal, 1º sem. 1907. A REPÚBLICA. Natal, 1908-1912. A REPÚBLICA. Natal, 1913. A REPÚBLICA. Natal, 1915. A REPÚBLICA. Natal, 1923. A REPÚBLICA. Natal, 1925. A REPÚBLICA. Natal, 1927-1930. A REPÚBLICA. Regimento Interno do Hospital de Caridade “Juvino Barreto”, 26 set. 1911, p.1. Os sessenta e cinco artigos do Regimento se estendem pelo jornal ao longo dos dias 26, 27 e 28 de setembro. RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.24, de 22 de maio de 1893, execução da Lei n.14. In:______. Decretos do Governo do Estado do Rio Grande do Norte . Natal: Typographia d’A República, 1893. RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.205, de 21 de agosto de 1909. Reorganiza o Hospital de Caridade, médico de polícia e Batalhão de Segurança.In:______. Actos Legislativos e Decretos do Governo. Natal: Typ. d’A República, 1910.p.85-86. RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.206, de 31 de agosto de 1909.In:______. Actos Legislativos e Decretos do Governo. Natal: Typographia d’A República, 1910.p.87- 88. RIO GRANDE DO NORTE. Decreto n.148, de 1º de setembro de 1921. Dá regulamento á Directoria de Hygiene e Saúde Pública. In:______. Actos e Legislativos e Decretos do Governo. Natal: Typ. d’A República, 1922. p.146-197. RIO GRANDE DO NORTE. Discurso pronunciado na abertura da segunda sessão da terceira legislatura da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte, no dia 7 de setembro de 1841, pelo ex.mo vice-presidente da provincia, o coronel Estevão José Barboza de Moura. Pernambuco: Typ. de Santos, 1841. RIO GRANDE DO NORTE. Discurso pronunciado pelo excellentissimo presidente da provincia do Rio Grande do Norte, o brigadeiro Vencesláo de Oliveira Bello, na abertura da primeira sessão ordinaria da Assembléa Legislativa Provincial, na quinta legislatura, no dia 7 de setembro de 1844. Pernambuco: Typ. de Santos, 1845. RIO GRANDE DO NORTE. Discurso pronunciado pelo excellentissimo presidente da provincia do Rio Grande do Norte na abertura da segunda sessão ordinaria da quinta legislatura da Assembléa Legislativa Provincial no dia 7 de setembro de 1845. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1845. 316 RIO GRANDE DO NORTE. Discurso com que o illustrissimo e excellentissimo senhor dr. Casimiro José de Moraes Sarmento, presidente desta provincia do Rio Grande do Norte, abriu a 1.a sessão da 6.a legislatura da Assembléa Legislativa Provincial, anno de 1846. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1846. RIO GRANDE DO NORTE. Discurso apresentado pelo illustrissimo e excellentissimo senhor doutor Cazimiro José de Moraes Sarmento, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, na abertura da segunda sessão da sexta legislatura da Asse mblea Legislativa Provincial, no dia 7 de setembro de 1847. Pernambuco: Typ. De M.F. de Faria, 1847. RIO GRANDE DO NORTE. Exposição apresentada pelo presidente da província do Rio Grande do Norte José Meira à Assembleia Legislativa, 21 de agosto de 1866, anexa ao Relatório. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o presidente da provincia do Rio Grande do Norte abrio a Assembléa Provincial no dia 2 de fevereiro de 1835. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o ex.mo prezidente da provincia do Rio Grande do Norte, o bacharel Joaó Joze Ferreira d'Aguiar, abrio a segunda sessão da Assembléa Legislativa da mesma provincia em 7 de setembro de 1836. Pernambuco: Typ. Fidedigna de J.N. de Mello, 1836. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o ex.mo prezidente da provincia do Rio Grande do Norte, o d.or Manoel Ribeiro da Silva Lisboa, abrio a 3.a sessão da Assembléa Legislativa da mesma provincia em 7 de setembro de 1837. Reciffe [sic]: Typ. de M.F. de Faria, 1837. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o illustrissimo e excellentissimo senhor desembargador Antonio Joaquim de Siqueira, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, abrio a primeira sessão ordinaria da setima legislatura da Assembléa Legislativa Provincial no dia 7 de setembro de 1848. Pernambuco: Typ. União, 1848. RIO GRANDE DO NORTE. Falla dirigida á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte, na installação da [illegible] sessão ordinaria no dia 3 de maio de 1849 pelo presidente da provincia. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1849. RIO GRANDE DO NORTE. Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria do anno de 1851, pelo ill.mo e ex.mo sr. presidente da provincia, o doutor José Joaquim da Cunha. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1851. RIO GRANDE DO NORTE. Falla dirigida á Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria do anno de 1852 pelo illm. e. exm. sr. presidente da provincia, o doutor Joze Joaquim da Cunha. Rio Grande do Norte: Typ. de J.M. Navarro, 1852. RIO GRANDE DO NORTE. Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria que teve lugar no dia 17 de fevereiro do anno de 1853, pelo illm. e exm. sr. presidente da provincia, o dr. Antonio Francisco Pereira de Carvalho. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1853. 317 RIO GRANDE DO NORTE. Falla que o illm. e exm. snr. doutor Antonio Bernardo de Passos, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, dirigio á Assembléa Legislativa Provincial, no acto da abertura de sua sessão ordinaria em 4 de julho de 1854. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1854. RIO GRANDE DO NORTE. Falla que o illm. e exm. senhor dr. Antonio Bernardo de Passos, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, dirigio á Assemblea Legislativa Provincial no acto da abertura de sua sessão ordinaria em o 1o de julho de 1855. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1855. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o exm. sr. dr. Gustavo Adolfo de Sa abriu a Assemblea em Sessao Extraordinaria no dia 17 de Fevereiro de 1868. Rio Grande do Norte, Typographia dous de Dezembro Rua de S. Antonio, 1868. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho abrio a 1a sessão da vigesima legislatura da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte em 13 de julho de 1874. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1874. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o exm. sr. dr. José Bernardo Galvão Alcoforado Junior abrio a 2a sessão da 20a legislatura da Assembléa Legislativa do Rio- Grande do Norte em 23 de julho de 1875. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1875. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o exm. snr. dr. Antonio dos Passos Miranda abrio a primeira sessão da vigesima primeira legislatura da Assembléa Provincial do Rio Grande do Norte em 17 de outubro de 1876. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1877. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o exm. sr. doutor José Nicoláo Tolentino de Carvalho abrio a 2.a sessão da 21.a legislatura da Assembléa Provincial do Rio Grande do Norte em 18 de outubro de 1877. Pernambuco: Typ. de M. Figueiroa de Faria, 1877. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o exm. sr. doutor Rodrigo Lobato Marcondes Machado, presidente da provincia, abrio a 2.a sessão da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte em 27 de outubro de 1879. [Natal]: Typ. do Correio do Natal, 1880. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o exm. sr. doutor Francisco de Gouvea Cunha Barreto, presidente da provincia, installou a 1.a sessão ordinaria d'Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte em 15 de maio do corrente ano. [Natal]: Correio do Natal, 1882. RIO GRANDE DO NORTE. Falla com que o excellentissimo senhor dr. Francisco de Gouveia Cunha Barreto, presidente da provincia, abrio em 9 de fevereiro de 1883 a segunda sessão ordinaria da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte. Pernambuco: Typ. de Manoel Figueiroa de Faria, 1883. RIO GRANDE DO NORTE. Falla lida a Assembléa Legislativa do Rio Grande do Norte pelo presidente, José Moreira Alves da Silva, no dia 15 de março de 1886, ao installar-se ella extraordinariamente. [Natal]: Typ. do "Correio do Natal," 1886. 318 RIO GRANDE DO NORTE. Falla lida a Assembléa Legislativa do Rio Grande do Norte pelo exm. sr. presidente da provincia, dr. Antonio Francisco Pereira de Carvalho, no dia 15 de janeiro de 1887 ao installar-se ella ordinariamente. [Natal] Typ. do "Correio do Natal," 1888. RIO GRANDE DO NORTE. Falla lida á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte pelo exm. sr. dr. José Marcelino da Rosa e Silva, presidente da provincia. [Natal] Typ. da "Gazeta do Natal," 1889. RIO GRANDE DO NORTE. Lei n.14 de 11 de junho de 1892. Crea no estado uma repartição sanitária. In:______.Leis do Congresso. Natal: Typographia d’A República, 1896.p.25-28. RIO GRANDE DO NORTE. Lei n.268, de 1º de dezembro de 1908. Fixa a despeza e orça a receita do Estado para o anno financeiro de 1909. In:______. Actos Legislativos e Decretos do Governo. Natal: Typ. d’A República, 1909.p.18-19. RIO GRANDE DO NORTE. Lei n.280, de 29 de novembro de 1909. In:______. Actos Legislativos e Decretos do Governo. Natal: Typographia d’A República, 1910. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório apresentado pelo vice-presidente Dantas Pinajé à assembleia legislativa do Rio Grande do Norte. Discurso de 7 de setembro de 1838. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte na abertura da ultima sessão ordinaria da 2. legislatura provincial, no dia 7 de setembro de 1839: pelo ex.mo presidente da provincia d. Manoel de Assis Mascarenhas. Pernambuco: Typ. de Santos, 1840. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio que á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte apresentou o ex.mo presidente da mesma provincia, d. Manoel de Assis Mascarenhas, em 7 de setembro de 1842. Pernambuco: Typ. de Santos, 1843. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial da provincia do Rio Grande do Norte pelo ex.mo vice-presidente da mesma provincia, André de Albuquerque Maranhão, no dia 7 de setembro de 1843. Pernambuco: Typ. de Santos, 1844. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte, pelo exm.o primeiro vice-presidente da provincia, João Carlos Wanderley, no dia 3 de maio de 1850. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1851. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado a Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte pelo presidente, o Dr. Antonio Bernardo de Passos. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1856. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio que á Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte apresentou no dia da abertura da sessão ordinaria de 1857, o exm. sr. dr. Antonio Bernardo de Passos, presidente da mesma provincia. Recife: Typ. de M.F. de Faria, 1857. 319 RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado a Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte pelo excellentissimo presidente, dr. Antonio Marcellino Nunes Gonçalves. [n.p.]: Typ. Liberal Rio Grandense, 1858. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio que á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte apresentou no dia 14 de fevereiro de 1859, por occasião de sua installação o exm. sr. presidente da provincia, doutor Antonio M.N. Gonçalves. Maranhão: Typ. Commercial de Antonio Pereira Ramos d'Almeida, 1859. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio com que o exm. sr. dr. José de Oliveira Junqueira abrio a sessão da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte em 1860. Pernambuco: Typ. de M.F. de Faria, 1860. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio que o exm. sr. dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, apresentou á respectiva Assembléa Legislativa Provincial na sessão ordinaria de 1861. Ouro Preto: Typ. Provincial, 1862. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio que o exm. sr. dr. José Bento da CunhaFigueiredo Junior, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, apresentou á respectiva Assembléa Legislativa Provincial na sessão ordinaria de 1861. Ouro Preto:Typ. Provincial, 1862. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório apresentado pelo presidente da província do Rio Grande do Norte José Meira à Assembleia Legislativa, 13 de junho de 1864. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório apresentado pelo presidente da província do Rio Grande do Norte José Meira à Assembleia Legislativa, 15 de outubro de 1865. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório apresentado pelo presidente da província do Rio Grande do Norte José Meira à Assembleia Legislativa, 01 de outubro de 1866. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado a Assembléa Legislativa do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria do anno de 1866 pelo presidente da provincia, o exm. snr. dr. Luiz Barboza da Silva. Rio Grande do Norte: Typ. Dous de Dezembro, 1867. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa do Rio Grande do Norte pelo exm. sr. doutor Silvino Elvidio Carneiro da Cunha em 5 de outubro de 1870. Recife: Typ. do Jornal do Recife, 1870. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio com que o exm. snr. dr. Delfino Augusto Cavalcante de Albuquerque abrio a 2a sessão ordinaria da Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte no dia 12 de outubro de 1871. Maceió: Typ. do Jornal das Alagôas, 1871. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório do vice-presidente Cavalcante Albuquerque, 15 de junho de 1872. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório do presidente Pereira de Lucena, 17 de novembro de 1872. 320 RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio com que abrio a 1a sessão ordinaria da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte, o exm. sr. commendador dr. Henrique Pereira de Lucena, no dia 5 de outubro de 1872. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1873. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório do vice-presidente Vasconcellos Chaves, 19 de janeiro de 1873. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio com que installou a Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte no dia 11 de junho de 1873 o 2.o vice-presidente exm. sr. coronel Bonifacio Francisco Pinheiro de Camara, e passou a administração da mesma provincia ao exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho no dia 17 do mesmo mez. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1873. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio com que ao exm. sr. dr. José Bernardo Galvão Alcoforado Junior passou a administração da provincia do Rio Grande do Norte o exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho em 10 de maio de 1875. Rio de Janeiro: Typ. Cinco de Março, 1875. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio com que o exm. sr. dr. José Bernardo Alcoforado Junior passou a administração da provincia do Rio Grande do Norte ao exm. sr. dr. Antonio dos Passos Miranda no dia 20 de junho de 1876. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1877. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio com que o Exm. Sr. Dr. José Nicolào Tolentino de Carvalho, Presidente da Província, passou a administração della ao 1º Vice- Presidente, Exm. Sr. Dr. Manoel Januario Bezerra Montenegro; em 6 de Março de 1878. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório do Vice-presidente Ignacio Pereira, 13 de março de 1879. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório do presidente Marcondes Machado, 1º de maio de 1880. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório do presidente José Furtado, 20 de abril de 1881. RIO GRANDE DO NORTE. Relatorio com que o exm. señr doutor Satyro de Oliveira Dias passou a administração ao exm. señr. 1.o vice-presidente, dr. Mathias Antonio da Fonseca Morato no dia 16 de março de 1882. Natal: Typ. do Correio do Natal, 1882. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório do vice-presidente Antônio da Costa, 22 de outubro de 1885. RIO GRANDE DO NORTE. Relatório do vice-presidente Costa Barros, 14 de outubro de 1888. RIO GRANDE DO NORTE. Resolução n. 92. Art.58-61 In: ________. Actos legislativos e decretos do governo (1904). Natal: Typ. d'A Republica, 1905. 321 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem do presidente Adolffo Aphonso da Silva Gordo, o8 de fevereiro de 1890. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida ao Congresso Constituinte do Estado do Rio Grande do Norte pelo seu governador o juiz de direito aposentado Francisco Amyntas da Costa Barros, 10 de junho de 1891. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida ao Congresso do Estado do Rio Grande do Norte pela Junta Governativa do mesmo Estado em 20 de fevereiro de 1892. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem do governador Dr. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão e relatórios apresentados pelos Chefes das repartições publicas Estadoaes do Rio Grande do Norte.Natal: Typ. d’A República, 1893. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Rio Grande do Norte pelo Dr. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão governador do Estado por ocasião de abrir-se a 3ª sessão ordinária da 1ª legislatura em 14 de julho de 1894. Natal: Typ. d”A República, 1894. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo do Rio Grande do Norte pelo Dr. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão governador do Estado por occasião de abrir-se a sessão extraordinária da 2ª Legislatura em 31 de janeiro de 1895. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida pelo governador Dr. Joaquim Ferreira Chaves Filho ao Congresso Legislativo do Estado do Rio Grande do Norte ao abrir-se a 2ª sessão ordinária da 2ª Legislatura em 15 de julho de 1896 acompanhada do Relatório da Secretaria e annexos. Natal: Typ. d”A República, 1896. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida pelo governador Joaquim Ferreira Chaves ao Congresso Legislativo do Estado do Rio Grande do Norte ao abrir-se a 3ª Sessão ordinária da 2ª Legislatura em 14 de julho de 1897 acompanhada do Relatório da Secretaria e annexas. Natal: Typ. d’A República, 1897. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida pelo governador Joaquim Ferreira Chaves ao Congresso Legislativo do Estado do Rio Grande do Norte ao abrir-se a 4ª sessão ordinária da 3ª Legislatura em 14 de julho de 1898 acompanhada do Relatorio da Secretaria e annexos. Natal: Typ. d’A República, 1899. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem dirigida pelo governador Joaquim Ferreira Chaves ao Congresso Legislativo do Estado do Rio Grande do Norte ao abrir-se a 2ª sessão ordinária da 3ª legislatura em 14 de julho de 1899 acompanhada dos relatórios de presidente do Superior Tribunal de Justiça e dos outros [...] Natal: Typ. d’A República, 1900. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo do Estado na abertura da terceira legislatura pelo governador Alberto Maranhão. Natal: 1900. 322 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo do Estado na abertura da primeira sessão da quarta legislatura pelo governador Alberto Maranhão acompanhada dos relatórios apresentados pelos chefes dos diversos ramos do serviço público. Natal: Typ. d’A República, 1904. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo do Estado na abertura da primeira sessão da quarta legislatura pelo governador Alberto Maranhão acompanhada dos relatórios apresentados pelos chefes dos diversos ramos do serviço público. Natal: Typ. D’A República, 1904. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo do Estado na abertura da terceira sessão da quarta legislatura a 14 de julho de 1903 a 14 de julho de 1903 pelo governador Alberto Maranhão acompanhada do Relatorio do Secretario do Governo e das mensagens dos drs. Adolpho Affonso da Silva Gordo e Jeronymo Americo Raposo da Camara, apresentadas em 1890. Natal: Typ. d’A República, 1905. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo governador Alberto Maranhão ao passar o governo do Estado ao Doutor Augusto Tavares de Lyra no dia 25 de março de 1904. Natal: Typ. d’A República. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da sessão extraordinária de janeiro de 1905 pelo governador Augusto Tavares de Lyra. Natal: Typ. d’A República, 1905. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo do Estado na abertura da terceira sessão da quinta Legislatura a 14 de julho de 1906 pelo governador Augusto Tavares de Lyra acompanhada dos relatórios apresentados pelos chefes dos diversos ramos do serviço publico. Natal: Typ. d’A República, 1907. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da sexta legislatura em 1 de Novembro de 1907 pelo governador Antonio José de Mello e Souza. Natal: Typ. d´A República, 1907. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da Segunda Sessão da Sexta Legislatura em 1º de novembro de 1908 pelo governador Alberto Maranhão. Natal: Typ. d’A República, 1908. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da Terceira Sessão da Sexta Legislatura em 1ª de novembro de 1909 pelo governador Alberto Maranhão. Natal: Typ. d’A República, 1909. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da sétima Legislatura em 1º de Novembro de 1910 pelo Governador Alberto Maranhão. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da Segunda Sessão da Setima Legislatura em 1ª de novembro de 1911 pelo governador Alberto Maranhão. Natal: Typ. d’A República, 1911. 323 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da Terceira Sessão da Sétima Legislatura em 1º de Novembro de 1912 pelo governador Alberto Maranhão. Natal: Typ. d”A República, 1912. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da oitava legislatura pelo governador Alberto Maranhão. Natal: Typ. d’A República, 1913. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da oitava legislatura em 1º de novembro de 1914 pelo governador Desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. d’A República, 1914. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da terceira sessão da oitava legislatura em 1º de novembro de 1915 pelo governador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. d’A República, 1915. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da nona legislatura em 1º de novembro de 1916 pelo governador desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. d’A República, 1916. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da nona legislatura em 1º de Novembro de 1917 pelo Governador Desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. d´A República,1917. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da sessão da décima legislatura em 1º de Novembro de 1918 pelo governador Desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. d’A República, 1918. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da décima legislatura em 1º de novembro de 1919 pelo governador Desembargador Joaquim Ferreira Chaves. Natal: Typ. Commercial J. Pinto, 1919. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da terceira sessão da décima legislatura em 1º de Novembro de 1920 pelo governador Antônio José de Mello e Souza. Natal: Typ. Commercial J. Pinto, 1920. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da primeira sessão da undecima legislatura em 1º de Novembro de 1921 pelo governador Antonio J. de Mello e Souza. Natal: Typ. Commercial J. Pinto, 1921. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da undecima Legislatura em 1º de Novembro de 1922 pelo Governador Antonio J. Mello e Souza. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da terceira sessão da undecima legislatura em 1º de Novembro de 1923 pelo governador Antônio José de Mello e Souza. Natal: Typ. d’A República, 1923. 324 RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da Primeira Sessão da 12ª Legislatura em 1º de Novembro de 1924 pelo governador José Augusto Bezerra de Medeiros.1924. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante o Congresso Legislativo na abertura da segunda sessão da 12ª legislatura em 1º de novembro de 1925 pelo governador José Augusto Bezerra de Medeiros. Natal: Typ. d’A República, 1925. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante a Assembléa Legislativa na terceira sessão da 14º Legislatura em 1º de Outubro de 1926 pelo Presidente José Augusto Bezerra de Medeiros, 1926. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem lida perante a Assembléa Legislativa na terceira sessão da 12º Legislatura em 1º de Outubro de 1926 pelo Presidente José Augusto Bezerra de Medeiros [...]1927. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo presidente do Estado do Rio Grande do Norte Juvenal Lamartine á Assembléa Legislativa e lida na abertura da primeira sessão da 14º Legislatura em 1º de Outubro de 1928. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo exmo. Dr. Juvenal Lamartine de Faria, Presidente do Estado do Rio Grande do Norte á Assembléa Legislativa por occasião da abertura da 3º Sessão da 13º Legislatura em 1º de outubro de 1929. RIO GRANDE DO NORTE. Mensagem apresentada pelo presidente Juvenal Lamartine de Faria a Assembléa Legislativa, por occasião da abertura da 1º Sessão da 14ª Legislatura. Natal, Imprensa Official, 1930. 325 BIBLIOGRAFIA AGUIAR, Maria Cecília Ribeiro Dantas de. História do ensino farmacêutico no Rio Grande do Norte. Natal: EDFURN, 1992. ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. 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Alberto Maranhão Francisco Pinto de Abreu REGIMENTO DO HOSPITAL DE CARIDADE “JUVINO BARRETO” O Inspetor de Hygiene e Assistência Públicas, usando da atribuição especial que lhe confere o art. 22 do regulamento que baixou o Decreto n. 238 de 15 de dezembro de 1910, recommenda a observancia do Regimento do Hospital de Caridade “Juvino Barreto” que a esta acompanha. Cumpra-se Dr. Calistrato CAPÍTULO I Do serviço médico no hospital Art.1ª O serviço medico do Hospital de Caridade “Juvino Barreto” tem por fim prestar soccoros da sciencia medica e cirúrgica dos doentes que delles precisarem para o tratamento de sua saúde. Art.2ª Haverá no hospital quatro classes de enfermos: Pensionistas de 1ª classe; pensionistas de 2ª classe; pensionistas de 3ª classe; indigentes. Os indigentes serão tratados gratuitamente, os demais mediante diária constante na tabella anexa a este regimento. Art.3ª O serviço médico do Hospital será classificado segundo a natureza do mal: se dividirá em clínica cirurgica geral; clinica medica geral; clinica obstetrícia, comprehendendo nesta ultima classe as parturientes e as doentes de moléstia ligadas ao puerperium, havendo tantas enfermarias quantas forem necessárias á direção do serviço. 340 CAPÍTULO II Do pessoal Art.1ª O pessoal destacado no serviço do Hospital de Caridade “Juvino Barreto” constará: §1ª De oito irmãs da Ordem das filhas de Sant’Ana, das quaes uma será Regente, outra pharmaceutica, ocupando as demais os lugares que lhes forem destinados pela Regente. §2ª De um cirurgião médico encarregado da sala de operações, das enfermarias do Hospital, da sala da maternidade e da sala do banco, para o receituário externo. §3ª De um medico encarregado dos gabinetes bacteriológico e electro-hydrotherapico. §4ª De um barbeiro. §5ª De uma enfermeira e duas ajudantes. §6ª De quatro serventes, que serão designados para o serviço interno ou externo, conforme autorizar a Regente. §7ª De uma cosinheira e duas ajudantes. §8ª Todo o pessoal do Hospital terá ordenado, gratificações e diárias constantes da tabella annexa. CAPÍTULO III Da administração interna Art.5ª A administração interna do Hospital de Caridade “Juvino Barreto” será confiada a oito irmãs da Ordem das Filhas de Sant’Anna, nos termos do contracto que assignou com o Governo do Estado, em 10 de agosto de 1909, a respectiva provincial. Art.6ª A escripturação do Hospital ficará sob a responsabilidade da Regente, que designará uma das irmãs para a secretaria. 341 CAPÍTULO IV Do cirurgião médico Art.7ª Ao cirurgião medico compete: §1ª Comparecer diariamente ao Hospital ás oito horas da manhã para visitar os doentes, demorando-se o tempo necessário para dar o expediente. §2ª Repetir as visitas nos casos extraordinários e tantas vezes quantas julgar conveniente. §3ª Attender com toda promptidão ao aviso feito pela Regente de que algum doente precisa do soccorro imediato da sciencia. §4ª Praticar as operações de pequena e alta cirurgia, inclusive as da sala de maternidade. §5ª Dar o expediente do receituário da sala do banco, aos indigentes, praticando ahi as operações de pequena cirurgia e providenciando sobre o tratamento e curativos. §6ª Dar entrada, por ordem numérica, aos doentes que forem internados no Hospital. §7ª Fazer os estudos anatômicos e laboratoriaes que forem necessários e a s autopsias dos doentes que falleceram no Hospital, quando julgar conveniente. §8ª Escrever do próprio punho as visitas diárias nas papelletas existentes na cabeceira dos leittos dos doentes, assignando os diagnosticos de moléstias, as prescripções medicamentosas, o regime dietético e mais que julgar necessário na therapia do doente. §9ª Dirigir as desinfecções que se tenham de praticar no Hospital, e visitar a Pharmácia e o Laboratório. §10ª Examinar a qualidade dos gêneros alimentícios fornecidos ao Hosp ital, recusando- os de acordo com a Regente, quando julgá- los em más condições. §11ª Solicitar do Governador do Estado auxilio de um ou mais facultativos para os casos de operações, quando isto for necessário. §12ª Remetter á Inspectoria Geral de Hygiene e Assistência Publicas, quando esta o exigir, um relatório que especifique a constituição medica e mostre a moléstia que mais predominou no quadro nosologico, determinando a sua causa, sendo possível. 