UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LÍGIA PEREIRA DOS SANTOS Histórias do corpo negado: uma reflexão educacional sobre gênero e violência feminina Natal - RN 2005 2LÍGIA PEREIRA DOS SANTOS Histórias do corpo negado: uma reflexão educacional sobre gênero e violência feminina Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação, sob a orientação da Prof.ª Drª. Maria Arisnete Câmara de Morais Natal - RN 2005 3LÍGIA PEREIRA DOS SANTOS Histórias do corpo negado: uma reflexão educacional sobre gênero e violência feminina Tese apresentada à Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Educação. Aprovada em: _______ / _______ / 2005. BANCA EXAMINADORA Prof.ª Drª. Mª Arisnete Câmara de Morais Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Prof.ª Drª. Constância Lima Duarte Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG Prof. Dr. Charliton José dos Santos Machado Universidade Federal da Paraíba - UFPB Prof.ª Drª. Maria Inês Sucupira Stamatto Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Prof.ª Drª. Rosanália de Sá Leitão Pinheiro Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 4Dedico às meninas- flores em botão- de todos os povos, nações e línguas... e, em especial, as minhas pequeninas netas Ana Lígia e Sarah Na esperança de que em seus corpos nunca... as marcas da violência ... às mulheres-flores que tiveram seus corpos inscritos pela violência visível e invisível, na esperança de que em nossos corpos nunca mais... outras marcas da violência ... 5AGRADECIMENTOS À minha querida orientadora Profª. Maria Arisnete Câmara de Morais, bússola da pesquisa, pelos ensinamentos, debates nas questões de gênero, competência, afetuosidade, confiança, encorajamento e lições de companheirismo. À Profª. Rosanália de Sá Leitão Pinheiro, rosa da base de pesquisa, pela amizade e compreensão, me orientando a redigir no momento em que o mar de minha vida encapelou. À Profª. Marta Maria de Araújo, que com seu olhar saudoso e amoroso sobre Campina Grande contribuiu, lançando pontos de luzes metodológicas sobre a pesquisa. Ao Prof. Charliton José dos Santos Machado, companheiro que com suas lições pedagógicas e políticas impulsionou a escrita desta tese. Aos que fazem o Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela oportunidade que me foi oferecida em viabilizar meios de possibilitar o meu crescimento educacional e profissional. Aos colegas pesquisadores e pesquisadoras do Núcleo de Educação, Política e Cultura, de Pesquisa em Gênero e Práticas Culturais: abordagens Históricas Educativas e Literárias, pelos momentos de aprendizagem coletiva. Aos colegas da base de pesquisa, Rossana Kess Pinheiro, pelo ouvido, pelo compreensivo silêncio, pelo sábio conselho, e, sobretudo, pelo sorriso. A Maria de Fátima Araújo, pelos questionamentos em busca da categorização das fontes de pesquisa e a Manoel Pereira Rocha Neto, amigo sempre disposto a atender minhas mensagens e pedidos de SOS. À Universidade Estadual da Paraíba, instituição onde leciono pelo apoio e incentivo na capacitação dos docentes na pessoa da reitora Profª. Marlene Ribeiro. À Prof.ª Maria Idalina Santiago, coordenadora do Grupo de Estudos de Gênero Flor e Flor, e as minhas alunas participantes dos projetos na Delegacia da Mulher e no Presídio Feminino do Serrotão, pelo compromisso e dedicação. 6À Maria Tereza de Jesus diretora do Presídio Feminino na época que desenvolvi o projeto, pelo apoio e compreensão, abrindo as portas daquela instituição carcerária. À delegada Josefa Alves da Delegacia da Mulher, por oportunizar a realização da pesquisa, sem esquecer a ex delegada Madeleine por seu apoio às alunas e incentivo. Ao Diário da Borborema e ao Jornal da Paraíba que abriram as portas dos seus arquivos, enriquecendo o trabalho e ampliando as fontes desta tese. À professora Creosolita de Almeida Cavalcante, pelo estímulo quando presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher para realização do projeto no presídio. Ao assistente social Francisco Cleibe Dantas, pelo apoio com o material do Balcão de Direitos da Defensoria Pública Itinerante, minha gratidão. À enfermeira sanitarista Maria Teone Ribeiro, leitora apaixonada, pescadora dos livros que possibilitou a gestação desta tese, pela rara e bela amizade em meio a acirrados debates, “brigas” teóricas, reflexões, lágrimas, telefonemas noturnos, risos e orações. À Mayam de Andrade Bezerra, competente orientanda, pelo companheirismo na vida e nos arquivos dos jornais, além da parceria nas “descobertas” de informática quando da digitação da pesquisa e a seu irmão Johnston, pelo olhar “microscópico” na formatação deste. Ao amigo Epitácio, pelo companheirismo de encadernar a minha tese até alta madrugada, no objetivo de atender a minha emergência, a minha sincera gratidão. À amiga missionária Elizane, pelo apoio e solidariedade nas orações e a todos os meus irmãos e irmãs em Cristo, que me abençoaram com suas fervorosas orações. A todos os meus professores desde a infância, presentes nesta tese, pois com suas sementes intelectuais me impulsionaram a lutar cada vez mais pelos meus objetivos. A meu pai José Peba Pereira dos Santos e minha mãe Edileusa Campos de Oliveira, por terem me gerado e estimulado a minha educação na vida e pela vida. 7Aos filhos, Róberson Magno, pelo companheirismo e noites de pesquisa na internet; Dêmisson Elói, pelas experiências com o amor e a dor; Vinícius José, pelos beijos e carinhos silenciosos ao computador. Ao filho adolescente Leonardo Filho, que mesmo chateado compreendeu e perdoou as ausências de “mainha” durante os estudos e pesquisa. À filha Helena Virgínia, pelas mãos falantes em sua surdez, “mãos que calaram” tecendo as flores de seda do meu projeto. Às irmãs Anita Leocádia e Olga Benare pelas contribuições e apoio junto a seus parceiros Vladimir e Nerivaldo. E às noras Cláudia, Jully e Danielle, pelas lições de vida. Aos netos e netas, Ana Lígia, Daniel, Sarah, Davi e Filipe, pelas belas carinhas sorridentes e barulho de vida que me “arrancavam” do computador a fim de dançar louvores em hebraico, ao nosso Deus, acalmando o meu corpo. Ao marido, Leonardo Afonso, pelas leituras de mundo, pela convivência, pelo distanciamento, sem esquecer o companheirismo de me acordar nas madrugadas geladas de Campina Grande e presteza da velocidade automobilística rumo à Natal ou à rodoviária. Enfim, À Deus Pai - Adonai, a Deus Espírito Santo, a Deus Filho – Yeshua, o meu amado jardineiro, por ter me ensinado o caminho das pedras pelo jardim das mulheres-flores: Papoula, Lírio, Rosa, Dália, Copo de Leite, Girassol, Tulipa, Verbena, Orquídea, Jasmim, Flor de Cacto, Violeta e Margarida... Belas flores machucadas! Sem Ele, e sem elas esta Tese não seria... Sem vocês eu não seria... A flor do campo (de pesquisa)! 8“Eu sou a rosa de Sarom, o lírio dos vales. Qual o lírio entre os espinhos, tal é a minha amiga entre as filhas.” (CANTARES, cap.2 vers.1-2) 9RESUMO Esta pesquisa insere-se no eixo temático Educação, Política e Cultura, em torno das relações de gênero, investigando a temática mulher, violência, corpo e educação no cotidiano de mulheres vítimas de violência física, sexual e psicológica. O período da pesquisa situa-se no final do século XX e início do XXI, especificamente entre os anos 1999 a 2002. O trabalho mostra a influência do dispositivo sexualidade sobre o corpo ao revelar a gênese da violência nas relações de gênero, presente nas histórias de mulheres agressoras, das presidiárias e das mulheres agredidas, vitimadas que denunciam na Delegacia da Mulher. Para preservar a intimidade das mulheres, utilizo em meus registros pseudônimos de flores, para cada uma das entrevistadas. Defendo a tese de que a violência nas relações familiares, micro espaço de poder e saber sobre o sexo, influencia na construção educacional das relações de gênero, gerando a negação do corpo feminino. Trabalho com as categorias corpo, sexualidade, violência, poder e amor, para defender a tese proposta. Apresento as concepções de corpo e sexualidade à luz do pensamento do filósofo francês Michel Foucault, que entende a sexualidade como um dispositivo de poder, presente de forma circular na sociedade em todas as instituições. Recorro a teoria a respeito do amor de Erich Fromm. São fonte de pesquisa os jornais, os registros de queixas policiais, os depoimentos das presidiárias e das mulheres agredidas que denunciam os agressores. Utilizo também como fonte o Código Penal Brasileiro. Por fim, concluo que as histórias das mulheres–flores, possuem discursos que revelam a importância do corpo como um local privilegiado de saberes e de verdades, que são traduzidos por suas subjetividades e relações educacionais aprendidas e repetidas no seio familiar e referendadas pela sociedade. Relações estas, que repensadas e problematizadas, podem trazer sementes de transformação social. Palavras-chave: Corpo – Sexualidade - Gênero  Violência  Educação. 10 ABSTRACT This research has been implanted on thematic area education, politic and culture, based on line research and cultures practices – aducatives histories approaches and literaries. on this situations, be involved around the kind of relations investigating about history – cultural perspective, the thematic: woman, violence, body and education in women’s daily victims of fisic, sexual and psychological violence. The research period happens end of 20th century beginning of 21th, specially between the 1999 until 2002. The survey shows influence of sexually device above body to reveal the root of violence in kinds of relations, be present in lifehistory of women aggressors – the prisoners women and the women who permits aggressions – the victims who accuse in the police station of woman. to preserv her privacy, i have been utilized in my register book pseudonym by flowers, to everyone. i have been defended my theory by familyrelations, be constitued in micro powerspaces and learn about sex, under the influence of violence in kinds of relations, creating negative bodywoman. shows bodyconceptions and sexuality by light thinking of the French philosopher Mr. Foucault Michel, in his opinion sexuality is a mechanisms by power, it is present on circular form at the society from all the institutions. I have been run over of Erich Fromm’s lover theory. Those are fontain of newspapers, Police Protests, the prisoners women statement and the women who permits aggressions that them accuse aggressors of hers. I also utilize as fontain the Brazilian Penal Coole. At last I have decide about the flowers-women´s history, they have discourse who divulge the really importance of body as privileged by wisdom and truths, it was translated by own subjectivity, learned educations relacions, repetead in family breast and be responsible of the actions at signature in the presence of society. These relacions, were twice think and was problematic, their will be bring seeds of social transformations. Keywords: Body – Sexuality – Kind – Violence - Education 11 LISTA DE SIGLAS AABB  Associação Atlética Banco do Brasil AIDS  Síndrome da Imuno-deficiência Adquirida BNB  Banco do Nordeste Brasileiro CEPES  Centro Paraibano de Educação Solidária CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito CUT  Central Única dos Trabalhadores DST  Doenças Sexualmente Transmisíveis FACISA  Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas FIEP  Federação das Indústrias do Estado da Paraíba IPC  Instituto de Polícia Científica SANBRA  Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro SNI  Serviço Nacional de Informação OMS  Organização Mundial da Saúde ONU  Organização das Nações Unidas PSF  Programa Saúde da Família UEPB  Universidade Estadual da Paraíba UFCG  Universidade Federal de Campina Grande UFPB  Universidade Federal da Paraíba UML  Unidade de Medicina Legal UVA  Universidade do Vale do Acaraú 12 Sumário Introdução...........................................................................................................................14 Capítulo I 1 A análise das Raízes 1.1 Compreendendo a gênese do semear..............................................................................21 1.2 Adubando o canteiro: a reflexão entre teoria e prática...................................................28 Capítulo II 2 Um olhar sobre os jardins 2.1 Sementes no canteiro acadêmico e profissional ............................................................39 2.2 Desenhando o caminho metodológico da pesquisa .......................................................47 2.3. As mulheres flores de corpos negados..........................................................................58 2.4. Arando a terra, e descobrindo as categorias de análise.................................................67 Capítulo III 3 Contemplando a cidade e suas flores 3.1 O jardim: Campina Grande – no caminho do trem tinha uma flor.................................91 3.2 Um passeio nos jardins residenciais, às flores e as ervas daninhas..............................118 Capítulo IV 4 Colhendo as sementes 4.1 As marcas da lei impressas no corpo feminino............................................................147 4.2 Os jardins das praças públicas da cidade: as flores pisadas.........................................165 Plantando considerações..................................................................................................191 Referências........................................................................................................................195 Anexos................................................................................................................................197 13 ‘Acredito não apenas em minha capacidade de sobreviver, mas, também, na de florescer.’ (THORNTON, 1985, p. 10) 14 Introdução Falar de violência nas relações de gênero, significa falar de concepções cristalizadas no homem e na mulher que foram produzidas como verdades na sociedade ocidental. Registrar a violência no corpo feminino, significa também transitar no território da construção de papéis sexuais e da repressão, poder, vergonha, medo, amor, preconceito, interdição do desejo, paixão, prazer, vida e morte. Estas construções sociais não estão fora da educação seja no seio familiar, no espaço escolar ou na sociedade. Representa registrar a história de mulheres e as configurações sociais que giram em torno do gênero na nossa sociedade. A precária infra-estrutura urbana, o desemprego, o alto índice de criminalidade, a insegurança no trânsito, o crescimento do tráfico de drogas apresentam-se como fatores que aceleram o processo da violência que afeta as mulheres da atualidade. O crescimento das cidades com a expansão do comércio e da indústria tem sido acompanhado da economia centralizada, da diferenciação econômica dos espaços, da separação social e política acrescida de conflitos familiares, educacionais e sociais, que nos revela a violência no espaço privado, o qual aflige a mulher excluída da cidadania e possui justificativas na história do povo brasileiro. A violência do tempo presente possui raízes na história do Brasil desde o processo de colonização, na utilização da força física e armas para desapropriar as terras indígenas e escravizar os negros. A violência acompanhou e acompanha a formação cultural brasileira, na construção do Estado e das suas instituições, desde a mulher indígena, a escrava liberta, à atual paraibana presidiária e às mulheres que denunciam práticas de repressão. A concentração de terras e a ausência de política agrária são motivos históricos para a permanência da violência rural contra as mulheres excluídas, que se fazem presentes em Campina Grande e se revelam nos conflitos agrários, entre os Sem Terra e os proprietários de 15 terras, estendendo-se à violência até a casa temporária do Estado das mulheres vitimadas como as Casas Abrigo, chegando a casa não existente dos Sem Teto ao Teto do Presídio. Tal realidade remete a reflexão sobre a violência no espaço da cidade de Campina Grande. Por trabalhar com a categoria “violência” que afeta o corpo de muitas mulheres, considero a importância de apresentar a Declaração sobre a Violência contra a Mulher, aprovada na Convenção Interamericana, publicada nos Instrumentos Internacionais na Defesa da Mulher: Art. 1º - Para os efeitos dessa Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. Art. 2º - Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica. a) Ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica, ou em qualquer relação interpessoal, que o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abusos sexuais; b) Ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c) Perpetuada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. (2003 p.55) O pesquisador, nas pesquisas desenvolvidas nas ciências humanas e na educação, é, antes de tudo, um sujeito inserido no espaço social e está colado no seu objeto, que fala, havendo com isso, conseqüentemente, uma relação subjetiva entre o pesquisador e o seu 16 objeto pesquisado. Portanto considero importante historicizar, brevemente, o trajeto percorrido anterior à proposta de tese. Destarte, o trajeto em busca de reconstituir a história de mulheres que vivenciaram violência passa pela minha experiência pessoal e profissional e atuação na prática pedagógica. No contato íntimo com a violência me defrontei com questões que inicialmente não estava preparada para responder. Discutí-las teoricamente e intervir no quadro da realidade social se fez necessário. Exercendo a função de professora universitária na Universidade Estadual da Paraíba no município de Campina Grande, desenvolvi o projeto Corpo Feminino no Presídio Feminino do Serrotão e na Delegacia da Mulher. Ao mesmo tempo trabalhava primeiro na sub coordenação do Conselho dos Direitos da Mulher e posteriormente como Assessora da Casa da Mulher, de modo que me eram solicitadas respostas para questões referentes à sexualidade e violência durante a transição do final do século XX e início do XXI, no espaço de atuação com mulheres agredidas e agressoras. Optei por discutir a questão da violência contra a mulher, um tema (re)conhecido na Academia e que traz em seu bojo uma polêmica atual: as relações de gênero e diz respeito à sexualidade. As questões sobre a condição de opressão feminina vinham não só das mulheres agredidas e agressoras, mas também das profissionais que atuavam na Casa da Mulher e das alunas da instituição onde leciono, atuantes no projeto do presídio e na delegacia, possibilitando definir com maior clareza a necessidade de definir metodologias, bibliografias e fontes que discutissem a violência na sexualidade e no corpo feminino. Utilizei como fontes os jornais, os registros de queixas policiais, o Código Penal Brasileiro e os depoimentos das presidiárias e das mulheres vitimadas que denunciam na Delegacia da Mulher e refleti à luz das teorias de Michel Foucault e Erich Fromm. 17 Inserida no espaço social como socióloga e profissional da educação, pude observar questões para as quais nem sempre tinha e obtinha respostas e eram presentes de forma contundente nas histórias das mulheres: o relacionamento mãe e filha, o relacionamento sexual da mulher com o parceiro, e o processo educacional vivenciado, entendendo o processo educacional no contexto amplo e não apenas na compreensão da escolaridade. É certo que a questão da violência nas relações de gênero, antes de ser uma questão na e para a educação, é uma questão da própria educação que opera dentro da sociedade, por isso não está ilesa às influências que surgem dessa interação. O confronto com a prática, e a necessidade de teorizar sobre ela, é que me levou a desenvolver esta tese. Considerando que o tema violência está presente vivamente nas relações de gênero foi com convicção que optei por investigar a temática. A realização de uma pesquisa exploratória preliminar, as análises bibliográficas sobre o tema e as fontes primárias consultadas na implantação do projeto no Presídio Feminino e na Delegacia da Mulher foram delineando o recorte necessário à investigação. Assim, todo o processo vivido para a definição desse recorte representa uma construção social e só corrobora o que assinala Bourdieu: [...] a construção do objeto - pelo menos na minha experiência de investigador - não é uma coisa que se produza de uma assentada. ( BOURDIEU, 1989, p. 27.) Meus motivos não foram frutos do acaso, fui atraída com redes de subjetividades. O discurso de minha vivência encontrou aqui um pouso. Misturei a minha voz e o meu silêncio aos relatos das mulheres pesquisadas. Ora ousada, ora vacilante, fizemos, eu e as mulheres da pesquisa, o acerto de contas com o recente passado, (só em parte!), porque [...] o passado emerge sempre inacabado, pois o futuro o utiliza de múltiplas maneiras através das gerações que reescrevem as histórias daqueles que as antecederam e com as quais pretendem realizar seu acerto de contas. (NUNES, 1992, p 12) 18 A tese é desenvolvida em quatro capítulos. No primeiro capítulo intitulado A análise das Raízes, apresento a experiência da história de minha vida, os episódios que vivenciei que motivaram a escolha pela temática, as formas de apropriação dos debates sobre violência contra o corpo feminino, fruto de um cotidiano de agressões, desde a mais tenra idade, como filha da ditadura, e mulher que vivenciou na pele a violência doméstica. No segundo capítulo denominado Um olhar sobre os Jardins, acompanho as interrogações, as construções de teses e o tecer da teia, dos pesquisadores do eixo temático Educação, Política e Cultura, em sua Base de Pesquisa Gênero e Práticas Culturais - Abordagens Históricas Educativas e Literárias. No caminho da história cultural, busco a fundamentação teórica em Michel Foucault e Erich.Fromm. Além da busca das táticas em Certeau que com sua teoria persegue respostas para os novos usos e abusos nas relações entre homens e mulheres comuns. E, por fim, desenho o caminho metodológico, e seus elos com os garimpos nas fontes da pesquisa apresentando os trajetos da categorização ao mundo acadêmico. No terceiro capítulo, que denominei Contemplando a cidade e suas flores com o olhar de socióloga, nordestina, paraibana, e gerada em Campina Grande, destaco o crescimento da minha cidade natal, o berço da pesquisa. Saliento os seus canteiros históricos e as flores machucadas, apresentando os julgamentos morais das mães, sogras e noras, quando as mulheres agredidas prestam as queixas na Delegacia da Mulher de Campina Grande, rompendo com o papel de românticas inexperientes, que sonhavam com seus amores sedutores nos territórios culturais demarcados e definidores do lugar da mulher: dentro do lar e no casamento. No quarto capítulo intitulado Colhendo as Sementes, apresento as histórias de vida de mulheres junto ao significado e à natureza do crime no corpo da mulher, revelando o que é um corpo feminino violentado, agredido, desonrado, articulando com a apresentação e a 19 análise dos enunciados, leis, normas do Código Penal, especialmente referente ao exercício da cidadania contra a violência feminina. Apresento ainda as histórias de vida de mulheres delinqüentes, agressoras, inadequadas às leis e normas sociais, como: a homicida, a ladra, a infanticida, a corruptora de menores, acompanhadas dos relatos das presidiárias sobre os julgamentos morais dos seus familiares e, em especial, de suas mães. Analiso as trajetórias de suas vidas no crime, fazendo uma ligação com as reportagens policiais, presentes nos jornais campinenses: Jornal da Paraíba e Diário da Borborema. Nas considerações finais, reflito sobre a invenção de um corpo feminino, pelos costumes que constroem os lugares para mulheres e homens dentro dos papéis de gênero legitimados pela formação de opinião pública sobre a mulher que rompe com a imagem e os modelos sociais de passividade e de aversão à violência. E por fim, os anexos, com o Decreto do Presidente da República do Brasil tornando 2004 o ano da Mulher, junto ao documento que diz respeito à violência contra a mulher da I Conferência de Políticas Públicas para as Mulheres realizado no mês de julho, em Brasília. Apresento como fontes iconográficas, fotos históricas da cidade-menina e da cidade-mulher, na tentativa de revelar os caminhos pelos quais caminharam os pés das mulheres da pesquisa. Desde os passos de Margarida, antes de jogar seu jovem corpo no Açude Velho, aos meus passos rumo ao Presídio. 20 1 Análise das raízes C A PÍ TU LO I A Liberdade como Problema A torneira seca (mas pior: a falta de sede) a luz apagada (mas pior: o gosto do escuro) a porta fechada (mas pior: a chave por dentro). (JOÃO PAULO PAES, 1999) 21 1.1 Compreendendo a gênese do semear A temática deste estudo1, mulher, violência, corpo e educação circunscrevem-se nos estudos de relações de gênero, no cotidiano de mulheres vítimas de violência física, sexual e psicológica. Compreendo que não se pode falar da história da violência contra a mulher, sem falar do seu corpo. E este corpo está inevitavelmente envolvido na teia das relações de gênero. Relações estas que transitam muito intimamente com as violências simbólica e material. Homem e mulher pensam, criam e sentem as experiências pessoais, num corpo sexuado. Nada melhor que o homem para falar dele próprio. Nada melhor que a mulher para falar da violência por ela sofrida. A Defesa da Mulher através dos Instrumentos Internacionais define: A Expressão ‘violência contra a mulher’ se refere a quaisquer atos de violência, inclusive ameaças, coerção ou outra privação arbitrária de liberdade, que tenham por base o gênero e que resultem ou possam resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual ou psicológica, e que se produzam na vida pública ou privada (BRASIL, 2003, p. 152). Atualmente a violência apresenta-se de diferentes formas, ou seja, plurifacetada, atingindo diferentes espaços, podendo ser manifestada nas formas: material ou física e simbólica ou psicológica, podendo ocorrer em distintos espaços sociais e institucionais. São exemplos de violências simbólicas todas as formas de discriminação na sociedade. Os preconceitos com determinados grupos sociais, os estigmas que rotulam comunidades de idosos e ou grupos de esporte, a disciplina e a violência discursiva no lar e na escola, a censura da voz nos meios de comunicação, geram o não reconhecimento da cidadania de indivíduos ou grupos por pertencerem a determinadas raças, etnias e gênero. 1 Este estudo vincula-se à base de pesquisa: Gênero e Práticas Culturais: abordagens históricas, educativas e literárias, da UFRN, e ao projeto integrado História dos Impressos e a Formação das Leitoras/CNPq, coordenado pela professora Dra Maria Arisnete Câmara de Morais. 22 A violência simbólica ou psicológica tem se revelado como a base para a violência material ou física e utiliza imagens construídas socialmente, disfarçada em rituais e em interações, objetivando destruir moralmente ou psicologicamente o outro, também no espaço doméstico. No II Plano Nacional2 a violência doméstica é conceituada como sendo todo tipo de violência física, sexual ou psicológica que ocorre em ambiente familiar e que inclui, embora não se limitando a maus tratos, abuso sexual de mulheres e crianças, violação entre cônjuges, crimes passionais, mutilação sexual feminina e outras práticas tradicionais nefastas, incesto, ameaças, privação arbitrária de liberdade e exploração sexual e econômica. (BARBOSA, 2003, p. 24). A violência doméstica é vivenciada no espaço do lar, ou seja, nas relações familiares agredindo a saúde física e mental da vítima, resultando em danos sobre a vida proveniente de conflitos nas relações econômicas, com agressões em três tipos de formas: física, sexual e psicológica ou mental. A violência é física quando o agressor realiza ataques e ferimentos visíveis fisicamente; é sexual quando o agressor realiza relações sexuais forçadas e/ou não desejadas; é psicológica ou mental quando a agressão é por ameaças verbais ou tortura psicológica, privação material e econômica, possessão e ciúme excessivo, isolamento em cárcere privado, e destruição de documentos ou propriedade. A violência doméstica envolve a física e a simbólica, esta última como sendo a falta ou ausência do compromisso nas obrigações vitais de alimentação, moradia, saúde e educação. A violência nas relações de poder e a negação da identidade com as chamadas formas de agressividade, envolvem: humilhações, palavras grosseiras e falta de respeito, que afetam o corpo, a mente, os afetos, o exercício da sexualidade, os bens pessoais, a cidadania feminina e infantil, e o respeito aos valores humanos e as leis que regem o padrão de sociabilidade e de ética. 2 O II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros no 88/2003, de 13 de junho, publicada em 07 de julho e está organizado em sete capítulos principais, com medidas concretas que têm como principal objeto de intervenção a violência doméstica exercida sobre as mulheres. 23 Ao observar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, fica claro que muitos direitos são violados em nosso cotidiano. A realidade nos mostra famílias sem assistência social ou estatal, crescimento da violência doméstica, da fome e da miséria, remuneração salarial insuficiente, escravidão no trabalho, sistemas público de saúde e educacional falhos, crescente violência policial nas grandes cidades do país, ausência de moradia digna. E a despeito da realidade, a necessidade de pesquisar sobre violência é evidente. Indagar qual o motivo do meu interesse por esta temática é algo que numa simples justificativa poderá ser respondido apenas limitadamente. As palavras retratam uma verdade que é verdade em parte e ocultam relações existentes entre o silêncio e ela – a palavra. O que diria uma filha de um sapateiro de nível primário, militante do partido comunista, preso político inúmeras vezes, e de uma doméstica, professora leiga, sobre seu interesse por relações de gênero e violência? O que diria alguém que teve infância e adolescência marcadas pelos porões do golpe militar nas décadas de 1960 e 1970? Que justificativas teria para desejar trilhar nos caminhos da indagação sobre a história da negação, uma mulher que já foi vítima de violência física e psicológica? O que sou nesta busca de construir esta tese de doutorado? Buscar respostas para o meu próprio caminhar, talvez seja uma das motivações que me impulsiona a caminhar nesta investigação. Quem sabe, se no encontro do meu diálogo, com os múltiplos diálogos, das mulheres vitimadas, encontre minhas e nossas respostas? Fui gerada no ano de 1960, no berço da Educação Popular, embalada pelo movimento dos Círculos de Cultura. Pude vivenciar em minha fase infanto-juvenil, os primeiros passos na violência. O Golpe Militar de 1964 mancharia não só a história do meu país, mas também meu corpo infantil e adolescente marcado pelo medo das inúmeras prisões que meu pai José Peba Pereira dos Santos, sofrera, e pela fome – tão imensa – que passamos, por conta do desemprego a que ele era exposto, justo por lutar, pelo direito dos oprimidos assalariados. 24 Da infância e adolescência afloram fantasmas terríveis: a hora de esconder os livros considerados subversivos. Na calada da noite, minha mãe Edileusa Campos de Oliveira, meu irmão Luis Carlos Pereira dos Santos e eu, cavávamos um buraco no chão do quintal e colocávamos a mala repleta de livros e revistas que significavam as sementes da rebelião: A mãe, de Máximo Gorki, O manifesto do partido comunista, de Karl Marx, História da riqueza do homem, de Léo Huberman e tantos outros. Livros esses que só conseguiria ler e compreender quando cursei a graduação em Ciências Sociais. O que uma menina de oito anos que lia à luz de candeeiro para esquecer a fome, o medo e a vergonha, poderia entender sobre esconder livros? Como compreenderia que a polícia invadisse sempre nossa casa, jogasse tudo ao chão e levasse nosso pai, não se sabe para onde? Para os campos de tortura? Para a cadeia de João Pessoa? Nossa mãe sumia, procurando meu pai por todos os porões do aparelho policial, e quando retornava chorava e sentada na máquina de costura, lia Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles ou Navio Negreiro de Castro Alves. Com a leitura de poemas, ela me ensinava a amar as poesias e ter coragem de não aceitar situações intolerantes, e alfabetizava, comigo, crianças da vizinhança e amigos do Partido Comunista, numa lição prática de libertação. Ainda me pergunto: onde minha mãe encontrava tanta força? Enquanto ela procurava nosso pai, eu me via na obrigação de cuidar de minhas duas irmãs menores: Anita Leocádia e Olga Benare, que só choravam pelo pai e nem entendiam naquela idade que nossos prenomes era uma homenagem que meu pai fizera, a família do Cavaleiro da Esperança - Luis Carlos Prestes, e que nosso pai faria tudo pelo partido. Vivi a segunda fase do primeiro grau, em “dois países”. Um era o Brasil da “telinha da Globo”, um país carnavalesco, futebolístico, repleto de ilusão regado à cerveja. O outro Brasil foi o da “ tenebrosa noite”, do poderoso Serviço Nacional de Informação (SNI), do terrorismo do Ato Institucional nº 5 (AI5), do Esquadrão da Morte, dos desaparecidos, dos exilados, dos 25 torturados, como meu pai que, uma entre inúmeras vezes, foi levado de casa numa triste manhã só retornando após cinco dias, torturado, sem lenço, sem documentos... A Polícia Federal destruía tudo. Tudo? Não destruía seus e nossos sonhos de liberdade! Fui uma adolescente que participou dos bastidores da peça promovida pelas Forças Armadas: “Pra frente Brasil do meu coração”. E naquela encenação, adquiri a possibilidade de construção de uma consciência crítica, propulsora de minha prática educativa e literária. No curso de Letras, aos dezoito anos, li o Tempo e o vento, de Érico Veríssimo, que me deu a oportunidade de conhecer uma mulher como Ana Terra. Aquela foi uma época difícil. Vivenciei o meu primeiro casamento repleto de agressões físicas e psicológicas. Essa é uma etapa dolorosa, não quero nesse momento falar do trauma, do meu corpo negado. A Bíblia foi o meu apoio em horas de grande dor. Encontrei forças em mulheres destaques. Ester, mostrando a coragem de enfrentar um rei, a ousadia no livro de Rute, deitando-se aos pés de Boaz; a generosidade da sogra Noemi, estimulando a nora a refazer sua vida amorosa; a confiança de Joquebede, mãe de Moisés; o lindo “sim” de Maria desafiando uma sociedade patriarcal; o renascer de Madalena e a coragem das mulheres que foram ao sepulcro, em busca do doador do amor e do perdão – O Cristo. Em 1985, tendo que criar e alimentar quatro filhos pequenos, já separada, fui aprovada para o curso de Ciências Sociais e voltei a alfabetizar. O meu orientador de estágio, professor Afonso Celso Scocuglia, não mediu esforços para ajudar-me na construção do meu conhecimento e a compreender que educar é um ato político e de amor, me aproximando dos livros de Paulo Freire. Sem a teoria libertadora, o trajeto de educadora ficaria sem alicerce. Na Especialização, sendo alfabetizadora de jovens e adultos li a obra Educação popular na escola pública, de Ana Maria do Vale, construindo a base para desenvolver na Universidade Federal da Paraíba o meu projeto de Mestrado em Educação Popular, intitulado: O processo de produção de textos e a alfabetização de jovens e adultos, na construção da 26 escola pública popular. Trabalhei com a temática de Gênero, na literatura infanto-juvenil, abordando a obra das autoras Ruth Rocha e Silvia Orthof com os livros: O Reizinho mandão e Maria vai com as outras, respectivamente. As questões femininas estiveram sempre presentes no meu dia a dia, nos meus projetos como professora alfabetizadora e nas minhas leituras. Sinto necessidade de falar especialmente de um livro que me foi enviado pelo correio pelo Círculo do Livro e foi um socorro: Uma mulher de fibra, da autora Bárbara Taylor Bradford (1979). A história de vida do personagem Emma, marcada por violências e conquistas, muito contribuiu em aliviar algumas das minhas chagas profundas, gerando coragem de reconstruir minha vida amorosa, com um segundo casamento, que me deu meu quinto filho e a possibilidade de trazer para realidade antigos sonhos e projetos de vida. A vivência com a temática, violência contra a mulher, impulsionou o meu caminhar e resolvi candidatar-me no Programa de Doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tendo sido aprovada e orientada pela Professora Maria Arisnete Câmara de Morais, com a pesquisa Histórias do Corpo Negado: uma reflexão educacional sobre gênero e violência feminina. 27 Respiração Artificial Esses papéis do passado que guardo numa caixa são meu zoológico particular: ali estão trancadas feras de tamanho reduzido: lagartos, ratos, serpentes de pele fria. Basta abrir a tampa para vê-los moverem-se, minúsculos como as minúsculas placas de gelo que navegam em meu sangue. No redil da história apascento os animais da manada: alimento-os com a carne de meus próprios pensamentos [...] Esta noite, ao mergulhar a mão direita na caixa onde guardo meus papéis,os animais subiram até meu antebraço, moviam as patinhas, as antenas, tentando sair ao ar livre. Esses répteis, que se arrastam por minha pele cada vez que resolvo mergulhar a mão no passado, provocam em mim uma infinita sensação de repugnância, mas sei que o roçar escamoso de seus ventres, o contato afiado de suas patas, é o preço que tenho de pagar toda vez que quero Ricardo Piglia comprovar quem fui. 28 1.2 Adubando o canteiro: a reflexão entre teoria e prática No curso do doutorado, cada discussão me ensinava o caminho das pedras até o jardim e me fazia perceber que a cada alegria ou angústia, aguçara o meu desejo de escrever uma tese com a temática proposta. Não posso deixar de registrar a lição que foi exercitada e não apenas dita por minha orientadora, durante os estudos: é tendo a humildade e o desejo de conhecer através do olhar do trabalho dos outros pesquisadores, que nos antecederam, que podemos construir um conhecimento histórico que respeite a construção coletiva. Os trabalhos da Base de Pesquisa: Gênero e práticas Culturais í Abordagens Históricas Educativas e Literárias são exemplos de garimpagens em fontes da vida de mulheres que recriaram táticas e reinventaram vidas, quando pesquisamos suas trajetórias. Ao matricular-me no doutorado a minha orientadora, cuidou de me tornar íntima da tese pioneira da Base de Pesquisa: Prática de Escrita de Mulheres do Seridó Paraibano – (1960- 1980), desenvolvida por Machado (2001). Fui surpreendida em saber existir um espaço geográfico denominado Seridó, também na minha terra, que pensava eu ser uma particularidade do Rio Grande do Norte. Fiquei surpresa em saber que o pesquisador é paraibano, como eu. Porém, o que mais me chamou atenção foi o modelo de tese dentro da linha teórica da História Cultural. Sabemos que, embora o deslocamento da história social para a cultural tenha se iniciado na Escola dos Annales, no ano que nasci 1960, só após o desmoronamento do “Muro Teórico de Berlim”, é que a maioria dos sociólogos começou a romper com a historiografia de inspiração marxista. Ora, a minha formação como socióloga havia acontecido antes de chegamos ao fim das certezas, portanto repleta dos valores de “antes da queda do muro.” 29 Para as pesquisadoras e pesquisadores que já adentravam desde a iniciação científica com aquele tipo de enfoque teórico, talvez não entendam como estapafúrdia a minha impressão. Porém, creio compreender a minha perplexidade, aqueles pesquisadores que tiveram uma formação antes do esfacelamento dos países do leste europeu, posto que na maioria dos cursos universitários da área das ciências sociais a formação geralmente oferecia apenas o enfoque marxista, sem trabalhar o enfoque da história cultural. E de repente me deparo diante de um texto que me diz: o que importa é o plural e não o singular. E me vejo lendo um professor paraibano orientado por uma educadora potiguar, que me apresenta as práticas de escrita de quatro mulheres, fazendo interlocuções com as leituras de Bourdieu, Certeau, Chartier, Elias e tantos outros que cultivam a história com considerável interlocução com a Antropologia. Recordei que da antropologia recebera na graduação a contribuição de Lévi-Strauss, através dos textos apresentados pelo professor Márcio Caniello, que apresentavam novos hábitos de olhar as diferentes práticas culturais. Refleti e conclui que é possível, é possível sim, elaborar novos modos de ver. E quis aprender e adentrar no universo micro de mulheres que, nas práticas de escrita, exprimiam uma realidade individual e também coletiva, à medida que se inseriam nos espaços públicos literários e educacionais. Como o autor da tese afirma: A análise micro-histórica permite a reconstituição do vivido por homens e mulheres de vida comum, nos diferentes campos de atuação cultural ao longo da história, e tem ajudado a preencher as lacunas deixadas pela convicção de análise global dos fenômenos sociais (MACHADO, 2001, p. 59). Deixei levar-me pela escrita de mulheres novapalmeirenses, vivenciando o estranhamento do corpo que pariu a arte da vida, como bem expressa o poema Mãe de Zila Mamede: A mulher fia o filho / No silêncio do corpo / Inaugura-se: mãe / O ventre: curvatura do sol / Levantando-se / Em mansidão de horizonte. / De si própria 30 se esquece: / Tecelã da rosa que já aflora / Em crescimento lento / No seu sangue (MAMEDE, 1978, p. 36). Tive a oportunidade de conhecer o perfil das faces de mulheres que povoaram o universo de minha entrada na adolescência, com Cavalcante (2002), nomeada Faces de Mulher no Brasil das décadas de 1960 a 1970. A tão apropriada reconstituição do referido período na pesquisa da autora, fez encenar no palco da vida a peça da tenebrosa noite da história do Brasil revelando as marcas da ditadura. No momento que lia, agigantava-se o silêncio dentro de mim. Misturavam-se leituras e lágrimas. A pesquisadora Cavalcante (2002) ņ garimpeira dos sonhos femininos ņ consegue fazer adentrar em minha intimidade a consagrada autora, Ligia Fagundes Telles, com seu romance As Meninas, nos envolvendo com suas personagens Lorena, Lia e Ana Carla. Destaco, no entanto, a personagem vivida pela baiana Lia, tendo em vista que além de nordestina, Lia era envolvida com as ações revolucionárias e amava um preso político, semelhantemente a minha mãe no romance com o meu pai. A autora segue os passos de Elias, através do debruçar sobre a configuração dos romances e seus embates com a realidade das reportagens das revistas periódicas: Realidade, Cláudia e Veja “configurando a representação das inúmeras Cláudias, Marias, Joanas”, que marcaram um recorte temporal na história do Brasil. No diálogo com o leitor, Cavalcante nos diz que: [...] a realidade é uma teia em que diferentes grupos sociais se inter- relacionam, gerando tensão e equilíbrio dos quais nascem às representações que esses diferentes grupos tecem sobre si e sobre os outros (CAVALCANTE, 2002, p. 16). Ora identificando fontes, ora categorizando fontes, a pesquisadora oferece o entrelaçamento entre literatura, faces femininas e história, fazendo os possíveis leitores 31 compreenderem, a educação e leitura de mulheres que lidaram com a liberdade e a rebeldia, nos anos de 1960 e 1970. Através da tese de Flores (2004), Uma mulher e um livro Teresa Margarida da Silva e Orta e as aventuras de Diófanes,tive a oportunidade de ser apresentada a mulher pioneira da literatura portuguesa. A pesquisa me faz recordar o filme O Conde de Monte Cristo, quando das semelhanças entre o cárcere de Tereza Margarida e do relato da injusta prisão do Conde e seu trajeto até o Cárcere e as lições de sua vida encarcerada. Também me recorda o filme A Herdeira, que trabalho em meu texto. Não posso desprezar a importância dos filmes, seriados e livros para fazer a ponte com a interpretação da vida, como defendo em minha produção literária, Trajetória de Vida e de Leitura3 (2003). Não posso esquecer o que me fez uma leitora, nem desprezar os meus elos com os sentidos e paixão pelo cinema. A tese me faz sonhar com minha segunda Pátria – Portugal. E nesse sonho caminho a passos largos da Torre do Tombo em direção a Biblioteca Nacional de Lisboa. E o sonho é uma profecia para a realidade, espero! Imediatamente faço o elo com o meu trabalho junto ao silêncio forçado das presidiárias e com minha vivência na infância de visitas ao cárcere do meu pai. Recordo às interdições, às celas, portas fechadas, maçanetas que não escutam vontades. E escuto meu corpo gritar  Abra a porta! Abro! E choro... e choro... Choro as lágrimas, que fui impedida de verter. Paro de ler, para me dar o direito de viver esse momento. Soluços. É como, se de repente, unisse os meus soluços aos soluços de Teresa Margarida e escutasse sua voz, dos ecos da clausura dos seus poemas sentidos por Flores, unindo-se aos ecos de minha clausura: 3 O texto Trajetória de Vida e de Leitura foi publicado na coletânea intitulada: Carrossel de Leituras, sob a organização da Profª Drª Maria Arisnete Câmara de Morais. O livro apresenta os textos produzidos pelos discentes da Base de Pesquisa, sendo fruto das discussões nos seminários de pesquisa. 