UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL MESTRADO MOVIMENTOS SOCIAIS E ORGANIZAÇÃO POPULAR EM NATAL-RN: ENQUANTO MORAR FOR PRIVILÉGIO... MARIA CLARIÇA RIBEIRO GUIMARÃES NATAL – RN 2013 MARIA CLARIÇA RIBEIRO GUIMARÃES MOVIMENTOS SOCIAIS E ORGANIZAÇÃO POPULAR EM NATAL- RN: ENQUANTO MORAR FOR PRIVILÉGIO... Dissertação de mestrado apresentada ao PPGSS/UFRN para a obtenção do título de Mestre em Serviço Social. Profa. Orientadora: Dra. Eliana Costa Guerra Linha de Pesquisa: Estado, Sociedade, Políticas Sociais e Direitos NATAL – RN 2013 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Guimarães, Maria Clariça Ribeiro. Movimentos sociais e organização popular em Natal-RN: enquanto morar for privilégio.../ Maria Clariça Ribeiro Guimarães. - Natal, RN, 2013. 202 f.: il. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Eliana Costa Guerra. Dissertação (Mestrado em Serviço social) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em Serviço social. 1. Movimentos sociais – Natal/RN - Dissertação. 2. Questão urbana – Dissertação. 3. Direito à cidade - Dissertação. I. Guerra, Eliana Costa. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 323.3(813.2) À militância e ao pulso que ainda pulsa; Aos desejos de liberdade e às pelejas cotidianas; Aos que seguem na resistência às forças contrarrevolucionárias; À mística que move lutadores e lutadoras do povo em busca da construção interminável da utopia. AGRADECIMENTOS [...] Vida, és uma máquina plena, felicidade, rumor de tempestade, ternura de delicado azeite. Vida, és como uma vinha: amealhas a luz e reparte-la em cacho transformada. Aquele que te renega que espere um minuto, uma noite, um ano curto ou longo, que saia da sua mentirosa solidão, que indague e lute, junte as suas mãos a outras mãos [...] (Pablo Neruda) Lições diárias de diversas pessoas estiveram presentes perpassando todos os momentos da minha vida. O momento do Mestrado marcou uma fatia importante do meu tempo, do meu percurso, da minha trajetória. Apressados vinte e quatro meses de leituras e elaborações, feitas muitas vezes no limite da exaustão, chegaram a nos fazer pensar em entregar os pontos. Entretanto, para a concretização deste trabalho, não faltaram outras mãos que se juntaram às minhas. E a muitas mãos esta Dissertação foi escrita. Minha gratidão em especial: À minha mãe, por ter se reinventado após a minha saída de casa. Por acreditar em mim, muito mais do que eu mesma era capaz de acreditar. Por não medir esforços para alimentar meus sonhos, mesmo quando isso significava enfrentar tudo praticamente sozinha e se dividindo em mil outras mulheres. E, ao mesmo tempo, por nunca ter desistido de ficar, namorar, beijar, amar. À minha vó, pelos cuidados, preocupações e mimos desde que nasci até hoje. Por entender que a conclusão da faculdade, tão ansiosamente esperada, ainda não significava meu retorno a Limoeiro e à sua casa. Ao Jeferson, meu irmão mais querido, pelas cócegas, risos e gargalhadas, pelos abraços apertados e por saber como ninguém manter a tristeza bem longe de mim. Ainda hoje, estranho muito não ter te acompanhado crescer de um jeito mais próximo, mas o pouco tempo passado juntos em Natal foi maravilhoso para mim. Amo-te demais! Ao Thiago, pelas carícias, carinhos e amor sem pudores, por nada ter para guardar a não ser a sensação pregada na pele que você deixa depois de amar. Pelo companheirismo e o esforço para tudo dar certo. Pela paciência e compreensão em cada momento de chegada e de partida, guardando os beijos para depois. Por estarmos aprendendo a lidar com as nossas diferenças teóricas, políticas, ideológicas. Sim, eu quero casar contigo! À Bruninha, por me receber com um belo sorriso no rosto e facilitar meu caminhar em Natal, quando esta ainda era para mim uma terra um tanto quanto desconhecida. Pela contribuição teórica de sua monografia, a facilitar minha aproximação com a temática “questão urbana”. Sua coragem e ousadia para encarar a vida encantam e inspiram. À Eliana Guerra, “minha nobukinha”, pela disposição para ser minha orientadora e por todo o seu rigor teórico-metodológico. Pela alegria com a qual move céus e terras para realizar os sonhos e devaneios daqueles que lhe cativam o espírito e, especialmente, por me permitir estar entre estas pessoas. Pelas vezes em que, até sem saber, sua casa foi a única proteção encontrada. À Rita, pela acolhida, pelas saias e vestidos e, principalmente, pelos abraços de urso em meus momentos de fraqueza e desalento. Às professoras Severina Garcia e Maria Lúcia Duriguetto pelas contribuições desde a banca de qualificação, despertando em mim uma imensa necessidade de mais e mais leituras e aprofundamentos teóricos. À Irís, pela confiança que transparece, pelo abraço forte e.pelas aulas que me deixaram a certeza do quanto ainda preciso estudar. À Celinha por me acompanhar durante o percurso do mestrado, com disciplinas ricas em aprendizagem, e ser a responsável por despertar meu interesse para o estudo dos fundamentos do Serviço Social (costumo dizer que foi nas suas aulas que minhas lacunas de formação nessa área foram resolvidas). À professora Regina Ávila por aceitar de modo tão acolhedor compor também a banca examinadora de qualificação da dissertação. Ao MLB, à APAC e ao Levante Popular da Juventude, não apenas por aceitarem participar da nossa pesquisa, mas principalmente por transparecerem o compromisso com os sonhos coletivos e a indignação com a barbárie. Às colegas de sala de aula, pelos debates travados e preocupações compartilhadas no decorrer do mestrado, de maneira especial à Sarah, Nestor, Raquel, Alane, Lucília, Kleylenda, Joana, Késsia, Mariana, Albertina, Annamaria e Helizama. Àquelas pessoas com as quais, em momentos diferentes, pude compartilhar debates e aperreios do processo da vida e do mestrado: Raquel Cardozo (com seu sorriso encantador), Elizângela (com sua força), Leidiane (com o companheirismo) e Fátima, minha irmã “mais velha” em Natal, sempre carinhosa e dedicada. Com muito carinho, agradeço também a Hiago Trindade por ser meus ouvidos de todas as horas. Pelas inúmeras ligações e mensagens que me possibilitaram senti-lo tão pertinho. Foi uma alegria descobrir o imenso leque de identidades que temos um com o outro! Como diria Eliana, você é o meu queridinho preferido. À Ilena, pela mística e pela alegria. Por aceitar ser minha companheira de estudos cotidianos e tornar estes momentos menos cansativos. Por não me deixar esmorecer e acompanhar-me nas batalhas da vida. Foi uma imensa alegria encontrar em você alguém para compartilhar dúvidas, aperreios, risos e esperanças. À Ilana, pelo carinho imediato e por tanto me colocar para cima. Aos que construíram comigo a dor e a delícia das diversas experiências de moradia que tive por Natal: Cícero, Deyse, Janaína, Hígor e, por tabela, Alice, que tanta saudade deixou em meu peito com sua ida para Cajazeiras-PB. À dona Help, pela delícia do seu almoço, pela sopa reconfortante e pelas histórias contadas. Pelo carinho com o qual sempre se referiu a mim e pela torcida sincera por novas conquistas em meu caminho. À dona Conceição, pela confiança que transpareceu logo em nosso primeiro contato. Nunca esquecerei o quanto foi delicada e atenciosa comigo no momento em que, aflita, procurava um canto para dormir e sonhar. Na Vila de Ponta Negra encontrei meu lugar em Natal e somente em Nosso Lar descobri a paz que precisava para revigorar minhas forças. À Irê, pela forma prestativa e atenciosa com a qual me recebeu em sua casa. Pelo floral e pela torcida, no momento em que eu arriscava mais um passo nessa vida. À Lailsa e Karina, companhias certas para meus passeios noturnos por Limoeiro. Pelas conversas, risos e gargalhadas dadas em praça pública. Por sempre me acompanharem nos deliciosos sorvetes e coberturas, com sabor de cumplicidade, irmandade e confidências. À Vanessa e Luciana, pelos seus ouvidos sempre atentos e ávidos para entenderem o que se passava por minha cabeça e coração. Por sempre encontrarem uma forma, por mais singela que fosse, de erguer minha autoestima e, com ela, minha capacidade de perceber a beleza de ser quem sou. Às companheiras e companheiros da Consulta Popular/RN, fundamentais para o meu processo de maturação política, desde meados de 2007 até aqui. Por terem despertado em mim a necessidade da organização e da construção de um instrumento político de novo tipo. Por me fazerem entender a afetividade como um princípio revolucionário e a ternura como um valor fundamental para lutadores e lutadoras do povo. A vocês, dedico a poesia que traduz as respostas que encontrei na Consulta Popular: Mas quem é o partido? Ele fica sentado em uma casa com telefones? Seus pensamentos são secretos, suas decisões desconhecidas? Quem é ele? Nós somos ele. Você, eu, vocês – nós todos. Ele veste sua roupa, camarada, e pensa com a sua cabeça Onde moro é a casa dele, e quando você é atacado Ele luta. Mostremo-nos o caminho que devemos seguir, e nós O seguiremos com você, mas Não siga sem nós o caminho correto Ele é sem nós o mais errado. Não se afaste de nós! Podemos errar, e você pode ter razão, portanto Não se afaste de nós! Que o caminho curto é o melhor que o longo, Ninguém nega Mas quando alguém o conhece E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que nos serve sua sabedoria? Seja sábio conosco! Não se afaste de nós! (Bertold Brecht). O elemento popular “sente”, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual “sabe”, mas nem sempre compreende e, muito menos, “sente” [...]. O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber) [...]. Não se faz política/história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação. Gramsci LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ABEPSS – Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social AMB – Articulação das Mulheres Brasileiras APAC – Associação Potiguar dos Atingidos pelas obras da copa CBAS – Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais CCSA – Centro de Ciências Sociais Aplicadas CDM - Conselho de Desenvolvimento Municipal CEBs – Comunidades Eclesiais de Base CEI – Comissão Especial de Inquérito CEPAU – Câmara de Estudos e Pesquisas em Arquitetura e Urbanismo CFESS – Conselho Federal de Serviço Social CMAS – Conselho Municipal de Assistência Social CME – Conselho Municipal de Educação CMS – Conselho Municipal de Saúde COMDICA – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente CONCIDADE – Conselho das Cidades CRDH – Centro de Referência em Direitos Humanos CRESS – Conselho Regional de Serviço Social CSU – Centro Social Urbano ENPESS – Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social FECEB – Federação de Entidades Comunitárias e Beneficentes FETAC – Fundação Estadual do Trabalho e Ação Comunitária FHC – Fernando Henrique Cardoso FNHIS – Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social FNRU – Fórum Nacional de Reforma Urbana IDEC – Instituto de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande do Norte INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados LPJ – Levante Popular da Juventude MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens MDB – Movimento Democrático Brasileiro MESS – Movimento Estudantil de Serviço Social MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas MMC – Movimento de Mulheres Camponesas MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores MS – Movimentos Sociais MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MSU – Movimentos Sociais Urbanos NMS – Novos Movimentos Sociais OAB – Ordem dos Advogados do Brasil OEA - Organização dos Estados Unidos Americanos OIT – Organização Internacional do Trabalho ONGS – Organizações Não Governamentais ONU – Organização das Nações Unidas PC do B – Partido Comunista do Brasil PCB – Partido Comunista Brasileiro PCR – Partido Comunista Revolucionário PDS – Partido Democrático Social PMCMV – Programa Minha Casa Minha Vida PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNCSU – Programa Nacional de Centros Sociais Urbanos PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária POSDR – Partido Operário Social-Democrata Russo PPGSS – Programa de Pós Graduação em Serviço Social PSB – Partido Socialista Brasileiro PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PSOL – Partido Socialismo e Liberdade PT – Partido dos Trabalhadores PV – Partido Verde SEMURB - Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Urbanismo SETURN – Sindicato das Empresas de Transporte Urbano do Rio Grande do Norte SINTRO – Sindicato dos Trabalhadores em Transporte Rodoviário SP – São Paulo SUS – Sistema Único de Saúde UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina LISTA DE FIGURAS Figura 01 – Militantes do MLB promovem Marcha em Defesa da Moradia Digna e da Dignidade Humana.................................................................................................. 101 Figura 02 – Mulheres do MLB protestam na prefeitura pela construção de creches nos bairros periféricos de Natal............................................................................... 101 Figura 03 – Reunião de mobilização, organizada pelo Comitê Popular da Copa, na zona oeste da cidade.............................................................................................. 106 Figura 04 – Ato realizado pelos atingidos(as) pelas obras da copa em Natal contra as desapropriações e remoções............................................................................. 106 Figura 05 – Intervenção urbana da APAC nas casas que serão desapropriadas pelas obras da copa................................................................................................ 118 Figura 06 – Intervenção urbana da APAC nas casas que serão desapropriadas pelas obras da copa................................................................................................ 118 Figura 07 –Ocupação em terreno abandonado realizada pelo MLB...................... 123 Figura 08 – Assembleia realizada durante ocupação liderada pelo MLB.............. 123 LISTA DE QUADROS Quadro 01 – Mapeamento das residências construídas a partir das ações do MLB......................................................................................................................... 148 Quadro 02 – Mapeamento das Organizações Comunitárias existentes em Natal........................................................................................................................ 160 RESUMO Na medida em que a expansão das cidades ocorre cada vez mais empurrando e segregando a classe trabalhadora para as áreas periféricas, destituídas de serviços e de infraestrutura, o espaço urbano se constitui também como um espaço importante na luta de classe e, nessa direção, o presente trabalho visa analisar a organização política dos movimentos sociais urbanos e organizações populares existentes em Natal-RN, na contemporaneidade, nos seus processos de luta por direitos sociais, com ênfase no direito à cidade. Com essa dimensão, nos apropriamos das contribuições do materialismo histórico-dialético por entendermos que este referencial viabiliza a compreensão dos processos de organização coletiva numa perspectiva crítica e de totalidade, indo para além do seu aspecto imediato. Para a produção dos dados realizamos pesquisa bibliográfica, documental e de campo, por meio de entrevistas gravadas semi-estruturadas com os(as) dirigentes das organizações mapeadas em nossa pesquisa. Os resultados do estudo nos permitiram caracterizar a ação política dos movimentos urbanos de Natal na luta pelo reconhecimento e garantia do direito à cidade e apreender os avanços e entraves no processo de intervenção dos movimentos sociais e organizações populares existentes em Natal, evidenciando dilemas e contradições que perpassam os processos de organização e mobilização no período contemporâneo. Com isso, concluímos que no território natalense, tal como no Brasil contemporâneo, a questão urbana e a ação política dos movimentos que a evidenciam na cena pública se entrelaçam e necessariamente se relacionam com a tendência histórica que vem se apresentando desde os anos 1990, quando o país adentrou num período marcado por uma nova ofensiva burguesa. Palavras-chave: Movimentos Sociais. Questão Urbana. Direito à cidade. ABSTRACT To the extent that the expansion of cities is increasingly pushing and segregating the working class to outlying areas, devoid of services and infrastructure, the urban space is also important as a space in the class struggle, and in this direction, the this study aims to analyze the political organization of urban social movements and popular organizations existing in Natal-RN, nowadays, in their process of struggle for social rights, with emphasis on the right to the city. With this dimension, we appropriate the contributions of historical and dialectical materialism because we believe that this benchmark enables the understanding of the processes of collective organization and a critical perspective of totality, going beyond its immediate appearance. For production data conducted literature, documentary and field, through semi-structured interviews recorded with (the) mapped leaders of organizations in our survey, as well as advisory bodies to the movements studied. The results of the study allowed us to characterize the action of the political movements in urban Christmas struggle for recognition and guarantee of the right to the city and seize the advances and obstacles in the process of intervention of social movements and popular organizations existing in Natal, highlighting dilemmas and contradictions underlie the processes of organization and mobilization in the contemporary period. Thus, we conclude that the Natal territory, as in contemporary Brazil, the urban and political action movements that show the public scene and intertwine necessarily relate to historical trend that has been performing since the 1990s, when the country entered a period marked by a new bourgeois offensive. Keywords: Social Movements. Urban Question. Right to the City. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 17 2 A QUESTÃO URBANA NA DINÂMICA DE REPRODUÇÃO CAPITALISTA ....... 36 2.1 A lógica do capital na produção do espaço ......................................................... 37 2.2 O urbano, a moradia e as desigualdades sócio-espaciais .................................. 47 2.3 O direito à cidade: projetos em disputa no espaço urbano.................................. 56 3 AÇÃO POLÍTICA DOS MOVIMENTOS URBANOS EM NATAL: a que será que se destina?. .............................................................................................................. 66 3.1 Organização política nos marcos da luta de classe ............................................ 67 3.2 A cidade de Natal como cenário de lutas e de disputas políticas ........................ 72 3.3 Quem traz na pele essa marca: caracterização dos(as) dirigentes ..................... 89 3.4 Bandeiras de luta e frentes de atuação dos movimentos sociais em Natal ......... 98 4 O FAZER POLÍTICO PELO DIREITO À CIDADE NA REALIDADE LOCAL ...... 110 4.1 Se a gente se acovardar agora, a gente vai viver pelo resto da vida de joelhos.... Estratégias de organização e mobilização .............................................................. 111 4.2 Para o indivíduo sozinho é mais difícil, mas de forma coletiva fica mais fácil... Avanços e entraves no cotidiano das lutas ............................................................. 139 4.3 Quando a sociedade clama por uma resposta é toda a sociedade que tem que participar... Aliados e opositores no processo da ação política ............................... 153 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 174 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 184 APÊNDICES ........................................................................................................... 196 A – QUESTIONÁRIO DE PERFIL DOS(AS) DIRIGENTES B – ROTEIRO DA ENTREVISTA C - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE ESCLARECIDO D – TERMO DE AUTORIZAÇÃO DA GRAVAÇÃO E - CARTA DE ANUÊNCIA DO CRDH 17 Introdução ... O curso da viagem e as trilhas metodológicas no processo de pesquisa... 18 1 INTRODUÇÃO Neste tópico introdutório da Dissertação, apresentamos nossas motivações para a realização da pesquisa, bem como sua relevância social e acadêmica, em particular, para o Serviço Social, no atual tempo histórico. Detalhamos a concepção de produção científica que permeou o trabalho, o percurso metodológico adotado e a forma como este está estruturado. Entretanto, não o queremos fazer como mero atendimento às requisições acadêmicas e, por isso mesmo, procedemos a seguir, a um exercício de reflexão e exposição dos processos que, em ritmos diferenciados, ora mais acelerados, ora mais lentos foram gestando o presente trabalho. Por que pesquisar? Quando a indagação começa a se delinear... “Em verdade, fenômenos, fatos, situações, circunstâncias, representações que interpelam o/a pesquisador/pesquisadora estão entrelaçados, imbricados nesta trama histórica da vida, embora possam aparecer separados”. (Alba Maria Pinho de Carvalho) Os problemas de pesquisa se apresentam inicialmente no cotidiano da vida prática, para só então passarem a constituir questões de investigação teórica (MINAYO, 1994), ou seja, têm sua origem na realidade concreta, em circunstâncias socialmente determinadas e essas circunstâncias instigam e motivam a opção por determinado objeto de estudo. Assim, as vivências e reflexões construídas durante o período da nossa graduação, especialmente a partir da militância política no movimento estudantil e da aproximação teórica com a discussão de movimentos sociais, nos despertaram diversos questionamentos e inquietações que contribuíram para a maturação do nosso objeto de estudo. A experiência de monitoria na disciplina Serviço Social e Movimentos Sociais e o estágio em docência em Capitalismo e Questão Social (durante a pós-graduação) contribuíram com o nosso acúmulo teórico-metodológico. Foi também fundamental para a constituição do nosso problema de pesquisa a experiência de estágio supervisionado no Conselho Regional de Serviço Social (CRESS)/Seccional de Mossoró e a participação na direção da Associação Brasileira 19 de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS), na condição de representação discente da regional Nordeste. Essas experiências – articulando formação profissional e militância política – possibilitaram-nos apreender as implicações políticas que permeiam a profissão do(a) assistente social e a perspectiva renovadora fomentada no interior do Serviço Social, a partir do Movimento de Reconceituação latino-americano, cunhado no rompimento com a suposta neutralidade e na construção do compromisso da categoria com a classe trabalhadora. A “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem social, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero”, bem como a “articulação com os movimentos de outras categorias profissionais que partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral dos trabalhadores” (CFESS, 1993), figuram dentre os elementos fundamentais da ética profissional do/a Assistente Social. Este redirecionamento da profissão provocou expressivo interesse dos(as) assistentes sociais pelos estudos sobre a organização política das classes subalternas1. Nessa perspectiva, a temática dos movimentos sociais foi sendo incorporada ao Serviço Social na formação profissional, nas pesquisas e na produção acadêmica da área, ao passo em que também ocorreu a inserção do trabalho profissional do(a) assistente social nas instituições de organização autônoma da classe trabalhadora (CARDOSO; LOPES, 2009). Todavia, trata-se de um tema com pouca literatura produzida pelos estudiosos(as) do Serviço Social e que encontra ainda dificuldades para ter sua relevância reconhecida no âmbito da intervenção profissional. A nossa chegada à cidade de Natal e o fato de termos aqui não apenas fixado residência, como também construído novas experiências de militância política, suscitaram outras tantas questões que se somaram às reflexões anteriores sendo, por isso mesmo, fundamentais para o delineamento de nosso objeto de estudo. 1 “A categoria ‘subalterno’ e o conceito de ‘subalternidade’ têm sido utilizados, contemporaneamente, na análise de fenômenos sociopolíticos e culturais, normalmente para descrever as condições de vida de grupos e camadas de classe em situações de exploração ou destituídos dos meios suficientes para uma vida digna. No pensamento gramsciano, contudo, tratar das classes subalternas exige, em síntese, mais do que isso. Trata-se de recuperar os processos de dominação presentes na sociedade [...]” (SIMIONATTO, 2009, p. 42). Desse modo, a luz da elaboração de Gramsci, sempre que nos referirmos às classes subalternas no presente trabalho estamos entendendo as reflexões sobre subalternidade como dialeticamente articuladas ao Estado, à sociedade civil e à hegemonia. 20 Dentre as novas vivências, merece destaque o acompanhamento do Movimento Fora Micarla2, articulado por uma diversidade de forças políticas. As primeiras expressões deste movimento vêm à tona com as mobilizações contra o aumento da passagem de ônibus na cidade, articuladas pelo movimento estudantil. Embora, em sua origem, seja composto predominantemente por estudantes universitários, articulados, sobretudo, através de redes sociais, como facebook e twitter, a pauta do movimento Fora Micarla vai agregando também o movimento sindical – e mais adiante o movimento de bairro – além de outros movimentos. Consegue, assim, mobilizar a população e organizar grandes atos públicos, obtendo, inclusive, visibilidade na mídia nacional. Este movimento culmina com a ocupação da Câmara Municipal de Natal por onze dias, período em que conquista a instauração de uma Comissão Especial de Inquérito (CEI) para apurar possíveis irregularidades em contratos firmados pela atual gestão3. Ao desocupar a Câmara Municipal, segmentos do movimento fizeram a opção política por investir no trabalho de base. O desenrolar do trabalho nos bairros populares de Natal – atividade na qual nos envolvemos - , o contato direto com o povo, os inúmeros depoimentos da população que denunciavam a constante negação de seus direitos, despertaram nosso interesse para a questão do direito à cidade, coligada à apreensão das condições e possibilidades de organização dos moradores(as) da periferia urbana de Natal. Parafraseando Lefébvre (2001), entendemos que os bairros não são um aspecto secundário, mas a própria essência da realidade urbana, a expressão mais concreta da vida nas cidades; exatamente por este motivo, aparecem agora como um aspecto fundamental para nossas análises. Nesse sentido, o estudo ora apresentado objetiva analisar a organização política dos movimentos sociais urbanos e organizações populares existentes em Natal-RN e suas lutas para o reconhecimento e garantia do direito à cidade. Assim, 2 Prefeita de Natal, eleita pelo Partido Verde (PV), para o período 2008-2012, apoiada por José Agripino Maia (DEM) e tendo atualmente como principal aliado político Henrique Eduardo Alves (PMDB). 3 Uma das principais acusações à prefeita Micarla de Sousa que passou a ser objeto de investigação da Câmara Municipal refere-se à opção por alugar imóveis – preferencialmente grandes hotéis – para serem ocupados por órgãos públicos. Exemplos disso são facilmente visualizados pela cidade, incluindo também o aluguel, por parte da prefeitura, de uma casa de três andares, com piscina e sauna, em um bairro nobre, para ser a sede da Secretaria do Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB). Micarla é acusada de ter feito contratos de aluguel até mesmo em prédios ainda em construção (MENEZES, 2011). 21 se inscreve no campo das elaborações que reforçam a importância de investigações contemporâneas acerca das classes e lutas sociais, no âmbito do Serviço Social. Compartilhamos da inquietação apontada por Iamamoto (2010, p. 461), com base na categorização dos eixos temáticos dos projetos de pesquisa dos Programas de Pós-Graduação em Serviço Social. Segundo a autora, tem se verificado que “[...] a área temática com menor investimento na pesquisa refere-se aos conflitos e movimentos sociais, processos organizativos e mobilização popular -, o que é motivo de preocupações”. Ora, considerando o compromisso ético e politico do Serviço Social brasileiro com a luta dos trabalhadores, tal temática desponta como um desafio político e teórico. Cabe nuançar que, pesquisas relativas aos movimentos sociais podem figurar nos campos temáticos de questão urbana; agrária e ambiental, gênero, raça, etnia e diversidade sexual; trabalho e questão social, dentre outros, tornando difícil a tarefa de precisar melhor a produção da área neste campo temático. No que se refere especificamente às dissertações de mestrado produzidas no programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), identificamos, no período de 2005 a 20114, a realização de apenas 03 (três) trabalhos cujo objeto de estudo central é a organização da classe trabalhadora; todos eles priorizaram dimensões da organização da própria categoria dos(as) assistentes sociais5. Nesse sentido, a presente pesquisa vem contribuir para suprir a lacuna de produções acadêmicas sobre o universo dos movimentos sociais urbanos presentes na realidade local e, em particular, aquelas fundamentadas na perspectiva da totalidade, que pretendem investir no fortalecimento dos sujeitos coletivos. O enfoque dado ao urbano se justifica por este ser um dos espaços que tem se revelado de importância fundamental para a luta de classes, nas últimas décadas. Ao expandirem-se empurrando segmentos das classes subalternas para as áreas 4 De acordo com o conteúdo disponibilizado na página do Programa de Pós Graduação em Serviço Social/Centro de Ciências Sociais Aplicadas (PPGSS/CCSA): http://www.sigaa.ufrn.br/sigaa/public/programa/defesas. 5 Os trabalhos a que nos referimos são: Serviço Social e Política: uma análise da participação dos assistentes sociais no Conselho Regional de Serviço Social – 14 a região, de autoria de Josiane Rodrigues da Silva; A organização sindical dos assistentes sociais no Brasil: dilemas e desafios contemporâneos, de autoria de Tássia Rejane Monte dos Santos e Movimento Estudantil e Serviço Social no capitalismo contemporâneo: tendências e particularidades, de autoria de Maria Lenira Gurgel Cavalcante. Não incluímos em nossa categorização àqueles trabalhos que embora não tendo os movimentos sociais e processos organizativos como questão central, em alguma medida perpassam essa discussão. 