Universidade Federal do Rio Grande do Norte Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais José Gledson Nogueira Moura Prosa, Música, Poesia A condição humana por Raul Seixas Natal/RN 2020 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS JOSÉ GLEDSON NOGUEIRA MOURA PROSA, MÚSICA, POESIA A CONDIÇÃO HUMANA POR RAUL SEIXAS NATAL/RN 2020 JOSÉ GLEDSON NOGUEIRA MOURA PROSA, MÚSICA, POESIA A CONDIÇÃO HUMANA POR RAUL SEIXAS Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para fins de obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida. NATAL/RN 2020 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Moura, José Gledson Nogueira. Prosa, música, poesia: a condição humana por Raul Seixas / José Gledson Nogueira Moura. - Natal, 2020. 140f.: il. Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós - Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. Orientadora: Profa. Dra Maria da Conceição Xavier de Almeida. 1. Raul Seixas - Tese. 2. Condição Humana - Tese. 3. Prosa - Tese. 4. Música - Tese. 5. Poesia - Tese. I. Almeida, Maria da Conceição Xavier de. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 316:78 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 JOSÉ GLEDSON NOGUEIRA MOURA PROSA, MÚSICA, POESIA A CONDIÇÃO HUMANA POR RAUL SEIXAS Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para fins de obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Aprovada em: ___/___/2020 BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria da Conceição Xavier de Almeida - Orientadora Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN _________________________________________________________________ Profa. Dra. Josineide Silveira de Oliveira – Examinador Externo Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN _________________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Aldemir Farias - Examinador Externo Universidade Federal do Pará - UFPA _________________________________________________________________ Prof. Dr. Fagner Torres de França – Examinador Interno Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN _________________________________________________________________ Prof. Dr. Walter Pinheiro Barbosa Júnior – Examinador Interno Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN _________________________________________________________________ Prof. Dr. Iran Abreu Mendes – Examinador Suplente Externo Universidade Federal do Pará - UFPA _________________________________________________________________ Profa. Dra. Eugênia Maria Dantas – Examinador Suplente Interno Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Eu dedico essa tese às primeiras pessoas que estão sentadas ali na fila. Muito Obrigado! Ao meu pai José Maia Moura, E se eu perder coragem Pra seguir viagem A fé que me faltar Eu vou buscar com você meu pai (Ê Meu Pai, Raul Seixas/Cláudio Roberto, 1980). A minha mãe Maria da Conceição Nogueira Moura, Teu nome é Yemanjá E é Virgem Maria É Glória e é Cecília Na noite fria Oh minha mãe, minha filha Tu és qualquer mulher! Mulher em qualquer dia (Ave Maria da Rua, Raul Seixas/Paulo Coelho, 1976). Ao meu irmão Jackson Nogueira Moura, Lembro, Pedro, aqueles velhos dias Quando os dois pensavam sobre o mundo Hoje eu te chamo de careta, Pedro E você me chama vagabundo Pedro, onde você vai eu também vou Mas tudo acaba onde começou (Meu Amigo Pedro, Raul Seixas/Paulo Coelho, 1976). A minha companheira Alexandra Katiuscia de Sousa Freire, Quando a gente se tornar rima perfeita E assim virarmos de repente uma palavra só Igual ao nó que nunca se desfaz Famintos um do outro como canibais Paixão e nada mais! (Coisas do Coração, Raul Seixas/Kika Seixas/Cláudio Roberto, 1983). Ao meu moleque maravilhoso, José Henrique Freire Moura, Nada tão belo como uma criança dormindo Nem tão profundo como dormir sem sonhar Nem tão antigo como o sonho dos teus olhos Nem tão distante como a hora de acordar (Cantiga de Ninar, Raul Seixas/Paulo Coelho, 1976). A minha orientadora Maria da Conceição de Almeida, Eu é que não me sento No trono de um apartamento Com a boca escancarada Cheia de dentes Esperando a morte chegar (Ouro de Tolo, Raul seixas, 1973). Ao meu parceiro na composição dessa tese, Raul Santos Seixas, Eu já ultrapassei a barreira do som Fiz o que pude às vezes fora do tom Mas a semente que eu ajudei a plantar já nasceu! Eu vou, vou m’embora apostando em vocês Meu testamento deixo minha lucidez Vocês vão ter um mundo bem melhor que o meu! (Geração da Luz, Raul Seixas/Kika Seixas, 1984). AGRADECIMENTOS É chegada a hora de poder externar toda a gratidão às pessoas e instituições que contribuíram para que esse sonho se tornasse realidade. Tenho a sensação que as linhas e as palavras a seguir são insuficientes para agradecer cada apoio, incentivo, motivação e aprendizado recebido ao longo da jornada do doutorado. Gratidão é a expressão que me move nesse momento de fazer os agradecimentos. Muito obrigado de coração a todos aqueles que colaboraram para a construção desse trabalho. Ao carpinteiro do universo. Responsável pela poesia da vida, do mundo, da natureza, do cosmos. A minha orientadora, querida Ceiça, como carinhosamente a chamo. Que ser humano incrível. Que educadora ética e competente. Sempre preocupada com a formação humana para além dos altos muros da universidade. Toda vez que perguntado por alguém se é bom ser seu aluno, digo que é excelente. E emendo: mas ser orientando é muito melhor. Quanto aprendizado nesse convívio de quatro anos. Das orientações coletivas a uma simples troca de mensagens ou de áudio estava ali um conhecimento a ser aprendido. Faltam palavras, Ceiça, para descrever a gratidão de ser seu Raulzito como passou a me chamar. A Raul Santos Seixas, protagonista e parceiro generoso na composição desta tese. Obrigado por sua música e poesia. Sem elas a vida seria mais difícil. Ao Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM e a todas as pessoas que são partes integrantes desse lugar mestiço. Espaço coletivo e transdisciplinar de construção do conhecimento que faz do compartilhamento um operador cognitivo fundamental das relações humanas. Lugar onde a ciência é feita com risos, de forma criativa, ousada, leve, sem jamais perder o rigor que o trabalho acadêmico exige. Aos meus pais, artesãos desse ser humano que sou hoje. Devo tudo a vocês. Sou grato pelo companheirismo, por cada ensinamento, palavra e dedicação de vocês nesses 35 anos. Sou grato por ser seu filho. Amor talvez seja a expressão que melhor descreva a nossa relação. Ao meu irmão, que sempre se colocou disponível para ajudar em todos os momentos. Teria sido mais difícil ainda terminar essa tese se não fossem as nossas conversas nos dias que passei trancado aí no apartamento em Fortaleza durante a elaboração do trabalho. A minha companheira, parceira e cúmplice de vida, que suportou nos últimos anos e nos últimos meses sem se queixar, um momento sequer, da minha prioridade colocada para o término do doutorado, O que seria de mim e do nosso filho se não fosse a sua força para segurar todas as barras que enfrentamos. Te amo! Ao meu filho, que mesmo sendo criança parecia entender as ausências do papai. Agradeço cada abraço, cada cheiro, cada pergunta, quando voltava das viagens. Peço desculpas pelos dias, semanas, meses que passei longe de você, meu filho. Peço perdão pelas vezes que não pude buscá-lo na escola, pelos passeios que não pude levá-lo, pelas brincadeiras que não pude fazer. Pelas suas doenças que muitas vezes não pude confortar. Compartilho aqui aquele nosso segredo: Papai te ama. A todos os meus familiares maternos e paternos pelo incentivo e torcida pelo meu sucesso. Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Aos meus colegas de doutorado da turma 2016. Embora o convívio coletivo tenha sido por pouco tempo, as trocas de experiências foram intensas e gratificantes. A CAPES, pela oportunidade de bolsa concedida na segunda metade do doutorado, fundamental para o prosseguimento dos estudos. Ao Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho e ao Prof. Dr. Alex Galeno pelas contribuições no processo de qualificação. Aos professores que compõem a banca examinadora, grato pela leitura atenciosa e pelas valorosas contribuições que certamente surgirão. As amizades que cultivei em Natal. Muitas saudades meus amigos. Abraços fraternos para: Jair Moisés, Mônica Reis, Luan Gomes, Lídia Borba, Louize Gabriela, Alaim Passos, Adeílton Dias e Juliana Rocha. Grato pelos momentos marcantes do nosso convívio nessa jornada dos últimos anos. A minha tia Rosa Moura e aos meus primos David, João Paulo e Isabelle pela acolhida sempre que precisava vir a Natal. A Ângelo Felipe pela amizade e companheirismo. Vamos lá Belchior. A minha mais nova amiga Nayara Katrine. A Adeílton Dias pela tradução do resumo para o espanhol. A todos que fazem o Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Educação do Campo (LEDOC) da Universidade Federal Rural do Semi-Árido pelo compartilhamento de experiências de vida e conhecimento. As amigas Maria do Carmo (in memorian) e Sarah Rafaele pela força que sempre me deram. A todos que de algum modo contribuíram para a realização desta tese. A minha imensa gratidão. Água Viva Eu conheço bem a fonte Que desce daquele monte Ainda que seja de noite Nessa fonte tá escondida O segredo dessa vida Ainda que seja de noite Êta fonte mais estranha Que desce pela montanha Ainda que seja de noite Sei que não podia ser mais bela Que os céus e a terra bebem dela Ainda que seja de noite Sei que são caudalosas as correntes Que regam céus, infernos Regam gentes Ainda que seja de noite Aqui se está chamando as criaturas Que desta água se fartam mesmo às escuras Ainda que seja de noite Ainda que seja de noite Eu conheço bem a fonte Que desce daquele monte Ainda que seja de noite Porque ainda é de noite No dia claro desta noite Porque ainda é de noite No dia claro desta noite Raul Seixas; Paulo Coelho, Gita, 1974. “... Eu sou tão grande ator, tão bom ator que eu finjo que eu sou cantor e compositor e todo mundo acredita...”. Raul Seixas em entrevista ao jornalista Pedro Bial, 1983. RESUMO A tese tem como tema a condição humana a partir da obra musical de Raul Santos Seixas. Por que pensar sobre a condição humana a partir da arte, da poesia, da música? Entendendo a poesia, o teatro, o cinema, a literatura, a música e as artes como experiências humanas que podem contribuir para uma consciência e um conhecimento de si, da relação com o outro e da inserção do indivíduo na sociedade, a tese assume como propósito reaver as partes necrosadas da ciência de modo a injetar fluxos de pensamentos criativos, anti-paradigmáticos e críticos e a construir a possibilidade de arquitetar uma nova gramática da ciência, uma nova partitura musical da narrativa do conhecimento sobre o mundo e a humanidade por meio da música. Partindo da consideração de que, nas artes, há um pensamento profundo sobre a condição humana, problematizo por meio da poesia e da música de Raul Seixas a sua compreensão a respeito da nossa condição de humanidade. A pesquisa se desenvolveu no sentido de promover reflexões sobre a constituição do ser humano como biológico e cultural, como universal e, ao mesmo tempo, diverso e singular, como prosaico e poético, reafirmando a nossa existência como Sapiens sapiens demens. O trabalho tem como estímulo e base o fenômeno da cultura e a consequente diversidade de experiências que a condição humana possibilita na vida em sociedade. Ao caminhar pelo itinerário da vida e obra de Raul Seixas por meio de suas composições e do diálogo com o pensamento de autores como Edgar Morin, Conceição Almeida, Edgard Carvalho, Nuccio Ordine, Giorgio Agamben, entre outros, tensiono a figura de Raul como sendo a expressão da prosa, da música, da poesia. Palavras-chave: Raul Seixas. Condição Humana. Prosa. Música. Poesia. ABSTRACT The current thesis has as its theme the human condition as it is expressed in the musical work of Raul Santos Seixas. Why should we think about the human condition based on art, poetry, music? Understanding poetry, theater, cinema, literature, music and the arts as human experiences that can contribute to an awareness and knowledge of the self, of the relationship with the other and of the insertion of the individual in society, the thesis assumes as its purpose to recover the necrotic parts of science in order to inject streams of creative, anti- paradigmatic and critical thoughts and to build the possibility of architecting a new grammar of science, a new musical score of the knowledge narrative about the world and humanity through music. Starting from the consideration that, in the arts, there is a profound thought about the human condition, I problematize, through the poetry and music of Raul Seixas, his understanding of our condition of humanity. The research was developed in order to promote reflections on the constitution of the human being as biological and cultural, as universal and, at the same time, diverse and singular, as prosaic and poetic, reaffirming our existence as Sapiens sapiens demens. The work is stimulated and based on the phenomenon of culture and the consequent diversity of experiences that the human condition makes possible in life in society. While walking through the itinerary of Raul Seixas' life and work through his compositions and dialogue with the thoughts of authors such as Edgar Morin, Conceição Almeida, Edgard Carvalho, Nuccio Ordine, Giorgio Agamben, among others, I tension the figure of Raul as being the expression of prose, music, poetry. Keywords: Raul Seixas. Human Condition. Prose. Music. Poetry. RESUMEN La tesis aborda como temática la condición humana a partir de la obra musical de Raul Santos Seixas. ¿Por qué pensar sobre la condición humana a partir del arte, de la poesía, de la música? Comprendiendo la poesía, el teatro, el cine, la literatura, la música, las artes como experiencias humanas que pueden contribuir para una consciencia y un conocimiento de uno mismo, de la relación con el otro y de la inserción del individuo en la sociedad, la tesis asume como propósito recuperar las partes necrosadas de la ciencia de modo a inyectar flujos de pensamientos creativos, anti-paradigmáticos y críticos. También propone construir la posibilidad de organizar una nueva gramática de la ciencia, una nueva partitura musical de la narrativa del conocimiento sobre el mundo y sobre la humanidad por intermedio de la música. Partiendo de la consideración de que en las artes hay un profundo pensamiento sobre la condición humana, problematizo por intermedio de la música de Raul Seixas su comprensión sobre nuestra condición de humanidad. El transcurrir de la investigación ha caminado en el sentido de reflexionar sobre la constitución de ser humano como biológico y cultural, como universal y al mismo tiempo diverso y singular, como prosaico y poético, reafirmando nuestra existencia como sapiens sapiens demens. Tomando como estímulo y como base el fenómeno de la cultura y la consecuente diversidad de experiencias que la condición humana posibilita en la vida en sociedad, la tesis fue producida en ese tono. Al caminar por el itinerario de la vida y obra de Raul Seixas por intermedio de sus composiciones y del diálogo con el pensamiento de autores como: Edgar Morin, Conceição Almeida, Edgard Carvalho, Nuccio Ordine, Giorgio Agamben, entre otros, tensiono la figura de Raul como siendo la expresión de la prosa, de la música, de la poesía. Palabras-clave: Raul Seixas. Condición Humana. Prosa. Música. Poesia. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Raul com os olhos arregalados parecendo espiar algo...... 28 Figura 2 - Raul segurando objeto semelhante a um relógio 42 despertador............................................................................... Figura 3 - Fotos das capas dos álbuns de Raul...................................... 67 Figura 4 - Raul fazendo pose de pensador............................................. 105 Quadro 1 - Veja quanto disco na estante I (DISCOGRAFIA)................... 91 Quadro 2 - Veja quanto disco na estante II (ÁLBUNS PÓSTUMOS).......... 98 FAIXAS PRELÚDIO ..................................................................................................................... 15 Vem surgindo de trás das montanhas azuis, olhe o trem ................................... 21 Meu despertar para a condição humana ........................................................... 26 O primeiro contato com o Grupo de Estudos da Complexidade – GRECOM. 28 Este caminho que eu mesmo escolhi .................................................................... 30 METAMORFOSE AMBULANTE ....................................................................................41 A condição Sapiens sapiens demens....................................................................51 Um ser dotado de música e de poesia..................................................................55 AS AVENTURAS DE RAUL SEIXAS NA CIDADE DE THOR .......................................... 61 O Início, o fim e o meio – Uma narrativa musical ................................................66 RAUL SEIXAS E RAULZITO SEMPRE FORAM O MESMO HOMEM? UMA CONCEPÇÃO COMPLEXA DO SUJEITO ...........................................................................................99 E as perguntas continuam sempre as mesmas: Quem eu sou? De onde venho? Onde vou dar? .......................................................................................................... 104 Quero ser o homem que sou (Dizendo a verdade) - O Homo Complexus ... 113 O mistério do universo – o singular e o universal ................................................118 AGORA EU VOU CANTAR POR CANTAR – A ÚTIL INUTILIDADE DA MÚSICA.......123 CAMINHOS .............................................................................................................133 CAMINHOS II ...........................................................................................................137 Eu conheço bem a fonte que desce daquele monte .....................................138 Inspirações e outros escritos ..................................................................................140 15 PRELÚDIO Sonho que se sonha só É um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto É realidade Raul Seixas, Gita, 1974. 16 Pesquisar é desafiador. É uma experiência única. Mesmo para quem já é iniciado, não é um exercício fácil. A cada aventura de se lançar no mundo da pesquisa, surgem novos desafios e curiosidades que nos levam a novas possibilidades de aprendizagem. Esses desafios e a vontade de conhecer devem ser encarados e aproveitados como um processo que é parte integrante da jornada do conhecimento. Desde o momento inicial que somos atraídos pelo tema que queremos pesquisar até o momento final da escrita do trabalho e da defesa da tese, há toda uma trajetória de construção do conhecimento que vai sendo trilhada e um conjunto de saberes que vão sendo articulados que nos proporcionam diferentes aprendizados. A condição de ser um eterno aprendiz e a humildade em reconhecer que não existem respostas definitivas e completas são elementos fundamentais na busca do ato de conhecer. Escrever uma tese também não é tarefa das mais simples. É um dos momentos mais aguardados do percurso de formação doutoral. Embora tenha sido prazeroso e gratificante desenvolver um trabalho de pesquisa sobre alguém que provoca em mim as mais diferentes inquietações, reações e interrogações, a arte da escrita demanda dedicação, conhecimento e inspiração. Conhecimento sobre o tema de pesquisa proposto, inspiração para traduzir a leitura e as explicações do fenômeno estudado e dedicação para articular um texto que demonstre nossas interpretações dos fenômenos e os resultados da imersão na temática pesquisada é tarefa semelhante ao ato de compor. Exige egoísmo, sacrifício, compartilhamento, parceria, solidão, concentração, foco, disciplina, intuição, esforço, ousadia, imaginação e criatividade. Construir uma tese nos coloca diante de inúmeros estados de ser e de muitas sensações também: excitação, medo, euforia, alegria, precaução, entusiasmo, dúvida, dor, orgulho; são alguns dos sentimentos que nos acompanham no ato da escrita. Esses estados emocionais são para Conceição Almeida componentes responsáveis pelo modo como produzimos nossas mundovisões e nossa compreensão do mundo. Tem influência direta 17 na forma como articulamos a nossa visão sobre a realidade e no modo como a interpretamos. É importante assinalar que a emoção não pode ser entendida unicamente como um estado de espírito que produz satisfação, contentamento, prazer, mas como uma mobilização cognitiva que inclui também os estados de fúria, rebeldia e descontentamento (ALMEIDA, 2004, p. 7). Todo conhecimento se dá pela emoção. É inevitável a presença desses diferentes sentimentos na construção do conhecimento. Não podemos nos desconectar dessa condição. Ter a consciência disso é fundamental para compreendermos como as hipóteses, conceitos, teorias e as interpretações se articulam nas explicações dos fenômenos. A visão tradicional do pensamento científico, conforme nos diz Edgar Morin, eliminou o sujeito, a consciência, a autonomia. Para o autor: Conhecer é produzir uma tradução das realidades do mundo exterior. De meu ponto de vista, somos produtores do objeto que conhecemos; cooperamos com o mundo exterior e é está co-produção que nos dá a objetividade do objeto. Somos co- produtores de objetividade. Por isso faço da objetividade científica não apenas um dado, mas também um produto. A objetividade concerne igualmente a subjetividade (MORIN, 2007, p. 111). Na ciência, como afirma Sheldrake (2014), o uso da imaginação faz parte do fazer científico. A experiência imaginária é algo que não está separada de um corpo, sem sofrer nenhum tipo de influência. De acordo com o autor, a ciência está se tornando dogmática, o que tem inibido cada vez mais a curiosidade científica, refletindo tal condição na perda do vigor, da vitalidade e da ousadia. Nas palavras do biólogo, é preciso ousadia ao cientista. É preciso abandonar os dogmas que impedem ou restringem o questionamento e a imaginação. É preciso que a ciência seja mais interessante e divertida. 18 Estou convencido de que a ciência está sendo restringida por pressuposições que se enrijeceram em dogmas, mantidos por fortes tabus. Essas crenças protegem a cidadela da ciência tradicional, mas age como uma barreira ao pensamento aberto (SHELDRAKE, 2014, p. 20). Para Rupert Sheldrake, a busca da verdade e a ilusão da objetividade fazem com que o cientista engane os outros e a si mesmo. Tal acontecimento é reflexo da ideia de que o conhecimento está desvinculado do corpo. Ou seja, que a mente estaria desconectada do corpo, não sendo afetada por qualquer tipo de emoção. O que é um grande equívoco. Corpo, mente, emoções se articulam de forma inseparáveis em qualquer atividade, incluindo a do cientista. A experiência vivenciada nesse trabalho misturou todo tipo de pulsões, emoções, sentimentos, o que certamente influenciou no humor durante o exercício cognitivo de interpretar o fenômeno estudado e de colocar no papel as impressões e explicações no momento da elaboração do texto. As crises de choro pela ausência do aconchego do lar, a distância geográfica e emocional da família e dos amigos, os momentos de enclausuramento para se dedicar a pesquisa, as dúvidas acerca da minha capacidade de empreender tal jornada, o medo do notebook não resistir aos mais de dez anos de uso, a alegria e o entusiasmo por estudar algo que realmente me interessa, a possibilidade de conquistar o tão sonhado título de doutor e as inúmeras privações que tive que passar para que conseguisse finalizar o texto são algumas das expressões que me marcaram ao longo desse processo de elaboração da tese. Essa tese foi escrita em diferentes lugares e momentos no transcorrer do percurso doutoral. Natal e Mossoró no estado Rio Grande do Norte e Fortaleza a capital do Ceará foram refúgios onde as linhas que aqui estão foram escritas. O trabalho tem a marca da mestiçagem geográfica e das fronteiras borradas desses lugares. A tese tem como tema a condição humana a partir da obra musical de Raul Santos Seixas. Partindo da consideração de que nas artes há um pensamento profundo sobre a condição humana, problematizo por meio da 19 poesia e da música do referido artista a sua compreensão a respeito da nossa condição de humanidade. O transcorrer da pesquisa caminhou no sentido de refletir sobre a constituição do ser humano como biológico e cultural, como natureza e cultura, como universal e ao mesmo tempo diverso e singular, como sapiens- demens. Tendo como estímulo e por base o fenômeno da cultura e a consequente diversidade de experiências que a condição humana possibilita na vida em sociedade, a tese foi produzida a partir desse tom. Ao caminhar pelo itinerário da vida e obra de Raul Seixas por meio de sua arte, tensiono a articulação entre ambas como inseparáveis para o surgimento de ideias que vão sendo elaboradas por meio da experiência humana. Reflito sobre os diferentes e diversos contextos por meio dos quais essa obra artística foi construída e como essa vida foi sendo vivida, como pontos que se colocam enquanto fundamentais nessa busca a partir da poesia e da música de compreensão sobre a condição humana. Suas dezenas1 de composições revelaram-se para mim como crônicas de sua e das nossas vidas. Se caracterizaram para mim como crônicas da humanidade. Os primeiros hobbies, desejos, frustrações, alegrias, amizades, amores, as separações, os medos, as paranoias, a necessidade de liberdade, a esperança, o pessimismo, o faze o que tu queres, o indivíduo, a sociedade, os sonhos, o cotidiano do país, as doenças, as internações, a fuga da insuportável realidade, a dependência do álcool, as questões filosofais da existência humana, entre outros temas, são exemplos de força e potência de suas músicas diante da percepção sobre o humano. Por que pensar sobre a condição humana a partir da arte, da poesia, da música? Entendendo a poesia, o teatro, o cinema, a literatura, a música, as artes como experiências humanas que podem contribuir para uma consciência e um conhecimento de si, da relação com o outro e da inserção do indivíduo na sociedade, a tese assume como propósito reaver as partes 1 Na biografia “Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida” publicada no final de 2019, o jornalista Jotabê Medeiros afirma que Raul Seixas deixou 312 canções registradas como composições suas, além de dezenas de músicas inéditas nas mãos de parceiros. 