32 “Ai de mim! Ó fado tirano, que ordenaste / o desamparo em que padeço, executa os / estragos da tua impiedade” (FLORES, 2004, p. 94). Encontro o elo entre a arte lusitana literária, do romance A Freira no Subterrâneo e a arte-pesquisa da autora açoriana. Quero refletir sobre o íntimo abraço entre ficção e realidade, entre a personagem vivida pela freira Bárbara Ubryk com Teresa Margarida. Vislumbro os momentos nos quais Teresa Margarida, após sete anos de cárcere contempla o casamento do filho (como mãe e sogra), em 19 de janeiro de 1780, na semelhança do enlace com a hora que transpira do citado romance. O momento que a personagem Bárbara adota no seu coração, como filha, a jovem Vanda, que na verdade é filha do homem que ama  Zolpki, dizendo: “— Tu hás de trazer-m’a, sim? E depois hás de deixá- la casar com o homem que ama...” ( BRANCO, 1989, p. 213). E a vida contempla o abraço entre a arte de Camilo Castelo Branco, a vida vivida de Teresa Margarida da Silva e Orta, a vida refletida de Flores e a realidade de minha vida. Somente a história cultural pode nos dar tamanho gozo, tamanho prazer! Aconteceu! Relacionamo-nos e envolvemos-nos sobre a ponte entre objetividade e subjetividade. Nas palavras da pesquisadora, fica em minha vida a lição: É comum estabelecer uma dicotomia entre história e ficção, definindo a primeira como res factae... o que de fato aconteceu, ao passo que a segunda é definida como res fictae... o que poderia ter acontecido. Esses conceitos conduziam a uma busca incessante de objetividade pelo historiador, ao passo que ao romancista era concedida a subjetividade. Ora a fronteira intransponível opondo historiadores e ficcionistas foi rasurada (FLORES, 2004, p. 40). Registro também que percorri meu olhar na busca de aprendizado nas dissertações já concluídas e defendidas pelos discentes e pesquisadores da Base de Pesquisa, das quais destaco o trabalho de Silva (2004), intitulado Reconstruindo práticas: significações do trabalho de professoras na década de 1920. 33 Ao debruçar-me, sobre a história das práticas pedagógicas das professoras Leonor Barbosa de França e Guiomar de Vasconcelos, adentro a sala de aula da professora Leonor no seu exercício de ensino residencial em sua escola rudimentar. A professora ressuscita etapas do meu passado quando me recorda a lembrança da escolinha mista, que eu e minha mãe, instalamos em nossa humilde casa em 1973, objetivando alfabetizar as crianças paupérrimas da redondeza. Na dissertação, além da importância das práticas, percebi o valor do recorte temporal para dialogar com representações femininas, que formaram com suas experiências de vida a configuração da cidade de Canguaretama e a antiga Vila de Ponta Negra, em 1920. Dolores Cavalcante: entre a docência e o jornalismo em Ceará-Mirim/RN (1903-1930) dissertação de Melo (2002), veio abrir reflexões para a importância das fontes, na perspectiva de garimpar a história, entendendo como objeto de análise tudo que se refira à atividade humana. A pesquisadora aponta a importância de utilizar como fonte de pesquisa registros encontrados nos livros e jornais do período em análise, muito contribuindo para minha pesquisa nos jornais de Campina Grande. Dolores Cavalcanti também marca encontro com minha história, pois sua atuação nas letras, na educação e no jornalismo, tem sua culminância no ano de 1960. Mesmo sem o sabermos, nem eu nem ela, nossas histórias se cruzariam, pois suas lições de luta contra as restrições quanto à participação das mulheres na sociedade e em defesa da educação feminina, foi entregue a tantas meninas que em 1960 nasciam. Como eu, que nascia na Paraíba. Na dissertação: Revista Pedagogium: um olhar sobre a educação no Rio Grande do Norte (década de 1920), de Ribeiro (2002), pude perceber como a autora ao privilegiar as categorias educação e gênero para delinear as relações existentes entre a história da educação, memória e a produção escrita configura a época de Tarsila do Amaral, de Anita Malfati, de Osvaldo de Andrade, de Pagu e tantos outros personagens do Brasil de 1920. 34 Enquanto fervia no país a Semana de Arte Moderna e se implantava a modernidade na Educação, a revista defendia valores e representações relativas à moral cristã, à moda e ao celibato pedagógico feminino, numa clara disciplina higiênica do corpo do professor, presentes nos escritos femininos, apresentando as tensões e interdependências na organização do campo educacional potiguar. A dissertação provocou a minha reflexão sobre a configuração e uma época pode inscrever práticas sobre o controle do corpo do educador. De pronto reportou-me as saudáveis provocações da obra A mulher escondida na professora: Detenhamo-nos no tema do discurso cultural sobre o corpo: a significação do corpo vem variando ao longo da história. O material significante (proveniente da cultura, dos mitos, da religião e da ciência) com que contava um ser humano na Idade Média para construir sua imagem de corpo e para pensar e teorizar sobre ele, era diferente ao da época vitoriana, assim como o é na atualidade (FERNANDEZ, 1994, p. 20). Pensar sobre o controle do corpo me estimula a adentrar na história de Júlia. A dissertação apresentada por Rocha (2002), analisa as práticas pedagógicas e a participação na imprensa de Caicó, da professora Júlia Augusta de Medeiros por meio do Jornal das Moças (1926-1932). A leitura me possibilitou o prazer de viajar ao lado da primeira mulher a conduzir um automóvel, da cidade de Caicó no Seridó, para a capital Natal, no litoral. Enquanto contemplo as rochas da paisagem, sonho com o mar de lições de cidadania empreendidas pela educadora. Como por exemplo, eliminar as punições no ato educativo, além de ser a primeira eleitora da cidade de Caicó. A maioria dos moradores da cidade discordantes de sua luta pela emancipação das mulheres das décadas de 1920 e 1930, a provocava, cantarolando essa trova punitiva: ‘Júlia Medeiros, no seu carro Ford, virou a princesa do caritó’, como nos relata o pesquisador. Não sabiam os caicoenses contemporâneos de Júlia, que a distância entre o tempo e a história esconde suas surpresas. É que eles não poderiam imaginar que no final do século XX, seria realizada uma pesquisa, iluminando uma melhor compreensão da história de vida de 35 Júlia. Pesquisa essa, feita sob o olhar de um pesquisador jornalista potiguar e de sua orientadora pesquisadora de vidas e impressos femininos. A história se impõe. A dissertação de Dias (2003): A educação feminina no Rio Grande do Norte (década de 1920), provocou-me insônia. Na alta madrugada o sertão de minha alma impulsiona a me entregar à sede das letras. Quero me banhar de letras. Meu corpo quer sentir o elo da história cultural entre documentos oficias do Instituto Histórico e Geográfico e um escritor de 1920. Um escritor que se faz acompanhar de mulheres que emergem da arte literária dos romances - Flor do Sertão e Gizinha de Policarpo Feitosa, pseudônimo de Antônio José de Melo e Souza. No romance Flor do Sertão, percebo a distância existente do enredo da obra pesquisada e da trágica realidade que envolve as mulheres-flores que pesquiso com histórias bem diferentes da vida de princesa vivida pelo personagem Rosa Luíza. Em Gizinha, vislumbro posturas ousadas femininas que se assemelham os modelos de mulheres da atualidade, pois no enredo do romance são apresentadas mãe e filha que não sucumbiram ao universo masculino. Em História da educação das mulheres em Natal, de Pinheiro (2003), percebo o abraço trágico do suicídio entre a professora Maria Luíza e a flor Margarida que desfila em meus relatos da realidade. Refletir sobre esta pesquisa, me reporta à leitura que realizei sobre a pesquisa Sinhazinha Wanderley: o cotidiano de Assu em prosa e verso (1876-1954) de Pinheiro (1997), por trazer à tona a prática da professora Sinhazinha Wanderley que substituiu a palmatória pela música e poesia. A pesquisa recorda a minha infância, quando me vejo sendo alfabetizada com as poesias do livro As lições do tio Emílio(1954) . No meu caminhar na Base de Pesquisa, a flor de algodão que sou é aguada durante os seminários. Tenho vivenciado ricas experiências teóricas com os textos de Perrot (1998), Chartier (1990) e Certeau (1994), aproximada que fui por minha orientadora, que me dizia, 36 quando de minha entrevista na seleção do doutorado: “Sinto falta em seu projeto de alguns teóricos da Nova História Cultural”, ao que respondi: “É por esse motivo que necessito de um orientador, que me ajude nesta abordagem”. Ao que fui contemplada com minha entrada neste Programa de Pós Graduação em Educação, e tem me apresentado as novas táticas de leitura de vida. Com os livros e artigos publicados de Morais, pude ficar “uma moleca perguntadeira” sobre a história de vida de mulheres, como: Sofia A. Lira, D. Chicuta, Isabel Gondim. A configuração do velho Rio na leitura da obra Leitura de mulheres no século XIX, me levou em uma bela excursão pelo passado do Rio de Janeiro. Caminhei na rua do Ouvidor, visitei a Confeitaria Glória. Vivenciei o momento quando Dr. Valentim, o pai de Júlia Lopes de Almeida pede que faça o seu primeiro artigo, para o Jornal do Comércio (2002). Tamanha sensibilidade de Morais de nos revelar como liam e surgiam as escritoras pioneiras e como foram usadas as chaves nas maçanetas da história feminina, me fez compreender sua e nossa história enlaçada com a leitura dos romances. Mergulho na sua lição: ‘Portanto, no passado encontra-se a chave para a compreensão da contemporaneidade’. (MORAIS, 2002, p. 24). Conforme dados apontados na Revista Fáccil (2003), o índice estatístico da violência doméstica, no Brasil, revela que a cada quinze segundos uma mulher é agredida. Significa dizer que diariamente são 5.760 brasileiras que sofrem algum tipo de agressão. Dessas mulheres vitimadas, apenas 10% levam denúncia a Delegacia da Mulher e, depois da queixa, 60% dos casais em crise continuam o relacionamento. A televisão mostrou em 2003 este retrato da realidade ao abordar a trama envolvendo o casal Raquel e Marcos na Novela Mulheres Apaixonadas. Por causa dos personagens, o assunto violência contra a mulher promoveu discussões a respeito das penas previstas no Código Penal da Lei 9.714 que ampliou o rol de penas alternativas vigentes no sistema penal brasileiro. Ou seja, uma mulher pode ir à delegacia denunciar a violência, ganhar a causa na 37 Justiça, e o seu agressor pagar o crime apenas com o fornecimento de cestas básicas e voltar para casa, podendo ser até a mesma casa em que a mulher reside e, onde o seu “inimigo íntimo” realizou e poderá realizar outros espancamentos. Inúmeros são os casos em que o parceiro violento, ao retornar ao lar, promete aumentar o número de surras como castigo por ter sido denunciado. Ao tornar pública a temática violência, dando visibilidade ao debate sobre a história das relações de gênero, espero indicar possíveis caminhos de intervenção educacional que fortaleçam as mulheres e nos tire do porão do medo, da vergonha e de obediência cega. Esta foi, e é, uma escrita com sangue e lágrimas, pois durante todo o espaço de tempo que redigia, ora meu corpo sangrava, ora meus olhos marejavam e meu corpo era tomado de soluços. Durante a escrita para o primeiro seminário doutoral, tive hemorragia uterina, uma atrás da outra, parecia que não acabaria mais. Como abriu chagas dentro de mim! E pude ter a certeza que precisava realizar este “exorcismo”, como me falou tão acertadamente minha orientadora. O sentido dessa pesquisa, não está apenas nela. O que oferece sentido é a minha construção social e histórica. Não justifico minha pesquisa apenas por identificação pessoal, teórica e profissional, ou apenas pelo desejo de colocá-la em nível de reflexão doutoral, que creio por si, seria motivo suficiente. Inicialmente, por se originar em minha vivência e nas necessidades da minha função profissional, este trabalho representa um fruto da subjetividade do meu estar no mundo. Segundo, porque contribui na área de pesquisa da História da Educação e outras áreas de conhecimento como, Ciências Sociais, representando um debate entre a socióloga que sou e as mulheres vitimadas. Em terceiro lugar, minha perspectiva é transitar entre a voz da mulher excluída e as construções teóricas, numa intenção de re-criar um possível diálogo entre camadas populares e a academia, registrando suas histórias de vida. 38 2 Um olhar sobre os jardins C A PÍ TU LO II “Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será, mas isso não impede que eu repita, é bonita, é bonita e é bonita”. (GONZAGUINHA, grifo nosso) 39 2.1 Sementes no canteiro acadêmico e profissional Meu envolvimento sistemático4 com a violência contra mulheres teve seu auge em 1999, quando participei do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, como educadora e socióloga da Prefeitura Municipal de Campina Grande; desenvolvendo o “Projeto Corpo Prisioneiro” no Presídio Feminino5 do bairro Serrotão em Campina Grande. O trabalho foi realizado em parceria com a Universidade Estadual da Paraíba, onde leciono no curso de Pedagogia, e coordenei o grupo de estudos sobre questões de gênero Anaíde Beiriz, com alunas do Curso de Pedagogia. O Projeto tendo como base estudos sobre as relações de gênero, foi desenvolvido sob minha orientação, no intuito de aprofundar e refletir sobre a temática, Corpo Feminino, enquanto lugar de vida e liberdade, tendo em vista, a contradição: estou presa e sou livre? Discutimos com as presidiárias sobre a importância do corpo feminino na sociedade contemporânea, como elemento afetuoso e questionador dos mitos sociais, como, por exemplo, o mito do amor materno, mito do amor romântico, mito da sexualidade versus amor. O trabalho foi realizado com trinta e uma presidiárias, através de palestras, oficinas, e trabalhos em grupo, sobre as temáticas: Por que drogas lícitas e ilícitas? E saúde e prazer emocional. No início, o presídio contava inicialmente com vinte e uma presidiárias, tendo um crescimento acelerado durante o trabalho de nosso grupo, passando para um total de trinta e cinco mulheres que infringiram a lei. O crescimento acelerado do número de mulheres gerou 4 Digo sistemático, porque o envolvimento com a violência, teve seu início bem anterior ao meu nascimento, isto é, começou no ventre de minha avó - que gerou minha mãe, que me gerou... 5 O Presídio Feminino possui sala de visita, uma recepção, sala de assistência social, um isolado, uma área de sol, sete celas com seis leitos, oito banheiros, um albergue, jardim, horta e grande área descoberta. Foi inaugurado pelo Secretário José Adalberto Targino no Governo de José Maranhão, sendo o Juiz Ricardo Vital de Almeida. Teve como primeira diretora a Gleides Emereciano, com o adjunto Edson Araújo Cirne, a segunda diretora foi a Gizelda Gonzaga, com o adjunto Jocélio Jackson Araújo Ferreira, sendo atualmente a diretora Maria Tereza de Jesus e seu adjunto Jocélio Jackson Araújo Ferreira. 40 o desejo de investigar as motivações que levaram essas mulheres a envolverem-se com a violência, e com a criminalidade. Foi observado que a maior parte das mulheres envolveu-se com o submundo do crime, através das drogas que seus parceiros traficavam e as mesmas se diziam estar na prisão, motivadas pelo amor. Encontrei casos de: furto, assalto, prática ou cumplicidade em assassinatos além de dois infanticídios. O projeto colaborou para a melhoria dos valores da comunidade em tela, através dos questionamentos apresentados. O conceito de Corporeidade na proposta da Fenomenologia, tomando como referência a teoria de Merleau Ponty (1999) foi a base de apoio, no intuito de refletir sobre o ser mulher em suas dimensões de afetividade e liberdade, promovendo a reconstrução de suas compreensões quanto às relações de gênero presentes na sociedade. Desenvolvi, também, na Delegacia da Mulher6 um segundo projeto de pesquisa, com mulheres vitimadas, no intuito de compreender suas queixas e se havia naquelas queixas, algumas pistas que nos fizessem compreender o elo cotidiano entre educação e violência nas relações de gênero. Esta segunda pesquisa também foi realizada em parceria com a Universidade Estadual da Paraíba, o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e Delegacia da Mulher em Campina Grande. O estudo identificou algumas representações das mulheres quanto ao corpo através do olhar sobre a imagem da corporeidade feminina, objetivando perceber que interdições sociais direcionam a compreensão da corporeidade. A busca objetivou descobrir se existiam rupturas geradoras de transgressão da norma. Este debruçar sobre o corpo feminino, objetivou dialogar sobre a interdependência entre as 6 A Delegacia da Mulher de Campina Grande tem como delegada titular a advogada Maria Madeleine de Oliveira e delegada adjunta Irinete Gomes da Silva, ambas trabalham há 25 anos, com justiça e violência. A delegacia foi construída em vinte e cinco de março de 1986, mas só passou a funcionar a partir de sete de julho de 1989. A Delegacia da Mulher possui três agentes, sendo uma feminina e duas escrivãs. Não possui uma assistente social nem psicóloga. Possui uma recepção, só um banheiro e não tem viatura. O fato positivo é que funciona separado da Delegacia Central, num prédio no centro da cidade de fácil acesso. 41 partes e o todo. Um conceito fundamental, ao trabalho foi oferecido por Chauí (1999), o conhecimento do sujeito corporal, que vive uma experiência dotada de significações. É impossível pensar, a não ser compreendendo a corporeidade. Poucas mulheres ousam falar sobre sua vida íntima, ou seja, assumem publicamente falas, discutem a condição social feminina e, que, a partir do diálogo, elaboram ou questionam estereótipos, tecendo novas imagens, ainda que com suas descontinuidades. A pesquisa foi desenvolvida com vinte mulheres, em reuniões semanais. Utilizei a metodologia da observação participante em oficinas, objetivando registrar a expressividade feminina através da música, pintura, desenhos, palavra escrita e falada, como meios de externar o autoconhecimento do corpo. Utilizei técnicas de produção textual verbal e não verbal, delineando a imagem corporal do feminino. Incentivei as histórias de vida, a fim de verificar a representação social sobre a temática do corpo feminino. Utilizei vídeos, músicas, textos poéticos, jornalísticos, charges, fotografias, debates e palestras relevantes. O primeiro ponto identificado refere-se às experiências negativas decorrentes dos relacionamentos afetivos das mulheres que se queixam dizendo “sofremos motivadas pelo amor.” A compreensão naquele momento foi de que, quando a mulher não conhece o potencial do seu corpo, fica adormecida, à espera do beijo do príncipe encantado, submetida, sem ter forças e coragem de lutar, por considerar a luta qualidade masculina, fato que gera a sua raiva contra o homem. De fato, sua raiva é de si própria, por não lutar. Nessa perspectiva, Muraro e Boff, ao abordarem a temática da fabricação do corpo, esclarecem que a mulher não sublimada, [...] se dá ao homem e a vida brota dela, enquanto que as mulheres sublimadas por terem um relacionamento doloroso com o pai ou com a mãe, [...] elas se refugiam [...] num projeto narcísico onipotente de auto- suficiência e, na vida adulta, fogem do afeto para a intelectualidade, tal qual os homens (MURARO; BOFF, 2002, p. 164). 42 A imagem corporal positiva é problemática para a mulher contemporânea que sofre algum tipo de agressão física ou psicológica. A feminilidade não é dada de saída. Digamos que deve ser construída, ou seja, “fabricada”. A definição de gênero implica na sexualidade: quem faz o que, e com quem? A identidade masculina está associada, ao fato de possuir, tomar, penetrar, dominar e se afirmar, se necessário pela força. A identidade feminina, ao fato de ser possuída, dócil, passiva, submissa (BADINTER, 1993, p. 99). O rito de passagem de uma menina para torna-se uma mulher acontece naturalmente com a apresentação da menstruação, no entanto, seu papel social de mulher é construído já no ventre. Com o desenvolvimento da tecnologia, após a determinação do sexo através de ultra- som, a futura mamãe, junta com o futuro papai e familiares já começam a descrever a trajetória que “projetam” para a filha menina. Ficam estabelecidas as ilusões, as imagens: “Ela será uma boa menina, boa filha, boa esposa, boa mãe, boa amante... boa dona de casa, boa... boa...” Esta ilusão evolui da gestação até a idade adulta... Por traz de qualquer ilusão ou imagem, existe um “ser negado”. A sustentação desta concepção de bondade na mulher entende a mulher como um corpo vazio. Um corpo funciona movido da vontade; porém a imagem subordina a mesma, em favor de uma vida de ilusão, levando a mulher a perder a identidade e fugir da realidade de sua condição corporal. A mulher já não se enxerga como bem representa a fala de uma mulher que impulsionou essa pesquisa: Estou tão baratinada que não sei mais o que quero. Não sei quem sou, nem para onde quero ir... No final do século, a mulher foi estimulada a transacionar com o corpo e o mundo levando o amor próprio feminino a depender em grande parte de seus sentimentos de atração física, sob a influência das revistas de moda e dos comerciais de televisão e dos romances de 43 novelas. Não é de admirar que tal mulher deseje ser magérrima e busque a todo custo a juventude, já que a sociedade de consumo incentiva o desprezo pela velhice. Durante a pesquisa, percebi que em sua maioria, a mulher vítima de violência despreza a si própria. Como as mulheres não conseguem que seu corpo seja amado por seus parceiros, elas passam a negá-lo, chegando a rejeitá-lo e até a odiá-lo. As mulheres pesquisadas neste trabalho se localizam na escala social consideradas de baixo status, são mulheres comuns, e possuem um relacionamento com o corpo semelhante às camponesas observadas por Muraro e Boff: [...] as sanções para a mulher são as mais pesadas. Por causa dessas sanções, a libido dessa mulher parece não ter nenhuma saída. Essa mulher se casa virgem, tende a ser inorgástica devido ao intenso trabalho na sua dupla jornada e não pode cometer adultério [...] O único status de que pode gozar, é a procriação (MURARO; BOFF, 2002, p. 226). Na realidade, tais mulheres são “bombardeadas” por valores contraditórios. Enquanto as campanhas do Estado estimulam a oferecer através do corpo o leite que alimenta o filho, os meios de comunicação, em especial a televisão, estimulam o perfil magro de beleza, que, na maioria dos casos não oferece nenhum interesse para a mulher vitimada. Na verdade, filhos simbolizam status para a mulher simples e ao mesmo tempo parir todos os anos, tem sido um fator de justificativa para submissão feminina à agressão física e psicológica. Além do mais, existe mais um agravante: a sexualidade dos seus parceiros é muito reprimida e muito repressora. Muraro e Boff nos dizem que os homens: [...] quando solteiros, freqüentam a zona, mas, depois de casados, têm uma vida sexual esporádica fora de casa, porque a sua situação econômica não lhes permite sustentar essa vida dupla. Mas se esses homens têm a menor suspeita de que a mulher os traía, são capazes de matá-la sem serem punidos pela sociedade, pois o seu ato é ‘legítima defesa da honra’. Por outro lado, dificilmente se revoltam contra os maus-tratos do patrão. ‘O homem ajuda o patrão, a mulher ajuda o homem e as crianças ajudam a mulher... ao mesmo tempo em que se negam ao ver a opressão que sofrem, oprimem rigidamente a família (MURARO; BOFF, 2002, p. 225-226). 44 Segundo Elias, a honra é conquistada ou negada pelos membros do grupo na qual o indivíduo participa. Originariamente, contudo, [...] a honra expressava a participação em uma sociedade nobre. Alguém tinha sua honra enquanto fosse considerado um membro segundo a opinião da sociedade e, portanto, para a sua própria consciência individual. Perder a honra significava perder a condição de membro da boa sociedade. Ela era perdida em função do veredicto da opinião dos círculos bastante fechados de que o individuo fazia parte ou, em certas ocasiões, da sentença de representantes desse círculo escolhidos especialmente para formar um tribunal de honra (ELIAS, 2001, p. 112). Resta a esta mulher: se resignar à violência em seus corpos, ou denunciar os parceiros ‘desonrados’ e violentos, rompendo com a passividade ditada pela sociedade? Infelizmente em sua maioria, as mulheres preferiram e preferem a primeira saída. Por outro lado, observo nas mulheres o desejo de ser um corpo independente, porém em contrapartida, elas geram qualidades que a sociedade legitima como masculinas. Essa situação provocou conflitos nos seus corpos, que as fizeram personificar com preponderância traços considerados masculinos em nossa sociedade. Contraditoriamente, lamentam por não terem sido como os modelos sociais femininos requeriam. Nesta reflexão, questionando o corpo feminino, seus limites, contradições e possibilidades, compreendi a necessidade de construir, junto às mulheres, estratégias de (re) interpretação do trivial e comum em nossas histórias de vida, além da urgência da discussão com temas que remetem às dimensões negadas do nosso próprio corpo. Ainda ligada ao Conselho dos Direitos da Mulher, recebi no ano de 2001, o convite do então Secretário de Assistência Social, o sociólogo Raimundo Cajá, para prestar assessoria à antiga Casa da Maria, órgão municipal que prestava assistência à mulher vítima de violência. Quando da minha atuação, ocorreram várias modificações nessa Casa. A mesma mudou de endereço e passou a chamar-se Casa da Mulher. Todo o seu regimento foi modificado a partir de discussões com toda a equipe técnica. 45 A vivência na Casa da Mulher, no Presídio Feminino e na Delegacia da Mulher nos possibilitou o desejo de identificar e analisar as histórias de vida de mulheres vítimas de violência, e vislumbrar elementos que organizam a estrutura, a aceitação e a rejeição da violência em seus corpos. Um outro impulso para esta pesquisa surgiu através da Secretária Municipal de Assistência Social, onde desenvolvi oficinas com as temáticas: corporeidade e educação feminina, nos grupos de Mulheres Idosas e nos Clubes de Mães da cidade de Campina Grande. Tais oficinas foram realizadas com a participação das alunas do nosso grupo de estudos de gênero. O fato de ser voluntária da Rede Feminina de Combate ao Câncer junto às discussões no Grupo de Estudos de Gênero Flor em Flor, favoreceu ao desenvolvimento de minha pesquisa. Por ser mãe de uma filha portadora de uma deficiência, a surdez, motivou minha aprendizagem em língua de sinais e a luta pela compreensão das relações de gênero e violência, presente também nas categorias das portadoras de deficiência, orientando monografias na Universidade Estadual da Paraíba. Portanto, as histórias de vida das mulheres que analiso foram colhidas, durante a realização de nossos projetos, e creio que oferecerão elementos para reflexão nessa pesquisa, gerando inquietações nos leitores que impulsionem outras pesquisas. Minha história, por si só, justifica a preocupação em atuar na vez e na voz das mulheres vítimas de violência. O tecer da teia, justifica a escolha da temática sobre mulher, violência, corpo e educação, seja ele o corpo das presidiárias, das portadoras de deficiência, das idosas. 46 As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outro, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. (CHARTIER, 1990) 47 2.2 Desenhando o caminho metodológico da pesquisa Entendo que, através de uma pesquisa na perspectiva da história da violência feminina, os dados podem ser buscados no ambiente onde acontece o fenômeno pesquisado, qual seja, como ocorrem as construções de gênero na educação do corpo negado de mulheres vítimas de violência do Presídio Feminino e da Delegacia da Mulher na cidade de Campina Grande, e quais as formas de redação que a impressa campinense apresenta as reportagens que tratam de gênero e violência. O conceito trabalhado nesta pesquisa é apresentado por Elias (2001), que é o de configuração, compreendida como significação de uma formação social, onde os indivíduos estão ligados uns aos outros por um modo específico de dependências recíprocas e cuja reprodução supõe um equilíbrio móvel de tensões. Tal formação pode ser, por exemplo: [...] os jogadores de um carteado, a sociedade de um café, uma classe escolar, uma aldeia, uma cidade, uma nação (2001, p.13). Tal formação, também pode ser um presídio feminino e uma delegacia feminina, como é, o locus desta pesquisa. Para Elias (2001, p.213) é objeto da sociologia: “[...] Saber de que modo e por que os indivíduos estão ligados entre si, constituindo, assim, figurações dinâmicas específicas,” como é o caso dessa pesquisa: as histórias de vida de mulheres que sofreram violência. O objeto da pesquisa são treze mulheres que sofreram violência. Três mulheres presidiárias consideradas agressoras ou delinqüentes, e dez mulheres consideradas vítimas de maridos, de companheiros, de pais, de mães, de outras mulheres no espaço do lar, e destas, três já são falecidas. O período de realização da pesquisa é o final do século XX, e início do século XXI, no tempo histórico de 1999 a 2002, no intuito de desenhar o perfil das mulheres campinenses neste período, referente à temática: corpo, sexualidade, violência, educação e poder nas relações de gênero. 48 Investigo e comparo suas experiências com a violência, utilizando como fontes de pesquisa: os jornais: Jornal da Paraíba e Diário da Borborema,7 da cidade de Campina Grande, além dos livros de registros de queixas dos arquivos da delegacia e do presídio, relatórios de oficinas, desenhos. E principalmente compreendo suas histórias de vida, quando de suas participações nas oficinas promovidas pelo Grupo de Estudos de Gênero Flor e Flor, interpretando o cotidiano, buscando captar um sentido, para as representações do ser mulher. No processo de gestação da tese contribuíram não só as informações e questionamentos dos teóricos da área específica, mas, na verdade, tudo que li, vi, observei, vivenciei, pesquisei, com relação ao tema desta tese. Durante o período de curso do doutorado, acontece o enriquecimento cultural da pesquisa. Estou me referindo à importância da ampliação das fontes por fornecer uma melhor compreensão do estudo como: fatos do cotidiano, pesquisas em obras teóricas e literárias, leituras de teses, filmes, reportagens em revistas, fotografias, entrevistas, discussão em mesas redondas e resultados de pesquisas apresentados em congressos nacionais8 e internacionais9, como também palestras realizadas na I Conferência de Políticas Públicas para Mulheres, realizado em Brasília (BR) durante a comemoração do Ano da Mulher, em julho de 2004. 7 Promessa de campanha parlamentar de Assis Chateaubriand, o jornal Diário da Borborema começou a ser idealizado em 1954, porém, somente em 1956 os Diários e Emissoras Associados optou por realizar uma pesquisa de mercado, pois, já detinham na cidade a Rádio Borborema desde 1949 e foi analisando o desempenho da emissora de rádio que decidiram dar inicio a implantação do periódico na cidade de Campina Grande. Em 2 de outubro de 1957 o jornal foi inaugurado com a presença do jornalista Assis Chateaubriand, o bispo de Campina Grande Dom Luis Octavio e o prefeito Dr. Elpídio de Almeida. A primeira tiragem do Diário, definida em 3.000 exemplares com distribuição gratuita a população que se fez presente Após a inauguração do impresso, taxou-se o exemplar avulso a Cr$ 3.00 (Três cruzeiros). 8 III Congresso de História da Educação, realizado no Estado do Paraná, Curitiba em novembro de 2004; COLE – Congresso de Leitura e Escrita, realizado no Estado de São Paulo, Campinas em julho de 2003; XVI EPENN – Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste, realizado no Estado de Sergipe, São Cristóvão em junho de 2003; II Congresso de História da Educação, realizado no Rio Grande do Norte, Natal em novembro de 2002; I Seminário Internacional sobre Gênero e Educação, realizado no Estado da Paraíba, em João Pessoa em novembro de 2002. 9 Fórum Internacional de Educação realizado no estado do Rio Grande do Norte, Natal, em janeiro de 2004. 49 As participantes, mais de duas mil brasileiras reunidas em Brasília discutiram o tema Políticas para as Mulheres: um desafio para a igualdade numa perspectiva de gênero, com a presença de representantes indígenas, negras e de diversos segmentos e grupos, unidas contra todo tipo de discriminação, de violência e pela ampliação da autonomia feminina por meio de igualdade de oportunidades no mundo do trabalho. As reivindicações femininas revelam os anseios das mulheres a partir da organização nos movimentos sociais e grupos de estudos de gênero que objetivam o empoderamento das mulheres no recente final de século. Identificar e compreender as diferentes formações sociais que se constroem na vida de homens e mulheres nas relações de gênero são aspectos relevantes nesta pesquisa, que permitem contrastar as formas e os funcionamentos sociais, possibilitando distinguir diferentes características da mesma forma social no interior de sociedades comparáveis e contemporâneas. Morais apresenta a importância de realizar pesquisas com temas comuns de homens e mulheres comuns: [...] A matéria prima da História e a história cultural tem um papel importante e ganha prestígio ao realçar a importância da linguagem e das representações sociais, culturalmente constituídas. [...] Nessa perspectiva, é possível analisar temas considerados sem qualidade e realçar pesquisas como a história da sexualidade feminina na Colônia, Freiras no Brasil, mulheres na sala de aula, história dos movimentos de trabalhadoras, história dos impressos e a formação das leitoras, maneiras de ler, temas constitutivos da história da vida privada e também das mulheres que contribuíram para a formação de sociedades letradas (MORAIS, 2001, p. 11e 12). Para análise das práticas de mulheres presidiárias busco apoio no conceito de representação em Chartier (1990), que demonstra serem as nossas classificações, exclusões sociais e conceituais próprias de um determinado tempo e espaço, produzidos por práticas políticas, sociais e discursivas. 50 Portanto, quando Chartier aponta para as representações entre signo e significado equivale dizer que, na violência das relações de gênero, a mulher é representada como ser passivo, ou seja, é um ser vitimado. Tal compreensão fica clara na visão de Soheit ao analisar o referido conceito na teoria de Roger Chartier, quando diz que: Chartier destaca na dominação masculina o peso do aspecto simbólico [...], um objeto maior das histórias das mulheres consiste no estudo dos discursos e das práticas que garantem o consentimento feminino às representações dominantes entre os sexos. (SOHEIT, 1997, p. 71). As concorrências e tensões existentes no patriarcado constituem um mecanismo necessário à perpetuação do poder masculino e não, como pensam freqüentemente alguns pesquisadores, um sinal de incoerência do sistema ou o indício de seu fracasso. Instalado no poder de marido, namorado, amante, pai, padrasto, o líder masculino mantém comportamentos socialmente idealizados e mistificados de poder, que foram consolidados no processo de ascensão na liderança social. Tal idealização é transferida para o grupo familiar e para as demais instituições que formam a sociedade em geral. E para se firmar no poder, o líder masculino manipula as rivalidades que se efetivaram entre mulheres, tais como a rivalidade entre noras e sogras, a esposa e a amante, mulher feia ou idosa e mulher bonita e jovem etc. Rivalidades essas, geralmente presentes em ditados populares, que unificam a ideologia do patriarcado e suas realidades sociais, perpetuando, os conflitos nas relações de gênero. Do mesmo modo os meios de comunicação refletem essa realidade nos critérios de notícias policiais dos jornais que, em sua maioria, optam pelo sensacionalismo, e provocam reações imediatas nos leitores, com títulos de reportagens tais como: Assassina do Pai, presa ontem ou ainda: Luta corporal entre a amante e o trabalhador tem desfecho infeliz. A notícia, em especial quando se refere à condição feminina, deixa de ser problematizada. Forna (1999), em sua obra: Mãe de todos os Mitos, afirma que: 51 Em março de 1997, o emblemático Panorama, da BBC... produzia um filme intitulado Missing Mum (Mãe Ausente). No dia anterior ao lançamento do programa à emissora declarou aos jornais – Filhos de mães que trabalham não conseguem chegar à faculdade, apontando o dedo acusador para a mãe atual (FORNA, 1999, p. 276-277). Badinter (1993) anuncia que a educação misógina dá-se na corporeidade. Ela afirma que os códigos sociais de negação do feminino são impressos nos corpos dos meninos e meninas através de controles e negação do mesmo. São maneiras pelas quais os seres humanos aprendem, em sociedade, como se servir de seu corpo, de como utilizá-lo seguindo as determinadas modalidades e exercendo determinado controle. Tomo como referência, as discussões sobre as desigualdades de gênero, entendendo que gênero se diferencia de sexo, porque “[...] é no âmbito das relações sociais que se constroem os gêneros” (LOURO, 1997, p. 22); considero, pois, o espaço da educação como uma dimensão privilegiada para tais construções. Compreendo gênero, enquanto característica social e relacional, e que não apenas dita normas de masculino e feminino indo além, sendo fator constituinte da identidade dos sujeitos no processo educacional seja ele formal ou informal. Nas relações promovidas no cotidiano do lar e da escola, as mulheres vão firmando e modificando suas representações, identificando-se ou não com o grupo ao qual pertencem. É a modalidade variável de cada uma das cadeias de interdependências que define a especificidade de cada formação ou figuração social, esteja essa figuração situada no contexto das grandes evoluções históricas. Evoluções tais como, a diferença das relações familiares ou nas figurações de dimensões simples e diversas, situadas em uma mesma sociedade, como na Paraíba em Campina Grande, no Presídio Feminino e na Delegacia da Mulher. Esta pesquisa, ao investigar a história das mulheres na sua interpretação ótica, tem por objeto captar um sentido para o ser-mulher, não em propostas racionalistas ou espiritualistas, e sim, culturais: 52 Em sentido antropológico, não falamos em Cultura, no singular, mas em culturas, no plural, pois a lei, os valores, as crenças, as práticas e instituições variam de formação social para formação social. Além disso, na mesma sociedade, por ser temporal e histórica, passa por transformações culturais amplas e, sob esse aspecto, antropologia e História se completam... (CHAUÍ, 1999, p. 295). É nesta direção oferecida por Chauí, que me proponho a investigar a história da violência no cotidiano de mulheres, porque acredito existir nessa descrição, fundamentos que possam através da educação, possibilidades de (re) interpretação do social. Considero que a exclusão dos seres humanos que vivenciamos, gera sujeitos sociais competitivos, que trabalham mecanicamente, permeados de empreendimentos egoístas e sonhando com o amor romanceado. E nesta realidade, sexo, trabalho, amor e projetos perdem o significado pessoal. A mulher, neste contexto cultural, que história de sua trajetória poderá contar? Que imagem de mulher ela vê projetada de si, da outra, do outro? Que educação poderá contribuir ou afirmar ainda mais o quadro de dominação e submissão? Como a imprensa apresenta as notícias em relação às questões femininas? Neste sentido, a discussão epistemológica desta pesquisa será marcada pela discussão política, denunciando o papel histórico e filosófico das relações de gênero como legitimador da violência, presentes contra a mulher através da História. A visão unilateral do poder sobre os dominados passivos e impotentes, apresenta a necessidade de desvendar as sutilezas engendradas criativamente pelos dominados, com vistas a reagir à opressão que sobre eles incide. Por esse entendimento, essas mulheres se apóiam na “[...] tática daqueles que não têm por lugar senão o do outro e por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha” (CERTEAU, 1994, p.100). Em minha experiência com mulheres agredidas, o que observo nas suas histórias de vida é que, nas condições em que se desenvolvia a vida íntima das mulheres vitimadas, parecia não 53 haver uma alternativa em termos de uma outra opção de vida fora do relacionamento que as oprimia. Havia em cada fala uma tática: uma exaltação do valor do casamento e da maternidade, especialmente, da mãe e da sogra que ocupam posições de poder na família. A própria mulher vitimada, apesar de criticar a todo tempo a sua escolha de vida, numa aparente contradição, admite ser dominada, por ser em sua interpretação de mundo, o único possível caminho, para garantir o reconhecimento da sua família e de outras mulheres. Obedecer era a única forma que poderia favorecer a minha aceitação na família do meu marido e na minha. (FLOR DE CACTO, 1999) As mulheres por serem regidas pelas imagens do ideal feminino, como: beleza, meiguice, delicadeza, paciência, resignação, levam a sua inserção na repetição de antigos estereótipos. Os diferentes atributos dos papéis de homens e mulheres presentes na história, na literatura e utilizadas pela ciência, nos fazem enquadrar tais estereótipos numa das modalidades de violência simbólica. A violência simbólica (BOURDIEU, 1989) é aquela que supõe a adesão pelos dominados das categorias que embasam sua dominação. Nesta compreensão, definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica, ajuda a compreender a relação de dominação como histórica, cultural e lingüisticamente construída e que é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural, radical, irredutível, universal (CHARTIER, 1995). Por outro lado, os homens, inclusive mulheres, tendem a incorporar os valores e discursos, divulgados nos diversos meios de comunicação, identificando as mulheres que reivindicam, como: frustradas, feias, fúteis, desprovidas do sentimento de mãe e de esposa. O que percebemos, na verdade, é um aspecto perverso nessa construção social. Não seria esta uma das possíveis explicações para a rejeição de algumas mulheres em assumirem a busca da libertação, seja através do feminismo, da reflexão em grupos ou da produção acadêmica? 54 Quero compreender cada figuração social a partir da rede específica das interdependências que ligam os homens e as mulheres uns aos outros, em sua dinâmica e sua reciprocidade. Quer observar também, as relações mantidas pelos diferentes grupos com a violência, evitando as representações simplistas e petrificadas, da dominação social ou da difusão cultural dos valores de gênero. Daí a possibilidade de realizar esta pesquisa, buscando a comparação entre a mulher vitimada que denuncia e a mulher transgressora dos padrões sociais, entendendo que ambas em suas histórias de vida têm na violência uma companhia que perverte a realidade. O tecido textual da tese foi construído através das histórias de violência das mulheres- flores, nos diálogos e nas descrições que as mesmas fazem de si e das suas mães, pais, parceiros e sogras. Destaco os papéis e funções exercidas pela mulher no pequeno grupo familiar, na escola e na sociedade. Trabalhar com o texto oral que versa principalmente sobre o universo de violência contra a mulher me leva, necessariamente, a tecer considerações acerca das relações de gênero. Assim sendo, as histórias de vida serviram de bases no meu processo de análise que permitem visualizar a mulher em diferentes momentos de negação e afirmação do corpo na sua busca de libertação individual e social. Sigo a orientação teórica de Certeau (1994), quando propõe maneiras de refletir sobre as táticas enquanto procedimentos ou estilos da ação caracterizados pelos modos de fazer, num jogo constante com os fatos para transformá-los, modificando a ordem estabelecida, transformando as possibilidades em ganho. Assim define o autor. As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável (CERTEAU, 1994, p.12). 