22 periféricas, destituídas de serviços, de infraestrutura urbana e de equipamentos coletivos, as cidades brasileiras têm se configurado como espaço de grande segregação sócio-espacial. A dinâmica de produção e de reprodução do espaço não pode ser pensada excetuada de sua intrínseca relação com os processos de acumulação capitalista e de exploração da força de trabalho. No caso da região Nordeste, é oportuno chamar atenção para a predominância de uma imagem política na qual o campo, a estrutura fundiária, a luta pela terra, a dominação oligárquica, ocupam, senão toda a cena, ao menos os lugares privilegiados para uma possível explicação da realidade. Entretanto, com a expulsão do trabalhador do campo para a cidade, a partir de sucessivos processos de expropriação, da repercussão do processo de industrialização, agora, o urbano pode ser visto, sem grandes dificuldades, como um espaço de luta das classes subalternas nordestinas na defesa de seus interesses. A apreensão das contradições urbanas e da ação coletiva de sujeitos sociais no sentido de lutar contra condições degradadas de vida na cidade e de garantir seus direitos interessa ao Serviço Social, especialmente, pelo fato da questão social ser considerada o solo de inserção do trabalho dos(as) assistentes sociais. Considerando que o Serviço Social se institucionaliza, nos anos 1930, tendo como alvo para sua atuação o proletariado6 urbano e o exército industrial de reserva – visando atenuar as sequelas materiais e morais decorrentes do trabalho assalariado (IAMAMOTO e CARVALHO, 2012) – percebemos que a relação do Serviço Social e com a Questão Urbana constitui um dos traços marcantes da origem da profissão. Além disso, no atual cenário de regressão de direitos, uma atuação profissional pautada na perspectiva da racionalidade crítico-dialética (Cf. GUERRA, 2004) e em consonância com o projeto profissional, tem como premissa de relevo a 6 “Para Marx, o proletariado é a classe daqueles que vivem unicamente da venda de sua força de trabalho (ver mais-valia) por um salário, e que encontram-se, deste modo, submetidos à exploração pelo capital. A oposição entre burguesia e proletariado é, segundo o Manifesto do partido comunista (1848), a principal manifestação da luta de classes na época moderna, ou seja, na sociedade burguesa. “operários”, “trabalhadores” e “proletários” são termos equivalentes, senão idênticos e, encontra-se, em Marx e Engels horas um, horas outro destes conceitos [...] Segundo certos marxistas – como Nicos Poulantzas – apenas o trabalhador produtivo, ou seja, aquele que produz mais-valia para um capitalista, faz parte do proletariado; para outros como Ernest Mandel, o conjunto daqueles que vendem sua força de trabalho por um salário pertencem ao proletariado; incluindo a massa de empregados e de trabalhadores intelectuais” (DUMENIL, 2011, p. 99, tradução livre). Corroboramos com a concepção de Mandel, ampliando-a no sentido de incorporar ainda a massa de trabalhadores desempregados. 23 necessidade de conhecer os movimentos sociais que atuam naquele contexto, bem como pressupõe “[...] ações voltadas ao fortalecimento dos sujeitos coletivos, dos direitos sociais e a necessidade de organização para a sua defesa, construindo alianças com os usuários dos serviços na sua efetivação” (IAMAMOTO, 2010, p. 199-200). A presente pesquisa nos permitiu, assim, traçar um panorama crítico acerca das lutas e contradições em torno do direito à cidade em Natal do ponto de vista dos sujeitos coletivos que se organizam politicamente no espaço urbano. Constitui-se, portanto, como uma pesquisa essencialmente reveladora das relações estabelecidas entre Estado e sociedade na realidade local, considerando as particulares condições políticas, econômicas e sociais do município, o que atesta a relevância social da nossa investigação e as contribuições significativas que pode apresentar para desvelar a materialização (ou a negação) dos direitos sociais no contexto potiguar, seus limites e tensões. Dialeticamente, a pesquisa em questão é ainda passível de contribuir para os próprios movimentos sociais, objetos de nosso estudo, ao proporcionar a estes um maior conhecimento do solo histórico em que se materializam suas lutas, colaborando para a (re)construção de sua ação política. Doravante, nada poderia dotar de maior sentido os resultados de nossa pesquisa do que o retorno das reflexões por eles gestadas àqueles que constroem cotidianamente os movimentos sociais urbanos e a organização popular em Natal. Registramos que o termo “movimentos sociais urbanos”, cunhado na década de 1980, não se refere à totalidade dos movimentos organizados na cidade (o que compreenderia também a diversidade dos movimentos feminista, negro, LGBT, estudantil, sindical, etc). Diz respeito, na origem do termo, àqueles movimentos articulados a partir das questões de conformação/apropriação do espaço urbano, desde o acesso à habitação, até os serviços e bens coletivos e a gestão da cidade. Como estamos trabalhando com movimentos mobilizados a partir dessas mesmas questões e bandeiras de luta e, na falta de outra nomenclatura passível de contemplar-nos, optamos por adotar também este termo em nosso trabalho para, por vezes, nos referirmos aos movimentos pesquisados. 24 Percursos e percalços metodológicos “Sem descobrir os fundamentos reais da situação histórico-social, não há análise científica possível” (Lukács) Enveredamos pelo caminho da pesquisa científica por sabermos que a histórica preocupação do ser humano com o desvendar da realidade encontra no fazer científico uma de suas expressões mais contundentes, pois nenhum corpo sistematizado de conhecimentos se sustenta sem ser objeto de pesquisa. Entretanto, apesar desta constatação, cabe adiantar que entendemos ser necessário não apenas conhecer a realidade, mas também contribuir para alterá-la, afirmando, junto com o marxismo, a dimensão transformadora do fazer científico, consoante com a XI tese sobre Feuerbach: “Os filósofos nada mais fizeram que interpretar de diverso modo o mundo; mas trata-se, antes, de transformá-lo” (MARX; ENGELS, 1952, p. 378). A referência a esta finalidade do conhecimento e do fazer científico demarca, desde logo, porque dispomos enquanto assistentes sociais de um projeto de formação no qual a dimensão investigativa constitui condição central para o exercício profissional, que não dicotomize teoria e realidade, no qual o(a) assistente social seja capaz de desvendar possibilidades de intervenção que permitam respostas qualificadas às demandas das classes subalternas. Tal ação profissional, desta forma vislumbrada, ficaria comprometida se não lançamos mão da pesquisa científica. Nessa direção, nosso objeto de estudo foi construído paulatinamente a partir de determinadas preocupações que nos levaram a formular uma sequência de interrogações iniciais, que nortearam a realização de nossa investigação e, de modo mais geral, do mestrado, contribuindo para um maior entendimento do movimento do real. A abordagem do problema sob este ângulo teve como decorrência a evidente necessidade de traçarmos um percurso investigativo mais amplo e complexo, ao nos colocar diante de aspectos da realidade que mereciam serem analisados mais de 25 perto. Encontrávamo-nos diante da necessidade de desvendar o aparente e lançar luz sobre as interrogações iniciais concernentes ao nosso problema de pesquisa, as quais podiam nos guiar na explicitação de seus determinantes fundamentais. O campo teórico no qual situamos a nossa compreensão do problema, nos serve de pano de fundo para que não tenhamos dúvidas em afirmar que a perspectiva de totalidade inscrita no método em Marx nos pareceu a via possível para apreender o real em suas múltiplas determinações, articulando aparência e essência em sua relação dialética, especialmente porque parte da preliminar de que “[...] a realidade, os fatos, os acontecimentos, precisam ser desmascarados, desvendados. Daí esse percurso entre o que é a aparência e a essência, entre a parte e o todo e o singular e o universal” (IANNI, s/d, p. 03-04). Em outras palavras, significa que a realidade se constitui de modo contraditório, complexo e heterogêneo e, portanto, não se dá a conhecer de modo imediato. O processo de desvendar o objeto em estudo pressupõe: o levantamento de questionamentos constantes acerca dos fatos; a articulação presente-passado numa relação de superação das visões a-históricas do real e o considerar da ideologia na qual o objeto está imbricado (IANNI, s/d) para, neste processo, decifrar e articular as múltiplas determinações que constituem o concreto, ou seja, as relações, processos e estruturas que constituem a realidade em estudo. Coerente com este percurso metodológico, adotamos, para a realização deste estudo, a abordagem qualitativa, considerando que este tipo de pesquisa: […] responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1994, p. 21-22). Nessa perspectiva, em nosso processo de investigação, inicialmente realizamos uma revisão bibliográfica levantando a produção teórica existente sobre o tema, particularmente no que se refere às categorias Movimentos Sociais, Questão Urbana e Direito à Cidade. Acreditamos que a leitura dos diversos materiais já produzidos nos permitiu uma análise dos dados mais coerente e fundamentada. Para nossa pesquisa de campo, no intuito de melhor aprofundarmos as questões que nos interessavam investigar, optamos metodologicamente por 26 delimitar regiões e movimentos. Priorizamos a zona oeste de Natal por ser esta uma das que apresenta organizações e lutas mais expressivas, considerando ainda que a zona Leste, especialmente no que concerne o bairro Mãe Luiza, embora com uma trajetória de luta significativa, já constituiu objeto de inúmeras investigações e análises acadêmicas. Nesta região – zona oeste de Natal – delimitamos ainda para nossa amostra de pesquisa aqueles movimentos com atuação mais orgânica na cidade. Privilegiamos, desse modo, a análise de três movimentos organizados, sobretudo, nesta região: o Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), a Associação Potiguar dos Atingidos pelas Obras da Copa (APAC) e o Levante Popular da Juventude (LPJ). Tal recorte foi necessário tendo em conta a densidade das questões que estamos nos propondo a analisar, processo este, sem dúvidas muito mais complicado, em um universo amplo e diversificado7, tanto mais se atentamos para o tempo que dispomos para a realização de uma pesquisa de mestrado. Realizamos também uma pesquisa documental por meio da análise de estatutos, regimentos, notas e textos produzidos por estes movimentos sociais (MS), e diversos outros materiais que, no decorrer da pesquisa, se mostraram relevantes para o alcance dos objetivos delineados. A partir desse enfoque, realizamos entrevistas gravadas semi-estruturadas com os(as) dirigentes das organizações e movimentos, sujeitos privilegiados de nossa pesquisa. De fato, na acepção gramsciana, estes se constituem intelectuais orgânicos que, vinculados a uma determinada classe social, se tornam responsáveis pela organização e divulgação do conjunto dos interesses político-ideológicos compatíveis com sua classe, assumindo o duplo papel de educar e auto-educar-se. Igualmente fundamentada na acepção gramsciana, Ramos (2005) discorre acerca da importância assumida pela direção na construção da ação política no que se refere à elaboração de estratégias e encaminhamentos das lutas. Dentro dessa perspectiva: “[...] não existe organização sem intelectuais, sem organizadores e dirigentes. Os intelectuais são os representantes permanentes de um projeto político de resistência ou de manutenção do poder e, como tais, assumem um papel 7 Lembremos que Natal é hoje uma cidade com 803.811 habitantes, tendo seu território organizado em 36 (trinta e seis bairros) e 70 (setenta) favelas distribuídas nas quatro regiões administrativas (Norte, Sul, Leste e Oeste). 27 determinante no plano da ação política” (RAMOS, 2005, p. 153). Nesse sentido, tais lideranças apresentam e sintetizam o conjunto das experiências e expressões que nos interessa analisar. De cada movimento social ou organização popular articulada em Natal em torno do direito à cidade e elencada para nossa pesquisa de campo, entrevistamos uma ou duas lideranças, num total de 05 (cinco), assim distribuídas: duas lideranças do MLB; duas lideranças do Levante Popular da Juventude e uma liderança da APAC. Face todo o percurso metodológico apontado, não nos parece demasiado lembrar que os depoimentos dos(as) militantes que nos foram fornecidos por ocasião das entrevistas foram imprescindíveis para tornar nossa análise possível. Porém, ressaltamos mais uma vez não terem as 05 (cinco) entrevistas mencionadas se constituído únicas e exclusivas fontes para as análises aqui tecidas. Ademais destas e dos documentos consultados, recorremos também a anotações de nosso caderno de campo, com registros a partir de nossa participação em muitas reuniões, encontros, atos públicos, visitas e conversas nas casas dos moradores, que compõem a lista daqueles que serão atingidos pelas obras da copa, diálogos informais; em tantas outras situações, o dito e o não dito se revelou recurso de inesgotável valor para a elaboração das reflexões e conclusões a que chegamos. O processo de construir-se pesquisadora “A coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia...” (Rubem Alves). A produção desta dissertação, desde a escolha do seu tema até a última linha de sua elaboração, perpassou também valores, prioridades, interesses, diretamente relacionados com as vivências construídas em nosso processo de formação profissional e política. Por isto, torná-la pública a partir deste momento significa também revelar todas as diversas facetas de uma pesquisadora em formação, encantos e desencantos no processo de delineamento de meu objeto de estudo. Ao mesmo tempo, possibilita expressar um pouco do que tem sido – até aqui – o processo de construir-me pesquisadora e registrar o quanto é significativo para 28 mim submeter seu resultado final a olhares críticos, a diversos entendimentos sobre percursos a trilhar na pesquisa na área de Serviço Social. Com relação ao tema objeto do nosso estudo, o que podemos dizer é que o próprio caminho trilhado foi redimensionando o meu modo de caminhar e, assim, se antes me dedicava ao estudo do Movimento Estudantil de Serviço Social, agora passo a me debruçar sobre os Movimentos Sociais Urbanos, como resultado-síntese de novas experiências, reflexões, leituras e muitas conversas com a professora Eliana Guerra, orientadora da pesquisa, que foram complexificando e alterando significativamente o projeto inicial. Antecipo: o trabalho em apreço é resultado de um processo relativamente curto, se pensamos na dimensão do tempo. Todavia, este tem a marca da intensidade de estudo e dedicação que exigiu de mim. Especialmente, porque muitos desafios me foram apresentados. Primeiramente, se impôs para mim a tarefa de apropriar-me da história e das lutas de um lugar que não é o meu espaço de origem e apenas recentemente tornou-se meu local de moradia; Logo de início, as poucas vivências e reflexões maturadas apareceram de forma um tanto quanto assustadora e, por isso mesmo, nos desafiavam, por terem nos indicado não ser a cidade de Natal simples de ser estudada, especialmente quando se trata da análise de seus movimentos sociais. Ao contrário, marcada por complexidades, nos parece estar Natal situada dentre as cidades mais conservadoras do país. Em segundo lugar, escrever sobre avanços, entraves, dilemas e contradições que perpassam processos de organização dos quais eu não sou sujeito, por não ter trajetória de militância construída por dentro dos movimentos sociais urbanos; Ao mesmo tempo em que este foi um fator passível de facilitar o distanciamento com relação ao objeto de estudo que, em certo grau, a pesquisa científica nos demanda, para resguardar a apreensão e análise das informações; este também foi um elemento que me gerou dúvidas e me provocou certo receio de cair em um mero olhar academicista e apartado da realidade dos sujeitos que estão na construção cotidiana destes movimentos. Finalmente, desenhou-se como desafio discutir a chamada Questão Urbana, solo histórico do qual emerge a necessidade da organização coletiva dos movimentos sociais, objeto de interesse particular de nossa análise. Durante a realização do curso de Serviço Social na Universidade do Estado do Rio Grande do 29 Norte (UERN), em nenhum momento, foram oferecidas disciplinas abordando a questão urbana. Posso afirmar que começo a me aproximar dessa temática agora e, portanto, não tenho uma base anterior de estudos acerca do tema. Entretanto, construí uma trajetória de estudos e vivências na área dos movimentos sociais e da organização política a qual situa a presente dissertação em uma linha tênue entre mudança e continuidade, em meu percurso de pesquisa. Outros desafios e alguns impasses nos chegaram como dificuldades inerentes ao percurso da pesquisa de campo. A primeira delas foi justamente em relação ao processo de inserção em campo e diálogo com as lideranças dos diferentes movimentos sociais, pois se para alguns dos movimentos pesquisados nossa presença nos seus espaços de organização interna não causava nenhum estranhamento por representar a presença de mais uma companheira de luta que chegava para se somar aos seus processos de mobilização, para outros movimentos nossa figura representava a presença de uma ilustre desconhecida, gerando num primeiro momento algumas desconfianças e receios. Em contato direto com as lideranças e com a base dos movimentos pesquisados, por recorrentes vezes, a primeira pergunta a nós dirigida foi: “Você é da Prefeitura?”. Da resposta a essa pergunta, dependia a disposição ou não dos sujeitos a se abrirem ao diálogo conosco e contribuírem em nosso processo de pesquisa. Demonstrarmos nossa identidade com as lutas dos movimentos foi fundamental não apenas para desfazer receios iniciais, como também para que tenhamos conseguido construir com estes sujeitos – ouso afirmar – uma relação de companheirismo, amizade, respeito e admiração recíproca. Uma outra questão que nos colocava um impasse na pesquisa de campo referia-se a própria forma como os sujeitos pesquisados percebiam o fato deles estarem sendo objeto de pesquisa da universidade. Para alguns movimentos, esta iniciativa era totalmente bem-vinda, sendo entendida mesmo como algo que contribuiria para sua ação política, inclusive porque ao se dar visibilidade aos resultados da nossa pesquisa estaríamos com isso reforçando e legitimando as denúncias realizadas pelos movimentos locais em termos da negação do direito à cidade na capital potiguar. Contudo, outros movimentos demonstravam certa resistência a ideia de estarem sendo objeto de pesquisa acadêmica, por razões bastante justas. Uma delas o fato de muitas dessas pesquisas – ainda que “bem intencionadas” – acabam 30 por produzirem argumentos favoráveis aos opositores do movimento e passam a ser por eles utilizados, em geral, para fundamentar a criminalização dos movimentos. Isso quando não acontece de tratar-se de pesquisador que se apresenta como estudante universitário, mas que na realidade é representação da imprensa dominante, a fim de “validar” determinadas teorias que muito pouco ou praticamente em nada correspondem ao que acredita e ao que faz o próprio movimento. De fato, no processo de pesquisa, nos deparamos com informações passíveis de deturpações. Nossa opção, porém, foi pelo máximo de cuidado possível em relação ao que iríamos escrever e expor neste trabalho. Evidenciamos as contradições, mas as situando sempre do ponto de vista dos movimentos. Outrossim, todo o processo de realização da presente pesquisa esteve inscrito no contexto de minha vida cotidiana (dimensão insuprimível da existência social), o que não é isento de implicações. O percurso investigativo e analítico, sendo parte do meu cotidiano, sofreu também as determinações deste, a exemplo da heterogeneidade, da imediaticidade e da superficialidade extensiva (LUKÁCS, 1966) que constituem ontológica e estruturalmente a vida cotidiana. Se é verdadeira a assertiva do próprio Lukács, segundo o qual não existe uma muralha chinesa separando os comportamentos cotidianos dos que não o são, posso afirmar ter sido uma das dificuldades presentes na construção deste trabalho a (in)capacidade de conseguir suspender-me do plano da cotidianidade por alguns momentos. Ademais, não constitui tarefa simples insistir na filiação à tradição marxista na análise dos movimentos sociais, no atual tempo histórico. De fato, revela-se um desafio tecer análises ancoradas nesta perspectiva em um contexto em que o pensamento social brasileiro se defronta com convites constantes para a fragmentação da realidade e a negação de sua totalidade, oscilando entre o catastrofismo fatalista, o esquerdismo pós-moderno e a cultura do possibilismo: ora afirma-se não haver o que fazer, ora se dilui a luta de classes em múltiplos particularismos ou ainda se aposta na colaboração de classes como alternativa (BRAZ, 2011). Com a crescente ampliação das interferências do pensamento pós-moderno e neoconservador, a produção de uma dissertação de mestrado ancorada nas categorias de totalidade, contradição e mediação, se apresentou como mais uma dificuldade presente em nosso percurso. 31 Em que pesem todos os desafios elencados e as dificuldades vivenciadas em alguns momentos para saber lidar com eles, a produção de um trabalho com tal nível de exigência constituiu para mim oportunidade de descoberta de novas leituras e de apropriação de novos conhecimentos, ou ainda, ocasião para descortinar tantas outras questões até então intangíveis em meu universo de estudo e de militância. A principal questão que estava explicitamente colocada era a necessária capacidade de seguir adiante, me auto-desafiando, procurando enfrentar todas as dificuldades inerentes ao percurso da pesquisa e próprias das minhas limitações teórico-metodológicas. Em nenhum momento escrever foi tarefa simples; ainda mais porque essa escrita exigia pensar criticamente objetos e sujeitos do tempo presente, com sonhos, angústias, incertezas e possibilidades atuais. Mas isso em nada alterou meu desejo de imprimir na pesquisa realizada um pedacinho de mim e do meu jeito de estudar fenômenos e processos em curso, circunscritos no tempo histórico, na dinâmica do real e inscritos no espaço em produção. Construímos este trabalho assentado na concepção que reivindica a realidade como base material. Foi exatamente esta realidade que nos despertou questões e nos forçou a pensar sobre elas e a partir delas. Por isso mesmo, as perguntas e demandas teóricas e políticas que este trabalho possa ter suscitado são, para nós, muito mais instigantes e significativas do que quaisquer respostas que pretendêssemos encontrar. Eis aí a essência do movimento dialético de um processo de pesquisa. Por fim, não é demais lembrar o caráter preliminar desta elaboração, escrita por alguém que ainda se considera muito jovem em termos de vivências e, principalmente, acúmulo teórico. Nesse sentido, o trabalho ora apresentado é, evidentemente, passível de adendos, críticas, sugestões e reformulações e está, por isso mesmo, suscetível a contribuições a serem refletidas e trabalhadas posteriormente. Desse modo, não me resta, senão assumir as responsabilidades pelas lacunas existentes. 32 Por onde caminha nossa pesquisa? “[...] a realidade social não se dá a conhecer a não ser pela reflexão demorada, reiterada, obstinada [...] sobre o objeto para desvendar, no objeto, dimensões que não são visíveis, que não são dadas” (Otávio Ianni) Do momento em que chegamos a UFRN para iniciarmos nosso mestrado ao momento em que finalmente entregamos a versão dita “final” da nossa dissertação para a banca examinadora, uma das lições que nos pareceram mais verdadeiras é aquela segundo a qual, na perspectiva inscrita em Marx, o método de investigação é distinto do método de exposição. Aprendemos isso nas aulas que tivemos durante a disciplina Seminário de Dissertação, mas somente entendemos o que realmente queria dizer tal afirmação quando passamos a fazer constantes e contínuas reformulações na versão escrita de nosso trabalho. Construímos, abandonamos, deslocamos de um lugar para outro, reconstruímos muitas formas que tornariam possível a exposição dos resultados a que chegamos, até finalmente optarmos por estruturar o presente trabalho em três partes, além desta introdução e das considerações finais. No primeiro capítulo, procuramos traçar algumas características e tendências constitutivas da questão urbana brasileira, a partir da análise das imposições e requisições da lógica de acumulação capitalista. Destacamos especialmente as dinâmicas urbanas contemporâneas e suas incidências sobre as cidades, e as condições de vida e moradia da classe trabalhadora, procurando demonstrar seus efeitos destrutivos, conjunturais e duradouros. Ao abordar o contexto da luta de classes e sua repercussão no âmbito do Estado, este capítulo busca também explicitar a condição da política pública no enfrentamento das distintas manifestações da questão urbana nos dias atuais, em que coexistem de forma tensa e contraditória o reconhecido avanço representado pela inscrição da Política Urbana na Constituição Federal de 1988 e os desdobramentos da ofensiva neoliberal e da contrarreforma do Estado. Delineamos a partir disso a concepção de cidade como um território de luta política. No segundo capítulo, passamos a recorrer aos recursos da análise documental e dos depoimentos das lideranças políticas entrevistadas e, com isso, 33 elucidamos o terreno sócio-histórico no qual os movimentos e organizações populares pesquisadas se articulam, o que caracteriza e configura o perfil dos dirigentes e lideranças dos movimentos pesquisados, suas bandeiras e frentes de luta, as quais expressam a síntese das necessidades, interesses e objetivos almejados pelos sujeitos que constroem o movimento popular em Natal. No terceiro capítulo, também especialmente a partir dos depoimentos dos sujeitos entrevistados e da análise documental, caracterizamos de forma mais precisa a ação política dos movimentos sociais de Natal na luta pelo reconhecimento e garantia de direitos sociais, com ênfase no direito à cidade. A partir deste enfoque, discutimos as principais iniciativas/ações realizadas pelos movimentos sociais, os avanços/conquistas e dificuldades/entraves encontrados pelos movimentos na intervenção face à questão urbana em Natal. Problematizamos, ainda, os desafios postos para os movimentos sociais e centramos nossa discussão em torno das estratégias adotadas por estes em Natal, seus processos de organização e mobilização, evidenciando dilemas e contradições que perpassam suas lutas no período contemporâneo. Ademais, abordamos os principais aliados com que os movimentos sociais de Natal se articulam na defesa de suas propostas e contra que se confrontam diretamente. Nessa direção, problematizamos também como vem ocorrendo a relação entre os referidos movimentos com outros movimentos sociais, com a mídia e com o poder local, pois tanto a apreensão das alianças realizadas quanto a identificação de interesses opostos aos movimentos são dimensões importantes para a análise da ação política. A perspectiva teórico-metodológica adotada dá sustentação ao conjunto das formulações, análises e construções tecidas ao longo de nossa dissertação. Nos diferentes capítulos, assim como na introdução e nas considerações finais buscamos a apropriação de dimensões do real a partir de categorias e conceitos do legado marxiano e de elaborações de autores marxistas. Utilizamos o recurso à nota de rodapé, quando julgado necessário, para explicitar polêmicas e evidenciar nosso posicionamento acerca de determinada categoria, ou para aportar informações complementares. Chamamos aqui a atenção para a construção da categoria movimentos sociais, a qual não figura em um capítulo específico, mas cujo conteúdo e sentido aparecem de modo transversal no decorrer de nosso trabalho. Em momento algum, a particularidade das lutas urbanas em Natal apareceu de forma 34 isolada. Ao contrário, veio sempre acompanhada do debate acerca da organização política sob o signo da divisão da sociedade em classes antagônicas. Por fim, explicitadas nossas considerações finais, listamos as referências bibliográficas as quais recorremos para a elaboração desta Dissertação, como modo de evidenciar o cuidado em mencionar autores e obras de grande relevância para a maturação intelectual de nosso objeto de pesquisa. Esta nos pareceu ainda uma forma de fazer referência às longas madrugadas de estudo, horas e horas – exaustivas, mas agradáveis – de leituras e fichamentos que nos possibilitaram o exercício da crítica e, sem dúvida, da escrita mais minuciosa, potencializada nos repetidos processos de releitura e reescrita. Os capítulos expostos a seguir permitirão apreender o modo como articulamos e trabalhamos cada leitura realizada, embora nem de longe nos pareçam suficientes. Ao contrário, ressinto-me das leituras não realizadas, a despeito do investimento e da vontade; dos autores cujas elaborações não foram suficientemente apropriadas; das indicações e sugestões não contempladas neste trabalho; das obras que não cheguei a discutir e, por decorrência, ressinto-me do fôlego que me faltou em alguns momentos e das reflexões em que não consegui avançar um pouco mais. Não por acaso concluo este trabalho com clareza dos limites do meu conhecimento e surpreendida com a imensa possibilidade de novas apropriações sobre o tema. Esta pesquisa nos apresentou em seu processo a imensa possibilidade de aproximação ao nosso objeto de estudo, além de novas elaborações e reflexões, partindo da realidade concreta dos sujeitos sociais que estão inseridos naquele contexto, e nos direcionando assim para muito além da mera validação dos conhecimentos que já tínhamos construídos. Afinal, o que nos propomos a pesquisar foram justamente “[...] os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação” (MARX, 2009b, p. 86-87). Porém, consideramos importante destacar que o produto final da análise de uma pesquisa deve ser visto em sua dimensão de resultado provisório e aproximativo, absolutamente passível de ser superado por afirmações futuras, assim como é próprio do exercício da ciência. Tal concepção do fazer científico vem de encontro à abordagem histórica, dialética e de totalidade que nos esforçamos para desenvolver no decorrer de todo o processo investigativo tendo em vista os objetivos 35 traçados. Processo investigativo este que também expressa nossa construção enquanto ser social... “Mesmo quando eu sozinho desenvolvo uma atividade científica etc, uma atividade que raramente posso levar a cabo em direta associação com outros, sou social, porque é enquanto homem [e mulher] que realizo tal atividade [...] A minha própria existência é atividade social. Por conseguinte, o que eu próprio produzo é para a sociedade que o produzo e com a consciência de agir como ser social” (Karl Marx). 36 Capítulo 1 A Questão Urbana na dinâmica de reprodução capitalista 37 2 A QUESTÃO URBANA NA DINÂMICA DE REPRODUÇÃO CAPITALISTA Nesta parte do trabalho, nos esforçamos para adentrar nos meandros da questão urbana, partindo de uma análise da lógica capitalista de produção do espaço, objetivando compreender como os mecanismos de reprodução do capital configuram e delineiam expressões da questão urbana. Para apreender como se materializa essa lógica, discutiremos as desigualdades sócio-espaciais, buscando enfatizar a realidade do Brasil. Por entendermos a cidade como espaço de disputa entre projetos políticos, priorizamos a análise da materialização (ou não) do direito à cidade no contexto neoliberal, sem descolar esse debate do caráter do direito na sociabilidade capitalista. 