20 necrosadas da ciência de modo a injetar fluxos de regeneração anti- paradigmáticos e críticos. Construir a possibilidade de arquitetar uma nova gramática da ciência, uma nova partitura musical da narrativa do conhecimento sobre o mundo e a condição humana por meio da música. Talvez possamos abrir nossas lentes mentais para que vejamos os indivíduos em sua simplicidade e subjetividade, sua inserção social e histórica, suas pulsões, paixões, amores, ódios, ambições, ciúmes, medos. Essas expressões artísticas incitam-nos a consciência das realidades humanas, especialmente nas relações afetivas de pessoa a pessoa, a inserção numa família, classe, sociedade, nação, história, em suma, incitam-no a consciência do caráter complexo da condição humana (MORIN, 2001, p. 19). A arte nos coloca diante da existência humana e fala profundamente de nós mesmos. Daí sua importância como modo de conhecimento profundo das relações entre os humanos e da vida social. Claude Lévi-Strauss dirá em O pensamento selvagem (1989) que a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico. Para o antropólogo, que buscou na condição da diversidade humana as invariantes do pensamento, o artista tem ao mesmo tempo características tanto do cientista como do bricoleur. Assim, a arte como modelo reduzido, que é a linguagem da bricolagem, favorece um olhar mais amplo e abrangente sobre os fenômenos. Raul foi um pouco cientista e um pouco bricoleur. Suas composições proporcionam um olhar ampliado sobre a realidade. Seus experimentos musicais permitem criar e recriar uma leitura do mundo a partir de suas ideias e daquilo que pensava sobre as mais diferentes questões. O prêmio Nobel de química Ilya Prigogine (2009) fala da arte como sendo a metáfora que representa a ciência no século XX. Não sem razão, na mesma tonalidade no livro Meus Filósofos, Edgar Morin identifica no Surrealismo um dos movimentos artísticos - filosofícos que marcaram suas interrogações. Foi, por exemplo, a partir do Surrealismo que o autor reativou as aspirações à poética da vida. “Eu diria que o surrealismo foi um dos 21 acontecimentos culturais, e mesmo filosófico, mais ricos do século XX. Foi um movimento no qual a poesia, o pensamento, a ação, a vida se entrefecundavam” (MORIN, 2013, p. 155). Também não por acaso, Raul, quando perguntado numa entrevista a Jay Vaquer em nove de agosto de 1972 sobre literatura, diz que é mais pelo Surrealismo. Admirava as ideias e características contidas ali. Como afirma Edgar Morin (2013), o Surrealismo é uma forma de revolta pela poesia e para a poesia. Recusa-se a reduzir a poesia ao poema e fazer dela apenas uma expressão literária pura e simples. A poesia é uma verdade para ser vivida. As canções do artista demonstravam justamente isso. Poesia e música para serem vividas e experimentadas. Foi isso que o artista fez. Viveu da poesia, para poesia e com a poesia. Em suas mais diferentes manifestações, a arte revela um olhar sobre o mundo e sobre a condição humana. Além de possuir uma potência na perspectiva da compreensão da realidade, da experiência da existência humana, da vida em sociedade, a arte expressa o âmago da nossa vida. A obra artística de Raul Seixas nos faz descobrir o quanto a música pode nos aproximar de um entendimento de quem somos. O quanto às múltiplas referências da linguagem musical podem nos revelar as contradições humanas (ALMEIDA; KNOBBE, 2003, p. 141). As composições de Raulzito2, nascido em 28 de Julho de 1945, ano da explosão das bombas atômicas, como costumava dizer, teve grande ressonância, disse o que queria dizer ao mundo e expôs o seu ponto de vista sobre a humanidade, sobre si e o outro. A música era o veículo responsável por levar a mensagem. Vem surgindo detrás das montanhas azuis olhe o trem Comecei a ouvir o artista ainda na adolescência. Por volta dos doze anos de idade escutei algumas de suas músicas pela primeira vez no rádio, 2 Até a transição para a carreira solo de cantor, Raulzito era a forma como Raul Seixas assinava a autoria de suas composições, 22 onde esporadicamente tocavam as músicas mais conhecidas do cantor, consideradas pelo grande público e por parte da mídia como sendo seus maiores sucessos. “Ouro de Tolo”, “Metamorfose Ambulante”, “Tente outra vez”, “Maluco Beleza”, “Mosca na Sopa”, “Sociedade Alternativa”, “Gitã”, “Eu também vou reclamar”, “Eu nasci há 10 mil anos atrás”, “Meu amigo Pedro”, “Carimbador Maluco”, “Cowboy Fora da Lei”, “Novo Aeon”, “Medo da Chuva”, “Let Me Sing, Let Me Sing”, “O dia em que a terra parou”, “Aluga-se”, entre outras músicas que costumam serem as mais executadas em programas de rádios e figuram como as mais tocadas em qualquer playlist do cantor. Embora sentisse atração e curiosidade pela sonoridade, melodias, batidas, voz, refrões, letras, as condições financeiras e a pouca oferta de CD’s na cidade onde nasci não permitiam consumir de forma mais constante sua obra. Ficava a depender dos programas de rádio que vez ou outra tocava alguma música do artista ou algum raro programa de televisão que trazia alguma reportagem sobre o cantor. Era uma frustração enorme se interessar por algo que chamava atenção e despertava interesse e não poder usufruir. Intuitivamente acreditava que as suas músicas não se resumiam apenas aquelas canções que tocavam nas rádios. Isso me levava a crer que havia um conjunto de composições que ia além daquelas que eram exibidas na mídia televisiva ou radiofônica. Acreditava que havia mais do que um lado A. Apostava na existência de um Lado B. Ou seja, que havia ainda um vasto repertório a ser conhecido e explorado por mim. Mas o fato de não possuir condições materiais para adquirir os álbuns ou qualquer outra forma de gravação me impediu de ter acesso a uma significativa parte do seu repertório. O que não me desanimou, mesmo sendo frustrante. Passei a minha adolescência e início da juventude ouvindo músicas de Raul Seixas, bandas de rock nacional e internacional, cantores e bandas de diversos gêneros musicais, ora pelo rádio ora pela televisão ora por um pequeno toca fitas que tínhamos em casa. Quando comecei a ter oportunidades de conhecer de forma mais ampla e profunda a sua obra não hesitei. Comecei a entrar no seu universo musical. 23 No final da década de 1990 e início dos anos 2000, já com 17 anos e com aparelho de som em casa, mandei gravar minhas primeiras fitas-cassete que guardo até hoje, exclusivamente com suas músicas. Já no Ensino Médio (1999--2001), esperava o término das aulas e saia correndo na minha bicicleta para chegar a uma loja de CD’s próxima a escola que estudava no centro da cidade para pesquisar o que tinha do cantor nas estantes. Perdi as contas de quantas vezes fui até a referida loja para apreciar aquelas prateleiras repletas de CD’s. É sabido que o menino Raul matava aula para ir escutar Rock n Roll (Elvis Presley, Litlle Richard, Jerry Lee Lewis, Fats Domino, Bo Didley, Chuck Berry, entre outros) o dia todo na loja de discos Cantinho da Música em Salvador, levando-o a repetir a 2ª série do Curso Ginasial no Colégio São Bento por três vezes. Eu não chegava a tanto, mas quando ia ao estabelecimento de discos, passava preciosos minutos vendo as capas dos CDs, pesquisando nos encartes os nomes das músicas, os seus parceiros e o ano que foram gravadas as composições e os álbuns. As várias idas à loja resultavam quase sempre em gravações de fitas-cassete. Selecionava os álbuns e pedia que fossem gravados. Foi guardando muitas vezes o dinheiro do lanche da escola ou qualquer outro trocado que recebia que comecei a mandar gravar as primeiras fitas com suas músicas. O acesso ao universo artístico de Raul Seixas, até então reduzido, foi aumentando sem parar. De músicas esporádicas que ouvia nas rádios, passei a ouvi-lo de forma mais constante e intensa. Percebi de fato que sua obra musical não se resumia apenas às músicas que eram tocadas nas rádios, sacralizadas pela mídia especializada, pelos críticos musicais, pelo público em geral como sendo os grandes sucessos do cantor ou como sendo as melhores. O que inevitavelmente tornava essas músicas como sendo as mais conhecidas do artista, já que eram as mais tocadas. Confirmava assim aquela intuição inicial de que a obra do compositor e cantor não se restringia apenas há alguns hits. Era uma obra ampla e que demandava da minha parte a vontade de conhecê-la. 24 Ainda que meu acesso às músicas de Raul fosse limitado, as que eu tinha em mãos já me causavam uma sensação diferente e indescritível, o que me movimentava a querer muito mais. Comecei a experimentar e vivenciar aquele universo musical na prática. Nessa mesma época comecei a frequentar em Limoeiro do Norte, Tabuleiro do Norte, Russas, cidades da região do Vale do Jaguaribe no estado do Ceará minhas primeiras festas de rock. Halloweens, tributos a bandas e artistas de rock nacional e internacional, além de festivais, passaram a fazer parte do universo de diversão de um jovem que começava a sair de casa. Músicas do artista estavam sempre presentes nesses ambientes, tocadas ou por bandas covers, por artistas que o imitavam ou por bandas que faziam sons variados. A presença de alguma banda ou cantor que fizesse menção ao artista já me chamava atenção e despertava o desejo de querer ir ao evento. Foi durante esse mesmo período que outro acontecimento me marcou. Num domingo à noite, em plena celebração da missa das 19 horas, na igreja matriz de Limoeiro do Norte - CE, para minha surpresa, e creio que para de muita gente ali, o padre fez referência a Raul Seixas durante o sermão. Fez menção justamente a música que nomeia a abertura da tese. Ao final da homilia citou a canção “Prelúdio”: “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só\Mas sonho que se sonha junto é realidade” (Raul Seixas, Gita, 1974). O padre destacava a ideia da coletividade e da união como uma força importante. Fiquei extasiado, jamais imaginei ouvir qualquer referência ao artista dentro de um templo religioso. Mesmo não sabendo precisar a data exata do acontecimento, aquilo ficou gravado na minha memória. Ouvir um padre recitando Raul foi inesquecível. Ao ingressar na graduação (2003-2007) no início do ano de 2003 no curso de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) o interesse pela obra do cantor não só permanecia como aumentava. Comecei a frequentar uma pequena loja de discos que havia na universidade. A loja reunia um acervo dos mais diferentes gêneros musicais, as estantes estavam sempre repletas de discos de cantores e bandas nacionais e internacionais. Para minha alegria, a loja contava com diversos álbuns de 25 Raul para a venda. Tanto discos em vinil (LP’s) como CD’s eram comercializados no espaço. Sempre que podia comprava algo relacionado ao artista. Entre os anos de 2005 a 2007, como bolsista de iniciação científica do Programa de Educação Tutorial (PET) na graduação, o que me rendia um valor em dinheiro, comecei a comprar os meus primeiros CD’s, DVDs, pôsteres, visitar sebos e adquirir os primeiros vinis e frequentar cada vez mais festas de tributo à obra artística do cantor. Essa identificação com sua música nunca me impediu de curtir outros artistas de rock ou de outros gêneros musicais. Contudo, a sonoridade provocada pela potência da música de Raul e a força da linguagem de sua poesia me mobilizava de alguma forma à condição de admirador do referido artista e a inquietação de buscar mais informações sobre sua trajetória musical e consequentemente pessoal. Mesmo não pertencendo a nenhum fã-clube ou comunidades virtuais sobre Raul Seixas que já existiam espalhados às dezenas por todo o Brasil na primeira década dos anos 2000, fui ampliando o meu conhecimento tanto sobre a obra musical do artista como sobre o homem. Raul disse certa vez que a “música é apenas a vomitada de cada pessoa, uma cusparada. É a expressão de cada um... Música é abrir a boca e emitir sons” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 27-28). A música para Raul era fundamental, expressão de um conjunto de sentimentos internalizados colocados para fora por meio dos sons e das palavras. A partir da relação e do diálogo entre as chamadas ciências humanas e a arte, comecei então a vislumbrar a música como um elemento potencializador de compreensão dos aspectos do indivíduo, da vida em sociedade e dos diferentes fenômenos da existência humana. Comecei a perceber na música um operador cognitivo potente capaz de oferecer as chaves para abrir as portas da compreensão sobre a condição humana nos seus mais diferentes aspectos. Algo que veio a se confirmar mais tarde com o amadurecimento da proposta de pesquisa apresentada e selecionada para ingresso no doutorado e a concretização dessa tese. 26 Meu despertar para a condição humana No final da graduação, início de 2007, já no último semestre letivo (2006.2) do curso, uma disciplina obrigatória chamada “Sociedade e Natureza”, ministrada pela professora Jarileide Cipriano da Silva, provocou um interesse desconhecido e uma curiosidade ainda maior sobre as discussões envolvendo a relação natureza e cultura. Embora já tivesse tido contato com a discussão sobre essa relação ao longo da graduação por meio das disciplinas de Antropologia, especialmente pela perspectiva de Claude Levi – Strauss, o interesse por essa temática cresceu de forma significativa desde então. A partir de temas como relação indivíduo/natureza/sociedade; religação do homem com a natureza; o planeta como sistema vivo auto- organizador; a crise ecológica e a sustentabilidade dos sistemas vivos, problematizamos ao longo das aulas as múltiplas relações entre sujeito, natureza, cultura, sociedade. O referencial teórico para os debates foram os textos de Boris Cyrulnik Do sexto sentido: o homem e o encantamento do mundo (1999), Claude Lévi- Strauss, “Natureza e Cultura” (1982), Edgar Morin, O Paradigma Perdido: a natureza humana (1973), Daniel Quinn, Ismael: um romance da condição humana (1998), entre outros, além dos filmes Guerra do Fogo (1981), de Jean Jacques Annaud, O Enigma de Kasper Hauser (1974), de Werner Herzog e Instinto (1999), de Jon Turteltaub. Do diálogo que se estabelecia em sala de aula, muitas inquietações e interrogações passaram a se fazer presentes naquele momento. Somos descendentes dos macacos? Temos um ancestral comum que deu origem ao que se designou humano? A partir de que momento isso foi possível? Somos resultado de um processo evolutivo? Existe de fato uma natureza humana ou somos completamente seres culturais? Foram questões que passaram a circular na minha mente e a fazer parte do meu imaginário. Na medida em que as aulas transcorriam apareciam mais perguntas motivadas pelas leituras dos textos e pelos debates em relação aos filmes. A 27 humanidade surgiu num determinado momento específico ou passou por um processo evolutivo que culminou nas formas que temos hoje? Onde acaba a natureza? Onde começa a cultura? Somos natureza e cultura? Ou a cultura eliminaria toda e qualquer forma de uma suposta natureza humana? Onde teria começado de fato a cultura e onde a natureza humana se extinguiria? Qual o momento de ruptura? Como se deu a passagem de um para o outro? Ao mesmo tempo em que esses questionamentos surgiam, muitas possibilidades e caminhos para reflexão também se apresentavam como pertinentes para problematização e compreensão dessas dúvidas. Estava entrando numa perspectiva de pensar sobre os referidos fenômenos que até então não haviam sido apresentados a mim. Estava entrando num mundo novo. A constituição do homem como um complexo individual/biológico/social; a percepção da diversidade de possibilidades de experiências que a condição humana possibilita e as múltiplas relações que ela proporciona; a compreensão da natureza humana, a necessidade de compreender a história da humanidade e o destino do homem foram pontos cruciais no decorrer das discussões. A disciplina, que poderia ser apenas mais uma no histórico da minha graduação, acabou sendo um suspiro de ar fresco e revigorante para quem chegara naquela altura da jornada de quatro anos, cansado física e mentalmente. O contato com essa perspectiva de visão de mundo e compreensão dos fenômenos desencadeou em mim tempos depois novas percepções sobre a vida, o mundo, o universo. Estava plantada ali a semente sobre a condição humana que mais tarde germinaria em outras ideias. 28 Figura 1 - Raul com os olhos arregalados parecendo espiar algo Fonte: www.google.com.br O primeiro contato com o Grupo de Estudos da Complexidade - GRECOM No segundo semestre de 2009, durante o curso de mestrado (2009-2011) do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), fui atraído no ato da matrícula pela disciplina Teorias Contemporâneas da Cultura, ministrada pela professora Maria da Conceição Xavier de Almeida. Dentre as disciplinas que constavam na relação disponível para matrícula, acabei por me interessar por aquela que na minha imaginação estava circunscrita a discussão sobre cultura a partir da Antropologia enquanto ciência. Pelo menos era a ideia que eu tinha. Imaginava uma 29 discussão proporcionada por antropólogos ou pensadores das ciências humanas e sociais acerca do fenômeno cultura em diferentes aspectos. Quando veio a primeira sessão o impacto foi inevitável. A partir da apresentação a respeito da concepção, enfoque, temas e autores do curso, fiquei meio paralisado diante daquelas informações. Para minha surpresa, dos autores listados no programa da disciplina estavam: biólogos; físicos; químicos; matemáticos; etólogos e também antropólogos. A partir daí passei a compreender a Antropologia não mais como uma disciplina, mas como uma dimensão epistemológica, como um fundamento para compreensão da condição humana que interliga diferentes domínios. Os domínios da cultura e da natureza. Ilyia Prigogine Ciência, Razão e Paixão (2009), Tereza Vergani em A criatividade como destino: transdisciplinaridade, cultura e educação (2009), Frans de Wall com Eu, primata, por que somos o que somos (2007), Henri Atlan em A ciência é inumana? Ensaio sobre a livre necessidade (2004), Basarab Nicolescu no texto Morte e Ressureição da Natureza (2003), Georges Balandier com O Dédalo – para finalizar o século XX (1999), Edgar Morin em O método 3 (2001), O método 4 (2001) e O método 6 (2005), Boris Cyrulnik: O homem, a ciência e a sociedade (2004), Claude Lévi-Strauss com o clássico As estruturas elementares do parentesco (1992), Edgard Carvalho com A natureza redescoberta (2009), Conceição Almeida e o ensaio Borboletas, homens e rãs (2002), Michel Serres n’O incandescente (2005), Bruno Latour com Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica (1994) eram pensadores presentes na bibliografia de referência do curso, dos quais apenas uns três ou quatro desses nomes eu conhecia minimamente e já tinha feito alguma leitura. Foi justamente na disciplina da graduação citada anteriormente que conheci alguns desses autores que constavam no programa da disciplina do mestrado. A reação imediata foi pensar o seguinte: O que estava fazendo naquele lugar? Fiz a matrícula na disciplina que queria? A disciplina é Teorias Contemporâneas da Cultura? Ao final do primeiro encontro a confusão estava instalada nos meus pensamentos. Junto com um colega de mestrado 30 começamos a nos questionar se o nosso lugar era mesmo ali. Se havíamos feito a escolha correta da disciplina diante daquele quadro de opções que nos foi apresentado para matrícula. Mesmo apesar do impacto do primeiro encontro, felizmente continuamos. No final da disciplina, depois da abordagem de temas como: a dimensão humana; cultura e resiliência; fundamentos da cultura; diversidade cultural; panorama da cultura no século XX e XXI; cultura científica e cultura humanística; cultura como linguagem, regra e comunicação entre outros e da participação ao longo do curso de Edgard Carvalho, Boris Cyrulnik, Wani Pereira e Ubiratan D’Ambrósio, me sentia completamente deslocado, mas ao mesmo tempo em êxtase com os temas e as discussões proporcionadas. Se entre os objetivos da professora estava o de nos tirar do lugar comum e o de nos provocar um deslocamento, ela realmente conseguiu. Cheguei ao final do curso encantado pelas discussões e pela postura ética como a disciplina havia sido conduzida. Saí com uma compreensão da cultura como sendo construída por um conhecimento transdisciplinar e complexo, aberto e inacabado. As palavras de Conceição Almeida num pequeno texto ao apresentar a disciplina resume bem à forma como passei a perceber a cultura: O fenômeno da cultura passa a ser agora compreendido como simultaneamente biológico, simbólico, histórico, metahistórico, uno e diverso, padrão e desvio, singular e universal, consciente e inconsciente, material e imaterial, psicológico e espiritual, imanente e transcendente, físico e metafísico, cognitivo e précognitivo (ALMEIDA, 2009, p. 1). Foi a partir dessa dimensão que passei então a enxergar o fenômeno da cultura como algo para além do social e histórico. Esse caminho que eu mesmo escolhi Por que pensar então sobre a condição humana a partir do diálogo com a complexidade? Conhecer o humano é situá-lo no universo, como 31 afirma Morin (2012a). É compreender em sua singularidade, em sua inscrição local um universo particular. A questão “Quem somos nós?” é inseparável de outras como “Onde estamos?”, “De onde viemos?”, “Para onde vamos?”. De pretenso escritor a produtor de discos, de compositor a cantor de iêiêiê realista como costumava dizer, o canceriano Raul Santos Seixas, por exemplo, afirmava que sua personalidade era impossível de definir com palavras. “Sou um monte de coisas, partículas juntas que formam Raul Seixas” (SEIXAS. In: SOUZA 1993, p. 15). Edgar Morin reitera a perspectiva pela qual o ser humano nos é revelado na sua complexidade, ou seja, ao mesmo tempo biológico e totalmente cultural. O cérebro por meio do qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão com a qual escrevemos, são órgãos totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, totalmente culturais. O que há de mais biológico – o sexo, o nascimento, a morte – é, também o que há de mais impregnado de cultura. Nossas atividades biológicas mais elementares – comer, beber, defecar – estão estreitamente ligadas a normas, proibições, valores, símbolos, mitos, ritos, ou seja, ao que há de mais especificamente cultural (MORIN, 2012a, p. 40). O conceito de homem tem uma dupla entrada: uma biofísica e uma psicossociocultural. Duas entradas que se remetem segundo Edgar Morin. Como podemos então problematizar a condição humana? Como explicar a relação natureza e cultura, a vida social e a riqueza da sua diversidade? Mais uma vez pergunto: Por que pensar sobre a condição humana a partir de diferentes expressões e manifestações promovidas pela arte? Nesse caso, pela poesia e pela música. Paradoxalmente, são as ciências humanas que, no momento atual, oferecem a mais fraca contribuição ao estudo da condição humana, precisamente porque estão desligadas, fragmentadas e compartimentadas. Essa situação esconde inteiramente a relação indivíduo, espécie, sociedade, e esconde o próprio ser humano. Tal como a fragmentação das ciências biológicas anula a noção de vida, a fragmentação 32 das ciências humanas anula a noção de homem (MORIN, 2012a, p. 41). Para Morin, seria preciso conceber uma ciência antropossocial religada, que concebesse a humanidade em sua unidade antropológica e em suas diversidades individuais e culturais. Religar a cultura científica e cultura humanística como condição fundante para a compreensão do humano. Contrário a rótulos e classificações, algo que destetava, Raul Seixas sempre se questionava quem era. Onde estava metido esse Raul que ele mesmo não sabia responder. Dizia que não estava ali ou aqui, muito menos nos rótulos prontos para serem usados. Era inclassificável. Onde está Raul? No intelectual? No menino família? No hippie, no político? No eterno hipocondríaco? No sensual? No estudante de filosofia? No compositor popular? Ou quem sabe no poeta modernista? No cínico? No produtor de discos? No professor de inglês ou no niilista? No pára-raio das angústias de outrem? No confessor eterno? No cantor de folk songs? No revolucionário (ou nesse liberal moderno)? No esteta? No apático? No descontente? No neurótico? No covarde? Ou no valente? No ateu ou no que tem medo de almas do outro mundo? No homem frio e impassível? Ou por detrás dos olhos do menino romântico assustado? No agnóstico? No boêmio apaixonado?... No psicólogo, no libidinoso e pornográfico? (SEIXAS, In: SOUZA, 1993, p. 28). O paradoxo da condição humana é fundamental e pertinente para pensar a figura do artista e sua produção poético-musical. Ele dizia que expressava tudo nas letras de suas músicas. Que a letra das músicas era uma manifestação muito pessoal da situação de suas vivências e experiências. Ou seja, de como ele via e sentia e de como deveria dizer sobre as coisas, ou simplesmente não dizer nada (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 76). Não dizer nada não fazia o estilo do cantor. Sua poesia sempre estava afiada, pronta para dizer algo para o mundo. A letra da música “Mosca na Sopa”, presente no LP Krig-Ha, Bandolo! de 1973, disco de estreia da carreira solo do cantor, reflete características desse espírito que fazia parte da atitude do artista. De dizer aquilo que queria 33 por meio da sua música. De fazer da sua guitarra uma espada na mão e do rock o seu grito. Eu sou a mosca que posou em sua sopa Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar Eu sou a mosca que perturba o seu sono Eu sou a mosca no seu quarto a zumbizar E não adianta vim me detetizar Pois nem o DDT pode assim me exterminar Porque você mata uma e vem outra em meu lugar Atenção, eu sou a mosca A grande mosca A mosca que perturba o seu sono Eu sou a mosca no seu quarto a ZUMZUMZUMzumbizar Observando e abusando Olhe pro lado agora! Eu tô sempre junto de você Água mole em pedra dura Tanto bate até que fura Quem-lhe? Quem-lhe A mosca, meu irmão Mosca na Sopa, Raul Seixas, Krig-Há, Bandolo! – 1973. Raul era a verdadeira mosca na sopa. Estava sempre a perturbar aquilo ques estava estabelecido. Sua poesia e música refletiram os inúmeros sentimentos e características que compõem a condição humana. Retomo mais uma vez a pergunta: Por que então pensar sobre a condição humana a partir do diálogo com as ciências da complexidade? O 34 pensamento complexo religa diferentes áreas do conhecimento, aceita o paradoxo, a incerteza e o inacabamento como propriedades dos fenômenos e do sujeito observador, admite o erro e a existência de uma linha tênue entre realidade, ilusão, ficção. A complexidade pode ser compreendida como um estado de ser dos fenômenos, mas também como uma estratégia de pensar, um desafio que a mente pode e deve ultrapassar. Uma perspectiva de ler e narrar o mundo, onde o princípio da incerteza está tatuado (ALMEIDA, 2012a). Nada mais pertinente do que pensar sobre Raul e sua música a partir das noções de incerteza, inacabamento, ilusão, ficção e realidade. O artista produziu tudo isso. A pesquisa caracterizada pelo pensamento complexo, como afirma Conceição Almeida (2012b), apresenta um método que escapa do chamado modelo-padrão para a compreensão da realidade, exige um olhar para o nosso próprio olhar, exige a nossa inclusão em nossa visão de mundo, exige compreender a importância do desvio e do aparentemente insignificante. O método complexo se apresenta como estratégia, como algo em construção, inacabado, que se transforma, ou seja, como um método vivo que religa saberes e supera a cisão entre cultura científica e cultura humanística. Morin, Ciurana e Motta (2003), ao caracterizarem o método complexo, apresentam o método como uma disciplina do pensamento. Algo que deve ajudar a qualquer um a elaborar sua estratégia cognitiva, situando e contextualizando as informações, conhecimentos e decisões. O método é estratégia inteligente para dar respostas às incertezas. Em seu diálogo, o pensamento complexo não propõe um programa, mas um caminho (método) no qual ponha a prova certas estratégias que se revelarão frutíferas ou não no próprio caminhar dialógico. O pensamento complexo é um estilo de pensamento e aproximação da realidade. Nesse sentido, ele gera sua própria estratégia inseparável da participação inventiva daqueles que o desenvolvem (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 31). 