55 Pesquisando, percebi que as táticas que as mulheres-flores utilizam para tentar enquadrar-se e enfrentar o cotidiano de violência englobam quatro aspectos: x a mulher que recua frente aos limites que a sociedade lhe impõe, sempre boazinha, virtuosa, simpática, assexuada e freqüentemente vítima; x a mulher que resiste às pressões sociais, negando moldar-se aos padrões e paga um alto preço por isso, até mesmo com a morte; x a mulher que vive a vida emprestada, sonha a vida da outra, já que não se permite viver livremente a própria vida e, às vezes, critica aquela que ousa mudar; x a mulher que se impõe, revela ousadia e coragem e geralmente é independente financeiramente, sexualmente e emocionalmente, fazendo parte do grupo da exceção. Diante das táticas, destaco a contribuição das teorias de Foucault quando do meu estudo sobre a história familiar das mulheres-flores. Os escritos de Foucault provocaram uma inquietação, ao me fazer perceber que o exercício do poder e o seu controle - a disciplina é meticulosa e detalhista. A realidade do domínio é de tal maneira, que se faz presente nos nossos hábitos e atitudes sutis, rotineiros e cotidianos, e gera a dificuldade de considerar que todas nós mulheres, praticamos algum tipo de poder utilizando diferenciados dispositivos. Em suas palavras, o dispositivo é: [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo (FOUCAULT, 1984, p.244.). Foucault constrói uma arqueologia do saber e poder, que consistiu em estabelecer relações entre o saber jurídico e as punições e ordens disciplinares; e entre o saber dos 56 prazeres e as práticas dos mesmos, na sua obra História da Sexualidade. Sua obra favorece desenhar uma metodologia para entender a corporeidade feminina. Com as táticas visualizadas as categorias fluíram das respostas das mulheres às indagações que realizei a respeito da dor no corpo agredido. Porém, me expressando assim, a impressão inicial é de que realizar tal tarefa foi fácil. Imediatamente surge na memória a expressão que tem sido bússola em minhas expedições na busca do conhecimento: o que eu estou vendo, não é o que eu estou vendo. Descobrir o que as fontes falavam foi uma descoberta árdua e, às vezes, paralisante. No início, como é de se esperar, fiquei sem saber como garimpar em meio a tantas fontes. Parecia-me que caminhava na tese. Amargo engano. Em círculos sempre voltava ao ponto inicial: o que fazer com tanta história de vida? Nas palavras de Lopes: Ir às fontes; vasculhar arquivos. Começa aquilo que é sonho e que é pesadelo. Fantasias e medos, volúpias acadêmicas que se repetem cotidianamente: “aquele” livro de atas, um livro de ocorrências, registro de faltas e punições, diários íntimos, fotografias, quero tudo... não terei nada. Conseguirei ao menos compor um corpus que dê possibilidades de respostas ao meu problema? (LOPES, 1994, p.21). Com o apoio e instigações de minha orientadora Maria Arisnete Câmara de Morais, da professora Rosanália de Sá Leitão Pinheiro e da professora Maria de Fátima Araújo, finalmente o eureca surge numa madrugada. Caminhando na interrogação, percebo que indagando sobre a sexualidade agredida pelo poder do discurso e do silêncio posso descobrir respostas no corpo feminino violentado e sem amor. E começa o trabalho de “[...] escandir e reagrupar, reagrupar e desagrupar, tendo a humildade como técnica, para que a coisa não escape...” ( Ibid, p.23) 57 Mancha Vermelha (Alicia Fernández) [...] Onde está tua mãe? Onde está tua irmã? O conhecimento não chega e te resignaste a alimentar-te de silêncio. Mas teu corpo mostra a ausência De palavras não-reclamadas, colocando dor a cada mês, quando ao sair o vermelho vida, se vê obrigado a esconder como vergonha o que está destinado a mostrar como diferença. Teus onze anos se alegram, mas com o sabor de uma alegria proibida; se assustam, com o amargor do conhecimento escondido. O vermelho será conseqüência de uma ferida? E começa a juntar-se o prazer com a vergonha... Venha, sentemo-no aqui; Ainda que vinte anos depois Eu quero dizer-te agora aquilo que já sabes, mas que eu preciso dizer e tu precisas ouvir de outra mulher. De dentro de tuas entranhas chega um impulso a mostrar a diferença de gênero. Venha, te empresto minhas palavras para que sejam o carretel de teu Fort-Da. Joga com elas e arremessa. Dá-lhe, vamos, aí vão: Teu corpo é de mulher, Está preparado para gozar, e ao gozar, gestar, e ao gestar, gozar. Teu corpo é de mulher e está preparado para pensar, e, ao pensar, eleger, e, ao eleger, decidir, e, ao decidir, viver. 58 2.3. As mulheres flores de corpos negados Embora durante o tempo da pesquisa tenha trabalhado com vinte mulheres, conclui que deveria realizar um recorte e apresentar relatos de treze mulheres anônimas dez que ainda vivem e três já falecidas que viveram no século XX, em Campina Grande – Paraíba, utilizando em meus registros pseudônimos de flores. As que estão vivas denominei: Rosa, Flor de Cacto, Tulipa, Copo de Leite, Lírio, Dália, Verbena, Jasmim, Orquídea e Girassol. E as que viveram, foram denominadas: Papoula, Margarida e Violeta, que com suas existências também impulsionaram as motivações para o desenvolvimento deste estudo. Quem são essas treze mulheres? Eis o perfil que tentarei apresentar. Tulipa é uma mulher jovem de vinte e sete anos, de escolaridade superior. Tem um comportamento de mulher magoada com o pai e a mãe, tendo em vista que ambos apresentam comportamentos pactuantes na negação dos desejos dos filhos. As mágoas que a afligem geram conflitos principalmente psicológicos, em sua vida emocional e afetiva, dificultando o relacionamento com o seu pai e sua mãe e, sobretudo causando problemas com o marido que é usuário de drogas, com quem tem fortes atritos e agressões físicas e psicológicas. A busca de concluir o grau superior, como da escolarização como um todo a fez enfrentar realidades que mutilaram sua imagem corporal. Lamenta os abortos que praticou e tem repúdio pelo passado fato que gera em suas subjetividades angústias inexprimíveis, dificultando até mesmo a capacidade de redigir. Verbena é uma mulher de quarenta e cinco anos, culta, pois já cursou especialização e tem bastante acesso à cultura. É divorciada, pois seu casamento representou para ela uma continuação da violência psicológica que sofrera na infância. Pertence a uma família de tradição intelectual elevada, estudou quando criança em escola de freiras e lê autores da literatura e psicologia. Possui uma biblioteca com uma grande quantidade de livros. É uma 59 mulher que luta com seus conflitos, causados pelas relações desequilibradas familiares. Convive com a mãe e a irmã e com ambas não consegue se comunicar, convivendo com o cotidiano de agressões verbais, e passa grande parte do seu tempo trancada em seu quarto, lendo, tentando buscar saída do seu cativeiro emocional. Muito colaborou para o crescimento intelectual do grupo de estudos. Copo de Leite é uma mulher de idade indefinida, pois foi o serviço de assistência social que encaminhou o seu registro de nascimento. Ela, como informante da idade, diz ter vinte e quatro anos, embora no registro informe vinte e seis. Sente muitas angústias por não ter profissão e não ter concluído a primeira fase do primeiro grau. É rotulada de prostituta, se embriagava desde adolescente, foi usuária de drogas e teve vários amantes. Saía sozinha à noite em busca de amor e da felicidade no desejo de construir um destino diferente de sua mãe. Quer esquecer a infância na qual foi seviciada pelo pai e por amigos de rua. Sente muita dificuldade de falar sobre o passado e do relacionamento com a mãe de quem tem muitas mágoas, por sua omissão em protegê-la e seu desprezo. Encontrou no presídio segurança e fez dele sua casa, de onde não quer mais sair. Sobretudo se queixa de ter abortado o filho desejado, em função da violência que sofreu do pai de seu filho. Ressente-se da mãe de seu parceiro por não ter lhe dado nenhuma assistência e ter apoiado o filho agressor, pois não queria neto de uma mulher sem reconhecimento social. Rosa é uma mulher de trinta e dois anos, que não concluiu nem a escolaridade da primeira fase do primeiro grau. Ela não conheceu o pai e carrega lembranças das noites de horror quando era violentada pelo amante da mãe. Teve uma infância e adolescência marcada por explorações sexuais que lhe traumatizaram a vida sexual, além de uma péssima relação com a mãe a quem apresenta como uma pessoa omissa. Como agravante, teve uma relação problemática na escola onde recebeu o apelido de arruaceira por sempre viver metida em encrencas dentro do prédio escolar bem como na porta do mesmo. Teve sérios problemas com 60 as professoras e com a direção escolar, não chegando a concluir os estudos e diz ser esse o motivo que a fez não ter uma profissão. Tem um comportamento agressivo e usa de bastante ironia ao se expressar. Teve muito jovem contato com a prostituição, consumo de drogas e com armas e com uma delas assassinou o seu amante, que constantemente a agredia e a envolveu com o tráfico de drogas. Flor de Cacto é uma mulher estudante do nível superior e tem trinta anos. Seu ex- amante era traficante, a quem deseja de início, e de quem engravida, e sofre agressões físicas e psicológicas. Sua denúncia na Delegacia da Mulher a liberta do cotidiano de violência e transfere para os filhos seus projetos de sonhos para o futuro. Perdeu o pai muito jovem e tem uma grande dificuldade de se relacionar, apresentando, uma grande insegurança emocional. Tem na mãe uma pessoa a quem deve proteger do padrasto que a explora financeiramente e ainda a agredia, só recuando com a sua denúncia na Delegacia da Mulher. Procurou no estudo, estratégias para sair do seu cotidiano de violência, tendo alcançado seu objetivo, pois, o mundo da Universidade, alargou suas oportunidade, tendo sido recentemente aprovada em concurso. No entanto seu maior desejo seria casar com um homem rico que lhe oferecesse uma boa situação financeira e compensasse a lacuna do pai. Jasmim é uma mulher paraibana que concluiu apenas a primeira fase do primeiro grau e tem a idade de vinte e oito anos. Queixa-se por não ter tido oportunidade de concluir os estudos, pois, gostaria de ter a profissão de enfermeira, e por isso trabalha tomando conta de pessoas idosas. Foi adolescente para uma cidade grande, Rio de Janeiro, trabalhar em companhia da mãe e das irmãs. É praticamente obrigada por sua mãe a casar com um parceiro dependente do álcool e das drogas. Por não conseguir fugir do domínio familiar, especialmente o materno, tem dificuldades de relacionamento no casamento, que desde o início é repleto de agressões. Busca sua libertação através da fuga do marido e da traição com seu primeiro amor, fato que lhe custa mais agressões físicas por parte do parceiro traído. Diz- 61 se, infeliz no segundo relacionamento por não ter o direito de nem mesmo ouvir os cantores que gosta além de ter quer recorrer a Delegacia da Mulher por causa das agressões, embora tenha retirado a queixa por medo da solidão e de criar os filhos só. Lírio é uma mulher de sessenta anos. É autodidata e gosta bastante de ler, apesar de ter sentido muito medo da palmatória fato que não levou a freqüentar a escola. Como na casa materna sua mãe alugara uma sala onde funcionava uma aula de Carta do ABC, através do ouvir as lições aprendeu a ler e escrever. Viveu um romance no auge da repressão política no qual o panorama político do Brasil sufoca as ações revolucionárias levando seu amado a ser preso político. Ela luta ao seu lado acompanhando sua trajetória de fugas e prisões. A sua relação com o mundo dos presídios acontece a partir do parceiro que a expõe ao infortúnio de assédios de policiais de comportamentos anti-éticos. Apresenta queixas por não encontrar no parceiro uma coerência entre o que diz e o que faz, sentindo uma contradição entre os valores do homem público e do homem no ambiente privado do lar, tendo sofrido dele até ameaça de morte, em seus acessos de ciúme. Tem na dedicação a criação dos filhos a compensação da lacuna na insatisfação do relacionamento. Não teve contato na infância com o pai visto que o pai abandonou sua mãe muito cedo, forçando tanto a ela como aos irmãos a trabalharem na lavoura, fato que segundo ela, limitou o desenvolvimento de uma profissão. Na juventude, foi vítima de assédio sexual pelo tio, não tendo denunciado o mesmo pelo fato de na época não existir Delegacia da Mulher. Muito contribuiu com as suas reflexões. Girassol é uma mulher de vinte e seis anos, que já prestou exame vestibular, sem sucesso. Deseja ser feliz e sonha em ser professora. Ela tem seus anseios rasgados pelo cotidiano de violência e agressões a sua pessoa e a sua família, já que o seu parceiro agride até mesmo sua mãe e irmã. Embora tenha um envolvimento de sete anos, já com filho a quem ele quisera que ela abortasse, o seu relacionamento é complicado, em seus rompantes de raiva, o parceiro chegou a jogar ácido no carro de sua mãe e a agredia até que ela viesse a sangrar. 62 Suas queixas contra a sogra, principalmente por alimentar a crueldade do filho, apoiando nas atitudes violentas com todas as parceiras com quem se envolveu. Após sua queixa na Delegacia da Mulher ela experimentou a agressividade da sogra que além de calúnias, consegue pessoas para incriminá-la injustamente. Os julgamentos de valores têm por base o espaço onde está localizada a sua residência e os perfis de seus familiares, considerados por sua sogra como mulheres de vida livre, impróprias para fazer laços de família. Orquídea é uma mulher de vinte e sete anos, de nível superior, que sonhou em ter um lar, porém sua trajetória é impedida pela fatalidade de um acidente automobilístico que levou a morte o homem que amava. Apesar de ter um pai opressor de sua mãe e de suas irmãs, possui irmãos que a apóiam psicologicamente e a incentivam viabilizando o seu crescimento intelectual. Sua família lhe ofereceu um bom nível de escolaridade, e ela chegou à Universidade. Ao assumir o cargo de professora é tomada pela paixão e se envolve com seu patrão um homem bem mais velho e passa a ter na ex-mulher do seu amado a mais forte opositora ao relacionamento. Foi necessário denunciar na Delegacia da Mulher a série de agressões morais, no momento que a ex-mulher quase a atingiu fisicamente com uma faca. Vivenciou uma grande rejeição quando no momento do sepultamento do parceiro. O padre e as lideranças da igreja da cidade a retiraram do velório para que a família pudesse chorar o morto, justificando que ali era um momento familiar. Ela não pode ficar no momento final perto do seu amor, apesar de ser aceita por sua sogra que nada pode fazer diante da vontade dos netos e da ex-mulher. Dália é uma mulher de trinta e cinco anos, que só chegou a concluir o primeiro grau devido a sua trajetória ligada ao crime, na corrupção de menores que teve sua raiz na vida de abandono na mais tenra infância. Ainda criança viveu precocemente sua sexualidade na escola com colegas de turma. Tinha um péssimo relacionamento com a direção da escola por motivo de se envolver com brigas por ciúmes tanto entre o sexo feminino como ao masculino. Como 63 tinha uma mãe que nunca a protegia, ainda adolescente foi morar com um parceiro que a comercializa e tem na mãe dele, sua sogra a maior inimiga, que a vê como uma pedra de tropeço na vida do filho idealizado. Ao se separar, passa a ser cafetina. Depois de um tempo razoável, passa a ser motivo de comentários nos jornais da cidade por conta de sua prisão motivada pelo seu envolvimento com a prostituição de jovens adolescentes com homens de posição elevada na cidade. Sua vida revela a união entre criminalidade e poder econômico e social. Tem clareza para analisar os valores transmitidos pela televisão, sem, no entanto querer dialogar sobre suas escolhas. Em sua fala demonstra detestar a imprensa e rejeita os repórteres por relacionarem a sua imagem à degeneração social sem veicularem a imagem daqueles que pagam por um corpo de uma jovem. Papoula foi a mulher-flor que faleceu logo após a pesquisa aos noventa e dois anos. Trouxe em seu corpo as marcas do início do século XX e fez parte deste estudo pela necessidade que senti em registrar a fala de uma mulher que tivesse vivenciado as transformações urbanas e culturais da cidade “Rainha da Borborema”. Era apenas alfabetizada e gostava de ler a Bíblia. Foi uma romântica que sonhava com um grande amor. Embora decepcionada com os assaltos da vida ela construiu seu cotidiano baseado na luta diária contra toda opressão. Fez do trabalho uma saída para seus desencantos, acreditou no envolvimento com o amor e casou duas vezes. Toda sua história ela me contou muito próximo de falecer. Ouvia seu relato com toda paciência. Queria entender o florescer da cidade de Campina Grande no caminhar da flor-mulher de fala já cansada. A história de uma mulher que criou seis filhos, praticamente sozinha, e que teve na busca da sua alfabetização e na conquista do trabalho sua força para seguir a jornada da vida. Margarida foi somente alfabetizada e morreu jovem aos dezoito anos. Foi uma mulher vítima da violência materna no suposto aconchego do lar. Eu a conheci na infância. Era filha de uma lavadeira de roupas conhecida de minha mãe. Com ela e suas irmãs, brinquei de 64 ciranda de roda, de amarelinha, de barra bandeira, de jogar pião e soltar pipa, (meu irmão nos ensinava). Ela sofria muitas agressões físicas na infância, com raros momentos de alegria quando ia para minha casa para brincar e se alimentar. Não conviveu com o pai que abandonara a mãe. Tinha ataques de epilepsia, e tomava medicamentos controlados. Um dia, aquela menina ainda mocinha trilhou o caminho da prostituição. Falava para a amiga que tinha muita mágoa da mãe, pois ela, na sua adolescência a obrigara a prostituir-se. Segundo ela, sua mãe queria que ela arrumasse dinheiro para se sustentar. Fora inúmeras vezes presa, por sua atividade de profissional do sexo ser considerada ilegal. Numa noite, quando esperava os clientes foi vítima de um estupro coletivo. Cinco jovens a seviciaram e a violência que sofreu a fez buscar o suicídio traiçoeiro que tragou a sua vida. E a menina desvalida das brincadeiras inocentes partiu de uma forma tão trágica pondo fim ao seu dilema cotidiano. Violeta foi uma mulher educadora que amou e sonhou e faleceu aos vinte e sete anos. Eu a conheci menina, bem antes de realizar essa pesquisa. Inúmeras vezes, a avistava correndo, brincando, desabrochando para vida. Ela casou muito jovem e era muito alegre, apesar de ter ficado viúva, com pouco tempo de casada, ficando com dois filhos pequenos para criar. Teve na mãe o apoio para educar os filhos, tendo no pai sempre uma oposição em refazer a vida amorosa, apesar do mesmo possuir duas famílias constituídas. Ao manter o envolvimento com um homem casado, causou problemas no relacionamento familiar. Por motivos nunca esclarecidos teve, no auge da juventude sua vida tirada por um tiro na cabeça. Ela foi assassinada pelo amante, pondo o selo de fim nos seus planos de futuro. O homem que ela amava a matou, tendo sido preso e condenado vindo a falecer sua esposa no período em que ele esteve preso. Segundo sua irmã, embora ele tenha sido punido, a dor da perda de uma pessoa querida ainda é presente no seio familiar. 65 Papoula, Margarida e Violeta fizeram parte desta pesquisa num processo bem anterior a sua realização. Atualmente elas não estão em nosso meio, mas um dia as suas histórias de vida me inquietaram. E creio, fazem parte da raiz deste estudo. 66 A expressão – violência (masculina) contra a mulher, seja sexual, física ou psicológica, no espaço doméstico ou no local de trabalho, foi tornada uma categoria social e conceitualmente visível; extensiva aos vários segmentos de mulheres... (BANDEIRA, 2000, p.30) 67 2.4 Arando a terra, e descobrindo as categorias de análise. Ao indagar onde era a raiz do meu problema, ficou evidente que a categoria corpo seria a primordial, já que toda violência acontece lá, no corpo. E surge a pergunta: qual o fator que está presente em todas as histórias de vida das mulheres que estimula a violência que sofreram? Ao indagar ao corpo das mulheres-flores, descubro que a categoria sexualidade desponta com “força-falante”. E ao caminhar no interrogar das fontes, percebo que preciso entender de que modo, nos embates sexuais, são gerados a categoria violência. E então me deparo com a categoria poder que, tanto no discurso como na violência silenciosa quer falar para a pesquisa quão forte é sua ação no corpo feminino. E por fim, concluo que tudo o que as mulheres vitimadas querem em seus corpos remetem à categoria amor. Uma vez que almejo à construção do conhecimento sobre o corpo feminino, acredito que as discussões empreendidas em torno do corpo, sexualidade, violência, poder e amor, são relevantes e imprescindíveis para a construção desta tese de doutorado. Discutir o corpo, a partir dos pressupostos de Foucault (1984), rompe com as questões macroscópicas para entender a dominação, ao invés, preocupa-se em entender as relações micro, ou seja, o que vem interessar são os discursos e práticas cotidianas que atingem o corpo. Nesta pesquisa, interessam as práticas dos familiares, em especial da família das mulheres-flores com as mães, os pais, as sogras e os parceiros, além da imagem corporal veiculada pelos formadores de opinião nos jornais campinenses. É a relação do corpo na microfísica tanto na instituição familiar como na instituição punitiva da prisão, que importa identificar no cotidiano, junto às práticas refletidas ou involuntárias através das quais as mulheres e homens fixam regras de conduta do corpo feminino. 68 Na proposta de Foucault, o corpo não é apropriado pelo poder, mas atravessado por ele. O corpo não é compreendido como algo autônomo, porém não pode ser entendido fora do exercício da micro relação cotidiana de poder. O corpo é, sobretudo, uma realidade política e nesta perspectiva, consiste em analisar o investimento político do mesmo numa microfisica do poder. Os seus estudos são investigações que tentam identificar, como o poder está presente na vida cotidiana dos seres humanos, mais precisamente em seus corpos. Significa que é possível um deslocamento de análise do estado e da política para o nível das instituições. Na perspectiva foucaultiana, o corpo é um campo de forças que se encontra no ponto de intersecção de uma arqueologia (saber) do discurso e de uma genealogia (poder) nas práticas do código disciplinar da história do ser humano. Foucault oferece elementos para uma análise do corpo não mais em busca das leis biológicas que o controlam e regulam, mas na busca de desvendá-lo na trama de poder institucional. É um corpo na sua relação de percepção com o mundo, numa relação de harmonia, porém em constante disputa de poder. O poder sobre o corpo não é abstrato, porém, nem sempre é visível. Ao mesmo tempo é visível e invisível, tem sido oculto e presente. Nessa direção, o controle nas relações de gênero, não se opera apenas na ideologia, pois, parte do pressuposto de que tudo começa no corpo e com o corpo, nos instrumentos de sujeição que estão difusos nos discursos e se exercem cotidianamente. O que importa é descrever como o poder se exerce sobre o corpo nas histórias de vida das mulheres vitimadas. E semelhante a Foucault que ouviu o louco, o criminoso e o ser humano do desejo, nesta investigação ouvi a corruptora de menores, a assassina, a estuprada, a agredida, a mãe, a sogra, a amiga da suicida, a irmã da assassinada, enfim, a mulher de carne, osso e sentimentos. 69 Assim, o referencial relativo à história cultural possibilita analisar a história das mulheres-flores compreendendo o corpo feminino enquanto via, de perceber-se e perceber os fenômenos que se configuram no mundo, corpo com expressão das variadas formas de linguagens que confrontam sentimentos e significados, que se interpenetram. Significa entender o corpo da mulher como sensível e unidade múltipla que exige explicações para o que está fora e para o que está dentro do corpo e tem a ver com sua relação no espaço nos quais mantiveram relacionamentos. Enfim, a busca é para entender seus determinantes, explicá-los e interpretá-los como uma totalidade de sentimento, sentido, tática e prática. E devemos pensar que um dia, talvez, numa outra economia dos corpos e dos prazeres, já não se compreenderá muito bem de que maneira os ardis da sexualidade e do poder que sustêm seu dispositivo conseguiram submeter- nos a essa austera monarquia do sexo, a ponto de voltar-se à tarefa infinita de forçar seu segredo e de extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras. Ironia deste dispositivo: é preciso acreditarmos que em nosso corpo está nossa ‘libertação’ (FOUCAULT, 1985, p.149). Nesse sentido, o corpo é a totalidade do ser humano seja mulher ou homem com sensibilidades e intencionalidade que o faz presente no mundo e nele compartilha. É compreender o corpo com intencionalidade. Sobretudo, compreender a história no mundo partindo da compreensão de que o corpo pensa, percebe, sente, vive e convive. Corpo que não fica no espaço, mas, sim, é o próprio espaço, com multiplicidade, pois é a um só tempo, lugar, fala e expressão. [...] pode haver um ‘saber’ do corpo que não é exatamente a ciência do seu funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo (FOUCAULT, 1997, p. 26). Para analisarmos a relação das mulheres-flores com o Amor, por último me fundamentei no pensamento de Fromm (1991), pois, encontrei em suas reflexões elementos que destacam o corpo, como expressividade. O ser humano de fazer e de desfrutar das coisas, 70 um ser que se volta para si, que cria e compartilha desta criação num mundo de necessidade e de expressão. O pensamento de Fromm alerta para o reconhecimento das relações a partir do Amor. O ser humano equilibrado pelo Amor é, e em tudo que faz, percebe em si e a partir de si, que é capaz de ser e estar no mundo com plenitude do corpo, atitudes e posturas que expressam intencionalidade no mundo e para o mundo, para realizar e para realizar-se. Segundo Fromm, o corpo é o único meio que faz chegar ao âmago do Amor, das coisas que situam o ser humano no mundo e o faz perceber, tomar consciência de alguma coisa ou de alguém. Para este autor, o corpo é sábio, é inteligente, o corpo inteiro é sensível e não existe um órgão responsável pelo Amor, que sente mais ou um órgão detentor do conhecimento amoroso. Não existe diferença entre a essência e a existência ou entre a razão e o sentimento. O homem e a mulher no Amor é um corpo, e na vida são dois: O amor é uma força ativa no homem; uma força que irrompe pelas paredes que separam o homem de seus semelhantes, que os une aos outros; o amor leva-o a superar o sentimento de isolamento e de separação, permitindo-lhe, porém, ser ele mesmo, reter sua integridade. No amor, ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois (FROMM, 1991, p.32). Assim, compreender o corpo da mulher tomando como referência as histórias de vida das mulheres-flores, amplia horizontes para compreensão crítica da realidade, rompendo definitivamente com visões abstratas do amor e irreais que asseguram entendimentos equivocados no trato da cultura do corpo. Na cultura do corpo no final do século XX, tem sido comum a ausência de contato com o amor e a prevalência da violência. Tal realidade torna as mulheres sem esperança no futuro, como mostra o exemplo Rosa, condenada por ter assassinado o amante, gerando na mesma uma relação amarga com o seu corpo, conforme o seu desabafo: 71 Eu não tenho mais esperança em nada. A vida no crime me fez esquecer meus sonhos. Não posso esperar um parceiro que me compreenda. O que eu podia oferecer a ele? Um corpo usado? Nunca pude oferecer nada. Nem a virgindade eu pude dar ao homem que gostei, pois o meu padrasto, aquele canalha é que me usou primeiro. O que fazer se não tenho valor de mulher direita, nunca tive. (ROSA, 2000). As mulheres crescem ouvindo coisas que ficam profundamente enraizadas no seu ser. Cicatrizes que deformam o entendimento do corpo enquanto via de percepção do mundo. Essas mensagens interferem na maneira da mulher pensar, falar, agir, nos nossos hábitos e na valoração do corpo feminino, como revela Rosa: O meu corpo... penso que ele é um depósito dos homens com quem transei. Vejo como se ele fosse nada. Ele não é nada além de objeto de uso dos homens. Se for para falar dele, eu não vou mais conversar. Não quero falar mais nada. (ROSA, 2000). O famoso ditado popular: “As mulheres perdidas são as mais procuradas,” que inspirou nossos antepassados e, que por vezes, ainda se perpetua e se enquadra bem, como modelos e classificações de mulher — santa ou profana, direita ou errada, perdida ou achada, — passam a determinar se um corpo é prostituído ou santo. Uma referência que nega e estabelece uma distância entre o corpo no mundo e o corpo do mundo, entre o corpo (a) sexuado versus o corpo sexuado. A mulher sente dificuldades para romper com estes estigmas, com estes modelos de corpo estereotipados. Dália, que foi presa por corrupção de menores e prostituição, sempre mergulha em agonia da dúvida em relação a seu corpo, de constrangimento e da auto depreciação, quando é solicitada para falar a respeito: Ah! O meu corpo? Sabe, eu nunca pensei nele. Bem, prometo pensar. Acho que ele nunca foi meu. O meu corpo é deles, dos homens. Ele já foi tão usado, machucado e vendido... Só sei o quanto ele vale em reais. O preço varia, pois pode partir da pobreza de trinta reais chegando a custar até quinhentos reais. Depende do programa contratado. Só penso o quanto eu posso faturar com ele, penso ser ele o meu ganha pão. (DALIA, 1999) 72 Sua relação de inferioridade, com seu corpo a faz pensar que todos estão com a atenção voltada para o seu passado e rindo dele. Se uma pessoa lhe faz um elogio ela não aceita, por pensar que a pessoa está mentindo. Sempre a prever agressões verbais, ela sempre agride com palavras e atitudes antes que alguém tenha oportunidade de fazê-lo. No início das entrevistas apresentou comportamento arredio que avalio com o objetivo de afastar a interlocução, fato que aos poucos foi reduzindo com a confiança que foi surgindo após os inúmeros e seguidos encontros. A evolução em direção à igualdade entre os sexos tem vários efeitos sobre a sexualidade e contrariando o que alguns temem, nenhum dos efeitos causará a extinção das diferenças. Nas interdições sexuais são construídos poderes, que criam identidades e também uma multiplicidade de discursos que integram o discurso científico, no qual a conduta sexual não é uma categoria natural de forma de procriação e prazer, mas de controle da saúde da sociedade e/ou da pureza ou perdição das mulheres. Quando Foucault aborda a questão da sexualidade, ressalta o fato de que a repressão sexual foi aceita pela sociedade atual com o objetivo de incitar o discurso a este respeito, para que se pudesse vincular revolução e prazer, desta forma, a hipótese repressiva da sexualidade não deve ser aceita sem restrições, visto que a sexualidade tem sido construída socialmente ao longo dos séculos. Em A História da Sexualidade a inversão da tese que a sociedade ocidental tem sido de uma repressão à sexualidade, é apresentada por Foucault. Como resultado, ele destaca que o discurso em sua volta apresenta-se dentro das relações de poder sendo a base de suas análises da sociedade. Foucault inicialmente, aponta para um retorno aos padrões de sexualidade humana praticados nos idos do século XVII que é um marco de expressão da sexualidade como um momento de práticas que não “procuravam o segredo”. 73 No enfoque de Foucault, há um destaque para o século XIX que demarca um momento de confisco, no qual a família através do casal legítimo e procriador constroem, o direito de falar sobre o sexo. Em Foucault, vamos encontrar elementos para a descoberta sobre o sexo, para além de uma classificação ou caracterização da sexualidade, Daí o fato de que o ponto essencial (pelo menos, em primeira instância) não é tanto saber o que dizer ao sexo, sim ou não, se formular-lhe interdições ou permissões, afirmar sua importância ou negar seus efeitos, se policiar ou não as palavras empregadas para designá-lo; mas levar em consideração o fato de se falar de sexo, quem fala, os lugares e os pontos de vista de que se fala, as instituições que incitam a fazê-lo, que armazenam e difundem o que dele se diz, em suma, o ‘fato discursivo’ global, a ‘colocação do sexo em discurso’[...] (FOUCAULT, 1985, p. 16) Instituições como a família, a escola, a igreja, consultório médico e psicológico incitaram a proliferação de discursos sobre sexo com a intenção de controlar os corpos, o indivíduo, e a população. O poder sobre os corpos parece ter sido sempre o objeto de desejo dos detentores de poder qual seja controlar o objeto de desejo dos corpos – o exercício da sexualidade. Várias tentativas com êxitos e fracassos têm sido realizadas nesse sentido pelo conhecimento das civilizações de que se assume o domínio sobre homens e mulheres, e sobre as regras da sociedade, quando se tem em mãos o controle da sexualidade. Observamos que tal fato acontece em sua maioria de modo violento. As fontes indicam a importância de compreender a sexualidade da mulher-flor. Ela é um caminho, uma direção como possibilidade de se constituir a pesquisa sobre o corpo feminino. Esta tarefa, buscando interpretar nas histórias de vida os enfrentamentos políticos entre homens e mulheres, me possibilitou perceber como a sexualidade exerce o controle do corpo na família, na escola e na prisão, ainda que de forma incompleta influenciando, no 74 pronunciado e no silenciado. Pois não me cumpre falar pelas mulheres-flores, mas tornar as suas histórias verbais e não-verbais compreensíveis. A intenção é tornar visível toda reação exercida no cotidiano das mulheres na construção de sua sexualidade, melhor dizendo, numa proposta da “micro-história” realizar uma “micro-análise” de poderes da sexualidade sobre o corpo. O conceito de sexualidade é o resultado do discurso sobre o corpo sexuado. A sexualidade diz respeito às relações de poder que podem ser percebidas entre aquele que se confessa e a pessoa que recebe a confissão, como por exemplo, o educando e o professor; o paciente e o médico; os filhos (as) o pai e a mãe; a mulher e o homem; e o pesquisado e o pesquisador. Ao observar as formas de comportamentos humanos, em diferentes culturas e tomando por base as constatações sobre o sexo em outros tempos, é possível identificar pistas sobre os modelos de sexualidade em nosso tempo. E nessas pistas poder fazer leituras sobre a história de vida das mulheres-flores de modo a compreender uma espécie de padrão de comportamento feminino. Os estudos de Foucault apontam para saber sobre sexualidade que se constitui pelas práticas discursivas, ou seja, a dimensão arqueológica, a luz dos sistemas que se estabelecem pelo poder e pelas micro-relações, analisando o comportamento do sujeito, ou seja, a dimensão genealógica. Estudar as teorizações de Foucault sobre o corpo leva ao questionamento se estas relações existentes entre o poder e a sexualidade sofreram modificações significativas ao longo da história humana. O comportamento nas relações de gênero foi moldado pelo tempo, pela seleção de determinados valores, e por boa parte dos valores plantados nos séculos XVII e XIX, presente nos dias atuais. O crescente poder determina a vontade de saber, em conseqüência, determina os valores nas relações e compreensão das múltiplas dimensões do corpo. 75 É impossível analisar histórias de mulheres sem sentir a diferença de tratamento dispensado ao corpo de homens e mulheres, de pais e de mães. Seja por aqueles que julgam, por aqueles que cometeram crimes contra a vida ou por aqueles que foram vitimados ou vitimadas, como é o caso de Copo de Leite: [...] minha mãe nunca me defendeu de sofrer. Só falei com ela sobre o meu pai me tocando nas minhas noites mal dormidas... (silêncio... lágrimas) antes de fugir de casa. Sabe não vou falar do amor dela, eu acho que ela só amou aquele homem. Ela nunca foi às ruas me procurar, nem veio me visitar no presídio. E não foi porque não soubesse que eu estou aqui. Eu e minhas irmãs nunca tivemos uma família. Fugimos daquele barraco. Minha mãe esqueceu de amar os filhos, já que pai é como se eu não nunca tivesse tido... (COPO DE LEITE, 2000). O pai de Copo de Leite, que cometeu incesto e pedofilia, e teria massacrado seu corpo infantil e toda a sua família, não é apresentado por ela como uma pessoa cruel. As atrocidades cometidas também pelo parceiro não são esquecidas ao narrar seu drama, no entanto ela não consegue pronunciar que o pai e o parceiro agiram com violência contra sua sexualidade que brotava, posto que quando indagada sobre seu corpo, assim se expressa a respeito do mesmo: “O corpo de toda mulher é parecido, o que muda é a idade e a cor. Todos são sofredores. O meu corpo é tudo, da cabeça ao pé ele tem tudo, pois não sou cega, nem aleijada. É só. Não sei dizer mais nada dele.” (COPO DE LEITE, 2000, grifo nosso). Foucault, na História da sexualidade, nos apresenta a sexualidade como um dispositivo de poder pertencente a nossa história e que está disperso nas mais variadas relações de poder constituinte da sociedade moderna. No seu discurso sobre o sexo, o corpo também é descoberto como objeto e alvo de poder, devendo também ser controlado, vigiado e disciplinado, provocando uma proliferação de discursos sobre o sexo, que tinham como objetivo o seu domínio. 76 Tal controle teve inicio nas classes privilegiadas, que tinham como preocupação preservar a tradição através de seus descendentes, vindo atingir as camadas populares, quando esta se tornou um problema para o Estado. A medicina passou então, a exercer uma grande influência no discurso da sexualidade, à medida que as práticas sexuais passaram a ser regidas de acordo com as práticas médicas. Os discursos sobre o sexo disseminam, então, os perigos existentes nos contatos corporais. O corpo recebe uma atenção constante, sendo submetido a determinadas condutas que limitam o uso dos prazeres que são subordinados por uma espécie de ordem invisível, desenvolvendo uma arte da existência imposta pelo cuidado de si. Numa conversa, Dália afirma que preferiria ter ido para a universidade ou se tornado uma senhora bem casada, a ter seguido a prostituição, mas o que via na realidade era a maioria das mulheres padecendo de uma miséria respeitável. No seu relato assim se expressa: “Nos casamentos do meio que vivo a mulher faz um casamento com um operário de fábrica, cuida da casa, toma conta de três filhos ou mais filhos, praticamente sem dinheiro, principalmente quando o marido dava para beber. Sempre as mulheres fazem faxinas para ajudar nas despesas da casa, e quando não chegam cedo em casa ainda tem seus corpos surrados por seu homem, para depois ir transar, nem que seja obrigada e sem vontade.” (DALIA, 2000). Ela descreveu a realidade da degradação familiar que leva a mulher da periferia social ao vivenciar dificuldades tão dolorosas... E me pergunta: Por que eu não deveria ter feito à escolha que fiz? Como eu poderia manter a vida debaixo da fome e da escravidão a um homem? Falando sobre os modos silenciosos de agressão à sexualidade sou conduzida a refletir sobre a violência. Esta, não se localiza em lugar nenhum embora se encontre em todo lugar nos relacionamentos de gênero. Ela, a violência, se materializa no exercício e na aparente ausência de poder. 77 Na sua obra Vigiar e Punir, ao abordar a evolução histórica da legislação penal, Foucault nos mostra que cada época criou seus respectivos métodos punitivos, objetivando exercer poder sobre os corpos. Foucault, destaca, as relações de poder que são impostas sobre o corpo de acordo com as situações de cada época e regidas por discursos, apresentando-nos os corpos supliciados, torturados, os corpos disciplinados, submissos e dóceis, que são manipulados sempre de acordo com o interesse de outrem. Também, amplia nossos horizontes para que visualizemos que os poderes não são lineares, nem constantes, abrindo possibilidades para que esses corpos descubram mecanismos de transcender o controle utilizado para o seu adestramento, possibilitando então, nortear seus desejos e suas necessidades, buscando seus verdadeiros prazeres. A realidade mostra que as mulheres-flores exercem a violência ou se tornam esposas ressentidas ou mães vingativas, e que, por sua vez, fazem violência aos próprios filhos, como foi à postura da mãe de Rosa. Logo cedo eu enfrentei a violência dentro de casa e na rua. Só eu sei o que passei quando fui estuprada pelo meu padrasto. Eu tive um ódio profundo dele e prometi para mim mesma que eu ia enfrentar qualquer “macho metido a bravo” que me machucasse... Fui à luta e aprendi a me defender sozinha, só não pude me defender do “triste do meu padrasto, que tirou o meu cabaço”, enquanto a minha mãe fingia dormir. No dia que eu gritei a verdade, ela disse que eu dei porque quis, e eu era só uma mocinha. Não foi fácil sobreviver, mas pra quem é filha de chocadeira, estar viva até hoje, é muita coisa, nem que seja dentro de um presídio. Como eu queria ter tido uma família de verdade e o amor de uma mãe...(silêncio e lágrimas) (ROSA, 2000). As experiências com a violência vividas pelas mulheres produzem significativas e constantes transformações e alterações no seu corpo frente à realidade e consequentemente, perante os acontecimentos e fatos sociais, em cada tempo histórico. Foucault nos apresenta em sua análise que, a princípio, o controle sobre o corpo era concebido através da violência física, pois o intuito de atingir o corpo era o de salvar a alma do condenado através dos corpos torturados, sacrificados, feridos e marcados. 78 Na sua análise histórica Foucault, traz à tona, a eliminação dos suplícios que são substituídos pelas punições. Não como sendo uma preocupação com o lado humano das punições aos condenados, e sim pela necessidade de mudar as estratégias para que houvesse um aumento do poder, já que o mesmo estava sendo ameaçado pela coragem e pela ousadia dos condenados, a exemplo da história dos filmes: Coração valente e A letra escarlate. O poder disciplinar que passa a reinar, ao longo dos séculos XVII e XVIII, utiliza técnicas que vão avançando, fazendo com que se instaure uma forma de punição mais eficaz. A punição, portanto, continua sendo uma maneira de exercer domínio sobre os corpos, porém, passa a ser de uma maneira sutil, pois, ao invés de imprimir a força física, passa a utilizar os processos de poder de treinamento, a fim de controlar os corpos. O processo de treinamento e controle dos corpos dóceis revela que, quanto mais os corpos são manipulados, adestrados, obedientes, quietos, melhor será para as instituições, pois conseguirão uma produção maior. Percebemos aqui, a relação “corpo-máquina”. De instituições fechadas aos mecanismos panópticos, o corpo vai sendo vigiado, tornando-se submisso e regado a modelos pré-estabelecidos, de forma que homens e mulheres internalizem essa vigilância. Logo, entender o corpo das mulheres no exercício de poder nas relações de gênero não é apenas entender as atitudes de um corpo dominador (o homem) oprimindo o corpo dominado (a mulher). Em Vigiar e Punir, ao descrever a evolução histórica da legislação penal dos métodos e meios adotados pelo poder público na repressão da delinqüência, fica claro o jogo de poderes na luta desigual pelo controle do corpo. Ao refletir sobre essa discussão abordada por Foucault, sobre quais os meios utilizados pelo poder público na repressão da delinqüência ou sobre a sexualidade, visualizo um mundo 79 aparentemente distante quando os corpos eram, literalmente, vigiados, punidos, acorrentados, aprisionados por atitudes morais e de poder eram subjugados a uma repressão do desejo. Fica claro que enquanto o suplício do passado acometia umas poucas pessoas e as punições, um grupo um pouco maior, a atual disciplina atinge a todos com mudanças dos valores relacionados aos crimes e às punições. Instituições como prisões, manicômios, hospitais ou escolas assumem na atualidade a função de punição dos corpos, os quais dificilmente encontram-se espaços para protestos e resistências que gerem um “contra-poder”. Foucault explicita a situação do corpo enquanto objeto da ação punitiva, inicialmente como instrumento, e, posteriormente, quando se buscava uma punição incorporal. Essa transformação significou não só a mitigação das penas, mas também o surgimento de novas formas de punição retratadas através da disciplina dos corpos; através de um poder disciplinar “que em vez de se apropriar e retirar” como faziam os suplícios, as punições, a cassação de bens, “tem a função maior de “adestrar”; ou, melhor dizendo, de adestrar para retirar e se apropriar do corpo em níveis cada vez maior.” (FOUCAULT, 1987 p. 143). Sobre as punições no presídio, assim se expressa Rosa: Assim que a gente chega no presídio, vai logo para solitária e lá não pode conversar com ninguém, é só solidão. Aqui também, as presas só pegam em lápis uma vez na semana, já para os presos é diferente, eles pegam em lápis na hora que quiser, penso que é para a gente não poder escrever o que a gente pensa. (ROSA, 2000). Dos suplícios ao sistema carcerário é o corpo que se atinge, mesmo quando o poder é tido em sua versão incorpórea, como no sistema de punição disciplinar do presídio da solitária. Com vistas à disciplina, o corpo é silenciado. Um poder invisível nos corpos dóceis. As presidiárias, apesar de sua própria misogenia, são mulheres capazes de tomar o próprio destino nas mãos. Embora, é claro, esse tipo de destino seja, como seria inevitável, repudiado, limitado pelas restrições da justiça, julgado e punido pela sociedade em que vivem. 