2.1 A lógica do capital na produção do espaço Retomamos aqui a reflexão de David Harvey para integrá-la à nossa análise da lógica capitalista de produção do espaço, mas também procuramos incorporar contrapontos, debatendo argumentos e textos contemporâneos. Com isso pretendemos sublinhar elementos teórico-conceituais, para, nos próximos itens, conectá-los com alguns elementos do processo histórico que desemboca na materialização (ou não) do direito à cidade, peculiarizado na lógica capitalista e no contexto das novas determinações incorporadas a esta dinâmica. Isto porque a Questão Urbana é uma dimensão envolta em uma totalidade maior de (re)produção das relações sociais. Daí não ser possível compreendê-la sem antes desvendar as engrenagens e mecanismos por meio dos quais o capital se articula e se expressa no processo de produção do espaço urbano. Ao mesmo tempo e dialeticamente, a questão urbana é reveladora das contradições imersas na produção do espaço e o papel que é a este atribuído pela lógica capitalista. Ao nos propormos a enveredar por este caminho, aproveitamos para sinalizar que o eixo estrutural das condições da reprodução capitalista – as imposições lógicas da acumulação do capital, às quais também está submetido o espaço urbano – não pode aparecer de modo natural ou descolado de seu sentido histórico e dinâmico, uma vez que essa estrutura existe e se organiza mediada pela luta de classes. Portanto, embora a lógica dominante seja real, conforme e molde a 38 produção do espaço, enquanto seres sociais e históricos que somos, não estamos destinados a viver perpetuamente em função dela. Ao afirmamos que há uma lógica de organização do espaço imbuída no modo de produção capitalista estamos, implicitamente, chamando atenção para o entendimento de modo de produção. Este, da forma como o estamos abordando, não se restringe à atividade econômica imediata, e sim remete à totalidade da vida social ou, em outros termos, ao conjunto das relações sociais que sustentam o capitalismo. No seio da teoria da acumulação de Marx revela-se também a presença de uma dimensão sócio-espacial no modo capitalista de produzir e nisto reside o grande mérito teórico da elaboração de David Harvey8. De acordo com seus estudos, Marx não desconsidera que a acumulação de capital ocorre em um determinado contexto histórico e geográfico. Aliás, não apenas reconhece este aspecto da dinâmica do capital, como demonstra que a lógica capitalista engendra formas específicas de estruturas geográficas, em cada formação sócio-histórica. O modo capitalista de produção é inevitavelmente expansível na proporção em que “[...] expressa-se a ‘missão histórica da burguesia’ na fórmula ‘acumulação pela acumulação, produção pela produção’” (HARVEY, 2005, p. 41-42). Daí se relacionar amplamente com as estruturas espaciais. O caráter expansível do capitalismo também está contemplado na afirmação de Marx em O Manifesto do Partido Comunista ao apontar que “[...] a necessidade de mercados sempre crescentes para seus produtos impele a burguesia a conquistar todo o globo terrestre. Ela precisa estabelecer-se, explorar e criar vínculos em todos os lugares” (MARX; ENGELS, 2008, p. 11). O espaço como produto da atividade humana e da relação homem-natureza faz parte do processo de reprodução geral da sociedade e, tendo sua produção assentada nas necessidades impostas pelo desenvolvimento da acumulação capitalista, é também mercadorizado, tal como a cidade e a própria moradia que passam a ser concebidos como mercadorias necessárias à viabilização da produção, circulação, distribuição e troca, condição para a realização do ciclo de acumulação de capital. Afinal, sendo o espaço urbano moldado essencialmente para 8 Para Harvey (2005) o fato de por muito tempo se ter ignorado a dimensão espacial presente na teoria da acumulação de Marx no modo de produção capitalista se explica, em parte, pelo fato dos seus escritos sobre o assunto serem fragmentados, mas também por uma certa negligência teórica quanto ao fator mediador da teoria de localização de Marx. 39 potencializar a acumulação do capital, sua formatação articula as diferentes esferas do modo capitalista de produzir. Exatamente por isso, no capitalismo, na produção do espaço há a vitória do valor de troca sobre o valor de uso, haja vista o núcleo urbano tornar-se objeto de um duplo papel: lugar de consumo e consumo do lugar (LEFEBVRE, 2001), em um processo no qual o valor de troca prevalece a tal ponto sobre o valor de uso que praticamente suprime este último. Com isso, “[...] o valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, a subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso [...]” (LEFEBVRE, 2001, p. 14). O espaço, apesar de socialmente produzido pela atividade humana, - por meio do trabalho percebemos a realidade social como criação do homem, num ato de transformar a natureza e a si mesmo - é apontado ainda como exterioridade e percebido com estranhamento, ou seja, a alienação também está expressa no processo de produção do espaço e das cidades. Para compreendermos a articulação do processo de produção do espaço urbano na sociedade capitalista, segundo Milton Santos, faz-se necessário entender que: [...] a forma como atualmente se distribuem as infraestruturas, os instrumentos de produção, os homens – enfim, as forças produtivas – possui até um certo ponto um caráter de permanência, isto é, de reprodução ampliada, amparadas, exatamente, pela longevidade de um grande número de investimentos fixos. Tudo, pois, conspira para que a organização do espaço se perpetue com as mesmas características, favorecendo o crescimento capitalista e suas distorções (1980, p. 41). Tal relação não somente impõe uma determinada configuração ao espaço urbano, como também é indicativa da sua forma de ocupação pela sociedade. Desse modo, “[...] a cidade e a realidade urbana seriam, nesta hipótese, o lugar por excelência e o conjunto dos lugares onde se realizam os ciclos de reprodução, mais amplos, mais complexos [...] a reprodução das relações (capitalistas) de produção [...]” (LEFEBVRE, 2001, p. 23). Ademais, as relações socialmente estabelecidas são também relações espaciais, haja vista serem circunscritas no espaço em produção. É neste, precisamente, onde estão concentrados todos os recursos explorados pelo capital para acumular, como são exemplares a força de trabalho e o próprio meio ambiente. Desse modo, apreender os mecanismos de reprodução do capital, a partir de sua lógica de acumulação, concentração e expansão nos permite perceber 40 determinantes para entender a dinâmica urbana, no seio da qual se produz, a um só tempo, expressões da questão urbana e da questão ambiental. Nas elaborações de Harvey (2005), encontramos análises sugerindo ser a acumulação capitalista desenvolvida via articulação de quatro elementos, dentre os quais figura a expansão geográfica e a produção do espaço. Os outros três elementos referem-se à intensificação da atividade social, quais sejam: a penetração do capital em novas esferas de atividade; a criação de novas necessidades, desenvolvendo novos produtos; a facilitação e o estímulo para o crescimento populacional. O aspecto da expansão geográfica – para o qual chamamos especial atenção no presente trabalho – precisa, por conseguinte, ser entendido não somente como condição prévia para a acumulação capitalista, e sim como sendo simultaneamente condição e decorrência deste processo, se revelando também como contraface necessária da acumulação capitalista; somado a outros aspectos inerentes à lógica do capital, contribui para aprofundar as desigualdades. Nesse sentido, se traduz em profundas transformações nos entornos físicos – nas cidades, no meio ambiente – e nas relações sociais. Transformações que, em última instância e sem desconsiderar o próprio teor da luta de classes, não visam outro objetivo senão amoldar a cidade às exigências do domínio do capital. Mas de que modo a teoria da acumulação se relaciona com a produção das estruturas espaciais? Sobre essa questão, Harvey (2005) levanta uma gama de indicações teóricas encontradas na literatura marxiana. Inicialmente, destaca que a acumulação do capital requer a necessidade imperativa de superação das barreiras espaciais e a criação de novos espaços para a acumulação capitalista. Ora, pela lei geral da acumulação, somente quando está no mercado o produto encontra-se finalmente acabado. Deduz-se dessa lógica, que quanto mais se puder encurtar o tempo necessário para tanto (tempo de circulação), mais vantajoso será para o capital. O esforço do capital, em seu processo de acumulação, gira, portanto, em torno da possibilidade de agilizar as condições físicas da relação de troca, buscando para isso abater todas as barreiras espaciais e ampliar incessantemente o mercado. Como decorrência desse esforço para criar novas oportunidades à acumulação de capital, ocorre não apenas a expansão geográfica, mas também a concentração geográfica. Ou seja, a concentração da produção em grandes aglomerações urbanas, visando justamente a referida anulação do espaço pelo tempo, conforme Harvey (2005, p. 50) nos indica: 41 A necessidade de minimizar o custo de circulação e o tempo de giro promove a aglomeração da produção em alguns grandes centros urbanos, que se tornam as oficinas da produção capitalista (MARX, 1967, vol. 1: 352; MARX, 1973: 587). A ‘anulação do espaço pelo tempo’ se realiza, nesse caso, pela localização ‘racional’ das atividades, umas em relação às outras, a fim de reduzir, em particular, os custos de movimentação dos produtos intermediários [...] Essa tendência à aglomeração em grandes centros urbanos pode se reduzir ou se ampliar mediante circunstâncias especiais. Por um lado, verificamos que ‘a divisão territorial do trabalho [...] confina setores especiais da produção em regiões especiais de um país’ (MARX, 1967, vol. 1: 353). Por outro lado, ‘todos os setores da produção, que, pela natureza dos seus produtos, são essencialmente dependentes do consumo local, como cervejarias, são [...] desenvolvidos ao máximo nos centros populacionais’ (MARX, 1967, vol. 2: 251) A este movimento, Harvey (2005) designou racionalização geográfica do processo produtivo. Nesse processo, a estrutura espacial engendrada, representação do capital em forma de paisagem física, ao mesmo tempo expressa a coroação dos fins capitalistas, e traz, igualmente, em si fatores passiveis de inibir o processo de acumulação. Dessa feita, no que se refere à produção do espaço, o desenvolvimento capitalista ocorre tensionado por duas tendências contraditórias, ficando entre a conservação do investimento anterior na produção de determinado ambiente e o aniquilamento desses investimentos para lançar mão de novas possibilidades para a acumulação. Este constitui o primeiro indicativo apontado por Harvey (2005) acerca da relação da acumulação com a produção das estruturas espaciais. O segundo indicativo, apreendido na leitura de Harvey (2005), refere-se ao fato de que o capitalismo somente pode atingir a proeza de escapar desta contradição por meio da expansão, seja através da intensificação de necessidades sociais e ampliação do consumo ou, seja de algum modo por meio da expansão no sentido geográfico, criando novos espaços para a acumulação. Para elucidar a forma como se processa e se caracteriza esta acumulação, Harvey (2004) chama a atenção para a retomada, na contemporaneidade, com distinções, de uma forma arcaica de acumulação que volta a expandir-se e é por ele denominada de acumulação por espoliação. Seguindo na mesma reflexão, o geógrafo marxista sugere ainda a existência de fontes de espoliação que seriam externalidades ao capital. Trabalha assim com a dialética interior-exterior, segundo suas próprias palavras, para afirmar que “[...] o capitalismo pode tanto usar algum exterior preexistente (formações sociais não capitalistas ou algum setor do 42 capitalismo – como a educação – que ainda não tenha sido proletarizado) como produzi-lo ativamente” (HARVEY, 2004, p. 118). No debate teórico, Virgínia Fontes (2010) polemiza com o termo Acumulação por espoliação, forjado por Harvey (2004), por entender que, apesar de extremamente sugestiva, sua tese incorre em algumas dificuldades, na proporção em que incide no deslize de relegar o tema das expropriações à condição de acumulação primitiva, levando à suposição de que, no amadurecimento do capitalismo, desapareciam as expropriações bárbaras de sua origem. A discordância de Virgínia Fontes reside, sobretudo, no tema da produção de externalidades e na própria contraposição que Harvey (2004) realiza entre espoliação e expropriação. Com propriedade e domínio teórico, Virgínia discute o teor contemporâneo das expropriações produzidas - termo que a historiadora considera mais adequado para tratar o fenômeno do que o conceito de espoliação - e seu papel na dinâmica capitalista. Apresenta, assim, as duas faces da tendência à expansão do capital: a concentração de recursos sociais e a recriação permanente das expropriações: Expandir relações sociais capitalistas corresponde, portanto, em primeiro lugar, à expansão das condições que exasperam a disponibilidade de trabalhadores para o capital, independentemente da forma jurídica que venha a recobri a atividade laboral de tais seres sociais. A expropriação primária, original, de grandes massas campesinas ou agrárias, convertidas de boa vontade (atraídas pelas cidades) ou não (expulsas, por razões diversas, de suas terras, ou incapacitadas de manter sua reprodução plena através de procedimentos tradicionais, em geral agrários) permanece e se aprofunda, ao lado de expropriações secundárias [...] (FONTES, 2010, p. 44). No debate em curso e aqui parcialmente reproduzido, tendemos a corroborar com a posição de Fontes (2010), considerando que a dinâmica de expropriações que Harvey demonstra é por ele apresentada como pertencente aos primórdios do capitalismo, uma característica externa a este modo de produção e que, nesse sentido, não é reconhecida por Harvey como parte de seu desenvolvimento. Intriga- nos bastante a dualidade com que o geógrafo marxista trabalha a questão, distinguindo características inerentes ao capitalismo e outras supostamente estranhas e externas à sua dinâmica. No que se refere especificamente à dualidade apontada e à própria categoria espoliação, a dificuldade presente na elaboração de Harvey encontra-se, em nossa concepção, sobretudo, no fato de ser uma tese que abre margem para afirmar a 43 espoliação – ou, melhor dizendo, expropriação – não como decorrente da dinâmica de desenvolvimento capitalista e sim, própria a um estágio de acumulação (primitivo). Em nossos estudos, temos maturado o entendimento de que embora seja um processo diferenciado, nem por isso deixa de ser parte intrínseca e imbricada na natureza do capitalismo. Interessa-nos, então, saber por meio de que mecanismos as expropriações subjacentes à lógica capitalista se traduzem em profundas transformações nas cidades e nas relações sociais aí estabelecidas. Até porque as contradições do Brasil contemporâneo se expressam como contradições do processo de produção do espaço, com outras determinações históricas do momento atual agregadas à questão urbana, a partir de modernas questões, gerando e alimentando uma nova lógica de reprodução do espaço urbano, ao qual Harvey (2004) se refere como sendo a constituição de um novo imperialismo. Virgínia Fontes, de certo modo, também se ocupa deste tema ao retomar as análises fundamentais de Marx, Lênin e Gramsci acerca do imperialismo, reconhecendo que nas elaborações de cada autor, inscritas em contextos históricos distintos, novas determinações históricas se apresentam; isto também é válido para análises no atual tempo histórico. O intuito de Lênin, naquele momento, em contribuir para que os trabalhadores e seus partidos compreendessem as novas condições sob as quais deveriam enfrentar o domínio do capital permanece válido e merece atualizações constantes, dada a complexidade da luta de classes. A autora retoma, nesse sentido, algumas das mais importantes características assinaladas por Lênin para o imperialismo: a constituição dos monopólios, a fusão entre capitais industriais e capitais bancários, a tendência a uma unificação nacional dos países dominantes e a partilha econômica e territorial do mundo entre os países exportadores de capitais. Entretanto, alerta que a atualidade da caracterização de Lênin não deve obscurecer a necessidade de se identificar novas configurações do imperialismo, reflexão que Fontes (2010) desenvolve melhor a partir da sua argumentação sobre o porquê da adoção do termo capital-imperialismo. Para ela, teórica e analiticamente este termo contempla a caracterização histórica contemporânea da dinâmica do capital, em seus processos de continuidade e aprofundamento, tendo o final da II Guerra como demarcação temporal para a conversão do imperialismo em capital-imperialismo. Assim, o conceito “capital- imperialismo” incorpora as definições clássicas propostas por Lênin. A ressalva diz 44 respeito apenas às três principais características do capital-imperialismo (o predomínio do capital monetário, a dominação da pura propriedade capitalista e o seu impulso expropriador), por estas aprofundarem a necessidade imperativa de reprodução ampliada do capital e sua expansão em todas as dimensões da vida social, traço intrínseco e permanente desta lógica societária. Portanto, falar em capital-imperialismo significa fazer referência a uma forma de capitalismo, já impregnada de imperialismo. Esta exacerba a concentração de capitais e impulsiona, mais do que nunca, intensas expropriações de populações inteiras, tanto no que se refere às próprias condições de existência social, ambiental e biológica, como também à ampla expropriação de direitos historicamente conquistados pelas lutas da classe trabalhadora. Pretende-se com este conceito (que sendo teórico traz em si desdobramentos políticos) evidenciar que a expansão capitalista sob a forma do imperialismo não ficou estanque no tempo, mas, ao contrário, agregou novas determinações e expressões. Ademais, significa dizer que a dinâmica de concentração de capitais promove e aprofunda amplamente novos processos de expropriação. Entender o caráter de tais expropriações e seu papel na dinâmica capitalista atual é uma preocupação importante. Com efeito, a expropriação da classe trabalhadora, nessas condições, se apresenta e se expressa na separação desta classe das condições e dos recursos sociais de produção, fazendo com que a lógica dominante nesta sociedade seja de submissão real do trabalho ao capital, ou seja, além da produção não ser voltada para a satisfação das necessidades sociais, a necessidade de venda da força de trabalho, em quaisquer condições, é naturalizada e legitimada. A lógica da expropriação é, desse modo, basilar e permanente, haja vista a necessidade de generalizar a expansão capitalista. O esforço teórico de Virgínia Fontes, a rigor, é singular e bastante significativo na medida em que provoca o retorno a um debate adormecido há até bem pouco tempo, com a problematização do papel exercido pelas nações intermediárias – nem centrais nem tão periféricas – na dinâmica geral de reprodução do capital. Retomar esta discussão constitui, sem dúvidas, um mérito importante da elaboração de Fontes (2010). Além disso, sua obra é também singular por provocar um retorno a esta problemática a partir de elaborações de alguns intelectuais e sujeitos políticos, datadas dos anos 1960, as quais posicionaram os termos do debate dentro da lógica de reprodução do capital. Daí ser imprescindível recuperar o pensamento de Ruy 45 Mauro Marini – tal como o fez Virgínia – como um dos primeiros intelectuais a fazer alusão ao papel particular de algumas economias latino-americanas na conexão com o restante do continente. Não temos, todavia, acordo com relação à tese central apresentada pela autora, segundo a qual o Brasil, nesse processo, se caracterizaria como país a desempenhar um papel imperialista, ainda que de forma subordinada. Ora, sob esta ótica podemos incorrer no risco de velar o real processo internacional que rege as relações econômicas entre capitalistas do centro e da periferia, anuviando com isso a tensão entre o local (em suas particularidades) e o internacional. A inserção do Brasil no jogo geral de reprodução do capital, neste contexto de financeirização da economia9 e do imperialismo, em sua fase de intensificação da integração dos territórios, explica-se, a nosso ver, por meio dos conceitos chaves de subimperialismo e de superexploração (MARINI, 1974). Estes conceitos nos parecem melhor apropriados para captar a consolidação, no cenário internacional, de papéis distintos no mesmo processo geral da dinâmica capitalista a serem exercidos por parte das nações hegemônicas e das nações periféricas e, dentre estas, de algumas intermediárias. Para o caso brasileiro, a questão da organização espacial em geral – e da urbana em particular – exige reflexão (e esforço de pesquisa) a partir do entendimento da condição de subdesenvolvimento e de dependência que cria (e recria) formas urbanas particulares. Superexploração e subimperialismo são conceitos elaborados, por dentro da teoria marxista, com destaque para a formulação de Ruy Mauro Marini, intimamente relacionados à realidade periférica. Objetivam explicar o caráter particular das nações subdesenvolvidas, em sua vinculação complementar e contraditória com relação aos países imperialistas centrais. Ambos os conceitos, logicamente, não podem ser entendidos descolados da teoria acerca do imperialismo. Ao definir subimperialismo, Marini (1974, p. 07) o fundamenta em duas características essenciais: 9 Trata-se de um regime de acumulação mundial predominantemente financeiro. De acordo com Chesnais (1996) é uma nova configuração do capitalismo mundial, bem como dos mecanismos que comandam seu desempenho e regulação; um posto avançado da mundialização do capital, situado no quadro do prolongamento direto do estágio imperialista. As contribuições de Husson (1999) também são fundamentais para o desvendamento de determinações e processos presentes na mundialização da economia, nos levando a crer tratar-se certamente de uma dominação ainda maior que em períodos anteriores. 46 a) a partir de la reestructuración del sistema capitalista mundial que se deriva de la nueva división internacional del trabajo, y b) a partir de las leyes propias de la economía dependiente, esencialmente: la superexplotación del trabajo, el divorcio entre las fases del ciclo del capital, la monopolización extremada en favor de la industria suntuaria, la integración del capital nacional al capital extranjero o, lo que es lo mismo, la integración de los sistemas de producción (y no simplemente la internacionalización del mercado interno) [...]. Isto reforça nosso entendimento do subimperialismo não como uma condição estrutural do capitalismo dependente, mas como uma dinâmica determinada pela conjuntura e correlação de forças na luta de classes nacional e internacional. Acreditamos, desse modo, que permanece em vigor a capacidade explicativa dos conceitos de superexploração e subimperialismo para a realidade brasileira, considerando que o atual período histórico parece sustentar, em novas bases, as características subimperialistas apontadas originalmente por Marini. Está, assim, evidente para nós que a referência à dinâmica de reprodução do capital necessariamente deve ser feita referindo-se também ao território concreto de sua atuação, pois isto traz e evidencia particularidades para o processo. Ao fazermos alusão ao território de atuação do capital, ponderamos com base em Santos (2006), que entendemos o território para além do conjunto de sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostos. Território é empregado, nesta acepção, como o fundamento do trabalho, o lugar de residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida, daí a denominação de território usado, atribuída pelo autor. Neste sentido, tal debate teórico nos parece fundamental para apreender as novas dinâmicas urbanas em tempos de mundialização financeira, com suas incidências sobre as cidades e, em particular, sobre as condições de moradia e de vida da classe trabalhadora. Ora, considerando as expropriações – primárias e secundárias – inerentes à dinâmica de reprodução do capital, em sua busca incessante de enfrentar suas crises de acumulação, na fase atual de acumulação, o espaço, constitui um fator essencial; nele ocorrem as expropriações e a re- apropriação de parcelas a serem “re-funcionalizadas” pelo capital. Faz-se necessário, portanto, estabelecermos mediações a partir do movimento geral do capital (e do desenvolvimento do capitalismo no espaço) para 47 atingir formas concretas de organização sócio-espacial, necessariamente, portadoras de especificidades não encontradas alhures. 2.2 O urbano, a moradia e as desigualdades sócio-espaciais Para o estudo da forma como se processa e se materializa o fenômeno de amoldamento da cidade às exigências do domínio do capital, reivindicamos, dentre as obras clássicas e referências obrigatórias das ciências sociais, sobretudo, a elaboração de Friedrich Engels em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, dada a relevância desta obra para o entendimento da urbanização capitalista como instrumento particular de segregação social. Para Engels, a questão urbana e os processos sociais por ela engendrados devem ser entendidos como decorrentes da moderna industrialização capitalista: Tudo o que nos horroriza e nos indigna é de origem recente e data da época industrial [...] foi a indústria que fez com que fossem ocupadas pela massa de operários que hoje moram nelas; foi a indústria que cobriu de construções cada espaço livre entre as velhas casas, a fim de abrigar aí as massas que compelia a abandonar os campos e a Irlanda; foi a indústria que permitiu aos proprietários desses estábulos alugá-los a altos preços, como se fossem habitações humanas, explorando a miséria dos operários, minando a saúde de milhares de pessoas e enriquecendo-os apenas a eles, os proprietários; foi a indústria que fez com que o trabalhador, recém- liberado da servidão, pudesse ser utilizado novamente como puro e simples instrumento, como coisa, a ponto de ter de se deixar encerrar em cômodos que ninguém habitaria e que ele, dada a sua pobreza, é obrigado a manter em ruínas. Tudo isso é obra exclusiva da indústria, que não poderia existir sem esses operários, sem a sua miséria e a sua escravidão (ENGELS, 2010, p. 96) É neste terreno histórico que Henri Lefebvre também situa suas análises. Enquanto processo, em larga escala, motor das transformações societárias, a industrialização é, para o autor, processo indutor de diversas questões referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana. Isto não significa, todavia, negar que, obviamente, a cidade preexiste à industrialização; aliás, quando nasce o capitalismo concorrencial com a burguesia especificamente industrial, as cidades já se constituíam como centros da vida social e política nos quais se acumulavam riquezas. Porém, a ampla expansão das trocas e do “mundo da mercadoria” resultantes da industrialização implica uma mudança radical do ponto de vista da concentração urbana, fazendo com que a cidade adquira feições diferenciadas. Daí 48 Lefebvre (2001) qualificar a industrialização e a urbanização como resultante de um duplo processo ou, melhor dizendo, um processo com dois aspectos, conflitantes e complexos. Afinal, não apenas a industrialização traz impactos para a cidade, como a cidade desempenha um papel importante na arrancada da indústria; por certo, tal como a fábrica, a cidade possibilita a concentração de instrumentos e de força de trabalho em um mesmo espaço e, assim, as concentrações urbanas acompanham as concentrações de capitais, permeadas pela estrutura de classes e pelos mecanismos de poder. Por isso mesmo, o próprio Lefebvre esclarece que esta análise não deve deixar margem para se acreditar tratar-se de um processo natural, ausente de sujeitos, uma vez que neste processo intervêm ativamente, de um lado, as classes e frações de classe dominantes, detentoras dos meios de produção e, de outro, e antagonicamente, a classe operária, o proletariado. A preocupação de Engels (2010), dessa feita, volta-se centralmente para a apreensão das condições de vida e de trabalho da parcela da sociedade referida, em alguns momentos de sua reflexão, como a “classe que nada possui”. Almejando culminar em seu objetivo central, Engels, como suposto teórico- metodológico, adota, como ponto de partida, a apreciação crítica das condições de Habitação em que está submerso o proletariado das grandes cidades, por entender que o modo como a necessidade concreta de “se ter um teto para morar” é materializada, constitui critério a partir do qual se pode deduzir como seriam então realizadas às demais necessidades sociais. Mais do que isso, o padrão de moradia (ou ausência desta, sobretudo) resulta também de todo um processo complexo de segregação e de discriminação presente numa sociedade plena de contrastes acirrados. Os relatos descritivos-analíticos e documentais reunidos em sua obra são reveladores da tensão que perpassa a (re)produção da classe trabalhadora no âmago do cotidiano da vida urbana, a evidenciar que, sob hegemonia das relações capitalistas, a questão da moradia nunca será resolvida: Todas as grandes cidades têm um ou vários ‘bairros de má fama’ onde se concentra a classe operária [...] Na Inglaterra, esses ‘bairros de má fama’ se estruturam mais ou menos da mesma forma que em todas as cidades: as piores casas na parte mais feia da cidade; quase sempre, uma longa fila de construções de tijolos, de um ou dois andares, eventualmente com porões habitados e em geral dispostas de maneira irregular [...] Habitualmente, as 49 ruas não são planas nem calçadas, são sujas, tomadas por detritos vegetais e animais, sem esgotos ou canais de escoamento, cheias de charcos estagnados e fétidos. A ventilação na área é precária, dada a estrutura irregular do bairro e, como nesses espaços restritos vivem muitas pessoas, é fácil imaginar a qualidade do ar que se respira nessas zonas operárias [...] (ENGELS, 2010, p. 70). O relato supracitado é ilustrativo das diversas narrativas de Engels, ao explicitar as condições de existência social da classe trabalhadora, as quais se materializam sob o tensionamento de obter, no melhor dos casos, condições de vida momentaneamente suportáveis ou, no pior dos casos, encontrar-se na miséria extrema (ENGELS, 2010), realidade particularizada ainda pelo fato de se tratar de trabalhadores desempregados ou não. Kowarick (1979) ressalta que uma grande oferta de força de trabalho constitui elemento de fundamental importância para a realização de uma acumulação amplamente expansiva do capital. O autor entende haver uma relação direta entre condições de alojamento e precariedade dos salários da parcela da sociedade abrigada em favelas, casas precárias da periferia e cortiços. Em outras palavras, a hipótese com a qual trabalha Kowarick (Op. Cit) supõe que “[...] o desgaste de uma força de trabalho submetida a jornadas de trabalho prolongadas e as espinhosas condições urbanas de existência tornam-se possíveis na medida em que a maior parte da mão de obra pode ser prontamente substituída” (p. 42). Interessante observar o quanto é notório, guardadas as devidas proporções decorrentes do espaço e tempo histórico em que se processam as elaborações de Engels, a expressiva similaridade tranquilamente encontrada por nós com a realidade urbana de nosso país, especialmente porque, como bem nos lembra Lefebvre (2001, p. 17), “[...] este processo dialético (industrialização e urbanização, produção econômica e vida social), longe de estar elucidado, está também longe de ter terminado. Ainda provoca situações problemáticas”. Em Lefebvre (Op. Cit), o drama da cidade (como assim o denomina) adquire novos contornos, nos quais se aprofunda um processo induzido que se pode denominar “implosão-explosão” da cidade. O referido drama é apresentado por Lefebvre em três atos ou períodos. No primeiro momento, a indústria e o processo de industrialização assaltam e saqueiam a realidade urbana preexistente e, desse modo, o social urbano é negado pelo econômico industrial. No segundo momento, em parte justaposto ao primeiro, a urbanização se amplia e a sociedade urbana se 50 generaliza. O terceiro ato é expresso e sintetizado por uma verdadeira crise habitacional, decorrência também de um descaso por parte do poder público, bem como do fato de “[...] a questão da moradia, ainda que agravada, politicamente desempenha apenas um papel menor. Os grupos e partidos de esquerda contentam-se em reclamar ‘mais casas’ [...] é simplesmente o projeto de fornecer moradias o mais rápido possível pelo menor custo [...]” (LEFEBVRE, 2001, p. 26). Ao drama da cidade acrescentamos a predominância dos interesses das elites. Ainda mais no caso da urbanização brasileira, em que desde os primeiros momentos o interesse predominante voltou-se para a construção de uma nova imagem da cidade, produzida por meio de grandes intervenções urbanas que visavam afastar e esconder a pobreza do horizonte dos outros países e do seu próprio olhar. Nesta lógica, o fator localização aparece de modo central, na proporção em que: A cidade se caracteriza por ser um ambiente construído, ou seja, seu espaço é produzido, fruto do trabalho social [...] o solo urbano tem seu valor determinado por sua localização. Esta se caracteriza pelo trabalho social necessário para tornar o solo edificável (a infra-estrutura urbana), as próprias construções que eventualmente nele existam, a facilidade de acessá-lo (sua ‘acessibilidade’) e, enfim, a demanda. Esse conjunto de fatores é que distingue qualitativamente uma parcela do solo, dando-lhe certo valor e diferenciando-o em relação à aglomeração na qual se insere (FERREIRA, 2005, p. 5-6). Decorrente dessa dinâmica sócio-espacial, produz-se um verdadeiro distanciamento entre a vida urbana em bairros privilegiados – pensados exclusivamente para as classes dominantes tanto em termos de acesso, como de infraestrutura – e o cotidiano da vida urbana em bairros populares, o que tem se traduzido, por conseguinte, na existência de uma cidade apartada. A configuração do espaço expressamente organizado como cidade apartada/segregada foi designado por Engels como nada mais, além de uma disposição urbana hipócrita, verificada e expressa da seguinte forma: “[...] tanta sistematicidade para manter a classe operária afastada das ruas principais, tanto cuidado para esconder delicadamente aquilo que possa ofender os olhos ou os nervos da burguesia” (2010, p. 90). Exemplar deste fenômeno, no caso brasileiro, são os primeiros planos urbanísticos elaborados, amplamente difundidos na época como planos de embelezamento das principais metrópoles do país. Estes planos explicitavam as 51 dinâmicas de urbanização da cidade a partir da premissa do controle sanitário, argumento que legitimava a famigerada higienização de bairros centrais por meio de uma verdadeira expulsão da população mais pobre destes locais. O evidente contraste entre uma parte da cidade que possui alguma condição de urbanidade, uma amostra pavimentada, ajardinada, arborizada, com infraestrutura completa – a despeito da predominantemente baixa qualidade desses elementos – e, outra parte, em geral, duas a três vezes maior, cuja infraestrutura é incompleta ou mesmo inexistente constitui característica comum a todas as cidades brasileiras, independente de sua região, historicidade, economia ou tamanho (ROLNIK, 2002). Ademais, para a parcela da sociedade moradora da cidade pobre, precária e ilegal, este quadro de contraposição implica dificuldades ainda maiores de efetivação do direito ao trabalho, à cultura e ao lazer, a título de exemplo. Corresponde, portanto, ao que, para Rolnik (Op. Cit), configura um quadro de sobreposição das diversas dimensões da exclusão territorial10 incidindo sobre a mesma população. A imensa desigualdade sócio-espacial que se desenhou no cenário das metrópoles brasileiras constituiu uma realidade expressa em uma “cidade para poucos” (FERREIRA, 2005), o que nos remete a uma contradição fundamental do capitalismo. A cidade, tal como toda a riqueza dessa sociabilidade, embora seja socialmente produzida e fruto do trabalho social, é apenas privadamente apropriada. O reconhecimento dos processos que escondem e/ou revelam as contradições da produção do espaço são de suma importância para entender a cidade para além de sua condição de “mero” assentamento populacional e a urbanização como muito mais do que seu crescimento quantitativo. Por isso mesmo a questão urbana não pode ser tomada genericamente, descontextualizada de um espaço e de um tempo determinados e, nisto temos acordo com a crítica de Danilo Volochko (2008) à concepção stricto sensu de urbanização. Ou seja, uma abordagem que adota como premissa teórica conceitos como linearidade, equilíbrio, modelos e índices, raramente consegue construir uma 10 Temos, porém, restrições quanto à adoção do termo exclusão para explicação do fenômeno citado, pois consideramos este conceito impreciso, por ocultar o processo econômico, político e social que o gera, ou seja, a raiz da questão social, na medida em que estes sujeitos destituídos dos seus direitos mais básicos e elementares não se encontram fora desta sociabilidade. Ao contrário, suas condições de vida e trabalho são produto e decorrência da forma de organização capitalista, do processo de reprodução e acumulação do capital, particularizado em cada contexto sócio-histórico e geográfico. 