35 Desde meu ingresso no doutorado, duas mudanças se apresentaram como relevantes para a atitude que passou a ser posta em prática na relação com o fenômeno a ser estudado. A primeira diz respeito a uma ampliação significativa do conhecimento e da fundamentação epistemológica que iluminou o presente trabalho. E como reflexo da primeira, a segunda refere-se ao método, o caminho que foi construído para aproximação da realidade estudada. Meu impulso inicial foi estabelecer algo programado sobre o que fazer com o fenômeno e o chamado objeto de pesquisa. O que se instalou nesse impulso primeiro foi o método como programa, ou seja, como um conjunto de receitas para chegar a um resultado previsto. Um conjunto de regras certas e permanentes, passíveis de serem seguidas mecanicamente (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003). A princípio, estabeleci o que fazer com a obra de Raul Seixas, determinando de imediato como trabalhar com o referido material que tinha em mãos. Naquele momento não deixei a obra falar, cantar. De forma impositiva já fui logo estabelecendo o que e como iria fazer. Silenciei a música de Raul. Porém, uma inversão da lente, uma mudança de rota provocada por um aprofundamento epistemológico do fazer científico guiado pela complexidade, que aponta para a necessidade de um sujeito pensante e estrategista, transformou a minha relação com o fenômeno estudado. Ao invés de dizer o que e como fazer, a imersão na referida obra artística fez com que eu vivenciasse o método como estratégia, ou seja, o método como caminho, que se refaz ao caminhar. A partir daí, percebi que determinar um programa como receituário a ser reproduzido para utilizar na pesquisa, estava fadado ao fracasso. Reproduzir mais do mesmo não agregaria conhecimento novo. A entrada e o mergulho na obra de Raul, provocaram e acenderam outras questões, pulsões, problemas, temas que até então não haviam se revelado. O método passou a ser visto por mim como um operador gerador de suas próprias estratégias, que nos ajuda a conhecer, como algo que surge durante a pesquisa. 36 O programa constitui uma organização predeterminada da ação. A estratégia encontra recursos, faz contornos, realiza investimentos e desvios. O programa efetua a repetição do mesmo no mesmo, ou seja, necessita de condições estáveis para a sua execução. A estratégia é aberta, evolutiva, enfrenta o imprevisto, o novo. O programa não improvisa nem inova, mas a estratégia sim. O programa só pode experimentar uma dose fraca e superficial de riscos e de obstáculos em seu desenvolvimento... A estratégia tira proveito de seus erros. O programa necessita de um controle e de uma vigilância. A estratégia não só necessita deles, mas também a todo momento, de concorrência, iniciativa, decisão e reflexão (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 29). A minha relação com o método foi então modificada. Procurei me desvencilhar do método como programa e comecei a construir minhas próprias estratégias de pesquisa. A estratégia passou a compor a tessitura da pesquisa e a própria escrita da tese. Isso foi determinante para a realização do trabalho. Experimentar estratégias que me conduzissem a pensar de forma mais original sobre o fenômeno. Passei a mergulhar nas composições (letras e músicas) da discografia do artista. Do primeiro ao último álbum lançado em vida, foram quase duzentas composições ouvidas, lidas, relidas, recitadas, cantadas e reproduzidas incontáveis vezes nas mais diferentes plataformas de música. Discos de vivil, CD’s, You Tube, Spotify foram as plataformas onde pude escutar repetidas vezes o repertório do artista. Deixei a obra falar. Deixei Raul cantar. As leituras das composições, a escuta repetida das músicas foram imprescindíveis na busca do entendimento da condição humana no interior de suas canções. Deixei a voz e o som ecoarem para que eu pudesse entrar na obra do artista. Para que pudesse tentar ser o próprio Raul Seixas. O aprofundamento na obra do cantor provocou ao mesmo tempo um conhecimento relevante sobre a sua condição artística e poética e a compreensão das músicas como operadores cognitivos importantes para as reflexões que foram levantadas no percurso da pesquisa. Ainda que a matéria-prima principal para o desenvolvimento do trabalho tenha sido as 37 letras da sua extensa discografia, outros elementos foram fundamentais na aventura de conhecer a vida, a poesia e a música do cantor. A nova imersão no itinerário da vida e obra do artista contou também com um conjunto de leituras relacionadas a sua produção musical e pessoal. Livros biográficos, livros contendo transcrição de entrevistas a diversas rádios e programas de televisão de diferentes emissoras, livro com o conjunto3 das suas composições, livros com escritos pessoais (diários) que trazem rabiscos, anotações, reflexões, poesias e textos de autoria de Raul mas que foram organizados por outras pessoas. Livros que discutem algum aspecto e fragmento referentes à sua vida e obra, além de dois documentários sobre a sua trajetória artística: 20 Anos Sem Raul Seixas (MZA Music, 2009), produzido por Marco Mazzola, que traz o DVD Documento Histórico Raul Seixas Também é Documento de 1998, dirigido por Paulo Severo. E um filme mais recente, Raul – O início, o Fim e o Meio (Paramount, 2012), dirigido por Walter Carvalho, que retrata a trajetória do cantor por meio de imagens raras de arquivo, encontros com familiares, conversas com artistas, produtores e amigos. A sequência da tese reflete um conjunto de metamorfoses que o projeto de pesquisa inicial apresentado ao PPGCS da UFRN vivenciou nesse percurso de quatro anos do doutorado. Reflete também a contribuição direta ou indireta de outros trabalhos desenvolvidos no GRECOM, que identificam na música uma forma de leitura do mundo e uma narrativa fundamental para compreensão da condição humana e de diversos outros fenômenos. Portanto, os estudos e pesquisas que têm por referência a música, a noção de complexidade e a concepção de cultura como fenômeno caracterizado pela universalidade e diversidade da condição humana, foram referências para o trabalho. Como, por exemplo, a tese “Compor e educar para descolonizar”, de autoria do historiador e professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Carlos Alberto Pereira da Silva, defendida no 3 O livro “Raul Seixas: uma antologia” (1992,) escrito e organizado por Toninho Buda e Sylvio Passos, contém todas as letras das composições gravadas por Rau Seixas na sua discografia. 38 Programa de Pós – Graduação em Educação da UFRN em 2009. O autor apresenta a noção de DESdesenvolvimento como um operador cognitivo potencializador da descolonização do imaginário. Tal noção é construída através de diversas canções de compositores brasileiros para elaborar alternativas de sair da dominação de um imaginário colonizador presente, segundo o autor, nas ideias e na perspectiva de desenvolvimento existente no Brasil nas últimas quatro décadas. Outro trabalho inspirador e que aposta na música como fonte inesgotável de aprendizagem e na experiência musical como importante na formação humana é a dissertação “Bandas de Música, Escolas de Vida”. De autoria do professor da Escola de Música da UFRN, Ronaldo Ferreira de Lima, a dissertação foi defendida no PPGCS da referida universidade e transformada em livro no ano de 2015, como obra integrante da Coleção Saberes da Tradição, do GRECOM. A partir da história e do percurso da formação musical de duas experiências: a da Filarmônica Hermann Gmeiner do “Projeto Aldeia SOS” de Caicó - RN e da Filarmônica 24 de Outubro do município de Cruzeta – RN, o autor problematiza a compreensão do percurso da aprendizagem musical de crianças e jovens das referidas filarmônicas. Realiza tal reflexão através do diálogo música e complexidade, abordando assim os aspectos da condição humana presentes na experiência musical. Tal qual o protagonista da pesquisa desenvolvida para o doutorado, as transformações e as mudanças foram constantes no decorrer dessa trajetória. O presente texto traz além desse prelúdio, mais quatro faixas da narrativa musical que foi composta nesta jornada artística, científica, poética, musical sobre a condição humana. Definido pelo Dicionário Miniaurélio (2001) como ato ou exercício prévio, ou em se tratando de música como introdução de uma obra musical, o prelúdio representa aqui a primeira faixa e se caracteriza por trazer: os sentimentos que tomaram conta de mim na escritura da tese; as motivações que me levaram a escolha do tema de pesquisa; a inserção do tema enquanto problemática nas ciências da complexidade e a relação desse trabalho com outras pesquisas já realizadas no GRECOM; além dos aspectos 39 referentes ao método como estratégia no processo de imersão no repertório musical do artista e a narrativa do texto a partir da composição da tese naquilo que estou denominando de faixas4. Na segunda faixa, proponho discutir as mudanças, as transformações, as contradições, a ambiguidade e a metamorfose como características fundamentais da nossa condição de humanidade e da nossa relação com o universo. Por meio do diálogo entre Edgar Morin (2012b), Conceição Almeida (2012a) e Raul Seixas a partir de suas composições, anotações e impressões sobre a vida, problematizo o que é ser humano a partir da condição de sermos Ssapiens sapiens demens e do próprio Raul como sendo um ser dotado de música e poesia. Na terceira faixa faço uma apresentação do itinerário da trajetória musical de Raul Seixas levando em consideração a sua construção como artista e a produção de sua obra. Como ele diz na música “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor”, afirmava não ter nada a ver com a linha evolutiva da música popular brasileira. Porque a única linha que conhecia era a linha de empinar uma certa bandeira. A quarta faixa discute a concepção de sujeito e a noção de homem genérico propostas por Edgar Morin a partir da ideia de Homo complexus por meio da narrativa musical (COMPOSIÇÕES) e pessoal de Raul Seixas. Portanto, problematizo a figura do artista através da concepção complexa de sujeito e das categorias de universalidade e singularidade propostas por Morin (1996), (2012b). Procuro tensionar onde o cantor e sua obra poética se universaliza e se singulariza. Por fim, a última faixa tem como proposta a tentativa de elaboração de um manifesto da revolta. De acordo com Edgard Carvalho (2012a), a palavra revolta significa originalmente interrogação, renovação e renascimento. Essas três palavras expressam de forma visceral os fundamentos da obra e da vida de Raul Seixas. Nesse sentido, a partir da condição humana revelada pela sua obra artística, pela contemporaneidade (AGAMBEN, 2009) de suas ideias 4 Os títulos dos capítulos e dos tópicos fazem referência as composições de Raul. 40 e inspirado no livro A utilidade do inútil de Nuccio Ordine (2016), o manifesto presente nesta tese procura refletir sobre as possibilidades e a necessidade de mudanças de atitudes dos seres humanos frentes aos desafios que se impõem no nosso tempo. Mas como provocar essa mudança? A resposta talvez esteja na poesia, na música, na sonoridade das palavras. Toca Raul! 41 METAMORFOSE AMBULANTE Prefiro ser essa metamorfose ambulante Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Quero dizer agora o oposto do que eu disse antes Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Sobre o que é o amor Sobre que eu nem sei quem sou Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor Lhe tenho amor Lhe tenho horror Lhe faço amor Eu sou um ator É a um objetivo num instante Eu quero viver nessa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Vou desdizer aquilo tudo que eu lhe disse antes Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Do que ter aquela velha opinião formada... Do que ter aquela velha... Raul Seixas, Krig-Ha, Bandolo! 1973. 42 O que é ser humano? O que é a condição humana? Como reconhecer a humanidade? Como caracterizá-la? Como decifrá-la? Como compreendê- la? Afinal, de que somos feitos? É possível refletir sobre a condição humana a partir da vida de um indivíduo? Raul afirmava: “O Universo me espanta e não posso imaginar que este relógio exista e não tenha um relojoeiro” (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 184). Podemos a partir dessa afirmação problematizar a nossa relação com o universo. E perceber o quanto fomos ao longo do tempo desconectados e apartados dele. Como seres integrantes desse univervo, fomos sendo separados da sua composição. Figura 2 - Raul segurando objeto semelhante a um relógio despertador Fonte: www.google.com.br 43 O primeiro grande desafio é reconhecer e aceitar que há ausência de uma compreensão complexa do mundo e do próprio ser humano. Fomos apresentados desde muito cedo à fragmentação, à separação, ao esgarçamento entre o ser humano e a natureza e assim fomos ensinados à simplificar a nossa existência no mundo. Isso se tornou a regra. O cenário científico atual tem contribuído para isso. A ciência tem caminhado para uma especialização e fragmentação do conhecimento que reforça a separação da cultura científica da cultura humanística, o que amplia ainda mais a simplificação sobre a compreensão do que somos. No geral, não nos vemos no universo. Não identificamos o nosso lugar nesse complexo que é esse desconhecido e nos contentamos com as explicações rasas sobre o que nos define. Aqueles que escapam a essa lógica compreendem que a vida é muito mais e muito menos do que se pode imaginar e que a nossa relação com a natureza e o cosmos é fundante da condição humana. Raul não se contentava com o que estava dado. Parecia sempre através da música buscar explicações para os mais diferentes fenômenos que afligem a condição humana. Sempre buscava explicação para tudo. A separação da cultura científica e a cultura das humanidades têm dominado, nas palavras de Edgard de Assis Carvalho, o panorama atual da ciência e suas pesquisas. Com isso, o sujeito e o objeto permanecem estranhos um ao outro. Redutos de um poder sem poder, o pensamento disciplinar impede a concretização de uma política de civilização, não decifra o enigma do homem, não contribui para a construção da democracia cognitiva (CARVALHO, 2012b, p. 134). É o modo de conhecimento que inibe assim nossa possibilidade de conceber o complexo humano e decifrar o enigma do homem e do universo. É na contradição de que quanto mais conhecemos menos compreendemos o ser humano que essa ciência fragmentária se alimenta. O que faz o homem 44 permanecer esse desconhecido para si mesmo. Hoje mais por má ciência do que por ignorância (MORIN, 2012b, p. 16). Há urgência de uma nova articulação do saber e de uma reflexão fundamental do conhecimento do conhecimento. Contrariando e rejeitando a ideia de um pensamento mutilador, que divide, separa, fragmenta e empobrece a compreensão da realidade, Edgar Morin, ao tratar do problema epistemológico da complexidade nos traz as explicações sobre as condições bioantropológicas da construção do conhecimento. Por meio da biologia fundamental do conhecimento e das condições socioculturais onde esse conhecimento é produzido, Morin (2002) nos aponta a compreensão da nossa condição de sermos ao mesmo tempo biológicos e culturais. O pensamento do autor nos leva a tomada de consciência dos limites do nosso conhecimento. Revelando-nos que essa busca não é um exercício simples. É uma jornada onde o princípio da incerteza, segundo o próprio Morin (2002), está inscrito na natureza do conhecimento. A relação do homem com a natureza não pode ser concebida de forma reducionista, nem de forma disjuntiva como aponta o autor. Não podemos eliminar o ser humano do universo. A humanidade é uma entidade planetária e biosférica. Precisamos de um pensamento que tente juntar e organizar os componentes da complexidade humana. Precisamos de um diálogo plural entre diferentes saberes e áreas do conhecimento científico. “O ser humano, ao mesmo tempo natural e supranatural, deve ser pesquisado na natureza viva e física, mas emerge e distingue-se dela pela cultura, pensamento e consciência” (MORIN, 2012a, p. 40). Portanto, como afirma Edgar Morin (2012a), a Terra é a totalidade complexa físico-biológica-antropológica, onde a vida é uma emergência da história da Terra, e o homem uma emergência da história na vida terrestre. Devemos pensar a vida na vida. Entender que somos um caso possível na história do universo. Dele fazemos parte. E trazemos conosco todas as transformações, mudanças, contradições, ambiguidades e bifurcações existentes nessa relação. 45 Reconhecendo e admitindo essa condição, o segundo grande desafio é justamente a urgência em reverter essa nossa disposição à simplificação e esse empreendimento a fragmentação e ao reducionismo que fomos aprendendo a executar, a reproduzir e a transmitir. É necessária uma nova articulação do saber e de uma reflexão fundamental sobre a condição humana que seja contrária e rejeite a ideia de um pensamento fragmentáro, que divide, separa e reduz substancialmente a compreensão do próprio homem. Superar essa fragmentação é importante para entender a complexidade da vida e do ser humano. Esse conhecimento do humano deve ser, como diz Edgar Morin (2012b): mais científico, mais filosófico e muito mais poético. Acrescento, mais musical também. Uma articulação entre diversos saberes é condição chave para a compreensão da humanidade. É o que propõe essa tese. Uma articulação entre arte e ciência através da música como forma de religar e compreender a realidade e a experiência da existência humana no universo. E sobre o que é ser humano. No livro Os Sete Saberes Necessários a Educação do Futuro (2000), Edgar Morin coloca como imperativo fundamental para o presente e para o futuro, ensinar a condição humana. Resgatar a unidade comum da humanidade e reconhecer a diversidade cultural a tudo que é humano como sendo um operador cognitivo fundamental para acionar o pensamento reflexivo sobre a nossa condição. É preciso reconhecer que há uma unidade humana e há uma diversidade humana. Essa equação complexa precisa ser ensinada e compreendida. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, a multiplicidade do uno (MORIN, 2000, p. 56). Conceição Almeida atribui à diversidade cultural a nossa maior dádiva no projeto do inacabamento do humano, afirmando que a cultura como um conjunto de saberes, fazeres, regras, crenças, estratégias e mitos, se expressa 46 pela diversidade, criatividade e inovações. “Em síntese, a condição humana diz respeito a um indivíduo que é, ao mesmo tempo, pó de estrelas e o único animal que sonha acordado e cria sua história, alimenta seus mitos e projeta futuros” (ALMEIDA, 2012a, p. 173). Podemos pensar e refletir sobre quem somos e sobre as nossas atitudes e ações no decorrer da vida. Podemos pensar sobre o próprio pensamento. Raul foi esse ser. Evidenciou como ninguém esses elementos de animalidade e humanidade que nos constituem. Demonstrou como poucos o quanto o termo humano é rico, contraditório e ambivalente. Na poesia denominada “No Espelho”, expõe esse indivíduo que se interroga sobre sua condição e que busca uma posição no mundo: Às vezes quando me olho no espelho Sinto medo. Medo de mim. Eu não me conheço Sou esquisito, sou humano Uso óculos, como, bebo, fumo, Defeco Mijo Olho-me no espelho E esse dá-me de volta quem sou Duas longas coisas saindo do corpo: São braços, pêlos, peles, nariz pontiagudo. Duas orelhas presas na cabeça Olho os dedos. Meus olhos me assustam... ... Faço abstração mental de que eu nunca vi... E continua a se questionar sobre aquela imagem que vê diante do espelho. Procura-se no espelho e não acha. Vê a existência de um ser humano mais acha esquisito. “É realmente esquisito”. E sentencia: “Eu sei que eu não sou aquilo e o que eu sou, o espelho não pode me mostrar... AINDA... eu não brilho... Ainda...” (SEIXAS. In: SEIXAS, 1996, p. 12). 47 Raul parece expor através do espelho nos faltar algo para compreender quem somos. Expõe a nossa incompletude e o nosso inacabento. O olhar no espelho e não se enxergar é sintomático do nosso distanciamento com o universo, com o mundo e com nós mesmos. Apesar de estarmos, ao mesmo tempo, dentro e fora da natureza e de sermos seres simultaneamente, cósmicos, físicos, biológicos, culturais, cerebrais, espirituais, não temos consciência de nosso enraizamento com a Terra e menos ainda com o cosmo. Não compreendemos que somos filhos do cosmo, mas, até em consequência de nossa humanidade, nossa cultura, nosso espírito, nossa consciência, tornamo-nos estranhos a esse cosmo do qual continuamos secretamente íntimos. Nosso pensamento, nossa consciência, que nos fazem conhecer o mundo físico, dele nos distanciam ainda mais (MORIN, 2012a, p. 38). Trazemos dentro de nós o mundo físico, o mundo químico, o mundo vivo, mas, não nos damos conta que deles estamos separados. O tornamos invisíveis. Temos a capacidade de conhecer esses mundos, mas nos recusamos a visitá-los e a compreendê-los como parte integrante deles. Continuamos pela ignorância, pelo comodismo e pelo reducionismo que fomos ensinados a pensar, a afastá-los e invisibilizá-los. Distanciando-nos cada vez mais desse complexo que é a vida e o ser humano. Seguindo as pegadas e as pistas deixadas por Edgar Morin, percebemos que nosso pensamento, nossa consciência, nossa cultura são responsáveis por nos guiar para longe do universo e para o desenraizamento do cosmo, da vida, da Terra. É preciso se reconectar a esses elementos. A existência humana não faz sentido se não conseguirmos entender essa relação que caracteriza a nossa vida. Abrir-se ao cosmo é entrar na aventura desconhecida, onde talvez sejamos, ao mesmo tempo, desbravadores e desviantes; abrir-se a physis é ligar-se ao problema da organização das partículas, átomos, moléculas, macromoléculas, que se encontram no interior das células de cada um de nós; abrir-se 48 para a vida é abrir-se também para as nossas vidas (MORIN, 2012a, p. 36). Isso resultaria numa contribuição para a formação de uma consciência humanística e ética de pertencer à espécie humana, que só pode ser completa com essa consciência de caráter matricial da Terra para a vida, e da vida para a humanidade. Daí a necessidade de ensinar a condição humana. “Nós, seres vivos, por consequência os humanos, filhos das águas, da Terra e do Sol, somos uma formiga, talvez um feto, da diáspora cósmica, algumas migalhas da existência solar, um frágil broto da existência terrestre” (MORIN, 2012b, p. 26-27). É necessário retomar esse enraizamento com a Terra, o universo e a vida. No refrão da música “S.O.S.”, Raul pede ao disco voador que o leve para o encontro de outras estrelas. Como se implorasse para se conectar com aquilo que nos foi distanciado, pede que o leve a outros mundos, outros lugares, outros universos. Ô Ô Ô seu moço do disco voador Me leve com você, prá onde você for Ô Ô Ô seu moço, mas não me deixe aqui Enquanto eu sei que tem tanta estrela por aí S.O.S, Raul Seixas, Gita, 1974. Conhecer tantas outras estrelas por aí e outros planetas, revelam a condição do artista de buscar a compreensão dos mistérios da vida e da existência humana. Ficar por aqui alheio ao que se passa no universo não faz sentido para Raul. No texto “Pouso Pacato em Plutão” (1969) diz: Estou perdido na varanda de Mercúrio sem asas para perseguir o meu eco... Sentado, sozinho, sem medo de cair, às sete horas de cores e uma mistura, eu pouso pacato em plutão, montado numa borboleta gigante, tranquila, quieta e colorida... (SEIXAS. In: SEIXAS, 1996, p. 72). 49 Desejava pegar um disco voador e ir embora conhecer o desconhecido. Mas enquanto o disco não vinha continuava a fazer careta no espelho como ele afirmava. Continuava a produzir poesia e canções. Apontando para um conhecimento que respeite a identidade complexa do humano a partir das mais variadas faces do homem, Margarida Knobbe afirma que a condição humana se manifesta em variadas intensidades a depender do fenômeno em estudo e que não é um conceito abstrato nem algo que se pegue: “Ela é uma correlação de forças físicas, biológicas, psíquicas, culturais, sociais, históricas – que inventa modos de existência” (ALMEIDA; KNOBBE, 2003, p. 135). Existir talvez tenha sido um grande fardo para o artista. Numa poesia, chamada de “Espelho Eu a Vaeras” (1984), Raul continua a questionar aquilo que vê diante do espelho: Espelho eu Será que sou aquele que estou vendo Em frente a mim e diante do espelho? Ou aquele que nunca quis ver, Eu mesma. Será que sou assim como me vejo? Magro, bêbado, belo e feio... E finaliza afirmando: “Além de homem, bêbado/ É meu amado que estou vendo em mim/ É o meu próprio eu, / Sou assim” (SEIXAS. In: SOUSA, 1993, p. 166). Mesmo com tanta insistência ao espelho, o mistério parece não ser decifrado. As perguntas teimam em continuar. O reflexo ainda está embaçado e confuso. As dúvidas persistem em permanecer. O desconhecido teima em desafiar as interrogações do cantor. A trajetória de Raul Seixas demonstrou na sua breve passagem por esse mundo que o ser tem várias vidas, desempenha diferentes papéis e vive a existência em parte de fantasias, em parte de ações. O seu cancioneiro e a 50 sua poesia nos permite inserir e situar a condição humana no cosmo, na vida, na Terra e ao mesmo tempo, na cultura, na sociedade, na história, na estética. Como nenhum outro compositor, foi produto e produtor de sua música, de sua obra, de sua vida. Foi criador e criatura da sua existência, da sua arte. Soube compreender e manusear como poucos o fato de ter consciência de sua própria consciência, característica fundamental da nossa condição e emergência extraordinária da mente humana. Talvez por isso, achava mais difícil fazer o próprio papel na vida do que encarnar outros personagens. Era mais difícil ser Raul Santos Seixas do que simplesmente Raul Seixas. Ou seria o contrário? Em relação à consciência, por exemplo, disse: Sendo esta consciência a única coisa perfeita e original em cada ser humano, sinto que ela não é somente particular a cada indivíduo; existe uma consciência geral e comum a todos. A ‘Grande Consciência’ perfeita e eterna. O todo da vida. Para uma consciência particular chegar à perfeição total de ser ao ponto de culminar na ‘Grande Consciência, é preciso sentir a importância do fato e dedicar-se apaixonadamente por ‘viver para ser’, já que somos para viver’ (SEIXAS. In: SOUSA, 1993, p. 188). Reconhecia a desumanidade como uma característica humana. Cantou o sofrimento dos humanos submetidos à crueldade do mundo e da vida. Cantou o seu e o nosso sofrimento. Meu sofrimento é fruto do que me ensinaram a ser Sendo obrigado a fazer tudo mesmo sem querer Quando o passado morreu e você não enterrou O sofrimento do vazio e da dor Ficam ciúmes, preconceito de amor... ... Minha cabeça só pensa aquilo que ela aprendeu Por isso mesmo, eu não confio nela eu sou mais eu 51 Sim... pra ser feliz e olhar as coisas como elas são Sem permitir da gente uma falsa conclusão Seguir somente a voz do seu coração... Aquela Coisa, Raul Seixas; Kika Seixas, Cláudio Roberto, Raul Seixas, 1983. A condição Sapiens sapiens demens Somos filhos do tulmulto. O planeta terra nasceu do caos e somos resultados da interação/organização/ordem/desordem. Raul é reflexo desse complexo. O ser humano não é físico somente nas suas partículas, átomos e moléculas: sua auto-organização origina-se de uma organização físico-química tendo produzido qualidades emergentes que constituem a vida, sendo que todas as suas atividades auto-organizadoras necessitam de processos físico- químicos (MORIN, 2012b, p. 27). A vida, portanto, é resultado dessas inúmeras convulsões que ocorreram há bilhões de anos e a humanidade reflete todo esse processo. Nós somos a ressonância desses acontecimentos. Num texto sem título de 1984, Raul se pergunta sobre a natureza do universo. A partir de vários questionamentos problematiza sobre a sua criação, como ele é feito e se temos nós alguma importância para ele. Fo criado por uma entidade divina? Foi um crescimento vindo de um processo gradual? De que ou qual substância o universo é feito? Como é que ele muda? O universo se importa comigo ou com você, ou somos para ele um mero grão de areia duma praia vastíssima? (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 208). E sobre o papel do ser humano no universo, continua a se questionar: “Podemos mudar o universo ao nosso gosto sem que isso interfira profundamente no conceito primordial do qual ele foi gerado? Ou com essa interferência ele nos destruirá?” (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 208). 