342 §13ª Passar atestação de óbito e determinar a hora do enterramento dos doentes fallecidos. Art.14ª O cirurgião medico será substituído nos seus impedimentos por um facultativo designado pelo Governador do estado. CAPÍTULO V Do medico encarregado dos gabinetes bacteriológico e electro-hydrotherapico Art.9ª Haverá no Hospital de Caridade “Juvino Barreto” um medico encarregado dos gabinetes bacteriológico e hydrotherapico existentes no mesmo Hospital. Art.10ª A este medico compete: §1ª Providenciar no sentido da perfeita conservação e asseio dos apparelhos bacteriológicos e electro-hydrotherapicos, §2ª Fazer gratuitamente as analyses bacteriológicas ordenadas pelo Governo e auctoridade sanitária; e as solicitadas por particulares mediante pagamento por ajuste prévio com a Regente, de acordo com a informação do medico. §3ª Fazer as applicações electro-hydrotherapicas aos doentes do Hospital quando taes applicações forem indicadas; e as reclamadas pelos particulares, mediante pagamento, conforme o disposto no final do parágrafo 2ª. Art.11ª As analises bacteriológicas e as applicações electro-hydrotherapicas officiaiaes terão prefernciais sobre outras quaesquer. Art.12ª Os productos das analyses bacteriológicas e as das applicações electro- hydrotherapicas solicitadas por particulares e de que trata o final dos $$2ª e 3ª do Art. 10ª, será escripturado como receita extraordinária do estabelecimento, juntamente com as diárias dos pensionistas. Art.13ª O cirurgião medico encarregado das enfermarias, das salas de operações e de maternidade e da sala do banco, para o receituário externo, poderá ter a seu cargo os gabinetes de que trata o precedente art., sempre que tiver conhecimento comprovado da especialidade. (Art. 5ª, do Decret. n. 238, de 15 de dezembro de 1910). 343 CAPÍTULO VI Do barbeiro Art. 14ª Ao barbeiro compete: §1ª Comparecer ao Hospital duas vezes por semana, para cortar o cabelo e fazer a barba dos doentes, serviços que a Regente ordenar. §Único. Attender ao chamado da Regente em casos que forem necessários. Art.15ª Os seus ordenados serão pagos mediante attestado de eficácia provido pela Regente, [...] pelo Inspetor Geral de Hygiene e Assistência Públicas. CAPÍTULO VII Dos enfermeiros e seus ajudantes Art.16ª Os enfermeiros permaneceram no Hospital, de onde não sahirão sem que estejam presentes os seus ajudantes, revesando com estes o serviço durante a noite. §Único. Dando-se qualquer caso extraordinário nas enfermarias, o enfermeiro e seu ajudante ahi permanecerão as noites. Art.17ª Acompanharão, com os seus ajudantes, o medico nas visitas, attendendo ás suas indicações, para executal-as fielmencte. Art.18ª Os enfermeiros e seus ajudantes auxiliarão o medico nas operações, desempenhamdo o papel que lhes for confiado. Art.19ª Compre aos enfermeiros e ajudantes fazer todo o tratamento como for determinado, tomando nota de qualquer circumstancia que occorra para communicar ao medico. Art.20ª Compre aos enfermeiros e ajudantes auxiliar ás irmãs de enfermaria no asseio e conservação do instrumental cirúrgico. Art.21ª Compete- lhes, auxiliados pelos serventes, mudar a roupa dos doentes que estiverem abatidos. 344 §Único. Os enfermeiros ou seus ajudantes receberão da Regente a mortalha, caixão e mais necessários para o enterro do cadáver que deverá ser vestido pelos serventes, se fôr de homem, pelas serventes, se for de mulher. Art.22ª Além das obrigações, já mencionadas neste Regimento, o infermeiro é obrigado: §1ª A tratar os doentes com o maior zelo e carinho, satisfazendo nas requisições no que lhes for permittido. §2ª Apresentar-se decentemente vestido nas enfermarias. §3ª A zelar pelo asseio e disciplina nas enfermarias, cumprindo as ordens que nesse sentido receber da Regente ou da irmã da enfermaria. §4ª os instrumentos e mais materiais cirurgico ficarão sob a guarda da irmã da enfermaria, que entregará diariamente aos enfermeiros o indispensável para cada dia, recebendo e guardando depois de feitos os curativos, o material cirúrgico convenientemente limpo e os medicamentos que sobrarem. Art.23ª Os enfermeiros ficam, no que diz respeito ao serviço clínico, sob a immediata fiscalisação do medico do Hospital; e no que diz respeito ao serviço econômico e administrativo, sob a direção e fiscalisação da Regente ou de quem a representar. Art.24ª Aos enfermeiros não é permittido a entrada em outras enfermarias, que não a de seu serviço, salvo ordem ou chamado superior. Art.25ª As faltas praticadas pelos enfermeiros serão punidas. a- com censura; b- com suspensão de trez a quinze dias; c- com demissão. Art.26ª É competente para impor as penas a,b e c, a Regente, por conhecimento próprio da falta, por queixa do cirurgião medico ou da irmã da enfermaria. 345 CAPÍTULO VIII Dos serventes de enfermaria Art.27ª Em cada enfermaria haverá o número de serventes que for necessário ao serviço, sendo da competência da Regente a respectiva administração, desinfecção e limpeza de que possam precisar, sem prejuízo do serviço, nos termos da clausula décima sexta, do contracto de 10 de agosto de 1909, celebrado com o Governador. Art.28ª Aos serventes compete: §1ª Executar os serviços que lhes fora determinado pela Regente e irmã de enfermaria. §2ª Proceder, com máxima brevidade as diligencias que lhes forem ordenadas a bem da boa marcha do serviço. §3ª Não penetrar sem ordem da irmã dos serviços nas enfermarias pela manhã. §4ª Dormir no Hospital com salvo consentimento da Regente. §5ª Conduzir os cadáveres ao necrotério para serem por elles mortalhados. §Único. Em caso de autópsias, lavar o corpo e auxiliar o medico, só podendo depois de desinfectados, penetrar nas enfermarias. CAPÍTULO IX Da farmácia Art.29ª A Pharmacia e o seu deposito estarão a cargo de uma irmã de San’Anna, de habilitação precisa e designada pela Regente, conforme clausula oitava do contrato de 10 de agosto de 1909, e cumpre- lhe: §1ª Manter o maior asseio na pharmacia e depósitos. §2ª Escripturar em livro próprio os instrumentos cirúrgicos ou qualquer outro objeto de serviço que entra no Hospital, quer importado, quer comprado no commercio, desiguando as quantidades, qualidades, preços e as procedências, cumprindo- lhe também inventariar e classificar os que forem offerecidos ao hospital. 