52 análise para além da somatória e descrição de tudo o que há no interior da cidade ou da metrópole e, com isso, dificilmente ultrapassa o plano da materialidade aparente. Crítica da mesma natureza, em outros termos, foi tecida por Harvey (2005) ao elucidar que a abordagem marxista é muito diferente do característico referente à análise econômica burguesa do fenômeno da localização, pois enquanto a primeira abordagem parte da dinâmica da acumulação e entende a paisagem criada pelo capitalismo como lugar de contradição e tensão, na análise burguesa, a dinâmica aparece como uma reflexão tardia e a paisagem criada pelo capitalismo é entendida como expressão de um equilíbrio harmonioso. No que diz respeito à questão da reflexão urbanística e das diversas tendências teóricas e analíticas existentes, Lefebvre (2001) reforça o pensamento de Volochko (2008) e Harvey (2005) ao distinguir três tendências gerais dentre aquelas que se ocupam com o urbanismo. A primeira tendência - o urbanismo dos homens de boa vontade (arquitetos, escritores), na melhor das hipóteses, resulta ou no formalismo da adoção de modelos que não têm nem conteúdo nem sentido ou no esteticismo da adoção de modelos antigos pela sua beleza. Na segunda tendência – o urbanismo dos administradores ligados ao setor público estatal – projeta-se o primado da técnica sobreposto às necessidades sociais da cidade. Uma terceira tendência é aquela do urbanismo dos promotores de venda, cuja prioridade volta-se para o mercado, visando o lucro. De acordo com Ester Limonad (2004), os estudos urbanos têm feito referência à presença no território nacional do que tem sido denominado, em distintas elaborações de:  Extensão e expansão das malhas urbanas das grandes cidades, conformando cidades-regiões;  Urbanização dispersa, em diversos pontos no território, conformando uma rede urbana como se fora um tecido esgarçado (LEFEBVRE, 2001);  Urbanização extensiva, como forma de caracterizar a espacialidade do fenômeno;  E, ainda, a intensificação de uma suburbanização, ideia que procura explicitar, primeiro, o caráter periférico dessa urbanização em relação às diversas aglomerações existentes e, em segundo, o caráter carente dessa urbanização que, 53 muitas vezes, não é acompanhada por uma expansão das redes de infraestrutura e serviços, o que acaba por lhe conferir certa precariedade. Na atualidade, aguçam-se também outras contradições, uma vez que diversas pesquisas vêm indicando a existência, em média, de 40% a 50% da população das grandes metrópoles, vivendo na informalidade urbana, sendo 15% a 20% desta população moradora de favelas, cortiços e loteamentos clandestinos (FERREIRA, 2005). Vale ressaltar, todavia, no sentido de avançarmos para além da visão metropolitana da questão urbana, que desde os anos 1980, as cidades médias do interior têm crescido significativamente, em função do modelo primário-exportador do país11, generalizando desse modo a questão urbana para todo o território. Embora com características próprias, a informalidade urbana sem dúvidas está também presente nas cidades médias brasileiras. O conceito de informalidade urbana procura dar conta da realidade de inadequação físico-construtiva e ambiental das condições de habitação em que vive a classe trabalhadora brasileira. Trata-se, em síntese, de uma realidade na qual predominam construções precárias, terrenos em áreas de risco ou de preservação ambiental e habitações com área útil insuficiente para a quantidade de moradores, dentre outras características. Mas, além disso, também estão abarcadas no conceito de informalidade urbana as moradias localizadas em espaços onde prevalece, muitas vezes, a ausência de equipamentos e serviços fundamentais de infraestrutura urbana, a exemplo de saneamento, água tratada, luz e acessibilidade. Isto sem mencionar a própria ilegalidade da posse da terra ou a ausência do contrato de uso. Na raiz da informalidade urbana, inegavelmente encontra-se a questão da terra, pois no campo ou na cidade, a propriedade da terra no Brasil costuma constituir um nó (MARICATO, 2011) nas relações sociais, alimentando a profunda desigualdade e a tradicional relação entre propriedade, poder político e poder econômico. A tendência não poderia ser outra, considerando o incremento do agronegócio, baseado no latifúndio, responsável por intensificar a expulsão de camponeses do meio rural em uma verdadeira “marcha para as cidades”, com 11 Conferir os resultados da pesquisa “Cidades Médias: agentes econômicos e reestruturação urbana e regional”, desenvolvida por diversas instituições universitárias, reunindo investigadores do Brasil, do Chile e da Argentina. Em parte, os resultados da referida pesquisa estão publicados em Sposito; Elias e Soares (2010). 54 efeitos indeléveis sobre a dinâmica urbana, nas pequenas, médias e grandes cidades. Nestas, centenas de trabalhadores passam a se amontoar em favelas sem água, esgotos, transporte, emprego, escolas e hospitais, dada a dificuldade de acesso à terra regular para habitação (uma das principais responsáveis pelo explosivo crescimento de favelas e de “loteamentos ilegais” nas periferias das cidades) e/ou a reduzidos investimentos públicos em moradia social. Tal fenômeno, todavia, nem de longe, constitui uma novidade na história da urbanização deste país, em que as chamadas “marchas para as cidades” vêm ainda sendo aceleradas pela construção de barragens hidrelétricas, geradoras também de significativa quantidade de pessoas despejadas de seus territórios de moradia. Acrescenta-se ainda o aprofundamento de características desiguais e intensamente combinadas do processo brasileiro de urbanização, que tornam inegável que as grandes intervenções urbanas promovidas pelo Poder Público foram, excetuando-se raros casos, destinadas exclusivamente à promoção de melhorias nos bairros das classes dominantes. Isto vem ocorrendo desde as primeiras ondas de crescimento das cidades até a atualidade. Em um quadro no qual o acirramento da exploração do trabalho e a expansão capitalista tomam feições extremante violentas sob a ótica do trabalho e da vida urbana – expressas nas condições de transporte, habitação, saúde, saneamento e outros componentes básicos e elementares para a reprodução da força de trabalho – a classe trabalhadora tem encontrado a “solução” para seu problema de moradia na autoconstrução de suas residências (KOWARICK, 1979). Isto é, a classe trabalhadora constrói, ela mesma, sua casa própria, nas horas de folga, com a ajuda gratuita de parentes, vizinhos e conterrâneos, ou por formas de cooperação como o mutirão, construção que frequentemente perdura por anos, quiçá gerações. A autoconstrução das casas, em muitos casos, percebida como única possibilidade de alojamento para os trabalhadores, resulta na maioria das vezes numa moradia desprovida de infraestrutura básica e rapidamente deteriorada, dada a qualidade da construção, dos materiais utilizados, sua localização em áreas alagáveis e/ou não saneadas. Prover esta necessidade fundamental exige das famílias um esforço intenso e praticamente permanente de restauração, reformas e/ou ampliações, que pode durar o tempo de vida de um trabalhador ou de várias gerações de trabalhadores da mesma família; de trabalhadores cujos rendimentos salariais são insuficientes e/ou irregulares para, inclusive, assegurar o pagamento de 55 aluguel de habitações, ainda que deterioradas ou mesmo para serem beneficiários de programas governamentais de Habitação. No processo de produção da sua própria moradia, outra alternativa que tem restado à classe trabalhadora tem sido a construção de barracos em favelas. Esta aparece como a solução de sobrevivência mais econômica, mas também a mais drástica, para onde são drenados os segmentos mais pobres da classe trabalhadora muitas vezes única alternativa para aqueles que querem permanecer na cidade. Como aponta KOWARICK (1979): Tradicionalmente a favela apresenta-se como fórmula de sobrevivência para a população pobre em pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, por significar uma economia nos gastos de habitação que representam pouco menos da quarta parte do orçamento de uma família típica da classe trabalhadora. Em segundo lugar, na medida em que as favelas tendiam a se localizar próximas aos centros de emprego, levariam a uma redução nos dispêndios com transportes [...] como meio de deslocamento entre a moradia e o trabalho (p. 87). Na concepção do autor, a questão habitacional para ser equacionada, depende do preço da terra urbana, das características do setor imobiliário-construtor e do papel do Estado, mas não somente. Ora, na condição de um dos elementos básicos da reprodução da força de trabalho, a questão habitacional também decorre do conjunto da composição social do capitalismo e do modo como se organiza o processo de trabalho nesta sociabilidade, processos que estão na raiz do acirramento das contradições urbanas. Assim, a questão da habitação e da moradia explicita-se somente ao considerarmos dois processos interligados: o primeiro refere-se às condições de pauperização absoluta ou relativa, decorrentes da exploração do trabalho, a que estão sujeitos os diversos segmentos da classe trabalhadora e, o segundo, denominado por Kowarick espoliação urbana ou, mais precisamente, o “[...] somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários [...]” (1979, p. 59). Embora esta compreensão corresponda à base de nosso entendimento sobre a questão urbana, este não é uma concepção unívoca acerca das desigualdades existentes nos espaços produzidos e, menos ainda, no que se refere à dinâmica de segregação sócio-espacial urbana. Para as correntes teóricas de viés liberal, por exemplo, a cidade nada mais seria que o reflexo da lógica da “mão invisível”, que tal 56 qual estaria presente para autorregular o mercado, também é invocada pelos teóricos liberais (dentro do urbanismo, leia-se: Escola de Chicago) para explicar a produção do espaço urbano. Sob essa perspectiva de análise, as cidades teriam a capacidade de crescer e de organizarem-se espontaneamente sob o pilar da lei da oferta e da demanda, equilibrando-se naturalmente. Desse modo, a explicação admitida para a produção da diferenciação espacial e do valor fundiário urbano reside no fato de que, “naturalmente”, os mais privilegiados encontrariam seus espaços na cidade, do mesmo modo que os mais pobres acabariam encontrando o seu. Ora, na atualidade, as contradições fundamentais seguem opondo o capital ao trabalho; por conseguinte, as mesmas contradições constitutivas da sociabilidade capitalista que produzem a questão social são intrínsecas à questão urbana. 2.3 O direito à cidade: projetos em disputa no espaço urbano A configuração do espaço urbano brasileiro, notadamente marcado por expressivas desigualdades sócio-espaciais, foi (e ainda o é) caudatário da luta por inscrever na legislação brasileira instrumentos de viabilização do direito à cidade. O processo constituinte de 1988 refletiu este interesse, ainda que naquele momento o tema da questão urbana não tivesse adquirido ainda status de relevância suficiente para aglutinar a mobilização necessária de todos os setores presentes no interior das forças progressistas (SILVA, 2002). Em que pese esta dificuldade restritiva das possibilidades de evidenciar o debate da questão urbana na cena pública, durante a Constituinte: [...] 130.000 eleitores subscrevem a Emenda Constitucional de Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, e com isso conseguiram inserir na Constituição os artigos 182 e 183, que estabeleciam alguns instrumentos para o controle público da produção do espaço urbano e introduziam o princípio da chamada ‘função social da propriedade urbana’ [...] Porém, a regulamentação desses artigos só viria a ocorrer 11 anos depois, com a aprovação definitiva do capítulo da reforma urbana da nossa constituição, em uma tramitação que contou com a pressão constante do Fórum Nacional de Reforma Urbana, e que culminou com a aprovação da Lei 10. 257, o Estatuto da Cidade, em julho de 2001 (FERREIRA, 2005, p. 16). Embora a Emenda Popular de Reforma Urbana, em sua totalidade, não tenha sido incorporada à Constituição, dada a correlação de forças estabelecida no 57 processo constituinte, não podemos negar a importância histórica do fato de pela primeira vez se constar na Constituição brasileira um capítulo específico sobre a Política Urbana. Do mesmo modo, o Estatuto da Cidade – projeto de lei cujo principal objetivo é regulamentar o capítulo de Política Urbana contido na Constituição – constitui um instrumento significativo para o desenrolar das lutas urbanas, por indicar que as cidades cumpram sua função social e promovam o bem- estar de seus habitantes. Todavia, no Brasil contemporâneo, a questão urbana se entrelaça e necessariamente se relaciona com a tendência histórica que vem se apresentado desde os anos 1990, quando o Brasil adentrou num período marcado por uma nova ofensiva burguesa, em resposta à crise do capital iniciada nos anos 1970. As transformações políticas e econômicas, em curso neste contexto direcionaram o Estado brasileiro a uma refuncionalização sintonizada com o contexto de um novo quadro do capitalismo mundial, provocando a hegemonia do projeto neoliberal12 no país, expresso, sobretudo na desresponsabilização do Estado, na desregulamentação do mercado de trabalho e no retrocesso no campo dos direitos e das políticas sociais, exaltando o individualismo e a liberdade econômica. Nesse processo, o projeto neoliberal se expande no Brasil, fortemente, ainda, ao impor orientações para uma contrarreforma do Estado13, dada a sua direção numa perspectiva antipopular e de adaptação passiva à lógica do capital, possibilitada no país por diversos fatores e elementos da realidade concreta. Este cenário tem sido determinante para o uso espacial do território urbano, na medida em que acirra as expressões da questão social e limita avanços em relação ao direito à cidade. Isto não somente por incidir no modo de organização das cidades, mas também porque, em total coerência com os postulados neoliberais para a área social, a própria condição da política pública pensada para as cidades, neste contexto, e da legislação que a instrumentaliza é uma ilustração particular da contrarreforma do Estado brasileiro. 12 Para um estudo acerca das origens do neoliberalismo, do processo e dos mecanismos mobilizados para a construção da sua hegemonia, indicamos a leitura de Sader e Gentili (1995) e Harvey (2008). 13 Em Behring (2003) encontramos algumas determinações relevantes e transformações de longo prazo que permitem caracterizar quais razões socioeconômicas e políticas estão na base do processo de contrarreforma do Estado - tais como as mudanças no mundo da produção e a mundialização do capital - e como se deu o processo de implementação da contrarreforma, entendo-a como estratégia fundamental do ajuste neoliberal. A argumentação desenvolvida nesta obra caracteriza bem os processos em curso no âmbito do Estado brasileiro. 58 Apesar do reconhecido avanço que representou a inscrição da Política Urbana na Constituição Federal de 1988, os desdobramentos que se seguiram no plano econômico e político obstacularizaram a sua real efetivação, explicitando assim uma verdadeira tensão entre o marco legal e a decorrente abertura de um campo importante para a luta política em prol do direito à cidade e as condições postas à política pública pelo ideário neoliberal. Condições estas nas quais o que vem prevalecendo é a restrição e redução de direitos, com base no trinômio estruturante da ofensiva neoliberal: a privatização, a focalização/seletividade e a descentralização, face o processo de desresponsabilização do Estado para com a área social (BEHRING; BOSCHETTI, 2006). No caso das políticas urbanas, é ilustrativo da lógica de privilégio do capital e do mercado o expressivo poder dos empreendedores e/ou das empreiteiras como orientadoras dos investimentos públicos urbanos. A visibilidade das obras consiste em um critério extremamente forte para as decisões sobre investimentos públicos (ou privados) nas cidades brasileiras. Ainda mais no que diz respeito às metrópoles. Dimensão esta sintomática também do quanto prevalece a lógica do uso dos fundos públicos como subsídio para a produção de novas localizações que possam contribuir e atender à finalidade de expansão do mercado imobiliário e de expansão do capital. Para Maricato (2011) outros fatores interferem na dinâmica de investimento público nas cidades brasileiras: O capital imobiliário mantém profissionais para o acompanhamento do orçamento público e da legislação urbanística já que eles incidem nos preços das localizações e, portanto, na valorização ou desvalorização de terrenos. Mas as empresas de construção pesada também exercem forte influência nas decisões sobre as obras de infraestrutura urbana. A relação entre empreiteiras de construção, a visibilidade de grandes obras viárias (cujo prazo deve manter uma lógica em relação aos prazos eleitorais) e as doações para o financiamento de campanhas eleitorais parece ser uma chave que explica muito do investimento público nas cidades (p. 81). Este representa, para a autora, um dos impasses14 postos à política urbana face às questões conjunturais e estruturais do capitalismo brasileiro, impactando fortemente no campo e na cidade, muito embora não se restrinja a este aspecto. 14 Ponderamos, entretanto, que tratar a dinâmica do investimento público nas cidades brasileiras como um impasse pode soar falsamente, dando a impressão de que resolver esta questão bastaria para a ruptura com as desigualdades sócio-espaciais. Ledo engano. Lembremos que o caráter eminentemente desigual da vida nas cidades está inscrito no ordenamento capitalista e naturalizado em sua lógica. 59 Para além do poder das empreiteiras como orientadoras e definidoras dos investimentos públicos nas cidades, vale atentar para a tendência em curso no âmbito do Estado brasileiro no tocante à própria condição da política pública pensada para as cidades. Com efeito, como tem discutido Raquel Rolnik (2002), é inegável a relação entre a estrutura profundamente excludente da cidade brasileira e a política urbana a ela, vinculada; Aliás, alerta a urbanista, parte importante do funcionamento das cidades é a própria política urbana que, no Brasil – não destoante da tendência geral – foi intensamente responsável pelos processos de exclusão e pela perpetuação de privilégios e desigualdades. Em 2003, com a criação do Ministério das Cidades, por ocasião do primeiro mandato do presidente Lula, havia uma expectativa por parte de muitos movimentos sociais progressistas, lideranças sociais e profissionais de diversas áreas e origens, de efetivação de um órgão de caráter estatal que retomasse para a agenda política nacional a social e institucionalmente ignorada questão urbana. Naquela conjuntura até mesmo as políticas setoriais de habitação, saneamento e transporte haviam sido abandonadas ou minimizadas. A expectativa era maior pelo fato da primeira equipe chamada à frente do Ministério das Cidades representar uma convergência de militantes sindicalistas, profissionais e acadêmicos com participação anterior em experiências de administração pública e atuação prestigiada no meio técnico e acadêmico, além de forte inserção nos movimentos sociais urbanos. Mais tarde, porém, o Ministério das Cidades teve sua composição sacrificada em nome da ampliação do apoio ao governo no Congresso Nacional (MARICATO, 2011). Para Ermínia Maricato, urbanista e responsável pela formulação da proposta de criação do Ministério das Cidades, embora caiba reconhecer que o governo Lula retomou investimentos em habitação e saneamento após, aproximadamente, 25 (vinte e cinco) anos de descaminhos da administração federal em relação a essas áreas, a questão urbana ou metropolitana não está entre os avanços do governo Lula, inclusive porque a questão da terra, verdadeiro nó social no Brasil, não foi tocada, nem no campo nem na cidade. 60 Na realidade, seguindo seu caráter ambíguo, “[...] o Governo Lula respondeu, de certo modo, com o FNHIS15 para os movimentos sociais e com o PMCMV16 para os empresários [...]” (MARICATO, 2011, p.56). Uma avaliação geral do Programa Minha Casa Minha Vida tecida por Maricato (Op. Cit) indica: um impacto negativo sobre as cidades devido à localização inadequada de grandes conjuntos habitacionais e ao aumento do preço da terra e dos imóveis; a maior parte da localização das novas moradias é definida por agentes do mercado imobiliário, sem obedecer a uma orientação pública e sim à lógica do mercado. Além disso, ao atender as demandas dos empresários do setor, incluindo as faixas de renda entre 07 (sete) e 10 (dez) salários mínimos, o PMCMV pode repetir aspectos negativos de programas habitacionais antigos, privilegiando a classe média em detrimento das rendas mais baixas. É provável (hipótese que se baseia na observação empírica da autora) que a localização das moradias não se dê nas regiões que concentram o déficit habitacional do país; o PMCMV , enfim, retoma a política habitacional com interesse apenas na quantidade de moradias, e não na sua fundamental condição urbana. Face às contradições explicitadas na realidade, importa ressaltar que, enquanto ator político, a cidade – longe de ser um ator unificado em consensos – é, na verdade, território plural de luta entre diferentes sujeitos e projetos políticos, espaço de disputas e tensionamentos, expressão do defronto entre classes sociais, ponto de partida para a articulação de diversos movimentos urbanos reivindicando melhores condições de vida nas cidades. A realidade urbana brasileira é, assim, permeada por complexas contradições, conflitos, lutas, em que estão presentes diferentes sujeitos que se mobilizam e agem na defesa de propostas para enfrentar uma série de problemas vivenciados no cotidiano da vida social. Nessa perspectiva, os movimentos sociais constituem-se importantes vias de ação político-coletiva que se organizam para reivindicar determinados interesses. Nos anos 1960, em um contexto marcado por grandes lutas, estes se tornam objeto de estudo acadêmico, nas mais diversas abordagens teórico-metodológicas. 15 Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. Sendo gerido por um conselho que tem a participação de representantes da sociedade, maneja recursos bem menos significativos que o PMCMV. 16 Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, desenhado por uma parceria entre o governo federal e as 11 (onze) maiores empresas construtoras de moradia. 61 Isto indica, a nosso ver, que a realidade define, em grande medida, a agenda de pesquisa da universidade, mas segue as escolhas políticas e teórico-metodológicas dos sujeitos pesquisadores. Chamamos especial atenção para as teorizações de maior influência na produção teórica brasileira acerca dos movimentos atuais, também designados “novos” movimentos sociais, a exemplo do paradigma europeu, com destaque para três principais vertentes: a abordagem culturalista-acionalista, o pensamento pós- moderno e o paradigma marxista. A teoria culturalista-acionalista tem por horizonte a construção de um modelo teórico baseado na cultura. Daí, a ênfase dispensada por este paradigma às dimensões de cultura, identidade e solidariedade entre as pessoas de determinado movimento social. Segundo esta perspectiva, os movimentos contemporâneos apresentam interesses difusos e não classistas. Por isso mesmo, há um redirecionamento do eixo central das demandas postas na esfera pública, as quais são deslocadas do campo da economia para o campo da cultura. Nesta abordagem, a ênfase está no papel dos indivíduos e não da classe social e, na mesma lógica, os movimentos são vistos muito mais como agentes de pressão do que de transformação societária (Cf. TOURAINE, 1989; EVERS, 1984). Trata-se, portanto, de uma teoria que procura explicar a ação coletiva em uma perspectiva subjetivista dos fenômenos. No campo teórico e prático, ampliam-se ainda as interferências do pensamento pós-moderno e neoconservador, a exemplo do que ocorre com a perspectiva acionalista. Aqui também, os “novos movimentos sociais” são analisados como distantes e apartados da contradição capital-trabalho. Tal vertente pós- moderna não apenas afirma a perda da centralidade dos conflitos de classe no processo de organização e de ação política dos movimentos sociais, como assegura mesmo a inexistência de tais conflitos na contemporaneidade (LACLAU e MOUFFE, 1988). Dentre os elementos que constituem a base de sustentação da leitura pós- moderna dos movimentos sociais destacamos a descrença em qualquer perspectiva de contraponto aos interesses do capital e de emancipação do trabalho, em uma total negação das bases teóricas clássicas do marxismo. Boaventura de Sousa Santos (1999; 2005), expoente da intelectualidade pós- moderna, talvez seja a melhor tradução que poderíamos encontrar neste momento 62 para ilustrar o descrédito tão amplamente difundido quanto às possibilidades de transformação societária radical. Na expressão deste autor: [...] a primazia explicativa das classes é muito mais defensável que a primazia transformadora. Quanto a esta última, a prova histórica parece ser por demais concludente quanto à sua indefensabilidade. Dando de barato que é fácil definir e delimitar a classe operária, é muito duvidoso que ela tenha interesse no tipo de transformação socialista que lhe foi atribuído pelo marxismo e, mesmo admitindo que tenha esse interesse, é ainda mais duvidoso que ela tenha capacidade para o concretizar. Essa indicação que parece hoje indiscutível tem levado muitos a concluir pela impossibilidade ou pela indesejabilidade de uma alternativa socialista (SANTOS, 1999, p. 41). Afirmamos peremptoriamente: o fim de qualquer possibilidade de construção de alternativas a esta sociabilidade está longe de constituir indicação indiscutível, dado o caráter histórico e criador da práxis humana. Reproduzir o discurso generalizado de impossibilidade de transformação societária significa contribuir para a produção de uma cultura de passividades e conformismos, diretamente incidente no cotidiano da classe trabalhadora, resultando em um evidente reforço da alienação, em detrimento de projetos de natureza coletiva. Atualmente, defrontamo-nos, portanto, com duas grandes tendências teóricas que vêm incitando a batalha das ideias: uma vinculada ao conservadorismo - inspirada nas tendências pós-modernas – a compreender a realidade social como um campo de fragmentos e os movimentos contemporâneos como espaços de interesses difusos e não classistas; outra, vinculada à tradição marxista, a entender a realidade a partir de uma perspectiva histórico-ontológica, buscando abranger as determinações objetivas e subjetivas dos processos sociais17. Nesse sentido, ainda que tal abordagem questione e nivele os referenciais marxista e positivista, não temos nenhuma dúvida de que o principal embate empreendido mesmo é contra a teoria social de Marx, cuja novidade na literatura contemporânea é a introdução dos recortes de gênero, etnia e geração, sem abandonar a perspectiva de classe. Afinal, sob a ótica do marxismo, as novas manifestações e expressões das lutas sociais na cena política contemporânea não representam absolutamente qualquer negação da contradição capital-trabalho como 17 Afirmamos tratarem-se de duas grandes tendências teóricas porque, especialmente, no que se refere ao debate acerca dos movimentos sociais no Brasil, concordamos com a análise de Duriguetto e Montaño (2010), segundo a qual as vertentes acionalista e pós-moderna parecem hoje estar fundidas num verdadeiro “rearranjo culturalista”. 