80 No entanto, a justiça apresenta atitudes contrastantes em relação a homens e mulheres que violam o código social e tem sido usada pela sociedade para manter a mulher “em seu lugar.” Por exemplo, as presidiárias que assassinaram os próprios filhos representam tudo o que é horrível nas mulheres, como apresenta a opinião de Copo de Leite: “Eu só não entendo é uma mulher matar o próprio filho, como é o caso daquelas duas colegas que mataram seus filhos ainda bem novinhos. Aí, essa violência eu não entendo. É como arrancar um pedaço do seu corpo”. (COPO DE LEITE, 1999). Foi impossível para Copo de Leite compreender o grau de ira e abandono que levaram as colegas a concretizar seus sentimentos. Tal comportamento não foi compreendido e realmente é atravessado pelo julgamento das presidiárias, embora é óbvio, não seja atitude que possa ser aceita por aqueles que fazem a justiça, posto que tem como objetivo preservar o direito a vida. E falar em atos de julgamento remete a reflexão para o exercício de poder. Refletindo acerca de uma possível compreensão do corpo feminino nos atemos ao que de mais instigante encontramos em Foucault: as relações de poder. Justo por ser impossível pensar na violência sofrida pelas mulheres-flores sem pensar em poder, melhor dizendo, de modo simbólico ou material a violência tem elos íntimos com o poder, indago: o que é poder? Poder é o exercício de exercer força e/ou o ato de resistir à coerção. Isto significa dizer que investigar o poder é pesquisar como numa determinada instituição social se comporta o cruzamento de forças que se constituem historicamente. Ele, o poder, passa a ser material à medida que, venha a ser exercido, explicitamente ou implicitamente. Foucault nos apresenta um entendimento de poder que supera a visão maniqueísta a partir da qual fomos acostumados a entendê-lo. Ou seja, a visão em que o poder é percebido como ruim, controlador, repressor, censurador, sendo boa, portanto, a atitude de combatê-lo, compreendida como oposta e supostamente dotada de um não-poder. 81 Para tanto, a sociedade construiu discursos contra os dispositivos e pessoas percebidas como centralizadoras deste poder a ser repudiado nas instituições, como a escola tradicional, a família controladora, a igreja repressora, os meios de comunicações manipuladores, o Estado regulador, para onde historicamente endereçamos tais repúdios. Para Foucault (1985), o poder forma uma rede e não se localiza em pontos convergentes na sociedade, mas, se constitui numa relação da qual ninguém está isento, nem mesmo os discursos contra o poder, que de forma ingênua ou mesmo na forma maquiavélica do poder se nutre para ganhar força persuasiva. Portanto, o mesmo discurso contra o poder o contém, e se mostra gerador de um saber que retorna as relações de poder modificando-as. A partir da premissa que o poder possui o saber, perde o sentido a idéia de que uns detêm o poder em detrimento de outros que se submetem a este, pois o poder está disseminado em toda a estrutura social. Ou seja, ao mesmo tempo em que o poder reprime, cria possibilidades de resistência, lançando mão de novas formas de exercê-lo, criando novos saberes. Por sua vez, o discurso produz e veicula o poder, mas também pode debitá-lo. No poder sobre os corpos, podemos encontrar uma intencionalidade. Esta intencionalidade não se reduz à decisão de representante de poder que o detém, mas toma sentido na rede de poderes que compõem a sociedade nas quais homens e mulheres compartilham o exercício de sujeição ou resistência. Entendemos que os saberes produzidos nesta rede de poderes são saberes que emergem das múltiplas relações nas quais o corpo é sujeito e objeto do poder simultaneamente. Disperso na sociedade, o poder de controle do corpo de uma mulher sobre outra também se encontra disperso nos corpos daquelas (es) que a geraram e no corpo daquelas(es) que por elas foram gerados. O poder de subjugar se dissemina corporalmente e se impregna nos corpos existentes. 82 Olhar para o panóptico de Bentham pode ser um referencial que pode ajudar a compreender o jogo invisível do exercício do poder sobre o corpo entre mulheres, no contexto familiar. No panóptico, o vigiado carrega consigo o vigia em seu corpo. O vigia vigiado (a mãe, a esposa, a filha, a nora, a sogra, a amante etc.) e o vigiado vigilante (o pai, o marido, o filho, o genro, o sogro, o amante etc.) carregam consigo toda a sociedade na prática da vigilância e vice e versa. (FOUCAULT, 1987). Neste sentido, a mulher vigiada pelo sexo masculino é ao mesmo tempo vigia de si mesma, e das outras mulheres. A vigia é despersonalizada, se confunde com a outra vigiada, depende do outro e da outra, numa vigilância descontínua, ora visível, ora invisível. As figuras da vigilante e da vigiada se confundem. Cada mulher só tem sentido a partir da outra e do outro. Estão presas numa relação de poder onde a vigia e a vigiada são portadoras, de um poder controlado por toda a sociedade que se realiza na vigilância individual e coletiva. O corpo das inúmeras atrocidades, dos suplícios e das punições, cometidas por uma sociedade que o menospreza, diante da exaltação da alma, também é o corpo que resiste, que produz saberes capazes de modificar tais situações (FOUCAULT, 1987). A história de vida tem sido usada pelas mulheres para descrever seus sentimentos e as formas como tentam vivenciar o tão sonhado amor nas suas experiências com esse elemento proibido - o próprio corpo, portanto esse é o material dessa pesquisa por excelência. Ao compreender o corpo feminino das mulheres-flores em suas carências, sinto a necessidade de realizar a reflexão sobre o corpo no Amor, posto que amar é compreender a totalidade do ser humano seja mulher ou homem com sensibilidades e intencionalidade que o faz presente no mundo e nele compartilha. É compreender o corpo com intencionalidade, sobretudo, compreender a mulher e o mundo partindo da compreensão de que o corpo pensa, percebe, sente, vive e convive, como 83 se revela na obra Arte de Amar: “O amor é penetração ativa na outra pessoa, em que meu desejo de conhecer é destilado pela união.” (FROMM, 1991, p. 43, grifo nosso). O poder sobre o corpo se faz presente desde as forças reprodutivas e é, na maioria das vezes confundida com Amor. Amor que é controlado por regimes disciplinares seja no presídio ou na família sempre no intuito de minar as forças criativas das resistências das mulheres em romper ou tomar a forma de uma determinada dominação, como a história de vida da mulher-flor Copo de Leite: Ela foi tratada com uma crueldade fora do comum, seu sofrimento foi medonho. Contudo, não se trata da história convencional da mulher sofredora. Ela foi presa por assalto e tráfico de drogas, vive em absoluta solidão, a ponto de querer ficar morando no presídio, embora já tivesse cumprido a sua pena por assalto e pudesse vivenciar a liberdade. Ela relata que em meio a sua dor a possibilidade de ter um filho não poderia ser mais completa e gratificante para por fim ao sentimento de solidão: “Eu não tive filho, mas não foi porque eu não quis, pois quando eu fiquei buchuda, o sujeito que eu amava e me embuchou, me deu duas pesadas no “pé da barriga” que abortei. E eu já estava com dois meses de barriga. Foi horrível, eu chorei muito e nunca mais eu quis nada com ele. Ele ainda me procurou, disse que tinha feito aquela loucura porque “tinha dado uma bola”, e que também tinha bebido, me pediu desculpas, mas eu sabia que era mentira. E o meu filho ele ia devolver? Ele...tratou de matar o inocente dentro de minha barriga, pois ele já estava com outra... (lágrimas) E ainda por cima a mãe dele não me deu apoio. Ela disse que não ia querer neto de uma da minha qualidade..”. (COPO DE LEITE, 1999) O fato de sua maternidade ter sido interrompida com a violência sofrida pelo homem amado foi a gota d’água para encerrar o relacionamento. Rompendo com o pai de seu filho, ela repetiu o rompimento com a mãe e quis dar o seu recado de “um basta” a quem lhe negasse o seu corpo, a quem lhe retirasse uma chance de sair da solidão. A sua sogra não apoiando o relacionamento do filho com Copo de Leite, também estava dando o seu recado disciplinar: A mulher do desejo, mulher de rua não serve para 84 entrar na família, muito menos para gerar netos, ao compactuar com a crueldade do filho a sogra nesse caso não quer uma fusão da sua família com a família da nora imprópria para o amor de seu filho. Pois, O desejo de fusão interpessoal é o mais poderoso anseio do homem. É a paixão mais fundamental, é a força que conserva juntos a raça humana, clã, a família, a sociedade. O fracasso em realizá-la significa loucura ou destruição — auto-destruição ou destruição de outros. Sem amor, a humanidade não poderia existir um só dia. Contudo, se chamarmos ‘amor’ a realização da união interpessoal, poderemos encontrar-nos em séria dificuldade. A fusão pode ser obtida de diversos modos — e as diferenças não são menos significativas do que aquilo que é comum às várias formas de amor (FROMM, 1991, p. 29). O Amor nos faz refletir acerca da uma vontade que se entrelaça com a vida e nesta encontra sentido. Uma forma de pensar a experiência corporal não reduzida a contemplação do ser amado, da existência vislumbrada e sim de doação ou negação, como nos fala, Fromm : Dar é a mais alta expressão da potência [...] Não é difícil reconhecer a validez desse princípio aplicando-o a vários fenômenos específicos. O exemplo mais elementar está na esfera do sexo. A culminação da função sexual masculina reside no ato de dar; o homem se dá à mulher, dá-lhe seu órgão sexual. No momento do organismo, dá-lhe seu sêmen. Não pode deixar de dar, se for potente. Se não pode dar, é importante. Para a mulher, o processo não é diverso, embora algo mais complexo. Ela também se dá; abre as portas de seu centro feminino; dá, no ato de receber. Se for incapaz desse ato de dar, se só puder receber, é frígida. Nela, o ato de dar volta a ocorrer, não na função de amante, mas na de mãe. Dá de si ao filho que cresce dentro dela, dá seu leite à criança, dá-lhe o calor de seu corpo. Não dar seria doloroso (FROMM, 1991, p. 34-35). O amor é um sentimento que está presente nas práticas da vida corriqueira, que para além da rotina, guarda em si a possibilidade de refletir ou repetir sobre a própria existência corporal, e criar para esta realidade sentido. O Amor do ser humano é produtor de uma realidade advinda de sua capacidade de problematizar o mundo em que vive, de refletir sobre si mesmo, de modificar-se, perceber-se como pessoa a partir da experiência de si, sem, no entanto perder a referência de um ser social. O amor advém das práticas de si com o outro, de suas formas de refletir sobre a vida, 85 da criação de um estilo de vida em conjunto. A imagem de Amor positiva é problemática para a mulher contemporânea que sofre algum tipo de agressão física ou psicológica. Na opinião de Dália, o corpo feminino padece de um problema fundamental ao tratar de amor. Para ela, os corpos das mulheres pobres são tidos como mal amados e decadentes e das ricas como o corpo sempre bem amado e em ascensão material e sentimental. Diz ela ser um sistema de dois pesos e duas medidas transparecendo claramente no jogo do corpo da mulher pobre versus o corpo da mulher rica e abastada, e assim, comenta: Enquanto a mulher rica tem a possibilidade de fazer uma cirurgia plástica, no rosto e no corpo, para trazer de volta o marido que se envolveu com uma mulher jovem, a mulher pobre tem se conformar em ficar sem marido, ser espancada e não ter seu corpo modelado e bonito. (DÁLIA, 2001) Ao observar a realidade, percebo que em alguns casos muitas vezes as mulheres separam-se ou se submetem, tendo que suportar a traição do marido, que geralmente não é tão jovem, mas ainda é “bem parecido”, e não precisa rejuvenescer, pois já se sente um pouco mais novo ao envolver-se com uma mulher jovem, mulher que está disposta a agarrar-se à aquele relacionamento tão fortemente tanto quanto a mulher traída antes de envelhecer. As esposas, assim como as Outras Mulheres, são habilidosas em negar o que não querem ver, habilidosas em compartimentalizar, em não levar em conta, habilidosas em ver-se como ajudantes e provedoras. Contudo, a Outra Mulher não reconhece que ela e a esposa têm o mesmo repertório e que cada uma está tentando dar sentido à sua vida, cada uma tentando lutar e vencer no seu relacionamento com um homem (RICHARDSON, 1987, p. 133). O medo da separação é uma constante no Amor. Fromm explica como e porque é tão angustiante a separação. [...] a separação é a fonte de intensa ansiedade. Além disso, ela dá origem à vergonha e ao sentimento de culpa. Esta experiência de culpa e vergonha na separação está expressa na história Bíblica de Adão e Eva. Depois que Adão e Eva comeram da ‘arvore do conhecimento do bem e do mal’, depois que desobedeceram (pois não há bem nem mal a menos que haja a liberdade de desobedecer), depois que se tornaram humanos por se terem emancipado da original harmonia animal com a natureza, isto é, depois de seu nascimento como seres humanos, — viram que ‘estavam nus e ficaram envergonhados’. [...] o ponto principal, que parece ser o seguinte: depois que o homem e a 86 mulher ficaram conscientes de si mesmos e cada um do outro, tiveram a consciência de que eram separados, de sua diferença, tanto quanto de pertencerem a diferentes sexos. Mas, ao reconhecerem sua separação, permaneceram estranhos, porque ainda não haviam aprendido a amar um ao outro (o que é também tornado claro pelo fato de que Adão se defende culpando Eva, em vez de tentar defendê-la). A consciência da separação humana, sem a reunião pelo amor, é a fonte da vergonha. É, ao mesmo tempo, a fonte da culpa e da ansiedade (FROMM, 1991, p. 18). Tomo como referência a história da mulher-flor Rosa. Ela acredita que as mulheres podem, no máximo, viver, amar e sofrer através dos homens que escolhem. Pensa que as mulheres separadas não têm a dignidade de uma mulher acompanhada. Ela considera que todas as demais mulheres são elegantes e agradáveis, enquanto que ela, não. Ela se vê comparada com outras mulheres, como se a vida fosse uma competição. Sente-se como uma borboleta cujas asas foram quebradas e nunca mais poderá voar. Rosa imagina que os outros e outras estejam sempre manifestando juízo acerca de seu comportamento e capta ironia no rosto de todos e todas que a cercam. Ela sempre diz: “Sinto- me horrivelmente suja!” Por não se considerar uma mulher virtuosa, boa e casta, ela não se identifica com aspectos positivos do corpo. Como ela se sente uma mulher sensual e má, que tem uma vasta experiência sexual, (e segundo ela) com muito pouca experiência de Amor, identifica-se com os aspectos negativos do corpo. Rosa sempre coloca em destaque mulheres que levantavam defesas com a raiva e o ódio, a exemplo da presidiária que agrediu a sogra e também outras que eram fortes, independentes e capazes de se impor, semelhante a ela com atitudes próprias agressivas. E sempre dizia: “Professora, um fio de cabelo é a distância entre o ódio e o amor.” E acrescenta: “E na vida do crime eu nem sei se essa distância existe.” Nessa perspectiva, ao abordar a temática da fabricação do corpo, esclarece Muraro que a mulher não sublimada, 87 [...] se dá ao homem e a vida brota dela, enquanto que as mulheres sublimadas por terem um relacionamento doloroso com o pai ou com a mãe, [...] elas se refugiam [...] num projeto narcísico onipotente de auto- suficiência [...], tal qual os homens (MURARO; BOFF, 2002, p. 164). Observando o estilo predominante nas vidas femininas, percebo o contraste entre a forma de amar masculina e a feminina. O homem cresce, adquire personalidade, e finalmente conquista na sociedade um lugar que tanto pode corresponder à fama e fortuna, como a um trabalho convencional no seu nível social ou ainda adquire o poder e o prestígio no crime para aqueles que enveredam no mundo da criminalidade. O estilo do desenvolvimento feminino apresenta uma nítida diferença. As mulheres em sua maioria pautam a felicidade e realizações no relacionamento amoroso. Isto não quer dizer que as mulheres amam mais que os homens, e sim, que são apenas diferentes. Até certo ponto a carência afetiva geralmente gera mulheres infelizes e insatisfeitas. Não é comum encontrar uma mulher que tenha uma vida satisfatória profissionalmente sem que isso acarrete um enorme sacrifício ao seu corpo. O sofrimento amoroso é o tema central do corpo da mulher e afeta a existência das mulheres-flores a partir das relações familiares e escolares: Também no aspecto da instituição escolar, as mulheres-flores apresentaram suas queixas: Rosa conta que com suas brigas na escola, foi chamada de aluna arruaceira, e seus desentendimentos sempre foram motivos de agressões por parte de outros alunos e de castigos e punições pela diretoria escolar, até chegou a ser expulsa. Ela falou nunca ter recebido atenção ou amor das professoras, nem atendimento psicológico ou acompanhamento da assistente social, pois nunca soube que tal tipo de apoio existia. Nossa civilização moderna de base escolar foi definitivamente estabelecida, como salienta Ariès (1978) baseada no modelo de família moderna a ser seguido. Essa civilização com valores da sociedade familiar tradicional convencionou que a preparação das crianças 88 seria controladora dos corpos e oferecida pela escola. Assim, a escola veio a substituir a aprendizagem tradicional nos lares. A escola, pois surgiu e se prestou como um instrumento de uma disciplina severa, protegida pela justiça e pela política. Tal realidade sugeriu a necessidade de uma política educacional que reconhecesse como mais um indicador de vulnerabilidade individual e social a presença da violência institucional. Para nossa geração o repensar da relação escola versus comunidade surtiu um efeito ampliado, renovando e enriquecendo as relações de gênero escolares. Atualmente, o atendimento escolar multiprofissional ou interdisciplinar articulado com a proposta pedagógica no município de Campina Grande, tem tentado garantir ao educando direitos para conquista e exercício pleno da cidadania, e assim viabilizar o fim do círculo vicioso: a família expulsa e a escola também. É sabido que não será dentro dessa realidade que se viabilizará a vida de meninas-flores como Rosa, que não recebem uma boa estrutura familiar e também escolar. Nessa desestrutura surge a necessidade de uma escola e órgãos que ofereçam saída para por fim à separação na sua condição histórico-social: A mais profunda necessidade do homem, assim, é a necessidade de superar sua separação, de deixar a prisão em que está só. A falência absoluta em alcançar esse alvo significa loucura, porque o pânico do isolamento completo só pode ser ultrapassado por um afastamento do mundo exterior de tal modo radical que o sentimento da separação desapareça — porque o mundo exterior, de que se está separado, também desapareceu (FROMM, 1991, p. 19). Rosa é uma mulher capaz de se defender, até mesmo do amor, e até negando-o, quando mata o parceiro objeto de desejo. Ao tomar suas próprias decisões, não teve medo de exercer o poder da separação, já que na sua vida a separação foi uma constante. Nunca quer ouvir outras idéias, quer sempre seguir as suas próprias. Confiando mais em si própria do que (nos outros e outras) com quem se envolveu. Ela apesar de ter uma delicadeza de movimentos no corpo se apresenta como uma mulher cuja feminilidade suscita dúvidas, até pelas próprias 89 presidiárias: “Ela é dona valente, um machão,” dizia Copo de Leite por entre os dentes. Toda essa rotulação, porque Rosa rompe com o modelo de corpo feminino ao tomar atitudes semelhantes a atitudes que se esperaria apenas de um homem. Seu comportamento não se ajusta ao estereótipo feminino. Esse comentário depreciativo de Copo de Leite em relação ao corpo de Rosa é tão despropositado quanto o de Dália e Rosa sobre seus próprios corpos. A negação do corpo nas mulheres não é o resultado inevitável da anatomia nem da constituição fisiológica feminina e sim o resultado da negação de seus corpos, numa compreensão da descontinuidade da história junto as relações de poder e sexualidade no corpo feminino. A maioria das justificativas femininas serve essencialmente como artifício para a solução de problemas nas relações de gênero, objetivando reforçar a visão da mulher como um ser predominantemente emocional, desamparado e incompetente, sem poder próprio e incapaz de amar por si mesma. Para mulheres fortes, capazes ou agressivas, é comum ouvir o comentário “essa mulher tem jeito de homem”. Nas respostas sobre o corpo, de modo geral, e particularmente sobre o corpo feminino, as mulheres-flores renunciaram ao seu próprio corpo, num exercício de silenciar o poder. Embora envolvidas na criminalidade, como agressoras ou agredidas, seu corpo não é o corpo do sucesso na contra-mão da justiça. Sem exceção, as mulheres–flores, foram penalizadas da infância a idade adulta, seja no relacionamento materno e paterno, na escola, nos amores, na sexualidade. Enfim, são mulheres-flores pisadas nos seus corpos negados. 90 3 Contemplando a cidade e suas flores C A PÍ TU LO II I “Alô, alô minha Campina Grande quem te viu e quem te vê não te conhece mais, Campina Grande está bonita, está mudada, muito bem organizada e cheia de cartaz...” “... Oh! Minha flor, minha morena, Campina Grande minha Borborema”. (Jackson do Pandeiro, in Pontes,1999) 91 3.1 O jardim: Campina Grande – no caminho do trem tinha uma flor A história é construída no cotidiano. A história é, permanência e mudança, e essa ambivalência presente na história, não nega radicalmente o passado e o presente, o velho e o novo diferenciados muitas vezes apenas nas aparências. O patrimônio histórico e cultural traduz as relações sociais em um determinado tempo e espaço, revelando as relações de grupos que simbolizam o poder de uma determinada época e dos grupos sociais de homens e mulheres comuns de uma determinada localidade que representam a história de uma comunidade. Não quero limitar a visão do patrimônio histórico, elegendo apenas a dimensão do vencedor. Com essa posição, não nego os significados dos que detém o poder, por ser importante reconstituir o contraponto: a visão dos vencidos, pois o Brasil da casa-grande, também é o Brasil da senzala e de Campina Grande, da Antiga Estação Ferroviária e do El Dourado é a Campina do Maior São João do Mundo no Parque do Povo, também é a Campina Grande do Presídio do Serrotão e da Delegacia da Mulher. Esconder a violência seria esvaziar a história. Quero olhar o presente, sem negar o passado, dimensionando a construção coletiva da história sem ocultar os registros de vinculações indiscutíveis, entre o passado e o presente, trazendo essa dimensão, sem, contudo, esgotá-la. A cidade, palco desta pesquisa e seus cenários, é um território marcado pela diversidade social, pelo antagonismo político, pela violência do cotidiano, pela busca da identidade de homens e mulheres que fizeram e fazem sua história. Campina Grande, considerada a Rainha da Borborema, por situar-se no Planalto da Borborema, surgiu em fins do século XVII, em torno de um aldeamento indígena Ariús, estabelecido pelo sertanista Teodósio de Oliveira Ledo em 1607. 92 Em 1790 tornou-se Vila, com o nome de Vila Nova da Rainha, passando a ser ponto de ligação entre o litoral e o sertão como entreposto comercial. Em 1888, Campina Grande era vista como a cidade mais populosa do interior paraibano: com cerca de 4.000 habitantes, em 1892 já contava com inúmeros prédios e casas. Em 1894 foi elevada à categoria de Cidade. Campina Grande ficou festiva em 1907, com a inauguração trilhos da Great Western, linha férrea. Ela é a maior cidade do interior do Estado da Paraíba, está entre as maiores do interior nordestino, e há algumas décadas é denominada “Capital do Trabalho,” tal qual, o rótulo de “Rainha do Lar” que foi dado as mulheres, também recebeu em sua maturidade o título de “Rainha da Borborema”, embora não negue sua origem de cidade menina - a pequena “Vila Nova da Rainha”10, que gerou a produção agrícola do Ouro Branco11. 10 Esse foi o nome dado a Campina Grande, quando de sua fundação ainda no século XVII, por Teodósio de Oliveira Ledo. 11 O algodão, Ouro Branco dos séculos XVIII e XIX foi principal produto agrícola que motivou a penetração dos forasteiros na intimidade de nossas jovens sonhadoras da época. 93 A jovem cidade donzela teve o seu corpo desvirginado pelos Tropeiros da Borborema12, forasteiros e viajantes como revela o poema dos filhos de Campina, em exposição no Museu do Algodão: TROPEIROS DA BORBOREMA (Rosil Cavalcanti e Raimundo Asfora) Estala relho malvado Recordar hoje é meu lema Quero é rever os antigos Tropeiros da Borborema São tropas de burros Que vêm do sertão Trazendo seus fardos De pele de algodão O passo moroso Só a fome galopa Pois tudo atropela Os passos da tropa O duro chicote Cortando seus lombos Os cascos feridos Nas pedras aos tombos A sede, a poeira... O sol que desaba Oh! Longo caminho Que nunca se acaba 12 Os chamados “Tropeiros da Borborema” traziam, em cima de “lombo dos burros” (do Sertão, Agreste, Cariri e Litoral), produtos agrícolas variados e, em especial, peles, couros e tangiam gado vivo para vender e trocar na feira que ganhou fama em todo o Estado e também em municípios dos Estados circunvizinhos. 94 Assim caminhavam As tropas cansadas E os bravos tropeiros Buscando pousada Nos ranchos e aguadas Dos tempos de outrora Saindo mais cedo Que a barra da aurora Riqueza da terra Que tanto se expande E se hoje se chama De Campina Grande Foi grande por eles Que foram os primeiros Oh! Tropas de burros Oh! Velhos tropeiros. (CAVALCANTI; ASFORA, 1999) Depois da invasão desses primeiros desbravadores, ela não foi mais uma cidade virgem e viçosa, de pouco contato com os pioneiros desbravadores, de comportamento recatado e provinciano e de relações agrárias. Desde o final do século XX, as flores de algodão campinenses encontravam-se vivenciando romances com homens envolvidos no comércio de algodão, chegando a ser exportadores de alta escala para vários mercados: europeus, britânico e norte-americano. Eram homens realmente muito empreendedores e sedutores. Porém, como todos os sedutores que se enredam na própria sedução, tanto os forasteiros como a “donzela” Campina Grande, viveram inúmeros casos de amor, repleto de paixões incontroláveis, mas, ao mesmo tempo, inventivas de novas violências. Campina Grande criava ares de cidade famosa e moderna. Com o desenvolvimento econômico, não demorou muito, e a cidade caracterizou-se como grande centro de prostituição feminina, quando foi inaugurado em 1937, O Cassino El Dourado, construído pelo comerciante João Veríssimo de Souza, localizado na Feira Central. O cassino atualmente quase que totalmente destruído, em seu auge de glamour era dessa forma apresentado: 95 Enfeitado de mulheres de todo o Brasil, e não raras vezes, de estrangeiras, o Eldorado exibia nas suas noites gloriosas, belos rostos e corpos femininos, luxuosamente vestidos e perfumados à francesa, evidenciando o desejo, já citado, que Campina tinha de ser cosmopolita, de ser Paris. Além do espetáculo de beleza e sedução feminina, havia outras atrações: músicos, dançarinos e bailarinos exibiam shows que levavam a platéia ao delírio. (CAVALCANTI, 2000, p. 57). Nos anos de 1940, é inaugurado o abastecimento de água da maior praça algodoeira mundial. Ao passo que o Cassino El Dourado passa a ser o palco da violência, quando as noites de luxúria se transformam nas noites de terror como no triste dia da violência no baile carnavalesco, onde o abastado Geraldo Cavalcanti Castro matou a dama da noite, Maria de Lourdes de Lima, com soco no rosto e ponta-pés no baixo ventre, como apresenta a pesquisadora Cavalcanti relatando a pronúncia do promotor: “O denunciado pelas duas horas da madrugada do domingo, 2 do corrente mês, no Cassino Eldorado, por motivos frívolos, teve breve discussão com a mulher Maria de Lourdes de Lima, porque esta lhe negara um porre de lança perfume, ato contínuo, passou a agredi-la fisicamente, dando-lhe um grande soco no rosto, seguido de um forte ponta-pé no baixo ventre, que a prostou por terra sem sentidos. Não satisfeito o denunciado prosseguiu na sua estúpida agressão, continuando a dar no ventre da vítima. Em virtude das ofensas sofridas, a vítima adoeceu gravemente, com fortes e contínuas hemorragias pelo aparelho genito-urinário, vindo a falecer na madrugada da segunda feira, 3 do corrente, em casa de uma amiga, para onde fora em busca de repouso...” (CAVALCANTI, 2000, p. 128). Enquanto a dama da noite Maria de Lourdes era barbaramente assassinada, em outros continentes entre 1940 e 1950, a francesa Simone de Beauvoir produzia a obra O Segundo 96 Sexo, apelando às mulheres, para tomarem em mãos sua vida e liberdade, fazendo a seguinte afirmação: “Não se nasce mulher, torna-se mulher,” enquanto a americana Betth Friedman, publicava A mística feminina, denunciando os estereótipos da feminilidade moderna. Ao mesmo tempo, a imagem da queima de soutiens na rua passou a ser a marca do novo feminismo explorado por uma maioria que o criticava. Campina Grande festiva e depois violentada vive dias de confusão e de transformações. Os valores cristãos e patriarcais sofrem abalos e começam ser comentados nos jornais de época. Vivendo entre o velho e o novo, no cenário ambíguo, os campinenses, trazem consigo questionamentos de valores rurais e a germinação de valores urbanos e liberais típicos do início de século. De acordo com a pesquisa, o perfil de violência de Campina Grande começara na verdade desde o século passado, quando do seu envolvimento com forasteiros vindos junto com as feiras de gado, intensificando comércios de produtos e de corpos femininos. Campina Grande conseguia captar e confluir não só a produção de Ouro Branco do Estado nos lombos de burros, e sim começa a transportá-lo nos trilhos da Great Western, a partir da instalação da linha férrea em 1907, mas realizava também a importação via o porto de Recife, de mulheres bonitas para satisfazer o comércio do sexo de homens menos abastados nos bordéis mais simples, os chamados rói couro, na antiga rua 4 de Outubro, atual rua Major Juvino do Ó e o sexo dos políticos e poderosos no famoso Cassino El Dourado, que é descrito da seguinte forma por Olívio Rique, filho de Campina: Naquele tempo, o cassino trazia atrações internacionais, como Tapia Rubios, casal mexicano [...] foi no Eldorado que apareceram as mulheres mais lindas desse Nordeste. Mulheres estas que deixavam muitos freqüentadores com as mãos na cabeça. Lembro-me inclusive, de políticos e homens públicos que iam de dia ver as mulheres para não serem vistos à noite, evitando assim os comentários maldosos da população (DINOÁ, 1993, p. 75). 97 A estrada de ferro transformou a cidade em capital regional do sertão nordestino e exerceu a função de Cidade-Mercado ligada principalmente à comercialização de algodão. Dando um grande impulso ao comércio do sexo, o trem fez circular para os portos europeus e norte americano o principal produto – o algodão, trazendo na volta, as máquinas e o luxo da Europa, como perfumes, veludos, sedas, vitrolas, porcelanas. A Estação Ferroviária forçou a cidade a crescer. Em torno dessa estação, velhos armazéns e fábricas demonstravam a importância que teve o algodão e o trem na história da cidade. A chegada do trem era tão importante como um feriado nacional. Os que ali se aglomeravam formavam um colorido humano na expectativa, das novidades e parentes que vinham de fora, ou daqueles que partiam. Cenas testemunhadas pelo Açude Velho13 O trem possibilitou que a Velha Estação fosse transformada num centro efervescente de transeuntes pelas remessas comerciais, viagens e curiosidades. Surge, assim, por conseqüência, no lugar, uma área de lazer para a comunidade, nos ociosos fins de semana, cheios de sedução. Todo esse quadro social campinense vai transformar essa cidade “ingênua” e “donzela” em uma cidade “mulher experiente”. 13 O Açude Velho que, além de ter sido o berço da cidade, foi por quase um século, um dos únicos reservatórios d’água do município é, até hoje uma das belezas paisagísticas da cidade rainha. Representa um patrimônio público que dá aspecto de hospitalidade e boas vindas aos transeuntes que chegam à Campina Grande. Em suas margens está o Monumento dos Tropeiros da Borborema que caracteriza a formação e a influência que o povo campinense recebeu, do índio, do tropeiro e da colhedora de algodão, para a construção dos seus costumes. 98 Apesar das ambigüidades e diferença da cidade do interior nordestino em relação às metrópoles que discutem as propostas feministas, Campina se solidarizava nas lutas pelo voto feminino. Por ser cidade de caráter moderno e cosmopolita, com pressa de chegar, abraçava causas feministas contrariando o ditado popular que diz “prenda sua cabrita que meu bode está solto.” Campina, que se achava ainda pequena resolveu então, ousar na vida, soltar as cabritas, se expondo aos perigos mundanos, de depravação dos costumes, que, segundo os discursos moralistas da época, eram os riscos da sociedade em construção. Segundo o pensamento da época, o progresso acelerado dos meios de comunicação em especial da difusão de novos valores através de jornais, destruía práticas primitivas. Esta realidade trazia consigo a corrupção dos costumes das mulheres nordestinas, como revela a pesquisa do Jornal das Moças, de Rocha (2002), a mulher adquiria valores urbanos, ao que pareciam menos nobres e mais desumanos e perdiam o romantismo e a inocência. Em 1920, as estradas carroçáveis e os poucos trilhos da via férrea, são transformadas em rodovias, rasgadas em grandes proporções, que permitiam um maior trânsito de carros e de notícias. Inclusive, sua localização geográfica a privilegia, ela fica incrustada como entroncamento entre as sub-regiões do Sertão, Cariri, Litoral e Agreste e isso, também, contribuiu para que ela se configurasse como local de debates e de expansão do novo. A cidade vai ganhando mais estradas, depois de 1930 até meados de 1950, terá seu crescimento acelerado. É exatamente daquelas décadas do século XX que trago a história de mais uma flor: Papoula, que conta seu primeiro romance amoroso: “O meu primeiro amor foi com o morador da fazenda de meu pai. Ele tinha 20 anos. Era viúvo e vivia com outra mulher que foi embora. Meu pai queria me matar duma surra, porque eu conversei com ele. Na conversa dos meus pais, ouvi minha mãe dizer: ‘Vamos levá-la para casa de farinha, para lhe dar uma surra, que só assim cachorro bebe sangue.’ Meu pai falou: ‘Será melhor no outro dia.’ Ao que minha mãe responde: ‘É melhor no continente.’(ou seja, no momento). Eu fugi nessa noite para mata, 99 pensando em lá morrer. Eu corria e tremia de medo. O meu futuro amor me avistou de longe e esperou por mim e me disse:  Acabou seu sofrimento, você vai ficar é comigo. Ao buscar as roupas dele na sua casa avistou de longe meu pai que estava a minha procura com uma foice no ombro. Quando eu desapareci, minha mãe chorou oito dias e fez greve de fome, até conseguir que meu pai parasse a procura dos capangas e policiais. Só depois de muito tempo fui pedir a benção a meu pai e ele não quis abrir a porta. Só falei com ele e com minha mãe, depois de ter dois filhos. Precisei me ajoelhar e pedir a sua benção. E ele me abençoou. Meu pai nunca quis falar com meu amor, morreu intrigado. Tive 10 filhos, morreram três e um foi aborto. O homem que amei nunca deu o sustento dos filhos e tive que trabalhar na agricultura, e vendendo frutas e bolos na feira, para criar os filhos. Penso que a culpa foi de minha mãe. Se ela não tivesse instigado meu pai a me bater eu não teria fugido de casa. Eu era filha única, e minha mãe dizia que, quando eu nasci meu pai disse: ‘Nasceu uma puta’, que tristeza! Meu pai não queria que eu aprendesse a ler, para não escrever carta para namorado. Fiz a carta do ABC e hoje, o que mais faço é ler a Bíblia. Se eu não soubesse ler, minha vida seria um tédio”. (PAPOULA, 2000) Desde o início desse século, ocorreu uma crise da família patriarcal de modo que a vida conjugal sofre transformações no exercício de poder da autoridade paterna ou marital do chefe da família, modificando lentamente a ordem familiar. No caso de Papoula observa-se que a relevância de ser letrada foi um elemento vital para sua sobrevivência em meio a adversidade do cotidiano, reforçando a importância da educação. A instituição família sofre um processo de liberalização apoiados na vigilância econômica e moral, junto a objetivos educativos e sanitários. Importa salientar que embora o poder do homem-chefe sobre a família não tenha sido totalmente destruído, esse poder vai se juntando ao poder do Estado, adquirindo nova codificação social. Dessa forma, a legislação brasileira reafirma o poder da família, agora aliado ao poder do Estado. Essa percepção se aplica visivelmente no caso de Papoula. Era tradição zelar pela honra da família pelas próprias mãos da família, mediante punição através de surras, ameaças de castração, e até morte do acusado de destruir moças direitas. 100 A partir da interferência do Estado, o amor daquela jovem irá ser procurado por policiais e capangas de seu pai e ser preso, fato não consumado pelo fato de sua mãe ter feito greve de fome para que o marido parasse as buscas pelo jovem casal enamorado. Supondo que tal perseguição não tivesse parado, o jovem enamorado acusado de roubar uma moça honesta, teria sido levado a sofrer sanções públicas através da lei ou da justiça familiar. Valeria quem primeiro encontrasse o vilão que cometera o crime de amar. A intervenção nessas relações transforma casos de amor em crime contra a família, justificando a vingança da honra pelas mãos de familiares ou pelas mãos da justiça. Acontecendo uma dupla justiça: a do Estado e a da família, proprietários do corpo feminino. No início do século XX, o crescimento urbano, as mudanças de comportamento, os novos valores e mudanças de conduta, que de certa maneira convivem com velhos valores, quase sempre entram em conflito, visto que os homens e mulheres não passam a aceitar as transformações imediatamente. A autoridade do pai passa a ser substituída pelo poder dos controladores sociais como, por exemplo, os médicos, educadores, policiais e pela justiça. Toda essa realidade vem interferir nos modos das relações de gênero, influenciando na política como por exemplo, a luta pelo voto feminino, (SOIHET, 2000). Em dezembro de 1960 foi federalizada a Escola Politécnica e a Faculdade de Ciências Econômicas, criada nos anos de 1952 e 1955 respectivamente e um pouco antes no ano de 1956, foi inaugurada e energia elétrica vinda da cachoeira de Paulo Afonso. Outros fatos que marcaram o desenvolvimento de Campina Grande foram: a criação do Distrito Industrial, a inauguração da TV Borborema, do Teatro Municipal em 1963, destacando-se os dois últimos como importantes veículos de difusão de nossa cultura, além da criação da jovem TV Paraíba. No final do século XX, o setor industrial é um dos mais fortes tendo a sua importância marcada pela sede da Federação das Indústrias do Estado da Paraíba (FIEP) na cidade. Tanto 101 no passado como nos dias atuais, Campina Grande representa um centro de importância geográfica regional tornando-se dessa maneira, passagem obrigatória para as idéias que circulam entre a costa e o interior de grande parte do Nordeste e do Brasil. Registro outro fato marcante em Campina Grande, a falência na década de 1970, dentro do Parque Ferroviário, da Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro (SANBRA)14, o maior complexo da industrialização do algodão da América Latina, que funcionava os três turnos e com o seu fechamento, gerou na época um grande desemprego masculino e feminino em Campina Grande. O movimento Feminista no Brasil eclodiu com mais intensidade na década de 1970 após a Organização das Nações Unidas (ONU) decretar o ano de 1975 como Ano Internacional da Mulher, período de muitas mudanças sociais e culturais e na capital do trabalho, Campina Grande, também ferviam os ideais do Feminismo. É o movimento que marca esse momento histórico, destacando-se o reconhecimento e legitimidade social em relação às lutas femininas e a emergência do feminismo heterogêneo e plural. Destacam-se as configurações dos espaços institucionais e acadêmicos nas quais se vislumbram os primeiros estudos que utilizam à categoria gênero. Lutas e conquistas sobre a saúde e direitos reprodutivos articulados à cidadania feminina, surgem na década de 1980, havendo a criação do Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher e a criação de Delegacias de proteção à Mulher. Surge também na década de 1980, a Criação do Conselho Nacional e dos Conselhos Estaduais de Defesa dos Diretos da Mulher. Com relação à saúde, no final da década de 1980 até meados da década de 1990, foi considerado um marco a conquista da legalização de aborto nos casos de estupro e risco de vida para a mulher. 14 Quando eu e minha mãe visitávamos a minha avó Veriana, no bairro da Liberdade, passávamos pela SANBRA. Certa vez eu indaguei a minha mãe: “Só podemos escrever a letra M antes do P e B, e nessa fábrica o N está antes do B?” Foi à ocasião que aprendi a respeito de Siglas, nunca esqueci. 102 Através da luta política por diretos reprodutivos surge uma visibilidade aos temas, como: sexualidade, violência, morte materno-infantil, garantiu que estas questões outrora relegadas ao campo da individualidade e subjetividade feminina realmente se transformassem. O nascimento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), gera a introdução do debate sobre a condição das mulheres na educação e no mundo do trabalho, suas reivindicações e reflexões teóricas acadêmicas sobre o crescimento do trabalho feminino absorvendo majoritariamente mulheres jovens, das universidades de Campina Grande na época a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Atualmente, em 2004, a cidade conta com duas universidades públicas sendo a Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),15 e com duas universidades particulares a Universidade do Vale do Acaraú (UVA), e a Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FACISA); absorvendo um grande número de estudantes de diferentes estados do país, devido à diversidade de cursos oferecidos e a qualidade de ensino. A fim de estudar os fenômenos que modificavam a nossa sociedade especialmente na área das relações de gênero, surge o Grupo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual da Paraíba (do qual faço parte) denominado Flor em Flor. Coordenado atualmente pela Profª Mª Idalina Freitas Santiago, me impulsionou a colocar pseudônimos de Flores em cada uma das mulheres que possibilitou, com suas histórias de vida, construir as possíveis reflexões no processo desta pesquisa. Na cidade em que tudo é considerado grande, grande passa a prostituição infantil, o comércio e abuso sexual, a contaminação de pessoas por AIDS e DST, separações e o índice de abortos, como o caso de Tulipa, que estuda numa dessas universidades e também sofre violência... 15 O Curso de História da UFCG possui um núcleo de pesquisadores da História Cultural, desenvolvendo importantes pesquisas que registram a história de Campina Grande. 103 “Eu cursava Biologia. Entrava no laboratório de Embriologia na Universidade e olhava os fetos de estudo em vários vidros, era a hora do massacre, do constrangimento. E por quê? Só eu sabia. Eu fizera três abortos. Só eu sabia a dor e frieza que utilizava para prosseguir a vida e o curso. Eu que entendia como a vida começava. Como as células surgiam e formavam o ser. Enfim, o que fiz, foi na verdade por medo de enfrentar a realidade de criar tantos filhos com tão pouco dinheiro. Eu tinha que escolher: ter filhos ou estudar. Foi uma violência comigo mesma. O arrependimento chegava... O preconceito também...O médico que fez a minha última curetagem de gêmeos, o fez no “cru”, sem anestesia. Foi horrível. Mas eu continuava insistindo: estudar era fundamental. Com meu estudo eu estava me impondo para minha família e me afirmando na vida. Muito me ajudou a leitura do livro ‘Olga’, lembrava o tempo que ficava incomunicável, sem poder ir nem sequer na igreja, por ordem de meu pai e conivência de minha mãe. Hoje tenho meu trabalho, estou concluindo o Mestrado e posso dizer que tive vitória, apesar das inúmeras cicatrizes. Ah, se eu pudesse fazer diferente, teria feito”. (TULIPA, 2001) Na passagem para o recente século, Campina Grande vem tentando frear a conjuntura excludente gerando emprego e renda às famílias, através de suas grandes empresas e de suas duas grandes e tradicionais festas, o Maior São João do Mundo16 e Micarande, o Carnaval fora de época. Tais eventos já são destaques em nível nacional, ambos prestigiados pelos turistas que visitam a cidade irradiadora da indústria cultural regional. O “Maior São João do Mundo” surgiu no ano de 1983 com o intuito de abrir caminhos para a retomada do desenvolvimento econômico local, sob a forma de inserir a cidade no universo da indústria cultural. Um evento grandioso, no mês de junho, com trinta dias de duração, e que vem a representar 365 horas do mais autêntico forró pé-de-serra, o qual se espalha por toda a cidade com mais de 300 quadrilhas nas ruas. Observam economistas que o objetivo a que é proposto, como seja gerar renda, não tem sido alcançado, tendo em vista o saneamento dos lucros para os grandes montadores da festa, que em Campina vêm investir, retornando para seus estados com os lucros. 