52 Para o cantor, sempre existiram alguns problemas primordiais que provocaram a mente da humanidade. Além da natureza do universo e qual o papel do ser humano nele, Raul se questiona também sobre o que é bom e o que é mau, qual a natureza de Deus, do livre arbítrio, da liberdade, da mente e da matéria. 3 - O que é bom e o que é mau? Como podemos saber o que é que é bom e o que é que é mau? Foi algo divino que de antemão já tinha estipulado os parâmetros do que seria bem e o que seria mal, ou bem e mal são conceitos de uma cultura local? ... 4 - Qual é a natureza de Deus? Seria Deus um ser muito semelhante ao homem que governa o universo ou um espírito que açambarca tudo? 5 – Livre – arbítrio Somos indivíduos livres que podemos fazer nossas próprias escolhas e determinar nossas atitudes ou somos determinados pelo destino do qual não temos controle algum? Podemos determinar o amanhã ou o amanhã já nos está determinado desde o princípio da vida? (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 208) Em relação à mente e à matéria faz as seguintes perguntas: a matéria é uma criação da mente ou a mente é meramente outro tipo de matéria? Como é que a mente permanece pura e ao mesmo tempo mora dentro de um corpo matéria? O que é e como seria o mundo sem nossa mente? Seria possível conceber essa possibilidade ou isso é completamente impossível? Raul diz que todo ser humano é um filósofo no verdadeiro sentido da palavra. E que todos temos um modo especial de ver o mundo. A filosofia de cada uma seria então o significado que o mundo tem para nós. Como nós o percebemos. Para Conceição Almeida a condição humana poderia ser compreendida, por exemplo, como uma aventura marcada pela conjugação de três esferas: os determinismos (como aquilo que é da ordem do que está posto); as circunstâncias (como aquilo que nos é dado a experimentar na nossa história singular); e as escolhas (a arte estratégica de decidir entre determinismos e circunstâncias) (ALMEIDA, 2012a, p. 153). A partir do diálogo com Morin (2012b), podemos compreender que toda a aventura cósmica, telúrica e biológica parece obedecer a uma 53 dialógica entre harmonia e cacofonia. A condição humana na sua constituição carrega consigo todos os elementos dessa aventura. E o ser humano, a partir das suas aptidões organizadoras e cognitivas, tem a capacidade de criar novas formas de vida, psíquicas, espirituais e sociais que dão ou não sentido à sua existência. Foi isso que Raul fez ao longo de sua vida. Com uma inteligência acima da média e uma percepção nítida e ousada da realidade e do mundo, conseguiu criar diversas vidas e revelar a complexidade da condição humana. Nas palavras de Edgar Morin: Desde essa altura surge a face do homem escondida pelo tranquilizador e emoliente conceito de sapiens. É um ser duma afetividade intensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser gozador, ébrio, extático, violento, furioso, amante, um ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte, mas que não pode acreditar nela, um ser que segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que se alimenta de ilusões e quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas, um ser sujeito ao erro e a vagabundagem, um ser úbrico que produz desordem (MORIN, 1973, p. 108). O ser humano, oriundo dessa aventura, tem a singularidade de ser cerebralmente SAPIENS – DEMENS. Carrega ao mesmo tempo, a racionalidade, o delírio, a hubris, a destrutividade (MORIN, 2012b). Somos, como afirma Conceição Almeida (2012a), um acontecimento chamado homem, uma forma de vida que atende pelo codinome de sapiens sapiens demens. É a partir desses elementos que fundamentamos a nossa condição de humanidade. E mais do que isso, é preciso reconhecer essa nossa condição. Além disso, nossa história é fruto de uma dinâmica complexa que qualifica a condição humana como sendo a permanente oscilação entre forças de emancipação e regressão, ordem e desordem, avanço e retrocesso, vida e morte, repetição e inovação. É a partir do interior mesmo dessa dinâmica complexa que emerge a condição reflexiva dos humanos (ALMEIDA, 2012a, p. 217). 54 Somos sábios e loucos! Somos seres dotado de razão e desrazão; sapiência e demência. Homo sapiens é também Homo demens. Portanto, o ser humano é complexo e traz em si, de modo bipolarizado, características antagônicas, complentares, contraditórias. E graças a essas características foram possíveis os saltos no desenvolvimento da humanidade. Graças à poesia, à música, à pintura, à literatura, às artes, foi possível o desenvolvimento do homem. Graças ao demens, sobretudo, que se devem as rupturas e as brechas por onde o sapiens foi se complexificando. Devemos a desordem os grandes saltos da humanidade. Sendo assim, é necessário pensar que o desfraldamento do imaginário, que as derivações mitológicas e mágicas, que as confusões da subjetividade, que a multiplicação dos erros e a proliferação da desordem, longe de terem constituído desvantagens para o Homo sapiens, estão muito pelo contrário, ligados aos seus prodigiosos desenvolvimentos (MORIN, 1973, p. 109). Seria, como afirma Morin (1973), irracional, louco e delirante ocultar o componente irracional, louco e delirante do humano. E que o século XXI deverá abandonar a visão unilateral que define o ser humano apenas pela sua condição de racionalidade, técnica, utilitarismo e obrigatoriedade. É preciso refletir sobre a condição humana também a partir da sua outra face. Ou seja, do erro, da desordem, da loucura, da fantasia, da poesia, da criatividade. Sem o demens não haveria poesia e música. Sem a desordem estaríamos condicionados eternamente à ordem. Pelo contrário, precisamos de sobrepor a cara séria, trabalhadora, aplicada, do Homo sapiens e cara simultaneamente diferente e idêntica do Homo demens. O homem é louco-sensato. A verdade humana comporta o erro. A ordem humana comporta a desordem. Por consequência, trata-se de averiguar se os progressos da complexidade, da invenção, da inteligência, da sociedade, se efetuaram apesar, com ou por causa da desordem, do erro, da fantasia. E nós responderemos que foi ao mesmo tempo por causa, com e apesar, visto que a resposta adequada só pode ser complexa e contraditória (MORIN, 1973, p. 110-111). 55 Um ser dotado de música e de poesia A música é um componente importante para refletir sobre o demens. A poesia e a diversidade presentes na sonoridade da música de Raul nos leva a essa percepção sobre a condição humana. Da correlação de forças simultâneas que estão presentes em nós e que são ao mesmo tempo diferentes e idênticas, antagônicas e complementares. Na música “Século XXI”, composta em parceria com Marcelo Nova, podemos pensar através da poesia como essa forças racionais e poéticas se comportam. A necessidade de avançar para os novos tempos, mas a incapacidade de reconhecer que os velhos tempos passaram e que devem ficar para traz, são exemplos desse embate. Há muitos anos você anda em círculos Já não lembra de onde foi que partiu Tantos desejos soprados pelo vento Se espatifaram quando o vento sumiu Você vendeu sua alma ao acaso Que por acaso estava ali de bobeira E em troca recebeu os pedaços Cacos de vida de uma vida inteira... ... Você cruzou todas as fronteiras Não sabe mais de que lado ficou E ainda tenta e ainda procura Por um tempo que faz tempo passou... Século XXI, Raul Seixas; Marcelo Nova, A Panela do Diabo, 1989. Raul é um exemplo claro e marcante dessa condição. Era dotado de uma racionalidade que o levava a um conhecimento objetivo do mundo exterior, com capacidade de elaborar estratégias eficazes e realizar análises 56 críticas sobre a realidade. Ao mesmo tempo suas atitudes como artista eram dotadas muitas vezes de uma desmesura. Como compositor e produtor musical, conseguiu captar de forma muito rápida os macetes da indústria fonográfica da época e a lógica comercial do negócio para compor músicas que pudessem vender bem e produzir discos ou compactos que fizessem sucesso e fossem estouro de vendas. Foi um excelente produtor musical. É considerado por quem é do ramo da música como tendo sido um grande profissional de estúdio. Em parceria com o também produtor Mauro Mota, foram responsáveis no início da década de 1970, por inúmeros sucessos da música popular do país. Com seu terninho preto, de óculos e carregando sua mala 007, era considerado por muitos dos artistas contratados da então gravadora CBS o melhor e mais responsável produtor. Raul e Mauro se postavam em todas as fases da produção de um álbum: eram compositores, escolhiam material do álbum, atuavam como diretores criativos, supervisionavam arranjos e fases do processo de gravação e ainda tocavam instrumentos. E bem. (MEDEIROS, 2019, p. 62) Na condição de produtor musical, participava de todo o processo de elaboração do álbum. A racionalidade existente aí e a experiência como produtor foi fundamental na construção mestiça e múltipla do artista Raul Seixas, especialmente no aprendizado em compor canções que se tornassem sucessos de vendas. Como artista, tinha a consciência de que queria deixar a sua marca. Algo que ficasse registrado e demonstrasse a sua passagem por esse mundo. Nunca deixou de sonhar com o sucesso, sempre quis estar em evidência na cena musical. Em determinados momentos da carreira, chega a desabafar em alguns escritos sobre o fato de estar esquecido pela mídia. Num pequeno fragmento escrito de 1982, confessa engolir seus sentimentos, sua arte, suas emoções. O que para ele era assustador. Diz-se profundamente magoado por não ouvir 57 suas músicas tocando nas rádios, nem ser chamado para programas de televisão (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 47). Por mais que detestasse o sistema, queria provocá-lo e enfrentá-lo permanecendo nele. Embora fizesse parte do monstro SIST como ele chamava, soube utilizar de forma inteligente o próprio sistema. Tinha consciência das relações presentes neste espaço. ... O monstro sist. É retado E tá doido pra transar comigo E sempre que você dorme de touca Ele fatura em cima do inimigo A arapuca está armada E não adianta de fora protestar Quando se quer entrar Num buraco de rato De rato você tem que transar... As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, Raul Seixas, Gita, 1974. Raul queria, dentro dessa racionalidade, eternizar a sua obra e o seu trabalho, nem que para isso fosse preciso como fez várias vezes ao longo da carreira, enfrentar os empresários da indústria musical, defendendo sempre suas posições. Teve que jogar o jogo quase sempre no campo do adversário. Como forma de registro de sua mensagem, de posteridade da sua obra, na composição “Geração da Luz” diz o seguinte: Eu já ultrapassei a barreira do som Fiz o que pude às vezes fora do tom Mas a semente que eu ajudei a plantar já nasceu! Eu vou, eu vou m’embora apostando em vocês Meu testamento deixo minha lucidez Vocês vão ter um mundo bem melhor que o meu... 58 Geração da Luz, Raul Seixas; Kika Seixas, Metrô Linha 743, 1984. Ao mesmo tempo também era dotado de desrazão, loucura, delírio, imaginário, lúdico, criatividade, poesia. Algumas músicas do seu repertório, como por exemplo, “Na Rodoviária”, faz inúmeras referências que parecem não fazer sentido algum, não conectar-se a nada, ou simplesmente parecem não querer dizer nada. Aladim, Cinderela, James Dean, Al Capone, Bruce Lee... O oboé e a flauta soam Assim como os sinos ecoam Em ecos nobres procedentes do oriente Nada de novo no front Treze vezes Anteontem Ah, meu Deus O invento da vela Cinderela e Aladim Abracadabra e Abramelin Abre-te Sésamo, James Dean Noves fora zero – Nada Al Capone Bruce Lee Você pode também estar aqui Na lista telefônica Assim como a vela... Na Rodoviária, Raul Seixas; Oscar Rasmussem, Por Quem os Sinos Dobram, 1979. A complexidade do humano se deve, portanto, a essa composição de sabedoria e loucura. De racionalidade e desrazão. No ser humano, como afirma Edgar Morin (2012b), o desenvolvimento racional-empírico-técnico jamais anulou o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético. 59 Raul que o diga! Fez das suas composições um exemplo pertinente da nossa condição de complexidade. Da nossa condição de sermos simultaneamente, sábios e loucos. Suas canções permitem deixar a nu os antagonismos e as contradições da condição humana. Temos lido e reconstruído o mundo a partir do que Conceição Almeida (2012a) denomina de cosmologias imaginárias. Através da música, Raul realizou uma leitura de mundo. A música se tornou para o artista uma espécie de linguagem singular de percepção da realidade. A linguagem, portanto, é a encruzilhada essencial do biológico, do humano, do cultural, do social. A linguagem é uma parte da totalidade humana, mas a totalidade humana está contida na linguagem... A vida da linguagem é muito intensa nas gírias e poesias, nas quais as palavras acasalam-se, gozam, enchem-se de conotações que invocam e evocam, com a explosão de metáforas, o desabrochar de analogias, frases sacudindo as cadeias gramaticais, alçando a liberdade (MORIN, 2012b, p. 37) Raul fez-se na música que o fez. Construiu uma linguagem própria dentro da condição universal da linguagem. Caracterizou-se como alguém que foi possuído pela música, pelos sons. Compunha suas canções e ao mesmo tempo era composto por elas também. Na música “Cantar”, em parceria com Cláudio Roberto, revisita a sua obra e externa a necessidade de cantar por cantar. Eu já falei Sobre disco voador E da Metamorfose que sou Eu já falei só por falar Agora eu vou cantar por cantar... Já fui mosca na sopa Zumbizando em sua mesa Também já fui Maluco Beleza Eu já reclamei só por reclamar 60 Agora eu vou cantar por cantar... Cantar, Raul Seixas; Cláudio Roberto, Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, 1987. Raul, na condição de sapiens-demens, foi um ser dotado de música e poesia. Continua a cantar... 61 AS AVENTURAS DE RAUL SEIXAS NA CIDADE DE THOR Tá rebocado meu compadre Se eu não estiver com Deus, meu Como os donos do mundo piraram filho Eles já são carrascos e vítimas Eu estou sempre aqui de olho Do próprio mecanismo que criaram aberto O monstro SIST é retado A civilização se tornou tão E tá doido pra transar comigo complicada E sempre que você dorme de Que ficou tão frágil como um touca computador Ele fatura em cima do inimigo Que se uma criança descobrir O calcanhar de Aquiles A arapuca está armada Com um só palito para o motor E não adianta de fora protestar Quando se quer entrar Tem gente que passa a vida inteira Num buraco de rato Travando a inútil luta com os galhos De rato você tem que transar Sem saber que é lá no tronco Que está o coringa do baralho Buliram muito com o planeta E o planeta como um cachorro eu Quando eu compus fiz Ouro de vejo Tolo Se ele já não aguenta mais as Uns imbecis me chamaram de pulgas profeta do apocalipse Se livra delas num saculejo Mas eles só vão entender o que eu Hoje a gente já nem sabe falei De que lado estão certos No esperado dia do eclipse cabeludos Acredite que eu não tenho nada a Tipo estereotipado ver Se é da direita ou da traseira Com a linha evolutiva da Música Não se sabe mais de que lado Popular Brasileira A única linha que eu conheço Eu que sou vivo pra cachorro É linha de empinar uma certa No que eu estou longe eu tô perto bandeira Eu já passei por todas as religiões Filosofias, políticas e lutas Aos 11 anos de idade eu já desconfiava Da verdade absoluta Raul Seixas e Raulzito Sempre foram o mesmo homem Mas pra aprender o jogo dos ratos Transou com Deus e com o lobisomem Raul Seixas, Gita, 1974 62 Influenciado pelo que denominava subcultura do rock’n’roll, Raul Seixas afirmava que o rock era o melhor ritmo para se dizer uma porção de coisas. Até tomar consciência disso nunca havia pensado o quanto a música poderia ser um veículo importantíssimo para dizer o que queria. O rock era o melhor som para dizer o que sentia e a música o operador fundamental da mensagem a ser transmitida. Em entrevista a Ana Maria Bahiana realizada em 1975, Raul disse que até que o rock o pegasse, a música era uma coisa secundária. O que o preocupava eram os problemas da vida e da morte, do homem, de onde vim, pra onde vou. “Não que eu não gostasse. Mas era uma coisa intuitiva, e eu só cantava o que me entrava no ouvido, não me preocupava em saber, procurar letra para aprender, nunca fui fã. Apenas cantava” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 13). Raul escutava o que se ouvia em casa. Luiz Gonzaga, música cubana, mexicana, guarânias, carnavais, boleros e o que tocasse no rádio. Seu contato com o rock’n’roll ocorreu praticamente no calor dos acontecimentos que estavam repercutindo nos Estados Unidos em meados da década de 1950. Foi apresentado ao rock graças a sua proximidade com o consulado norte americano em Salvador, Bahia. Tendo como referência os discos e revistas que eram lhe passados às mãos pelos garotos americanos com os quais tinha interação, começou a conhecer o fenômeno musical do rock’n’roll que acabara de nascer na América do Norte e o blues dos negros americanos antes mesmo das músicas terem chegado ao Brasil. Com nove, dez anos passou a falar o que ele denominava de inglês caipira a partir do convívio com os garotos americanos do consulado e graças aos discos de rock que escutava. Tempos depois a música se converte em uma maneira de expressar as inquietações, angústias e interrogações que o acompanharam desde a adolescência. Por volta dos onze anos já estava preocupado com a filosofia sem o saber. Questões de ontologia, metafísica e outras já o incomodavam. Pensava que era maluco e que ninguém queria lhe contar sobre essa condição, confessa numa entrevista a Jay Vaquer em nove de agosto de 63 1972. Ficava sozinho pensando por horas e horas trancado no quarto criando seu próprio mundo. Um mundo interior, desinteressado do mundo externo (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 74). Devido a esse contato com os americanos do consulado passou a ouvir discos de Elvis Presley, Little Richard, Fats Domino, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Gene Vicent, entre outros. Passou a conhecer de fato o rock’n’roll. Eu ouvia os discos de Elvis Presley até estragar os sucos. O rock era como uma chave que abriria minhas portas que viviam fechadas. O rock era muito mais que uma dança para mim, era todo um jeito de ser. Eu era o próprio rock. Eu era James Dean, o Rebel Without a Cause. Eu era Elvis Presley quando andava e penteava o topete. (SEIXAS, In: PASSOS; BUDA, 1992, p. 76). “Foi nesse contato que eu mergulhei no rock’n’roll, como quem acha o caminho, aquele sonho maluco de ser cantor” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 43). Dizia-se atraído pela batida, pelo ritmo tribal que a música provocava. Passava a assumir um comportamento novo produzido pelo descobrimento do rock’n’roll. O que me pegou foi tudo, não só a música. Foi todo o comportamento rock. Eu era o próprio rock, o Teddy Boy da esquina, eu e minha turma. Porque antes a garotada não era garotada, seguia o padrão do adulto, aquela imitação do homenzinho, sem identidade (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 15). O rock passou a ser percebido por Raul como uma porta de saída, como a vez de falar para o mundo, de subir num banquinho e dizer que estava ali. Ser cantor de rock passou a ser seu desejo. Os comportamentos assumidos pela atitude advinda do rock se caracterizavam pela maneira de vestir, pelo modo de falar, de agir e das atitudes que faziam parte da tendência comportamental dos jovens adolescentes da época. Raul, por exemplo, afirmava que era o Elvis Presley quando andava e penteava o topete. Em depoimento a Luciane Alves (1993), a mãe de Raul, Maria Eugênia Seixas afirmou que o adolescente só queria saber de música e namoradas. 64 Encarava o rock’n’roll como uma revolução dos padrões comportamentais, como uma rebeldia pura sem a consciência exata do que se estava fazendo. Mas principalmente, como uma maneira de demarcar uma identidade distinta dos pais. Raul achava que os jovens iriam dominar o mundo e que a revolução seria inevitável. A relação com a música foi ficando cada vez mais intensa. Passou a não frequentar mais escola para ouvir música numa loja de discos em Salvador, o que lhe rendeu várias reprovações no colégio. Sua mãe, no mesmo depoimento a Luciane Alves (1993), diz que Raul foi um ótimo aluno durante o curso primário, o que lhe rendeu algumas medalhas de honra ao mérito. No segundo grau, porém, deu trabalho. Pois foi quando começou a se dedicar profissionalmente a música. Tornou-se um aficionado do rock. Chegou a dizer que nunca aprendeu nada no colégio. Apenas a odiá-lo. “Eu era um fracasso na escola. A escola não me dizia nada do que eu queria saber. Tudo que aprendia era nos livros, em casa, ou na rua” (SEIXAS. In: PASSOS; BUDA, 1992, p. 77). Gostava de ficar em casa lendo e escrevendo. O gosto pela leitura o acompanhou desde cedo e talvez por influência da biblioteca do pai, leu livros de astronomia, sobre o universo e outros mistérios que envolvem a vida. Ler e escrever sempre estiveram presentes na vida de Raul, paixões que o acompanharam por toda a vida. O Livro dos Porquês do Tesouro da Juventude era um de seus preferidos. Além de viver no quarto trancado fazendo suas leituras, desenhava revistas em quadrinhos aos nove anos para vender a seu irmão quatro anos mais novo. Criava, roteirizava a história, desenhava, vendia e lia para o irmão o gibi produzido, e isso lhe rendia alguns trocados da mesada do irmão. Um personagem sempre estava presente nos quadrinhos desenhados por ele. Era um cientista maluco chamado Mêlo que viajava no tempo pelo universo. “Era uma parte de mim, o cara imaginativo, buscando as respostas, o eu fantástico, viajando fora da lógica em uma maquinazinha em que só cabia um só passageiro... Mêlo-eu” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p.13). 65 A ideia de ser escritor como Jorge Amado era algo que lhe atraia muito. Escrever o dia todo, viver dos livros, camisa aberta no peito e um cigarro caindo do lado eram tudo que queria. “Eu achava lindo sentar em frente à máquina com aquela camisa branca bem largona, sabe? Como nas fotos de Jorge amado” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p.129). Foi por meio da música que tomou consciência de que a forma de comunicação proporcionada seria muito mais rápida que a literatura, especialmente num país que não gosta de ler como o Brasil. A música teria uma potência muito maior e mais rápida como forma de dizer de maneira direta o que se pensava. Por meio da música Raul Seixas expunha seu ponto de vista sobre a humanidade. Dizendo o que queria dizer ao mundo pela poesia de suas letras e pela sonoridade de suas músicas. Incitado certa vez a falar de suas composições, Raul disse que era difícil falar das coisas que escrevia, pois o que queria dizer já estava nas letras, já estava lá. Como, por exemplo, na letra da música “Ouro de Tolo” que diz o seguinte em determinado trecho: ...Eu devia agradecer ao Senhor Por ter tido sucesso Na vida como artista Eu devia estar feliz Porque consegui comprar Um Corcel 73 Eu devia estar alegre E satisfeito Por morar em Ipanema Depois de ter passado fome Por dois anos Aqui na Cidade Maravilhosa... 