63 sendo fundante desta lógica societária, mas, ao contrário, reafirmam tal contradição (LOJKINE, 1981) e confirmam a centralidade da luta de classes. Consideramos de suma importância a análise das linhas gerais que fundamentam o universo teórico e político das diferentes abordagens explicativas adotadas nos estudos dos movimentos sociais18. Todavia, dado os limites do presente trabalho, privilegiamos a abordagem marxista por a tomarmos como referência para a compreensão desta sociedade. Esta abordagem, cuja matriz situa-se no conflito capital-trabalho, privilegia o processo de luta histórica das classes subalternas. Isto não significa limitar-se à análise do movimento operário, relegando a um segundo plano outros movimentos políticos; tampouco implica em trabalhar com determinações exclusivamente econômicas, pois a opressão-dominação capitalista perpassa as mais diversas dimensões da existência social. O grande diferencial do paradigma marxista na análise dos movimentos sociais consiste em possibilitar apreender, para além dos aspectos imediatos, a essência dos fenômenos e a contraditória relação entre essência e aparência. Nesta teoria, há também a preocupação frequente em subsidiar a ação política destes movimentos e, assim, contribuir para a práxis revolucionária. Resulta daí o fato de tal paradigma ter provocado e impulsionado, ao longo da história, não somente o desenvolvimento de um amplo universo teórico e analítico em torno do processo revolucionário e das estratégias de transição socialista, como também suscitado e fundamentado a construção de diversos instrumentos político-organizativos da classe trabalhadora. Fundamentalmente, como destaca Gohn “[...] as teorias marxistas sobre os movimentos sociais não abandonaram a problemática das classes sociais. Ela [a problemática das classes] é utilizada para refletir sobre a origem dos participantes, 18 Para um estudo comparativo entre estas teorias, pondo em evidência diferenças e semelhanças, a fim de explicitar os termos do debate estabelecido entre as principais abordagens, indicamos a leitura de Touraine (1989) e Evers (1984) como expoentes da teoria acionalista; Laclau e Mouffe (1988) e Santos (1999; 2005) como um dos representantes da abordagem pós-moderna; Manuel Castells (1974) e Jean Lojkine (1981) como autores que figuram dentre os primeiros estudiosos a empreender esforço teórico na análise dos movimentos sociais atuais, em uma perspectiva marxista. Uma sistematização acerca do conjunto destas teorias pode ser encontrada nas obras de Gohn (2007) e Scheren-Warren (1987). Entretanto, contrariamente à análise de Gonh (Op. Cit), consideramos que o nominado “Paradigma dos Novos Movimentos Sociais” (NMS) não pode ser reputado como exclusivamente pós-moderno ou acionalista. Na verdade, há autores marxistas, a exemplo de Lefebvre (1968) e Birh (1998), que também utilizam a mesma denominação - NMS - para se referir a alguns movimentos sociais, sem necessariamente despi-los do caráter classista. Contudo, reconhecemos que, a partir dos anos 1990, há crescente influência pós-moderna na concepção dos “novos” movimentos sociais. 64 os interesses do movimento, assim como o programa ideológico que fundamenta suas ações” (2007, p. 173). No caso dos movimentos sociais urbanos, a tese de que estes movimentos são incapazes de ultrapassar o imediato das reivindicações urbanas tem sido sustentada por autores como Antônio Ivo de Carvalho (1978), devido especialmente dois aspectos: o caráter policlassista destes movimentos e o fato de se desenvolverem “a margem da produção”. Isto porque, na sua concepção, as contradições urbanas são de caráter conjuntural e, portanto, solúveis nos marcos do sistema capitalista. Com efeito, somente ao compreendermos a categoria classe social, um dos temas fundantes e polêmicos da teoria de Marx, é que se torna possível aprofundarmos nossa compreensão acerca do papel dos(as) movimentos urbanos organizados, no interior da luta de classes. Iasi (2007a) chama atenção para o fato de que diferentes determinações particulares constituem a definição de classe, para além da posição no interior das relações sociais de produção, apesar deste aspecto ter praticamente se generalizado como se fosse o único conceito para classe social. A análise do conjunto da obra de Marx aponta que a definição de classe envolve: a posição diante da propriedade ou não propriedade dos meios de produção; a consciência que se associa ou distancia de uma posição de classe e a ação dessa classe nas lutas concretas no interior de uma formação social. Ilustrativo dessa afirmação é que: Quando pegamos um estudo concreto como o 18 brumário, por exemplo, Marx chega a definir os diferentes grupos atuantes naquela intrigante conjuntura muito mais decisivamente pela ação que desempenham e pelas concepções de mundo que representam, do que mesmo pela sua posição no interior das relações sociais ou diante da propriedade. Não que essa dimensão tenha deixado de atuar, mas que, limitando-se a essa determinação, seria impossível desvendar a trama dos acontecimentos. Isso significa dizer que para Marx a forma com que as classes atuam no campo concreto da história, a consciência que representam em cada momento, são fatores determinadores de seu caráter (IASI, 2007b, p. 108). Nessa perspectiva, apenas a posição dos(as) sujeitos no interior das relações sociais é insuficiente para definirmos a classe a que estão vinculados. Para além disso, devemos considerar especialmente como se conforma e se posiciona a sua fração organizada, no caso os movimentos urbanos e organizações populares. 65 Independente da sua base social de composição, as posições político- ideológicas que o movimento assume, as lutas encampadas e as alianças que constrói, necessariamente, acumulam forças para determinada classe, seja a classe trabalhadora ou a classe dominante, fazendo com que o movimento urbano se posicione, também, no seio da luta de classes. Até porque nada mais falso do que afirmar estarem estes movimentos a margem da produção e da lógica própria à sociabilidade capitalista. Não podemos, todavia, perder de vista que as condições objetivas das cidades brasileiras, expressão do modelo de desenvolvimento urbano em curso, demandam intensos processos de luta por direitos sociais, com ênfase no direito à cidade, tendo como horizonte aquilo que Kowarick (1979) denominou de a conquista do espaço. Processo este condicionado pela capacidade de luta e organização dos diversos movimentos, pela capacidade destes se desatrelarem das esferas dominantes e conseguirem um mais sólido enraizamento nas bases. A conquista de espaço supõe debate e confronto, organização e reivindicação coletiva, que constituem a matéria-prima da qual se deverá construir um povir efetivamente democrático e sem relativismos. A construção de um projeto democrático implica uma prática política que aposte na capacidade das classes ainda subalternizadas em modelar seu destino histórico e que abra caminhos, necessariamente conflituosos, debastados por processos de participação e reivindicação vigorosos e autônomos em relação aos centros de Poder (KOWARICK, 1979, p. 202). Resta-nos saber por meio de que mecanismos e transitando sob qual solo histórico tem se materializado as lutas urbanas na capital potiguar. Como as determinações sócio-conjunturais dos anos 2000 inflexionam e caracterizam a organização política dos movimentos sociais urbanos (MSU) em Natal? Que tipo de problemas urbanos tem levado a população dos bairros populares de Natal a se organizar? E, do mesmo modo, como essa população manifesta a sua contraposição em relação aos mesmos? 66 Capítulo 2 Ação política dos movimentos urbanos em Natal: a que será que se destina? 67 3 AÇÃO POLÍTICA DOS MOVIMENTOS URBANOS EM NATAL: A QUE SERÁ QUE SE DESTINA? Neste capítulo discutimos a organização política sob o signo da divisão da sociedade em classes antagônicas. Em seguida, contextualizamos a cidade de Natal, destacando o cenário sócio-político que instiga e confere sentido à organização popular local. Ainda no intuito de desvendar elementos importantes para a análise da atuação dos movimentos sociais urbanos em seus processos de organização e luta, caracterizamos o perfil dos(as) dirigentes, sujeitos da pesquisa e, em seguida, apresentamos e discutimos as principais lutas e frentes de atuação dos movimentos locais, identificadas em nossa pesquisa de campo. Com isso pretendemos desvendar aspectos fundamentais que direcionam e sinalizam horizontes e perspectivas para a luta pelo direito à cidade em Natal. 3.1. Organização política nos marcos da luta de classes Embora as questões políticas tenham sido quase sempre enfocadas num prisma que privilegia a dimensão institucional há, na realidade, uma multiplicidade de facetas atribuídas à Política. Nessa perspectiva, longe de definições imprecisas, reiteramos nossa compreensão de política para além da esfera institucional, postura que atribui profundo sentido politico às relações sociais que estabelecemos. Entendemos que somente o ser social possui a capacidade de agir politicamente. Este é compreendido, de acordo com Netto e Braz (2007), como único ser que se particulariza porque é capaz de: realizar atividades teleologicamente orientadas; objetivar-se material e idealmente; comunicar-se e expressar-se pela linguagem articulada; tratar suas atividades e a si mesmo de modo reflexivo e consciente; escolher entre alternativas concretas; universalizar-se e sociabilizar-se. Ademais, as determinações históricas que singularizam o ser social são resultado não apenas da escolha motivada pelo intento e/ou pela necessidade do sujeito, mas condicionadas pela causalidade, parte concreta da totalidade histórica. A causalidade se impõe ao desejo do ser, ainda que este possa tensioná-la na perspectiva de enfrentá-la. Na relação dialética entre o ser social e a história, o sujeito dota-se da inteligibilidade de captação do real, isto é, desenvolve a consciência, ainda que na 68 sua forma mais imediata. O nível de complexidade atingido nesse processo é determinado pelo conjunto das necessidades do ser social e pelo modo através do qual engendra as condições de sua superação. Não por acaso, nas formulações de Marx e Engels, a compreensão teórica do movimento histórico reivindica que, até hoje, a história da humanidade é a história da luta de classes. A constituição das classes sociais, medular e historicamente, está implicada na forma com a qual os sujeitos organizam-se, para e pelo trabalho, e garantem a (re)produção social de uma determinada sociedade. Na sociabilidade capitalista, a condição social sob a qual o trabalho é realizado traz em si o germe da estrutura de classes. Portanto, a contradição central que particulariza essa sociabilidade está referenciada nas necessidades de classes antagônicas, isto é, trabalhadores e capitalistas. Esse antagonismo, estabelecido em condições históricas determinadas, se manifesta e se traduz em relações sociais, ainda que apareça como produção e reprodução de coisas. Nessa direção, a análise marxiana, na medida em que desvela o processo de produção do capital, evidencia a dinâmica da questão social como estando determinada pela lei geral da acumulação capitalista e pelo caráter da exploração característica da relação capital x trabalho, numa sociabilidade que potencializa significativamente tais antagonismos e desigualdades. Em que pese a generalização acentuada e a dinâmica radicalmente nova da pobreza que então se espraiava pela Europa Ocidental, a partir do século XVIII, a alcunha desse pauperismo pela expressão ‘questão social’ diz respeito certamente às manifestações sócio-políticas nas quais desembocou, por meio das lutas desencadeadas em prol dos direitos concernentes ao trabalho (NETTO, 2004; IAMAMOTO, 2004), ou seja, a questão social conforma-se e constitui-se mediada pela relação capital x trabalho e, indissociavelmente, pela dimensão política da luta de classes: As múltiplas expressões da “questão social” tornam-se um problema a ser enfrentado pelas classes dominantes quando sua antípoda, a classe trabalhadora, organiza-se em torno de sujeitos coletivos que dão voz, expressão e ação aos interesses proletários, demandando e exigindo reformas no sistema capitalista, ganhos econômicos parciais, plenos direitos de cidadania e, num sentido mais radical, a supressão do capitalismo por uma nova ordem social, o socialismo (CASTELO, 2006, p. 17). 69 Na lógica societal inerente à sociedade capitalista, a realização do trabalho e as relações sociais por ele suscitadas, se materializam no real e idealmente de forma alienante. Ao não se reconhecerem como sujeitos de seu trabalho e estabelecerem uma relação de estranhamento para com o conteúdo de sua ação, os próprios indivíduos são coisificados e a alienação19 se faz presente nas mais diversas dimensões da existência social. Dentre os principais aspectos por meio dos quais a alienação da humanidade se manifesta estão: a alienação dos seres humanos em relação à natureza; à sua própria atividade produtiva; à sua espécie, como espécie humana; e também de uns em relação aos outros (MÉSZAROS, 2006). Daí, a categoria alienação ser hoje indispensável para a compreensão crítica da realidade, em suas multifacetadas questões e impasses da atualidade, tendo em vista sua intensa presença no âmbito das relações socialmente estabelecidas. Ao se tornar um ser alienado, o ser humano, afasta-se da realidade a qual deveria conhecer para intervir e, com isso, se camufla seu papel de construtor da história. Por isso, os processos de alienação são vitais para a dominação dos indivíduos pelo capital. No entanto, isso não quer dizer total ausência de mediações e possibilidades emancipatórias que proporcionem condições para os indivíduos superarem a alienação. A organização política numa perspectiva crítica e totalizante destaca-se como uma das dimensões da existência social capaz de desmistificar as formas reificadas de ser e de pensar20, inclusive porque a própria condição de exploração suscita as possibilidades de rebeldia. Em uma perspectiva de classe, a práxis política tem o papel essencial de fazer a crítica consistente aos pilares valorativos de sustentação do capital e de 19 “Com o nascimento da propriedade privada, o produto do trabalho se separa do trabalho, se converte em objeto alheio, em propriedade de outro; o objeto e o resultado da atividade se aliena do sujeito ativo. Sobre essa base se produz o fenômeno geral da alienação, pelos quais as forças e os produtos sociais da atividade humana se subtraem do controle e da força dos indivíduos; transformam-se em forças a eles contrapostas” (MARKUS, 1974, p. 61). A alienação refere-se ainda ao fato dos indivíduos não reconhecerem a sua ação na realidade social e, do mesmo modo, não se reconhecerem como sujeitos históricos. Pelos mecanismos da alienação, a realidade – mesmo sendo fruto da intervenção humana – aparece para os indivíduos como algo estranho e hostil. Sobre a concepção marxiana de alienação indicamos consultar Marx: 1993; Mészáros: 2006; Netto: 1981 e Frederico: 1995. 20 Barroco acrescenta, além da política, algumas outras atividades que permitem uma ampliação da relação consciente do individuo com a genericidade, quais sejam: o trabalho, a arte, a ciência, a filosofia e a ética. Segundo a autora, “as atividades propiciadoras da conexão dos indivíduos com o gênero humano explicitam capacidades como: criatividade, escolha consciente, deliberação em face de conflitos entre motivações singulares e humano-genéricas, vinculação consciente com projetos que remetem ao humano-genérico, superação de preconceitos, participação cívica e política. Todas elas estão vinculadas com valores” (2007, p. 42). 70 subsunção do ser humano ao mercado, reafirmando valores e princípios construídos na direção da emancipação humana. Podemos afirmar, então, que a política proporciona uma revalorização do coletivo, ao potencializar o enfrentamento da ideologia dominante, realizando-se no campo contraditório da luta de classes. Dessa forma, a reflexão e a ação política constituem possibilidade de objetivação da dimensão humano-genérica do indivíduo. Não por acaso, a tradição marxista atribui significativa importância à ação coletiva da classe trabalhadora por meio dos diversos instrumentos político- organizativos. Em O Manifesto do Partido Comunista21, Marx e Engels destacam que, em uma sociedade marcada pela divisão de classes, são os interesses antagônicos que impulsionam a política, por meio do enfrentamento de forças entre as classes. Discorrem, ainda, sobre as diversas etapas do desenvolvimento do proletariado em sua luta contra a burguesia, bem como sobre o processo de construção da identidade coletiva, transitando da consciência em si à consciência para si. A política, portanto, não se realiza exclusivamente no Estado, mas no processo da luta de classes e, nesse ponto, Marx é categórico e elucida bem esta dimensão: Uma classe oprimida é a condição vital de toda sociedade fundada no antagonismo entre as classes [...] Entretanto, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é uma luta de uma classe contra outra, luta que, levada à sua expressão mais alta, é uma revolução total. Ademais, é de provocar espanto que uma sociedade, fundada na oposição de classes, conduza à contradição brutal, a um choque corpo-a-corpo como derradeira solução? Não se diga que o movimento social exclui o movimento político. Não há, jamais, movimento político que não seja, ao mesmo tempo, social (MARX, 2009a, p. 191-192). Importante ter sempre em mente que as elaborações de Marx são construídas tendo como aparato basilar o desvendamento dos mecanismos próprios da sociabilidade do capital. Assim, na abordagem marxista, a política é determinada pela formação econômica da sociedade e, estando presente nas mais diversas 21 “A síntese de seu pensamento e a visão mais precisa, do que foi e de qual deve ser o papel da classe trabalhadora na história da humanidade, apareceu em O Manifesto do Partido Comunista, elaborado, em Londres, em fins de novembro e começo de dezembro de 1847 [...]. A contribuição que o Manifesto deu naquele momento para a organização política da classe trabalhadora foi imensa, porque, em meio às revoluções burguesas, não havia clareza do que fazer, tampouco se sabia qual deveria ser o papel dos trabalhadores. Foi dessa forma que o texto passou a correr o mundo levando idéias que elevavam o conhecimento dos revolucionários e estabeleciam ligações profundas entre os trabalhadores” (BOGO, 2005, p. 72-73). 71 esferas da vida social, constitui lócus privilegiado para o exercício do potencial revolucionário da classe proletária, por meio dos diferentes instrumentos político- organizativos, no que se refere à elaboração de um projeto de emancipação humana. Nessa perspectiva, compreendemos os movimentos sociais como um dos sujeitos coletivos presentes na arena política, com forte potencial de mobilização e articulação da classe trabalhadora e, da mesma forma, entendemos que a historicidade e as tendências recentes quem vêm sendo processadas no campo das lutas sociais somente podem ser apreendidas nos marcos da análise da realidade concreta. Desse modo, analisar as relações entre Estado, classes e movimentos sociais no Brasil, desvelando suas particularidades, pressupõe considerar as mediações estabelecidas na sua formação econômica, política, social e cultural. Considerando a complexidade da formação de um país, seus múltiplos processos sociais não podem ser reduzidos à hegemonia de determinado modo de produção. Todavia, este é um elemento que de forma alguma pode ser menosprezado, por constitui determinante fundamental (BEHRING, 2003), base material das relações sociais que nos interessam apreender. Traços e tensões da formação social brasileira evidenciam as interfaces desta formação com o desenvolvimento e consolidação da dinâmica capitalista. Aliás, a literatura marxista neste campo analisa a história do país articulando movimentos internos com a lógica de subordinação ao mercado mundial. O caráter de construção histórica da organização política nos confronta à necessidade de estarmos atentos(as) para a importância da análise crítica concreta da atuação dos movimentos sociais em cada conjuntura para compreender os diferentes conteúdos e formas que assumem suas mobilizações e lutas. Isto implica em não atribuir aos movimentos sociais ações e táticas políticas únicas e imutáveis, independente do contexto histórico no qual estão situados (Cf. GUIMARÃES, 2011b), e, principalmente, com base em qual programa, ideologia e projeto está conformada sua organização e direção, elementos fundamentais para a compreensão de todo e qualquer movimento social. Assim, em uma perspectiva de totalidade importa circunscrever a ação dos sujeitos sociais nos marcos da formação social na qual se articula e se desenvolve. No caso em tela, compete-nos proceder à critica dos movimentos sociais em luta no contexto urbano no âmbito da sociedade brasileira. Por certo, a formação social 72 brasileira confere particularidades às relações entre Estado e classes sociais no país. Temos, assim, o entendimento de que não é possível falar de movimentos sociais e lutas urbanas sem fazer referência ao Estado, pois ambos se influenciam mutuamente e estão em constante relação - relação complexa e dialeticamente contraditória. Também julgamos absolutamente necessário evitar tratar os movimentos sociais linearmente e de forma parcial ou com estereótipos, por constituírem fenômenos históricos, cuja existência compreende diferentes aspectos e configurações. Percebemos, além disso, não ser redundante falarmos em um movimento dos movimentos sociais (DURIGUETTO; MONTAÑO, 2010), por se tratar antes de um fenômeno a ser pensado e analisado como um processo, que, por isso mesmo, contém em si uma dinâmica que articula passado, presente e futuro. Desse modo, não constitui um fenômeno fechado ou circunscrito a si mesmo, mas encontra-se em constante relação, fato decorrente não apenas de pressões externas, mas também da sua própria dinâmica interna. As concepções teóricas e conceituais sintetizadas até aqui demonstram uma multiplicidade de questões que caminham junto ao debate dos movimentos sociais e dificilmente poderão ser totalmente contempladas no presente trabalho – tampouco temos tal pretensão - no entanto, são também reveladoras da necessidade de voltarmos mais ainda nossa atenção para a configuração dessas lutas no território urbano natalense. Afinal, acreditamos que os movimentos sociais ainda são os principais protagonistas no encaminhamento das lutas que os reivindicam, porém, não podemos apreender sua ação política senão situando sob qual pano de fundo e cenário suas lutas se constroem, se articulam e se materializam. 3.2 A cidade de Natal como cenário de lutas e de disputas políticas Os movimentos sociais das classes subalternas são considerados aqui como sujeitos coletivos que, no cotidiano da sua organização, conferem densidade política à questão social. Assim, não nos parece possível tecer elaborações sobre estes sujeitos sem nos apropriarmos das necessidades e demandas sociais que buscam evidenciar na cena pública por meio de reivindicações dirigidas ao Estado e da disputa entre projetos societários. 73 Apreender a questão social, com ênfase na forma como ela se materializa no urbano, envolve, assim, um duplo movimento que consiste em, de um lado, captar os antagonismos e desigualdades presentes na realidade local – com ênfase na reprodução da pobreza e na forma como ela se constitui – com base na caracterização da cidade, tanto em seu aspecto sócio-histórico, como econômico e político e, de outro, evidenciar as lutas, dilemas e contradições dos movimentos sociais que se encontram organizados naquele espaço22. De tal modo, a análise do processo de constituição do urbano, na cidade de Natal, a partir de aspectos do seu crescimento demográfico e de sua estrutura econômica, enfatizando a condição da pobreza e da desigualdade social, nos possibilita uma melhor apreensão da organização política dos movimentos urbanos na realidade estudada, por significar, também, adentrar nos meandros da questão urbana, enquanto expressão da questão social, explicitando os mecanismos que a constituem e os sujeitos sociais e os interesses em disputa. Com esse horizonte, sem a pretensão de recuperar toda a formação política, social e econômica de Natal, sinalizamos a seguir alguns traços da sua formação e do modo como o poder público tem enfrentado a questão da pobreza, indispensáveis para compreender como tem se conformado a questão urbana e os movimentos sociais da cidade. Ademais, elementos da história de mobilização e luta dos trabalhadores e da população em geral, não somente da cidade isoladamente, mas no estado do Rio Grande do Norte como um todo, contribui para que possamos entender melhor a história da organização popular em Natal. Fundada em dezembro de 1599, como parte da política urbanizadora de Portugal para a Colônia, visando povoar a costa atlântica brasileira, Natal interessava ao reino praticamente apenas devido sua localização geográfica estratégica que a colocava em condição de se constituir ponto militar de defesa do território. Em grande parte, esta função irá determinar sua ocupação até a atualidade, haja vista que, excetuando-se este aspecto, Natal pouco representava para a colônia, dada a inexpressividade econômica da capitania onde se localizava (CASCUDO, 1984). Além disso, vale lembrar que o Rio Grande do Norte foi criado 22 Sinalizamos, desde já, que a primeira parte deste duplo movimento a que nos referimos no desvendar da questão social funda o intuito do presente tópico. A segunda parte, por sua vez, será objeto de discussões futuras deste trabalho, subsidiado pela nossa pesquisa de campo. 74 para cumprir com o objetivo exclusivo de produzir carne para alimentar a capitania de Pernambuco. Assim, ao tentar desenvolver seu mercado, foi coibido, permanecendo por bastante tempo praticamente apenas como uma grande fazenda de gado. Com uma população muito pobre devido a inexistência de qualquer atividade econômica formal para além da pesca, da pequena agricultura e da criação de gado, a cidade de Natal se desenvolve a passos lentos e, por isso mesmo, até o século XVII, nos termos de Souza (1978), será cidade apenas no nome, dada as inúmeras dificuldades para garantir o seu próprio povoamento. Com efeito, “[...] ao contrário de outras cidades, Natal não se originou de uma vila e não havia uma atividade econômica, que aglutinasse seus moradores” (LIMA, 2002, p. 33). Apenas a partir da Segunda Guerra Mundial, ocasião em que é transformada em base militar dos norte-americanos, provocando com isto a vinda de um grande contingente de militares para a cidade, além da migração da população, Natal apresenta um crescimento populacional mais significativo. Na verdade, a implantação da base militar na cidade cria demanda por serviços e mercadorias, atraindo comerciantes e trabalhadores que progressivamente vieram se instalar na capital potiguar. Este contexto representa para Natal um índice migratório altíssimo naquele momento (1940/1950). O crescimento da sua população urbana está igualmente associado a outros fatores, diretamente relacionados à presença no Rio Grande do Norte, como ademais em toda a região Nordeste e no Brasil, de uma estrutura fundiária marcada pelo predomínio do grande latifúndio. Somam-se isto os longos períodos de estiagem23, com a decorrente expulsão dos trabalhadores rurais do campo para a cidade, também responsáveis pela constituição de boa parte da população de Natal que, no desenrolar da história, adensa a pobreza na cidade. Na análise de Souza: [...] o processo de concentração de população no urbano devido a migração campo-cidade, é no caso de Natal, acrescido de outra característica. Aqui além do crescimento real da população, deve-se considerar também a absorção da área rural do município de Natal à área urbana [...] Essa situação se explica pelo fato de que a expansão da malha urbana se dá 23 Ressalte-se que não concordamos com as concepções que restringem a seca no Nordeste e suas consequências a meramente um fenômeno climático. Para muito além disso, esta questão e, do mesmo modo, a realidade vivenciada por Natal neste contexto, é sintomática da concentração da terra e da água no Nordeste brasileiro, raiz da qual emerge este problema. 