16 As origens da festa de São João remontam às terras do Egito. Lá cultuavam o Sol e a fertilidade, culminando com a comemoração do início da colheita. Este ritual, logo foi incorporado por conquistadores romanos. Quando o catolicismo se torna a religião oficial do Ocidente, a festa se converte em homenagem ao nascimento de São João Batista. Os portugueses trazem o São João para o Brasil, encontrando, aqui, o cenário ideal para se firmar como uma das maiores manifestações culturais do país, principalmente no Nordeste brasileiro. 104 A concentração do evento acontece no Parque do Povo, com três espaços distintos: Portal do São João, Forródromo Jackson do Pandeiro e Arraial Hilton Motta. O Portal do São João é o principal acesso à festa. Lá são instaladas barracas, devidamente padronizadas, o que vem oferecer aos turistas e à população local, diversidade de entretenimento. Além de vasta cenografia, sob a forma da arquitetura regional, dando a idéia de uma cidade do interior, como O Sítio representando a vida na roça e a Vila da Imprensa, onde os profissionais da mídia têm uma infra-estrutura operacional para o desenvolvimento de suas funções. O Forródromo é imensa pirâmide de concreto, localizada no centro do Parque, constitui- se na mais tradicional área de dança, embalada ao ritmo do autêntico forró pé-de-serra. É lá também, onde acontecem os shows de calouros. O Arraial Hilton Motta reproduz sobre a forma de cidade cenográfica, a arquitetura de Campina Grande, no passado e no presente. Comportam por sua vez, barracas, além de um palco para apresentação de shows, quadrilhas, grupos folclóricos e outras manifestações nordestinas. Por toda a imensidão do Parque do Povo é visto o show pirotécnico ao som da Orquestra Sanfônica. 17 17 Orquestra Sanfônica é a primeira do gênero no mundo, reúne 32 sanfoneiros e outros instrumentistas; tem o repertório que varia do cancioneiro nordestino ao clássico da música erudita. 105 O comércio, bancos, hotéis, restaurantes e ruas são decorados com motivos juninos e a culinária nordestina se mostra em sua grande variedade de pratos: pamonha, canjica, pé de moleque, milho assado, entre outras iguarias, são apreciados pela população e turistas. A cidade dos grandes eventos dispõe de espaços bem estruturados para realização de shows e festas populares. Além do Parque do Povo, Campina Grande possui também o Spazzio, a maior casa de shows da América Latina, o Vale do Jatobá, a Vila Forró, além de clubes como: Campestre, Caçadores, BNB e AABB, que juntos realizam uma vasta programação com grandes atrações no mês de junho. Apesar de o clima junino contagiar a cidade durante trinta dias, com fogueiras e quadrilhas espalhadas pelas ruas, a violência tem se apresentado em proporção espantosa. Tal realidade, vem gerando a preocupação em preservar a cultura da comunidade, levando em conta a história, particularidade e resgatando a identidade de nosso povo sem, no entanto, penalizar a sociedade com a agressão tão intensamente registrada nas delegacias e hospitais, sobretudo a violência feminina. Surgiu a Micarande em 1990, sob as inspirações da Micareta baiana de Feira de Santana, até então, o primeiro carnaval fora de época do Brasil. De início, a Micarande ganhou proporções gigantescas, aparecendo com destaque no cenário nacional, gerando uma verdadeira onda de Micaretas, realizadas atualmente nas principais capitais brasileiras. A cidade dos grandes eventos registra a perda da flor Margarida que era uma Menina da Noite. Ela foi estuprada e pouco depois se suicidou. Aqui não está a fala dela, mas a de sua amiga que a conheceu desde pequena. Quero justificar o fato de ter escolhido para esta flor, o nome de Margarida, reportando, ao poema: Meninas da Noite de Gilberto Dimenstein: “bem me quer, mal me quer...”. “Quando criança, Margarida era considerada a ovelha negra da família. Sua mãe sempre batia nela. Sua vida de prostituição começou aos 13 anos, obrigada pela mãe a arranjar dinheiro com o corpo. Foi presa na capital, telefonou, pediu socorro, e os policiais a trouxeram até Campina Grande. 106 Num certo dia trágico, ela foi estuprada, por cinco bigodetes. Foi à gota d’água. Ela contou-me chorando da grande dor de ser usada por eles, que até colocaram um pedaço de madeira dentro dela e a largaram “nua” em São José da Mata, perto de Campina Grande. Ela não quis denunciar na delegacia, nem procurar o hospital. Acho que ela queria era morrer... Depois eu soube, que ela tomou 60 comprimidos de diazepam. Infelizmente, eu não soube em tempo de poder ajudar. Ela chegou na minha casa e pediu café, quando atendi, ela disse: Não quero, vou andando por aí, quem sabe alguém me dê uma peixerada*. Insisti, não adiantou, ela seguiu para a morte, descobri no outro dia. Ela se jogou no Açude Velho”. (INFORMANTE, 2000)18 O que pensou aquela mãe ao ver a filha morta? O que poderia ter sido feito para evitar aquela tragédia? Um grupo de estudos com mulheres do bairro, uma oficina do corpo, com o pensamento feminista que proporcionasse o diálogo entre as diferenças entre os homens e mulheres, impulsionando a criação de milhares de grupos locais, regionais e nacionais. Tomemos como exemplo disto, a capacitação de enfermeiras para repensar a forma de atendimento às mulheres. Trazendo para a educação, nós mulheres reivindicamos a necessidade de formação de profissionais críticos onde o conhecimento técnico esteja aliado à capacidade de intervenção política de modo a promover transformações nas relações de gênero que estanque a crescente violência. O que a mídia anuncia é que: investir no Maior São João do Mundo e Micarande significa apoiar o desenvolvimento da indústria cultural Nordestina, apostando, ao mesmo tempo, no retorno econômico para os grandes empresários que promovem atrativos turísticos, sem registrar os altos índices de suicídio, assassinatos e todos os tipos de violência. Conforme reportagem do Diário da Borborema, de 03 de novembro de 2002, entre janeiro e outubro do ano de 2002, foi registrada 1.818 queixas de agressão contra a mulher em Campina Grande. 18 O termo informante é utilizado pelo fato da amiga da vítima já falecida não ter acesso aos familiares da mesma para autorizarem a publicação da história, preservo desta forma sua identidade. 107 Este número já é 50% maior do que o registrado nos doze meses do ano anterior e significa que a cada 24 horas seis mulheres são vitimadas por algum tipo de violência na cidade. Outro dado importante revelado pela Delegacia da Mulher é que em 30% dos casos de agressão as vítimas voltam depois para retirar a queixa, antes mesmo dos acusados serem ouvidos. Segundo uma agente policial, esse fato é estimulado pelo medo que as mulheres sentem das ameaças de vingança do agressor. No entanto, o que se observa é que o índice de violência na cidade chega ao mais alto nível, justo nas épocas de festas. Segundo dados da Delegacia da Mulher, o índice de queixas logo em seguida às referidas festas, chega a triplicar, sendo o motivo mais alegado agressão física após a mulher solicitar a feira para manutenção alimentar do lar. A queixa que se segue é somada ao adultério. Como todo o salário havia sido gasto durante as festas, e o carinho dividido com outras parceiras, o que sobra para a mulher agredida? Acidentes com mortes violentas e, sobretudo, a violência contra a mulher, conforme os jornais da época, passa a revelar que a mulher é vítima de situações intoleráveis, durante a Micarande, como: estupros, assaltos, espancamentos, como foi o caso da flor Girassol, uma jovem que sonha cursar Pedagogia, e é independente financeiramente e começou um romance aos 19 anos com um jovem solteiro dez anos mais velho. Segundo nos conta: No início era tudo maravilhoso. Após quatro meses de relacionamento, numa festa, ele começou a agredir a irmã de Girassol, por pensar ter acontecido uma suposta traição. O relacionamento acabou por cinco meses. Ele pediu perdão e o namoro continuou escondido. No carnaval, numa viagem a praia ele agrediu Girassol com um murro. Espalhou que ia matá- la. Novamente, outro rompimento, logo em seguida ele pede perdão, e voltam com o romance. Só que ele começou a agredir qualquer pessoa que olhasse para Girassol. Na Micarande, ele bateu num homem que se aproximou de Girassol. Foi sempre um cotidiano de violência, durante sete anos do qual nasceu um filho. (GIRASSOL, 1999) As queixas-crime da Delegacia da Mulher nos revelam que, da última década do século XX, em Campina Grande, registram um número maior de homicídios e espancamentos 108 praticados por companheiros e maridos contra suas mulheres. Tais crimes se configuram como vingança masculina, quando os mesmos imaginam ou realmente são “trocados por outros parceiros”, como é o caso de Girassol. As condutas ilegais masculinas aparecem juntas com os procedimentos legais femininos de recorrência da tutela do Estado nos casos de crimes contra a mulher. Nas duas últimas décadas de 80 e 90, com a criação da Delegacia da Mulher, ocorre uma maior procura das mulheres pelos serviços do Estado, havendo uma verdadeira explosão de queixas-crime. A violência contra as mulheres que antes eram controladas unicamente no seio da família patriarcal, tão somente pelo poder masculino, no final do século, passa a ser regulamentada e controlada pelo poder de Polícia na Delegacia da Mulher, sem, no entanto cessar o poder de agressão masculino sobre os filhos e a esposa no âmbito familiar. Inúmeros, ainda, são os casos de companheiros, maridos, amantes, pais, irmãos que, buscando fazer justiça com as próprias mãos, recorrem à ilegalidade jurídica, podendo ser capturado pelo crime de agressão física, espancamento ou homicídio, formas particulares de vingança. São tipos de vingança privada e familiar, de caráter emocional, que a justiça considera ilegal. E é evidente que autorizam suas mulheres a buscarem a justiça e a tutela do Estado, na Delegacia da Mulher. Percebo que para favorecer o crescimento da “Capital do Trabalho” em fins do século XX, as forças do governo municipal estavam dispostas a fazer valer a modificação do espaço urbano de Campina Grande a qualquer preço, apesar de ter o título de Rainha da Borborema, a cidade modificar alguns aspectos antiquados. Era necessário harmonizar a estética campinense, destruindo as favelas, os cortiços, os becos, os botecos, pois o grande número de novos habitantes que já se instalaram, seduzidos pelo seu crescimento econômico, a queriam com um perfil de metrópole. 109 As ilustres figuras campinenses das últimas décadas foram presenteadas com a construção do Centro de Convenções Raimundo Asfora, acolhendo com dignidade Congressos Nacionais e Internacionais, com ambiente requintado, amplo e luxuoso. Uma verdadeira imagem de cidade desenvolvida e rica. Foram construídos prédios de linhas retas. Campina não era mais a cidade só do Edifício Lucas e do Edifício Palomo. Ressaltamos a imponente sede da Federação das Indústrias do Estado da Paraíba (FIEP) além de outros prédios modernos exuberantes como os prédios da Justiça – o Fórum Afonso Campus e como a Maior Casa de Shows da América Latina – o Spazzio. Prédio Sede da Federação das Indústrias do Estado da Paraíba (FIEP) A cidade menina, agora com ares cosmopolitas, semelhante às metrópoles do país, viu suas mulheres, serem influenciadas pela efervescência do movimento Feminista. Em 1992 realiza-se no Rio de Janeiro a ECO-92, Meio Ambiente e Desenvolvimento, ao qual, resultou um documento dedicado a temática mulher  a famosa Agenda 21, objetivando reconhecer o direito de igualdade de cada um, ou seja, de equidade. Em 1993 acontece a Conferência Internacional de Desenvolvimento e População no Cairo; Em 1995 IV Congresso Mundial de 110 Beijing19; Em 1997 acontece o 8º Encontro Internacional Mulher e Saúde no Rio de Janeiro. Aquelas conferências discutiam, além de suas questões específicas, as transformações nas relações humanas e a eliminação das descriminações social-econômica-cultural-politica entre sexos. Na Paraíba tem início a criação de grupos de estudos de gênero, como por exemplo, O Oito de Março, junto ao crescente processo de urbanização. O desativado Curtume chamado dos Motta, localizado dentro do espaço central ao lado das origens de Campina  o Açude Velho, foi demolido e nele construíram uma área verde de lazer e caminhadas, o Parque da Criança inaugurado na década de 1990. Nele não mais havia cheiros insalubres das peles dos animais mortos nem a feiúra dos urubus da minha infância, no entanto a falta de elegância estética precisava ser eliminada da charmosa Campina. A arquitetura arrojada do Parque da Criança, parecida com a área de caminhada do Distrito Federal e das grandes metrópoles nacionais exibe o desejo de Campina ser progressiva e civilizada, na década de 1990. Um lindo parque, pelo qual foi pago um alto preço às elites campinenses, quando da desapropriação. O que não podemos esquecer é o descaso com os pequenos moradores das imediações do Antigo Curtume dos Motta, que receberam migalhas por suas residências quando da implantação do referido parque e do Canal do Prado. Parece ser o objetivo esconder as imperfeições sejam estéticas, políticas ou morais. A aversão a tudo que fosse atrasado e rural está presente não só no discurso e nas práticas do poder municipal, mas na voz dos habitantes da cidade. Só que seria impossível esconder a 19 Participaram deste evento 554 brasileiras, a maior delegação da América Latina, que na delegação oficial do Governo, enviou 15 parlamentares federais e 3 senadoras; isto dá mostra de quanto este evento teve repercussão a nível do Congresso Nacional Brasileiro. (BANDEIRA, Lourdes. A Construção da Cidadania Social das Mulheres no Brasil. Brasília: Série Sociológica, n. 135, 1996). 111 violência das Favelas20 da Cachoeira, do Pedregal, como também, dos bairros José Pinheiro e Liberdade. Tanta exuberância não consegue esconder, nesse recente fim de século, a sujeira, o barulho, a violência e a mistura de vozes e cheiros desagradáveis. Os odores exalam da periferia da Feira da Prata, da Feira de Campina Grande e da chamada Rua Boa (atual Rua Manoel Pereira de Araújo), na Feira de Galinhas, onde as ruínas do Cassino El Dourado estão localizadas (atualmente zona de prostituição), junto às inúmeras prostitutas que vêem da zona rural. Semelhante ao passado, quando ao incomodar a antiga Feira da Rua Grande, (atual Maciel Pinheiro), foi reconduzida para a periferia o conhecido Beco das Piabas, lugar para onde foram também os antigos bordéis, porque assim como ontem, hoje tais distorções estéticas devem manter distância dos olhos da elite da cidade. Para tal foi construído o Hiper Bompreço escondendo a Favela da Rua do Fogo. As mulheres campinenses deveriam apresentar ares de emancipação, assim como Campina Grande deveria apresentar a estética arquitetônica de Capital do Trabalho, com ares de emancipada. Para tal, os grupos dominantes da cidade, constroem o Shopping Iguatemi, que passa a ser um lugar de encontros e de prazeres onde os costumes sociais são alterados, pois novas sensibilidades são produzidas a partir de novas formas de sociabilidade e de lazer. As luxuosas salas de cinema do Shopping substituem e silenciam os antigos cinemas: o Capitólio e o Babilônia. As mulheres, no espaço doméstico, ficavam incompatíveis com a imagem de mulheres urbanizadas e desenvolvidas, econômica, política e culturalmente emancipadas, das grandes metrópoles e semelhante às mulheres, Campina Grande também criou ares elegantes. 20 A Favela é uma ocupação desordenada dos terrenos do estado e município, proliferando-se cortiços e casas de pau-a-pique, transformando becos e vilas em moradia, tanto na área urbana, quanto suburbana da cidade. 112 Campina Grande, feminina, majestosa, com ares de metrópole, está pronta para receber seus políticos, administradores e administradoras, altos industriais e representantes das elites da região e de outras metrópoles nacionais e até internacionais. No entanto, as más línguas do Calçadão21 falam de uma Campina com dupla moral. À luz do dia, nos Hotéis, eram assinados contratos comerciais para realizar as festas monumentais da Micarande e do Maior São João do Mundo, enquanto nos embalos da noite, nas casas noturnas e Motéis, davam-se outros tipos de encontros, também comerciais, de troca, venda e até de doações, de sexo e até de paixões amorosas, mortais e mutiladoras. Como todas as construções e invenções humanas, repleta de ambigüidades e contradições, Campina Grande ao mesmo tempo sofre sujeições e produz subjetividades, misturando valores provincianos e de metrópole, transitando entre o tradicional e o moderno. Suas deformações estéticas foram extraídas e, ainda, foram abertas avenidas largas, acessíveis com nova iluminação, dando-lhe uma feição moderna. Ao redor do Açude Velho, foram construídos quiosques para abrigar os antigos trailers e foi construída uma ciclovia. Do mesmo modo, a forma nas relações de gênero das últimas duas décadas exigiu a criação de novas vias de comportamento feminino como a retirada da mulher do espaço do 21 Calçadão  ponto de encontro das velhas gerações masculinas, localizado no centro da cidade. 113 lar, para ocupar o espaço do mercado de trabalho, em sua maioria em funções subalternas. Era imperativo mostrar, pós-golpe militar, que nós mulheres ocupamos os espaços, porém houve pouca preocupação em pensar de que forma estávamos ocupando aqueles espaços e que qualidade de vida, estávamos conquistando, se nossos direitos estavam sendo cerceados ou não, gerando harmonia ou desarmonia nos valores femininos. O processo de urbanização de Campina Grande foi intenso, violento e ditatorial, quando das construções dos belos parques e avenidas urbanizadas, algumas mulheres campinenses tiveram seus corpos negados como cidadãs, perdendo o direito de escolher entre o lar e o mercado de trabalho, sendo praticamente expulsas de suas casas. As mulheres tiveram que negar a suas imagens de mulher dona de casa para serem contra suas vontades e escolhas: escravas do mercado. A exemplo, apresento o relato de Flor de Cacto: “Escolhi ser uma Flor de Cacto, porque desabrochei em meio aos espinhos. Vivi com um traficante, ladrão de carro, um ano e quatro meses. Descobri seu elo com a criminalidade já grávida. Dormia com uma enorme arma de lado e fazia sexo forçado. Fui estuprada por ele muitas vezes. Durante a gravidez fui muitas vezes espancada. Um dia denunciei aquele “homem- estranho” na Delegacia da Mulher. Fiquei livre no dia em que ele foi preso. Foi um alívio. Crio meus filhos, me sustento sem nenhuma ajuda dele, graças a Deus. Recordo uma professora minha que me dizia: a mulher começa a ser livre quando tem forças para reagir estudando e tendo força para trabalhar, mas o que eu queria mesmo era viver para criar meus filhos. Sonhava em cuidar do meu lar e fui interrompida. Estou na Universidade, participo do projeto no presídio, e ainda tenho que trabalhar, me sinto sobrecarregada, porém sou feliz” (FLOR DE CACTO 2000). Como observamos, as mulheres se sentem negadas em seus sonhos que poderiam aparentemente não ser sonhos ideais, mas como sabê-los se não puderam vivê-los? Campina Grande então vivenciou, no recente final do século XX, um amplo processo de transformação, seja econômico, cultural ou político. Alterações e deslocamentos de costumes, respaldados numa nova ordem nas relações de gênero, bem como a emergência de novos comportamentos e de uma nova chefia de família, em sua maioria feminina. 114 As leis, bem como o instrumento da justiça, a qual, a partir dos códigos jurídicos, legalizou as práticas sociais de forma homogênea e uniforme para todo ao país, mediante imposição de um código legislativo válido para todo o território nacional tem por objetivo moralizar, civilizar e modernizar a população do país e a Rainha da Borborema, não ficariam as leis alijadas desse processo, e muito menos as mulheres campinenses. Surge a necessidade de cuidar da moral e preservar os bons costumes familiares, bem como normalizar e até legalizar outros. Implanta-se então o Programa Saúde da Família (PSF), nos bairros, e nas escolas o Centro Paraibano de Educação Solidária (CEPES). Em 1988, aconteceu a separação do Presídio Masculino do Presídio Feminino, 22 que fica próximo do Lixão da cidade, numa clara demonstração de alusão ao considerado Lixo Social. Dois anos antes já havia sido criada a Delegacia da Mulher em 1986, vindo a funcionar em 1989 (separada em 2001, da Delegacia Central, em função das reivindicações das mulheres nos movimentos sociais), onde é implantado o local de apoio à mulher vitimada  a Casa da Maria, hoje Casa da Mulher. 22 A foto das pesquisadoras registra a implantação do Projeto no Presídio Feminino do Serrotão em 1999. 115 Com a implantação da Delegacia da Mulher o Estado passa a intervir diretamente em casos privados, que antes só diziam respeito à própria família, buscando cumprir o papel de direcionador e legitimador de normas e padrões. Para proteger as crianças vítimas de violência sexual, o projeto Sentinela é posto em funcionamento. Administrar as condutas conjugais, sexuais e de gênero é papel assumido, (nem sempre cumprido), pela justiça campinense. Enfim, não só em Campina Grande, mas no Brasil, é instalada a sociedade do controle (Foucault, 1987). Nessa sociedade fica fora do controle o cerceador de vida, como foi o caso do assassinato de Violeta que teve sua vida interditada, assassinada aos 27 anos, segundo relata sua irmã que tenta reconstruir um pouco do passado: Violeta era professora, viúva e tinha dois filhos e conheceu um homem, reformado do exército, pai de dois filhos que era casado. O primeiro encontro aconteceu numa festa, que caminhou para um caso de amor que culminou com um assassinato. Na véspera do assassinato, sua irmã sonhou que Violeta ganhava uma camisa preta e ela chorou muito. Quando sua irmã foi relatar o sonho a Violeta, a mesma disse ter tido um sonho no qual era perseguida por um policial. A realidade é que no dia seguinte ela foi assassinada com um tiro, em sua cabeça, cheia de sonhos, por um policial que se dizia ser seu amor. E fica a pergunta no ar: amor mata? Embora alegando suicídio, ele foi denunciado na Delegacia da Mulher foi preso por dois anos, nesse ínterim sua mulher faleceu. O livro predileto de Violeta era 116 Romeu e Julieta. Será que o morrer por amor saiu da ficção e tomou corpo de realidade? (INFORMANTE, 2000) Finalizo este capítulo, questionando o jovem Adson, do romance O Nome da Rosa e indago: porque, não buscaste o Nome da Rosa? Seria necessário mesmo, seguir teu caminho? A Rosa teria que ficar sem entender tua partida? O cheiro no corpo não seria uma marca? E nos jardins de Campina Grande, a orquídea, a margarida, a verbena, a papoula, o girassol, a violeta, a flor de cacto, a tulipa, o lírio, a rosa, a dália, o jasmim, o copo de leite, sentirão sempre seu corpo negado? 117 Boletim de ocorrência da Delegacia da Mulher: Queixa-crime: violência física e ecológica. Vítimas: As flores dos jardins residenciais da Rainha da Borborema - Campina Grande na Paraíba, Nordeste. Acusados: Maridos, companheiros, amantes, namorados, irmãos, mães, sogras, noras... 118 3.2 Um passeio nos jardins residenciais, às flores e as ervas daninhas. A antiga Campina Grande23 que fora uma menina “virgem e ingênua”, seduzida e deflorada pelos Tropeiros da Borborema, hoje com todo seu esplendor, brilho e sedução de Rainha é liberal, urbanizada, cosmopolita, globalizada, senhora de destinos embora vitimada pelos exploradores que mutilam ecologicamente os seus jardins de corpos femininos. A geografia privilegiada da cidade-mulher faz com que os homens, desejando dominá-la intensa e completamente, violentem seu corpo citadino, e os corpos femininos, com desrespeito ao patrimônio físico e emocional das flores do Ouro Branco. Ao narrar às histórias de vida, as Mulheres-Flores campinenses desta pesquisa apresentam suas vidas e seu relacionamento amoroso atrelados ao sofrimento. Tenho a sensação de que elas poderiam estar falando também em nome de suas mães e sogras que as ensinaram e a disciplinaram em colocar a dor na posição central. Poderia escutá-las dizer a uma só voz: “Sofro, logo existo,” perpetuando normas de sofrimentos em suas vidas. A cultura do sofrimento do corpo tem início sempre nas relações de gênero, na infância. Em nossa sociedade as mulheres ainda criança enfrentam desvantagens, pois muitas saem da infância com uma auto-imagem danificada em geral pelas mães. Depois a cultura em que vivem ratifica essa má imagem, em vez de ajudá-las a consertar o dano. E as desigualdades para as mulheres são alimentadas pelas sogras, que as punem se não se submetem às ofensas e agressão de seus filhos. Para erradicar algo tão obstinado e deformador, só refletindo sobre a realidade e rompendo com a cultura do medo. Papoula nasceu em Pernambuco em 1910, e veio morar no interior da Paraíba no Nordeste do Brasil, na cidade de Campina Grande. A jovem pura e ingênua era sempre 23 Campina Grande - a sedutora, possui jardins atraentes, com curvas, estradas e passagens cortejadas por homens de outros estados e de todo o Cariri e do Sertão Paraibanos, do Seridó Norte-Rio-Grandense e do sul do Ceará, chegando ao seu raio de atuação aos Estados do Piauí e Maranhão, excetuando as regiões dos portos de Natal e Mossoró. 119 protegida pelos pais que nunca a deixavam sair sozinha. Sempre que saía era na companhia dos pais ou familiares. Havia uma necessidade de protegê-la dos perigos da cidade, de homens espertos e aproveitadores. A jovem vivia o conto de Chapeuzinho Vermelho, com seus pais cuidando para que o “lobo mau” não se aproximasse da jovem para devorá-la, ou melhor, para deflorá-la, ou seja, desmanchar a flor. Para assegurar a virgindade da flor e manter sua pureza, havia todo um cuidado, objetivando garantir um bom casamento com um homem correto e trabalhador, um futuro bom marido e bom pai, que fosse um bom mantenedor das despesas da casa e, sobretudo da honra da família. Desde menina ela foi ensinada pela mãe, pela madrinha e seus familiares, além do padre, que a sua virgindade era sua honra e que seria o seu passaporte para um casamento, portanto, era o único patrimônio que ela possuía por ser pobre e não ter instrução de filha de rico. Papoula deveria ser sabedora que se sua honra fosse roubada, ela seria uma mulher perdida jogada na rua, lugar de mulher despudorada. O corpo feminino da jovem era interditado do contato com homens supostamente espertos e aproveitadores. A jovem pouco sabia da urbanização da cidade e do crescimento econômico e comercial de Campina Grande, que se intensificou nas primeiras décadas desse século. Ela sonhava em vivenciar as festas e experimentar o sabor da rua se misturando com os anônimos transeuntes em seus ternos brancos impecáveis e belos chapéus, e confessou num alento de saudosismo: “Eu não vi Campina Grande crescer. Suas novas ruas, o movimento de carros, o aumento de festas religiosas e de rua, o crescimento do número de pessoas que transitavam nas ruas, foram cenas que pouco assisti com meus olhos e sim vi com os olhos dos familiares, em especial do meu pai, porque também minha mãe, não era “andeja”, Ela só ia às missas, procissões e a feira grande. Eu sonhava mesmo, em conhecer o Cinema Fox e o Cine- teatro Apolo e imaginava o acontecia lá”. (PAPOULA, 2000) 120 Campina Grande, menina em flor não tinha muitos lugares de divertimentos e lazer sendo o passeio na praça, após as cerimônias religiosas o lazer das moças donzelas do início do século. O Cinema era a diversão que, com o poder de sedução dos artistas, inflamava os sonhos da população de nossa cidade. O cinema, com certeza mudou o comportamento de moças e rapazes da época, desejosos por momentos de prazer. Na década de trinta do século XX, foi inaugurado em Campina Grande dois novos cinemas, o Capitólio e o Babilônia, mas além dos cinemas, os jovens tinham outras opções de lazer, como as retretas, as festas religiosas e profanas, como o carnaval. Lazer, para os homens, lembra os cassinos que eram freqüentados pelos rapazes e mulheres de vida livre, pois, não ficava bem para uma moça de família sair à noite para um local pouco recomendável. Os homens, além do jogarem assistiam às apresentações das artistas de renome nacional, e buscavam prazer sexual. Lazer, para as moças lembra os recadinhos do coração na Difusora do Gaúcho, que alimentavam sonhos românticos e poderiam ser motivo de pesadelos para as famílias de moças castas que não poderiam ter seus nomes divulgados na cidade, portanto os códigos e pseudônimos eram comuns, para preservar “as jovens moças de família”. Sempre vigiada e saindo pouco à rua, nesse panorama de surgimento de novos prazeres, Papoula seria presa fácil. Certo dia, estando no jardim, um rapaz olhou de forma diferente e lhe chamou a atenção. Foi inevitável o surgimento de uma paquera. Todos os dias ele a cobiçava de forma sedutora, provocando na jovem o medo e fascínio, que nos conta: Apenas o seu olhar me fazia ter sonhos deliciosos e perigosos. Os seus olhares me deixavam realizada e tudo que queria era provar seus carinhos e seus beijos. Seu olhar profundo cada vez mais foi fazendo parte de minha vida. Finalmente, num raro momento que minha mãe esqueceu de me vigiar, um elogio foi ouvido: “O que tão linda donzela planta nesse jardim?” Em seguida, veio um toque na mão e ele me disse o seu nome e perguntou o meu. Quase morri! (PAPOULA, 2000) 121 De acordo com os preceitos morais familiares, o pai de Papoula sonhava para sua filha um namoro conveniente e direito, cheio de regras, caracterizado pelo respeito à jovem em sua residência. As regras cobravam o recato da moça candidata ao casamento, tanto no comportamento como no tipo de vestes. Era fundamental o controle do tempo, pois, era necessário um período mínimo para conhecer as intenções do pretendente e o seu caráter e não era permitido, um longo tempo de namoro, que poderia possibilitar intimidades não recomendáveis e favorecer o sexo antes do “sagrado matrimônio.” Geralmente o pretendente era submetido a um interrogatório sobre sua origem familiar, seu trabalho e, sobretudo, sobre suas intenções morais para com moça pretendida. De acordo com a moral e os bons costumes do início do século XX, uma jovem direita que sonhava com o casamento tinha que namorar24 dentro das regras, pois do contrário, seria considerada desonesta, sem preceitos morais e não apropriada para o casamento. Ora, a jovem Papoula quebrou a regra, fugindo com o seu pretendente, num momento de falta de vigilância dos pais. A jovem não sabia que o seu infortúnio começara, pois o seu pretendente já era amasiado com uma mulher com quem tinha cinco filhos, e ela só veio saber da triste verdade quando já tinha fugido com ele e já havia sido deflorada. Papoula ao fugir com seu pretendente provoca em seu pai um desespero, e o mesmo manda que os capangas de sua fazenda cacem os dois infratores. Sua filha foi ofendida e agora como mulher perdida a desgraça clamava por justiça. Justiça essa, que seria feita com qualquer arma, pois o seu pai estava injuriado com tamanha desconsideração e desrespeito à honra de sua filha e de sua família. Por crime de sedução e defloramento, o pretendente criminoso teria sido punido através da vingança privada, da justiça feita com as próprias mãos, sendo morto ou castrado. 24 Para Azevedo (1986) as pessoas de camadas populares não utilizavam os referenciais de namoro das elites burguesas, O namoro se dava na presença de todos da família, não tendo os namorados direitos a um único beijo. O respeito do namoro tornava-o antes uma amizade do que mesmo um caso de amor. 122 Conforme conta Papoula o seu enamorado fora poupado graças à iniciativa que sua mãe tivera: Não fosse a greve de fome que minha mãe fizera, nem eu nem ele contaria essa história. Meu pai estava destinado a dar cabo de nossas vidas. Eu estava triste com o homem a quem me entregara, quando me disse que já era comprometido e que eu ia ter de me conformar em ser “a outra”. Na verdade eu estava com muita raiva, mas eu não podia mais voltar para casa, se assim eu fizesse seria morta. Meu pai e minha mãe não me perdoariam por fugir com um homem que além de tudo era comprometido. (PAPOULA, 2000) A atitude da mãe de Papoula, com sua greve de fome, não foi uma atitude solitária, e sim, antecipava as ações de inúmeras mulheres de Corpo Negado que desejam sair do domínio de seus senhores. Acredito ser, a tática da sua mãe do tipo que impulsiona as táticas de mulheres que denunciam, superam o medo e a vergonha. Mulheres sabedoras de que sempre está em jogo o exemplo ousado da busca pelo direito à liberdade de inúmeras mulheres que ainda estão nas prisões da vida. Portanto, quando a mãe de Papoula resolveu utilizar-se da greve de fome, plantava uma semente que germinou gerando frutos de ousadia e coragem, pois assim como ela milhares de mulheres temem por suas vidas e pela vida de seus filhos. Diferente das leis que regiam na juventude de Papoula, na atual Constituição Federal Brasileira de cinco de outubro de 1988, homens e mulheres possuem os mesmos direitos e obrigações. Entretanto, no caso das mulheres, o respeito aos direitos vem sendo violados, pelos seus companheiros ou esposos, e pelos "ex", que pensam possuem direitos perpétuos sobre elas. Mesmo violando leis e códigos, os homens ainda se acham no direito de dispor das mulheres e fazer justiça com as próprias mãos, em nome da legítima defesa da honra masculina. O maior inimigo de uma mulher pode estar dormindo ao seu lado, comendo da 123 mesma comida, vivendo sob o mesmo teto, gerando-lhe filhos. A essa realidade chamo de convivência com as ervas daninhas. Vejamos o caso da jovem Girassol que ao denunciar o seu amante, apresentou como queixa a violência física: [...] a declarante Girassol diz que vive no mesmo domicílio com o acusado, a cerca de sete anos, o tendo conhecido numa festa e logo ao vê-lo, ficou loucamente apaixonada entregando-se ao amor de corpo e alma, iniciando assim um romance; que o acusado a desonrou por culpa da declarante, pois a declarante é quem provocou e diz não está arrependida de se entregar ao homem que amava de sua espontânea vontade. Até que um dia ele, enciumado, encostou a mão nela, agredindo-a com uma surra numa festa e que mesmo ele sendo amigado com outra mulher ela com seu amor intenso fazia vista grossa à situação; que a declarante tinha certeza plena do amor do acusado, amor esse, que fazia com que ele tivesse muito ciúme. Até que as surras foram aumentando e que ela não agüenta mais. (OCORRÊNCIA POLICIAL) 25. A sogra da flor Girassol construiu, a partir da queixa policial, uma imagem de mulher, assim, desenhada no seu discurso: Criada entre prostitutas, Girassol sofre a influência dos maus caminhos da vida, marcada pelo ambiente de prostituição, que muito cedo a instruiu no comércio do corpo. O fato de conviver com a mãe e as irmãs separadas do marido, fez dela uma jovem leviana, dada a toda espécie de casos amorosos. É infiel aos próprios amantes, pois enquanto vivia com meu filho, tinha outros romances com outros rapazes. No momento que meu filho descobre a sua desonra aplica os corretivos para ela aprender a honrar um homem. (OCORRÊNCIA POLICIAL) A lógica da depravação de Girassol repousava sobre o ditado popular: “tal mãe, tal filha,” já que aos olhos da sogra, a leviandade acometia todos os descendentes diretos, as suas irmãs, esquecendo a sogra que a lição de violência alimentada no comportamento do filho poderia estar seguindo o ditado popular “filho de peixe, peixinho é. ” Girassol sem preocupação com julgamento social, rompe com a imagem da pureza e da incapacidade feminina de gerir seus atos e se apresenta como mulher de desejo. Como afirma 25 Optei por omitir a data da ocorrência policial retirada da fonte - livro de registro de queixas – em função de preservar a vida pessoal da mulher objeto do registro da pesquisa, de modo que a mesma tenha sua identidade preservada. 124 a mesma, teria sido o desejo sexual e não o sonho do casamento que a teria conduzido ao ato sexual com o acusado. Ela seria para o grupo dos acusadores um corpo feminino anormal, já que o corpo feminino normal, não pode ser objeto de desejo sexual e sim do desejo maternal. Certamente a severidade da discriminação da sogra foi alimentada pelos depoimentos das testemunhas, que afirmaram: [...] a suposta vítima sempre provocou o acusado, já que sempre usava roupas transparentes e coladas, no objetivo de provocar os homens que passavam na rua. Colocava roupas com decotes grandes e coloridas e saias bem curtinhas e ainda não queria que ele reagisse a seu atrevimento. Ela não podia agir daquele jeito, pois tinha um homem para considerar. Se aconteceu dele dar-lhe uma surra é porque ele deve ter perdido o controle. [...] a jovem Girassol foi criada num ambiente de falta de respeito, e só podia seguir os maus costume da mãe e das irmãs, que permitiam que ela ficasse solta na rua, a procura de cair nos braços do primeiro que aparecesse, não importando se fosse casado ou não. Aconteceu de ser na mão do meu conhecido de muitos anos, que agora na conversa dela, assume o papel de conquistador e de agressor de mulher. Ele sendo um homem trabalhador está sendo injustiçado, e como não é, nem namorado e nem noivo, não tem compromisso com ela e segundo ele nunca fez a promessa de casamento.(OCORRÊNCIA POLICIAL) Debruçando-me sobre a queixa policial, que por sua vez debruça-se sobre o corpo de Girassol, observo que nos discursos das testemunhas e da sogra a vítima é marginalizada por elementos favorecedores de decomposição social. Os acusadores destacam a forma que Girassol escolhe as vestimentas que lhe “cobrirá ou descobrirá o corpo,” a sua atitude “devassa” de entregar seu corpo ao desejo sexual e não ao sonho do casamento. Salientam também que seu corpo habita em um ambiente considerado degenerado, num lar feito por mulheres de vida livre e, portanto, mulheres de corpo e honra comprometido, portanto de corpo inviável para o compromisso da instituição familiar. Apenas por uma testemunha é realçado o comportamento agressivo do acusado, já que seu corpo estava repleto de hematomas comprovado no exame de corpo delito. 125 A mãe de Girassol, também no depoimento, afirma ter criado a filha sem o apoio do pai, mas nem por isso deixou a filha sem estudar. Sua mãe disse ser um “desgosto” vê-la envolvida com um homem já comprometido com outra, além de tudo, soube que ele batia na outra e era envolvido com drogas. Girassol ao deixar ‘o coisa’ do namorado foi morar comigo e inverteu a situação. Começou a sair e arranjou outros namorados. Começou a descartá-lo. Aumentou a agressividade dele que chegou a jogar ácido no carro que era meu. Dava tiros na minha casa, altas horas da noite. Depois espancou minha filha no meio da rua, na presença de seu filho. Quando Girassol engravidou, ele disse - “O filho não é meu”, e a levou para fazer o aborto. A parteira disse que era muito perigoso, porque a gravidez já era de três meses. A criança nasceu e ele nunca a sustentou e abandonou os dois. Resolveu ir morar no sertão, engravidou uma moça bem jovem e a trouxe para a casa da mãe dele que encobre todos os erros do filho. Também o pai dele bate na mãe, a escola da pancadaria é em casa mesmo (MÃE DA DECLARANTE) 26. Nesse cenário surge a atitude rara do vizinho que não veio reforçar a imagem de uma mulher devassa para Girassol, já que o mesmo alegou que: ...quando se trata de uma mulher já prostituída, dado o seu estado de mulher pública, sem recato e sem pudor, se pode duvidar em aceitar que houve violência, mas no caso de Girassol é diferente. Ela o conheceu virgem e o acusado não nega ser o autor do fato, além do que o exame de corpo delito apresenta hematomas, além do mais não há provas de traição, pois toda vizinhança sabe que a mesma sempre foi apaixonada pelo acusado... ele é que deve ter seduzido a jovem e hoje a agride (VIZINHO DA DECLARANTE). A testemunha que vem em defesa de Girassol coloca em relevo a importância do corpo não ser prostituído por argumentar que a mesma era “virgem e não uma prostituta”, como quer fazer ver a sua sogra e testemunhas que colocam dúvida na “honestidade” da conduta de Girassol. Sua defesa da não agressão não se pauta no direito de cidadania e sim na valoração de um corpo não violado pela desonra física. 26 Utilizo os termos mãe da declarante e vizinho da declarante, de modo a preservar a intimidade da mulher (flor) cumprindo as normas de não expor a história da mulher pesquisada. 126 Girassol tem consciência de seu poder de sedução, de provocar desejos nos homens, como também mostra capacidade de conduzir sua vida e de se responsabilizar pelos seus atos. Porém, para a sociedade ela não é responsável pelos seus atos. Para o amante é objeto de desejo e de agressão, para os acusadores ela é uma degenerada, para os defensores uma coitadinha que teve a virgindade violada. Seu corpo é marginalizado pela sua origem familiar; pela rua em que morava, por seus laços de sangue com sua mãe e irmãs de conduta “leviana” e infiel para com os namorados. É mais um “personagem doente” de uma família desagregada, visto que o pai não morava mais com sua mãe e nem apareceu para junto a Delegacia da Mulher defender o direito da filha e sim, aparecendo só a mãe, como Foucault nos faz ver que, [...] em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações [...] Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade–utilidade, são o que podemos chamar as ‘disciplinas’ (FOUCAULT, 1987, p.118). Ora, seu corpo foi agredido, mas o que entra em destaque no corpo da queixa policial não é a agressão que sofrera e sim, o suposto ambiente e comportamento de corrupção e devassidão que, segundo as testemunhas, são presentes na vida promíscua de Girassol. Girassol comentou sobre uma conversa que tivera com sua mãe. A filha queria certificar-se de que ela não a aconselharia a escolher o caminho de mulher casada. Sua mãe respondeu que não, e indignada devolveu a questão para filha: “De que vale uma mulher pobre, apanhando todo dia e satisfazendo o desejo de um cafajeste, além de parir para ele?” Para algumas mulheres, a única maneira de se sustentar decentemente é através do casamento, onde ela deve ser boa para um homem, numa busca incessante de agradar sua sogra, que dificilmente nutrirá uma amizade, semelhante a história da Bíblia (1996) sobre à amizade verdadeira que existiu entre a sogra Noemi e a nora Rute. (RUTE, cap.1, vers.16-17) 127 Ela não exigiu de Rute que vivenciasse um luto eterno pelo seu filho, ao contrário, adotou como neto o filho que sua nora Rute gerou de Boaz um homem que foi o segundo marido de sua nora querida. (RUTE, cap.4, vers.14 -16). Para Girassol a realidade foi bem diferente, ela foi tratada de modo muito prejudicial pela sogra, uma mulher que jamais deixaria alguém, se atravessar no caminho do filho adorado. A sogra exercia um controle absoluto, e bastava ver a atitude do filho de envolver-se com alguém para que ela acionasse todo tipo de tática. Era visível o objetivo de depreciar e criticar qualquer mulher que se aproximasse de seu filho adorado, fosse pela aparência da mulher, pela maneira como ela falasse e, sobretudo pelo modo como se comportasse. Numa cidade festeira como Campina Grande, a sogra viu uma amizade começando a evoluir entre o filho e uma mulher “conhecida” como Girassol, e imediatamente se põe em campo para matar esse amor. A sogra precisa de sua vítima, de modo a se revelar mais uma guardiã da violência do patriarcado. Assim, no momento da denúncia da nora na Delegacia da Mulher, faz com que venha ao conhecimento público o passado da mãe e irmãs da sua nora. Os esforços da mãe para manter o filho numa posição de “senhor da situação” não levaram em consideração a noção de justiça, pois justifica o fato do seu filho jogar ácido no carro da mãe de sua nora. Disse ela perante a polícia, ser um ato de desespero de alguém muito apaixonado e que a agressão à nora seria um aplicativo de correção a uma mulher “atrevida”. Seu filho não havia sido condenado por molestar sexualmente uma menor, mas nesse episódio a nora consegue enfrentar a sogra e encontra apoio, na Delegacia da Mulher. Em vez de a sogra sair do embate, vitoriosa, a justiça, dando um passo, condena o agressor, que responde processo em liberdade. Girassol lamenta sua punição ser pequena, no entanto, diz: A mulher que sofre violência deve denunciar na Delegacia da Mulher, como eu fiz, pois se todas reagissem a realidade mudava. Estou ameaçada de 128 morte por ele, o homem que dizia me amar, que eu pensava ser o príncipe, do meu conto de fadas. Mas não me arrependo. Se eu tivesse ficado calada talvez não estivesse aqui contando essa história feia, mas real. Seja o que Deus quiser... (GIRASSOL, 2000) Em face do movimento feminista e das conseqüentes mudanças operadas na sociedade, as mulheres conquistaram maior liberdade para controlar seus destinos. O debate do meio acadêmico penetrou nas organizações comunitárias e viabilizou novas invenções femininas. A história de Lírio se constitui um retrato da mulher que consegue refletir sobre a condição feminina. Ela embora ferida pela ditadura, é tomada de entusiasmo ao avaliar possibilidades de superação do corpo feminino. Ela é um caso à parte, enquanto modelo de mulher se a considerarmos como representante de um tipo nordestina vitimada. A partir do momento em que foi envolvida com a política e com os livros essa mulher- flor teve a oportunidade de fazer uma leitura diferenciada do corpo feminino e do papel da mulher na sociedade. No meio intelectual da época de Lírio, o feminismo era uma questão concreta, ativamente debatida, parte de todo o movimento em direção à reforma social. A possibilidade de uma verdadeira igualdade entre os sexos era uma questão que estava na vanguarda da consciência social do momento, e os homens que faziam o partido se inclinavam claramente para o lado da liberação da mulher para conquistar novos espaços. No entanto, o que Lírio observava era um ressentimento do seu amado em relação às idéias feministas e que ele tratava-as com uma superficialidade que não lhe era própria. O parceiro, que deveria compartilhar das vitórias femininas, na verdade ficou preso no machismo dos séculos passados, no qual fazia impor suas vontades sem ser contestado e, contraditoriamente só encontra uma forma de tentar se impor: o desprezo pelas lutas femininas, da ameaça e do medo. Como agravante, as mulheres acabam sendo vítimas, também, daqueles que se acham no direito de violentá-las e assediá-las sexualmente, por 129 ciúmes, a ponto de ameaçá-las de morte, como me falou Lírio, mas me pediu para não dar detalhes, do porquê de suas opiniões. Observava ela, que a idéia do parceiro sobre o casamento ideal, incluía uma esposa criada por uma família decente, obediente e casta e, por conseguinte, identificada totalmente com os interesses e o bem-estar do marido. E lógico que, em troca, o marido lhe daria um lar seguro para sua constante dependência em resposta à dedicação e, sobretudo, à lealdade da esposa. Esse tipo, segundo ela, não era um relacionamento que ela, Lírio, desejava e apreciava. Para Lírio o corpo feminino vive uma incansável busca e não tem a vontade respeitada, como ela expressa: O corpo da mulher cala e se conforma com o destino, ou nada contra a maré. Só que tem um detalhe: se ele chegar ao fim do nado, na nascente, chega todo retalhado, dos galhos do rio da vida. Basta só olhar ao redor e vê como as mulheres lutam e sofrem. Não quero mais falar nisso, me sinto mal, pois só penso nas minhas netas, espero que para elas sejam diferentes, que tenham boa educação, trabalho e maridos bons para formar uma boa família. (LIRIO, 2001) Quanto à compreensão a respeito do seu próprio corpo, a sua resposta, revela a seguinte condição de reflexão; Meu corpo, será que ele é meu? Depois da ditadura, não sei falar de meu, nem de seu. Nunca tive mesmo idéia de ser dona de nada. Minha casa, meu marido, meu trabalho, nada disso nunca foi meu. Penso que meu corpo também não é meu. Penso que meus filhos é que fizeram dele uma casa, até o dia que eu paria cada um para vida. Eles são os únicos que foram um pouquinho meu, mas, veja bem, só enquanto estavam dentro de mim. (LIRIO, 2001) A clareza com que Lírio vê o mundo e a forma como ele tem sido organizado por homens e para as mulheres, bem como seu próprio lugar nessa organização social, é próprio de uma mulher esclarecida e de uma cultura alicerçada em leituras constantes e experiências com a política, porém como o ser humano possui suas contradições, em se tratando do amor, ela só consegue expressar o estereótipo social presente nos discursos circulares da sociedade. Para ela o amor de 130 casal é algo que não se consegue vê e diz: O amor de tão cantado ficou encantado. O único amor visível é o amor materno. E acrescenta: “Como eu sempre digo: uma mãe é para cem filhos e cem filhos não é para uma mãe, acho que com esse ditado, eu já disse tudo”. O que acontece na realidade, é que os conceitos de maternidade, assim como o de amor romântico é uma construção da sociedade contemporânea, presente nos discursos. A esse respeito BADINTER (1993) oferece uma análise esclarecedora na sua obra Mito do amor materno e FORNA (1999) em Mãe de todos os mitos. Os discursos sobre o corpo feminino não fazem mais do que comprovar uma cultura romântica, dentro de uma ótica que tem como bem mais caro, o amor materno e o respeito pela “rainha do lar”. Ao oferecer honra às mulheres direitas no espaço da propriedade privada, a mulher do lar, vem favorecer o julgamento das mulheres-mães consideradas más, quase sempre a mulher da rua, posto que as agressões feitas pela mãe-mulher do lar, no ambiente familiar geralmente é silenciada e acobertada pelo manto da disciplina amorosa e educação materna, como escuta-se: “Eu bati foi na teimosia do meu filho, eu sou a mãe.” Em nome do amor materno, muitas vezes estão escondidos comportamentos maternais prejudiciais e violentos, ou até mesmo silêncios e omissões como mostra o filme de atitudes de respeito e proteção humana, como tem sido revelado nas histórias de vida das mulheres-flores. O filme Príncipe das Marés traz em sua história o tipo de comportamento materno que pode levar ao desajuste dos filhos, além de apresentar uma relação de violência doméstica. O que importa nas regras circulares da sociedade é colocar normas em todos os comportamentos, sejam familiares, sexuais ou legais, legitimando um projeto societário global. Entretanto, o poder disciplinar sobre os corpos femininos tem o objetivo de racionalizar, corrigir e disciplinar as mulheres que não se enquadram no projeto societário global, que por sua vez engloba certos modelos de amor e maternidade. Esse tipo de projeto dado pelo 131 uso da subjetivação nas emoções é freado pelo uso de uma lógica27 não explicada das mulheres não maternais, que abandonam ou assassinam os filhos, também presentes nos relatos dessa pesquisa. Esse território de duplo sentido para o amor e o sexo ao serem elevados pelos discursos das mulheres da pesquisa revela como a esse respeito, as mesmas são marcadas por uma prática contraditória, onde a maternidade tem sido vivenciada de uma forma, e tem sido discursada de outra forma. O que observo é que geralmente, as mulheres vitimadas desenvolveram uma tática defensiva baseada no sofrimento, que atravessa cada aspecto de suas vidas. Tal estilo veio a torna- se a única maneira que conhecem para viver e aceitam incessantemente, os relacionamentos destrutivos, cometendo o erro de julgar que sua dor é inevitável. Existe na realidade, o medo28 de romper com a cultura do sofrimento, que talvez seja um problema mais destrutivo do que nunca. Ao mesmo tempo em que muitas mulheres vêem portas profissionais se abrindo, vêem também, em suas vidas, a violência predominar, tornando a experiência de ser independente amarga e contraditória, como foi a realidade de Tulipa. A violência, seja na rua ou na família, é um impacto sobre a saúde física e mental das mulheres. A violência infunde na mulher o medo, a insegurança, o terror, a ansiedade e uma sensação de abandono e desvalorização, dentre outras conseqüências. Violência foi o que fiz comigo mesma, quando fiz os abortos, para poder continuar os estudos. (TULIPA, 2001) Tulipa é um exemplo da prática em que as filhas são consideradas objetos de propriedade do poder patriarcal. O pai de início a queria controlar e na seqüência o parceiro quis repetir o mesmo comportamento. Ela não aceita seu destino com docilidade, nem se 27 Em A invenção do cotidiano, CERTEAU (1994), apresenta a discussão sobre o surgimento de uma outra ordem e outra lógica diversa daquela que tenta se impor de forma autoritária. 28 As mães, sogras e ex-esposas, sobretudo mediante processos de dominação alertam outras mulheres para sua inclinação à submissão através do medo do poder que exercem sobre elas. 132 enquadra no estereótipo de mulher dócil e submissa, e lastima a violência que fez consigo mesma. Ao longo da existência, a mulher vem sendo subjugada nos seus sentimentos, pensamentos interesses e vontades. A mulher passou séculos sendo obrigada a um comportamento que a violava no seu livre arbítrio, sempre a mercê do comando patriarcal, que ditava as regras do jogo, sob a égide de um moralismo civil e religioso. Quando finalmente Tulipa é transformada numa “esposa modelo” mediante uma pressão torturante do pai, da mãe, da sogra, o que se poderia quase considerar uma forma de violência psicológica, ela foi às forras. De certo modo vinga-se do pai, transferindo o seu título de eleitor, da cidade onde o pai tinha hegemonia política. Ela quer provar que ele não manda na sua vontade, levando-o a ficar em dúvida sobre o poder que exerce sobre a família. Com essa prática, mesmo sem saber, ela tenta minar a influência paterna de poder no estilo Panóptico, que pretendia descobrir o seu voto mediante o controle do título eleitoral. Explica Foucault que o estilo Panóptico, [...] funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens; um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça (FOUCAULT, 1987, p. 169). O pai de Tulipa ao ter o controle sobre em quem ela daria seu voto, representava o olho que via sem ser visto. Com essa atitude ela usa sua capacidade de expressar a vontade própria e os sentimentos sem constrangimento e sem culpa. Quando uma mulher exercita o poder de forma direta e objetiva, todos que fazem o grupo familiar ficam impactados. O direito de votar tão defendido no sindicato, para Tulipa foi uma conquista. Semelhante a mulheres como Bertha Lutz que lutou pelo direito da mulher votar, (SOIHET, 2000) Tulipa teve que lutar, para decidir escolher seu dirigente. O direito que deveria brotar naturalmente 133 no seio da família, precisou ser conquistado com brigas e ressentimentos de pai, irmãos e mãe. A mulher sofre de imobilidade que torna a vida difícil, e quando torna possível traduzir as estratégias de afirmação em comportamento eficiente na sua vida pessoal, é como se quebrasse um dispositivo ou infringisse uma norma do controle familiar. Embora caminhando em direção a algumas conquistas da vida, saliento a ambivalência demonstrada por Tulipa em relação ao corpo do homem e da mulher, para ela: O corpo feminino é totalmente diferente do corpo masculino. O corpo da mulher é uma interação entre a mente e o sentimento, relacionados ao modo de vida de cada mulher. No corpo do homem não existe interação, ele separa o sentimento da ação. No corpo da mulher a emoção, o bem estar ou o stress se revelam até nas olheiras e no homem isso não acontece. Na mulher tudo acontece junto e no homem é tudo separado. (TULIPA, 2001) Essa interpretação de que na mulher existe uma força de agregação, enquanto que no homem há uma força de dispersão, é confusa, posto que ambos, na condição de seres sexuados num corpo, por vezes são sensíveis, por outras insensíveis, independente do gênero masculino ou feminino. De certo modo, o senso comum avalia erroneamente que as mulheres vitimadas sentem prazer na violência e no sofrimento. Não ocorrem em suas cogitações a essas mulheres vitimadas, que tenham anteriormente considerado e depois rejeitado soluções alternativas para enfrentar as situações adversas, como foi a experiência de Orquídea: A ex-esposa do homem que amei tentou o suicídio apresentou problemas neurológicos, e o pai dela o ameaçou de morte, caso ele decidisse pela separação e não a deixasse com a escola. A ex-esposa vivia, a me perseguir nos locais onde eu trabalhava pedindo aos meus empregadores que me demitissem, porque eu era uma traidora que roubou o marido dela. Apesar de já estarem separados judicialmente, a ex-esposa não admitia e continuavam as agressões. Ela quebrava os vidros das janelas da escola, rasgava a roupa dele e atirava objetos na sua cabeça. Agrediu fisicamente uma funcionária da escola, porque ela defendia meu amor, destruía impressoras, computadores e outros aparelhos, ameaçava ele de morte com uma faca, colocava os filhos contra o pai. Ligava todos os dias para minha casa, ameaçando-me. Foi ao teatro em que eu estava me apresentando e 134 tentou me matar (estava com uma faca na bolsa), achou pouco e quis me difamar na escola que eu trabalhava. ‘Minha vida era um inferno e eu não podia fazer nada para mudar’. (ORQUÍDEA, 2000) Orquídea matinha uma relação saudável com seu parceiro e quando ele demonstrava estar aborrecido e agressivo ela não demonstrava estar assustada nem adotava uma postura altiva. Mas conversava de maneira sincera e verdadeira. O casal dialogava sobre qualquer coisa, não importando o quê, sem medo, desde que prevalecesse a verdade, e não uma mera atitude de apaziguar as diferenças. Existiam no relacionamento confiança e sinceridade. A mulher que tomar suas próprias decisões, que governar o seu corpo, será beneficiada com uma sensação de confiança em suas próprias ações, enquanto segue pela vida sem temores de críticas ou ataques, como por exemplo, o comportamento de Orquídea: Mas quando estávamos no auge do nosso sonho de amor, ele sofre um acidente automobilístico. Ainda preso nas ferragens do carro chamou meu nome e pediu para o bombeiro ligar para mim, quando o vejo no hospital, respirando com dificuldade, pega no meu pescoço e me beija e diz que me ama e falece vítima de embolia cerebral. A ex-esposa e a família dela já foram recolhendo as chaves da escola e providenciando o velório onde fui agredida pela filha dele, que se encontrava ao lado do ataúde, junto com a mãe. E ela grita para todos ouvirem “eu quero que ele veja mesmo”, impedindo minha aproximação. Não pude permanecer no local do velório. As dores da perda e da agressão de que fui vítima se misturaram com insultos das pessoas que se diziam amigas delas, muitas afirmavam “é a amante dele” e “vamos expulsá-la daqui, ela não vai ficar com nada dele”, apesar da angústia, algumas alunas e mães permaneceram me apoiando até hoje. Quando escuto relatos de agressões físicas, morais, psicológicas sofridas por mulheres dos seus esposos, percebo que a minha situação foi o inverso, eu fui amada pelo homem que amei. E fui agredida por mulheres: física, moral e psicologicamente. Mulheres que tinham o amor e o apreço de um homem e não deram valor. Quando se sentiram sós, usaram da violência para reconquistar esse amor e ter a posse de todo o status que ele assegurava.(ORQUÍDEA 2000), Na maioria de casos como esse a mulher abandonada construiu para seu amado, de quem se sente “dona,” um ninho de conforto, de bem-estar, e fica de guarda para manter distante a preocupação e outras mulheres. Faz dele o senhor da sua vida, embora ele não saiba, que nesse aparente comando ela, a mulher, mantém o controle disciplinar de seu corpo, 135 e a qualquer custo quer manter-se na torre de controle, que pode custar até a vida de uma possível intrusa. O cercear da liberdade é também exercitado por mulheres sobre outras mulheres que não compreendem chegar ao fim de um relacionamento amoroso. Geralmente a mulher magoada desvia seu alvo de fúria para a nova mulher que penetrou no relacionamento, mesmo que o namoro, romance ou casamento há muito, já tenha falido. Penso ser apropriado indagar: Quanto custa a uma mulher ser a mãe do seu parceiro, ser sua amiga, sua irmã, sua secretária e ainda ser a mãe dos seus filhos e filhas, tudo ao mesmo tempo? Pode custar até a sua própria liberdade, de crer num outro possível futuro. O controle da vida foi aparentemente entregue ao outro, mas na verdade o exercício de poder está camuflado sob uma aparente negação. Semelhante é a posição do homem que em nome de um aparente cuidado, controla a vida da parceira, negando-lhe a chance de decidir por si própria. A vida está cheia de mulheres de corpos sofredores e são raros, na vida, exemplos de mulheres, que caracterizam com tanta perspicácia e sensibilidade sua relação afetiva com seu corpo. Assim expressa Orquídea: Meu corpo é meu envolto físico, minha forma, que me diferencia de todos os seres. Com meu corpo danço, sinto, percebo, abraço, amo, trabalho, idealizo transformar o mundo e me transformar. Por causa dele, vivo e por ele cuido, com muito amor. Esse é o corpo que eu sinto, vivencio e luto por ele, apesar das imposições da sociedade. (ORQUÍDEA, 2001) Orquídea fala sobre sua infância com alegria e de seus irmãos como pessoas maravilhosas, no entanto, as impressões a respeito do pai são bem diferentes, assim ela comenta: ...meus irmãos sempre me apoiaram, são amigos. Com eles, eu sempre contei. O mesmo não posso dizer do meu pai que violentava psicologicamente a minha mãe dizendo sempre que ela era “burra” e não devia estudar. E quando ela voltou a estudar, meu pai ameaçou a separação, mas mãe criou coragem e disse que ele podia ir para o juiz e dizer que queria o divórcio porque a sua mulher tinha recomeçado os estudos. Aí ele recuou, e hoje ela continua estudando e com a auto-estima 136 bem melhor. Meu pai sempre agredia a moral de minha mãe, humilhando-a, desprezando-a, e ferindo a auto-estima dela. Para muitas pessoas isso era besteira, pois ele não batia no corpo, mas para mim e com certeza para ela, estava fazendo pior, batendo na alma. (ORQUÍDEA, 2001) Na história de Orquídea, é possível reconhecer alguns elementos do corpo controlado, mas também é possível visualizar uma aceitação corporal que impulsiona novas tentativas em direção à vida. Diferentemente, a mulher negada comunica seus sentimentos a outras pessoas, no estilo da negação da corporeidade, por assim dizer, tão negativamente que torna a sua vida perpetuamente difícil. Os sentimentos de medo e dominação da mulher firmam raízes na infância. Mas é importante apontar que as raízes dos sentimentos paralisantes envolvem abusos de poder no relacionamento entre os pais, mães e filhas. Abusos aqueles, que deixam a “mulher-flor” cheia de dúvidas em relação a seu corpo e o sentimento de amor materno, conforme, Jasmim: O meu corpo não é meu. Se ele fosse meu, se eu fosse dona dele, nunca que minha mãe e minhas irmãs teriam feito o que fizeram com ele. Entregar meu corpo para um homem ruim como aquele, e ainda rirem de mim, quando eu nem sabia da vida. Que amor de mãe... (pausa) Esse amor é uma piada? Não posso falar do amor de mãe, ela já morreu e só porque morreu não vai virar santa. O que não morreu foi minha lembrança do que ela fez. Eu só posso falar do meu amor por meus filhos. Eu gosto deles, mas às vezes eu penso: acho que seria melhor não ter botado no mundo tanto filho. Se eu não tivesse filhos eu já teria ido para bem longe. Ah! Não quero pensar em amor de mãe e fim. (JASMIM, 2000) Ao pedir que definisse o que pensava do amor entre homem e mulher, ela não soube nem por onde começar. Depois de um bom tempo, suspirou e disse: O relacionamento de homem e mulher é problemático, cada um quer defender o seu lado, parece uma guerra. E eu fico pensando, todo mundo diz que o importante é o amor, será que esse amor alguém conhece? Eu olho as mulheres e vejo que nenhuma delas conheceu o amor de verdade de um homem, igual ao amor das novelas e dos filmes. Ah! Amor de verdade, só em novela e filme mesmo... é bom demais...(suspiros) porque na vida ao vivo e em cores é só o macho mandando e a desilusão.O amor não 137 machuca, não fere, não xinga. O amor é tudo de bom e lindo que tem no mundo, o amor de verdade só vem do Céu. (JASMIM, 2000) A mesma “mulher-flor” dos suspiros e sonhos com novelas e filmes de amor, viveu uma realidade amarga no ambiente familiar e passou a fazer parte das estatísticas de violência doméstica. A paixão perigosa de BUSS (2000) contribui com a discussão que trata da importância do ciúme e do sexo na construção do amor. Os crimes de lesão corporal cometidos no Brasil por homens que resolvem vingar-se da mulher desejada, motivados por ciúme, loucura e ódio são muito comuns. Casos que não são fruto do acaso, mas de planos detalhados. Na história de Jasmim seu parceiro, de início, fingiu suportar a traição, no entanto, a sua vingança brotou quando a mesma estava longe da cidade natal e longe dos familiares: Quando morei no Rio, durante nove meses, ele me bateu. Nasceu minha filha e depois de um ano voltei para Paraíba para visitar a minha sogra que estava com câncer. Reencontrei o meu primeiro amor e a traição foi inevitável. O meu marido descobriu e ele me surrou e depois disse: “vamos esquecer tudo, vamos abafar o assunto”. Pura mentira, ao voltarmos para o Rio ele me surrava todo dia e dizia que era para eu não esquecer que ele era meu dono. Fugi porque eu não estava agüentando mais tantas surras. (JASMIM, 2000) O marido indiciado na justiça através da queixa na Delegacia da Mulher, fez o fato sair do seio familiar para ganhar ares de coisa pública. E ela acrescenta: E tem mais, quando a gente vai atrás do direito na Delegacia da Mulher, tudo que é família, vem pra cima, fazendo confusão. Mas quem ganha a liderança da confusão, pra todo mundo é a nossa mãe e a sogra. Essas duas cargas pesadas, não dão trégua. Para elas, mulher direita agüenta calada todo o sofrimento, mas tinha até graça, então para que a lei existe?(JASMIM, 2000) Diante desse contexto concluo que a família é a famosa jaula transparente e circular de valores onde os membros em suas torres potentes “[...] projetam uma instituição disciplinar perfeita, funcionando de maneira difusa, múltipla polivalente no corpo social inteiro”. (FOUCAULT, 1987, p. 172). 138 Se a família requer costumes mantenedores da organização de poderes, o Estado requer leis, normas e disciplinas. Dessa forma, o problema de Jasmim seria resolvido com as leis do Estado. Fruto da falência do velho código familiar, a família tutelada passa a ser função do Estado. A crise no modelo de família patriarcal e eclesiástica perde a governabilidade e o Estado, mediante instituições jurídicas, médicas e educacionais, vêm em “socorro” disciplinar da instituição familiar. O controle do Estado em assuntos privados gesta outras possibilidades de percepção da instituição familiar, percebendo-a como fluxos de propriedade ou patrimônio material e simbólico dependentes das leis que a invadem. “A agressão do marido agora era problema do Estado”, teria dito uma amiga, que era advogada e entendida de leis. Só no contexto contemporâneo é possível a construção do discurso jurídico tutelar sobre as condutas morais no interior da instituição familiar. O tutelamento, o controle e a investigação da família na sociedade atual, passam por uma gama de especialistas, que é marcado por um completo entrelaçamento do poder político e jurídico do Estado, com o poder médico. Não é sem motivo, que o Brasil destaca-se em violência doméstica no Congresso Mundial da Mulher, realizado em Pequim. Os números crescentes nos índices de violência doméstica no Brasil indicam não o aumento da violência dentro do casamento29, mas a existência de mais mulheres que denunciam os ataques, nas distintas classes sociais. Quando uma mulher tem negado sua identidade de corpo, sofre igualmente a perda de sua identidade pessoal. Ambas estão intimamente relacionadas. 29 Com um breve recuo na história, sabe-se que até recentemente nos fins de 1962, a situação jurídica da mulher casada brasileira equiparava-se aos incapazes. As conquistas femininas eram poucas e nada podia fazer a mulher sem o consentimento do marido, por exemplo, não podia: exercer uma profissão, emprestar, assinar documentos, nem contrair dívidas, nem se estabelecer comercialmente e ainda que tivesse formação universitária em medicina, direito ou engenharia, só poderia clinicar, advogar, ou construir um edifício com autorização do mesmo. 139 A história de vida de Flor de Cacto vem revelar como, para ela, o status no relacionamento é importante e não deveria ser irrelevante, como pensa a maior parte das mulheres, pois os agravantes: da falta do aluguel, da alimentação, do vestuário afeta o relacionamento e causa enormes prejuízos familiares, pois a mulher atual quer vê o enterro das pobres Amélias. Quando a mulher casa, deve procurar um homem que tenha algo a oferecer, nunca um coitado que você tem que trabalhar para ele, feito minha mãe. Vou falar do relacionamento do meu padrasto com minha mãe. No começo foi horrível. A vida que meu padrasto queria era de brisa, sombra e água fresca. Chegava de noite das farras e agredia minha mãe. Não sei como minha mãe agüentava. Até que um dia ele agrediu minha irmã e eu e nós o denunciamos na Delegacia da Mulher, mas minha mãe fez a gente retirar a queixa, pois ele ameaçou surrar a ela. O medo subiu para cabeça e lá fomos nós livrarmos o sujeito pensando que estava protegendo minha mãe. Que ilusão! Quando ele chegou à noite bêbado e sujo de batom veio “cantar de galo” e agrediu a nossa mãe, então chamamos a polícia que o levou para o xadrez. Quando ele saiu, foi tão manso que ninguém reconhecia. Denunciar foi um santo remédio, colocou o “macho todo poderoso” no seu lugar. O que a lei não faz?(FLOR DE CACTO, 2000). Apesar de lutar contra a opressão materna ela é dominada pela sensação de desvalia que a persegue a vida inteira, e sempre julga que seus familiares estão a julgá-la impiedosamente e com maldade. No entanto, é uma mulher que tem uma conduta amorosa, responsável, apenas carece de valoração por si mesma. Dizia ela: “As mulheres têm medo do homem, sempre estão com medo dele... eu tenho esse medo. Preciso me curar”. O que significa essa expressão, para uma jovem mulher universitária no início do século XXI? Talvez o seu medo tenha o alicerce na sua conceituação sobre sexualidade. Para ela algo muito comum entre as mulheres no começo de sua vida romântica e de sua vida sexual, é surgir o fim da segurança e o fim da possibilidade de ser autêntica, porém é sabido que são fases, que necessariamente passam e surgem outros modos de sentir esse novo modo da 140 mulher sentir seu corpo. Flor de Cacto30 assim vê a entrada no mundo do exercício da sexualidade: O corpo das mulheres é lindo quando criança e mocinha, mas depois que conhece o corpo de homem ele falta um pedaço. Ele passa a ser controlado pelo namorado, marido. A gente só usa a roupa que eles querem, só corta o cabelo como eles querem. Se a mulher trabalha tem o corpo controlado pelo patrão, que muitas vezes usa o corpo da empregada, como foi com uma tia minha, o marido dela ficou com a empregada. O corpo da mulher é um objeto do homem, seja pobre ou rico, para ele usar e abusar e depois em alguns casos agredir. (FLOR DE CACTO, 2000). Em certo sentido, o raciocínio de Flor de Cacto sobre amor, segue a trajetória de sua dor que é o caminho semelhante ao da maioria das mulheres em suas imagens a respeito do corpo feminino, quando descreve os estereótipos femininos versus realidade, O amor é difícil de explicar. Ele é a força da vida. O amor me faz acreditar que um dia eu vou esquecer todas as feridas de minha alma. Quando eu era estudante gostava de ouvir a professora ler os contos de fada, e pensar nos príncipes e princesas. Hoje eu gosto de ler histórias de amor, porque embora tenha muito sofrimento, no final geralmente acaba bem, o que sempre é muito diferente da vida real. Quanto a meu corpo, preferiria não falar. O meu corpo é cheio de cicatrizes. Ele parece ter marcas de fogo, marcas que queimam. Eu pensei em ser uma flor que tem espinhos, acho que pelo fato de ter muitas marcas de espinhos da vida no meu corpo. Ele é todo marcado, retalhado de espinhos, os espinhos furaram para dentro e me marcaram para sempre. Não quero falar sobre isso... ( silêncio... lágrimas)(FLOR DE CACTO, 2000) As mulheres de todos os níveis de classe social não escapam da violência simbólica alimentada por fatores como a impunidade e a cultura machista, geralmente presente na relação paterna desde a infância, como o relato a seguir da flor Verbena: Na minha infância, a vida foi uma tirania, uma opressão, um terror, e principalmente a falta de reconhecimento, e o meu casamento se traduziu pra mim como a negação de minha existência. O meu sentido de vida está muito ligado a isso – a sensação eminente de catástrofe, uma nuvem que paira sobre nossas cabeças, a minha e a dos meus irmãos e irmãs. Essa 30 Quando eu convidei as alunas para participarem das oficinas de gênero, e expliquei que logo após íamos desenvolver o projeto no Presídio Feminino e desenvolver as pesquisas na Delegacia da Mulher, a aluna Flor de Cacto, apresentou um grande interesse e chamando-me a parte, relatou um pouco de sua história. Quando eu comuniquei que as mulheres teriam as identidades preservadas com nome de flores, ela de pronto escolheu sua flor. Foi muito rica a sua contribuição como pesquisadora, tanto quanto como pesquisada. 141 morte em vida foi plantada por meu pai, que também teve a vida ditada pelo pânico e perpetuou essa herança. Costumo dizer que nós aqui em casa somos sobreviventes de um horror. Eu sou sobrevivente de um horror. A vida com ele era um inferno, naqueles tempos. Ele era um torturador, também muito torturado pelo ciúme. Pessoa profundamente perturbada. Sempre digo aqui em casa que meu pai nunca devia ter gerado filhos. Ele foi capaz de causar os piores danos à nossa família. (VERBENA, 2001) A história de Verbena oferece um exemplo de mulher que tem clareza de sua situação de opressão. Ela experimenta sua dor de modo autêntico. Recusando viver um casamento de traição ela rejeita a frivolidade do marido como também após, a separação, ela rejeita aceitar qualquer homem simplesmente por ser uma mulher separada. Dificilmente uma mulher sem um determinado grau de experiência com leituras seria capaz de definir suas premissas sobre relacionamentos com tal clareza, só com uma base de reflexão de leitora assídua. O relacionamento homem x mulher é uma parceria complicada. Todos os relacionamentos humanos são complicados. Não existem relações fáceis. Mãe e filho, patrão e empregado, professor e aluno, sogras e noras, amigos e vizinhos, tudo pode configurar ligações muito tensas. Pessoas são complicadas, homens e mulheres. Certa vez li num livro, que não me lembro o nome agora, que comparar homem e mulher é a mesma coisa que tentar comparar dois habitantes de dois planetas diferentes. A emoção do homem é diferente da emoção da mulher. Melhor dizendo, os valores são passados de um jeito para o homem e de um outro jeito para a mulher, e isso aciona de modo diverso o psiquismo de um e outra. Mesmo assim, não sei dizer se é por isso que homem e mulher é o mais acirrado dos vínculos, pois existem diferenças abissais entre as pessoas de modo geral. (VERBENA, 2001) A opinião da mulher-flor Verbena revela a sua compreensão das relações de gênero presente em seu posicionamento. Embora tenha clareza teórica, no enfrentamento com a violência simbólica ela demonstra receio em reagir, exceto pelo dia que criou coragem de mudar. Verbena é um tipo diferente de mulher. Ela, embora tenha aprendido a lição do poder bem aprendida, de que na qualidade de esposa de um homem, imprimirá sua marca ao casamento e conquistara o status de “senhora”, ela não barganha como muitas mulheres fazem 142 e quebra o relacionamento, mesmo sem nunca ter experimentado a violência física, possui a clareza de que foi vítima da violência psicológica. Assim fazendo, ela rompe com os modelos de separação que sempre acontecem a partir da violência visível. A história da Flor Verbena mostra claramente que, embora reconhecendo que foi vítima da violência psicológica, geralmente a mulher não sabe avaliar o mal que o parceiro é capaz de provocar em seu corpo: O meu ex-marido no princípio enquanto namorávamos foi bom. Ele me atraiu todo desmanchado em bondade, compreensão, carinho, e uma oferta imensa de amor. Só que depois que casou mudou da água para o vinho. Tudo de errado ele fez durante o casamento: Bebeu, jogou, fumou, tinha um caso atrás do outro, passava com a namorada na minha calçada e eu fechava a porta para não ver. Ele foi um homem dotado de requintes de perversidade psicológica. Ele sabia ser ruim. Sabia fazer desmoronar, dinamitar com maestria. Com ele não tinha jeito: Brigar, falar, calar, conversar, tentar um jogo qualquer, fingir indiferença, nada funcionava com aquele ali. Ele era poderoso demais, sabedor das coisas, todas as coisas que eu não sabia. Nem suspeitava. Eu não dispunha de estratégias de enfrentamento com aquele homem, indivíduo esperto, matreiro, sabido e vivo. Ah! Se o tempo voltasse, com tudo que eu sei agora, tudo ia ser diferente. (VERBENA, 2001) Ela combate com veemência as restrições impostas às mulheres. Sua opinião, é que mulheres e homens partilham as mesmas capacidades e potenciais humanos. Ela considera impossível que uma mulher não possa ser tão tolerante e franca quanto um homem, e um homem tão sensível e sutil quanto uma mulher e que a mulher não possa ser tão livre e competente quanto o homem. Porém Verbena vivencia um drama familiar. Seu conflito é com a mãe, que inculca de modo sutil na filha a sensação de inutilidade e incapacidade de atrair. Com seus freios psicológicos quer deixar claro que homem algum jamais a quererá; é a castra da liberdade, vingando-se pelo fato da filha ter semelhanças com os comportamentos paternos. Comportamentos parecidos com alguém que a limitou foi o elemento chave para acionar táticas de controle da filha objetivando puni-la. A filha absorve seus julgamentos e internaliza 143 suas mensagens e opiniões de impotência, de modo que, se exclui do mundo e se fecha no quarto em busca de respostas que não precisa encontrar, pois não é a responsável pela atitude hostil materna. Assim ela apresenta a queixa: Minha mãe, tranqüila, segura, imperturbável, irredutível, dura como uma rocha, inabalável. A despeito de tudo isso, ela não me transmitiu equilíbrio, ele não me viabilizou, não me credenciou para a vida. Pelo contrário, ela me negou alguma coisa de muito, muito essencial e me jogou assim num abismo. Acredito que ela, inconscientemente quis, na minha infância, me remeter à morte, me mandar de volta ao lugar de onde vim. Ela não me quis, não me desejou, não esperou por mim. Descobriu surpresa a gravidez em curso. Eu via, ou seja, nós víamos a minha mãe como uma vítima do meu pai, na época do desenrolar do drama familiar. De fato, ele perfilava o homem mau, o violento, o agressor. A personificação da ameaça era ele. Mas minha mãe foi e é infinitamente mais cruel e forte que ele. Ela foi a pessoa forte do casal. Ela soube negar exatamente o que mais precisamos para viver - amor. (VERBENA 2001), Verbena nos dá um retrato altamente preciso de uma mulher jovem que convive com o exercício negativo de poder materno e se pune por não ser aceita. Assim ela descreve sua opinião sobre amor materno: O amor materno não é um amor fácil de ser entendido, pois é um sentimento muito polarizado. A minha visão frente ao amor materno é de perplexidade. Aquela mãe que é capaz de dá a vida ao filho é também a mesma mãe capaz de injustiças, perseguição, tirania e maltrato, causando danos irreversíveis, às vezes a personalidade desse filho. Em dezoito anos de leituras de psicologia, eu aprendi que a mãe é formadora de pessoas, e como tal, também é deformadora. Eu observo um lance curioso, esse amor é cantado e decantado como o maior e mais verdadeiro do mundo, no entanto, ele não apresenta um caráter extensivo ao mundo, nem aos outros. Por exemplo: o meu filho é sempre o bom o da outra mulher é que não presta. É a lógica da sogra. Esse amor também não promove a melhoria da mulher que se diz mãe. A vida é crescimento e gerar um filho, simplesmente não faz ninguém crescer. A santidade das mães me é indigesta. (VERBENA, 2001) Ela relata que nos conflitos com a mãe ela aprendeu que, quando o falar ameaça a sua integridade, ela se cala (como já ocorreu anos atrás, até o ponto de causar marcas físicas, por parte de sua mãe). Por outro lado, quando a integridade exige que se imponha, Verbena fala 144 francamente. E somente a mulher que já alcançou um senso de identidade corporal poderia apresentar semelhante autocontrole. A mulher que se voltar para seu problema central seja ele dificuldade com o amor materno, paterno ou marital, caminha para exercitar seu poder no sentido de superar sua tendência à desvalia e deixa de sentir ódio ou desprezo pelo seu corpo. Pode enfim, buscar uma verdadeira autonomia parando de basear suas ações nas de outras mulheres. O que FROMM explica sobre o amor materno acontece na realidade. As mulheres desta pesquisa simplesmente não conhecem outro modo de viver, ou seja, o exercício de poder da maioria delas consiste em não ousar virar o jogo. Algumas aceitam uma explicação superficial para convivemos num mundo em que os homens tomam as decisões, fazem, realizam, definem os padrões e são patrões, maridos, amantes, enfim senhores. No momento que a mulher reage, ele se vê obrigado a parar ou a pune pela considerada coragem. Percebo, em suas falas, que renunciam a tudo por um suposto amor, e têm pouca chance de perceberem as inúmeras possibilidades de experimentarem o sentido do amor. Nas pesquisas realizadas mais da metade delas entendeu a agressão como uma prova de amor, e ciúme, numa interpretação bastante equivocada do significado de Amor. Qual o significado de amor para mulheres, num mundo onde são usadas com se fossem objetos? Corpos silenciados pelo poder paterno e materno. Corpos controlados pelo namorado, marido, amante, patrão. Corpos confusos em relação a relação com a sogra. Corpos que são estupradas pelos homens da família supostamente protetora. Corpos privados da possibilidade de realizações educacionais e profissionais. Corpos forçados a parir filhos que talvez não queiram e a quem pode punir? As atrocidades (ervas daninhas) cometidas por aparentes mulheres e homens ajustados senhoras e senhores de bem podem ser considerados pequenos assassinatos, uma das 145 manifestações de violência de gênero mais difíceis de serem evitadas e superadas no silêncio dos jardins residências da Rainha da Borborema. 146 4 Colhendo as sementes C A PÍ TU LO IV Uma flor nasceu na rua! Uma flor ainda desbotada, ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. (do poema A flor e a náusea de Drummond) 147 4.1 As marcas da lei impressas no corpo feminino Há um clamor no sentido de promover uma modificação da cultura da violência nas relações de gênero contra as mulheres, em especial da silenciosa violência doméstica. A violência praticada principalmente, no relacionamento conjugal, vem sendo incorporada não apenas como uma questão judicial ou policial, passando a ser atualmente do interesse da saúde pública. A mulher, do final do século XX, vem buscando vencer vários obstáculos sociais, culturais, físicos e intelectuais, mostrando ao mundo uma luta por seus direitos de cidadã e de ser humano. Nessa busca, a mulher não se posiciona contra o homem, e sim contra os abusos sexuais, as violências física e moral, os assédios sexuais, as discriminações exigindo respeito a sua dignidade, intelectualidade, integridade física, moral e ao seu valor como ser humano. Os índices de violência doméstica no Brasil mostram que as Delegacias da Mulher registram crescentes números de boletins de ocorrências que não indicam necessariamente o aumento da violência, mas a existência de mais mulheres que denunciam os ataques. Em geral as mulheres atacadas por seus ex-parceiros já haviam sofrido a violência doméstica em relacionamentos anteriores. Em todo o Brasil no ano de 2001, registrou-se taxa de espancamento da ordem de 11%. Perto de 6,8 milhões de mulheres brasileiras já foram espancadas pelo menos uma vez na vida, segundo a pesquisa A mulher brasileira nos espaços públicos e privados realizada pela Fundação Perseu Abrano. Ao participar em Brasília, no mês de julho de 2004, como observadora da I Conferência de Políticas Públicas para Mulheres observei que apesar das conquistas femininas, os conflitos domésticos permanecem protegidos sob o mito do Lar, doce lar. As mulheres estão inseguras, pois é comum ocorrerem no seio do lar, agressões físicas, humilhações, torturas psicológicas, 148 exploração, controle da vida pessoal, abandono material, divisão desigual das responsabilidades com a família e a casa, violência sexual, bem como abuso de poder paterno e materno. A violência mais aguda cometida contra as mulheres está situada no âmbito das relações familiares na intimidade afetiva. A violência doméstica no Brasil tem sido objeto de inúmeras denúncias junto à polícia, ao judiciário e aos órgãos públicos de assistência social, educação e saúde e sem dúvida, essas iniciativas constituíram um espaço de denúncia e de visibilidade das políticas públicas. A violência nas relações conjugais se constitui um verdadeiro foco de resistência às transformações sociais de gênero e um entrave ao desenvolvimento das mulheres. Segundo a delegada, Josefa Alves, para atender os casos de agressão doméstica, os profissionais da saúde procuram desenvolver um trabalho com muito cuidado, já que se trata de um assunto que ainda é visto como preconceito por parte da sociedade. “As mulheres estão começando a ter menos vergonha de ser expor e vem procurando cada vez mais os hospitais e em seguida a delegacia e as instituições de atendimento especializado”, explica a delegada. (VIEIRA, 2003, p.3). Raro é o dia em que a delegacia da mulher em Campina Grande não recebe cerca de trinta casos de agressão. Nas queixas em geral, de acordo com a delegada Josefa Alves, [...] a violência contra a mulher está associada aos companheiros e aos familiares, como pais e irmãos. Os casos mais comuns são de agressões físicas, que vão de surras até as situações de estupro. A violência verbal também tem grande incidência (VIEIRA, 2003, p.3). Portanto é na suposta segurança do espaço “Lar doce lar”, que as mulheres correm riscos de sofrerem permanentes agressões. Para coibir essa realidade, foi criada a Delegacia de Proteção à Mulher através do Decreto n.º3.038, de 28 de abril de 1986, considerando a realidade social que posiciona a mulher como vítima constante de vários tipos de violência. 149 A delegacia da mulher surgiu da necessidade do poder público reconhecer e enfrentar com realismo o problema da violência. Ao providenciar a forma mais adequada para atender a demanda e estimular a mulher vítima, contra a aceitação de violência que é um dado histórico cultural inegável não somente em nosso país, mas em diversos outros lugares do mundo. As estatísticas na cidade de Campina Grande demonstram um aumento cada vez maior no número de ocorrências de violência doméstica registrada e tem merecido maior atenção e investimentos das políticas e serviços públicos do município. Conforme reportagem do Diário da Borborema, de 03 de novembro de 2002, entre janeiro e outubro do ano de 2002, foram registradas 1.818 queixas de agressão contra a mulher em Campina Grande. Justifico que apresento os índices de 2002, por revelar a realidade da época da pesquisa. Este número já é 50% maior do que o registrado nos doze meses do ano anterior e significa que a cada 24 horas seis mulheres são vitimadas por algum tipo de violência na cidade. Outro dado importante revelado pela Delegacia da Mulher é que em 30% dos casos de agressão as vítimas voltam depois para retirar a queixa, antes mesmo dos acusados serem ouvidos, alegando medo de vinganças posteriores à prisão dos parceiros. A Delegacia de proteção à Mulher, tem tido acréscimo no número de registros, uma evidência de uma maior procura, da mulher pela adoção de medida de proteção aos seus direitos e repressão aqueles que não os respeitam. Nacionalmente, a violência doméstica significa 65% a 80% dos casos em que agressor/ vítima são parceiros conjugais, íntimos. As mulheres buscam seus direitos, mas a legislação não responde aos seus anseios e aos das profissionais envolvidas na questão: delegadas, policiais, assistentes sociais, psicólogas; todas ficam impotentes diante da limitação em situações mais graves. 150 O trabalho das delegadas para coibir a violência sofrida no relacionamento conjugal, tem sido limitado por dois fatores: primeiro a legislação em vigor, que trata dos crimes domésticos, é a mesma que trata dos crimes de pequeno potencial ofensivo (Lei 9.099/95)31 e segundo que as Delegacias da Mulher contam com uma infra-estrutura precária tais como: carência de pessoal e viaturas, armamentos, telefones. Um outro agravante é que as vítimas da violência, em geral, convivem com o isolamento social e o silêncio; nessas condições, intimidadas e acuadas em casa e no trabalho exercitam uma disciplina corporal que impossibilita uma reivindicação política e justa em substituição por um comportamento que vem reforçar sentimentos de insatisfação. Foucault em sua obra Vigiar e Punir nos apresenta a análise sobre a disciplina e controle do corpo32 que inauguram maneiras, estratégias que primam pela dissimulação e sutileza de controlar o corpo de uma forma singular e ímpar. A disciplina corporal foi se consolidando pelos séculos e dificulta a percepção, por parte da mulher, da apropriação que o poder dominante vai realizando no seu corpo e seu prazer. Foi surgindo, de início, a partir do cuidado de pequenos detalhes e ocorrendo em arranjos de aparência inocente, mas com grande força e objetivando perpetuar o poder masculino dominante. 