66 ...Eu devia estar contente Por ter conseguido Tudo o que eu quis Mas confesso abestalhado Que eu estou decepcionado Porque foi tão fácil conseguir E agora eu me pergunto "E daí?" Eu tenho uma porção De coisas grandes pra conquistar E eu não posso ficar aí parado... Trecho da letra Ouro de Tolo, Raul Seixas, Krig-Há Bandolo, 1973. A insatisfação, o inconformismo, a crítica à classe média estão evidentes na letra da canção. O que para Raul era difícil de acordo com suas palavras, era dissecar o trabalho numa análise para além do que já estava dito nas letras de suas músicas. “Já está lá. Tudo expresso nas letras” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 76). O início o fim e o meio – Uma narrativa musical 67 Figura 3 - Fotos das capas dos álbuns de Raul Fonte: www.google.com.br Depois de conhecer o rock’ n ’roll, a música tomou outra dimensão na sua vida. Aquele garoto que queria ser um escritor comparável a Jorge Amado conhecera outra paixão. Outra pulsão passou a mobilizar sua vida. A música tomou conta do seu ser. À medida que foi experimentando, vivenciando e aprendendo o novo gênero musical, sentiu a necessidade de dizer coisas, de fazer músicas, o que o levou no final da década de 1950 e início dos anos 1960 na cidade de Salvador a formar seus primeiros grupos de rock. Junto com os irmãos Délcio e Thildo Gama formou o seu primeiro grupo musical: Relâmpagos do Rock. Fez vários shows em clubes de Salvador e chegou a se apresentar na TV Itapoan, onde foram chamados de conjunto de música de cowboy. Um pouco depois, já com outra formação o grupo passa a se chamar The Panthers (Os Panteras). Raul dizia que conjunto naquela época tinha que ter nome de bicho. Raulzito e Os Panteras entraram pela primeira vez no estúdio em 1964 para gravar duas canções: ‘Nanny’, de Gino Frey e ‘Coração Partido’, versão de Raul Varella Seixas, pai de Raul, para a Musiden, cantado por Elvis Presley 68 em Saudades de um Pracinha. O compacto nunca foi lançado, mas o acetato passou a ser executado pelas rádios da época na capital baiana (PASSOS; BUDA, 1992, p. 92-93). O grupo passou a fazer muito sucesso na cidade de Salvador e consequentemente no interior da Bahia. O grupo durou oito anos. No início agente pagava para aparecer na TV, e apresentavam a gente como música de cowboy. Em 1960 o grupo já estava bem melhor, tinha baixo elétrico. Era uma guitarra acústica Del Vecchio pintada de amarelo vivo e cordas de baixo importadas de São Paulo. Foi uma festa quando as cordas chegaram. Bebemos todas as garrafas de vinho do meu pai. Passávamos dias ouvindo discos. Horas e horas pegando detalhes naqueles discos todos arrebentados. A gente viajava pelo interior da Bahia, tocando Rock pelo interior baiano, e as reações das pessoas, quando eu caía no chão com o microfone, era indescritível (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 20). A partir dessa imersão total no rock, abandona o colégio de vez e passa a se dedicar inteiramente a música. Só viria a frequentar a escola tempos depois, para provar ao pai da sua primeira esposa que era fácil ser burro. Influenciado agora não só por Elvis Presley (assistiu O Prisioneiro do Rock 28 vezes), mas também pelos Beatles, passou a sacar como ele mesmo disse que o rock poderia ser usado como um veículo. “Eu usava o rock como revolta, uma revolta irracional. Mas os Beatles canalizaram a coisa, eles mostraram o outro lado de tudo. Me disseram: Vai, entre na máquina, entre na ratoeira, vá lá e faça, curta” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 21). Depois do contato com os Beatles, começou a desenvolver suas ideias dentro da música. Passou a compor suas próprias canções. Foram os Beatles que me deram a porrada. Foi quando os Beatles chegaram e passaram a cantar as próprias coisas deles que eu vi, poxa, esses caras estão cantando realmente a vida deles, estão dizendo o que há pelo mundo, o que pensam. Então eu posso fazer a mesma coisa, dizer exatamente o que penso em minhas músicas. Foi quando eu comecei a compor, juntando tudo no meu caderninho (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 21). 69 Em entrevista a Ana Maria Bahiana em 1975, afirmou que 1964 foi a melhor época d’Os Panteras, o que ele chamou de fase áurea. De acordo com Raul, o grupo tinha aparelhagem, nome, era o conjunto mais caro da Bahia, excursionava pelo interior tocando Beatles e era respeitado pra burro. Em 1966, inicia o namoro com a americana Edith Wisner. Filha de um pastor protestante, este acaba exigindo que Raul abandone a vida artística e retome os estudos para que pudesse se casar com sua filha. Raul faz o supletivo e presta vestibular para a Faculdade de Direito, passando entre os primeiros lugares. Em 1967 casa-se com Edith. No mesmo ano, Jerry Adriani convida Raulzito para acompanhá-lo numa turnê. Raul reúne novamente Os Panteras e acompanham o cantor da jovem guarda. Por insistência e convite de Jerry Adriani, Raul e Os Panteras vão ao Rio de Janeiro (PASSOS; BUDA, 1992, p. 94). Lançam o primeiro e único disco do grupo em 1968: Raulzito e Os Panteras. “Foi o primeiro LP que gravei na Odeon. Foi um LP louco rapaz. Um LP extremamente filosófico, metafísico, ontológico, que falava em sete xícaras, ou seja, as sete perguntas aristotélicas” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 96). Esse é o primeiro álbum da discografia oficial de Raul Seixas. Nele o cantor já demonstrava uma de suas grandes paixões: trem. Na composição Trem 103, faz menção ao trem que levou o seu amor e pede que o leve também. Trem trem Levou o meu bem Trem trem Me leva também Eu não quero ficar Sozinho aqui Oh, trem me leva Que eu também quero ir Quero encontrar o amor que perdi Trecho da letra Trem 103, Raulzito, Raulzito e Os Panteras, 1968. 70 Com uma discografia composta por 22 álbuns lançados em vida, além de outros que foram lançamentos póstumos, Raul Seixas lançou disco até a véspera de sua morte em 21 de Agosto de 1989. Seu último álbum foi lançado em 19 de Agosto do mesmo ano de seu falecimento, portanto, dois dias antes da sua morte. O álbum A Panela do Diabo foi resultado da parceria e da turnê de shows realizados ao longo daquele ano com Marcelo Nova. Depois de a primeira tentativa fracassar e passar fome por dois anos no Rio de Janeiro, ou na cidade maravilhosa, como diz na música “Ouro de Tolo”, retorna a Salvador. Passa por momentos difíceis na capital baiana. Depressão, desilusão e outros sentimentos passam a tomar conta de Raul, que retorna a viver trancado no seu quarto. “Desde garoto eu tinha essa ideia de deixar escrito tudo o que eu vivenciava. Escrevendo e guardando, eu sentia que estava marcando as minhas pegadas pela vida” (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 11). O sonho de ser cantor e fazer sucesso tinha sido adiado, pelo menos por aquele período. Devido ao seu conhecimento em música, acaba retornando para a cidade do Rio de Janeiro no início dos anos de 1970 para ser produtor da gravadora CBS a convite do diretor da época. Compõe músicas e produz discos de sucessos para vários cantores da Jovem Guarda: Jerry Adriani, Diana, Trio Ternura, Tony & Frankye, entre outros. Sua experiência como produtor musical acabou sendo fundamental para sua formação artística, seja na condição de compositor, de cantor ou mesmo de produtor. O estúdio era uma espécie de laboratório onde ele testava os seus experimentos. Os Beatles aprenderam no estúdio, e eu também. Aprendi os macetes todos, aprendi a fazer a música fácil, que diz direitinho o que a gente quer dizer. Eu já sabia que gostava de palco. Mas foi no Rio, depois dos Panteras que desisti mesmo de ser escritor. Vi que os sulcos do disco levavam muito melhor o que eu queria dizer (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 45). Em 1971, aproveitando-se da condição de produtor, juntamente com Miriam Batucada, Edy Star e Sérgio Sampaio lança o seu segundo disco, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10. Raul chegou 71 a dizer em entrevista ao Pasquim que esse disco foi quando ele botou as manguinhas de fora. Foi quando ele começou a fazer o trabalho. De acordo com Raul, o disco mostrava o panorama atual do que estava acontecendo, o caos todo daquela época, início dos anos de 1970 (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 96). O disco era composto de diversos ritmos e sons: samba, marchinha, jazz, baião e trazia composições de Raul Seixas e Sérgio Sampaio, exceto numa música. O disco acabou sendo retirado do mercado pela gravadora na época, que alegou não ser a linha seguida por ela. Hoje é um dos álbuns mais raros e cultuados pelos fãs de Raul Seixas. Chegando a custar algumas centenas de reais no mercado. Raul fala orgulhoso do disco em entrevista a Jay Vaquer. “Valeu a pena, apesar de ter vendido pouco. Nós nos divertimos muito. Foi também a primeira vez que fiz algo para ser consumido e do qual me senti paranoicamente orgulhoso e feliz” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 75). O disco traz na sua última faixa a composição Dr. Pacheco, letra que demonstra sua capacidade de percepção e leitura do cotidiano. Lá vai o nosso herói Dr. Pacheco Com sua careca inconfundível A gravata e o paletó Misturando-se as pessoas da vida Lá vai Dr. Pacheco O herói dos dias úteis Misturando-se as pessoas que o fizeram Formado, reformado, engomado Num sorriso fabricado Pela escola da ilusão Tem jeito de perfeito No defeito Sem ter feito com proveito 72 Aproveita a ocasião Trecho da letra de Dr. Pacheco, Raul Seixas, Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, 1971. O álbum encerra com o público vaiando e o som de uma descarga de privada, revelando o fato de Raul gostar de realizar seus experimentos e inovações no estúdio. No ano seguinte, incentivado por Sérgio Sampaio, primeiro artista produzido por ele na CBS, inscreve duas músicas no VII Festival Internacional da Canção (FIC). Mesmo não gostando muito de festival, Raul acaba inscrevendo “Let Me Sing, Let Me Sing” e “Eu Sou Eu e Nicuri é o Diabo”. As duas composições são classificadas na fase eliminatória e interpretadas respectivamente no festival por Raul e pelo grupo Os Lobos. A música “Let Me Sing, Let Me Sing” chegou as finais do festival. E mesmo não tendo sido a vencedora, chamou a atenção, especialmente pela mistura do rock com o baião na sua sonoridade e pela a apresentação explosiva e contagiante de Raul no palco. Let me sing, let me sing Let me sing my rock’n’roll Let me sing, let me swing Let me sing my blues and go, say Tenho 48 quilo certo 48 quilo de baião Num vou cantar como a cigarra canta Mas desse meu canto eu não lhe abro mão Num vou cantar como a cigarra canta Mas desse meu canto eu não lhe abro mão Let me sing, let me sing Let me sing my rock’n'roll Let me sing, let me swing 73 Let me sing my blues and go, say Não quero ser o dono da verdade Pois a verdade não tem dono, não Se o "V" de verde é o verde da verdade Dois e dois são cinco, né mais quatro, não Se o "V" de verde é o verde da verdade Dois e dois são cinco, n'é mais quatro, não Trecho da letra de Let Me Sing, Let Me Sing, Raul Seixas; Nadine Wisner, Let Me Sing My Rock and Roll, 1985. Em relação à música “Let me Sing, Let me Sing”, em entrevista concedida a Jay Vaquer em nove de agosto de 1972, afirma ter influência das duas correntes: o rock e o baião. Identifica uma semelhança enorme entre o rock primitivo que veio do country e o baião que é o nosso country. Sua trajetória musical sofre influência dessas duas correntes: o rock e o baião (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 76). Daí eu juntei Luiz Gonzaga e Elvis. Eu não fiz um ritmo Rock- baião. Isso foi informação musical. Aconteceu... O som de Let me Sing é de 1956; apesar de parecer uma gozação eu acho esta música seriíssima. É apenas o início de um trabalho muito grande que eu pretendo desenvolver degrau por degrau (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 14). Raul afirmava ainda que não tinha estilo e sim muita coisa para dizer. E que dizia. A música passou então a ser a forma de comunicação mais direta para Raul Seixas. Chegando a dizer por várias vezes que sua música era fácil, boba, direta. O festival o projetou artisticamente e foi contratado pela gravadora Philips. O festival se caracterizou como uma espécie de rito de passagem, segundo a antropóloga Rosana Teixeira (2008). Em 1973 lança o seu primeiro disco solo, Krig-Há, Bandolo! O álbum traz algumas músicas “As minas do Rei Salomão”; “A hora do trem passar; Rockixe”; “Cachorro Urubu”) da então parceria iniciada com Paulo Coelho, 74 que havia conhecido alguns meses antes devido a uma reportagem sobre discos voadores (PASSOS; BUDA, 1992, p. 96). A parceria durará por alguns anos, vindo a repercutir em diversas composições e outros álbuns gravados pelo cantor. Perguntado pelo jornal O Pasquim, em Novembro de 1973 onde fica Krig-Há, afirma: Krig-Há seria um rótulo. É uma sociedade que existe hoje o mundo inteiro, com vários nomes. Aqui no Brasil nós batizamos com o nome Krig-Há, que é o grito de guerra do Tarzan. Você deve ter lido Tarzan né? Krig-Há significa cuidado!... É. Aí vem o inimigo. Tinha o dicionário de Tarzan na primeira página. Você lia e tinha a tradução. E sabia aquilo decorado. Mas essa sociedade promove acontecimentos. O primeiro acontecimento que essa sociedade promoveu foi o disco, o LP Krig-Há, Bandolo! (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 82-83). A composição “Al Capone” presente no disco demonstra a potência das letras de Raul Seixas e a força da sua mensagem no disco solo de estreia, que além da referida música trazia ainda “Ouro de Tolo” (que havia sido gravada anteriormente num compacto simples e que havia vendido números expressivos), “Metamorfose Ambulante”, “Mosca na sopa”, “How Could I Know”, “Dentadura Postiça”. Hei, Al Capone, vê se te emenda Já sabem do teu furo, nego No imposto de renda Hei, Al Capone, vê se te orienta Assim desta maneira, nego Chicago não aguenta Hei, Júlio César, vê se não vai ao senado Já sabem do teu plano para controlar o estado Hei, Lampião, dá no pé desapareça Pois eles vão a feira exibir tua cabeça... 75 Trecho da letra de Al Capone, Raul Seixas, Krig-Há, Bandolo!, 1973. Durante o show do álbum era distribuído um Gibi/Manifesto chamado A Fundação de Krig-Há, de autoria de Raul Seixas e Paulo Coelho com design de Adalgisa Rios, então mulher de Paulo Coelho na época. Em entrevista ao jornal O Pasquim, instigado a falar mais dessa sociedade ele diz o seguinte: Como eu estava dizendo, essa sociedade promove acontecimentos. O primeiro foi o LP. O segundo foi uma procissão que foi muito bem sucedida, foi muito bonito. A gente levou uma bandeira na rua foi uma explosão. Porque vocês sabem que tem havido uma série de implosões. E a terceira foi esse show de teatro, esse show que nós estamos fazendo agora. E a quarta vai ser o Piquenique do Papo. Nós vamos convidar todos os artistas, de todos os campos, os, comunicadores, de artes plásticas, de cinema, de teatro. E vamos fazer um piquenique bem suburbano no Jardim Botânico (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 85). Questionado ainda sobre qual o fim específico dessa sociedade, a que ela se propunha, e se seguia alguma filosofia, afirma que essa sociedade não surgiu imposta por nenhuma verdade, ou nenhum líder. Segundo o próprio Raul, tratava-se de uma tomada de consciência de uma nova tática, de novos meios em relação à melhoria das coisas (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 85). Estava lançada a semente do que veio a ser denominado um pouco depois de sociedade alternativa. Aderir à sociedade alternativa causou a Raul Seixas e o seu parceiro Paulo Coelho diversos problemas diante do contexto de censura ditatorial que o país vivia naquela época da década de 1970. Além de possuir muitas composições já censuradas, a divulgação do Gibi/Manifesto provocou reações contrárias por parte dos militares em relação ao que estava sendo divulgado. A ideia de uma sociedade diferente, livre, mais justa, de alguma forma desafiava os militares e incomodava o establishment. A imaginação e a criatividade do artista eram características marcantes do trabalho de Raul Seixas, seja nas composições, nos shows ao 76 vivo, nas gravações dos discos em estúdio, na divulgação dos álbuns, nas apresentações em programas de televisão ou até mesmo nas entrevistas que eram concedidas a jornais, revistas, etc. Depois de terem os Gibi/Manifesto recolhidos, passa a enfrentar problemas cada vez maiores com a censura e com a perseguição política, especialmente por conta das ideias referentes à sociedade alternativa. Juntamente com Paulo Coelho e esposas de ambos, vão para os Estados Unidos em 1974. Depois de alguns meses, voltam devido ao sucesso da música Gita para lançar o disco de mesmo nome. Gita é o segundo álbum solo de Raul Seixas. O disco fez um enorme sucesso, o que lhe rendeu seu primeiro disco de ouro. Nesse mesmo ano, separa-se da sua esposa Edith, que acaba retornando com a filha do casal para os Estados Unidos (PASSOS; BUDA, 1992). Foi nessa mesma época (1973/74) que Raul Seixas passou a se interessar e a se envolver com temas como magia, misticismo, esoterismo, sociedades esotéricas, o que acabou tendo influência no referido disco que acabara de ser lançado em 1974. O ano de 1974 foi terrível pra mim. Foi um ano marrom. Eu fiquei perdido, confuso, apavorado. Eu queria respostas, eu queria descobrir... tudo... descobrir tudo. Eu estava envolvido profundamente com Paulo Coelho, e nós mergulhamos mesmos no esoterismo. Eu via uma saída por aí, queria descobrir. Conheci uma pessoa chamada Marcelo, uma pessoa muito importante, e foi na mão dele que Aleister Crowley deixou o Livro da Lei; ele é o continuador da obra de Crowley. Ele nos iniciou numa sociedade esotérica. Paulo saiu logo, mas eu continuei, depois entrei para uma outra, mais elevada... eu estava envolvidíssimo. E de repente descobri que a luz, o conhecimento, tem de vir de você mesmo. É claro que eu precisava passar por tudo isso pra descobrir. Agora eu estou comigo. Estou bem comigo, do mesmo modo como todos deviam estar bem consigo mesmos (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 31). A influência de algumas das ideias do mago inglês Aleister Crowley pode ser observada diretamente na letra da música “Sociedade Alternativa”. 77 Mas se eu quero e você quer Tomar banho de chapéu Ou discutir Carlos Gardel Ou esperar Papai Noel Então vá! Faze o que tu queres Pois é tudo Da Lei! Da Lei! Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa... O número 666 chama-se Aleister Crowley Viva! Viva! Viva! A Sociedade Alternativa Faz o que tu queres há de ser tudo da lei Viva! Viva! Viva! A Sociedade Alternativa A Lei de Thelema Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa A Lei do forte Essa é a nossa lei e a alegria do mundo Viva! Viva! Viva! Viva o Novo Aeon Trecho da letra de Sociedade Alternativa, Raul Seixas; Paulo Coelho, Gita, 1974. Tempos depois Raul Seixas vai dizer que Gita foi um disco doutrinário, que ele estava pondo pra fora o lado de Jesus Cristo, que adora sofrer pelas pessoas, mostrar-lhes o caminho. “Já reparou na capa? Estou eu lá, de dedo 78 pra cima, veja se é possível! Como se eu quisesse indicar caminho para as pessoas. Mas é o retrato mesmo do que fui no passado” (SEIXAS. In: PASSOS 2012, p. 31). A letra de “Gita” revela aspectos dessa característica doutrinária que Raul fala do disco. Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando Foi justamente num sonho que Ele me falou Às vezes você me pergunta Por que é que eu sou tão calado Não falo de amor quase nada Nem fico sorrindo ao teu lado Você pensa em mim toda hora Me come, me cospe, me deixa Talvez você não entenda Mas hoje eu vou lhe mostrar Eu sou a luz das estrelas Eu sou a cor do luar Eu sou as coisas da vida Eu sou o medo de amar Eu sou o medo do fraco A força da imaginação O blefe do jogador Eu sou, eu fui, eu vou Gita! Gita! Gita! Gita! Gita! Trecho da letra de Gita, Raul Seixas; Paulo Coelho, Gita, 1974. Ainda influenciado pelas ideias de Aleister Crowley, mas agora numa perspectiva de mais independência e autoral em relação ao seu 79 pensamento, lança em 1975, também pela gravadora Philips, o disco Novo Aeon. Ao falar sobre o álbum diz o seguinte: Este álbum é todo em cima do Livro da Lei, que Aleister Crowley recebeu, ditado por um ser do Novo Aeon. Mas não é... apostólico. São simplesmente coisas que eu descobri e digo, porque tenho esses meios de dizer, porque meu trabalho é dizer, sacar, dizer. Sou o cientista que faz a granada que o soldado lança para explodir tudo. Não levei Aleister Crowley totalmente a sério, não. Aliás, eu acho que é isso que ele queria. Tirei coisas dele para mim, aproveitei (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 50). Ao contrário de Gita, o profeta, o guru, o mestre começa a dar lugar a outro Raul Seixas. O disco Novo Aeon como afirma o próprio Raul, é um novo modo de ver, de pensar, uma civilização nova. E que mesmo tendo inspiração no Livro da Lei de Aleister Crowley, é muito parte dele também. Suas próprias ideias e interpretações acerca das diferentes influências que o marcaram começam a aparecer de forma mais independente. (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 32). A letra da música “Tente Outra Vez” sintetiza de certa forma o espírito das ideias que coloca no disco. Veja Não diga que a canção está perdida Tenha fé em Deus, tenha fé na vida Tente oura vez Beba Pois a água viva ainda tá na fonte Você tem dois pés para cruzar a ponte Nada acabou, não não não... Queira Basta ser sincero e desejar profundo Você será capaz de sacudir o mundo Vai, tente outra vez Tente 80 E não diga que a vitória está perdida Se é de batalhas que se vive a vida Tente outra vez Trecho da letra de Tente Outra Vez, Raul Seixas; Paulo Coelho; Marcelo Mota Novo Aeon, 1975. Comercialmente o disco foi um fracasso. Ao contrário de Gita que havia vendido 600.000 cópias, o álbum Novo Aeon não teve o mesmo sucesso de vendas. No entanto, Raul demonstrava felicidade pela elaboração do disco, afirmando que foi um momento particularmente dele e que o disco é o do caminho individual. Pois segundo ele, fez uma coisa sua, em cima do que havia descoberto, mesmo que algumas das ideias de Aleister Crowley estivessem presentes. “Eu tirei coisas dele, toques dele, fiz uma coisa minha” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 31). Em 1976, ainda pela gravadora Philips, lança o disco Há Dez Mil Anos Atrás e encerra além do seu contrato com a referida gravadora a parceria com Paulo Coelho. Raul diz em entrevista concedida a Aloysio Reys e publicada pelo Jornal de Música em Novembro de 1976 que o disco é uma retrospectiva de todo o processo histórico do qual todos são testemunhas. Raul Seixas não quis assumir a condição de ser o narrador desse processo histórico. “Eu coloquei na boca de um profeta porque achei que seria mais comercial, ia motivar mais as pessoas. Eu estou aqui para deixar a minha impressão digital sobre o planeta e é isso que eu estou fazendo nesse disco” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 109). Um dia, numa rua da cidade, Eu vi um velhinho sentado na calçada com uma Cuia de esmola e uma viola na mão O povo parou para ouvir Ele agradeceu as moedas E cantou essa música Que contava uma história 81 Que era mais ou menos assim... Trecho inicial da letra de Eu nasci há dez mil anos atrás, Raul Seixas; Paulo Coelho, Há Dez Mil Anos Atrás, 1976. Em 1977 assina contrato com uma nova gravadora, a recém- inaugurada WEA. Lança o disco O Dia em Que a Terra Parou em parceria com o amigo Cláudio Roberto, um dos principais parceiros durante sua trajetória artística. No álbum estão composições como Maluco Beleza, a faixa título do disco, “O dia em que a terra parou”, “Sapato 36”, “Que luz é essa?”, entre outras canções. Na música Você traz os seguintes questionamentos Você alguma vez se perguntou por quê Faz sempre aquelas mesmas coisas sem gostar Mas você faz e a vida é curta Por que deixar que o mundo lhe acorrente os pés Finge que é normal está insatisfeito Será direito O que você faz com você Por que você faz isso por que Detesta o patrão no emprego Sem ver que o patrão sempre esteve em você E dorme com a esposa Por quem já não sente amor Será que é medo Por que Você faz isso com você... Trecho da letra de Você, Raul Seixas; Cláudio Roberto, O Dia em Que a Terra Parou, 1977. 82 Nesse mesmo ano, se separa de Glória, sua segunda esposa. Mais uma vez presencia a partida de mulher e filha para os Estados Unidos. É dessa época também o consumo cada vez mais exagerado de bebidas alcóolicas, o que começa a agravar os problemas de saúde do artista e a tornar sua relação com a gravadora conturbada. Em 1978, depois de passar alguns meses numa fazenda no interior da Bahia se recuperando da pancreatite agravada pelo excesso de álcool, retorna com uma nova companheira, Tânia Mena Barreto e grava mais um disco pela WEA, Mata Virgem, retomando a parceria com Paulo Coelho no referido álbum. Na letra de “As Profecias”, os dois tratam do fim do mundo. ... Está em qualquer profecia Dos sábios que viram o futuro Dos loucos que escrevem no muro Das teias, do sonho remoto Estouro, explosão, maremoto A chama da guerra acesa A fome sentada na mesa O copo com álcool no bar O anjo surgindo no mar Os selos de fogo, o eclipse Os símbolos do Apocalipse Os séculos de Nostradamus A fuga geral dos ciganos Está em qualquer profecia Que o mundo se acaba um dia... Trecho da letra de As Profecias, Raul Seixas; Paulo Coelho, Mata Virgem, 1978. No ano seguinte lança seu último disco pela WEA, Por Quem os Sinos Dobram, agora em parceria com o argentino Oscar Rasmussen (PASSOS; BUDA, 1992). Ainda no ano de 1979, separa-se de Tânia Mena Barreto, conhece Kika Seixas, com quem passa a viver a partir de 1980 e com quem 83 Raul tem sua terceira filha, Vivian Seixas. A letra de “Movido a Álcool” revela traços do humor, ironia e de sua relação com o álcool. ... Derramar cachaça em automóvel É a coisa mais sem graça De que eu já ouvi falar Por que cortar assim nossa alegria Já sabendo que o álcool também vai acabar? Veja, o poeta inspirado em Coca-Cola Que poesia mais sem graça ele iria expressar? É triste ver que tudo isso é real Porque assim como os poetas Todos nós temos que sonhar... Trecho da letra de Movido a Álcool, Raul Seixas; Tânia M. Barreto; Oscar Rasmussem, Por Quem os Sinos Dobram, 1979. O fim dos anos 1970 e início de 1980 marca uma virada profissional de altos e baixos em sua trajetória. Assina contrato com uma nova gravadora, a CBS. Passa a morar na cidade de São Paulo depois de muitos anos no Rio de Janeiro e lança o disco Abre-te Sésamo em 1980. Passa ainda por uma cirurgia no pâncreas no Hospital Albert Einstein, o que o deixa hospitalizado por algumas semanas. Como ele próprio afirmava em tom de ironia, é um disco em homenagem a abertura política brasileira. “Em Abre-te Sésamo está presente essa agulha incisiva que penetra no calcanhar de Aquiles do sistema” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p.115). ... Lá vou eu de novo Brasileiro nato Se eu não morro eu mato Essa desnutrição 84 Minha teimosia braba de guerreiro É o que me faz o primeiro dessa procissão Fecha a porta! Abre a porta! Abre-te sésamo E vamos nós de novo Vamos na gangorra No meio da zorra Desse vai-e-vem É tudo mentira Quem vai nessa pira Atrás do tesouro do Ali-bem-bem... Trecho da letra de Abre-te Sésamo, Raul Seixas; Cláudio Roberto, Abre-te Sésamo, 1980. Em entrevista ao repórter Ricardo Porto de Almeida do Jornal Canja, em outubro de 1980, diz que o disco versa sobre os anos 1980. Sabe, eu estou só contando a história do que está acontecendo neste momento: nada. Abre a porta, feche a porta, essas coisas. Inclusive tem uma música chamada Aluga-se o Brasil, que é muito simpática. Como é mesmo o nome do rapaz? Delfim Netto, né?... É o que a música diz. Tem pau-Brasil, tem a Amazônia no fundo do quintal, tem o Oceano Atlântico, tem vista para o mar. A solução para o nosso povo é rodar, alugar o Brasil. E nós não vamos pagar nada (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 117). De acordo com Rosana Teixeira, no aspecto político, Raul Seixas parecia não ser levado mais tão a sério pela ditadura militar. Mesmo com as críticas a política e a economia do país em músicas como “Abre-te Sésamo” e “Aluga- se”, as referidas canções não sofreram nenhum tipo de censura. Ao contrário de músicas como “Baby”, “Conversa pra boi dormir” e “Rock das Aranha”, 85 que não tratavam de política mas tiveram problemas com a censura (TEIXEIRA, 2008, p. 82-83). Em 1981, Raul Seixas rompe o contrato com a CBS que havia lhe pedido um disco em homenagem a Lady Diana. Raul se recusa e rescinde o contrato com a gravadora. Ainda em 1981, é fundado em São Paulo, por Sylvio Passos, o primeiro fã clube de Raul Seixas, o Raul Rock Club. Segundo Sylvio Passos, o fã clube foi criado com o “objetivo de estudar, divulgar, preservar e dar continuidade aos trabalhos e estudos iniciados por Raul” (PASSOS; BUDA, 1992, p. 100). Raul apoia a criação e confere o título de Raul Seixas Oficial Fã-Clube. O ano de 1982 produz alguns acontecimentos que marcam a sua carreira. Em Fevereiro, participa do Festival de Música na Praia, na praia do Gonzaga na cidade de Santos, São Paulo para um público estimado de cerca de 180.000 pessoas, com transmissão pela televisão feita pela TV Cultura. Em Maio, durante um show numa Feira Folclórica na cidade de Caieiras, estado de São Paulo é acusado de impostor de si mesmo, quase sendo linchado pelo público e chegando a ser detido pelo delegado da cidade por não portar os documentos que o identificassem. Depois de dois anos sem gravadora e passando por momentos cada vez mais difíceis na carreira e na vida pessoal, seu estado de saúde se deteriora. Assina contrato com o Estúdio Eldorado em 1983 e lança o álbum Raul Seixas. Também é lançado simultaneamente o livro As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor pela Shogun Arte Editora do seu antigo parceiro e amigo Paulo Coelho. O único livro escrito por Raul traz anotações dos sete aos 21 anos de idade. Participa ainda no mesmo ano do especial infantil Plunct, Plact, Zumm da Rede Globo de Televisão com a música o “Carimbador Maluco”. Música essa que rende a Raul Seixas o seu segundo disco de ouro. Plunct – Plact – Zummm Não vai a lugar nenhum Plunct – Plact – Zummm Não vai a lugar nenhum 86 Tem que ser selado, registrado Carimbado, avaliado, rotulado Se quiser voar Prá lua: a taxa é alta Pro sol: identidade Mas, já pro seu foguete viajar pelo universo É preciso o meu carimbo dando Sim, Sim, Sim... Trecho da letra de Carimbador Maluco, Raul Seixas, Raul Seixas, 1983. Mesmo sendo para um especial infantil, Raul não deixou de aprontar das suas. A música faz referência às ideias anarquistas de Proudhon. Pela mesma gravadora, é lançado em 1984 o disco Raul Seixas ao Vivo – Único e Exclusivo. O álbum é resultado de um show ao vivo feito na Sociedade Esportiva Palmeiras na cidade de São Paulo em 1983. Esse show foi demais. Foi adiado, porque na primeira vez eu caí doente, mas, quando eu finalmente eu fiz, foi demais. Tinha gente que se agarrava nas minhas pernas, que pulava no palco, e olha que eu estava cantando coisas que a maioria nem conhecia, nem sequer tinha nascido quando aqueles rocks foram sucesso (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 37) Vinculado agora a gravadora Som Livre, com quem assinara contrato no início de 1984, Raul lança em Junho do mesmo ano o disco Metrô Linha 743. Quando da elaboração do disco, Raul afirmava que seria um disco em preto e branco, onde ele iria juntar uma concepção musical a uma concepção visual. “O colorido aprisiona a imaginação. O preto e branco é mais forte, é livre porque dá asas a cada um de projetar sua imaginação; de criar o que você sente sem se prender ao óbvio das cores impostas pelo colorido do mundo” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 56). A música “O Messias Indeciso” reflete sonoramente essa tonalidade que o artista imprimiu ao disco. 