75 pela incorporação dos conjuntos habitacionais construídos entre os anos 1970/1982, localizados, em sua maioria, em áreas concentradas, anteriormente, como áreas rurais. No entanto, grande parte do aumento populacional da cidade deve-se a intensificação dos fluxos migratórios que se destinam a Natal a partir de 1960 [...] quase a duplicação do fluxo migratório em relação à década anterior [...] (1978, p. 17). A chegada de grande contingente de camponeses miseráveis em Natal, força os governantes a elaborar respostas face a pobreza que então se generaliza na cidade, ao mesmo instante em que caracteriza o início da trajetória de uma das lideranças políticas do Rio Grande do Norte: Aluízio Alves, representante dos interesses da industrialização e da modernidade, a quem coube a coordenação da assistência aos flagelados da seca. Esta liderança se constrói também como principal representante da oligarquia Alves no estado, contando para isto com o apoio de uma fração da oligarquia agrária do Rio Grande do Norte. Durante sua gestão no governo do estado, mesclou políticas modernizadoras, a exemplo do investimento em transporte, eletrificação e telecomunicações, com uma política clientelista, conservadora e repressiva, marcas que caracterizam notadamente o padrão de assistência social predominante em Natal até os anos 90 do século XX, de acordo com a formulação de Oliveira (2005). Um aspecto importante a ser observado na trajetória da oligarquia Alves: esta não foi moldada e conformada pelo poder agrário, e sim pelo poder dos veículos de comunicação, uma vez que Aluísio Alves destaca-se no cenário local como proprietário de veículos de comunicação como jornal, rádios e emissoras de televisão. Neste contexto, as primeiras tentativas de organização dos trabalhadores no estado do Rio Grande do Norte serão esboçadas a partir dos anos 1920 e 1930, respectivamente por meio de entidades associativas num primeiro momento e posteriormente via organizações sindicais. Aliás, em larga medida, toda a atividade organizativa da população de Natal em sua origem concentra-se na organização sindical, responsável por toda a movimentação política da cidade, apesar dos movimentos sindicais mais expressivos do estado encontrarem-se mais organizados nas cidades de Mossoró, Macau e Areia Branca. Importante registrar ainda como parte constitutiva da história das lutas sociais em Natal a localização do movimento comunista de 1935 no estado do Rio Grande do Norte e, em particular, na capital, viabilizando assim a constituição do chamado 76 Comitê Popular Revolucionário. Dentre suas principais iniciativas, destacam-se a elaboração e apresentação do decreto destituindo o governador e a Assembleia Legislativa, além da publicação do jornal revolucionário A Liberdade. Embora tenha durado apenas três dias, com a ampliação do movimento e a sua chegada ao interior do estado, o levante comunista de 1935 é sintomático da presença, em Natal e no Rio Grande do Norte, de no mínimo, uma proposta administrativa a partir da classe trabalhadora. Dessa feita, seria coerente dizer que no Rio Grande do Norte e, neste contexto, Natal, a organização popular nas áreas urbanas até a década de 1950, vai se limitar ao movimento sindical. A partir de então, tem início o movimento de bairro na cidade. A articulação do movimento de bairro em Natal encontra seu ponto de partida na ação da Igreja junto à periferia da cidade, via Ação Católica, objetivando a implementação de uma política de ação para atender a população dessa área de Natal. A ação da Igreja chega assim aos bairros periféricos de Mãe Luiza, Bom Pastor, Nova Descoberta, Dix-Sept Rosado e outros [...] o trabalho se situa numa linha bem assistencialista [...] onde passam a funcionar cursos de alfabetização de adultos, cursos profissionalizantes, cursos de educação política assim como grupos de discussão nos bairros para debate do chamado Movimento de Natal [...] Este é um movimento pioneiro no Brasil e o Movimento de Natal passa a ser encarado como semente de uma nova ação social da igreja. O fim dos anos 1950 assiste também ao surgimento de um movimento de certa envergadura na cidade, que tem como bandeira, a luta contra o imperialismo, e que tem no seu líder Djalma Maranhão, a sua força máxima (CEPAU, 1987, p. 61-62). Com o golpe de 1964, o trabalho popular que vinha sendo realizado até então se depara com uma forte repressão que leva a um processo de desmantelamento, pondo fim às experiências de trabalho de bairro durante os primeiros dez anos de governo militar. Posteriormente, já em uma conjuntura de desgaste do regime militar e de hegemonia da oligarquia Maia - e sabendo-se ser necessária a contenção e amenização dos métodos repressivos para elevar a legitimidade do governo, o Estado reconfigura sua política, adotando como objetivo a promoção da “integração social” das cidades via desenvolvimento comunitário. Esta Política tem como carro-chefe o Programa Nacional de Centros Sociais Urbanos (PNCSU), desenvolvido em Natal, a partir de 1976, como experiência 77 pioneira no contexto brasileiro24. Durante anos, alvo de investimentos por parte dos governantes do Rio Grande do Norte e mais precisamente de Natal, apesar do projeto de participação comunitária implementado por intermédio do Centro Social Urbano (CSU) ter sido apenas o ponto de partida para uma política muito mais agressiva e ousada por parte dos governantes do grupo Maia nos anos seguintes. Especialmente no que diz respeito ao aspecto da relação povo-governo, sintetizada em um intenso trabalho de envolvimento e manipulação política nos bairros, envolvendo entidades comunitárias. Estes investimentos não acontecem por acaso, de forma desinteressada. Ao contrário, para o poder local, o PNCSU se revela excelente oportunidade de fortalecer a política clientelista, por dentro da lógica que transforma a prestação de serviços em relação de favor, como sinaliza Nicolau (1984) ao se referir às práticas desenvolvidas pelas unidades de Centros Sociais Urbanos: [...] o Estado e os grupos dominantes desempenham sua prática clientelística assumindo, diante da população, no interior da Sociedade Civil, o papel de benfeitor. Como retribuição ao serviço prestado, os grupos oligárquicos esperam que a população, transformada em clientela, expresse seu agradecimento através do voto (p. 45). Aliado a esse interesse de fortalecimento do clientelismo, identificamos ainda como parte importante dos objetivos da então política de “integração social” das cidades, uma atuação direta, quando não o controle, do Estado sobre as organizações de moradores. Tal controle pode ser facilmente percebido pelo fato de se condicionar, então, a implementação do Centro Social Urbano na cidade à existência de um Conselho Comunitário, enquanto entidade representante dos interesses da comunidade. A partir de então, o Conselho e toda e qualquer outra entidade existente no bairro deveria atuar não apenas de modo estreitamente atrelado ao CSU, como preferencialmente funcionar nas próprias instalações físicas da unidade do Centro Social Urbano ali localizado. Mais do que isso, o Estado, via PNCSU tinha como perspectiva, em casos de inexistência de organização comunitária nos bairros, promover a sua criação através 24 A primeira unidade do CSU foi instalada no conjunto habitacional Cidade da Esperança, na zona Oeste de Natal. Na análise de Fausto Neto (1993) a implantação de programas deste tipo em uma ou outra localização dependia de um critério fundamental: o potencial de conflito representado pelos usuários que não fossem atendidos ou a força social e política que poderia ser incorporada com seu atendimento. 78 e em decorrência imediata da ação do Centro Social Urbano, ao qual a entidade já nascia atrelada. Para nós, esta postura demonstra visivelmente a preocupação do Estado em se antecipar à população, se julgado necessário, desde que pudesse garantir, desse modo, seu controle e ação direta sobre as entidades de bairro existentes. Nesse contexto, emerge a maior parte dos conselhos comunitários e associações de moradores em Natal, denotando desde sua origem o controle ao qual serão submetidas. Este processo de criação de entidades “populares” pelo alto, através da intervenção direta do Estado acontece no marcos do processo de intenso crescimento urbano de Natal e de sua área metropolitana, com a constituição das periferias urbanas, os processos de desfavelamento e de “modernização” da cidade. Até o atual momento, em termos de sua urbanização, Natal vivenciou três momentos históricos demarcados por Felipe (2010). Em sua abordagem, o geógrafo assegura que o primeiro grande marco da modernização de Natal ocorre no final do século XIX e início do século XX, quando políticas urbanas dotam a cidade de ruas calçadas, saneamento, quando se verifica a chegada do bonde e da luz elétrica. O segundo momento da modernização urbana de Natal ocorreu a partir de 1942, durante a Segunda Guerra, momento de sua história ao qual já fizemos referência. E o terceiro momento desse processo de urbanização, ainda de acordo com Felipe (Op. Cit), teve início no final dos anos 1960, com a chegada de recursos, oriundos de programas de investimento urbano em capitais e cidades de porte médio, destinados, em sua maioria, a projetos de transportes e de redes viárias. As décadas de 1960 e 1970 são singulares para Natal. Neste período, a cidade apresenta um crescimento de todos os indicadores utilizados para medir o desenvolvimento dos centros urbanos no Nordeste, ao contrário da realidade que se verificava nas demais cidades do estado do Rio Grande do Norte. Essa situação se explica, em parte, pelo privilégio que Natal tem em relação aos demais centros urbanos do estado (FELIPE, 2010), na absorção de recursos de programas governamentais e de políticas voltadas para criar uma infraestrutura necessária à industrialização. Este privilégio decorre não somente por ser Natal o centro administrativo do estado, mas também pela presença de funcionalismo público estadual e federal e das repartições militares. A política de modernização conservadora da agricultura (mas não somente), implementada pelos governos militares, figura como um dos principais 79 determinantes desse crescimento populacional. Com efeito, esta política privilegia grandes latifúndios e grupos econômicos ao expropriar milhares de camponeses que lutavam no pré-1964. Importante destacar: “[...] essas duas décadas [1960 e 1970] prepararam o caminho para o crescimento, mas também para as dificuldades e os problemas sociais de Natal na atualidade” (FELIPE, Op. Cit, p. 63). Particularmente, a partir da segunda metade dos anos 70, do século XX, ganharam mais visibilidade nas práticas e nos discursos dos governantes de Natal as formas tradicionais de fazer política, baseadas na troca de favores e no autoritarismo, assumindo, porém, uma forma renovada (OLIVEIRA, 2005), traduzida e expressa, dentre outros aspectos, pelo início de um período marcado pela hegemonia da família Maia – vinculada, enquanto força política, à oligarquia agrária algodoeiro-pecuária. Esta assume a prefeitura de Natal e o governo do Estado do Rio Grande do Norte, inicialmente por influência e indicação do Governo Militar, em 197525. No início dos anos 1980 – mais precisamente em 1982 – ocorre a eleição para governador do estado do Rio Grande do Norte, em um contexto nacional marcado pela abertura democrática, em um momento de intensa disputa política no estado. Por um lado, se configurava o retorno de Aluízio Alves ao cenário político do Rio Grande do Norte, pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e, por outro, José Agripino Maia se consolidava como uma das maiores lideranças da direita potiguar, pelo Partido Democrático Social (PDS), contando com o apoio das organizações comunitárias (TRINDADE, 2004) e tendo vencido as eleições estaduais de 1982. Nesta mesma década, o governo do estado do Rio Grande do Norte cria a Fundação Estadual do Trabalho e Ação Comunitária (FETAC) para assumir, além da atividade de coordenação dos centros sociais, a atividade de “orientar e assistir” às instituições sociais e a população despojada do atendimento às suas necessidades mais básicas. A Federação de Entidades Comunitárias e Beneficentes (FECEB) é constituída igualmente para funcionar como entidade centralizadora da atuação dos conselhos e associações comunitárias. Tem, então, sua sede no CSU e representa a expressão mais concreta neste período do controle e da manipulação – inclusive 25 Vale lembrar que os prefeitos das capitais, nesse período, eram escolhidos pelos Governadores e, estes, nomeados pelo Presidente. 80 formalizados – sobre o movimento e a organização de bairro em Natal. Como destaca Andrade, tratava-se de promover a “organização” e a participação popular, contudo, sem a presença dos moradores: A tática da Federação [FECEB] era visitar os bairros, entrando em contato com algumas lideranças comunitárias, principalmente aquelas que poderiam ter possibilidade de envolvimento político. Nestas visitas, colocava-se a necessidade de criar no bairro o Conselho Comunitário, marcando para breve uma reunião para escolher a diretoria. A reunião era feita de imediato, de forma a não dar espaço de tempo para ser difundida, no bairro, a notícia da criação da entidade. Na reunião, geralmente com as poucas pessoas que tinham sido contatadas anteriormente, eram indicados os nomes para compor a diretoria e, através da coleta de assinatura dos presentes, considerava-se a diretoria eleita. Os moradores do bairro, portanto, não participavam do processo de criação do conselho e da eleição dos membros da diretoria, e a grande maioria ignorava a existência da entidade (1996, p. 146). Com a intervenção mais explícita do Estado nessas entidades, começam a se construir movimentos de oposição e de resistência a essa postura, datados deste mesmo período histórico, aguçados a cada processo de eleição para a diretoria das organizações, a exemplo das associações e dos conselhos de moradores. Estes aspectos são importantes para a compreensão dos conflitos e caminhos percorridos pelos movimentos urbanos de Natal. Nacionalmente – de meados da década de 1970 até metade dos anos 1980 – a arena política se complexifica à medida que novos sujeitos coletivos surgem e apresentam demandas e reivindicações múltiplas e plurais. Neste momento, ocorre um processo de “ressurgência da sociedade civil”. Vale ressaltar que tal processo de ressurgimento de múltiplos movimentos sociais e de formas de organização26 se dá imerso numa conjuntura de transição democrática lenta e gradual. Assim, a década de 1970 e a metade da década de 1980 ficam marcadas pelo ressurgimento dos movimentos sociais no cenário político nacional. Tais processos se desenvolvem “[...] em concomitância com uma grande ‘crise’ expressa pela recessão econômica, desemprego e agravamento da deteriorização das condições de vida da maioria da população” (DURIGUETTO, 2007, p.170), levando muitos analistas a classificar a década de 1980 como ‘a década perdida’. 26 Entre as amplas expressões de mobilização e organização popular deste período, tiveram destaque as mobilizações promovidas pelos metalúrgicos do ABC paulista e a pluralidade de reivindicações pautadas pelo movimento feminista, movimento homossexual, movimento negro, além de diversos outros movimentos populares que emergiam naquele momento. 81 Porém, do ponto de vista das mobilizações sociais, esta foi uma década de destaque, com amplas mobilizações e variadas manifestações democráticas e populares. Nesse sentido, especialmente este período compreendido entre a segunda metade da década de 1970 e os anos 1980 se constituiu, no Brasil, como períodos de redemocratização e de ruptura com o regime estabelecido com o golpe de 1964. A segunda metade dos anos 1980 – se destaca como uma fase institucional da participação popular. A sociedade brasileira vivenciava nesse momento, um contexto de consolidação democrática27, no qual com uma crescente aproximação dos movimentos sociais aos aparatos político-institucionais. O maior indicativo dessa reorientação política no campo da ação coletiva foi o conjunto de esforços empreendidos no processo de elaboração da Constituição28 Federal de 1988, através de abaixo-assinados, mobilizações, articulações nacionais e movimentos de pressão popular para inscrever no texto legal todos os direitos negados durante os governos militares. As novas práticas coletivas são definidas por Luchmann e Sousa (2005) como sendo os “novos instituintes” no contexto da luta pela consolidação democrática. O termo é adotado pelas autoras no sentido de explicitar que o reconhecimento e institucionalização do Estado de direito consistia na pauta central das lutas sociais, na segunda metade dos anos 1980. Porém, para além da efetivação dos direitos instituídos, a pressão popular objetivava também o estabelecimento de novos direitos e a via percebida, para tanto, era a ampliação dos espaços de participação social junto aos aparatos político-institucionais, possibilitando a intervenção direta nas definições e encaminhamentos das demandas por políticas públicas. Nessa fase, a perspectiva assinalada representa um forte indicativo na redefinição da relação entre Estado e sociedade civil no Brasil, ao mesmo tempo em que marca um momento de redimensionamento das ações e iniciativas dos movimentos sociais. Anteriormente, tais ações eram reivindicativas ou ‘de rua’ e passam a ser traduzidas em propostas políticas e encaminhadas aos espaços institucionais. 27 Contexto iniciado a partir da eleição direta para presidente da República, em 1989, após décadas de ditadura. 28 Embora a Constituição de 1988 decorra de uma década marcada pela transição dos regimes autoritários para os governos ditos democráticos, seu processo de construção de forma alguma se deu isento de grandes embates políticos. 82 Não obstante, Weffort29 (1984, p. 97) faz uma importante ponderação ao nos lembrar que, apesar das tensões existentes entre estes diferentes modos de participação popular, todos constituem parte essencial do jogo democrático e, em muitos momentos, a articulação entre a participação popular direta nas ruas e praças, e a participação popular em eleições, pode ser uma articulação decisiva para os rumos do processo político, aliás, “[...] elimine-se um dos lados e todo o jogo democrático acabará sendo suprimido”. Nos anos 1990, diante do cenário da ofensiva neoliberal, no campo das lutas sociais, configura-se um quadro de “descenso” e de crise, com relativo esfriamento da atuação dos movimentos sociais, que anteriormente haviam crescido e chegado ao auge em 1989, com a possibilidade das esquerdas vencerem as eleições presidenciais, tendo Lula à frente de seu projeto político. Não obstante, a vitória de Collor de Mello e a subsequente implantação das políticas neoliberais, causando desemprego em massa na cidade e no campo e abortando o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e, logo em seguida, o governo de FHC representando a continuidade dessa política, de forma planejada e convincente, provocaram entraves à ação dos movimentos sociais. O governo Collor e os dois mandatos de FHC, marcados por políticas regressivas e pelo desenvolvimento de ações de repressão às lutas sociais e a suas representações mais fortes, a exemplo dos bancários e dos petroleiros, podem ser vistos como grandes determinantes para o enfraquecimento dos movimentos sociais, quiçá constituintes da mola-mestra a partir da qual desembocou a inflexão dos movimentos sociais, neste período. Duriguetto (2007) nos lembra que a noção de “refluxo” ou “crise” dos movimentos sociais foi interpretada sob diferentes óticas. Para algumas leituras, a ênfase dada aos canais institucionais implicou em uma gradativa adesão da perspectiva reformista por parte de movimentos que antes tinham ideais revolucionários; outras leituras apontam como determinante para a crise um processo de submissão dos princípios democratizantes que caracterizaram as lutas 29 Sob pena de comprometermos a coerência teórica de nosso raciocínio, não poderíamos deixar de registrar que no que se refere à abordagem de Weffort, embora este seja um autor bastante citado quando se trata de elaborações sobre a democracia no contexto da transição, em suas formulações não se faz presente a defesa de um projeto societário contra-hegemônico. Isso porque, para Weffort, a possibilidade de uma suposta revolução estaria justamente (e estritamente) na ocupação dos espaços institucionais democráticos, perspectiva da qual não compartilhamos. 83 nas décadas de 1970 e 1980 às reminiscências populistas como clientelismo, corrupção e burocratismo. Ainda de acordo com Duriguetto (Op. Cit), outras perspectivas entendem como determinantes para a citada “crise dos movimentos sociais” tanto fatores externos, como a ofensiva neoliberal, por exemplo, como também fatores internos, tais como a dependência gerada em relação às assessorias e a institucionalização/onguização gradativa das ações dos movimentos. Há também outras análises, distintas destas, presentes na literatura especializada sobre o tema, a exemplo das elaborações de Dagnino (1994), para as quais na realidade houve uma redefinição da ação política dos movimentos diante da nova conjuntura instaurada. Assim, “Nessas redefinições teóricas, estratégicas e políticas, parece consensual a constatação de que o que está em ‘refluxo’ não são os movimentos, mas suas expressões públicas de massa e reivindicativas mais tradicionais” (DURIGUETTO, 2007, p. 168), embora não neguemos os novos desafios de cunho teórico e prático postos atualmente à ação política dos movimentos sociais, com base em novos determinantes presentes na cena política. No contexto do final dos anos 1980 e inícios dos anos 1990, em Natal, há continuidade ao estilo de governar de José Agripino Maia. O clientelismo e certo tipo de populismo constituem a base da relação estabelecida com as lideranças e organizações comunitárias: Vilma Maia – hoje chamada Vilma de Faria – segue investindo no usual atendimento às demandas mais imediatas e à troca de favores tanto com lideranças comunitárias quanto com representantes do legislativo. Assume, então, a prefeitura de Natal (1989-1993), como legítima representante da oligarquia Maia. No âmbito do governo estadual, bem como no âmbito da gestão municipal da capital potiguar, a oligarquia Maia opta pela realização de obras de grande impacto como ação prioritária. O projeto de construção da Via Costeira30, realizado pelo Governo do Estado, e as obras de infraestrutura viária efetivadas pelo governo municipal são exemplares deste período. 30 A Via Costeira é uma avenida beira-mar, com 12km de extensão, que liga a praia de Ponta Negra às praias do Centro e ao bairro de Petrópolis. Representou um dos maiores investimentos públicos na questão do turismo, o que na época de seu projeto inicial, provocou a reação de ecologistas, moradores de conjuntos residenciais da zona Sul e diversos outros setores da cidade, gerando um amplo movimento de repercussão na imprensa. Apesar disso, para construir esta avenida foi cortada toda uma área de dunas e, atualmente, a grande parte dos hotéis da cidade estão localizados nesta área, à beira-mar, o que tem gerado uma verdadeira privatização das praias ali situadas (DUARTE, 2011). 84 A política desta oligarquia se caracteriza, especialmente, pelas práticas participacionistas, visando legitimar e consolidar o poder e o controle sobre as organizações populares exercido por esta oligarquia, no sentido de reproduzir amplamente a subalternidade da classe trabalhadora via prestação de serviços precários, negação de direitos, cooptação e uso eleitoreiro de suas organizações, incorporando e aprofundando a cultura política e as práticas predominantes na história de atenção à pobreza de Natal. O governo de Vilma Maia também cumpre com o papel de atualizar e adequar as práticas políticas da oligarquia Maia ao contexto democrático. Para tanto, mescla práticas autoritárias e discurso de defesa da participação popular. Expressão autoritária de sua gestão a frente da prefeitura foi, segundo Oliveira (2005), o ocorrido na política de saúde. Ao assumir a prefeitura em seu segundo mandato (1997-2001), Vilma Maia proíbe a realização de eleições diretas para diretores de unidades de saúde, substituindo os diretores diretamente eleitos por usuários e servidores, por outros de sua confiança e predominantemente alheios à realidade da unidade de saúde que passam a dirigir a partir de então. No que diz respeito à relação estabelecida com as organizações comunitárias dos bairros de Natal, são os próprios dirigentes comunitários do período que costumam ressaltar a facilidade de acesso ao Executivo durante a administração de Vilma Maia: Com Vilma funciona normalmente, sem problema nenhum. Até porque, o pessoal de Vilma, o staf de Vilma é um pessoal muito ligado às organizações comunitárias [...] Todo o pessoal que trabalha com Vilma é político. E Vilma já leva uma vantagem que foi ter sido secretária do trabalho e bem estar social desse estado, tem um conhecimento. Vilma conhece todas as lideranças comunitárias [...] Ela dá muito apoio às lideranças comunitárias. Vilma talvez, em termos de políticos hoje no estado, seja o político que dê mais condições de viabilizar projetos dentro da comunidade. Apoio no sentido de facilitar acesso, o comunitário tem mais acesso na administração de Vilma. Ela procura realmente entre os membros do seu secretariado, procura que eles atendam às lideranças comunitárias (OLIVEIRA, 1997 apud OLIVEIRA, 2005, p. 153) 31 . Por sua vez, Aldo Tinoco (PSB) à frente da prefeitura de Natal (1993-1996), apesar de ter tido o apoio da então prefeita Vilma Maia à sua candidatura, não adota a mesma relação no trato com as organizações comunitárias, numa tentativa de 31 Trecho transcrito da entrevista de Valdefran Pereira Câmara, concedida à autora em 19/02/1977, durante a pesquisa de mestrado (OLIVEIRA, 1997). 85 ruptura com a prática anterior (OLIVEIRA, 2005). Chama-nos especial atenção, dentre as ações que integraram a assistência social no município de Natal neste período (diga-se de passagem: momento no qual Natal dava os primeiros passos no processo de municipalização da política de assistência social), a chamada “humanização e urbanização das favelas”, ação que consistiu no desenvolvimento de dois projetos: “[...] um, a remoção de 60 famílias da favela bem-te-vi localizada no centro da cidade para novas moradias na zona norte de Natal. A outra foi a execução do projeto Habitar Brasil na favela da África [...]” (OLIVEIRA, Op. Cit, p. 162-163). Dentre os aspectos importantes que caracterizam a Natal do início do século XXI, Duarte (2011) destaca a consolidação da sua inserção – como núcleo central - na complexa realidade metropolitana. Embora o processo de metropolização da cidade e dos municípios do entorno tenha avançado significativamente desde os anos 1980, somente no início da década de 2000 consolida-se uma situação de verdadeira conurbação de Natal com o município de Parnamirim e o transbordamento, em diferentes intensidades, no sentido de Macaíba, São Gonçalo e Extremoz. Configuram-se, assim, novos arranjos espaciais, redobrando a importância de Natal no plano econômico e social no território potiguar. Atualmente, Natal possui uma área territorial de 169, 9 Km2 e 803.811 habitantes. Seu território é organizado politicamente em quatro regiões administrativas (Norte, Sul, Leste e Oeste) e 36 (trinta e seis) bairros. Registramos ainda, nessa década, de acordo com Clementino e Pessoa (2009), o surgimento de uma nova tipologia habitacional e de uma nova dinâmica de produção imobiliária em Natal, inaugurada em um contexto de expansão do turismo, atividade estimada como capaz de alavancar novos espaços e dinâmicas econômicas. As marcantes iniciativas governamentais deste período em termos de infraestrutura, a exemplo da construção da nova ponte sobre o rio Potengi, da duplicação da via costeira, da ampliação do porto de Natal, da reforma do aeroporto para receber vôos internacionais e de outros investimentos públicos que impulsionaram o crescimento metropolitano crescimento relacionam-se notadamente, com a consolidação do turismo “sol e mar”, em Natal, a qual tem efeitos visíveis sobre a ampliação do setor de serviços e do comércio. Para tanto, a 86 articulação das forças políticas locais no comando da capital e do estado, além do apoio do governo federal constituem aspectos determinantes, como destaca Duarte (2011): Frise-se que a configuração política da época favoreceu esse movimento, vez que os titulares dos Executivos da União, do Estado do RN e do município de Natal, se encontravam do mesmo lado. Lembre-se que em 2001 ocorreu uma mudança de titularidade no Executivo Municipal, em face do afastamento da então prefeita (Vilma Maia de Faria) para concorrer ao cargo de Governadora, assumindo o município o vice-prefeito, Carlos Eduardo Nunes Alves, que, após completar esse período de governo (2002- 2004), elegeu-se para uma nova gestão (2005-2008). No governo do Estado, em 2002, Vilma de Faria elegeu-se governadora, se reelegendo para um novo período (2006-2009); tendo, em seus dois períodos de governo, o apoio do presidente Lula da Silva, também eleito e reeleito nas mesmas ocasiões (p. 357). Além de destacar-se como um dos fortes vetores que determinam a expansão metropolitana de Natal, a partir de 2004, o turismo passa também a se associar fortemente ao mercado imobiliário e à construção civil (SILVA, 2010). Produz-se, então, uma dinâmica explicitada por “[...] processos de segmentação social que separam as classes e grupos sociais em espaços de abundância e da integração virtuosa e em espaços de concentração da população vivendo em múltiplos processos de exclusão social” (CLEMENTINO, 2009, p. 07). A reprodução da pobreza e da desigualdade social em Natal é abordada em estudos do Grupo de Pesquisa Trabalho, Ética e Direitos (Departamento de Serviço Social da UFRN), que chamam a atenção para o perfil da população atingida pela desigualdade social nessa cidade. Esta conta com forte presença de crianças e jovens e apresenta uma pobreza articulada à discriminação por raça/etnia, gênero, condição física, local de moradia e diversas outras formas de negação de direitos. Os dados da pesquisa supracitada Ilustram bem essa realidade, ao apontarem que, dentre a população pesquisada, 71,27% afirmaram desconhecer qualquer ação de governo na localidade e em 54,06% dos domicílios as pessoas asseveraram não receber nenhum serviço ou benefício do governo; dentre os que recebem algum benefício, o Programa Bolsa Família destaca-se como mais citado. Do ponto de vista dos sujeitos pesquisados, destacam-se em Natal duas grandes questões que deveriam ser objeto de maior atenção por parte do poder local: a violência, o consumo e o comércio de drogas e ainda a falta de segurança pública. No tocante às demandas direcionadas aos governos, a prioridade da 87 população concentrou-se principalmente sobre a infraestrutura urbana, assistência à saúde, geração de emprego e políticas públicas. Apesar das desigualdades e das demandas identificadas, dados oficiais do Instituto de Desenvolvimento Econômico do Rio Grande do Norte (IDEC) evidenciam a realidade de um município com expressivo crescimento econômico, com destaque para a atividade turística, ao ponto de ser considerado “o tigre nordestino”, em alusão aos países asiáticos que se destacaram por um crescimento expressivo na economia mundial. Na análise do Grupo de Pesquisa Trabalho, Ética e Direitos, o processo de urbanização de Natal, no caso específico das áreas periféricas, “[...] caracteriza-se por um urbanismo sempre incompleto e marcado pela 'inseguridade', seja do terreno, da construção ou da condição jurídica da posse do território” (OLIVEIRA; MOREIRA, 2010, p. 236). O processo de urbanização e de empobrecimento urbano em Natal se explicita também na existência de 70 (setenta) favelas distribuídas em suas regiões. A quantidade de favelas existentes não tem se alterado no último período, porém, verifica-se que há um gradativo crescimento do número de pessoas vivendo nesses espaços e dos casos de coabitação, assim como o número de loteamentos irregulares presentes na cidade. Ademais, a distribuição das favelas segundo as regiões da cidade expressam que as regiões Norte e Oeste são as que possuem o maior número de favelas, o que corresponde, respectivamente, a 20 (vinte) e 22 (vinte e duas) favelas, isto é, 60% do total. Enquanto a região Sul possui 11 (onze) favelas e a região Leste 17 (dezessete) favelas (OLIVEIRA, 2005). A condição da pobreza em Natal não é dissonante do elevado índice de pauperização existente na região Nordeste, em sua conhecida maior concentração de pobreza em relação às outras regiões do país. Insistimos, porém, que a realidade social de Natal, em seu complexo quadro de desigualdades explicitadas nos dados e nas condições de seus bairros periféricos é, em larga escala, invisibilizada. Em verdade, como assegura França (2012, p. 01), “[...] não estão ao alcance dos olhos dos seus visitantes nem dos nativos mais segregados”. Especialmente porque, na categorização do autor, em Natal, coexistem três cidades: a cidade dos pobres, a cidade dos arremediados e a cidade dos ricos. 88 Nessa mesma direção, Pedro Lima (2002, p. 149) entende Natal como uma cidade dividida a partir do estuário do Rio Potengi, posto que “[...] enquanto Natal se desenvolvia como uma cidade legal e provida de serviços e equipamentos urbanos, em ambas as margens do rio Potengi uma outra cidade clandestina e pobre também se desenvolveu”, revelando também que as contradições do espaço urbano de Natal se expressam e se particularizam em determinadas regiões e bairros. Nestes espaços está colocado de forma evidente o cotidiano da pobreza constituída nesta cidade e, como não poderia deixar de ser, demanda processos organizativos e de mobilização popular, nos quais e a partir dos quais haja mais visibilidade da principais questões que afetam a população urbana da cidade, necessitando, portanto, serem problematizadas e politizadas, questões estas intrinsecamente ligadas ao seu território. Neste quadro, precisamente, tem lugar a emergência dos movimentos sociais com seus diferentes sujeitos, a partir dos quais se adensam as lutas urbanas em Natal, objeto de reflexão e de análise no presente estudo. Buscamos em nosso processo de pesquisa discutir o fenômeno das lutas urbanas particularizado nas experiências organizativas do Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), da Associação Potiguar dos Atingidos pelas Obras da Copa (APAC) e do Levante Popular da Juventude32 (LPJ), organizados, sobretudo, na zona oeste da cidade de Natal-RN, entendido como uma das faces que constituem a questão urbana. O caminho adotado para tanto pressupõe que “[...] a compreensão dos projetos político-ideológicos dos movimentos passa pelo entendimento da composição de seus quadros dirigentes” (GOHN, 2005, p. 39-40), bem como supõe certamente a apreensão das bandeiras de luta que têm se constituído como frentes de atuação dos movimentos locais. 