31 Os crimes realizados no âmbito doméstico são vistos numa perspectiva hierárquica, sendo considerados de menor gravidade, podendo haver arquivamento do processo. No caso de aplicação de penalidades, estas variam entre multas irrisórias, doações de cestas básicas para organizações filantrópicas ou ainda em pena alternativa – de prestação de serviços comunitários. E há um agravante, a legislação que trata a violência no lar que enfatiza a rapidez processual, a presença da vitima com voz ativa, a realização de audiências conciliatórias, onde não existe a configuração da queixa criminal e a constituição da figura do réu. 32 No caso da Antiguidade Clássica esse controle estava dirigido em prol da afirmação de uma virtude, de uma moderação e de uma superação de uma fragilidade. No período monárquico na punição através dos suplícios, se expunha os corpos dos suplicados a um espetáculo de intenso sofrimento físico a custa de muito derramamento de sangue e de muita dor. Com a ascensão do capitalismo há uma organização de um novo ritual em torno da manifestação do poder, a partir do século XVII, quando encerram os suplícios, instalando- se outros tipos de punições. Atualmente as punições são efetuadas por intermédio dos sistemas disciplinares das escolas, das fábricas, das delegacias, da justiça, das penitenciárias, dos hospitais, dos manicômios e bem recentemente pelos meios de comunicação. ( FOUCAULT, 1987) 151 Há uma mudança anunciada. O cuidado do corpo agora está voltado para o controle de não se deixar levar pelos comportamentos transgressores, sendo este controle exercido tanto através dos discursos na família como na sociedade, através das leis e punições. E essa mudança tem motivado à mobilização dos órgãos de proteção à mulher. Dela decorre admitir- se que, a defesa das mulheres está baseada no Código Penal Brasileiro. O Código Penal Brasileiro delimita os tipos de crimes contra a mulher, como constrangimento ilegal, calúnia, difamação, ameaça e injúria, destruição de documentos, assédio sexual, sedução, indução ao suicídio, lesão corporal, estupro, atentado violento ao pudor e homicídio. No aspecto da sexualidade, a honra e reputação femininas possuem importância fundamentais frente à família e ao grupo social ao qual mulheres pertencem. Uma das formas de violência doméstica é atentar contra a honra de uma mulher, através dos chamados "falatórios", que querem atingir a imagem de uma mulher. Tal fato remete a história de vida, da mulher-flor Jasmim que, ao ficar grávida, o autor buscou eximir-se da responsabilidade e ainda a difamou. Caso conhecesse os direitos, a jovem vítima poderia acionar a lei a seu favor para provar a paternidade do autor da sedução e processá-lo por crime contra a honra, através do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher. Na história de vida de Jasmim, se configura o crime de sedução33 já que na época em que a mãe a embriagou para que o agressor a deflorasse, como ela era menor, caso tivesse ocorrido denúncias sua mãe seria punida como co-autora. A Lesão Corporal é um crime previsto no art. 129, do Código Penal Brasileiro e corresponde a uma ofensa à integridade ou a saúde da mulher. A sociedade de certa forma 33 O crime de Sedução acontece quando uma mulher for maior de 14 anos e menor de 18 anos e perder sua virgindade por ter mantido relação sexual com um homem que se aproveitou de sua inexperiência ou justificável confiança, para, depois não assumir o relacionamento. O autor desse delito pode ser apenado com reclusão de 2 a 4 anos. 152 acaba absolvendo tal conduta, normalmente por entender que, ‘nas brigas entre marido e mulher ninguém mete a colher’ e até declarando que ‘tem mulheres que gostam de apanhar’. As próprias mulheres adotam uma postura conivente e acomodada diante dessa realidade, e no silêncio mantém ainda impune a maioria das agressões, como revela a história de vida de Jasmim: No dia do meu casamento ele quebrou um prato no meu rosto. Ele derrubou uma caixa de som em cima da minha sobrinha de três meses e ao avisar a minha irmã ele disse: “Porquê tu não fica na tua?” E quebrou outro prato. A partir daí começaram as agressões e ninguém queria se meter na confusão e diziam:  De dia ela apanha e de noite os dois se amam amanhã tudo fica bem. E eu? Parecia que eu não existia. (JASMIM, 2000) O ato de Jasmim ter tido a coragem de denunciar a violência, rompendo as amarras registrando a queixa na Delegacia de Proteção à Mulher impulsionou a apuração dos fatos e a luta contra a impunidade. Tem sido prudente não esconder o problema dos parentes, amigos, ou vizinhos, pois o silêncio além de conivente tem se apresentado como paralisante para as mulheres. Além do que, “pode ser” que entre as pessoas que sabem do fato possa surgir testemunhas da agressão, caso seja se faça necessário. Os crimes contra a honra são caracterizados em três modalidades: a calúnia, 34 a difamação35 e a injúria.36 A maioria das queixas na Delegacia da Mulher, por lesão corporal é acompanhada desses tipos de crimes. No caso da história de Girassol, ela sentiu-se caluniada pelo fato de sua sogra durante o inquérito policial perante testemunhas, acusar de “prostituta”, não só a ela, como também a suas irmãs e mãe. O comportamento da sua sogra foi alimentado pelo fato do filho ter feito à 34 A Calúnia é o ato de acusar um ser humano, de haver praticado um fato que a lei define como crime, e pode ter a pena de prisão de 6 meses a um ano. 35 A Difamação é ofender a reputação de um ser humano fazendo comentários que visam exatamente difamá-la e recebe a pena de detenção de 3 meses a 1 ano. 36 A Injúria é a ofensa ao decoro e dignidade de um ser humano, principalmente proferindo ofensas verbais, com pena de detenção de 1 a 6 meses. 153 difamação da jovem e de sua família na vizinhança, fazendo com a jovem se sentisse injuriada e procurasse, via justiça, tomar as providências cabíveis. Em nossa indagação sobre seus sentimentos quanto ao significado da violência que sofreu, sua indignação: Foi um absurdo o que a mãe dele fez comigo e com minha família. Acusar a gente de prostituta. Nem uma de nós até hoje viveu de ganhar dinheiro com o corpo. Agora ela vai ter que provar o que disse, diante da justiça. Eu abri um processo contra ela e seu filhinho por difamação, calúnia e injúria. Ela tem que pagar por ofender. Se fosse a filha dela, ela não ia gostar de passar pela vergonha. Como foi o filho dela, que além de me agredir, difamou e caluniou a família alheia, não doeu nela nem um pouquinho. Até parece, que nem é mulher igual a mim. (GIRASSOL, 2000) Na aparente segurança do lar, Flor de Cacto descobriu que o seu parceiro escondia drogas e era traficante. Ela quis fugir, porém destruiu seus documentos37, e já que ela sabia do crime por ele cometido, fez dela cúmplice. Ela só veio a retirar novos documentos, porque precisava para ir à maternidade para parir. O fato da mesma, desconhecer os seus direitos, e, sobretudo o medo a levou a bloqueou por anos de denunciar o infrator. Além de tudo, ela foi constrangida, ou seja, obrigada através da grave ameaça de morte38, a esconder drogas39 em sua residência. Um tipo de crime que a desmobilizou e gerou a coragem de denunciar na Delegacia da Mulher. No caso de Violeta, sua mãe considera que ela era muito cheia de vida, para ter terminado sua vida de modo tão agressivo, pois o homicida40 cometeu o assassinato ao lado 37 A Destruição de Documentos, no seu art. 305, prevê prisão de 2 a7 anos, para punir o ato de destruir, esconder ou suprimir documento público ou particular de que não poderia dispor em benefício próprio ou de outrem. 38 A Ameaça no Código Penal Brasileiro, no seu art. 147, prevê essa situação como sofrer um mal injusto, através de palavras, escrito, gestos ou qualquer outro meio simbólico que deixe clara essa intenção por parte de quem a pratique. A ameaça, em si, já é crime, mas, não contida a tempo, pode desencadear na prática de outro delito mais grave. O crime de Ameaça determina a detenção de 1 a 6 meses para o infrator. 39 O Constrangimento Ilegal é previsto no art. 146 do nosso Código Penal. Corresponde ao uso de violência ou grave ameaça, ou outro meio para provocar a redução de sua capacidade de resistência, a fim de obrigar uma mulher a fazer algo que a lei não manda. A punição é de prisão de três meses a um ano. 40 O Homicídio, ou seja, o ato de matar um ser humano está previsto no art. 121 do Código Penal e a pena é de 6 a 20 anos e com agravantes pode chegar a 30 anos de prisão. 154 da casa materna, dentro do carro. A mãe sabia o quanto a jovem foi amada durante a infância e que tinha muitos planos na juventude. Apesar da luta da família, o autor do crime, cumpriu uma pequena pena e está em liberdade. Violeta morreu assassinada, coisa incomum que, freqüentemente, deixa a família sobrevivente da tragédia, com um terrível sentimento de impotência e de raiva. A perda da filha, da irmã, da mãe gera um sentimento de ódio pelo responsável, que era o namorado da filha. Por isso, talvez não seja de admirar que a família tenda a projetar a raiva no agressor. Um exemplo parecido foi registrado no Jornal da Paraíba de 27 de novembro de 2002, quando foi apresentada a seguinte manchete: O policial militar Aleksandro Farias Cruz, de 31 anos, casado, residente na Malvinas, é o principal acusado de matar a jovem Carla Cesarina de Lima, jovem com que ele mantinha um relacionamento amoroso. Na delegacia ele afirma que o tiro foi acidental. Justificando que estava com ela bebendo no “Biroska Bar”. Algumas pessoas suspeitas passaram pela mesa deles, então ele vai ao carro pega a arma e coloca entre as pernas. Depois de pagar a conta do bar ele se levanta e a arma dispara, atingindo a vítima. Ele afirmou que levou Carla para o hospital e depois “saiu sem rumo”. Após o término do depoimento ele acrescenta que tinha um grande amor pela vítima e que daria até a última gota do seu sangue por ela (SUSPEITO DE MATAR A MULHER, 2000, p.4). É lamentável saber que, muitos policiais que no seu dever deveria ser o repressor da violência esteja envolvido com episódios violentos e até mesmo, com abuso de poder que, também pode estar presente no seio doméstico. Lírio foi vítima de assédio sexual41 por parte do tio, que na condição de superior em função no âmbito familiar: como o dono da casa e provedor, quis aproveitar-se da sobrinha, e desconhecendo as leis, fugiu. No entanto, como a maioria das mulheres não consegue 41 O art. 216-A do Código Penal disciplina a respeito do Assédio Sexual, determinando a detenção de 1 a 2 anos de prisão, ao autor do constrangimento que no intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevaleceu-se de condição superior hierárquica em ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. 155 distinguir uma violência psicológica, também estas só procuram a Delegacia da Mulher quando a agressão é física. Margarida a flor, que cometeu suicidou, não denunciou a violência sexual do estupro42, que sofrera. Na verdade, é como se a história se repetisse, pois já tinha antecedentes violentos na família, posto que sua mãe fora seviciada e violentada pelo próprio pai, segundo o relato de sua amiga: Também... sua mãe foi vítima pelo próprio pai. Um dia ela me disse: Quando minha mãe tirava o bucho eu e minha irmã ficava logo com medo, aí a gente pensava... ele vai nos levar para o roçado, botar nós duas de quatro pés e... era horrível, nunca contei a minha mãe, só tinha medo e vergonha. (INFORMANTE, 2000) Na obra A violação do silêncio, estudo sobre o incesto, como já sugere o título, revela a sevícia e o assédio do pai e mostra o pacto do silêncio em torno da sexualidade familiar e semelhante à experiência da mãe de Margarida, a culpa apresenta-se como agravante para que o pacto do silêncio seja estabelecido, [...] tudo acontecera fora da linguagem, fora das palavras... A boneca amordaçada não pudera gritar, nem falar: nem uma palavra, o silêncio total, pesado, espesso, sólido como as paredes de uma prisão... o pai deitar em cima dela, mergulhara em seu corpo...Ela sabia que não devia, no entanto não se movera...Deixara seu corpo...A culpa a tinha apanhado [...] Se sua mãe ficasse sabendo. Havia usurpado o lugar dela. Era preciso esconder essa vergonha, camuflá-la, enfiá-la bem dentro de si mesma... (THOMAS, 1988, p. 4-5). 42 O Estupro é a utilização da força, da ameaça ou da intimidação de um homem, para manter relações sexuais com uma mulher, contra a vontade dela. O que caracteriza esse crime é a prática de relação vaginal, ainda que acompanhada de outros atos. Nosso Código Penal presume Estupro ainda que a vítima tenha consentido com a relação, se a mulher for menor de 14 anos ou portadora de problemas mentais, e se o agressor for previamente conhecido. A lei determina a prisão de 3 a 8 anos para o infrator. A mulher pode engravidar em virtude do estupro ou do atentado violento ao pudor, por isso, a necessidade do acompanhamento médico; pois além da gravidez, há riscos de contrair doenças sexualmente transmissíveis, inclusive AIDS. 156 Ao refletir sobre a história de vida de Margarida, que teve seu suicídio43 induzido pelos cinco rapazes que a estupraram, fica sem resposta: Qual o significado do silêncio de sua mãe? Qual o significado do seu silêncio? Quais os motivos do seu avô para seviciar a sua tia e sua mãe? Quais os motivos dos cinco rapazes para violentarem uma jovem prostituta? Qual o motivo da lealdade entre mãe e filha, em silenciarem e não denunciarem? Para Margarida, foi impossível sobreviver a violência no seu corpo e ela própria destruiu o seu corpo na flor da idade. Margarida mostra como a sociedade molda o corpo feminino, e ao se suicidar revela (porque, privada de sua identidade corporal), já não lhe restar nada que a motive viver. Um outro dado observado é que a apuração do crime de estupro está assentada na queixa da própria vítima, isto quer dizer que terceiros não podem denunciar, a menos que, a vítima seja menor de idade. No caso de Margarida esse foi o motivo de não serem tomadas providências contra o estupro o qual motivou o seu suicídio, Ela a vítima, teria que denunciar e não a amiga que assim desejava, em suas palavras: Ela contou-me chorando da grande dor de ser usada por eles, que até colocaram um pedaço de madeira dentro dela e a largaram “nua”...Voltou para casa enrolada em pedaços de jornal. Ela não quis denunciar na delegacia, nem procurar o hospital. Acho que ela queria era morrer mesmo... tomou 60 comprimidos de diazepam. Por mim ela tinha denunciado, eu até iria com ela, mas ela foi que não quis.(INFORMANTE, 2000) Fica a indagação: Porque Margarida não quis denunciar? Será que ela semelhante a tantas, também não pensava que sua história iria cair no vazio, na descrença dos policiais? Será que ela teve receio de ser julgada por ser uma prostituta? Será que o fato de já ter sido presa, já revelara a mesma qual o seu valor social, a ponto de levá-la ao suicídio? 43 A Indução ao Suicídio está enquadrado no art. 122 e corresponde ao ato induzir ou prestar auxílio para que uma mulher pratique o suicídio e se a tentativa resultar em lesão corporal grave a pena de prisão é de 1 a 3 anos e caso o suicídio se consumar a prisão é 2 a 6 anos. 157 Realmente Margarida fez a escolha que a vida lhe permitiu fazer em relação ao seu corpo. Se o mundo foi feito desse jeito para ela, não adiantava fingir ter sido feito de outro. Flor de Cacto, no seu relato de história de vida nos conta que fora inúmeras vezes, estuprada pelo companheiro, no entanto nem mesmo sabia que na verdade ela sofria atentado violento ao pudor,44 já que ele agia contra sua vontade. Nesse caso ela tinha o direito de denunciá-lo. Tem sido comum mulheres casadas ou companheiras serem violentadas sexualmente e nem saberem que tal fato se constitui em crime também de violência psicológica, além de não saberem como reagir. Na aparente segurança familiar são cometidos atos de agressão física e psicológica, porém é justamente onde a ação do medo é mais paralisante, como nos fala Flor de Cacto: Eu olhava para aquele homem que antes amava e só via nele um estranho. Quando me forçava a fazer sexo eu o odiava. Mas tinha momentos que não conseguia ter ódio dele, parecia como se ainda sentisse amor por ele. Meus sentimentos estavam todos misturados. Era como se houvesse uma ordem dentro de mim que não me deixava sair do lugar. Eu não sabia como reagir. Até o dia a minha vizinha me convidou para igreja e aí, tudo mudou. Ouvi uma música que dizia: “Eu venho falar do valor que você tem. Você é um ser, você é alguém, tão importante para Deus. Nada de ficar sofrendo angústia e dor, nesse seu complexo inferior, pensando na vida que não é ninguém. Eu venho falar do valor que você tem...”. Criei forças e sai de lá, outra. (FLOR DE CACTO, 2000) Observei nos casos que a maior dificuldade é no tocante a vergonha no momento da denúncia. O fato de expor a mulher ao julgamento público impede em grande parte dos casos que a mulher agredida lide satisfatoriamente com a realidade do estupro e do atentado violento ao pudor, se constituindo num agravante que barra no exercício do direito de denúncia. 44 O que caracteriza o Atentado Violento ao Pudor, é a pratica de relação anal, oral ou qualquer outro contato íntimo, diverso da relação vaginal, do homem com a mulher, com uso de força, ameaça ou intimidação. O agressor deverá ter pena, segundo a lei de 2 a 4 anos de reclusão. São considerados, pela lei brasileira, como crimes hediondos, tanto o Atentado Violento ao Pudor como o Estupro. 158 Caso, Flor de Cacto tivesse procurado ajuda hospitalar, o médico teria que solicitar os exames necessários para detectar marcas de violência, através do exame pericial45 realizado na Unidade de Medicina Legal (UML), 46 antes de tomarem as medidas jurídicas. No entanto, o que ocorre na realidade, é que, as mulheres se sentem constrangidas ao submeter-se ao exame, pois além da vergonha da agressão, na maioria dos casos são raros os casos de estupro realizado por estranhos, como foi o caso de Margarida. Geralmente, o agressor tem vínculos muito íntimos, como: marido, pai, padrasto, namorado, amigo, tio, amante, gerando um medo e vergonha que imobilizava: Falou Flor de Cacto: Era como se houvesse uma ordem dentro de mim que não me deixava sair do lugar. Eu não sabia como reagir. E acrescentava: Fui direto para Delegacia da Mulher, denunciá-lo, por traficar drogas, mas nunca por ter me estuprado, acho que morreria de vergonha.(FLOR DE CACTO, 2000) Geralmente a mulher agredida não tem plano de saúde, e ao procurar o Hospital Público, encontra apoio policial, onde há sempre um de plantão que anota a queixa. O exame de corpo delito realizado na Unidade de Medicina Legal é exigido como prova para processar criminalmente o agressor e até exigir uma indenização pelos danos causados. Assim foi o procedimento de Girassol, que ao arrolar o nome de testemunhas, conseguiu que duas fossem depor a seu favor, e pleiteava a indenização pela agressão. 45 Através do exame de corpo delito, será coletado presença de esperma na vagina ou no ânus, conforme o caso, e será verificado se houve penetração, recente ou não, defloramento e outros indícios, tais como marcas de violência e presença de secreção masculina em outras partes do corpo. E, no caso da mulher ser virgem, o resultado do exame de defloramento registrados no hospital deverá ser encaminhado a Delegacia da Mulher. Deve-se evitar tomar banho ou lavar a roupa íntima, no máximo até 48 horas depois do ocorrido e não se medicar por conta própria. É necessário o exame ser realizado em tempo hábil para a eficácia de prova material do delito e facilitar a ação policial. O exame é gratuito e seu resultado, será encaminhado a Delegacia e anexado ao Inquérito Policial. 46 A Unidade de Medicina Legal é o órgão do município de Campina Grande, ligado ao Instituto de Polícia Científica com sede na capital da Paraíba, na cidade de João Pessoa. 159 É claro que muita gente na rua assistiu ele tirar sangue em mim, mas as pessoas tinham medo dele, pelo fato dele sempre está envolvido com brigas de rua. Seus murros arrancaram o meu aparelho dentário, corri para o hospital e lá mesmo já fui encaminhando a denúncia. O ruim foi conseguir testemunhas, só duas se dispuseram a me ajudar.(GIRASSOL,2000) A violência sexual leva a mulher agredida a necessitar de acompanhamento psicológico, para ajudar a enfrentar a situação. Na cidade de Campina Grande, temos o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, a Casa da Mulher, a Delegacia da Mulher, o Balcão de Direito da Defensoria, o Juizado da Infância e Adolescência e o Projeto Sentinela, no caso de vítima menor de idade. O trabalho realizado pela Casa da Mulher analisa os casos das mulheres vitimadas que procuram a Delegacia da Mulher, em estado de desestruturação psicológica. A psicóloga da casa, embora avaliando que muitos desses casos são de caráter social, percebeu que as mulheres mesmo denunciando os seus parceiros, logo a seguir, por medo, elas retiram as queixas antes do agressor ser chamado para depor, como revela a fala de Jasmim: Mandei o sujeito ir embora, pois tenho meu trabalho e posso sobreviver sozinha. Só que ele não vai, porque diz que não vai deixar os filhos. Não sei se gosto mais dele... Ele queimou as fotos de Zezé de Camargo e Luciano, só porque sou fã deles. Não posso nem gostar dos meus cantores prediletos? Não sei até quando vou suportar esta vida. Ele me agrediu em plena noite de São João, no Parque do Povo. Fui espancada em plena festa. Denunciei e depois fui retirar a queixa na Delegacia da Mulher. Tive medo da solidão. (JASMIM, 1999) Jasmim é dama de companhia de uma senhora idosa. Ela relata que ora agressiva ora simpática, a idosa agride o seu amor-próprio. Ela se sente extremamente vulnerável a qualquer crítica, considerando-se medíocre. Ela sofre, e embora tateante, já revida as agressões e paga um alto preço por isso, tanto no trabalho, com discussões, como na vida amorosa, com as agressões do parceiro, que pune restringindo a responsabilidade financeira no “lar doce lar.” 160 A solidão amedronta a mulher, que utiliza a tática do recuo da denúncia por medo de enfrentar a realidade de “já se saber só na vida afetiva”. A presença do parceiro agressor, embora não sendo mais desejada, é sempre solicitada, ainda que seja acompanhada pela presença da violência que marca uma vida a dois. A psicóloga da Casa da Mulher fez o relato de uma jovem que mesmo tendo a cabeça enfaixada após a surra que recebera. Ela “aos berros” gritava chamando o agressor, dizendo que o queria e que o amava numa demonstração do medo da solidão, embora a companhia do parceiro não oferecesse nenhuma segurança emocional, social ou econômica. A Casa da Mulher além de cumprir esse papel de apoio a Delegacia da Mulher, têm por objetivo orientar, aconselhar e encaminhar no tratamento de problemas que não se constituem em crimes de natureza policial propriamente dita, porém cumprindo o seu papel de orientação social. Essa atividade se estende não só à mulher que procura a Delegacia da Mulher, mas, também, à família, buscando a partir da queixa registrada, a história da convivência, o comportamento do agressor e principalmente os reflexos da situação de violência nos membros dessa família. Daí a necessidade de buscar saídas viáveis para as problemáticas e para a quebra do círculo vicioso da violência doméstica psicológica e física, viabilizando a reestruturação das relações sociais no que diz respeito principalmente às relações de gênero. A angústia feminina em relação à violência psicológica, esta representada na fala da flor Verbena: E as feridas do meu interior? Eu nem sei dizer o que o meu “ex” me fez. Eu não tenho o alcance do que me fez. Sei que tenho dentro de mim uma coisa tão má em relação a ele. Eu me sinto mal quando vejo os irmãos dele, as cunhadas, até os vizinhos daquele tempo terrível de minha vida. (VERBENA, 2000) 161 Na Casa da Mulher os procedimentos47 de apoio à mulher vitimada são resultados de um trabalho conjunto da assistente social e da psicóloga no atendimento inicial à mulher que procura a Delegacia, onde será orientada a qual setor deverá dirigir-se, a depender da problemática que se apresenta. Enfim, surgem atualmente várias estratégias que tentam orientar a circulação da mulher nos espaços públicos e a assimilação de práticas sociais que situam as mulheres amedrontadas com a violência nas fronteiras entre a liberdade e a interdição. Como estratégia de defesa, A Casa da Mulher em Campina Grande, no ano de 2002 publicou A Cartilha – Bote a Boca no Trombone, com orientações48 para proteção feminina e de resistência as agressões dos parceiros. Um exemplo é o caso de Jasmim que sofria agressão do marido e reagiu vezes seguidas, embora sob o medo de três investidas do agressor: ...um dia, meu primeiro marido queria me bater com a enxada. O amigo dele tomou a enxada e ele me deu dois socos no olho. Fui para a Delegacia da Mulher fazer a denúncia. Quando ele recebeu a intimação ele veio me bater e eu gritei por uma viatura que ia passando. Ele foi preso na hora. Quando ele foi liberado da delegacia, veio me bater de novo e depois foi tomar banho. Eu peguei uma garrafa, joguei nele e fugi de casa. Enfrentei o medo. (JASMIM, 1999) Já no segundo relacionamento, ela também era agredida, no entanto observando que pouco foi feito na primeira denúncia, ela desistiu da queixa alegando medo. E conversando, 47 Após registrar a queixa a mulher é posteriormente encaminhada ao setor social para dar continuidade ao atendimento, tais como: expulsão do lar do agressor, guarda de menores, pensão alimentícia, separação judicial, orientação psicológica, alcoólatras anônimos, investigação de paternidade, defensoria pública. 48 As orientações são as seguintes: evitar responder a uma ofensa num momento de conflito; ficar atenta para a persistente intolerância do parceiro; não subestimar uma ameaça; instalar um aparelho telefônico capaz de identificar quem está ligando; deve sair, de preferência, sempre acompanhada e no caso de estar só, ao observar que está sendo seguida deverá entrar em algum estabelecimento ou casa onde haja movimento; não ir para sua casa, se morar sozinha; trazer um chaveiro na mão, colocando as chaves entre os dedos de modo que possam servir de arma e gritar por socorro; usar a criatividade, gritar “fogo” ao invés de socorro, assim há mais garantia de ser ajudada; Caso o agressor se aproximar, dar uma joelhada nos órgãos genitais ou jogar desodorante ou qualquer objeto no rosto dele; só não fugir se não tiver oportunidade; denunciar a violência se for consumada e buscar o apoio dos órgãos de apoio jurídico e psicológico de ajuda a Mulher. 162 ela argumentou dizendo: “Ruim com ele, pior sem ele. A justiça vai fazer muito pouco, igualzinho ao meu primeiro marido, eu é que vou ficar mal para a família dele e depois mesmo, tudo volta às boas.” Diante da realidade do cotidiano, apresentamos o seguinte comentário do Diário da Borborema de 3 de novembro de 2002: Quem conhece os dramas vividos pelas mulheres acha a lei 9.099 – que trata da lesão de natureza leve e enquadra a maioria dos casos de agressão contra a mulher – muito branda. Pagamento de multa, conselhos para assistir cultos religiosos ou serviços à comunidade é muito pouco para o agressor, desabafa uma agente que prefere se manter no anonimato. Além do que a maioria dos agressores de mulheres usa a bebida como desculpa. (99% DAS QUEIXAS, 2002, p. A5). Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) de 10% a 34% das mulheres do mundo foram agredidas por seus parceiros. Apenas em São Paulo, 10% das mulheres afirmam ter sofrido abuso sexual e em Pernambuco, as vítimas da violência chegam a 14%. No Rio de Janeiro, 8% das mulheres acima de 16 anos foram violentadas sexualmente. Quais as medidas políticas de reeducação e de acompanhamento da conduta do agressor, para não reforçar a impunidade no país? A Lei 10.455, em vigor a partir de julho de 2002, prevê o afastamento do agressor, baseado no exame de corpo de delito e no termo circunstanciado. Para que as vítimas passem a acreditar na ação dos órgãos de proteção do Estado, foram criadas as Casas Abrigos, entretanto, essa solução vem revelar a fragilidade da sociedade e do Estado em garantir a segurança das mulheres, permitindo que casos de violência crônicos evoluam para situações de risco de vida. Uma problemática observada é que a mulher que necessita da Casa Mulher ou da Casa Abrigo fica penalizada com a perda de sua cidadania, tendo em vista que fica privada de suas referências, como: família, trabalho, vizinhança, enfim do convívio social. Com mais um agravante. Ao não conseguir reestruturar a vida das usuárias por absoluta sensação de falta de opções de sobrevivência, e pela ausência de 163 políticas integradas que melhorem a situação financeira da mulher agredida a mesma sente-se forçada a retornar ao convívio com o agressor. Ao uniformizar, classificar, examinar, medicar, documentar, vigiar e punir, a disciplina tornou-se presente no seio do lar, regendo os princípios nas relações de gênero, moldando atitudes e comportamentos atuais. Da torre de vigia o controle do corpo subjugado, pela violência da mãe, pai, irmão (as), tio (a), namorado (a), esposo (a), (o e a) amante, sogro (a), babás, faxineiro (a), caseiro (a). Corpo negado e anonimamente extraído de suas forças, corpo silenciado, e do seu tempo, desde a infância e pela vida afora pela violência do poder, sem esquecer: a vontade negada, o grito abafado, no ouvido a ofensa, o rosto machucado, o amor ausente, o medo de falar, a arma deslizando no pescoço, as pernas forçadas, a lágrima rolando: “[...] seu corpo sabe, seu corpo não mente, seu corpo guardou a lembrança.” (THOMAS, 1988, p.30). Sob o mito do lar perfeito num arranjo de cenário teatral harmônico e sutil caminha a disciplina suavemente, fazendo funcionar uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política, “[...] numa certa distribuição concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares, numa aparelhagem cujos mecanismos internos produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos”. (FOUCAULT, 1987, p.167). Diante da realidade apresentada, torna-se evidente que as questões de violência de gênero se tornam cada vez mais pontos de discussão e ação, tanto nos debates acadêmicos, como nos organizações governamentais, organizações comunitárias, privadas etc. Surge daí, uma pergunta: será possível nós mulheres nos (em) apoderarmos de nós mesmas e vivenciamos os nossos prazeres a partir de nossa vontade de poder? Insisto na pergunta: como, nós mulheres de corpo negado, que temos como herança cultural o silêncio, abriremos as portas do “lar doce lar” aos espaços públicos, abrindo as 164 cortinas da janela para a vida, sem medo de revelar o controle dos corpos? Enfim, a de Enfim, descoberta! Meu Deus... há luz fora da caverna. 165 Chorei por ter despedaçado as flores que estão nos canteiros. Titãs 166 4.2 Os jardins das praças públicas da cidade: as flores pisadas A sociedade campinense pretende ser um canteiro social, com um adubo moral, e propõe um projeto de jardim livre de ervas daninhas, com flores dóceis, que possibilitem a proliferação de sementes saudáveis e promotoras da ordem. A cidade de Campina Grande, no cenário de final do recente século passado, adquiriu feição cosmopolita, e esqueceu sua aparência paroquial. Os novos valores e comportamentos femininos, de feição também urbana, provocaram a falência de velhos valores morais e familiares. Essa modificação e desorganização nos códigos de condutas morais, sexuais e de sociabilidade das mulheres, têm sido temidas pelas instituições disciplinares, especialmente a jurídica, que instituiu as normas, os códigos e as condutas sociais que deveriam ser seguidas, mas que quase sempre eram burladas pelas táticas femininas. Historicamente, em todo o Brasil, os Códigos Civil e Penal veiculam e legitimam, nos seus discursos, uma política de moralização e administração das condutas pelo Estado. Tanto nos códigos nacionais, quanto nos processos crimes, os juristas incorporam e difundem a marginalização das condutas femininas “desviantes” dos padrões de normalidade estabelecidos socialmente e defendem a exaltação e “premiação” das condutas femininas disciplinadas e adequadas às normas sociais. Faz-se necessário retirar de circulação as flores vilãs que interrompem e atrapalham a circulação nos jardins públicos de pessoas decentes, além de serem flores que nasceram para enfeitar a morte, se constituem em focos de infecções sociais e epidemias para toda a população. Há o imperativo de negar esses corpos promíscuos física e moralmente, de modo que a moralidade e integridade sejam preservadas. Um novo código de estética e de higiene se inscreveu no final do século. São retirados os inúmeros entulhos sociais, e o Estado realiza intervenções e interdições nos corpos das 167 mulheres delinqüentes durante o processo de organização urbana que Campina Grande vivenciou. O saneamento dos esgotos sociais retirou do olfato e da visão os dejetos infratores com seus cheiros insuportáveis para os campinenses civilizados. Os odores fétidos das flores da morte levam consigo para um jardim suburbano, as marcas dos assédios sexuais na infância, do abandono de lar, os aromas do alcoolismo de pais e mães que foram excluídos dos valores de sociabilidade, de comportamento e de higiene. Assim, questões antes resolvidas no seio familiar e apoiadas pela Igreja, passam a ser do interesse e da competência do Estado que é imbuído do objetivo de administrar as mulheres de condutas e práticas desviantes. Para tal, surge a necessidade de ser construído o Presídio Feminino. No final do século XX, foram então construídos na zona periférica do corpo da cidade- mulher campinense, os presídios masculino e feminino, bem ao lado do lixão da cidade. Estava finalmente o mais escondido possível das vistas dos turistas admiradores da cidade do maior São João do mundo, o lixo social, no espaço escolhido para a morte em vida. Tudo que era disforme, insalubre, mal cheiroso, estava devidamente excluído. Cabe ao Estado cumprir sua função primordial, através do aparelho jurídico e da polícia, socorrer a ordem moral pública e a honra familiar. Enfim, no final do século XX, na cidade Rainha surge a necessidade de possuir um local apropriado para guardar e vigiar as mulheres rebeladas, ou seja, as flores contaminadas destinadas a enfeitar a morte. Morte em vida que vive as delinqüentes, em sua maioria seviciada por pais e padrastos no curto tempo que tiveram lar, geralmente até a idade de dez anos, como ficou presente na maioria dos relatos de histórias de vida das presidiárias. Assim nos fala Copo de Leite: 168 Um dia foi meu pai que veio deitar em meu papelão no chão que eu estava deitada, ele me mandou ficar calada, que ele só ia me alisar1. Puxou minha calcinha e eu só tinha sete anos e tinha começado a ir a escola da favela. No outro dia ele disse que era para ser segredo. Eu fiquei com medo de dizer a minha mãe e ela bater em mim. E assim foi por anos. Ele sempre queria mais. Até o dia que eu fugi de casa, já com dez anos para morar na rua, era melhor ser alisada pelos colegas de rua. Morar na rua, não é brinquedo não. Um dia eu ficava com um, no outro dia o outro já queria. Acho melhor está aqui, na prisão. Aqui tô livre! (COPO DE LEITE, 2000, grifo nosso). E a cela do presídio chega a ser a morada garantida pela Carta Magna, livre do medo. A violência que se revela nos conflitos agrários, entre os sem terra e proprietários, entre índios e invasores de terras indígenas é semelhante à violência que atinge até mesmo as “inquilinas” das Casas Abrigos estendendo-se a casa temporária das mulheres vitimadas como a Casa da Mulher, chegando a casa não existente dos sem teto do Presídio, como quer ser Copo de Leite. Ao comentar sobre Copo de Leite, relato uma das preocupações da diretora do Presídio a Drª Tereza Maria de Jesus, que em conversa me apresentava a sua angústia em saber que estava encerrando o tempo de prisão da mulher-flor. Dizia-me a diretora: Copo de Leite não tem casa, sempre morou na rua, e tendo sido condenada por furtos, acabará em breve sua pena. Só que ela não quer ir embora, ela deseja ficar morando no Presídio, porque aqui ela tem onde dormir e o que comer. Só, que não pode ficar uma prisioneira já liberada, no interior do Presídio. (JESUS, 2000). Perguntávamo-nos: Meu Deus, a que ponto chega a carência dos seres humanos excluídos? Como é possível não querer sair da prisão, por ter teto e comida? Ser uma mulher prisioneira não é ser uma cliente do presídio apenas ou uma doente, como um ser humano que é colocado no hospital; ou como uma carente recolhida ao estabelecimento de filantropia, como quer se configurar o caso de Copo de Leite. 1 É a libidinagem, a sexualidade, luxúria. São atos que dá prazer sexual sem, entretanto haver a relação sexual propriamente dita ( com penetração). Se a vítima é menor e a pessoa que induz é seu ascendente, descendente, tutor, curador a que esteja confiada para fins de educação, tratamento ou guarda a pena é aumentada. Reclusão de 1 a 8 anos. (CFEMEA, nov. 2000) 169 A opinião social e coletiva difundida pelos meios de comunicação, destinou um lugar subalterno ao corpo da mulher presidiária. No entanto são corpos que embora atualmente vivam ligados ao crime, na sua história mais íntima, são corpos que sonham em dar um sentido para seus sonhos não realizados e até mesmo negados ao seu corpo. Sobre a sua opinião quanto ao amor de homem e mulher, ela diz: Não sei o que falar do amor, bonito mesmo é o amor das novelas e das músicas. Mas penso que algumas pessoas sentem amor. As mulheres pensam que os homens amam, mas eu sei que só as mulheres amam. Os homens só fingem e usam o corpo da mulher que é um corpo sofredor. A mulher só sabe o que é liberdade até ficar sangrando. Depois vem o dia de você dormir a primeira vez com um homem. E eu fico pensando, é o dia que começa um suplício. Aí ela não manda mais no seu corpo. Tem que fazer os desejos do ‘seu dono’. (COPO DE LEITE, 2000). É nesse espaço de negação do corpo da cidade-mulher, que estão os corpos negados de inúmeras mulheres delinqüentes que um dia flor em botão, quando meninas, tiveram seus corpos seviciados por pais, padrastos, irmãos, primos, amigos, e desconhecidos. Ali se encontram as flores pisadas dos jardins públicos da cidade. Um outro drama familiar da cidade que saiu do âmbito doméstico, que teve raiz semelhante ao problema de Copo de Leite, tomou ares públicos e passou a ser objeto de ação do Estado e dos meios de comunicação. Foi publicada no Diário da Borborema, em 2 de maio de 1999, matéria versando a respeito de uma denúncia que chegou ao conhecimento do curador da Infância e Juventude de Campina Grande, Bertrand Asfora. O mesmo imediatamente determinou ao delegado Francisco de Assis Silva, titular da Especializada de Menores, que fosse instaurado inquérito policial para apurar o fato de uma mulher queixa-se do padrasto de suas filhas. E assim foi publicada a chamada da página policial: 170 “PADRASTO TARADO” O desocupado Manuel Ovídio da Silva, que mora numa vila de quartos da rua João Martins Guimarães, 214, no bairro de Rosa Cruz, na companhia da mulher Maria José da Costa e suas quatros filhas está sendo acusado de manter relação sexual com as três meninas mais velhas. (PADRASTO TARADO, 1999, p.4, grifo nosso). A intervenção nos corpos femininos, que foi realizada de início através do poder paterno e religioso no seio das famílias, sofre um deslocamento circular, passando a ser feita no atual seio da sociedade, através dos órgãos jurídicos e da formação de opinião através dos meios de comunicação, meios que também são concessões estatais. O meu objetivo é fazer ver que a mulher não deve omitir a violência, em contrapartida a imprensa não deveria antes da apuração dos fatos expor perante o público leitor do jornal a história de negação do corpo a que já foi vítima a denunciante e suas filhas menores, além de rotular o então apenas acusado de “tarado desocupado”. Agindo assim o jornal alimenta a agressividade coletiva e leva o público leitor a formar uma opinião furiosa que não resolve os problemas de agressão sexual. Quando eu comento sobre a condição do acusado, significa dizer que qualquer pessoa, indistintamente do sexo, tendo sido acusado, não pode ser agredida com palavras que possam manchar a sua imagem pública. Mesmo porque já aconteceram casos de homens serem acusados por suas mulheres de sevícias ou outros crimes por motivos de vingança e depois da apuração do caso o acusado foi inocentado parcial ou totalmente. Isto quer dizer que, pode acontecer de uma mulher em sua fúria, também exercitar o poder na contra mão da justiça. Para justificar, apresento as duas versões de um caso ocorrido em Campina Grande no ano de 2000. Apresento, na íntegra, a forma como foi redigida o famoso Amor Canibal, publicado na página policial do Diário da Borborema, em 21 de março, de modo a oferecer a visibilidade da exposição pública de mais um caso de violência que é invadida pelos valores de discursos circulantes. 171 AMOR CANIBAL HOMEM MORDE LINGUA DA AMANTE A doméstica Ângela Maria esteve na Central de Policia e denunciou Sebastião Martins com quem vive maritalmente há 4 anos e meio. Segundo a queixosa, o casal sempre brigava durante todo esse tempo de convivência, tendo ele tentado matá-la por várias vezes. Certa vez Sebastião tentou afogá-la num tonel no fundo do quintal. Outra vez aplicou-lhe várias coronhadas de revolver e ela disse que não o deixava com medo de ser assassinada. No último sábado, uma nova briga aconteceu envolvendo o casal. Por volta das 20hs Sebastião, que trabalha na Fundação Nacional de Saúde e tem um trailer no pátio da Secretária Municipal de Saúde, brigou com Ângela por causa de um cartão telefônico. Ela foi agredida com murros na cabeça, foi jogada contra a parede, tendo o acusado colocado as duas mãos na boca da vítima. Em dado momento, quando Ângela gritava por Socorro, o acusado mordeu a língua da vitima. Ele ainda chegou a se armar com uma pá para matar a mulher, mas resolveu socorrê-la, com medo de ser denunciado e preso. Sagrando bastante, o próprio acusado socorreu a vitima para o hospital e no caminho mandou que ela dissesse que estava com um osso na boca e tinha sofrido uma queda. No Hospital, a mulher mentiu, tendo sido atendida, chegando a levar trinta pontos na língua. Por volta das duas horas da madrugada, o acusado voltou para casa da vitima, tendo chegado a rasgar as roupas de Ângela, obrigando-a a transar à força. No dia seguinte, último domingo, Sebastião foi até o Centro da Cidade, onde comprou dois ingressos para o casal ir assistir ao jogo do Treze, tudo isso para não ser denunciado. Após o jogo, quando retornaram para casa, Sebastião arrumou suas roupas e fugiu para a casa de familiares na cidade de São Mamede, ocasião em que Ângela, que era agente comunitária de saúde, foi obrigada a deixar o emprego por causa do acusado, resolveu pedir ajuda a seus familiares e foi orientada a procurar a Central de Policial. A delegada Irinete determinou que a vítima fosse encaminhada a Unidade de Medicina Legal. (HOMEM, 2000, p.4, grifo nosso). Ora, se na denúncia conta que a denunciante vive maritalmente há quatro anos, não deveria ter sido rotulada de “amante”, pois a sua condição é de “companheira”. Um outro agravante foi o fato de expor a vida íntima do casal, informando a uma cidade inteira desde o local de trabalho do acusado até mesmo o fato íntimo da vítima ter sido forçada a fazer sexo, ainda mais com o título de Amor Canibal. A denunciante que imaginava seu companheiro foragido, no entanto foi surpreendida com seu retorno e apresentação perante a delegada. Assim ficou a chamada na página policial a esse respeito do caso: AMOR CANIBAL - MOTORISTA DESMENTE MULHER. 