87 Certa vez houve um homem Comum como um homem qualquer Jogou pelada descalço Cresceu e formou-se em ter fé Mas nele havia algo estranho Lembrava ter vivido outra vez Em outros mundos distantes E assim acreditando-se fez (Sim)... Ah! quantas ilusões Ah! quantas ilusões Nas luzes do arrebol Quantos segredos terá? Quantos segredos terá?... Trecho da letra de O Messias Indeciso, Raul Seixas; Kika Seixas, Metrô Linha 743, 1983. Nessa mesma época persistem ainda os problemas com a censura, com a frágil saúde e com o seu relacionamento com Kika Seixas, que acaba terminando. Em Maio de 1985, numa iniciativa inédita no Brasil, o Raul Rock Club lança o álbum Let Me Sing My Rock and Roll, primeiro disco produzido e distribuído de forma independente por um fã-clube brasileiro. O disco traz músicas e depoimentos que não tinham sido incluídos nos discos oficiais, exceto a música “Canto para minha morte” que foi incluída a pedido do próprio Raul, que talvez já pressentisse de alguma forma que a sua vida na Terra estava acabando. Eu sei que determinada rua que eu já passei Não tornará a ouvir o som dos meus passos, Tem uma revista que eu guardo há muitos anos, 88 E que eu nunca mais vou abrir; Cada vez que eu me despeço de uma pessoa, Pode ser que esta pessoa esteja me vendo pela última vez; A morte, surda, caminha ao meu lado E eu não sei em que esquina ela vai me beijar... Trecho da letra de Canto Para Minha Morte, Raul Seixas; Paulo Coelho, Let Me Sing My Rock and Roll, 1985. O refrão: Vou te encontrar vestida de cetim\ Pois em qualquer lugar esperas só por mim\ E no teu beijo provar teu gosto estranho\ Que eu quero e não desejo mas tenho que encontrar\ Vem mas demore a chegar\ Eu te detesto e amo\ Morte, morte, morte que talvez\ Seja o segredo desta vida, expressa sua relação de amor e medo com a morte. Depois de mais um período sem gravadora, afastado do show buzines e com sua credibilidade abalada, devido à quebra de contratos, ausências em shows, brigas com as gravadoras, o agravamento de seus problemas de saúde, causados pelo excesso de álcool e já com uma nova companheira, Lena Coutinho, assina em 1986 contrato com a Copacabana. Lança em 1987 o disco Uah – Bap Lu – Bap – Lah – Béin – Bum!, o grito do rock and roll. Os problemas de saúde e as rotineiras internações atrapalharam a gravação do disco, que deveria ter sido lançado ainda em 1986, mas só foi possível no ano seguinte. A composição “Canceriano Sem Lar” reflete os períodos das constantes internações vividas pelo o artista no decorrer da carreira, principalmente na década de 1980. Estou sentado em minha cama Tomando meu café pra fumar Estou sentado em minha cama Tomando meu café pra fumar É, é, porém, mas, todavia Eu sou um canceriano sem lar 89 Eu tomo café pra mim não chorar Pergunto à nuvem preta quando o sol vai brilhar Estou deitado em minha vida E o soro que me induz a lutar Estou na Clínica Tobias Tão longe do aconchego do lar All right, man Play the blues Eu tomo café pra mim não chorar Pergunto à nuvem preta quando o sol vai brilhar Estou sentado em minha cama Tomando meu café pra fumar Estou sentado em minha cama Tomando meu café pra fumar Trancado dentro de mim mesmo eu sou, um canceriano sem lar Trecho de Canceriano Sem Lar - Clínica Tobias Blues, Raul Seixas, Uah – Bap Lu – Bap – Lah – Béin – Bum!, 1987. A música “Cowboy Fora da Lei” estoura e rende o terceiro disco de ouro da carreira artística de Raul Seixas. Participa ainda em 1987 da gravação da faixa “Muita Estrela, Pouca Constelação” da banda Camisa de Vênus ao lado de Marcelo Nova, fã declarado de Raul Seixas e com quem viria a assumir depois parceria no último disco. Em 1988, também pela gravadora Copacabana, Raul Seixas lança o seu último disco solo, A Pedra do Gênesis. No álbum, volta a falar de temas como esoterismo, sociedade alternativa, misticismo: Todo homem tem direito De pensar o que quiser Todo homem tem direito 90 De amar a quem quiser... Trecho de A Lei, Raul Seixas, A Pedra do Gênesis, 1988. Além de temas relacionados à sua frágil saúde, devido os problemas ocasionados pelo álcool. A música “Check-Up”, por exemplo, fala dos remédios que tomava. Acabei de dar um check-up na situação O que me levou a reler Alice no País das Maravilhas Acabei de tomar meu Diempax Meu Valium 10 e outras pílulas mais Duas horas da manhã Recebo nos peito um Triptanol 25 E vou dormir quase em paz... Trecho de Check-Up, Raul Seixas, A Pedra do Gênesis, 1988. Depois de quase três anos longe dos palcos, no final de 1988 participa de show de Marcelo Nova na Concha Acústica do Teatro Castro Alves em Salvador e a partir daí saem numa turnê de 50 shows pelo país no ano de 1989. A turnê resultou no último trabalho de Raul Seixas. O disco Raul Seixas e Marcelo Nova - A Panela do Diabo foi lançado pela WEA em agosto de 1989, poucos dias antes da sua morte. A composição “Banquete de Lixo” faz uma breve retrospectiva de momentos de sua vida: estadia nos Estados Unidos, internações em clínicas de recuperação, shows\turnês, amores, casamentos e parecia anunciar o fim que estava próximo: ... Fui levado na marra pois enfermeiro quando agarra É que nem ordem de prisão A ambulância me esperava E aí o que rolava internação e injeção 91 E lá em Serra Pelada, ouro n meio do nada Dor de barriga desgraçada resolveu me atacar O show estava começando E eu no escuro me apertando e autografando sem parar O hoje é apenas um furo no futuro Por onde o passado começa a jorrar E eu aqui isolado onde nada é perdoado Vi o fim chamando o princípio pra poderem se encontrar Muitas mulheres eu amei e com tantas me casei Mas agora é Raul Seixas que Raul vai encarar Nem todo bem que conquistei, nem todo mal que eu causei Me dão direito de poder lhe ensinar... Trecho de Banquete de Lixo, Raul Seixas; Marcelo Nova. A Panela do Diabo, 1989. Finaliza a letra com o seguinte recado: “Não sou nenhuma ficção\ E assim torto e de verdade, um abraço e até outra vez”. A própria melodia e o tom melancólico da música pareciam marcar a despedida do cantor. Os dois quadros a seguir trazem a listagem da discografia do artista. O primeiro quadro relaciona a discografia oficial. E o segundo traz a relação de álbuns que foram lançados após a sua morte5. Quadro 1 – Veja quanto disco na estante I (DISCOGRAFIA) ANO ÁLBUM GRAVADORA Raulzito e Os Panteras Brincadeira (Mariano Lanat) Por quê? Pra quê? (Eládio Gilbraz) Um Minuto Mais (“I Will”, de Dick Glasser. Versão: Raulzito) Vera Verinha (Raulzito e Eládio 5 Número que pode variar para mais ou para menos de acordo com algumas listas de diferentes pesquisadores. 92 Gilbraz) Você Ainda Pode Sonhar (“Lucy in the Sky with 1968 Diamonds”, de John Lennon e Paul McCartney. ODEON Versão: Raulzito) Menina de Amaralina (Raulzito) Triste Mundo (Mariano Lanat) Dê-me Tua Mão (Raulzito) Alice Maria (Raulzito, Eládio Gilbraz, Mariano Lanat) Me Deixa Em Paz (Mariano Lanat, Raulzito, Carleba) Trem 103 (Raulzito) O Dorminhoco (Carleba, Eládio Gilbraz, Mariano Lanat, Raulzito). Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez (Com Edy Star, Miriam Batucada e Sérgio Sampaio) Êta Vida (Raul Seixas e Sérgio Sampaio) Sessão das 10 (Raul Seixas) Eu vou botar pra ferver (Raul Seixas) Eu 1971 acho graça (Sérgio Sampaio) Chorinho CBS Inconsequente (Sérgio Sampaio e Erivaldo santos) Quero ir (Raul Seixas e Sérgio Sampaio) - Soul Tabarôa (Antônio Carlos e Jocafi) Todo mundo está feliz (Sérgio Sampaio) Aos Trancos e Barrancos (Raul Seixas) Eu não quero dizer nada (Sérgio Sampaio) Dr. Paxeco (Raul Seixas) Finale. Os 24 Maiores Sucessos da Era do Rock Rock Around The Clock (Max C. Freedman e Jimmy De Knight) Blue Suede Shoes (Carl Perkins) Tutti Frutti (Little Richard) Long Tal Sally (Little Richard, Robert “Bumps” Blackweel e Enotris Johnson) Rua Augusta (Hervé Cordovil) O Bom (Carlos Imperial) Poor Little Foor (Shelley) Bernadine (J. Mercer) Estúpido Cupido (Stupid Cupid) (N. Sedaka e H. Greenfield. Versão: Fred Jorge) Banho de Lua (Tintarella di luna) (Filippi e Migliacci. Versão: Fred Jorge) Lacinhos cor de rosa - The Great Pretender (Buck Ram) Diana (Paul Anka) 1973 Little Darling (M. Williams) Oh! Carol (H. Greenfield e N. POLYFAR Sedaka) Runaway (Del Shannon e Max Crook) Marcianita (Marcone e Aldereti. Versão: Fernando Cesar) É Proibido Fumar (Roberto Carlos e Erasmo Carlos) Pega Ladrão (Getúlio Cortes) Jambalaya (Hank Williams) Shake, Rattle and Roll (Charles E. Calhoun) Bop-a-Lena (M. Tillis e W. Pierce) Only You (Andy Rand e Buck Ram) Vem quente que eu estou fervendo (Carlos Imperial e Eduardo Araújo). Krig-ha, Bandolo! 93 Introdução (Raul, aos nove anos cantando “Good Rockin Tonight”) Mosca na Sopa (Raul Seixas) Metamorfose Ambulante (Raul Seixas) Dentadura Postiça (Raul Seixas) As Minas do Rei Salomão (Raul 1973 Seixas e Paulo Coelho) A Hora do Trem Passar (Raul PHILIPS Seixas e Paulo Coelho) Al Capone (Raul Seixas e Paulo Coelho) How Could I Know (Raul Seixas) Rockixe (Raul Seixas e Paulo Coelho) Cachorro Urubu (Raul Seixas e Paulo Coelho) Ouro de Tolo (Raul Seixas). Gita Super-Heróis (Raul Seixas e Paulo Coelho) Medo da Chuva (Raul Seixas e Paulo Coelho) As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor (Raul Seixas) Água Viva (Raul Seixas e Paulo Coelho) Moleque Maravilhoso 1974 (Raul Seixas e Paulo Coelho) Sessão das 10 (Raulzito) PHILIPS Sociedade Alternativa (Raul Seixas e Paulo Coelho) O Trem das Sete (Raul Seixas) S.O.S. (Raul Seixas) – Prelúdio (Raul Seixas) Loteria da Babilônia (Raul Seixas e Paulo Coelho) Gita (Raul Seixas e Paulo Coelho). O Rebu (Trilha sonora da novela da TV Globo) Como vovó já dizia (Raul Seixas e Paulo Coelho) Por quê (Raul Seixas e Paulo Coelho) Planos de Papel (Raul Seixas) Catherine (Paulo Coelho) Murungando (Raul Seixas) O Rebu (Raul Seixas e Paulo Coelho) Um som para Laio (Raul Seixas) Se o rádio não toca (Raul Seixas 1974 e Paulo Coelho) Água Viva (Raul Seixas e Paulo SOM LIVRE Coelho) Tema dançante (Roberto Menescal) Vida a prestação (Raul Seixas e Paulo Coelho) Senha (Paulo Coelho) Trambique (Adilson Manhães e José Roberto Kelly). 1975 20 Anos de Rock (Reedição do Álbum Os 24 Maiores PHILIPS Sucessos da Era do Rock) Novo Aeon Tente outra vez (Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta) Rock do Diabo (Raul Seixas E Paulo Coelho) A Maçã (Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta) Eu sou egoísta (Raul Seixas e Marcelo Motta) Caminhos (Raul Seixas e Paulo Coelho) Tu és o MDC da minha 1975 vida (Raul Seixas e Paulo Coelho) A verdade sobre a PHILIPS 94 nostalgia (Raul Seixas e Paulo Coelho) Para Noia (Raul seixas) Peixuxa (o amiguinho dos peixes) (Raul seixas e Marcelo Motta) É fim de mês (Raul Seixas) Sunseed (Raul Seixas e Space Glow) Caminhos II (Raul Seixas, Paulo Coelho e Eládio Gilbraz) Novo Aeon (Raul Seixas, Cláudio Roberto e Marcelo Motta). Há Dez Mil Anos Atrás Canto para minha morte (Raul Seixas e Paulo Coelho) - Meu amigo Pedro (Raul Seixas e Paulo Coelho) Ave Maria da rua (Raul Seixas e Paulo Coelho) Quando você crescer (Raul Seixas, Paulo Coelho e Jay Vaquer) 1976 O dia da saudade (Raul Seixas e Jay Vaquer) Eu PHILIPS também vou reclamar (Raul Seixas e Paulo Coelho) As minas do Rei Salomão (Raul Seixas e Paulo Coelho) O Homem (Raul Seixas e Paulo Coelho) Os Números (Raul Seixas e Paulo Coelho) Cantiga de ninar (Raul Seixas e Paulo Coelho) Eu nasci há dez mil anos atrás (Raul Seixas e Paulo Coelho). Raul Rock Seixas My way (Jerry Capehart) Trouble (Jerry Leiber e Mike Stoller) The diary (Howard Grinfield Neil Sekada) My baby left me (Arthur Crudup) Thirty days (Chuck Barry) Rip it up (John Marascalco e Robert Blackwell) All I have to do is dream (Boudleaux Bryant e Felice Bryant) Put your head on my shoulder (Paul Anka) Dear someone (Ce Coben) Do you know what it means to miss New Orleans (Eddie DeLange e Louis Alter) Lucille 1977 (Albert Collins e Richard Penniman) Corrine Corrina (J. FONTANA Mayo Williams, Bo Chatman e Mitchell Parish) Ready Teddy (John Marascalo e Robert Blackweel) Hard headed woman (Claude Demetrius) Baby i Don’t Care (Jerry Leiber e Mike Stoller) Just Because (Raul Seixas e Jay Vaquer) Bye Bye Love (Boudleaux Bryant e Felice Bryant) Be bop a lula (Gene Vincent e Tex Davis)Love letters in the sand (Charles Kenny, J. Frederick Coots e Mick Kenny) Hello Mary Lou (Gene Pitney) Blue moon of Kentuncky (Bill Monroe) Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira). O Dia em Que a Terra Parou Tapanacara (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Maluco Beleza (Raul Seixas e Cláudio Roberto) O Dia em que 95 a Terra parou (Raul Seixas e Cláudio Roberto) No fundo 1977 do quintal da escola (Raul Seixas e Cláudio Roberto) WEA Eu quero mesmo (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Sapato 36 (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Você (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Sim (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Que luz é essa? (Raul Seixas e Cláudio Roberto) De cabeça pra baixo (Raul Seixas e Cláudio Roberto). Mata Virgem Judas (Raul Seixas e Paulo Coelho) As profecias (Raul Seixas e Paulo Coelho) Tá na Hora (Raul Seixas e Paulo Coelho) Planos de Papel (Raul Seixas) Conserve seu 1978 medo (Raul Seixas e Paulo Coelho) Negócio é WEA (Eduardo Brasil e Cláudio Roberto) Mata virgem (Raul Seixas e Tânia Menna Barreto) Pagando Brabo (Raul Seixas e Tânia Menna Barreto) Magia de Amor (Raul Seixas e Paulo Coelho) Todo mundo explica (Raul Seixas). Por Quem os Sinos Dobram Ide a Mim Dada (Raul Seixas e Oscar Rasmussen) Diamante de Mendigo (Raul Seixas e Oscar Rasmussen) A Ilha da Fantasia (Raul Seixas e Oscar Rasmussen) Na Rodoviária (Raul Seixas e Oscar 1979 Rasmussen) Por quem os sinos dobram (Raul Seixas e W. BROSS Oscar Rasmussen) O Segredo do Universo (Raul Seixas e Oscar Rasmussen) Dá lhe que Dá (Raul Seixas e Oscar Rasmussen) Movido a Álcool (Raul Seixas, Oscar Rasmussen, Tânia Menna Barreto) Réquiem para uma flor (Raul Seixas e Oscar Rasmussen). Abre-te Sésamo Abre-te Sésamo (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Aluga-se (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Anos 80 (Raul Seixas e Dedé Caiano) Ângela (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Conversa pra boi dormir (Raul Seixas) Minha 1980 Viola (Raul Varella Seixas) Rock das “Aranha” (Raul CBS Seixas e Cláudio Roberto) O conto do sábio chinês (Raul Seixas) Só pra variar (Raul Seixas, Kika Seixas e Cláudio Roberto) Baby (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Ê meu pai (Raul Seixas e Cláudio Roberto) A beira do Pantanal (Raul Seixas e Cláudio Roberto). 96 Raul Seixas D.D.I. (Discagem Direta Interestelar) (Raul Seixas e Kika Seixas) Coisas do Coração (Raul Seixas, Kika Seixas e Cláudio Roberto) Coração Noturno (Raul Seixas, Kika Seixas, Raul Varella Seixas) Não fosse o Cabral - Quero Mais (Raul Seixas, Kika Seixas e Cláudio Roberto) Lua 1983 Cheia (Raul Seixas) O Carimbador Maluco (Raul ELDORADO Seixas) Segredo da Luz (Raul Seixas e Kika Seixas) Aquela Coisa (Raul Seixas, Kika Seixas e Cláudio Roberto) Eu sou eu, Nicuri é o Diabo (Raul Seixas) Capim Guiné (Raul seixas e Wilson Aragão) Babilina (Vincent e Davis. Versão: Raul Seixas) So Glad You’re Mine (Arthur Big Boy Crudup). Raul Seixas ao Vivo – Único e Exclusivo My Baby Left me (Arthur Crudup) Ain’t She Sweet (Jack Yellen e Milton Ager) So Glad You’re Mine (Arthur Crudup) Do you know what it means to miss New 1984 Orleans (Louis Alter e Eddie DeLarge) Barefoot Ballad ELDORADO (Dolores Fuller e Lee Morris) Blue moon of Kentuncky (Bill Monroe) Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) Roll Over Bethoveen (Chuck Berry) Blue Suede Shoes (Carl Perkins) Be Bop a Lula (Davis e Gene Vincent). Metrô Linha 743 Metrô Linha 743 (Raul Seixas) Messias Indeciso (Raul Seixas e Kika Seixas) Meu Piano (Raul Seixas, Kika Seixas e Cláudio Roberto) Quero ser o homem que sou (Dizendo a verdade) (Raul Seixas, A. Simeone e Kika 1984 Seixas) Canção do Vento (Raul Seixas e Kika Seixas) SOM LIVRE Mamãe eu não queria (Raul Seixas) Mas I Love You (Pra ser feliz) (Rick Ferreira e Raul Seixas) Eu sou egoísta (Raul seixas e Marcelo Motta) Trem das Sete (Raul Seixas) Geração da Luz (Raul seixas e Kika Seixas). Let Me Sing My Rock and Roll Introdução (Raul no estúdio Free, Dezembro de 1979) - Let me sing, Let me sing - Teddy Boy Rock Brilhantina - Eterno Carnaval Caroço de Manga (Raul Seixas e Paulo Coelho) Loteria da Babilônia (Raul Seixas e Paulo Coelho) Não pare na pista (Raul Seixas e Paulo 1985 Coelho) - Como vovó já dizia (Raul Seixas e Paulo R. ROCK CLUB 97 Coelho) Um som para Laio (Raul Seixas) Rua Augusta (Hervé Cordovil) O Bom (Carlos Imperial) Canto para minha morte (Raul Seixas e Paulo Coelho) Love is Magick (Raul Seixas e Space Glow) Blue moon of Kentancky (Bill Monroe) - Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) 2ª parte da Introdução (Depoimento de Raul Seixas, Dezembro de1979). Raul Rock Volume 2 As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor (Raul Seixas) Não para na pista (Raul Seixas e Paulo Coelho) Tu és o MDC da minha vida (Raul Seixas e Paulo Coelho) A verdade sobre a nostalgia (Raul Seixas e 1986 Paulo Coelho) Teddy Boy, rock e brilhantina (Raul FONTANA Seixas) Loteria da Babilônia (Raul Seixas e Paulo Coelho) Como vovó já dizia (Raul Seixas e Paulo Coelho) Al Capone (Raul Seixas e Paulo Coelho) Ave Maria da rua (Raul Seixas e Paulo Coelho) Um som para Laio (Raul seixas) Rockixe (Raul Seixas e Paulo Coelho) S.O.S. (Raul Seixas). Uah- Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! Abertura Quando acabar o maluco sou eu (Raul Seixas Lena Coutinho e Cláudio Roberto) Cowboy fora da lei (Raul seixas e Cláudio Roberto) Paranóia II (Raul Seixas 1987 Lena Coutinho e Cláudio Roberto) I Am (Raul Seixas) – COPACABANA Cambalache (Enrique Discépolo) – Loba (Raul Seixas Lena Coutinho e Cláudio Roberto) Canceriano sem Lar (Clínica Tobias Blues) (Raul seixas) Gente (Raul seixas e Cláudio Roberto) Cantar (Raul Seixas e Cláudio Roberto). A Pedra do Gênesis A Pedra do Gênesis (Raul Seixas, Lena Coutinho, José Roberto Abrahão) A Lei (Raul Seixas) Check-up (Raul Seixas) Fazendo o que o diabo gosta (Raul Seixas e Lena Coutinho) Cavalos Calados (Raul Seixas) Não 1988 quero mais andar na contramão (No No Song – David COPACABANA P. Jackson e H. Axton. Versão: Raul seixas e Lena Coutinho) I Don’t Really Need You Anymore (Raul Seixas e Cláudio Roberto) Lua Bonita (Zé do Norte e Zé Martins) Senhora Dona Persona (Raul Seixas e Lena Coutinho) - Areia na Ampulheta (Raul Seixas). 98 Raul Seixas e Marcelo Nova – A Panela do Diabo Be Bop a Lula (Gene Vincent e Bill Davis) Rock’ n’ Roll (Raul Seixas e Marcelo Nova) Carpinteiro do Universo (Raul Seixas e Marcelo Nova) Quando eu Morri (Marcelo Nova) Banquete de Lixo (Raul Seixas e 1989 Marcelo Nova) Pastor João e a Igreja Invisível (Raul WEA Seixas e Marcelo Nova) Século XXI (Marcelo Nova e Raul Seixas) Nuit (Raul Seixas e Kika Seixas) Best Seller (Marcelo Nova e Raul Seixas) Você roubou meu vídeo cassete (Raul seixas e Marcelo Nova) Cãimbra no pé (Marcelo Nova e Raul Seixas). Fonte: Elaborado pelo autor (2020) Quadro 2 – Veja quanto disco na estante II (ÁLBUNS PÓSTUMOS) ANO ÁLBUM GRAVADORA 1991 Eu, Raul Seixas PHILIPS 1992 O Baú do Raul PHILIPS 1993 Raul Vivo ELDORADO 1994 Se o Rádio Não Toca ELDORADO 1998 Documento MZA 2005 O Baú do Raul Revirado _ 2014 Eu Não Sou Hippie (Show ao vivo no Cine Teatro ELDORADO Patrocínio, Patrocínio – MG, 1974). 2014 Isso Aqui Não é Woodstock, Mas Um Dia Pode Ser ELDORADO (Show ao vivo no II Festival de Águas Claras – SP, 1981). Fonte: Elaborado pelo autor (2020) 99 RAUL SEIXAS E RAULZITO SEMPRE FORAM O MESMO HOMEM? UMA CONCEPÇÃO COMPLEXA DO SUJEITO Eu sou a areia da ampulheta O lado mais leve da balança O ignorante cultivado O cão raivoso inconsciente O boi diário servido em pratos O pivete encurralado Eu sou a areia da ampulheta O vagabundo conformado O que não sabe qual o lado Espreito pesadas pirâmides Cachaceiro mal amado O triste-alegre adestrado Eu sou a areia da ampulheta O que ignora a existência De que existem mais estados Sem ideia que é redondo O planeta onde vegeta Eu sou a areia da ampulheta Eu sou a areia da ampulheta Mas o que carrega sua bandeira De todo lugar o mais desonrado Nascido no lugar errado Eu sou... Eu sou você Areia da Ampulheta, Raul Seixas, A Pedra do Gênesis, 1988. 100 No paradoxo proposto por Morin (2012b), de que “quanto mais conhecemos, menos compreendemos o ser humano”, assumimos a condição de que permanecemos um mistério para nós mesmos. Por meio de sua poesia e de suas atitudes ao longo de sua trajetória artística, Raul Seixas demonstrou o quanto permaneceu misterioso para ele mesmo e para os outros. Mesmo afirmando muitas vezes que já não tinha dúvidas sobre si e que sabia dos caminhos e como eles são o mistério sempre esteve presente na sua vida (SOUZA, 1993, p. 24). Numa carta inacabada intitulada “Trabalho”, escrita para seu irmão Plínio Seixas em 1970, por exemplo, diz que já não há mais escapatória para nossa civilização: “Somos prisioneiros da vida e temos que suportá-la até que o último viaduto nos invada pela boca adentro e viaje eternamente nos nossos corpos” (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 24). Curiosamente, acabou se tornando nome de viaduto na sua cidade natal. Viver a realidade sempre foi um desafio para Raul. Aos 26 anos se queixava. “Tudo me cansa: as revelações da vida, a vida, a presença constante da morte nos meus calcanhares, nos meus ouvidos, a ausência de uma estrutura posta sobre ou sob os arcos, aros, erros... saco tudo isso!” (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 26). Ao recuperar T. S. Eliot, para quem o gênero humano não pode suportar um excesso de realidade, Edgar Morin sentencia que não podemos suportar excesso de lucidez. No final da vida, Raul demonstrava já não mais suportar a realidade, como afirmou em diversas oportunidades Kika Seixas, uma de suas companheiras. Sua criação artística parece de fato surgir da ligação entre a loucura por não suportar essa realidade, e a consciência da mesma a partir do grau de lucidez que tinha sobre a vida, sobre as coisas e sobre o próprio mundo. Aí eu penso: como viver o momento presente se o futuro não me deixa seguir sossegado? Bem que eu gostaria de não saber 101 de nada, de não entender as coisas tão profundamente ao ponto de fazer uma energia nociva ao meu mundo já agitado por si só (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p.25). A letra de “Maluco Beleza” soa como uma válvula de escape diante dos acontecimentos da vida, dos infortúnios da existência e dos problemas gerados pela consciência do real. Enquanto você se esforça pra ser Um sujeito normal E fazer tudo igual Eu do meu lado aprendendo a ser louco Um maluco total Na loucura real Controlando a minha maluquez Misturada com minha lucidez Vou ficar Ficar com certeza Maluco beleza Eu vou ficar Ficar com certeza Maluco beleza Trecho da letra de Maluco Beleza, Raul Seixas; Cláudio Roberto, O Dia em que a Terra Parou, 1977. A música como linguagem da alma humana nos oferece a possibilidade de conhecer mais profundamente o nosso ser. Quanto mais avançamos na tentativa de conhecer sobre Raul Seixas, mais mistérios aparecem para compreendermos a condição de humanidade que surge de sua poesia. As artes, incluindo aí a literatura, a poesia, a música, o cinema, a pintura não são somente meios de expressão estética, mas também modos de conhecimento da condição humana. Pergunta Edgar Morin: “Todo artista criador não é, de uma certa maneira, possuído pela obra que cria e histérico 102 no sentido em que dá existência a uma emancipação do espírito?” (MORIN, 2012b, p. 107). Com Raul Seixas não foi diferente e foi ao mesmo tempo. “Meu peito está inchado, é a criação que pede passagem, meu vômito” (SEIXAS, In: SOUZA, 1993, p. 8). Era possuído pela sua criação, mas ao mesmo tempo estava cansado de descobrir as coisas. A contradição, a ambiguidade que acompanham a condição humana também está presente na obra do artista. Diante das contradições e ambiguidades presentes em sua vida, suas ações, atitudes e trajetória musical, conseguiu por meio da criatividade e da imaginação que emerge de suas composições, dar sentido a reprodução do real e colocar a realidade na produção do imaginário. Em um de seus escritos, “Autoanálise”, afirma: “temo o possível desgoverno da minha mente criando algo que eu não quero ver” (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 24). Ao mesmo tempo em que tinha consciência da sua criação, Raul Seixas nos coloca diante do impasse em relação ao ato criador. Do seu reconhecimento ou não do papel do inconsciente e do imaginário no exercício da sua criação. Qualquer criação humana, como afirma Morin (2012b), inconsciente ou consciente, imaginário e real colaboram. É preciso reconhecer o papel do inconsciente e do imaginário no processo criativo, mas aceitar o seu mistério. Numa passagem de outro escrito, “Uma coisa” de 1970, Raul fala sobre fazer música e poesia. “... fazer poema é um saco; música outro saco, porque poemas e músicas eu tenho que fazer para os outros e nunca no momento exato!!!...” (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 26). Para alguém que apostou na música como veículo de comunicação e expressão do ser, o desabafo, demonstra uma irritação diante da vida. Mas como ele próprio afirmou, há momentos de felicidade e momentos de infelicidade. Em início da década de 1970, na condição de produtor musical da gravadora CBS, alvez já não se contentasse mais em apenas fazer músicas de sucessos para outros artistas. Durante esse período, produziu discos de sucessos para cantores e grupos da Jovem Guarda, além de ser o descobridor de Sérgio Sampaio, primeiro artista a ser lançado por ele como produtor. 