32 Em específico com relação ao Levante Popular da Juventude, importante dizer que este movimento não é exclusivamente da cidade, na medida em que se organiza a partir de três campos de atuação: a) no meio estudantil secundarista e universitário; b) nas periferias dos centros urbanos e c) nos setores camponeses. Em Natal, o Levante Popular da Juventude está presente na UFRN, nas faculdades privadas (em ambos os casos atuando no movimento estudantil) e no bairro de Felipe Camarão. Esta forma de organização demonstra a concepção do movimento em relação ao trabalho com a juventude, para o qual embora existam especificidades que particularizam a organização da juventude no movimento estudantil, na periferia e no campo, estas se complementam e devem ser construídas de forma articulada, concepção com a qual temos total acordo. Entretanto, dado nosso objeto de estudo e as finalidades da presente pesquisa, no que se refere ao Levante Popular da Juventude, nossa investigação se concentrou junto à célula Peixe-Boi (bairro de Felipe Camarão), por esta aglutinar e organizar a juventude da periferia urbana de Natal. 89 3.3 Quem traz na pele essa marca: caracterização dos(as) dirigentes entrevistados(as) Muitas das construções políticas dos movimentos sociais e das suas ações cotidianas são impressas e influenciadas diretamente também pelo perfil assumido pelos seus dirigentes, não apenas no que se refere às suas posições político- ideológicas, mas também à própria realidade de vida na qual este dirigente está inserido, relacionadas, por exemplo, ao gênero, à faixa etária, à raça/etnia, escolaridade, religião, trabalho, tempo de militância em espaços coletivos, filiação partidária ou não e as condições e motivações que proporcionaram sua aproximação ao movimento. Implica considerar a ação política dos movimentos sociais e das organizações populares de Natal como uma realidade que é vivenciada e apresentada na consciência de seus militantes e, por isso mesmo, expressa no perfil de seus dirigentes e nos seus discursos teóricos e ideológicos. Implica igualmente ter a clareza de que tal ação política é socialmente determinada pelas circunstâncias sociais objetivas, que independem da vontade ou da consciência de seus dirigentes e militantes individuais, podendo inclusive ocorrer um desencontro entre as intenções dos dirigentes, a ação realizada pelos movimentos e os resultados produzidos, especialmente porque a organização política, tal como os demais processos desta sociabilidade, é necessariamente polarizada pelos interesses das classes sociais, não podendo ser apreendida fora desta trama. Como decorrência deste entendimento, é possível afirmar que os rumos da ação política dos movimentos urbanos em Natal não decorrem exclusivamente das intenções dos militantes uma vez que suas intervenções sofrem condicionamentos objetivos do contexto onde atuam. No entanto, isso não significa que estes se coloquem passivamente diante das situações sociais e políticas que configuram o cotidiano do movimento social. Ora, eles podem perfeitamente definir estratégias e táticas políticas no sentido de reforçar os interesses do projeto ao qual defendem e se opor a projeto e ações que contrariem os interesses de sua classe, procurando incidir na realidade. 90 Assim, no esforço de caracterizar quem são os sujeitos dirigentes dos movimentos e das organizações objetos de nosso estudo, nos deparamos com uma realidade na qual, dentre os sujeitos de pesquisa, três das lideranças entrevistadas são homens e duas lideranças são mulheres, uma realidade não tão destoante do que se verifica comumente nos movimentos populares: a grande parte dos cargos/tarefas de direção em movimentos e organizações populares é ocupada por homens, enquanto as mulheres estão exercendo cargos de direção na minoria dos casos. As exceções acontecem principalmente quando se tratam de mulheres jovens, de uma nova geração de militantes (18 a 25 anos)33. Esta dificuldade ou muitas vezes a ausência total de mulheres compondo a diretoria e especialmente o cargo de presidente das organizações, é sintomático da manutenção de interdições à participação política das mulheres, expressa na pequena inserção destas nos espaços políticos de decisão e nas direções de movimentos sociais. Tal aspecto permanece sustentando a reprodução da dominação patriarcal, no reforço às relações desiguais de gênero. Uma iniciativa importante é encontrada na Associação Potiguar dos Atingidos pelas obras da Copa (APAC), uma das entidades que conta com uma mulher no cargo de presidente. Neste caso, seus dispositivos estatutários tratam da paridade entre homens e mulheres na composição da diretoria da organização. Participamos da Assembléia de moradores que deu origem a APAC, realizada em 10 de dezembro de 2011 (em referência ao Dia Internacional dos Direitos Humanos), no bairro Bom Pastor, ocasião na qual nos foi possível observar o quanto a presença do movimento feminista da cidade nesse espaço foi fundamental para que o estatuto da entidade incorpore esse aspecto da dimensão de gênero, proposta, aliás, originária das feministas ali presentes, organizadas no Coletivo Leila Diniz/Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB). A ausência ou participação limitada das mulheres no exercício da política e da militância decorre, em grande medida, dos estigmas e estereótipos criados em torno da mulher, na visão tradicional e conservadora de sua inserção na sociedade, 33 O fetiche da quantificação (como resolvemos denominar aqui) poderia nos levar ao equívoco de querer transformar todas as informações do perfil das lideranças em dados a serem expressos em gráficos e tabelas, supondo com isto tornar a análise “objetiva” e “observável”. De fato, chegamos bem perto de cedermos aos encantos de tal concepção positivista de fazer pesquisa e nisto reside nossa autocrítica. Contudo, considerando que estamos trabalhando com um número bastante pequeno de entrevistados (apenas cinco) nos convencemos do contrário a tempo e optamos por discutir o presente item sem recorrer ao uso dos gráficos e tabelas. Não por uma recusa formal. Mas de compreensão teórico-metodológica: entendemos – agora sim – a incoerência de mobilizar tais recursos quando estes não trazem nenhum acréscimo ao que o texto já demonstra. Em outros momentos de nosso trabalho, por sua vez, quando julgado necessário, adotamos os recursos citados. 91 profundamente enraizados na nossa realidade social. Assim, no cotidiano da organização política, as mulheres se defrontam com os denominados tetos de vidro que, embora não sejam de todo perceptíveis, se materializam e se apresentam, sob distintos formatos, no intuito de bloquear o movimento de atuação das mulheres nos espaços públicos e no mundo da política. No caso dos movimentos urbanos, particularmente, a reduzida presença de mulheres na direção dos movimentos não corresponde à participação majoritária que estas apresentam em relação aos homens no que diz respeito às atividades e lutas organizadas pelo movimento, conforme têm indicado pesquisas como a de Calió e Lopes (1993) e Lavinas (1997). Afinal, analisam as pesquisadoras, as mulheres além de responsáveis pela reprodução da força de trabalho no que diz respeito especialmente à criação dos filhos e à manutenção da casa, é ainda tida como a responsável pela participação da família nas lutas do bairro, haja vista tais lutas pautarem predominantemente questões tradicionalmente entendidas como de responsabilidade da mulher por se tratarem de reivindicações relacionadas diretamente com a sobrevivência da família no espaço privado e no limite do bairro. A obtenção de água, por exemplo, facilitará o trabalho de lavagem de pratos e roupas; a conquista de escolas e creches, equipamentos coletivos básicos, destaca-se como uma preocupação importante para efetivação do direito à educação das crianças, etc. Estes e tantos outros exemplos fazem com que algumas estudiosas desse temário compreendam o bairro como uma espécie de lar expandido para as mulheres: Envolvidas com a sobrevivência do cotidiano da família (as mulheres) acabam se convertendo em gestadoras da configuração urbana. Reunindo as famílias, as vizinhanças, estabelecendo relações de solidariedade mútua, convertem o bairro no espaço ampliado de trabalho doméstico, coletivizando carências e necessidades. Dessa forma, elas têm estado presentes nos momentos-chave dos chamados processos de consolidação urbana; na luta pela moradia, pelos serviços básicos, pelos equipamentos sociais, pela melhoria do meio ambiente. Organizadas reivindicam-se autoras e produtoras do seu entorno físico, social, ambiental. Trazem à ordem do dia a importância de políticas públicas que incorporem suas necessidades cotidianas [...] (CALIÓ e LOPES, 1993, p. 16). No que diz respeito à escolaridade dos(as) dirigentes, é predominante aqueles com nível médio e/ou superior, o que demonstra como o processo de escolarização tem, de alguma forma, influência na formação das lideranças dos movimentos sociais. De modo geral, há uma tendência a que as lideranças dos 92 movimentos urbanos tenham maiores níveis de escolarização, de formação e também de informação, o que em grande medida justifica a escolha destes e parte da legitimidade adquirida no seio de sua comunidade. Trabalhamos ainda com a pressuposição de que, dialeticamente, o envolvimento político e a militância também são fatores que incentivam e potencializam a preocupação com os estudos e a decorrente escolaridade. Importante ressaltar, entretanto, que este perfil não corresponde a uma realidade passível de ser estendida ao contexto nacional, pelas particularidades próprias dos movimentos com os quais estamos trabalhando (históricas e sócio- espaciais). Algumas pesquisas, tendo por objeto de estudo a realidade dos movimentos urbanos de outras cidades, têm constatado um perfil similar, no qual a maioria das lideranças apresenta escolaridade entre o nível médio e superior (Cf. SANTOS, 1995). Outras pesquisas, por sua vez, têm indicado, em outros contextos sócio-territoriais, a existência de um perfil diferenciado de lideranças e dirigentes de associações comunitárias. Neste último caso, a constatação é da existência de um nível de escolaridade baixo, predominando o ensino fundamental incompleto (Cf. DURIGUETTO et all, 2009). Ao colocarmos em evidência as informações referentes à profissão/ocupação, procurando relacioná-las com a renda mensal da família, identificamos elementos da caracterização dos dirigentes dos movimentos sociais urbanos que vêm de encontro ao alerta de Kowarick (1979), para o qual ao contrário do que muitos pensam, os bairros mais pobres da cidade ou mesmo as favelas, não concentram uma população com característica de lumpen34. Dentre as lideranças entrevistadas, predomina a presença de estudantes e de trabalhadores assalariados, com uma renda familiar mensal entre três e quatro salários mínimos. A deterioração salarial é um dos componentes que expressam as feições assumidas pela exploração capitalista, acrescida das condições e 34 Seguem alguns trechos e passagens nos quais Marx esboça uma definição para lumpen: 1) “Lumpenproletariat: Ao pé da letra: proletariado em farrapos. Elementos desclassificados, miseráveis e não organizados do proletariado urbano” (MARX e ENGELS, 2001, p. 108); 2) “Lado a lado com roués decadentes, de forma duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus (alcoviteiros), donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de faca, soldadores, mendigos – em suma, tôda essa massa indefinida e desintegrada [...]”(MARX, 1986, p. 71) e 3) “Abstraindo vagabundos, delinquentes, prostitutas, em suma o lumpemproletariado propriamente dito (..)” (MARX, 1988b, p.199). 93 possibilidades de acesso aos demais componentes básicos para a reprodução da força de trabalho, embora seja verdade que não acreditamos em nenhuma linearidade e relação imediata entre precariedade das condições de vida e o surgimento de movimentos e lutas sociais. Os resultados da nossa pesquisa reforçam, nesse sentido, a intrínseca relação entre condições de vida na cidade e precariedade dos salários da parcela da sociedade que habita os bairros populares de Natal. Condições de vida estas que, não por acaso, apesar de dependerem de uma série de fatores, têm na dinâmica das relações de trabalho um aspecto primordial. Daí considerarmos absolutamente coerente a perspectiva que entende que os novos eixos de conflito e suas novas formas de organização e expressão sociais, dentre as quais estão situados também a questão urbana e os movimentos sociais urbanos, nada mais são do que distintas manifestações da contradição capital- trabalho. Aliás, contradição fundante desta sociedade, reafirmada pela pobreza urbana e por seus desdobramentos. Pouco importa que as lutas urbanas estejam organizadas em torno de demandas pontuais, se na realidade isto não nos permite negar a vinculação de tais demandas à lógica de produção capitalista. Outrossim, tal vinculação quer dizer também quão indispensável se coloca a articulação entre movimentos urbanos e os movimentos sociais ligados à produção, tendo em vista a ampliação do horizonte político destes movimentos. Com efeito, a questão urbana e todos os elementos básicos para a reprodução da força de trabalho que a envolvem “[...] terá um encaminhamento na medida em que movimentos populares urbanos conectados à luta que se opera nas esferas do trabalho35 puserem em xeque a forma do domínio tradicionalmente exercido [...] (KOWARICK, 1979, p. 74). Os dados referentes ao tempo de participação no movimento e à participação em algum outro espaço de organização coletiva, anterior ao movimento urbano, por parte dos(as) militantes pesquisados(as), revelam não apenas o quanto estes movimentos são recentes na história da organização popular da cidade de Natal – a maioria existe há menos de 02 (dois) anos – como também quão jovem a militância organizada nestes movimentos; são, em sua maioria, sujeitos que apenas recentemente passaram a intervir no mundo da política, tendo os movimentos 35 Grifo nosso. 94 urbanos aqui estudados como seu primeiro canal de participação coletiva, o que certamente influi no nível de politização destes dirigentes. Nos casos em que foram citadas esferas de ação coletiva anteriores, destacou-se a experiência construída no movimento estudantil (ME) secundarista e universitário, via participação em grêmios estudantis e centros acadêmicos de suas respectivas unidades de formação. De fato, o movimento estudantil possui inegavelmente um caráter de espaço formador de militantes; a condição transitória de estudante possibilita aos militantes do ME, posteriormente, desenvolverem suas potencialidades de atuação política, em outros espaços e segmentos organizados (Cf. GUIMARÃES, 2011a). Aqui, porém, chamamos ainda a atenção para a especificidade dos movimentos estudados. Pesquisas sobre movimentos de bairro ou comunitários, distintas da que ora apresentamos, destacam principalmente a Igreja Católica como a sendo a primeira esfera de participação coletiva para a maioria das lideranças de movimentos urbanos e organizações populares, seguida pelos partidos políticos e, em menor proporção, os sindicatos e o movimento estudantil (Cf. SANTOS, 1995). Doravante, em nossa pesquisa de campo constatamos que dos 05 (cinco) dirigentes entrevistados, 03 (três) deles possuem filiação a Partido Político, com destaque para o Partido Comunista Revolucionário36 (PCR) e o Partido dos Trabalhadores (PT). Este é um dado que nos parece importante principalmente porque pode sugerir influência de partidos políticos nas práticas dos movimentos e organizações populares de Natal, cabendo-nos problematizar esta relação, entre estas duas categorias de sujeitos coletivos, embora a vinculação de dirigentes de movimentos urbanos a partidos políticos não seja de forma alguma uma particularidade da organização política local. Ao contrário, entre as principais especificidades dos movimentos sociais latino-americanos está justamente o fato dos partidos políticos terem clara atuação junto aos movimentos sociais em geral, até porque muitos militantes dos movimentos são, também, militantes partidários (GOHN, 2007). Diversos estudos têm apontado para a presença dos partidos políticos no cotidiano dos movimentos sociais e das organizações populares, com ênfase para o 36 O PCR é um partido ainda não legalizado que foi fundado em 1966, por um grupo de militantes egressos do PCdoB que divergiam dos rumos que o partido trilhava. Seus princípios ideológicos baseiam-se no marxismo-leninismo e, atualmente, a atuação do partido divide-se entre movimento de bairro, sindical e estudantil (PCR, 2013). 95 movimento sindical e para o movimento estudantil, considerados prioritários pelos partidos de esquerda (SANTOS, 1995). Tal prioridade deve-se ao fato desses movimentos constituírem espaços estratégicos para a intervenção dos partidos políticos, haja vista a capacidade que possuem para organizar respectivamente a classe trabalhadora e a juventude. Não podemos olvidar que os movimentos sociais, assim como os partidos, constituem espaços de formação e de organização política, certamente de natureza diferente, mas de importância inconteste. Nessa perspectiva, as diferentes correntes partidárias da esquerda brasileira têm priorizado a aproximação com os movimentos sociais, ao mesmo tempo em que muitos militantes de movimentos sociais são, também, militantes partidários, o que faz com que se estabeleça uma relação extremamente dinâmica e, em vários momentos, também tensa, entre movimentos sociais e partidos. No caso particular do PT, sua relação histórica com os movimentos sociais é amplamente conhecida. Com efeito, o partido se construiu e cresceu no diálogo frequente com os segmentos organizados na sociedade, produto do próprio contexto político da década de 1980 - período em que este foi criado – apresentando características de um partido que se diferenciava da esquerda tradicional. Todavia, pesquisas recentes37 têm indicado, por exemplo, a existência de pelo menos duas avaliações diferenciadas dessa relação, atualmente, por parte dos movimentos sociais: uma que defende ter havido maior abertura democrática na relação entre o governo (PT) e as instâncias coletivas e outra argumenta que somente àquelas entidades/organizações em sintonia com o projeto político do governo têm espaços e financiamentos garantidos. Não consideramos, apesar disso, ser o dado de filiação ou não a partidos políticos suficiente para caracterizar a relação destes com os movimentos pesquisados. Principalmente porque a não filiação das lideranças, por si só, não significa ausência de influência da linha político-ideológica dos partidos na atuação dos movimentos sociais e também porque, além disso, a vinculação partidária da militância dos movimentos sociais nem sempre é publicamente explicitada. Ao nos remetermos às motivações dos dirigentes entrevistados para a participação e a construção do movimento urbano, nos foram apresentados distintos 37 Como exemplo de uma investigação local sobre o tema, podemos citar a pesquisa “O perfil ético- político dos Movimentos Sociais e das Organizações Não-Governamentais em Mossoró-RN”. Resultados publicados em: QUEIROZ, F.M de; RUSSO, G.H.A; RAMOS, S.R (orgs). Serviço Social na contra corrente: lutas, direitos e políticas sociais. Mossoró-RN: Edições UERN, 2010. 96 processos de inserção no campo da ação coletiva, nos induzindo a conceber o fenômeno da consciência como um movimento e não como algo dado. Com efeito, em meio a impasses e superações, a consciência vai amadurecendo e transitando por diversos momentos, o que atesta a não linearidade característica deste fenômeno: No decorrer da luta, umas vão desistindo, por seus motivos vão abandonando a luta, mas tem muitas que ficam... e outras que vão se chegando depois, pra se somar com a gente... (MLB 2). Podemos, assim, entender que o processo de construir-se sujeito político militante apresenta-se ceifado de contradições e movimentos nem um pouco retilíneos ou mecanicamente definidos. É por partirmos deste entendimento que nos posicionamos em desacordo com as conclusões expressas por Jacob Gorender (1999). O “seu” marxismo sem utopia situa a classe trabalhadora como sendo ontologicamente reformista, isto é, aos trabalhadores interessaria o recebimento de seus salários e o pagamento de suas contas, mas não uma revolução socialista. Por outro lado, também reconhecemos uma boa dose de exagero na afirmação de Lukács (2005), segundo a qual todo trabalhador é, em si mesmo, um marxista ortodoxo. No que diz respeito ao processo de consciência, corroboramos com o entendimento de Iasi (2011, p. 126) para quem “[...] os trabalhadores não são em si mesmos nem reformistas natos nem revolucionários por natureza” isto é, sendo a consciência política construída e reconstruída, não pode ser previamente categorizada como ontologicamente revolucionária ou, na mesma lógica, como ontologicamente reformista. Entender os mecanismos através dos quais os sujeitos explorados-dominados se constroem e se apresentam como sujeitos históricos conscientes da necessidade da ação coletiva e, principalmente, como se colocam em luta a partir disso, é fundamental para todos aqueles(as) que se ocupam das questões referentes à transformação da sociedade. Nossa pesquisa de campo indicou principalmente a necessidade como um elemento indispensável para viabilizar a construção coletiva, evidenciando que a busca por suprir as necessidades humanas, nas mais diversas dimensões da vida, 97 apresenta-se como uma das determinações fundamentalmente capazes de levar os indivíduos a se agruparem coletivamente para a luta política: Sou atingida pelas desapropriações que serão promovidas para a execução das obras de mobilidade para a copa 2014 (APAC). Pela minha vivência... eu morar na periferia, isso me faz sentir a necessidade de estar organizada, de tá construindo isso com a juventude... e também foi o compromisso com os jovens que são filhos da classe trabalhadora, que serão futuramente classe trabalhadora, que hoje têm diversas dificuldades dentro da sociedade... (LPJ 2). Por eu morar numa casa, mas eu ter a necessidade de garantir que ela fosse minha, eu precisei morar numa ocupação, em um barraco de taipa, porque aí eu tinha certeza que ia lutar e que quando a casa fosse conquistada eu ia parar de ter que pagar pra cuidar de uma casa que era de outra pessoa. Porque esse é o objetivo do aluguel: a gente pagar pra tomar conta de algo que não é nosso. Era pra ser o contrário. Se o proprietário não quer que ninguém deprede, ele pague a uma pessoa pra morar na casa dele (MLB 1). O motivo pelo surgimento do MLB se deu pela necessidade das famílias conquistarem uma moradia digna, já que por sua vez esse é um direito garantido pela constituição brasileira. Mas só que a gente não tem visto no dia-a-dia um esforço de nossos governantes pra que essa vontade política saia do papel. Então, a partir daí, o movimento surgiu né? E as articulações foram surgindo cada vez mais forte. Hoje é um movimento nacional que tem 12 anos de luta em todo o país. Temos trabalho em 14 estados do nosso país (MLB 2). Os estudos de Ramos (2002) consideram ainda, para além da necessidade, a consciência e a vontade como elementos indispensáveis para viabilizar a construção coletiva. A consciência, que projeta e constrói alternativas para tal objetivo, figura como elemento importante neste processo, respeitados aí os diversos momentos do processo de sua elaboração, vivido subjetivamente por cada indivíduo na trama de relações em que constrói sua concepção de mundo. A vontade destaca-se como outro elemento capaz de impulsionar a ação coletiva, embora obviamente não se trate de uma vontade desconectada das condições materiais concretas em que o indivíduo está inserido. Estes três elementos (necessidade, consciência e vontade) constituem, dentre outros, grandes impulsionadores da ação coletiva e do processo de consciência de classe, ainda que tais elementos reunidos não indiquem necessariamente e imediatamente a pronta mobilização para a ação coletiva. Finalmente, podemos dizer que os perfis e trajetórias das lideranças de movimentos sociais são bastante distintos, posto tratar-se de um perfil que vai socialmente e historicamente se modificando, inclusive variando de território para 98 território, ainda que datado de um mesmo tempo histórico. No esforço de analisar o perfil encontrado em Natal, compreendido em suas particularidades, mas também de nos apropriarmos de outros estudos que também caracterizam as lideranças dos bairros, identificamos um traço em comum fundamental, presente nos mais diferentes perfis que tivemos acesso: predomina, sem dúvidas, uma renda familiar baixa (em geral de até três salários mínimos) e, em larga escala, estes sujeitos estão precariamente inseridos no mundo do trabalho. Assim, é preciso ultrapassar a análise do perfil dos dirigentes em si mesmo para situar a ação política dos movimentos urbanos no contexto de relações mais amplas que constituem a sociedade capitalista38, particularmente, no âmbito das desigualdades e resistências expressas na Questão Social e suas manifestações, em múltiplas dimensões. Essas dimensões estão presentes no cotidiano dos movimentos sociais, condicionando-os e atribuindo-lhes particularidades ao seu modo de organização, mobilização e atuação. A ação política dos movimentos sociais e organizações populares somente pode ser desvendada em sua inserção na sociedade, ou seja, a caracterização e análise do perfil dos(as) dirigentes, em si mesmas, não permitem desvendar a lógica no interior da qual demandas, bandeiras de luta e posições e ações políticas ganham sentido. 3.4 Bandeiras de luta e frentes de atuação dos movimentos sociais em Natal Apreender a atuação política de movimentos como o MLB, a APAC e o Levante Popular da Juventude requer entendermos o momento em que estes são articulados e organizados, e a dinâmica das lutas que realizam a partir daí. Entender, portanto, em torno de quais pautas estes movimentos se encontram organizados na atualidade significa apreender um dos aspectos que conformam os seus projetos de ação, na medida em que estas pautas direcionam e sinalizam horizontes políticos para a atuação dos movimentos. Requer assim, entendê-los circunscritos em um contexto sócio-histórico determinado, com características mais 38 Toda a discussão que temos construído no presente trabalho acerca dos fundamentos teórico- analíticos para a compreensão dos movimentos sociais e em relação à questão urbana na dinâmica de reprodução capitalista, bem como a caracterização da cidade de Natal enquanto cenário na qual se materializam as lutas urbanas que estamos analisando pretendem cumprir este papel. 99 gerais, no caso, da realidade brasileira, e particularidades próprias à realidade potiguar e natalense. As relações de poder econômico e político-cultural estabelecidas em Natal não apenas reafirmam a existência e radicalidade da forma que têm assumido as desigualdades sócio-espaciais no âmbito desta cidade, mas também cedem lugar a um cenário de luta e resistência no qual a bandeira de luta pelo direito à cidade se destaca como representativa. Na realidade local, esta luta assume uma dimensão de centralidade na reivindicação pelo direito à moradia, conforme atesta a atuação do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), articulado em Natal desde abril de 200439, especialmente na região oeste da cidade, sinalizando a partir daí para novas dimensões na trajetória de luta e organização popular relativas à questão urbana. Pautar centralmente a questão da moradia em Natal configura-se como uma forma de reação às condições de moradia, ou mesmo à ausência total destas, objeto de denúncias dos movimentos locais, da qual é ilustrativa a ‘Carta de Esclarecimento à Luta’ divulgada pelo MLB, em abril de 2012: [...] No Rio Grande do Norte, temos hoje cerca de 130 mil famílias sem- teto, onde 70 mil só na grande Natal e na Capital dos Magos temos 30 mil famílias sem teto. Mesmo com essa realidade o governo do Estado esse ano deixou de construir 1.200 casas em Natal com o argumento de que não tinha terreno. Na verdade o governo do Estado não vem priorizando a construção de moradia, pois dinheiro para garantir a construção do Estádio Arena das Dunas não só teve recursos como empenhou vários bens do Estado, inclusive terrenos em áreas consideradas de classe média [...] Enquanto isso a prefeitura de Natal vem tratando o assunto sem compromisso, pois há 3 anos 350 famílias estão acampadas na Ocupação Anatália de Sousa Alves um terreno da Prefeitura e só dependemos de uma carta de anuência para o MLB dar inicio a construção de 750 unidades habitacionais, até a data de hoje nada foi feito [...] Temos um déficit de 30 mil famílias que corresponde hoje a cerca de 120 mil pessoas numa cidade de 900 mil habitantes. Falta uma política de habitação séria comprometida com o povo pobre de nossa cidade (MLB, 2012, s/p). O foco na questão da moradia posto pelas reivindicações e lutas urbanas não consiste em acaso. Afinal, de fato o universo da moradia precária – ou da ausência mesmo de moradia – figura como dimensão estratégica das condições de vida dos trabalhadores tomada como representativa da produção da cidade no capitalismo e 39 Nacionalmente, porém, o MLB surgiu em 1999, originalmente organizada na região Nordeste do país e hoje se encontra articulado em 13 (treze) estados brasileiros. 