346 §3ª Aviar todo o receituário ordinário e extraordinário do mesmo hospital e da sala do banco para os doentes miseráveis; os receituários destinados aos Asylos de Mendicidade e de Alienados; Isolamentos de Tuberculosos, variolosos e outros, enfermaria de urgência da Polícia e, bem assim, os pedidos de desinfectantes para o serviço da Inspectoria de Hygiene e Assistência Públicas. §4ª Registrar em livro especial rubricado pelo Inspector Geral de Hygiene e Assistência Publicas as fórmulas que forem despachadas diariamente. §5ª Conferir as faturas, verificando-se as quantidades de medicamentos entrados estão conforme as mesmas e mencionados os artigos ou quantidades que faltaram, bem como os que tenham chegado estragados, assignando tais declarações e dando sciencia de tudo a Regente, para esta o communique á Inspetoria Geral de Hygiene e Assistência Públicas. §6ª Dar conta mensalmente á Regente do estabelecimento e esta por sua vez ao Inspetor Geral de Hygiene e Assistência Públicas do movimento da pharmacia, demonstrando o número de fórmulas aviadas. Art.30ª A ajudante e servente, que forem precisos para o serviço, da Pharmacia e depósitos, serão designados pela Regente e ficarão sob as ordens da irmã encarregada da Pharmacia, sendo obrigados a todo o serviço que pela mesma lhes for designado. CAPÍTULO X Dos deveres dos enfermos Art.31ª Todo o enfermo que entrar para as enfermarias do hospital deverá sujeitar-se aos seguintes prescrittos: I. Conservar-se sempre de mudo descente ao leito que lhe for designado, não gritar, altercar, jogar ou fumar, e guardar completo silêncio das oito horas da noite ás seis da manhã. II. Observar fielmente as determinações do medico, quanto aos remédios e as dietas que lhe forem prescritas. 347 III. Tratar com respeito e deferência a todos os empregados do estabelecimento. IV. Não sahir do leito e enfermaria em que for colocado para outro leito e outra enfermaria, nem andar pelos corredores e jardim sem permissão do facultativo inscripta na respectiva pappeleta. V. Permanecer no seu leito ou junto delle, com todo acatamento, quando na enfermaria administra-se o Sagrado Viatico ou tiverem logar as orações da manhã e da noite. Art.32ª Nenhum enfermo poderá sahir do hospital antes de ter alta, a qual só poderá ser dada pelo cirurgião medico ou quem o substituir. Art.33ª Os enfermos pensionistas ficam egualmente sujeitos á escupulosa observância dos preceitos constantes dos $s. I e IV, do art.31ª, sendo- lhes, porém, permittido: §1ª Sahir de quando em vez do hospital se o facultativo clinico o consentir. §2ª Receber de suas casas as roupas que lhes for necessária. 3ª Passeiar decentemente vestido, com permissão do cirurgião medico nos alpendres, nos pateos, no jardim, sem poder, todavia, entrar em outro quarto nem tão pouco penetrar nas enfermarias. Art.34ª O enfermo indigente ou pensionista qual faltar scientemente aos preceitos que lhes são impostos neste capitulo, será punido: I- Com admoestação pelo medico, regente ou irmã de enfermaria. II- Com prohibição de sair de seu leito, privação de passeio, suspensão de parte de suas refeições, por um ou mais dias, expulsão e prisão no xadrez, nos casos de insubordinação, só podendo, porem, esta ultima pena ser imposta pelo Inspector de Hygiene e Assistências Públicas. III- No caso de falta mais grave por qualquer enfermo indócil ou recalcitrante, a regente levará o facto occorrido ao Inspector Geral de Hygiene e Assistência Públicas, para que elle providencie, participando ao Governador do Estado, afim de que seja tomada uma deliberação definitiva. Art.35ª A vaccinação será obrigatória para todos os doentes que entrarem no hospital, salvo aquelles a respeito dos quaes se verifique impossibilidade de fazer. 348 CAPÍTULO XI Da admissão de enfermos Art. 36ª Serão admitidos no Hospital de Caridade ‘Juvino Barreto” e tratados gratuitamente as pessoas que se apresentarem doentes na portaria do estabelecimento e que forem reconhecidamente indigentes. Art.37ª Não serão admitidos no Hospital os doentes que precisarem de isolamento por sofrerem de moléstia infecto-contagiosa. Art.38ª Ninguém será admitido no Hospital para ser tratado a própria custa, sem apresentar a regente obrigação assignada por pessoa idônea que se responsabilize pelo pagamento da contribuição, como principal devedor. Art.39ª Excepto nos casos em que trata o art.37 tem competência para admittir os doentes indigentes no hospital: I. O Governador do Estado II. O Inspetor Geral de Hygiene e Assistência Públicas III. O cirurgião medico do estabelecimento, que designará a enfermaria que o doente deve occupar. IV. As autoridades policiais V. O comandante do Batalhão de Segurança, quanto as praças de seu commando. VI. Os cônsules, com relação aos súbditos de sua nacionalidade. VII. O médico da Saúde do Porto, quanto aos doentes de bordo das embarcações. Art.40ª A admissão dos enfermos de que trata os artigos 39, em seus n. I, II, III, IV, V, VI, VII, será feita pela autoridade respectiva, mediante officio dirigido á regente do Hospital. Art.41ª Os doentes pelas pessoas de que tratam os n. I, II, III, IV, V, VI e VII, do art 39, e que se apresentarem a horas em que não esteja no estabelecimento o cirurgião medico, serão provisoriamente recolhidos a uma enfermaria especial, até que lhes seja designada pelo facultativo do estabelecimento a enfermaria em que devem ficar. 