103 O desejo de ser cantor já tornava a reaparecer para aquele rapaz tímido, engravatado, que usava óculos e carregava uma mala de executivo para o emprego de produtor. Começa então a revelar-se como um indivíduo humano que tem a capacidade, como afirma Morin (2012b), de ser um ser de mil e uma utilidades. Era produtor, compositor, multi-instrumentista e cantor. A letra da canção “Mas I Love You” (Pra Ser Feliz) problematiza essa condição de quere ser ou deixar de ser o que quiser a partir do amor. O que é que você quer? Que eu largue isso aqui? É só me pedir Soldado ou bancário Garçom ou chofer Eu paro de ser De ser cantor É só dizer Prá não morrer Meu único amor... Trecho da letra de Mas I Love You, Raul Seixas; Rick Ferreira, Metrô Linha 743, 1984. A partir das diversas atividades que exerceu antes de se tornar o artista consagrado que foi e de refletir sobre questões políticas, místicas, pessoais, filosóficas, esotéricas, cotidianas, religiosas, ontológicas, metafísicas, sentimentais, presentes em suas composições, dos projetos inacabados e dos sonhos inalcançados, Raul demonstrou ter habilidades as mais diversas dentro do cenário musical. Estou sempre experimentando, inventando, não se pode é deixar parar, porque quando se para apodrece e fede. Tem-se que conservar o dinamismo e buscar. O que? Não sei, não importa. Buscar. As portas estão sempre abertas para as 104 pessoas; é questão de coragem de aceita-las abertas e entrar. Eu entrei, entro e viajo e apenas começo agora a grande viagem: “Raul Seixas no país das Maravilhas (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 32) Mas, afinal, quem foi Raul Santos Seixas? Quem foi Raulzito? Quem foi Raul Seixas? Quem foi esse indivíduo? Quem foi esse produtor? Quem foi esse compositor? Quem foi esse cantor? Quem foi esse sujeito? Eu na realidade sou um ator que não quero parar e só interpretar um personagem; eu quero interpretar o garotinho sem barba da novela das sete, o mocinho da novela das oito, o viado do filme pornô, o intelectual esquizofrênico Raul Seixas (o cantor), e de repente meu campo ficou restrito a somente interpretar um personagem. Eu queria ser um dos personagens de Hitchcock, de Felini, de Nelson Rodrigues, da História da humanidade tipo Nero, Calígula, Jesus, Crowley. (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 38). Raul foi tudo e foi nada. Foi raso, foi largo e profundo. Foi o início, o fim e o meio dele mesmo. Foi um ser humano que se fez artista de muitos personagens: foi pantera, hippie, beatnick, foi católico, budista, protestante. Para não se alienar e ser apenas o compositor carismático como afirmava ser, não bastava. Era a verdadeira metamorfose ambulante. E as perguntas continuam sempre as mesmas: Quem eu sou? De onde venho? Onde vou dar? 105 Figura 4 - Raul fazendo pose de pensador Fonte: www.google.com.br As questões filosóficas fundamentais da vida sempre o atormentaram. Desde as primeiras descobertas da infância, passando pelos arroubos da juventude até os últimos momentos de sua existência nesse mundo, as interrogações permearam o universo existencial de Raul Seixas. O seu quarto sempre foi companheiro de suas angústias, perturbações, inquietações, felicidades, confissões, infelicidades, desabafos, solidão, fugas, composições e tudo mais que possa caber lá dentro das quatro paredes. Como em “Para Noia”, por exemplo, onde relata alguns de seus medos. Quando esqueço a hora de dormir E de repente chega o amanhecer Sinto uma culpa que eu não sei de que Pergunto o que é que eu fiz? Meu coração não diz e eu... Eu sinto medo! Eu sinto medo! 106 Se eu vejo um papel qualquer no chão Tremo, corro e apanho para esconder Com medo de ter sido uma anotação que eu fiz Que não se possa ler E eu gosto de escrever, mas... Mas eu sinto medo! Eu sinto medo! Trecho da letra de Para Noia, Raul Seixas, Novo Aeon, 1975. Ao explicar essa composição, afirmava que Para Noia é como se fosse uma garota. E que era assim que ele via o medo. “Foi um dia que fiquei encucado toda a noite e tive muito medo quando vi o dia nascendo. Terror mesmo. Aí decidi: ou eu luto com o medo, ou ele me vence” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 33). Foi brigando com seus fantasmas interiores e exteriores que saiu essa composição. Sempre estava com a sensação de estar sendo observado, principalmente quando estava só e era noite e silêncio. Ao falar, por exemplo, sobre sua primeira tentativa de emplacar Raulzito e Os Panteras no Rio de Janeiro, faz o seguinte relato a Jay Vaquer em nove de agosto de 1972: Casei em 1967 e vim para a cidade maravilhosa. Passei dois anos na pior condição que um casal pode passar. Quando cheguei com a mala de couro forrada de pano forte, brim cáqui, eu trazia essa mala cheia de ideias e a cabeça cheia de dez anos de espera. O peito só faltava arrebentar. Mas, pouco a pouco, foram os sonhos se transformando em pesadelos. E como nada dava certo, fui obrigado a voltar para Salvador, para talvez ser um bancário ou coisa parecida (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 74). Esse período foi muito difícil psicologicamente para Raul. Recolhia-se no seu quarto e evitava manter qualquer contato com as pessoas. Estava fora de mim, afirmava. “Desse período eu não quero falar porque ele é muito escuro, muito confuso. Vivia trancado no meu quarto, lendo o tempo todo. Lendo e escrevendo” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 75). 107 O fato de num primeiro momento não ter conseguido emplacar artisticamente na cidade do Rio de Janeiro provocou reações que refletiram diretamente nas suas composições daquele momento. Vivia trancado no quarto lendo e escrevendo, declarando ter escrito as melhores coisas nessa fase. Algumas de suas composições que viriam a se tornar sucesso anos mais tarde são dessa época e foram escritas nas paredes do seu quarto. Sabia da preocupação que causava a sua mulher e a família, mas era um momento muito complicado, no qual a reclusão fazia parte do seu comportamento, evitando qualquer conversa. Atribui a sua recuperação a segunda chance que teve no Rio de Janeiro, quando foi chamado justamente para ser produtor da CBS. “Talvez eu tivesse trilhado o caminho da paranoia se não tivesse tido a chance que tive” (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 75). A arte o salvou naquele momento. O fato de estar em contato outra vez com a arte o tirou do caminho da paranoia. A música se tornou para Raul uma forma de registrar os vestígios deixados por ele vividos naqueles momentos difíceis de sua existência. Diante da solidão que muitas vezes o acompanhava, apesar de estar cercado por pessoas, conseguiu produzir canções que revelam um conhecimento sobre o mundo e sobre a humanidade. Seu ato de compor estava impregnado pelas mais diferentes sensações. E as paredes do quarto faziam o registro desses momentos. Morin afirma que: A criação nasce do encontro entre o caos genésico das profundezas psicoafetivas e a pequena chama da consciência. A criação é um jogo que se realiza a partir de uma aptidão organizadora (competência), que catalisa em mensagem, ideia, forma, tema musical o que era apenas tumulto, ruído e cacofonia (MORIN, 2012b, p. 126). As composições acabaram sendo irrigadas pelas profundas forças da afetividade, angústias, desejos, temores e tantas outras sensações. A invenção e a criatividade também faziam parte do universo do artista. Suas habilidades desenvolvidas e testadas nos estúdios das gravadoras durante a produção de seus álbuns ou de outros cantores até as histórias que 108 criava sobre o contato com discos voadores, o encontro com John Lennon em Nova Iorque, as entrevistas que concedia, entre outras tantas aventuras vividas pelo artista durante sua trajetória, comprovam o quanto Raul era inventivo e sabia extrair daquelas situações experiências para sua vida e suas composições. Perguntado, por exemplo, por Jay Vaquer sobre uma maravilha, Raul responde: O universo. O que eu só sei que não sei. O que está lá. No outro lado do espelho. A mente. A vida. Os fenômenos inexplicáveis. Paranoia. Loucura. Sonho. Cosmos. Consciência cósmica. 2001. Homo Futurus. Velocidade Vetônica. E sobre o adágio na sua parede diz o seguinte: Que o mel é doce é que coisa que me nego a firmar, mas que parece doce eu afirmo plenamente (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 78). Assim como os grandes pensadores que segundo Morin (2012b) tem a capacidade de modificar nossa maneira de ver o mundo, suas composições propõe uma tradução e uma reconstrução da realidade. Pelo menos comigo foi assim. A forma como Raul percebia, vivenciava, compreendia ou não a vida, refletia na sua arte, na sua poesia, nas suas músicas, na sua visão de mundo. Naquilo que queria dizer por meio de suas composições e na mensagem que queria transmitir. A música “Sapato 36” em parceria com Cláudio Roberto, faz referência à opressão e à vontade de se libertar das imposições. Eu calço é 37 Meu pai me dá 36 Dói, mas no dia seguinte Aperto meu pé outra vez Pai eu já tô crescidinho Pague prá ver, que eu aposto Vou escolher meu sapato 109 E andar do jeito que eu gosto... ... Você só vai ter o respeito que quer Na realidade No dia em que você souber respeitar A minha vontade... Trecho da letra de Sapato 36, Raul Seixas; Cláudio Roberto, Há Dez Mil Anos Atrás, 1976. Dizia não trazer respostas e que cantava para sua saída. Se ele conseguia sair, todos podiam sair pelas próprias portas. Afirmando que a vida é o nosso único bem e que só pertence a nós mesmos. Podemos fazer dela o que quisermos. Ao problematizarmos sua condição como indivíduo, ou seja, como alguém que tem consciência de sua subjetividade, pensamos não somente como indivíduo, mas também como sujeito. Para Edgar Morin, um sujeito supõe um indivíduo, mas a noção de indivíduo só ganha sentido ao comportar a noção de sujeito. Morin coloca o indivíduo como peça chave na trindade (indivíduo, sociedade, espécie). É fundamental a noção de sujeito para compreendermos a condição humana e as relações que se evidenciam a partir dessa referida trindade. Como afirma Morin: Nenhum outro indivíduo pode dizer Eu em meu lugar, mas todos os outros podem dizer Eu individualmente. Como cada indivíduo vive e experimenta-se como sujeito, essa unicidade singular é a coisa humana mais universalmente partilhada. Ser sujeito faz de nós seres únicos, mas essa unicidade é o aspecto mais em comum (MORIN, 2012b, p. 75). A concepção de sujeito proposta por Edgar Morin tem como fundamento uma base biológica. A ideia de autonomia é inseparável da ideia de auto-organização e de indivíduo como fundamento do sujeito (MORIN, 1996). Uma primeira consideração da noção de sujeito para Morin estar em dizer que o egocentrismo é a própria definição do sujeito no qual o Eu 110 posiciona-se como o centro de seu mundo. Mesmo estando só, o sujeito nunca é isolado, pois o Outro e o Nós o habitam. O sujeito Raul era único. O artista também. Suas composições são únicas. Sua poesia é única. Suas atitudes também. Ninguém pode dizer Eu em meu lugar ou no lugar do outro. Ninguém pode dizer Eu no lugar de Raul Seixas. Raul era o centro do seu próprio mundo, agia a partir do seu Eu. O Eu é único para cada um. Logo, o sujeito é egocêntrico, mas o seu egocentrismo não o leva somente ao egoísmo. Na música “Carpinteiro do Universo”, composta em parceria com Marcelo Nova, está sempre presente a vontade de querer ajudar alguém. Carpinteiro do universo inteiro eu sou Carpinteiro do universo inteiro eu sou Não sei por que nasci pra querer ajudar a querer consertar o que não pode ser Não sei pois nasci para isso e aquilo E o enguiço de tanto querer Carpinteiro do universo inteiro eu sou Carpinteiro do universo inteiro eu sou Estou sempre pensando em aparar o cabelo de alguém E sempre tentando mudar a direção do trem À noite a luz do meu quarto eu não quero apagar Pra que você não tropece na escada, quando chegar Carpinteiro do universo inteiro eu sou Carpinteiro do universo inteiro eu sou O meu egoísmo é tão egoísta Que o auge do meu egoísmo é querer ajudar Mas não sei por que nasci 111 pra querer ajudar a querer consertar O que não pode ser Trecho da letra de Carpinteiro do Universo, Raul Seixas; Marcelo Nova, A Panela do Diabo, 1989. O egocentrismo do sujeito favorece não somente o egoísmo, mas também o altruísmo. Ao querer ajudar o outro, como evidencia a composição, somos capazes de dedicar o nosso Eu a um Nós e a um Tu (Morin, 2012). Num escrito de 1983, Raul Seixas fala sobre ajudar os outros: Eu sou simples, acanhado, educado, incapaz de ferir alguém com este propósito. Sou primeiramente o cara que só quer ver tudo e todo mundo feliz. A mim não importa pensar que estou triste pois sei que sou feliz. Por ser feliz é que eu aguento numa boa, a infelicidade do próximo. Podem vir a mim; aqui está o seu abrigo, eu jamais me negarei a receber e ajudar quem quer que seja de qualquer nível ou raça. Minha função é essa (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 48). Está presente mais uma vez aí o altruísmo que emana do egoísmo do próprio sujeito. No entanto, mesmo vivendo para si e para o outro dialogicamente, como afirma Morin, o egocentrismo pode constranger o altruísmo, sofrendo o sujeito a pressão de forças contraditórias muito poderosas. Na música “Eu sou egoísta”, a força altruísta perde espaço para o egocentrismo. A vontade de ajudar cede lugar então à afirmação de que se é egoísta, de que se é. Eu faço. Eu vou. Eu quero. Eu sou. ...Eu sou estrela no abismo do espaço O que eu quero é o que eu penso e o que eu faço Onde eu tô não há bicho-papão Eu vou sempre avante no nada infinito Flamejando meu rock, o meu grito Minha espada é a guitarra na mão... ...Enquanto eu provo sempre o vinagre e o vinho 112 Eu quero é ter tentação no caminho Pois o homem é o exercício que faz ...Eu sei... sei que o mais puro gosto do mel É apenas defeito do fel E que a guerra é produto da paz... ...Se você acha o que eu digo fascista Mista, simplista ou anti-socialista Eu admito, você tá na pista Eu sou ista, eu sou ego Eu sou ista, eu sou ego Eu sou egoísta, eu sou Eu sou egoísta, eu sou Por que não Trechos da letra de Eu sou Egoísta, Raul Seixas; Marcelo Motta, Novo Aeon, 1975. O sujeito vai oscilar entre o egocentrismo e o altruísmo como demostra as duas composições anteriores. O Eu sou eu nos coloca diante da auto - objetivação. Segundo Morin (1996), o Ego acaba sendo uma objetivação do Eu para si mesmo, permitindo ao Eu refletir-se e reconhecer-se objetivamente. O Ego diferente do Eu é ao mesmo tempo idêntico a ele. A noção de sujeito comporta uma dualidade interior. Cada um de nós dialoga consigo mesmo. Raul Seixas diante da solidão estava num verdadeiro face a face entre si e não - si (MORIN, 2012b, p. 86). No caso da mentira, por exemplo, revela-se nossa aptidão a duplicação, ao mesmo tempo em que temos a possibilidade de esconder para nós mesmos essa duplicação. Assim, o Ego mentiroso consegue se autoconvencer da sua própria sinceridade. Entre as inúmeras histórias contadas por Raul Seixas ao longo da carreira, está a de um suposto encontro com John Lennon nos Estados Unidos. Em várias 113 entrevistas para jornais e revistas especializadas em música, sempre que perguntado sobre o suposto encontro, Raul Seixas contava a história a partir do mesmo enredo, mas com algumas variações. Em entrevista a Ricardo Porto de Almeida em Outubro de 1980, quando perguntado sobre John Lennon afirma: Aí fui para os EUA, me encontrei com Bob Dylan, encontrei o John Lennon, que segurou a minha barra lá. Conversei muito com ele. Veio perguntando quais eram os problemas. Quem era a figura assim, tipo assim, do Brasil. Sempre tem um George Washington, sempre tem um Fidel Castro. Eu pensei, pensei... D. Pedro I, não pode. Falei, e ele com seus oculozinhos, bicho. Quem? Quem? Quem? Aí disse: Getúlio Vargas. Bicho, me saí muito bem. Contei a história toda, a história do Brasil (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 116). Numa outra entrevista concedida ao jornalista Walterson Sardenberg a revista Amiga em 1982, Raul Seixas conta a seguinte história quando perguntado sobre a época em que conheceu John Lennon: Foi incrível! Eu fui com um repórter do Cruzeiro. Nem me lembro mais o nome do sujeito. O Lennon estava, naquela fase, separado da Yoko, e o tal repórter já chegou perguntando sobre o assunto. Na mesma hora um guarda-costas nos botou para fora. O John ficou mesmo ultra cabreiro com a gente. Aí eu consegui explicar a ele quem eu era, e o clima melhorou. John acabou interessadíssimo no Brasil: na sua história. Ele era libriano, tipo da pessoa que ouve mais do que fala (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 124). A simulação é uma característica marcante da nossa condição humana, e Raul Seixas revelou esse traço a partir das personalidades e de seus diferentes personagens. Quero ser o homem que sou (Dizendo a verdade) - O Homo Complexus Partindo desses princípios, podemos caracterizar Raul Seixas ao mesmo tempo como produto e produtor da sua condição. Assim como sua música, 114 que pode ser percebida como uma construção a partir das interações que o artista vivenciou e experienciou no decorrer da sua vida em sociedade. A arte de Raul Seixas pode ser compreendida como resultado da interação que estabeleceu com os outros indivíduos na vida em sociedade a partir de um Eu egocêntrico que o fez ser centro do mundo nas suas ações, nas suas atitudes, naquilo que pensou e naquilo que disse. De acordo com o que Edgar Morin nos propõe, o sujeito é por natureza fechado e aberto. Estando sempre numa relação ambivalente. Vivemos, de fato, num circuito de relações interdependentes e retroativas que alimenta, de maneira, ao mesmo tempo, antagônica e complementar, a racionalidade, a afetividade, o imaginário, a mitologia, a neurose, a loucura e a criatividade humanas (MORIN 2012b, p. 126-127). Diante da racionalidade, da técnica, da lógica, do cálculo presentes na dura realidade da vida do sapiens, o cinema, os livros, a música, o álcool foram para Raul uma forma de suportar a realidade. Seja na condição de amante da sétima arte, da literatura, da música, seja na condição de compositor que a partir das suas canções expressou a sua imaginação, o lúdico, a loucura, o delírio, a afetividade, Raul Seixas conseguiu como poucos expressar o componente da loucura, da irracionalidade, do delírio do ser humano de forma consciente e inconsciente por meio de suas músicas. A nossa condição de demens pode ser observada em inúmeras composições de Raul Seixas, nas quais a afetividade, o amor, o estético, o mitológico, o mistério, a religiosidade estão presentes. Na música “Nuit”, encontra-se uma ode ao feminino. Uma referência à deusa egípcia da noite, princípio feminino de tudo segundo a tradição esotérica: Eu, eu ando de passo leve pra não acordar o dia Sou da noite a companheira mais fiel qu'ela queria! Amo a guerra, adoro o fogo Elemento natural do jogo, senhores: Jamais me revelarei! 115 Jamais me revelarei! E quão longa é à noite. A noite eterna do tempo Se comparado ao curto sonho da vida Chega enfeitando de azul A grande amante dos homens Guardando do sol, seu beijo em comum Seja bom ou o que não presta Acendo as luzes para nossa festa, senhores: Eu sou o mistério do sol! Eu sou o mistério do sol! Mas é com o sol que eu divido toda a minha energia Eu sou a noite do tempo Ele é o dia da vida Ele é a luz que não morre Quando chego e anoiteço O sol dos dois horizontes A mais perfeita harmonia Trecho da letra de Nuit, Raul Seixas; Kika Seixas, Raul Seixas e Marcelo Nova – A Panela do Diabo, 1989. O estado poético e o estado prosaico, a nossa condição sapiens- demens, o Homo complexus foram vivenciados por Raul Seixas a partir da sua obra artística e da sua experiência de vida. As dezenas de canções, os cinco casamentos, as difíceis relações com o mercado musical, empresários e as gravadoras, os graves problemas de saúde, a insuportável realidade, os vícios, os altos e baixos da carreira artística, o pouco convívio com as três filhas, o sucesso, a timidez, a euforia, o otimismo, o pessimismo, as viagens para os Estados Unidos, as reclusões, os sumiços, as parcerias, os projetos inacabados, as ideias não concretizadas, as relações familiares, as relações com a 116 imprensa, foram acontecimentos que marcaram a existência de Raul Seixas diante da sua passagem por essa vida e caracterizaram sua condição de humanidade de forma singular. A realidade humana é o produto de uma simbiose entre o racional e o vivido. A música tornou-se para Raul Seixas o elemento fundamental da sua existência e do equilíbrio ou desequilíbrio entre seus duplos. As suas composições proporcionaram nutrir a sua vida de imaginário e sensibilidade, sem a qual a vida seria ainda muito mais difícil diante de tanta racionalidade e técnica presentes nesse mundo. A afetividade serve de ligação entre o homo sapiens e o Homo demens. Invade e é invadida em todas as manifestações do Homo complexus. Está presente nas nossas vidas. A música de Raul Seixas bebeu da afetividade, e o próprio amor cantado pelo artista em diversas composições, demonstra também a nossa condição sapiens-demens. Na música “Love is Magik”, composta por Raul Seixas e Glória Vaquer, sua segunda esposa, ele canta o amor como uma manifestação e uma chama mágica, um jogo sagrado. Love is a magick manifestation Love is a magick flame Love is a magick manifestation Love is a sacred game Yes, with the suns I go Like a new "star" I flow High! As the mountains I'm gone Deep! As the oceans Making love Love is a magick manifestation Love is a magick flame Love is a magick manifestation 117 Love is a sacred game Trecho da letra de Love is Magik Raul Seixas; Space Glow, Há Dez mil anos atrás, 1976. O amor é a grande poesia no mundo prosaico moderno e a grande expressão da afetividade. Como afirma Edgar Morin no livro Amor, Poesia, Sabedoria: “O amor faz parte da poesia da vida. A poesia faz parte do amor da vida. Amor e poesia engendram-se mutuamente e podem identificar-se um com outro” (MORIN, 2005, p. 9). Entre tantos sentimentos cantados por Raul Seixas em suas composições, o amor sempre esteve presente e foi cantado de diversas formas durante a sua obra poética musical. Em A maçã, faz referências ao amor livre, sem ciúmes, sem perseguições, sem cobranças. Se esse amor Ficar entre nós dois Vai ser tão pobre amor Vai se gastar... Se eu te amo e tu me amas Um amor a dois profana O amor de todos os mortais Porque quem gosta de maçã Irá gostar de todas Porque todas são iguais... ... Amor só dura em liberdade O ciúme é só vaidade Sofro, mas eu vou te libertar O que é que eu quero Se eu te privo Do que eu mais venero Que é a beleza de deitar... 