172 O motorista Sebastião Martins de Oliveira, 53, residente na Rua Pedro II, 571, no bairro da Prata, desmentiu as acusações feitas pela mulher, Ângela Maria da Silva, 31, que viveu com ele cerca de quatro anos e meio e o denunciou de várias agressões, inclusive de ter aplicado uma mordida na língua dela, cujo ferimento levou 30 pontos. Segundo Sebastião Martins, não procede as denuncias feitas pela mulher, pois nunca tentou afogá-la nem a espancou a coronhadas de revólver. Ele desmentiu que tivesse forçado-a a manter relação sexual no dia seguinte após a agressão e que ela foi com ele para o jogo do Treze de livre e espontânea vontade. Sebastião confirmou que realmente combinou com a mulher após a agressão que era para dizer no hospital que ela estava com um osso na boca, tinha caído e sofrido ferimento, para evitar que causasse o escândalo que na opinião dele causou. Ele disse que tudo começou devido a uma discussão por causa de um cartão telefônico, que a filha de Ângela Maria extraviou. Na ocasião, ele disse que chegou a propor a separação do casal, e quando estava deitado numa rede, a mulher o procurou para dizer que o amava e tentou beijá-lo a força. Nesse momento ele acabou mordendo a língua dela. Com relação à fuga na segunda-feira conforme foi denunciado por Ângela Maria, Sebastião disse que viajou para São Mamede, a serviço da Fundação Nacional de Saúde, de onde é funcionário, uma vez que não conhece ninguém naquela cidade, e nem tem familiares onde pudesse ficar escondido. (MOTORISTA, 2000, p.4, grifo nosso). Fica evidente que o acusado agrediu a sua companheira, no entanto, ficou claro, que é impossível qualquer pessoa morder a língua de outra sem haver um contato íntimo, e jamais no momento que alguém grita por socorro, como relatou a denunciante. Ficou notório que a mulher agredida pensou que seu agressor havia fugido e como represália o denunciou já que após a violência sofrida, ela não havia tomado nenhuma providência e ainda o encobrira no hospital. Quanto às outras agressões, é provável que sejam verídicas, já que nas pesquisas observo que a mulher resiste a romper com seu agressor, apenas o denunciando quando ele decide acabar o vínculo afetivo. Diante de uma reportagem deste modelo, fica a indagação: Será que ao publicar as denúncias da Delegacia da Mulher, tanto as mulheres como os homens não estão sendo vítimas de mais uma agressão, já que aquilo que é vergonha particular sofrida em seus corpos, através das notícias no jornal se transforma em vergonha pública diante do corpo social? Seria mesmo necessário oferecer ao leitor do jornal as denúncias femininas com tantos 173 detalhes, a custa da vergonha dos corpos envolvidos? Qual a contribuição para elucidação do problema nas relações de gênero, com tal tipo de reportagem? Nas pesquisas realizadas nos jornais, com duas exceções, encontrei referências as leis que protegem a mulher. Na maior parte das notícias os fatos narrados são permeados de julgamento de valor por parte dos repórteres e com mínima informação legal ou jurídica. O Estado, em nome dos direitos do cidadão e da cidadã, legitimado em exercer junto à sociedade uma disciplina e um controle dos corpos, através de intervenção normativa e higiênica, e num trabalho paralelo à imprensa, difunde um padrão de comportamento moral, baseado nos valores da comunidade, podendo reforçar até mesmo a violência. A sociedade produz seus agressores, e torna normal o que é inaceitável. Conforme reportagem do dia 15 de abril em 2000, no Diário da Borborema foi publicada a seguinte matéria. MULHER É ESTUPRADA E MORTA A mulher de vida livre Joelma Lima de Souza, 29, solteira, que residia numa vila de quartos da rua Índios Cariris, no Centro da cidade, foi morta na madrugada de ontem com requintes de perversidade, com seis golpes de faca- peixeira, fato ocorrido dentro de um banheiro de um treiler nas margens do Açude Novo. Segundo a ocorrência policial, populares que passaram no local logo cedo encontraram o corpo da vítima que estava semi despido e com marcas de golpes de faca-peixeira, tendo na oportunidade acionado o COPOM do 2º BPM. (MULHER, 2000, p.4). As mulheres rotuladas de vida livre, são como as flores que enfeitam a morte, estão sempre próximas dos maus odores que exalam da mais alta exclusão social, como: analfabetismo, desemprego, sem teto, tráfico e dependência química das drogas, ou soropositividade. Algumas não possuem documentos e vivenciam práticas, desonestas, uma vez que, são excluídas das relações de trabalho, gerando reportagens semelhantes à seguinte publicada no Diário da Borborema em 27 de abril de1999. 174 MULHERES DETIDAS EM FRENTE À PENITENCIÁRIA Agentes da Polícia Civil conseguiram prender na manhã de domingo, em frente à Penitenciária do Serrotão, três mulheres, acusadas de fornecer maconha para um grupo de presidiários, que mesmo dentro da unidade prisional tenta comandar o tráfico de drogas na cidade. Em poder das três mulheres que estavam dentro de um Fiat Gol, a polícia encontrou alguns cigarros de maconha e dezoito comprimidos de rupinol. As três mulheres encontram-se detidas na Central de Polícia. (MULHERES, 1999, p.4). Tem ocupado um lugar comum o ato de mulheres favorecerem seus parceiros no tráfico das drogas. Geralmente elas aceitam e até ajudam na comercialização, desde que a relação de afetividade seja mantida. Quando vem o rompimento, pode acontecer da mulher abandonada, de repente, se tornar homicida, como foi o caso da mulher-flor Rosa. Numa ordem inversa social, suas realizações não foram vivenciadas no lar, dentro do casamento, mas na contra mão da moral e bons costumes. Rosa realizava-se, não como uma “senhora bem casada”, mas como mulher amante, que se deleitava em ser mulher de criminoso traficante de drogas. O seu discurso, repleto de agressividade, falando da intensa paixão e ciúme que sentiu apresenta uma forma de apropriação da realidade do seu corpo de forma descontínua e irregular. O seu discurso não condiz com o da maioria das mulheres sobre amor, poder, sexualidade e violência. Ele me batia, até com o cinturão, mas ele podia, era meu homem. Eu era apaixonada por ele. Sempre xingava de vagabunda quando eu reclamava das outras que ele arrumava nas noitadas, eu morria de ciúmes. No começo foi diferente, ele me cobria de beijos e a todo bar que ia me levava junto. Só que ele foi mudando, devagar e sempre, até que eu caí na real. E eu, que pensava ter encontrado o meu príncipe... Isso me lembra a única hora boa na escola, a hora da professora contar histórias. Mas hoje penso diferente, penso que na escola a professora não devia contar tanta “babozeira de amor” que nunca acontece de verdade e só deixa a cabeça das meninas desmiolada. (ROSA, 2000). Observo ainda serem existentes formas de controle das condutas sexuais extraconjugais, de modo violento, posto que nas queixas de Rosa há uma invasão do submundo. As reações 175 do parceiro são de um potencial agressivo, porém justificado por ela que diz, aceitar pelo fato dele ser “seu homem” e na sua lógica possivelmente era também “dono de sua vontade e de seu corpo”. Aparentemente o seu poder era o “não poder”. No momento em que ela percebeu o seu poder de subserviência sair do seu controle, ela cometeu o crime. Apesar da sua realidade de condenada ela não demonstra arrependimento, é como se sua atitude tenha sido o melhor caminho escolhido: O amor de homem e mulher é bom ... tem paixão, pode até matar como o meu. Com meu homem eu vivi o que penso que é amor. Meu corpo tremia quando eu o avistava. Eu era louca por aquele homem. Só que ele era o mulherengo dos mulherengos. A gente sempre fazia amor no barraco da favela e lá ele também guardava a droga que ele traficava. Mas eu penso que amor verdadeiro só existe um, o amor de Deus, o resto é conversa fiada. (ROSA, 2000). Ela se submete às agressões, mas num ato descontínuo, se rebela cometendo um homicídio. Nunca denunciou o parceiro, nem procurou ajuda. Era como se algo gritasse por ela, semelhante o que diz a música: “sou bandida, sou solta na vida, [...] meu amigo, se ajeite comigo, e dê graças a Deus”. Até podemos indagar: será que seu parceiro perdeu a vida porque não se “ajeitou” com ela? Na sua história também importa o comentário sobre as histórias de literatura infantil. Principalmente através das críticas ao romantismo das histórias tipo contos de fada surge pistas da necessidade de reflexão para o tipo de literatura trabalhado nas escolas e, sobretudo, sobre a maneira como tem sido trabalhada. Rosa segue o modelo das mulheres que sonham com um conto de fadas, e esperam um dia ver os sapos transformados num belo príncipe. E que curiosamente, por não ver o sonho se tornar realidade, pode tomar atitude considerada no mínimo drástica: Resolvi ir embora porque não conseguia vê-lo com outras mulheres. Uma noite ele estava jogando sinuca com uns amigos quando eu passei com uma amiga e, assim que me viu, começou a me bater e dizer que eu fosse pra casa que lugar de mulher de malandro direita é dirigindo o fogão. Fiquei 176 muito revoltada, fui para casa, arrumei minhas malas, voltei para minha cidade e comecei a trabalhar de doméstica. Continuei visitando Campina Grande, mas cada vez que eu voltava via o canalha acompanhado de alguém diferente. Eu ficava triste porque era muito apaixonada por ele. Ainda tentei reatar o meu caso, mas ele não quis mais. Acredito que fiquei movida pelo ódio. Resolvi matá-lo. Um dia, num bar eu furei o canalha. Ele morreu, fui presa e condenada. As grades fazem a gente se arrepender de qualquer coisa. Apesar de achar que minha pena foi exagerada, acho que a justiça foi feita. Ele teve o que mereceu e eu pago pelo crime que fiz. (ROSA, 2000). Rompendo com o modelo de prostituta vitimada por homens, ela violentamente reage ao parceiro tirando-lhe a vida justificando que matou por amor. A sua relação com o corpo feminino é de bastante rejeição, penso que em função da péssima relação com sua mãe, posto que não queria conversar. Só depois de várias dinâmicas veio querer tecer poucos comentários, como: Ah! Não queria falar de meu corpo, mas como é o corpo das outras, eu vou dizer o que penso. Corpo de mulher é igual a uma chocadeira de pintinho. Os homens depositam lá dentro os filhos e seguem seu rumo. A gente é que fica com as crias. Agora eu digo: para muitos homens o corpo da mulher é saco de pancada. Só dando porradas é que eles pensam que são machos. (ROSA, 2000). O comportamento de Rosa impulsiona a necessidade de refletir: o que é um ser delinqüente? A resposta é resultante da idéia que se tem de violência, incluindo nela os conceitos de gênero, e respectiva filosofia em relação àquilo que se constrói na família, na escola e no conjunto de atitudes que constituem a realização prática dos valores sociais. Segundo a Ciência do Direito, um ser delinqüente é o homem ou a mulher que infringe o código penal. Foucault nos diz que a delinqüência é formada nos subterrâneo do aparelho judiciário e conceitua o delinqüente em sua análise sobre a Prisão: [...] é o delinqüente, unidade biográfica, núcleo de “periculosidade”, representante de uma anomalia [...] desapareceu o corpo marcado, recortado, queimado, aniquilado do supliciado, apareceu o corpo do prisioneiro, acompanhado pela individualidade do “delinqüente”, pela pequena alma do criminoso, que o próprio aparelho do castigo fabricou como ponto de 177 aplicação do poder de punir e como objeto do que ainda hoje se chama a ciência penitenciária (FOUCAULT, 1987, p. 213). Compreendo que o ser humano delinqüente está presente, em qualquer ação cotidiana, seja na aparente segurança do lar, num canal de televisão, no currículo escolar, no exercício profissional de segurança do Estado ou na história veiculada pelos jornais impressos das muitas mulheres de corpo negado. Semelhante à história de Rosa, no dia 17 de março de 2000 no Diário da Borborema foi publicada a seguinte reportagem: ACUSADO AMEAÇA MATAR EX-AMANTE A menor que confessou ter assassinado o sanfoneiro José de Sousa, disse na presença do Delegado que logo que seja liberada irá matar seu ex-amante, Aluisio Gonzaga, que com raiva por ela ter acabado o relacionamento com ele, a denunciou na Especializada de Homicídios de Campina Grande. A menor chegou a confessar outro crime ocorrido no Bairro do Pedregal no ano passado, que teve como vítima o indivíduo identificado com Landim. No dia desse crime, todos estavam fumando maconha, quando houve um desentendimento e Landim acabou sendo eliminado de forma brutal uma vez que queria dominar todos os viciados que ali estavam. Apesar de alguns policiais mais experientes e familiares da vítima não acreditarem na versão da menor, ela sustenta que matou o sanfoneiro sozinha. Ela diz que realmente foi assediada pelo sanfoneiro, que a chamou para fazer um programa. Após tomarem uma cerveja surgiu o desentendimento, quando a vítima aplicou uma tapa no rosto dela ocasião em que ela sacou a faca e o matou. Antes de fugir, se apossou do dinheiro, relógio, celular, tendo jogado a arma nas águas do Açude Velho. (ACUSADO, 2000, p. 4, grifo nosso). E o Açude Velho que colheu o corpo em desespero da flor Margarida, passa a ser cúmplice no crime. Na capital do trabalho os costumes e condutas morais e sexuais das mulheres, antigamente administrados pela família de conduta católica, vigiada pela ótica cristã, atualmente passa a ser controlada pelo Estado, instituição capaz de represar as modificações no comportamento feminino, fundamentado na justiça e na organização dos discursos flutuantes também de jornais e revistas. 178 É apoiado no policiamento da sexualidade que o poder de circulação dos estereótipos veiculados nos jornais, impõe a moral nos padrões de comportamento corporais e oferece elementos para problematizar os pareceres judiciais (dos e das) delinqüentes. Michel Foucault (1987) nos esclarece o pensamento a respeito da sexualidade, denunciando o surgimento de uma inquisição da sexualidade dos sujeitos sociais. Não somente para reprimir a sexualidade, mas, sobretudo, pela necessidade de saber quais são suas normalidades e, logo, quais são suas perversões. De modo que, nesta perspectiva, a conduta sexual feminina torna-se, ao mesmo tempo objeto de análise e alvo de intervenção. No final do século, se faz necessário um policiamento da sexualidade, para controlar o corpo feminino por meio das ciências, da psicologia, da medicina, da assistência social, do direito penal, dos direitos humanos. Discursos úteis e públicos também nos jornais de Campina Grande, gerando a implantação de um discurso da sexualidade que determina verdades sobre o sexo e institui lugares aos homens e mulheres. Desse modo, no final do século, os discursos sobre o sexo se desvinculam das regras religiosas e passam ao domínio da psicologia, da psiquiatria, da pedagogia, da medicina e da justiça, todos difundidos através dos meios de comunicação. Esses discursos veiculados nos jornais, sobre o corpo, são apropriados pela justiça para a construção das verdades jurídicas e a conseqüente exaltação ou condenação das condutas sexuais de mulheres ajustadas ou desajustadas, condutas essas levadas em consideração nos julgamentos de crimes diversos, sejam nos crimes sexuais ou nos crimes de sangue. A institucionalização do controle do corpo, de racionalização da sexualidade na família, estende-se para o âmbito da sociedade através dos meios de penalidade jurídica. Nas práticas do direito; o direito de punir ganha nova justificação moral e política, e surgem teorias sobre a lei, os direitos humanos e sobre a criminalidade, quando junto a natureza do crime, também difunde uma opinião pública formadora de valores sociais. 179 Ao fazer a história da penalidade moderna da Europa, Foucault (1987) também faz uma genealogia do atual complexo científico-jurídico ocidental, revelando como as formas de penas aplicadas nos infratores pela instituição jurídica sofrem um deslocamento da época clássica para a modernidade. Em “Microfísica do poder”, Foucault (1984) destaca como as disciplinas dos corpos e o controle que regula as populações, já descobertos na época clássica, são intensificados e resignificados na modernidade. O conceito de punição judicial nega o distante castigo-espetáculo do século XVIII e na virada do século XX assistimos à implantação de uma pena corretiva, que fez desaparecer o suplício onde o carrasco que eliminava o infame criminoso, é substituído por policiais, carcereiros, médicos, psiquiatras, psicólogos e educadores, envolvidos na arte de punir socialmente, castigando para produzir e não destruir, emprestando à penalidade um caráter humano, e principalmente científico. Segundo Foucault, o que provocou a institucionalização da prisão como poder jurídico de punição ou instrumento moderno de penalidade é a penetração da ação disciplinar da justiça, alimentada pela circulação dos saberes da informação. Para Foucault a justiça penal vive uma nova era no final do século XVIII na Europa e nos Estados Unidos, ocorrendo uma redistribuição dos castigos, que passam de mera vingança pública do soberano em relação ao criminoso (muito confundido com o pecador), adquirindo um caráter, não mais de destruição desse, mais de tentativa de correção, impondo à esfera jurídica novos crimes e anulando outros, e, logo, inventando novas penas corretivas e não mais punições violentas, como se caracterizam na época clássica. Menos de repressão e mais de tática política, menos a morte e mais a positividade da vida, a justiça moderna será infiltrada nesse período por grandes polêmicas que apontam para a necessidade de reformas. 180 A dominação nas relações de gênero e de sujeição imposta do forte sobre o fraco, na história das mulheres, tem no exercício da força do poder masculino uma das formas de dominação, como faz ver Copo de Leite quando utiliza o termo “seu dono”. A vivência no submundo impulsiona as leituras do relacionamento com bastante mágoa: E depois vem a barriga, porque o “seu dono” quer um filho. O pior é a sogra, se a gente não tem filho é chamada de “maninha”, como eu penso de mim. Se tem filho, ainda duvida quem é o pai. Pois é, depois do aborto nunca mais “embuchei”. È por isso que eu digo: o homem é o dono da mulher, pois se cansa da sua, já depois de velho ele arranja duas bem novas e é tão descarado que diz: “pra cavalo velho o remédio é capim novo”. (COPO DE LEITE, 2000). A imagem feminina é construída a partir da natureza das leis, da formação da opinião pública através dos meios de comunicação e da formação familiar e escolar, colocando a mulher direita como habilitada para a maternidade e inabilitada para o prazer sexual, portanto essa mulher só tem valor enquanto está apta para reprodução. Em passado a sua fertilidade, geralmente é “justificável” que seja trocada por “duas outras.” Por falar na “outra”, trago para cena a história de Dália, que não foi a outra apenas na vida de um homem, e sim, trouxe muitas “outras”, para vida de diversos homens de poder na cidade Rainha. Existe a pergunta que o Ministério da Justiça, não quer calar: O Estado titular do direito-poder de punir, tem direito de adentrar na vida particular de uma mulher, só porque essa mulher é uma prisioneira condenada a cumprir uma pena? A Declaração Universal dos Direitos Humanos apóia o direito de status jurídico próprio da prisioneira e provoca o raciocínio: é lícito submeter, uma mulher prisioneira a exposição de entrevistas e fotografias que faça veicular na cidade apenas um aspecto da história? Ou seja, a “banda podre” é discursada no submundo do crime da página policial, enquanto que o outro lado fica submerso sob o silêncio das forças de quem pode pagar e mandar. 181 Refletindo sobre o caso de Dália, observo que depois de formalizada a denúncia, e ela presa, nunca foram convocados os envolvidos no crime. Várias mulheres foram intimadas a interrogatório, mas os depoimentos não são considerados pelos homens da “lei”, talvez pelo fato das interrogadas serem prostitutas, as chamadas profissionais do sexo, logo, desprovidas de credibilidade no universo jurídico. Ao entrevistá-la, a prisioneira me falou, entre outras coisas, que na resolução de conflitos com a polícia e a justiça, ela tem proteção dessas autoridades, tendo em vista que tinha “muita gente da alta envolvida”. Fato que vem revelar que as autoridades, ao mesmo tempo em que tentavam moralizar os costumes da cidade de Campina Grande, interditando cidadãos, através da CPI da Prostituição2 e disciplinando os corpos negociáveis, alguns donos da justiça tinham relações de negociações e troca de favores corpóreos, visto serem representantes da lei ser solicitadores e usuários dos corpos femininos corruptores, desejáveis e compráveis. Vale salientar que se havia sido perseguida por alguns policiais, Dália era bem protegida pela justiça, a mesma comentou, quando da entrevista: Tenho uma agenda telefônica de homens importantes e mesmo com a prisão e o processo aberto, em breve eu estarei livre. E acrescentava: Prefiro morrer a falar o nome deles, é a lei do silêncio. E ela me recomendava severamente: Professora, se um dia eu souber que a senhora abriu sua boca sobre essa história, eu nego tudo, para o seu próprio bem. 2 Prostituição é vender o corpo para o prazer de outras pessoas. A prostituição é crime quando alguém, convence, induz ou persuade alguém a praticar ato sexual com outras pessoas; quando impede que alguém saia da prostituição; quando se tem lucro ou é sustentado com a prostituição de outra pessoa ( rufianismo) e quando mantêm casa de prostituição. (CFEMEA, nov. 2000) 182 A esse respeito a jurista e penitenciarista, autora da obra A violência nas prisões, alerta para a situação no Brasil como um todo: [...] não é fora de propósito admitir que, participando  quem sabe, até, em posição de orientação ou de direção  dos esforços de prevenção do crime e controle da criminalidade, estejam ‘criminosos de colarinho branco’ e ‘criminosos dourados’; essa sua participação lhes granjeia respeito e apreço, o que, evidentemente, não facilita a sua identificação como criminosos, nem a prevenção dos seus crimes ou o controle da criminalidade em que seus crimes se inserem (MIOTTO, 1992, p. 238). Considerando que, estudando a violência presumida contra as jovens por sua corruptora, este estudo nos induz a considerar como atos violentos os crimes contra o pudor, realizados pelos homens freqüentadores da casa de comércio sexual. No entanto, não se cogitou que, se alguém vende o corpo, deve existir alguém que compra esse corpo. Dada à absoluta incapacidade das jovens menores de idade poderem decidir se tinham que consentir na realização do ato sexual, e na falta de discernimento e completa inexperiência de vida, a justiça não poderia deixar de considerar como criminoso, o ato de defloração por parte dos homens que procuravam os favores da corruptora. No entanto, segundo ela não era o que acontecia. Era como se ao mesmo tempo, a justiça e os meios de comunicação achassem que a corruptora comprometia os costumes das jovens, num claro desrespeito à instituição família. Ao passo que havia um esquecimento da responsabilidade dos sedutores, “homens de nome na sociedade campinense” concluindo-se perante a opinião pública não por sedução e defloramento das vítimas, mas pelo sexo prostituído. Dália é uma mulher que foge aos padrões de honestidade e decência legitimados pelos discursos familiares e oficiais das escolas e meios de comunicação, além de ser desafiadora das normas jurídicas, e também daqueles que fazem à justiça. Assim, ela se expressa ao ser indagado, sobre o que pensa, a respeito do corpo feminino: 183 Eu penso que se uma mulher quer vender seu corpo e tem quem pague e além de tudo não está sendo obrigada, que mal tem nisso? É por isso que o dono do nosso corpo é o dinheiro. É o dinheiro quem diz o quanto ele vale. Eu acho que tem que ser caro, já que a gente não vale nada para esse “povinho”. (DÁLIA, 2000). Dália representa o feminino não submetido às normas sociais. É um corpo marginalizado, porém, procurado e explorado pelos “homens de bem” da cidade. Ela não teme a justiça, não aceita os modelos e padrões de controles sociais, e, decerto, nadando contra a corrente faz parte daqueles(as) que metaforizam a ordem dominante, “[...] fazendo funcionar as suas leis e suas representações num outro registro, no quadro da sua tradição” (CERTEAU, 1994, p.18). Anunciada a prisão da flor Dália e sua condenação requerida, a opinião julgadora se expressa na boca da carcereira: Essa mulher foi impelida pela sua má índole e vivendo do comércio do corpo, mora em um ambiente de prostituição como comprova as denúncias de freqüentadoras de sua casa e colegas das jovens também já prostituídas. (Carcereira, 2000). Para os que fazem a justiça e os meios de comunicação, a mulher corruptora por não ser assexuada é uma degenerada, ou por não ser ajustada aos padrões sociais e familiares ou por ser vítima de alguma patologia sexual. As ações da justiça ora são de proteger, ora de marginalizar, pois o corpo das jovens prostituídas é protegido pela idade por serem as vitimas de menor, porém, é marginalizado pelo seu meio social – a casa de prostituição que freqüentam; e a corruptora, como mulher adulta, é condenada pelo seu discernimento de mulher sabida, e protegida da justiça pelo seu envolvimento com homens da sociedade que desconhecem os motivos reais da necessidade financeira. A conduta corruptora da ré a enquadra, sob o ponto de vista jurídico, ao status de “criminosa de alto risco”. Para a justiça, é inafiançável o crime de sedução de menores, 184 seguido de defloramento. Esses elementos fundamentaram o pedido e a aceitação da sua prisão preventiva. Registro que a ré não cumpre a pena nem pela metade, beneficiando-se do livramento da condicional. Saliento que a prisão preventiva é solicitada mais em crimes de sedução e furto e menos em crimes de homicídio, mostrando claramente que os bens “honra” e “patrimônio”, na ordem social patriarcal, ficam acima do bem “vida”. No ambiente em que reside Dália, as brigas de mulheres de vida livre, não se dão só entre as amantes rivais, mas ocorrem também entre sogra e nora. Ela comenta a desavença entre sua amiga e a sogra dela que teria provocado violência, um grande alvoroço, a entrada no hospital da sogra, a conseqüente abertura de um processo crime e a prisão da nora no presídio, como narra um profissional do direito: ...por motivos frívolos, depois de uma discussão entre nora e sogra, a jovem nora agrediu sua sogra, causando-lhe os ferimentos descritos no auto de corpo delito, como sendo um braço quebrado, cortes em todo rosto, ... um crime considerado hediondo. (Profissional do direito, 2000). Proponho refletirmos um pouco mais sobre a história dessa mulher insubmissa. Vejamos onde uma policial coloca esse personagem feminino: Dália vive nesta cidade, é mulher de vida livre, se sustenta, é senhora de seus atos, freqüentando bares e festa acompanhada de amigas de vida livre. Ela sempre levou uma vida completamente desenvolta e insensata. Sua idoneidade e precedentes são ignorados, aqui na cidade onde anda de casa em casa, levando outras mulheres ao mau caminho. (OCORRÊNCIA POLICIAL). Intencionando ter controle sobre os corpos das mulheres agressoras do Presídio Feminino, os profissionais da justiça transformam um crime grave o suficiente para vasculhar a vida dessas mulheres, julgando suas condutas sexuais, no interior de um universo corrompido nas violências dos prazeres, e menos preocupados sobre o ato violento em si. 185 Assim como a nora se arremessa contra o corpo da sogra, os profissionais da justiça arremessam severas críticas à conduta das mulheres-flores sexualmente livres e “devassas”, canteiros nos quais florescem exemplos de descontinuidade às imagens de mulher assexuada, e passiva, tão defendidos pelas instituições oficiais, particularmente dos pilares sociais como: o familiar, o educacional e o jurídico. A flor Dália veio para abalar as estruturas morais e conservadoras de opinião pública formada pelos meios de comunicação de Campina Grande. Seu comportamento ameaçador à família foi comentado do Calçadão da Rua Marquês do Herval a Feira Grande, do Clube Campestre ao Parque do Povo. As histórias das mulheres-flores revelam que a vida na prisão produz práticas e condutas corporais diversas daquela produzida na família e na escola que é um lugar racionalizado de deveres e direitos. A vida no presídio feminino seduz as mulheres com propostas estranhas aos ditames de honestidade e honra familiar oficial. Como a mulher presidiária silencia, há nela o movimento do corpo, a construção da introspecção e do pensamento, a voz do não dito, vivenciado através dos sentidos do corpo falante. Observo que Dália ao fazer referências ao corpo feminino, enfoca a contradição da sociedade entre o permitido e o proibido. O corpo das mulheres, quando penso neles lembro da televisão e das revistas, que mostra tanto o corpo e vende até bebida. Só, que na hora que “uma qualquer” como eu, vai ajudar a mulheres que querem vender o corpo para comprar pão para os filhos a justiça cai em cima. Como se os homens da justiça tivessem moral para isso, se eles mesmos pagam pelo corpo delas. (DÁLIA, 2000). Um outro ponto que chama atenção é seu posicionamento sobre quem paga e quem comercializa o corpo da mulher, e faz referências ao corpo pago pela própria justiça, apesar de confusa em relação ao que significa ajudar, ou seja, sobre seu conceito a respeito. 186 Observo que algumas mulheres tentam usar o desejo de se fazer uso dos prazeres do corpo, sem disciplinas e controles, numa tentativa de total libertação das imposições instituídas ao corpo pelo poder. Qual o efeito de tais posicionamentos? Será este comportamento favorável a condição feminina? Diante da realidade das histórias das mulheres-flores percebo que na busca da liberdade, muitas vezes somos barradas pelos valores e leis que vêm de encontro a contramão, traçada por mulheres que ousaram, porém não avaliaram as conseqüências, como foi o caso de Dália, que embora justifique o comércio do corpo, a sociedade a pune, fazendo dela, em suas palavras “o bode expiatório”: Eu vou ser bem sincera. Eu acho que eu sofri uma violência. Fui presa para agradar o povo dessa cidade. Eu sou o ‘bode expiatório’. Como eu fazia os contatos para as meninas estou aqui. Mas eu pergunto: era eu que transava com as meninas? Por acaso, está preso no presídio masculino algum figurão envolvido com prostituição? De jeito nenhum. (DÁLIA, 2000). Para ela a maior violência é viver uma mentira. Viver uma mentira é o que a maioria das pessoas faz, seja da alta ou uma pessoa qualquer... Muitas mulheres chamadas de direitas vivem com seus maridos sabendo que eles são chegados às garotas de programa, porque com a gente eles podem fazer tudo e com elas não. Isso pra mim não é casamento, nem amor. É sim viver uma grande mentira, viver na violência. (DÁLIA, 2000). Entretanto, mesmo essas mulheres presidiárias relativamente fortes padecem de certa vulnerabilidade. Em geral, sentem-se culpadas pela própria atitude reivindicatória, e tendem a pedir desculpas por exigir determinados tipos de comportamentos, como foi o caso de Dália, ao exigir não ter mais o seu corpo fotografado, para ser exposto nos jornais da cidade: Os repórteres que vêm aqui, só me aborrecem e nunca me perguntaram sobre meu passado, se eu sofri alguma violência. Só querem me fotografar e fazer reportagens me criticando. Digo para eles que não sou capa de revista, nem sou celebridade, que me desculpem mais que parem de me fotografar. (DÁLIA, 2000). 187 Dália revela em seu relato que na hora de acerto de contas, o “homem bom” paga pelo sexo entregando o dinheiro sem problemas e às vezes ele nem chega a manter relação sexual, só faz conversar, diz estar precisando de companhia. Já o “homem mau”, muitas vezes agride fisicamente ou ameaça e na hora em que é preciso pagar pelos serviços ele recusa dar o pagamento. Segundo ela, geralmente esse tipo de homem, realiza o ato sexual, muitas vezes com agressividade. Quando indagada sobre o amor, assim ela se expressou: Eu não sou de acreditar no amor, mas no caso de amor de mãe, todo mundo sabe ser diferente. Mãe é mãe, e pronto. Pode ser uma mulher qualquer, mas merece o nosso carinho e respeito. A minha mãe era brava e gostava de bater. Apanhei muito e não dei pra gente, imagine se não tivesse apanhado. Ela me mandava pra escola e quando vinha tomar a lição eu não dava conta do recado. E aí, tome surra. Também na escola eu só queria namorar. Os meninos já sabiam o dia de cada um. Eu me divertia muito com a tabelinha feita no caderno, para ver de quem era o dia de namorar. (DÁLIA, 2000). Na compreensão de Rosa não existe o Amor, inclusive o materno, E assim indaga: Amor materno, verdade ou mentira? Penso que minha mãe só amou a hora de me fazer, porque ela não pensava em filho e sim no prazer. Não sei quem é meu pai e hoje não me interessa, nem me dizer quem era, ela não disse. Quando precisava de pai para me defender da molequeira da escola nunca eu tive e não vai ser hoje que ele vai ter importância. (ROSA, 2000). Esquece as leis da justiça de indagarem a essas mulheres sobre sua infância, que muitas vezes foi privada do mais simples direito. Em sua maior parte foram meninas sem alimento, sem teto, sem mesmo o direito de dormir, como nos fala a flor Rosa: Meu padrasto não me deixava dormir, eu que já passava a manhã vendendo coco, pois à tarde eu tinha que ir a escola. À noite cansada ainda tinha que aturar o seu cheiro de “cana”. Era horrível, acho que minha mãe fingia não escutar, também se falasse alguma coisa ia apanhar, foi assim com minha irmã mais velha que também fugiu de casa. Quando eu desisti da escola por ser a arruaceira da classe eu me juntei com o grupo que cheirava cola. Depois conheci o cachorro que me ensinou a puxar maconha. (ROSA, 2000). 188 Nessa pesquisa, quanto ao aspecto do atentado violento ao pudor, sofrida por Rosa, chamou a atenção a insegurança que a mesma sofreu por não poder contar com o apoio paterno na infância. Insegurança que ela repete, quando também apresenta em relação aos órgãos jurídicos e policiais nos quais ela conclui que não darão crédito a sua história, assim relata: Eu tinha arrumado o emprego de dançarina numa boate e saí já tarde da noite, quando já ia chegando perto de casa fui atacada por um canalha que me conhecia do bar. Ele me ameaçou com uma arma para fazer sexo anal à força com ele. Eu cedi, para não morrer. Os homens que procuram a mulher sem nome, pensam que pode fazer o que quiser com ela. Não denunciei, pois que policial ia acreditar numa mulher da vida como eu? Ia logo pensar que foi eu que provoquei e quis. (ROSA, 2000). A punição do atentado violento ao pudor e estupro em prostitutas é objeto de polêmica, já que se questiona a legitimidade ou não, pois ao que parece, os profissionais da lei revelam através de suas práticas que as prostitutas não têm o direito de escolher parceiros sendo obrigadas a oferecer prazer ao homem que a procure. Na opinião de Rosa é consenso tanto entre mulheres e homens: “já que a gente provoca o instinto sexual dos machos, temos por dever a obrigação de saciar a fome de sexo de todos aqueles homens desejosos...” Para ela: “violência significa alguém querer ser livre e não poder”. E julga-se uma mulher violenta. Eu não sei falar sobre violência contra a mulher, o que eu acho é que sou muito violenta. Se alguém me provoca dou logo o troco. Comigo não tem ‘boquinha’, não. Se eu fosse mole eu não estava contando a minha história. Já tive muito que bater em mulher e em homem. Só apanho mesmo da polícia. As meninas aqui do presídio acham errado a surra que nossa colega deu na sogra, que por isso foi condenada, mas não eu fico pensando, ela é que sabe o que sofreu de perseguição de uma fêmea igual a ela. Se a sogra fosse boa o filho dela tinha deixado a colega. Que nada! Ela aqui mesmo no presídio ele nunca deixou de visitar, casou com ela e ainda fez um filho. Ele sabe a mãe que tem... Se ela fosse boa coisa, o filho ia ficar do lado dela. Só porque nossa colega já tinha tido outro homem, a mãe dele não quis que eles ficassem juntos. Pode? (ROSA, 2000). 189 Estudar o corpo feminino no presídio significou investigar a organização do espaço, com sua arquitetura e organização funcional do discurso dos que fazem a lei e a legalidade; bem como, estudar as formas de controle social da família das presidiárias em suas funções não-formalizadas, ou seja, por exemplo nas táticas de sogra e nora, que não, necessariamente, correspondem ao discurso formalizado. O objetivo foi compreender os avanços, os recuos, os limites, as construções, as metamorfoses inscritas em seus corpos através das histórias de vida... Na história das mulheres excluídas que insistem que elas não devem ser esquecidas em nosso projeto de educação. Compreendendo que teoria e prática nascem na mesma fonte, desvelei histórias de mulheres que expressam a realidade da violência na sensibilidade dos fatos vivenciados e recordados através da memória de um corpo que sente. Nesta atividade percebi que as histórias das mulheres promoveram encontros com seus medos, concordando com MORAIS, que afirma: Quem não tem medo do desnudamento do espírito no espaço público? (MORAIS, 2003, p13) Pesquisar a vida delas, com elas, é viver a vida na diferença, na negação, na afirmação... De forma circular... Eu e a Mulher, a Mulher e eu, o Nós reconstruídos na diferença social, com respeito e dignidade. Com esta postura penso em contribuir com o desejo, a poesia, a paixão de mergulhar na história que refaz a história de vida, sentindo a vida nos depoimentos, na voz e musicalização, na dança do corpo falante, no intelecto vacilante e, por fim, na arte do corpo. Tantos talentos, tantas mensagens... 190 O quarto em desordem Na curva perigosa dos cinqüenta derrapei neste amor. Que dor! que pétala sensível e secreta me atormenta e me provoca à síntese da flor que não se sabe como é feita: amor, na quinta-essência da palavra, e mudo de natural silêncio já não cabe em tanto gesto de colher e amar a nuvem que de ambígua se dilui nesse objeto mais vago do que nuvem e mais defeso, corpo! corpo, corpo, verdade tão final, sede tão vária, e esse cavalo solto pela cama, a passear o peito de quem ama. (Carlos Drummond de Andrade. Obra completa, 1964, p.278) 191 Plantando considerações Pretendi, como educadora e mulher, apresentar subsídios para a fomentação de pesquisas sobre o tema “violência contra a mulher”, pensando tão somente em banir o silêncio e registrar as histórias das tantas vítimas dessa arbitrariedade. Entretanto, bem sei da limitação deste trabalho, haja vista o tempo regulamentar de uma pesquisa acadêmica. Por este motivo, as lacunas existentes afloraram durante a escrita desta conclusão, a distância entre o que a lei preconiza e o que na realidade é feito. Esta tese representa mais uma, dentre as inúmeras possibilidades de discutir a questão da sexualidade no âmbito das relações de gênero, nas marcas impressas da violência que invade a vida das mulheres. Espero oferecer subsídios para a fomentação de pesquisas sobre o tema na área de educação que provoque educadores e educadoras na orientação de projetos para o fazer pedagógico e se discuta as relações de gênero no processo de escolaridade. Um tipo de fazer o qual possa garantir lutas sociais e motivações que digam respeito à cidadania. Através da intervenção das pesquisas acadêmicas e da atuação dos movimentos sociais, urge discutir políticas de educação, cultura, comunicação e produção do conhecimento para a igualdade de gênero, que: x supere a violência contra a mulher através da educação, prevenção, assistência, combate e políticas de segurança; x efetive os direitos humanos: civis, políticas, sexuais e direitos reprodutivos das mulheres; x construa o enfrentamento da pobreza feminina, incrementando a geração de renda, trabalho, acesso ao crédito e à terra; x promova o bem-estar e qualidade de vida para as mulheres na saúde, moradia, infra- estrutura, equipamentos sociais, recursos naturais. 192 Observei que os trabalhos existentes sobre a violência contra a mulher, geralmente, incluem-na em temáticas bem mais amplas, ficando freqüentemente diluída no âmbito das discussões macro políticas e sociais, ou eram discutidas por pesquisadores e pesquisadoras que dissertaram “sobre”, mas, não ouviam e faziam falar do porão do medo e da vergonha aquelas que vivenciaram a violência em seus corpos. Suas falas foram silenciadas. Quebrando esse modelo me propus a escutá-las, ao passo que me escutava. Através de uma possível interpretação da realidade sobre as leituras de vida das mulheres–flores efetuadas sobre a violência em seus corpos, confirmei a tese de que a família, sendo um micro espaço de poder e saber sobre o sexo, quando marcada pela violência, influencia na construção educacional das relações de gênero, gerando a negação do corpo da mulher. A sensibilidade do corpo feminino foi uma constante nas falas efetuadas no que se refere à inscrição do poder de outrem na superfície dos corpos agredidos em sua sexualidade. Tais inscrições ficaram evidentes nas expressões e relatos das relações sociais. O mesmo não ocorre em relação às inscrições apresentadas nas reportagens sobre violência no corpo da mulher. O como falar e o não falar da violência nos meios de comunicação em suas variadas formas, explícita, ou implicitamente, são formas de controle da sexualidade. Através da pesquisa nas reportagens dos jornais, constata-se que geralmente mostram o problema da violência nas relações de gênero de forma moralizadora e estereotipada, não só quando se trata de sexo, mas também do comportamento das mulheres no amor e na paixão e, principalmente, dos papéis sexuais, constituindo-se em uma contribuição para a manutenção das desigualdades sociais e sexuais entre homens e mulheres. A sexualidade de homens e mulheres nos jornais é apresentada como uma manifestação que precisa ser controlada e disciplinada. Por outro lado, unindo forças, o 193 Estado, enquanto poder público, através do direito de vigiar e punir vem legislando sobre a questão e vem apresentando timidamente projetos de educação e orientação sexual junto à opinião pública, e quase nenhuma campanha publicitária no trato da violência nas relações de gênero. Um aspecto a se destacar do entendimento desta análise é o de que as histórias de mulheres violentadas nos corpos possuem relações que operam em práticas e táticas que se estabelecem nas interseções do poder e do saber. De modo que, à luz das teorias foucaultianas, nada pode ser tomado como fixo nos valores da sociedade. As histórias de vida das mulheres-flores apresentaram corpos femininos, que ora sucumbiam ao poder da violência, mas também que fazem uso do poder de silêncio e\ou agressão para a dominação dos outros corpos. Importou perceber que nessas relações está imerso um corpo sexuado sendo simultâneo o exercício por aquela (e) que exercia e aquela (e) que se submete embora de forma desigual. Os corpos produziram um saber advindo do poder e por ele foram produzidos. Seja na linguagem de amor ou de violência, presente nos relatos aqui apresentados, o contexto da educação familiar está impregnado de relações de poder, de submissão e dominação do corpo feminino, que ao ser revisto e discutido pode possibilitar entender que as conotações sociais e educacionais apresentam elementos constituintes da violência. Transborda na pesquisa o fato de constatar que, apesar de todas as violências, de todos os pecados, de todos os perigos aos quais foram submetidas e que submeteram, e das marcas que foram tatuadas em seus corpos, as mulheres-flores transgridem esses poderes. A temática sugere a necessidade de abordar pesquisas sobre: o que diz o agressor, a situação das mulheres egressas das prisões, e das mulheres divorciadas do agressor, além de inúmeras outras que dependerão das inferências dos leitores. 194 Propus refletir sobre as relações de gênero como uma questão de cidadania, que influencia e afeta toda sociedade, às vezes, violentamente, a ação disciplinar das mulheres guardiãs de violência do patriarcado. Num exercício coletivo, convidaria a todos os educadores e educadoras envolvidos e interessados na temática em sua relação com a educação sexual, que leiam este trabalho como mais uma contribuição que leva a refletir sobre algumas facetas da realidade posta no corpo referentes à sexualidade, presentes não só no âmbito da instituição familiar e escolar, mas principalmente na rede silenciosa de poderes da sociedade em geral. E por fim, esta pesquisa tem a intenção apenas de se constituir em um instrumento de reflexão para prováveis leitores pesquisadores. Não pretendo ser conclusiva, ou colocar um ponto final nesta abordagem sobre a violência no corpo feminino. Se tal intenção existisse a pesquisa em sua própria gênese, estaria comprometida, mesmo porque, outros jardins me foram apresentados quando desta pesquisa. Que a leitura desta tese seja reveladora. Leitura que possa ser dolorosa ou violenta, mas que no silêncio falante da palavra das mulheres-flores possa gerar o prazer de descobrir uma possibilidade de saber e poder na intersecção da sexualidade do corpo do leitor e da leitora com os corpos pesquisados. 195 Referências AGOSTINHO, Cristina. Luz del fuego: a bailarina do povo. São Paulo: Best Seller, 1994. AIRES, Gabriel Eliana. O conto feminino em Goiás. Goiânia: UFG, 1996. ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 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