349 Art42ª No acto da entrada, se fará a inscripção no respectivo livro de nome do doente, edade, estado civil, naturalidade, nacionalidade, residência, filiação e mais esclarecimentos que for possível obter-se. Art.43ª A Regente ou quem a substituir, interrogará o enfermo para que este declare se traz consigo dinheiro, joias ou qualquer outro objecto de valor; no caso afirmativo os receberá para guardar, tomando respectivas notas no livro destinada para esse fim; e entregará os objetos ao doente, quando este sahir ou a quem de direito, ao fallecer. §Único. A declaração do doente de que não traz consigo objectos de valor, ou de que, trazendo-o, não o quer entregar, não dá direito á reclamação, o que tudo constará no livro a que se refere este art., ainda mesmo que se trate de pensionista de qualquer classe. Art.44ª É expressamente prohibido a entrada de qualquer doente no hospital, transitando ou conservando consigo qualquer arma ou instrumento de defeso. CAPÍTULO XII Da remoção dos doentes do hospital de caridade “Juvino Barreto” para outro estabelecimento de Assistência Pública. Art.45ª Nos casos em que o cirurgião médico do hospital julgar necessário a remoção de um doente para outro estabelecimento, por ter sido acommetido de moléstia infecto- contagiosa, loucura, invalidez, tec., a Regente providenciará no sentido de ser feita a remoção com a maior presteza, communicando o facto ao Inspector Geral de Hygiene e Assistência Públicas. Art.46ª A remoção será feita á hora conveniente, sendo os doentes que não poderam locommover-se conduzidos em padiola para tal destinada. Art.47ª A padiola que conduzir doentes de moléstia infecto-contagiosa só poderá sahir do respectivo isolamento, depois de convenientemente desinfectada. Art.48ª Os doentes de que trata o art.45 levarão guia da Regente para o estabelecimento em que deverem ser admittidos cumprindo um encarregado do isolamento ou asylo providenciar sobre o recolhimento do doente, ficando registradas na secretaria do Hospital as guias expedidas para a remoção, com todas as declarações que constarem da papelleta. 350 Art. 49ª A nenhum encarregado do estabelecimento respectivo é permittido, sob qualquer pretexto, recusar a admissão do doente que lhe for enviado, nas condições declaradas no art. Precedente. CAPÍTULO XIII Disposições gerais Art.50ª A visita do Governador do Estado, do Inspector Geral de Hygiene e Assistência Públicas e dos Médicos do estabelecimento será anunciada ao Hospital por toques de sineta. Art.51ª As visitas aos doentes que os poderem receber terão lugar nas quintas-feiras e domingos de cada semana, das duas às cinco horas da tarde; fora destes dois dias só com permissão da Regente. §Único. O visitante, sendo pessoa suspeita, será acompanhado pelo enfermeiro e seu ajudante, para que não dê ao doente qualquer alimento prejudicial. Art.52ª A cosinheira e sua ajudante cumpre preparar a qualquer hora da noite e o alimento que for pedido para os doentes. Art.53ª As dietas serão examinadas pela Regente, e no seu afastamento pela irmã de enfermaria, antes de serem distribuídas, scientificando-se ao facultativo clinico qualquer irregularidade que occorra. Art.54ª Os enfermeiros e enfermeiras são obrigados a ouvir as reclamações de doentes, relativamente á preparação de comida, para orientarem a Regente ou irmã de enfermaria, que providenciará, sendo justa a reclamação. Art.55ª Será dada alta ao doente que, com clareza de entendimento e sem gravidade do mal, não fizer uso dos remedios aconselhados pelo facultativo. Art.56ª Se algum cadáver for requesitado pelos Paes ou parentes, para fazerem o enterro, poderá a Regente conceder o pedido, ouvindo o cirugião medico. Art.57ª Os presos de Justiça serão recebidos no Hospital, havendo autorização do doutor chefe de polícia; curados, serão conduzidos á penitenciaria e em caso de óbito, se communicará a Chefatura de polícia, para proceder-se a exame de identidade do cadáver, antes de ser este dado á sepultura. 351 Art.58ª A não ser em dias solennes, em que se celebre na Capella o sacrifício da missa, não poderão os doentes e as doentes visital-a promiscuamente. Art.59ª As parturientes serão assistidas na enfermaria especial de partos prela enfermeira, sob a vigilância do cirurgião medico. Art.60ª Haverá uma tabella de dieta [...] cirurgião medico, que não fica inibido de prescrever extraordinário, se julgar conveniente. §Único. Depois das visitas diárias, as irmãs de enfermarias apresentarão as pappeletas á Regente, que mandará formular o pedido de dieta e transcrever o receituário. Art.61ª Sempre que for possível se adstringirá o médico em seu receituário no formulário da Santa Casa de Misericórdia da Capital Federal enquanto não der ao Hospital formulário apropriado. Art.62ª Poderá a Regente fazer qualquer despesa urgente, da qual solicitará pagamento ao Governador do Estado, por intermédio do Inspetor geral de Hygiene e Assistência Públicas. Art.63ª O cirurgião medico poderá acceitar os serviços de um ou mais médicos que o queiram auxiliar na clínica geral ou em qualquer especialidade, sem ônus algum ao Estado. Art.64ª O cirurgião medico, bem como o medico encarregado dos gabinetes bacteriológicos e hydrotherapico, receberão os seus vencimentos mediante attestado de frequência passado pela Regente, visado pelo Inspetor de Hygiene e Assistência Públicas. Art.65ª Os casos omissos neste Regimento Interno serão decididos pelo Inspetor Geral de Hygiene e Assistência Públicas, que ouvirá, para isso, sendo preciso, o Governador do Estado. Inspetoria Geral de Hygiene e Assistência Públicas. Natal, 4 de setembro de 1911. O Inspetor, Dr. José Calistrato Carrilho de Vasconcelos