118 Quando eu te escolhi Para morar junto de mim Eu quis ser tua alma Ter seu corpo, tudo enfim Mas compreendi Que além de dois existem mais... Trechos da letra de A Maçã, Raul Seixas; Paulo Coelho; Marcelo Motta, Novo Aeon, 1975. As composições de Raul Seixas foram a expressão maior do seu estão poético. Viveu de forma intensa o estado poético, o que lhe proporcionou durante sua vida segurar, vivenciar e suportar por determinados momentos a prosa da existência. Sua obra nos revela sua experimentação tanto pelo estado poético como pelo estado prosaico, no qual o lúdico, o imaginário, o prosaico, a racionalidade, a poesia, a objetividade, o cálculo, a afetividade convivem dialógica e recursivamente. Sempre no campo da tensão. “Não podemos escapar da dialógica sapiens-demens, pela qual se tece a condição humana. Assumir o jogo dialógico racionalidade/afetividade, prosa/poesia, é assumir o destino humano” (MORIN, 2012b, p. 154). Viver poeticamente significa viver intensamente a vida em sua poesia e em sua racionalidade, na sua ludicidade, no estético e no conhecimento. O mistério do universo – o singular e o universal Cada indivíduo vive e se experimenta como sujeito singular por meio de uma subjetividade singular que é diferente em cada um de nós, mas é ao mesmo tempo comum a todos. Somos unos, singulares, duplos, plurais e diversos. Somos portadores, como um microcosmo, do universo e da vida. Mas não somos seres explicados somente pela 119 cosmologia, pela física e pela biologia. Somos portadores da cultura na sua universalidade humana e nas suas características singulares. Somos os criadores e as criaturas da esfera do espírito e da consciência. Somos os criadores e as criaturas dos reinos do mito, da razão, da técnica, da magia. Estamos enraizados em nosso universo e em nossa vida, mas nos desenvolvemos para além disso. É nesse além que se dá o desenvolvimento da humanidade e da desumanidade da humanidade (MORIN, 2012b, p. 50). Raul Seixas como um ponto no holograma. Como alguém que traz em si e ao mesmo tempo constitui um cosmo, trouxe: multiplicidades interiores, personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensivo e no secreto, balbucios embrionários em suas cavidades e profundezas insondáveis (MORIN, 2000, p. 57). Um ser que carregou em sua singularidade toda a humanidade, toda a vida, mas também todo o cosmo. Incluindo aí todos os mistérios que compõem a condição humana. As composições e a poesia de Raul Seixas constituem uma linguagem poderosa. Ao mesmo tempo em que expressam a experiência de vida de um sujeito, são portadoras de uma compreensão sobre nossa condição de ser humano a partir dos paradoxos, das contradições, da ambiguidade, dos duplos e da nossa condição de universalidade e singularidade. Perguntado em diversas ocasiões sobre que tipo de música fazia, Raul Seixas passou a dizer num determinado momento da sua carreira artística que o que ele fazia era Raulseixismo. “Não quero ler nem ouvir mais nada, por um bom tempo. Quero descobrir o que é meu mesmo, o que sou capaz de fazer sozinho (SEIXAS. In: PASSOS, 2012, p. 83)”. Embora influenciado pela filosofia, música, literatura, cinema, psicologia, rock dos anos de 1950, Beatles, contracultura, a busca pelo autoconhecimento foi um mistério e um desafio que Raul Seixas levou até o último álbum, até o último som de sua vida, até a última partitura de suas 120 inquietações. Fazer de sua música fonte de conhecimento de si e do outro foi para o compositor/cantor uma obstinação. Como sua música é impregnada de universalidade? Como se explicitam as singularidades de suas composições? Onde se singulariza as suas composições? O que fez dele um ser singular e ao mesmo tempo universal? O que o tornou singular na cena musical brasileira? O que fez Raul Seixas ser o artista que foi? Compor as músicas que compôs? Viver da maneira que viveu? Meu nome é Raul e eu acho ele forte; o som de um rugido no início e um uivo de lobo no final. Sinto-me impelido nesse momento a escrever sem pudor, sem medo das palavras, significados, valores, pois o que importa neste momento é que vou escrever sobre mim. Sou eu sem interferências externas... Cada ser é seu próprio universo! Abomino qualquer tentativa de agregação entre pessoas que são diferentes e julgam pensar igual. Mentira!!! Toda espécie de agrupamento na vida é uma tentativa de fortalecimento, necessidade de amparo. Medo de saber que é lindo ser diferente de todos os demais (SEIXAS, In: SOUZA, 1993, p. 57). Em dois pequenos textos, intitulados “Situações vergonhosas” e “Listas das tentativas de controlar situações”, ambos de 1987, expressa, a partir de sua escrita e de seus sentimentos, aspectos da condição humana, onde o erro e a ilusão, além da contradição, fazem parte da nossa vida. No primeiro texto fala de suas vergonhas alcoólicas, dizendo que na condição de cantor e compositor de nome e da delicadeza do seu trabalho jamais poderia ter mostrado ao mundo algumas atitudes e episódios chocantes que marcaram a sua carreira, segundo as suas próprias palavras. Entre essas referidas situações ele lista as seguintes: as bebedeiras e algumas quebradeiras em hotéis após os shows; o episódio na cidade de Caieiras em São Paulo, onde de tão bêbado o público achou que não era ele que estava ali, pois esquecia as letras das próprias músicas; o não comparecimento há alguns shows; os problemas com álcool e outras drogas; o fato de ter abandonado a primeira esposa e filha no primeiro apartamento comprado pela Caixa Econômica Federal; as inúmeras internações em hospitais psiquiátricos e as dívidas em bares da redondeza por onde morava. 121 No segundo texto, Raul lista as tentativas de controlar as situações a partir da seguinte pergunta “se eu não controlei o álcool, como poderia embriagado por ele, controlar uma série de situações e pessoas?” (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 176). Ter o controle das vendas dos discos pelos contratos feitos por advogados sobre os direitos autorais; impor ordem e disciplina em casa seja por meio da lista de compras ou da educação e horários rígidos para as crianças; controle dos cheques e a dificuldade de lidar com dinheiro. Raul afirmou que tentou controlar a vida e jamais obteve êxito. Ele disse mesmo ridicularizar essas tentativas. Sempre foi um questionador diante daquilo que não queria fazer. Nos fragmentos da letra da música “Você”, expõe a nossa relação com aquilo que fazemos sem gostar a partir da nossa inserção na sociedade que vivemos e nas atividades que desempenhamos. Você alguma vez se perguntou por quê? Faz sempre aquelas mesmas coisas sem gostar Mas você faz, Sem saber por que Você faz e a vida é curta Por que deixar que o mundo lhe acorrente os pés Fingir que é normal estar insatisfeito Será direito O que você faz com você Por que você faz isso, por quê? Detesta o patrão no emprego Sem ver que o patrão sempre esteve em você E dorme com a esposa por quem já não sente amor Será que é medo? Por quê Você faz isso com você? 122 Por que você não para um pouco de fingir E rasga esse uniforme que você não quer Mas você não quer Prefere dormir e não ver Por que você faz isso, por quê?... Trecho de Você, Raul Seixas; Cláudio Roberto, O Dia em que a Terra parou, 1977. A música e a poesia de Raul Seixas revela nossa capacidade e incapacidade de lhe dar com os paradoxos e as contradições humanas. Ao mesmo tempo problematiza a tensão essencial em querer ocupar o lugar de demiurgo de sua própria vida e da tragédia da servidão e do abandono aos quais todos estamos condenados. Dessa perspectiva, é possível, mesmo no caso do sujeito que viveu os limites dos sapiens-demens, encontrar chaves para compreender a condição humana? Sim e não. Talvez seja melhor reconhecer os limites das linguanges, das palavras tanto quanto das teorias e interpretações das ciência. A condição humana é da ordem do inenarrável e do intraduzível. Talvez ela só possa ser vivida no mistério, no desamparo, na incompletude, mas também, simultaneamente, no gozo e no êxtase. É mais provável que ela seja a única contingência de viver por viver. Vai lá, Raul, agora vamos cantar por cantar. 123 AGORA VOU CANTAR POR CANTAR – A ÚTIL INUTILIDADE DA MÚSICA O sol da noite agora está nascendo Alguma coisa está acontecendo Não da no rádio nem está Nas bancas de jornais Em cada dia ou em qualquer lugar Um larga a fábrica, outro sai do lar E até as mulheres, dita escravas Já não querem servir mais Ao som da flauta da mãe serpente No para-inferno de Adão na gente Dança o bebê Uma dança bem diferente O vento voa e varre as velhas ruas Capim silvestre racha as pedras nuas Encobre asfaltos que guardavam Histórias terríveis Já não há mais culpado nem inocente Cada pessoa ou coisa é diferente Já que assim baseado em que você pune Quem não é você? Ao som da flauta da mãe serpente... Querer o meu não é roubar o seu Pois o que eu quero é só função de eu Sociedade Alternativa Sociedade Novo Aeon É um sapato em cada pé Direito de ser ateu ou de ter fé Ter prato entupido de comida que cê mais gosta É ser carregado ou carregar gente nas costas Direito de ter riso, de prazer E até direito de deixar Jesus sofrer Novo Aeon, Raul Seixas; Cláudio Roberto; Marcelo Motta, Novo Aeon, 1975. 124 Passados trinta anos6 da sua morte, a figura de Raul Seixas continua a despertar grande interesse e curiosidade do público. O cantor e suas diversas criações teimam em zumzumbizar nos nossos ouviados e a perturbar nosso sono. O seu vasto repertório tem sido visitado e revisitado por diferentes gerações. Suas canções ainda estão presentes nas rádios, nos programas de televisão e principalmente nas diferentes plataformas de acesso a música na internet. Desde a sua partida da Terra, a sua discografia tem sido relançada. Trabalhos acadêmicos7 nas mais diversas áreas do conhecimento têm discutido a sua obra a partir de diferentes aspectos. Livros sobre o artista com múltiplas abordagens são lançados quase que anualmente8. É nesse caldeirão que a sua música se renova e a eternidade de sua mensagem como ele queria vai permanecendo, especialmente, na medida em que novos fãs vão surgindo e se tornando admiradores do conjunto da obra do artista. Com toda essa vitalidade e potência que sua música proporciona, Raul Seixas seria então um contemporâneo no sentido que Giorgio Agamben o define? As composições do artista podem ser compreendidas como contemporâneas? O que Raul disse a partir da sua música pode ser encarado como contemporâneo? Ele é um homem do seu tempo? Ou um homem distante do seu tempo? Quais os segredos e mistérios que o fazem 6 Em Agosto de 2019 a morte do artista completou trinta anos. Diversas iniciativas espelhadas ao longo do ano passado por todo o país relembraram a data. Shows tributos, passeatas, lançamentos de livros, entre outras manifestações marcaram as celebrações de homenagem a Raul seixas em diferente lugares do país. 7 Monografias, dissertações e teses tem constantemente procurado decifrar a partir de diferentes leituras e olhares a sua produção artística. Os trabalhos envolvendo alguma temática relacionada à obra ou vida de Raul podem ser encontrados nas áreas de Sociologia, Antropologia, Letras, Direito, Comunicação, História, entre outras. 8 Um dos maiores desafios enfrentados por mim quando fui escohido pelo tema de pesquisa, foi justamente me lançar no desafio de pesquisar sobre alguém que é tão cantado em prosa e verso. De acordo com o jornalista Jotabê Medeiros (2019), já foram publicados mais de sessenta livros sobre Raul. 125 permanecer mais vivo do que nunca na cena musical brasileira e na cabeça de muita gente? Por que sua música atrai tanto interesse? Num relato sobre a sua própria existência, diz: Minha existência caminha muitos anos a frente do meu corpo, e é justamente meu corpo frágil, magro, esquálido e desprovido de reservas de energia que tem que suportar as demandas da mente atribulada, terrivelmente neurotizada pela civilização (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 25). A música parecia sugar toda a energia corpórea do artista. Por mais simples que fossem as letras das canções, nelas estavam presentes e externada as suas inquietações. Estava simplesmente dito aquilo que ele queria dizer. Agamben entende que pertence verdadeiramente ao seu tempo, e é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado as suas pretensões, sendo, portanto, nesse sentido, inatual (AGAMBEN, 2009, p. 58). Este argumento nos coloca diante de um deslocamento e de um anacronismo que está presente na relação do homem com o seu tempo. Aí eu penso: como viver o momento presente se o futuro não me deixa seguir sossegado? Bem que eu gostaria de não saber de nada, de não entender as coisas tão profundamente ao ponto de fazer uma energia nociva ao meu mundo já agitado por si só! (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 25). Raul foi capaz de perceber e apreender o seu tempo justamente porque não estava perfeitamente encaixado nele. Embora pertencesse a ele, ao mesmo tempo dele se distanciava. Suas composições, suas músicas, suas atitudes como artista expressava a sua condição de pertencer ao seu tempo e dele se distanciar. Era um homem de seu tempo. Podia até detestá-lo, mas a ele pertencia. A contemporaneidade é uma singular relação com o tempo como afirma Agamben, que adere a este e ao mesmo tempo dele toma distância. O tempo acaba se caracterizando como aquele que adere e ao mesmo 126 tempo se distancia por meio de uma dissociação e um anacronismo. Mais do que outros de sua época, Raul conseguiu compreender o seu tempo justamente por essa capacidade de deslocamento e essa possibilidade de manter fixo o olhar sobre ele. A sua música expressa essa relação de alguém que não está adequado às pretensões de seu tempo, mas que ao mesmo tempo consegue compreendê-lo, decifrá-lo, entender as diferentes transformações. O contemporâneo, assim como o poeta, deve manter fixo o olhar no seu tempo. A partir desta definição, o autor nos propõe outra entrada para refletir sobre o que é contemporaneidade. “Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62). Contemporâneo, portanto, é aquele que sabe ver na obscuridade, que sabe ver nas trevas, que sabe ver no escuro. Mas o que é tudo isso? O que é ver na escuridão? O que significa ver na obscuridade? Raul de fato conseguiu enxergar na escuridão? Conseguiu olhar para além da claridade da luz? Conseguiu perceber entre luzes e sombras quem somos? Quem era? Eu já estou cansado de descobrir as coisas e meus vinte e quatro anos representam a própria eternidade diante da vida. A fossa existencial é uma constante, e não há alternativa de fuga, pois os momentos são momentos e a felicidade – já está claro – não existe em tempo eterno (SEIXAS. In: SOUZA, 1993, p. 25). O escuro nem sempre é aquilo que não enxergamos ou aquilo que deixamos de ver. A escuridão pode ser a própria luz. De acordo com Agamben, contemporâneo é o sujeito que não se deixa cegar pelas luzes da razão e que consegue enxergar a parte da sombra. Luz e escuridão são inseparáveis. Raul Seixas faz a seguinte pergunta numa música chamada “Que luz é essa?”. Que luz é essa que vem vindo lá do céu? Que luz é essa que vem vindo lá do céu? Que luz é essa? 127 Que vem chegando lá do céu? Que luz é essa que vem vindo lá do céu? Brilha mais que a luz do sol Vem trazendo a esperança Prá essa terra tão escura Ou quem sabe a profecia das divinas escrituras Quem é que sabe o que é que vem trazendo esse clarão Se é chuva ou ventania, tempestade ou furacão Ou talvez alguma coisa que não é nem Sim nem Não Que luz é essa, gente Que vem chegando lá do céu... Letra da música Que Luz é essa?, Raul Seixas e Cláudio Roberto, O Dia em que a Terra Parou, 1977. Perceber o escuro do presente e essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, como afirma Agamben, significa ser contemporâneo. Por isso, os contemporâneos são raros, diz o autor. E por isso ser contemporâneo é antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós (AGAMBEN, 2009, p. 65). A música de Raul Seixas conseguiu provocar uma fratura e uma ruptura com o seu tempo. Suas composições conseguiram não só manter fixo o olhar no seu tempo percebendo a escuridão de sua época, como também identificou a luz que se aproximava diante do contexto vivenciado e experimentado pela sua condição de humanidade na vida em sociedade. Diante de um cenário cada vez mais caótico, confuso e problemático, onde o fantasma do autoritarismo, da perseguição, da intolerância, da censura, da violência cognitiva de um pensamento mutilador que esquarteja a condição humana da natureza persiste em continuar nos assombrar, a poesia de Raul nos chama ao enfrentamento e a luta. 128 Nos chama a religação, a nos conectar com o que foi retirado de nós. Propõe tomada de atitudes por nós humanos frente aos desafios existentes nesses tempos obscuros e incertos. Sua música nos leva a refletir sobre as possibilidades e a necessidade de mudanças, frente aos grandes e graves problemas que estão colocados para a humanidade. A música foi para Raul Seixas um mecanismo para dizer a verdade ao poder e um veículo para expressar toda a sua criatividade e genialidade como marcadores da nossa condição demens. Sua poesia provocou e ainda provoca abalos sísmicos. A desordem estabelecida por sua música reforça a loucura como um elemento constitutivo da condição humana e a própria desordem como característica distintiva do nosso ser. Talvez sair da fábrica da ordem seja a mensagem fundamental que ecoa de sua música. Um som que vai ter ressonância e propagação na politização do pensamento. É isso. A sua arte, por meio da música, politizou o pensamento. A sua música se caracterizou como um instrumento que antecipou aspectos do cotidiano da vida social que muitas vezes passaram despercebidos pelas teorias e tratados das chamadas ciências humanas e sociais. Reside aí um aspecto primordial da originalidade do artista. A sua obra pode ser compreendida como uma matriz viva do seu pensamento. Os inúmeros personagens de sua personalidade são partituras complexas da condição humana onde estão constituídas a vida e a obra construída por sua música e poesia. Canta, Raul. Nos ajuda a ser útil e a nos tornarmos pessoas melhores diante de um mundo degenerado e de um cenário em que a humanidade parece não saber para onde ir. O seu legado musical e poético nos oferece possibilidades de reflexão frente aos desafios que estão por aí. Vamos cantar. 1. É precio sonhar. Nós ainda podemos sonhar. Nós devemos sonhar: Pense num dia com gosto de infância/Sem muita importância procure lembrar/Você por certo vai sentir saudades/Fechando os olhos verá/Doces meninas dançando ao luar/Outras canções de amor/Mil violinos e um cheiro 129 de flores no ar... (Você ainda pode sonhar – Lennon; Mc Cartney/ Versão Raulzito). 2. É preciso querer. É preciso ter coragem: Quero ir/Quero um pouco/Espera/Quero ir/Pela primavera/Quero ir/Seu pensar já era... (Quero ir, Raul Seixas e Sampaio). 3. Vamos misturar baião ao rock e rock ao baião. É preciso valorizar a mestiçagem. Viva o mestiço. Vamos borrar as fronteiras: Não quero ser o dono da verdade/Pois a verade não tem dono não/Se o V de verde é o verde da verdade/Dois e dois são cinco, né mais quatro não... (Let Me Sing, Let Me Sing, Raul Seixas e Nadine Wisner). 4. Vamos olhar para o espelho. É preciso refletir e tentar descobrir quem somos: É você olhar no espelho/Se sentir um grandíssimo idiota/Saber que é humano, ridículo,/Limitado, e que só usa dez por cento de sua cabeça animal/E você ainda acredita que é um doutor/Padre ou policial/E que está contribuindo com sua parte/Para o nosso belo quadro social... (Ouro de Tolo, Raul Seixas). 5. É preciso enfrentar o sistema. Sair da lógica imposta por uma visão de mundo assentada no ter : ... A arapuca está armada/E não adianta de fora protestar/Quando se quer entrar/Num buraco de rato/De rato você tem que transar... (As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor, Raul Seixas). 6. Vamos cantar o amor. Gritar pelo o amor. É preciso amar. Vamos celebrar a afetividade, a amizade: ... Por isso, é por isso que de agora em diante/Pelos cinco mil alto falantes/Eu vou mandar berrar o dia inteiro/Que você é/O meu máximo/Denominador/ Comum (Tu És o MDC da Minha Vida,Raul Seixas e Paulo Coelho). 130 7. Vamos refletir sobre a morte: ...Vou te encontrar/Vestida de cetim/Pois em qualquer lugar/Esperas só por mim/E no teu beijo/Provar o gosto estranho/Que eu quero e não desejo/Mas tenho que encontrar/Vem/Mas demore a chegar/Eu te detesto e amo/ Morte, morte, morte que talvezSeja o segredo desta vida (Canto para minha morte, Raul seixas e Paulo Coelho). 8. É preciso pensar no dia em que a Terra parou. Vamos discutir os problemas da Terra e nossa existência. Vamos procurar nos reconectar com a nossa mãe: Essa noite eu tive um sonho de sonhador/Maluco que sou , eu sonhei... /Com o dia em que a Terra parou/Com o dia em que a Terra parou/Foi assim num dia em que todas as pessoas/Do planeta inteiro resolveram que ninguém ia sair de casa, como se fosse combinado/E em todo o planeta naquele dia ninguém saiu de casa, ninguém... (O dia em que a Terra parou, Raul seixas e Cláudio Roberto). 9. Vamos pensar sobre o fim do mundo. Vamos pensar nas profecias. É preciso problematizar a vida: Está em qualquer profecia/Dos sábios que viram o futuro/Dos loucos que escrevem no muro/Das teias, do sonho remoto/Estouro, explosão, maremoto/A chama da guerra acesa/A fome sentada na mesa/O copo com álcool no bar/O anjo surgindo no mar/Os selos de fogo, o eclipse/Os símbolos do Apocalipse/Os séculos de Nostradamus/A fuga geral dos ciganos/Está em qualquer profecia/Que o mundo se acaba um dia (As Profecias, Raul Seixas e Paulo Coelho). 10. É preciso pensar sobre o homem. É preciso pensar sobre a condição humana. Vamos pensar sobre a humanidade da humanidade: Fruto do mundo/Somos os homens/Pequenos girassóis/Os que mostram a cara/Enorme as montanhas/Que não dizem nada/Incapaces los hombres/ 131 Que hablam de todo/Y sufrem callados (Réquiem Para uma Flor, Raul Seixas e Oscar Rasmussem). 11. Vamos pensar sobre o Brasil. É preciso pensar sobre o nosso país. Vamos enfrentar os nossos problemas: Lá vou eu de novo/Um tanto assustado/Com Ali-Babá e os 40 ladrões/Já não querem nada/Com a Pátria Amada/E cada dia mais/Enchendo os meus botões/Lá vou eu de novo/Brasileiro nato/Se eu não morro eu mato essa desnutrição/Minha teimosia braba de guerreiro/É o que me faz o primeiro dessa procissão... (Aluga-se, Raul Seixas e Cláudio Roberto). 12. É preciso viver a poesia. Vamos viver a vida. Contemplar a natureza: Amanhece, amanhece, amanhece/Amanhece, amanhece o dia/Um leve toque de poesia/Com a certeza que a luz/Que se derrama/Nos traga um pouco de alegria... /Olha a fonte, olhe os montes/Horizonte/Olha a luz que enxovalha e guia/A lua se oferece ao dia E eu guardo cada pedacinho de mim Prá mim mesmo Rindo louco, louco Mais louco de euforia (Coração Noturno, Raul Seixas, Kika Seixas, Raul Varella Seixas). 13. Vamos cantar a desobediência. É preciso cantar contra a tirania: Larga dessa cantoria menino/Música não vai levar você a lugar nenhum Peraí mamãe, guenta aí/Mamãe, eu não queria/Mamãe, eu não queria/ Mamãe, eu não queria/Servir o exército... (Mamãe Eu não queria, Raul Seixas). 14. É preciso cantar Rock n Roll: ... Tem uma banda que eles já vão contratar/ Que não cria nada, mas é boa em copiar/A crítica gostou, vai ser sucesso ela não erra/Afinal lembra o que se faz na Inglaterra ( Muita Estrela, Pouca Constelação, Raul Seixas e Marcelo Nova). 15. Vamos cantar a liberdade. É preciso viver a liberdade: 132 Todo homem tem direito/De pensar o que quiser/Todo homem tem direito/De amar a quem quiser/Todo homem tem direito/De viver como quiser/Todo homem tem direito/De morrer quando quiser... (A Lei, Raul Seixas). 16. Vamos cantar a criatividade, a loucura e a desordem. É preciso celebrar a música. Vamos cantar por cantar! A arte de Raul é a expressão do Amor, Poesia e Sabedoria. Ou ainda, da Prosa, Música, Poesia. E fim de papo! 133 CAMINHOS Você me pergunta Aonde eu quero chegar Se há tantos caminhos na vida E pouca esperança noar E até a gaivota que voa Já tem seu caminho no ar O caminho do fogo é a água O caminho do barco é o porto O do sangue é o chicote O caminho do reto é o torto O Caminho do bruxo é a nuvem O da nuvem é o espaço O da luz é o túnel O caminho da fera é o laço O caminho da mãoé o punhal O do santo é o deserto O do carro é o sinal O do errado é o certo O caminho do verde é o cinzento O do amor é o destino O do cesto é o cento O caminho do velho é o menino O da água é a sede O caminho do frio é o inverno O do peixe é a rede O do pio é o inferno O caminho do risco é o sucesso O do acaso é a sorte O da dor é o amigo O caminho da vida é a morte Raul Seixas,Paulo Coelho, Eládio Gilbraz, Novo Aeon, 1975 134 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. ALMEIDA, Maria da Conceição de. 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Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. 137 CAMINHOS II Assim como Todas as portas são diferentes Aparentemente Todos os caminhos são diferentes Mas vão dar todos no mesmo lugar Sim O caminho do fogo é a água Assim como O caminho do barco é o porto O caminho do sangue é o chicote Assim como O caminho do reto é o torto O caminho do risco é o sucesso Assim como O caminho do acaso é a sorte O caminho da dor é o amigo O caminho da vida é a morte Raul Seixas, Paulo Coelho, Eládio Gilbraz, Novo Aeon, 1975 138 ANEXO 1: Eu conheço bem a fonte que desce daquele monte 1. Prelúdio (Raul Seixas, 1974). 2. Mosca na Sopa (Raul Seixas, 1973). 3. Metamorfose Ambulante (Raul Seixas, 1973). 4. S.O.S. (Raul Seixas, 1974). 5. Aquela Coisa (Raul Seixas, Kika Seixas, Cláudio Roberto, 1983). 6. Século XXI (Raul Seixas e Marcelo Nova, 1984). 7. As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor (Raul Seixas, 1974). 8. Geração da Luz (Raul Seixas e Kika Seixas, 1984). 9. Na Rodoviária (Raul Seixas e Oscar Rasmussem, 1979). 10. Cantar (Raul Seixas e Cláudio Roberto, 1987). 11. Trem 103 (Raulzito, 1968). 12. Dr. Pacheco (Raul Seixas, 1971). 13. Let Me Sing, Let Me Sing (Raul Seixas e Nadine Wisner, 1972). 14. Al Capone (Raul Seixas, 1973). 15. Sociedade Alternativa (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1974). 16. Gita (Raul Seixas, 1974). 17. Tente Outra Vez (Raul Seixas, Paulo Coelho, Marcelo Motta, 1975). 18. Eu Nasci há Dez Mil Anos Atrás (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1976). 19. Você (Raul Seixas e Cláudio Roberto, 1977). 20. As Profecias (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1978). 21. Movido a Álcool (Raul Seixas, Tânia Mena Barreto, Oscar Rasmussem, 1979). 22. Abre-te Sésamo (Raul Seixas e Cláudio Roberto, 1980). 23. Carimbador Maluco (Raul Seixas, 1983). 24. O Messias Indeciso (Raul Seixas e Kika Seixas, 1983). 25. Canto Para Minha Morte (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1976). 26. Canceriano Sem Lar (Raul Seixas, 1987). 27. A Lei (Raul Seixas, 1988). 28. Check-Up (Raul Seixas, 1988). 29. Banquete de Lixo (Raul Seixas e Marcelo Nova, 1989). 30. Areia da Ampulheta (Raul Seixas, 1988). 139 31. Maluco Beleza (Raul Seixas e Cláudio Roberto, 1977). 32. Mas Y Love You (Raul Seixas e Rick Ferreira, 1984). 33. Para Noia (Raul Seixas, 1975). 34. Sapato 36 (Raul Seixas e Cláudio Roberto, 1976). 35. Carpinteiro do Universo (Raul Seixas e Marcelo Nova, 1989). 36. Eu Sou Egoísta (Raul Seixas e Marcelo Motta, 1975). 37. Nuit (Raul Seixas e Marcelo Nova, 1989). 38. Love is Magick (Raul Seixas e Space Glow, 1976). 39. A Maçã (Raul Seixas, Paulo Coelho, Marcelo Motta, 1975). 40. Novo Aeon (Raul Seixas, Paulo Coelho, Marcelo Motta, 1975). 41. Ê Meu Pai (Raul Seixas e Cláudio Roberto, 1980). 42. Ave Maria da Rua (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1976). 43. Meu Amigo Pedro (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1976). 44. Coisas do Coração (Raul Seixas e Kika Seixas, 1983). 45. Cantiga de Ninar (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1976). 46. Ouro de Tolo (Raul Seixas, 1973). 47. Água Viva (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1974). 48. Você ainda pode sonhar (Lennon; Mc Cartney/ Versão: Raulzito, 1968). 49. Quero ir (Raul Seixas e Sérgio Sampaio, 1971). 50. Tu És o MDC da Minha Vida (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1975). 51. O dia em que a Terra parou (Raul seixas e Cláudio Roberto, 1977). 52. As Profecias (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1978). 53. Réquiem Para uma Flor (Raul Seixas e Oscar Rasmussem, 1979). 54. Aluga-se (Raul Seixas e Cláudio Roberto, 1980). 55. Coração Noturno (Raul Seixas, Kika Seixas, Raul Varella Seixas, 1983). 56. Mamãe Eu não queria (Raul Seixas, 1984). 57. Muita Estrela, Pouca Constelação (Raul Seixas e Marcelo Nova, 1987). 58. Caminhos (Raul Seixas, Paulo Coelho, Eládio Gilbraz, 1975). 59. Caminhos II (Raul Seixas, Paulo Coelho, Eládio Gilbraz, 1975). 60. Que luz é essa? (Raul Seixas e Cláudio Roberto, 1977). 61. Você ainda pode sonhar (Lennon; Mc Cartney/ Versão Raulzito). 140 ANEXO 2: Inspirações e outros escritos FRANS, Elton. Raul Seixas: a história que não foi contada. Redação de Roberto Moura. São Paulo: Irmãos Vitale, 2000. LUCENA, Mário. Raul Seixas: metamorfose ambulante (Vida, alguma coisa acontece; morte, alguma coisa pode acontecer). 1. ed. São Paulo: B&A, 2009. LUCENA, Mário. Raul Seixas: a verdade absoluta. São Paulo: MacBel Oficina de Letras, 2002. MUGNAINI JÚNIOR, Airton. Raul Seixas: eu quero cantar por cantar. São Paulo: Sampa, 1993. SOUZA, Isaac Soares de. Dossiê Raul Seixas. São Paulo: Universos dos Livros, 2011.