100 das especificidades do processo de acumulação, tal como expressam as distintas formas de provisão da moradia das camadas urbanas pauperizadas: casas inacabadas, insalubres, congestionadas, localizadas em favelas, em loteamentos ilegais, em áreas de risco geotécnico ou sujeitas a enchentes, ainda que seja bem verdade esta não se restringir somente à denominada periferia urbana, tendo em vista a moradia precária assumir outras localizações na cidade, a exemplo dos cortiços das áreas urbanas centrais. Aqui a gente chama que as favelas de Natal são cobertas, a gente não enxerga. A cidade tem 72 favelas, elas não aparecem, não são visíveis. Se chega em Recife, sobe um morro e você ver logo uma favela, no Rio de Janeiro a mesma coisa. Aqui em Natal.... favela do Cambuim, ninguém sabe onde fica, ela fica por trás do cemitério do Bom Pastor. A favela do Detran, só via quem passava de trem, quem passava disso não via a favela do Detran. A favela do Jacó, perto do hospital universitário, a gente não vê ela. E hoje não temos, uma coisa que travou, infelizmente a prefeitura não retomou... brigamos com Carlos Eduardo e conseguimos implantar o Conselho Municipal de Habitação, que agora a atual gestão fechou, não temos mais debates sobre isso (MLB 2). Referindo-se à realidade brasileira, Maricato (2003) chama a atenção para a dimensão da questão habitacional enquanto particularidade da questão urbana e ambiental. Para a autora, qualquer análise ainda que superficial das cidades brasileiras revela essa relação direta entre moradia pobre e degradação ambiental. Isto não quer dizer que a produção imobiliária privada ou que o Estado, ao promover a produção do espaço, não causem danos ao meio ambiente. Os exemplos de aterramento de mangues em todo o litoral do país para a construção de condomínios de veraneio e de áreas de lazer são fartos. A autora cita ainda as indefectíveis avenidas de fundo de vale com canalizações de córregos tão ao gosto dos prefeitos municipais e de certa engenharia “das empreiteiras”. Grande parte das áreas urbanas de proteção ambiental encontra-se ameaçada pela ocupação, com uso habitacional, por trabalhadores pauperizados, por absoluta falta de alternativas. As consequências de tal processo atingem toda a cidade, mas especialmente os trabalhadores pauperizados que encontram em áreas de proteção ambiental, espaços públicos não urbanizados e/ou protegidos, alternativa para abrigar-se com suas famílias. No processo de construção da luta pela garantia do direito à moradia, a necessidade de políticas públicas e serviços sociais básicos aparece como fundamental. Ora, o próprio entendimento de direito à moradia assinalado pela 101 Figura 02 – Mulheres do MLB protestam na prefeitura pela construção de creches nos bairros periféricos de Natal Fonte: Tribuna do Norte (2012). Figura 01 – Militantes do MLB promovem Marcha em Defesa da Moradia Digna e da Dignidade Humana Fonte: Tribuna do Norte (2011). legislação brasileira e nos tratados e pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário aparece como elemento fundamental. Nesse sentido, significa ter acesso não apenas a infraestrutura, a água, luz, esgoto, coleta de lixo, mas também à educação, à saúde, às possibilidades de trabalho e de renda. Com essa perspectiva, a ação política dos movimentos sociais urbanos em Natal, traduzida em bandeiras de luta e frentes de atuação, revela também limites e contradições no acesso da população às políticas sociais, uma vez que “[...] em Natal, a criação e garantia dos serviços e equipamentos urbanos não acontecem na mesma proporção em que o crescimento da cidade, nem com a mesma prioridade que essa cidade se prepara para a atividade turística” (OLIVEIRA; MOREIRA, 2010, p. 238). Numa realidade na qual a responsabilidade pela garantia de serviços e equipamentos urbanos é transferida, ora para instituições de caridade, ora para a própria classe trabalhadora por meio das denominadas “estratégias de sobrevivência", as experiências de organização e o direcionamento das reivindicações de muitas das lutas empreendidas na cidade aparecem, de forma evidente, como sendo produzidas a partir da precariedade e/ou inexistência de serviços básicos, a exemplo do serviço de creche nos bairros periféricos. Daí porque a própria relação entre Estado e movimentos sociais tem, por ponto de partida, a larga distância estabelecida entre o que é pedido e o que é dado (BARREIRA, 1991). 102 O Levante Popular da Juventude também se insere na luta pelo acesso a serviços e bens públicos e pela mobilidade urbana40, sendo esta uma das bandeiras de luta pautadas em sua atuação na cidade de Natal. Isto ficou evidente em ocasião da greve dos rodoviários, em maio de 2012, na qual o Levante Popular da Juventude manifestou apoio à ampliação e fortalecimento da luta dos trabalhadores rodoviários de Natal para que esta fosse também uma luta pelo transporte público, enquanto direito social, e contra o aumento no valor da passagem de ônibus: [...] E para o desfecho deste impasse, PASMEM, os empresários alegam que a solução é o aumento da passagem. Nós perguntamos então: “E O NOSSO DIREITO DE IR E VIR?”. Se “ir e vir” é um direito, então porque pagamos tarifas pela utilização de transporte? Se todos(as) nós já pagamos impostos, que deveriam ser revertidos em direitos, então, CADÊ O MEU DIREITO DE IR E VIR ASSEGURADO? Logo concluímos, que o transporte deveria ser PÚBLICO E GRATUITO! A sociedade precisa apoiar a luta e fazê-la crescer ainda mais. Se os trabalhadores estão reivindicando melhores salários, nós também temos motivos para reivindicar: tarifa absurda, insuficiência de linhas e veículos para atender aos usuários, veículos lotados, em péssimas condições, insegurança gerada devido aos assaltos, nossas vidas em risco devido as empresas colocarem um motorista para dirigir e ser cobrador, dentre outros abusos aos nossos direitos [...] (LPJ, 2012, s/p). A luta pelo direito ao transporte público e à mobilidade urbana está diretamente relacionada com o direito à cidade, sendo mesmo parte intrínseca deste, até porque outra forte marca da urbanização brasileira é a sua orientação pensando a cidade para o automóvel e não para o transporte público, como decorrência da construção de toda uma cultura e um universo simbólico relacionados à ideologia do automóvel, presente em cada poro da existência urbana (MARICATO, 2011). É o chamado modelo americano de urbanização, no qual a maior parte dos investimentos públicos destina-se ao alargamento de vias para o automóvel, bem como para subsidiar a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para a compra e venda de carros. A indústria automobilística segue, assim, tendo centralidade na preocupação dos governos por meio da prioridade atribuída à concessão de subsídios para seus produtos, ao mesmo tempo em que se propaga o argumento da inexistência de 40 É válido questionar aqui o conteúdo das discussões oficiais em torno da questão da mobilidade urbana, que enfatiza aspectos relacionados com o transporte individual e privado, a fluidez do transito para permitir o acesso a locais de lazer e de serviços e comércio por parte, sobretudo, de visitantes e turistas mobilizados pelos eventos esportivos ou de outra natureza que, espera-se, afluam nas cidades brasileiras. 103 recursos públicos para investimento em transporte coletivo, notadamente precarizado, superlotado e com áreas da cidade não atendidas. Com efeito, os orçamentos públicos – principalmente os municipais – privilegiam os investimentos relacionados ao automóvel ou sistema viário, também, devido ao forte apelo eleitoral que estas obras detêm; relaciona-se, evidentemente, com os financiamentos das campanhas eleitorais, com a visibilidade notável de seus produtos, “[...] mas também [tais obras viárias] se prestam muito ao jogo clientelista. A periferia desurbanizada é uma fonte inesgotável de dependência política que afirma a relação de clientela” (MARICATO, 2011, p. 182). A realidade de Natal não é de forma alguma distante e apartada de todos os impactos que vêm sendo operados no tocante aos direitos sociais no Brasil. Ao contrário, a análise da particularidade da cidade evidencia, nesse mesmo sentido, a realidade de políticas de proteção social que, sob o recorte neoliberal e processos contrarreformistas, são sobretudo paliativas e emergenciais, se configurando de acordo com uma lógica que privilegia o capital e o mercado, tanto no que diz respeito às políticas de habitação e infraestrutura, como em relação às demais políticas públicas. Neste contexto, a Saúde, por repetidas vezes, tem sido objeto das lutas e ações articuladas pelos movimentos urbanos em Natal, sendo apontada como uma das bandeiras de luta empreendidas pelo Levante Popular da Juventude no bairro de Felipe Camarão: Felipe Camarão é um bairro muito populoso da cidade de Natal. Há muitas promessas em época de campanha e essas melhorias prometidas não chegam ao bairro. A Saúde fica sucateada, a Educação fica sucateada [...] Estamos focando agora principalmente na questão da Saúde. Tinham três unidades de saúde aqui no bairro e uma foi fechada depois que se abriu o processo de investigação dos contratos de aluguel da prefeitura. A Saúde tem sido um dos principais problemas no bairro (LPJ 1). Percebemos, com isso, que a (re)produção das desigualdades urbanas têm desembocado também nos serviços públicos de saúde, não sendo possível menosprezar as inquietações acerca das grandes questões que envolveram e seguem envolvendo o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Seguridade Social. Por ser oriundo de reivindicações e lutas, o SUS segue condensando uma parcela importante das expectativas populares. 104 Na medida em que o projeto original (mesmo com limites, dada a correlação de forças presente no contexto dos anos 1980) foi seguidamente sendo restringido e amputado do rumo inicialmente proposto, novas expressões de luta têm se articulado em torno da pauta da Saúde. Movimentos e organizações populares de Natal têm se somado e se articulado no contraponto à lógica predominante, a qual, por um lado, destina à classe trabalhadora e aos moradores da periferia urbana da cidade uma saúde pública pobre, de urgência, com escassos recursos, com funcionários precarizados e temerosos (BRAVO; MENEZES, 2012) e, por outro, à uma minoria da população, em condições de acesso via mercado, destinam-se os serviço de melhor qualidade com equipamentos de ponta e instalações luxuosas, assegurados em grande medida graças à ação cotidiana de centenas de trabalhadores das periferias da cidade. Esta tem se configurado a tônica exigida pela conjuntura à ação dos movimentos urbanos, considerada a importância de tais serviços públicos e desafios postos para o acesso da população à atenção de saúde, em particular, no contexto dos bairros populares e periféricos. Ademais, se levamos em conta a precariedade da infraestrutura destes bairros, que incide sobre a proliferação de doenças e epidemias em determinados períodos do ano (geralmente nas estações chuvosas), a questão da saúde pública torna-se calamitosa, ao mesmo tempo em que revela uma das dimensões mais cruéis da vida nas cidades brasileiras: a desigualdade no acesso a serviços de saúde. Com efeito, a luta pelo direito à cidade, em Natal, tem sido construída referenciada principalmente em reivindicações em torno de bens e equipamentos coletivos necessários à reprodução da força de trabalho, com destaque para as demandas relativas à habitação, transporte e saúde pública. Todavia, no contexto da Copa 2014, novas demandas e consequentemente bandeiras de luta se articulam, especialmente, em contraste com a perspectiva de expropriação e de “renovação” urbana de áreas que se consubstancia em muitos casos na expulsão de moradores de bairros onde residem há décadas. As intervenções que vêm sendo implementadas nas cidades brasileiras, na preparação para a realização de megaeventos esportivos no país (a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016), têm sido exemplares da complexificação da questão urbana no Brasil, no atual momento histórico. Tais intervenções e obras previstas nos projetos dos citados megaeventos têm sido alvo de denúncias 105 constantes de violação aos direitos humanos. A edição número 462 do Jornal Brasil de Fato, publicado em janeiro de 2012, trouxe em uma de suas matérias título revelador do tensionamento vivido pelo país, que se encontra entre o ufanismo com os eventos esportivos e o apelo do ideal de desenvolvimento e a preservação de direitos humanos fundamentais: ‘Por trás dos investimentos, famílias atingidas e trabalhadores precarizados’. A matéria supracitada relata que diversos integrantes dos Comitês Populares da Copa, formados por estudantes, moradores de comunidades, movimentos e organizações populares, construíram um dossiê sobre os megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil, entregue no mês de dezembro de 2011 às prefeituras das 12 (doze) cidades-sede da copa, na Câmara dos Deputados, no Senado, em diversos ministérios e órgãos federais, além de entidades internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Unidos Americanos (OEA) e Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Segundo o relatório, organizado em diferentes eixos – moradia, trabalho, acesso à informação e participação, meio ambiente, mobilidade e segurança pública – pelo menos 170 mil pessoas serão expulsas de suas casas”, diz a matéria do Jornal Brasil de Fato. Como relatora especial da ONU para o direito à “moradia adequada”, Raquel Ronilk assegura que a questão dos megaeventos surge na Relatoria muito antes da questão da Copa e das Olimpíadas no Brasil. De fato, denúncias de violações ao direito à moradia adequada são recorrentes, nos contextos em que as cidades se preparam para esses eventos, a exemplo da olimpíada de Beijin, da copa do mundo da África do Sul, de Atenas e de vários outros lugares. No centro da questão da violação, que se repete agora no Brasil, em várias cidades, incluindo Natal, na preparação das cidades para a copa e para as olimpíadas, a violação ao direito à moradia tal como está estabelecido nos tratados, pactos e legislações nacionais e internacionais destaca-se como questão central. Nesse contexto, a atuação da APAC centra-se, sobretudo, no direito à moradia e no direito ao acesso à informação, participação e representação popular, especialmente, com relação a assuntos que lhes digam respeito e que afetem diretamente suas vidas.Com vistas à realização de grandes projetos urbanos para os jogos, o direito à moradia vem sendo sistematicamente violado via remoção em massa por parte do poder público. Estas remoções combinam “limpeza social”, assentadas na reatualização do 106 Figura 03 – Reunião de mobilização, organizada pelo Comitê Popular da Copa, na zona Oeste da cidade. Fonte: Tribuna do Norte (2011). Figura 04 - Ato realizado pelos atingidos(as) pelas obras da Copa em Natal contra as desapropriações e remoções. Fonte: Diário de Natal (2012). discurso higienista, agora acelerada em nome dos megaeventos esportivos – com propostas de realocações em locais onde inexiste cidade. Ora, a realocação em local totalmente exilado das possibilidades de cidade é uma séria violação aos direitos humanos, justamente porque a moradia adequada não é restritamente a casa em si. O elemento localização é fundamental e central nesse caso, porque permite ou, ao contrário, compromete a qualidade de vida, facilitando ou dificultando o acesso aos bens e serviços socialmente produzidos. Estes elementos compõem o direito à moradia e, portanto, quando não respeitados configura-se claramente uma violação a este direito. No âmbito dos projetos relacionados com os eventos esportivos, sequer as reivindicações de informação e de participação nesse processo estão sendo atendidas. Em Natal, o projeto inicial das obras previa a demolição de casas de 1.200 famílias. Com a pressão popular exercida via ação política da APAC, estão hoje programadas 429 desapropriações de imóveis residenciais, 119 imóveis comerciais e 41 terrenos particulares e públicos. Para a realização de tais obras de “mobilidade urbana” não houve qualquer debate público prévio. Ademais, órgãos de controle social legalmente constituídos, como o CONCIDADE e os Conselhos de Habitação e Transporte e Trânsito Urbano, sequer foram consultados, como demonstra a “nota à população” divulgada pelo Comitê Popular da Copa e pela APAC, bem como o depoimento dos moradores cujas casas serão atingidas pelas obras da Copa: 107 Sem qualquer debate público quanto à necessidade e importância desses projetos (especialmente os de mobilidade urbana) para a cidade e seus habitantes, como também uma total ausência de transparência quanto à questão das desapropriações que irão ocorrer para a viabilização das obras, estamos tomados de uma situação de grave angústia e desassossego. Num total desrespeito às leis, a Prefeitura de Natal e o Governo do Estado elaboraram os projetos referentes à COPA 2014 sem nenhuma participação da sociedade em sua discussão prévia; participação essa exigida pela legislação municipal, com amparo em normas federais, em especial o Estatuto da Cidade (COMITÊ POPULAR DA COPA; APAC, 2012, s/p). A prefeitura não tem a transparência e não tem dado resposta aos moradores. A gente imagina que o projeto da copa... a gente é favorável à copa, a gente quer a copa... favorável a melhoria do trânsito da cidade, à mobilidade.... mas a gente não quer que isso aconteça desapropriando mais de quatrocentos imóveis que somando dá mais de duas mil famílias que são desalojadas né? Se não houver redimensionamento da Prudente de Morais e da Salgado Filho.... o problema vai continuar existindo (Marcos Reinaldo, coordenador adjunto da APAC) 41 . O pior de tudo é que a gente não sabe pra onde vai, nem o que vai acontecer. Se essa casa vai ser sorteada, se vai, o que que a gente vai ganhar, ninguém sabe. E ninguém tem nada, só tem esse ranchinho pra morar. Aí, ficar sem ele, vamo pra onde? Vamo ficar no meio da rua com os troços na cabeça é? (Maria Luísa, moradora) 42 . Direito à informação e direito à participação não somente fazem parte do direito à moradia, de acordo com os tratados e acordos internacionais, como também é um direito que em sua amplitude ultrapassa a política habitacional e estende-se às outras políticas públicas. Quando se trata de uma intervenção no espaço onde se vive, os moradores daquele espaço têm antes de tudo o direito de serem informados com a devida antecedência e, mais do que isso, têm o direito a participar do processo de decisão das alternativas a essa remoção, pois sempre os projetos são passíveis de alterações. Assim, para remoções podem ser pelo menos, minimizadas, quando não evitadas totalmente. Garantir a informação e a participação das comunidades atingidas direta e indiretamente pelas obras, inclusive discutindo possibilidades de projetos alternativos, não é tão somente uma questão de opção e vontade política dos gestores públicos. Trata-se de evidente obrigação legal do ponto de vista dos direitos humanos. E nisto têm se pautado as denúncias da APAC, em Natal, como relata um de seus representantes: 41 Depoimento cedido ao Documentário “Copa 2014 em Natal: para quem?” produzido pelo Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) e UFRN. 42 Depoimento cedido ao Documentário “Copa 2014 em Natal: para quem?” produzido pelo Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) e UFRN. 108 A luta da APAC hoje é conseguir que essas pessoas que não vão conseguir se realocar com o dinheiro que vão receber, tenham uma situação confortável, mesmo não tendo hoje... uma situação que eles vivem hoje não é confortável pra mim, mas pra eles é uma situação confortável, e com o que eles vão receber eles não vão consegui uma situação daquela. Pra mim, o plano de realocação acontecer, a gente consegui realocar pessoas, legalizar fundiariamente a propriedade dessas pessoas é o que precisa... é o que a gente tem de principal desafio, é garantir que isso aconteça (APAC). Os movimentos urbanos de Natal são, desse modo, sujeitos coletivos que atuam na perspectiva de politização da questão urbana e de afirmação do direito à cidade, o entendendo, com base nas concepções do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) – articulação, criada nos idos da década de 1980, integrando grande variedade de sujeitos que se organizam em torno de carências vividas no espaço urbano ou que têm vinculações com essa temática - como: [...] a participação dos habitantes das cidades na condução dos seus destinos. Inclui o direito à terra, aos meios de subsistência, à moradia, à educação, à saúde, ao transporte público, à alimentação, ao trabalho, ao lazer, à informação. Inclui também o respeito às minorias, a pluralidade étnica, sexual e cultural e ao usufruto de um espaço culturalmente rico e diversificado, sem distinções de gênero, etnia, raça, linguagem e crença; Gestão democrática da Cidade, entendida como a forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades submetidas ao controle social e à participação da sociedade civil; Função social da Cidade e da Propriedade, como prevalência do interesse comum sobre o direito individual de propriedade. É o uso socialmente justo do espaço urbano para que os cidadãos se apropriem do território, democratizando seus espaços de poder, de produção e de cultura dentro dos parâmetros de justiça e da criação das condições ambientalmente sustentáveis (FNRU, 2012, p. 01). O sentido do direito à cidade no atual debate político da sociedade urbana brasileira, enquanto necessidade humana elementar, apresenta-se hoje totalmente diluído nas lutas por direitos sociais básicos para a classe trabalhadora e reflete os rumos da questão urbana no país e, por isso mesmo, abrange distintas bandeiras de luta históricas e envolve diversos sujeitos coletivos. Daí porque o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), na condição de membro do FNRU, defende a efetivação do direito à cidade por meio da garantia do: direito ao trabalho e à seguridade social pública; direito à moradia com condições dignas; direito à terra; cidade sem homofobia, racismo e sexismo; direitos sexuais e reprodutivos das mulheres; acessibilidade e direitos das pessoas com deficiência; direitos da pessoa idosa, da juventude, de crianças e adolescentes; direito à organização política e à não- criminalização dos movimentos sociais e de suas lideranças; direito à diversidade 109 humana; gestão democrática; e demais ações estratégicas que favoreçam a plena implementação da Política Nacional de Reforma Urbana (CFESS, 2010). Investigar as principais bandeiras de luta dos Movimentos Sociais Urbanos e Organizações Populares de Natal, na contemporaneidade, é, nessa perspectiva, uma expressiva possibilidade para apreendermos o sentido e a ideologia presente em suas reivindicações, bem como fomentarmos a reflexão acerca da natureza política das mesmas. Ora, para além do conteúdo imediato das bandeiras de luta dos movimentos sociais urbanos, consideramos que estas expressam a síntese das necessidades e interesses dos sujeitos que constroem o movimento popular, o que está diretamente relacionado com o lócus de sua atuação – o bairro e a cidade – e dão sustentação prática ao movimento, alimentando a sua ação política, na construção de suas lutas, alianças e estratégias de organização e mobilização. Do mesmo modo que Gramsci (2000a) afirmava ser a história de um partido a própria história da sociedade na qual este partido se insere, assim também o é no caso dos movimentos sociais. 110 Capítulo 3 O fazer político pelo direito à cidade na realidade local 111 4 O FAZER POLÍTICO PELO DIREITO À CIDADE NA REALIDADE LOCAL Neste capítulo evidenciamos a ação política dos movimentos urbanos que atuam em Natal na luta pelo reconhecimento e garantia do direito à cidade, apreendendo avanços e entraves em seus processos de organização e mobilização. A análise aqui tecida toma por base os depoimentos dos militantes entrevistados em nossa pesquisa de campo e, ao se deter na análise de movimentos urbanos e em suas estratégias de organização e mobilização em Natal – o sujeito e a ação privilegiados de nossa pesquisa – acompanha e se fundamenta em um amplo debate acerca das tendências postas à organização popular na contemporaneidade. Pretendemos, deste modo, identificar como o particular se articula com o geral e faz referência a este, no interior de uma totalidade historicamente construída. Para tanto, a problemática abordada neste capítulo circunscreve-se nos marcos da formação econômica, social e política do país, evidenciando alguns dos principais elementos de sua constituição histórica. 4.1 Se a gente se acovardar agora, a gente vai viver pelo resto da vida de joelhos... Estratégias de organização e mobilização Deteremos-nos aqui à análise das principais estratégias de mobilização, organização e luta dos movimentos estudados, circunscrevendo-as na reflexão teórico-política mais ampla acerca da relação entre consciência política, organização de massas e natureza dos processos de luta. Assim, para delinearmos reflexões em torno dos processos de organização e mobilização e das estratégias adotadas na ação política dos movimentos sociais em Natal, destacamos, dentre as elaborações marxistas clássicas, as contribuições de Rosa Luxemburgo, que enfatizam a ampla participação das massas no processo de transformação social. Na abordagem de Luxemburgo (1991; 2005), o fator espontaneidade assume um importante papel nos processos de luta, constituindo um dentre tantos fatores passiveis de desencadear a consciência de classe das massas, construída no cotidiano do movimento real. A imensa confiança depositada na capacidade de organização das massas aparece de forma explícita nas formulações desta autora. A Rosa vermelha do socialismo (LOUREIRO, 2005) ou a águia polonesa, como se referiu Lênin em 112 homenagem póstuma a Luxemburgo, defendia a inexistência de qualquer dicotomia entre a ação espontânea e a ação consciente. Ora, a autora acreditava residir o nascedouro da consciência na própria luta concreta, moldada e construída a partir da experiência das massas. Somente no processo de experimentar-se na ação, e não de maneira preliminar, podem ser forjadas as tarefas postas para a luta de classes, em determinado momento histórico e a melhor forma de organização para aquele contexto. Essa defesa fundamentava-se, primeiro, na concepção de Rosa Luxemburgo, para quem não são as organizações que desencadeiam o processo revolucionário, o qual requer a conjugação de uma complexa série de fatores econômicos, políticos e sociais; segundo, na sua compreensão, não há uma única forma de organização posta para a classe trabalhadora. Desse modo, as experiências vividas – as derrotas ainda mais do que as vitórias da própria classe – são determinantes para a passagem do elemento espontâneo ao elemento consciente, presente na ação política da classe trabalhadora, materializada e condensada nos mais diversos movimentos sociais, políticos e culturais circunscritos no campo popular. Implica, na concepção luxemburguiana, que a iniciativa de ruptura com a dominação-exploração capitalistas se inscreve no campo de luta das próprias massas e não nas decisões do partido e de sua vanguarda. A realização do socialismo seria, portanto, uma tarefa a exigir: [...] uma completa transformação do Estado e uma completa mudança nos fundamentos econômicos e sociais da sociedade [...] só a própria massa popular pode empreendê-las e realizá-las [...] A massa do proletariado é chamada não só para fixar claramente o objetivo e a orientação da revolução, mas também para que ela mesma, passo a passo, através da sua própria atividade, dê vida ao socialismo [grifos nossos] (ROSA LUXEMBURGO, 1991, p. 63). Às massas, organizadas e mobilizadas, cabe realizar as mudanças e transformações societárias. A ênfase, proclamada por Rosa Luxemburgo, na importância da experiência das massas na sua própria conscientização, não nos autoriza, contudo, a atribuir ao seu pensamento qualquer princípio anarquista. Para esta autora, não há uma rejeição à organização. Há uma concepção de partido, distinta daquela de Lênin. Para Luxemburgo, embora o partido não tenha o papel de desencadear a ação revolucionária, ele cumpre o papel de vanguarda, na medida 113 em que detêm a percepção do movimento de (re)produção capitalista e do lugar ocupado pela classe trabalhadora neste processo. No entender de Rosa Luxemburgo, o partido não pode em nenhuma ocasião substituir as massas; ele deve ser porta-voz de seus anseios, intérprete de suas vontades. A autora fortalece, nesse sentido, não apenas o debate acerca dos princípios partidários, mas principalmente a discussão em torno dos métodos organizativos para mobilizar as massas à participação e ao envolvimento com os processos de luta revolucionários, e é nesse sentido que nos remetemos às suas elaborações. No plano da política, é preciso considerar de modo especial àqueles elementos fundamentalmente constitutivos e norteadores da atuação cotidiana dos movimentos sociais, a exemplo da práxis, do projeto, da ideologia, da direção e organização43 (SCHERER-WARREN, 1987), abordadas numa perspectiva histórica na qual homens e mulheres são os sujeitos capazes de materializar as articulações políticas nas distintas esferas sociais. A práxis é entendida como a prática refletida, não-alienada, crítica, a intervenção prática consciente. Ao mesmo tempo em que supõe uma projeção anterior em termos de objetivos e métodos, da práxis também decorre a objetivação de uma nova situação, a criação de novas alternativas e possibilidades ou, se assim preferirmos designar, a materialização de projetos. A depender do solo histórico e das condições dele provenientes nas quais a práxis é desenvolvida, este campo de possibilidades pode ser ampliado ou reduzido. Contudo, importa distinguir as formas de práxis voltadas para a exploração da natureza – como é o caso do trabalho (base ontologicamente primária da práxis) – de formas de práxis baseadas nas relações entre sujeitos, que visam influir na ação de homens e mulheres (VÁZQUEZ, 1977), a exemplo da práxis educativa e da práxis política. É, sobretudo, a esta última que estamos nos referindo quando concebemos a práxis como um dos componentes dos movimentos sociais. 43 Chamamos atenção, contudo, para o risco de incorrermos em um engessamento da realidade ao tentarmos enquadrar a dinâmica dos movimentos sociais nestes quatro elementos citados. Afinal, não podendo ser nenhum destes componentes (práxis, projeto, ideologia, direção e organização) tomados isoladamente, também não podemos deixar de perceber o quanto estes elementos atuam em perfeita interseção um com o outro, sendo sempre um risco – muitas vezes até mesmo um equívoco – afirmar que determinado aspecto de um movimento social pode ser caracterizado como um elemento e não como outro. 114 Nessa lógica, a luta política para o enfrentamento das contradições e antagonismos inerentes a esta sociabilidade, impõe aos movimentos sociais a projeção do que se tem a pretensão de transformar, sob qual direção e por quais vias, afirmações contidas em seu Projeto. A própria construção de um Projeto no marco dos movimentos sociais está vincada especialmente no imperativo destes sujeitos coletivos afirmarem o que querem alterar na realidade, com base em necessidades e interesses. A experiência histórica nos tem demonstrado, aliás, que estes interesses estão imbricados e diretamente articulados com projetos de classe. Assim, este caráter de classe constitui seu núcleo fundamental. Entretanto, no contexto da sociedade do capital, aqueles projetos correspondentes aos interesses da classe trabalhadora têm diante de si uma realidade adversa que impacta sobre suas possibilidades e condições para efetivação. Quando se tratam de projetos que correspondem aos interesses da classe politicamente dominante não ocorre o mesmo. Neste sentido, o Projeto de um movimento social representa também um campo de tensões, lutas e disputas societárias. E mais: para os movimentos da classe trabalhadora, perspectiva com a qual trabalhamos no presente texto, estão postos múltiplos desafios. Tais desafios não invalidam a pertinência e viabilidade concreta destes movimentos, pois nas contradições da realidade também residem suas possibilidades históricas. Assim, compreender tanto a práxis como o projeto político de um movimento social implica, ademais, na apreensão da ideologia que conforma os valores e princípios que atribuem sentindo e direção ao movimento. Ora, a ideologia pode tanto ser construída no sentido de enfrentamento à ordem vigente, como também na perspectiva de sua legitimação, especialmente quando a situamos no âmbito da sociedade de classes. A ideologia e o projeto assumido pelo MLB e pelo Levante Popular da Juventude parecem-nos estar inscritos na ordem da primeira perspectiva aqui assinalada, como expressam depoimentos e documentos: Ideologicamente nós defendemos o socialismo, porque entendemos que é a única forma de regime econômico que daria condições para o povo pobre ter moradia, saúde, habitação, saneamento, escola e emprego, porque nós vivemos num regime onde a minoria é que domina a maioria, aqueles que 115 produzem, produzem tudo, a riqueza, e não têm nenhuma casa pra morar. Então, nós temos como identificação o socialismo (MLB 1). Enxergamos um mundo dividido entre aqueles que exploram, e as trabalhadoras e os trabalhadores que têm o fruto de seu trabalho roubado. Esse é o sistema capitalista-patriarcal-racista, que mundialmente estabelece as formas de organização da sociedade na sua forma imperialista [...] Aos trabalhadores, restaram somente as periferias das grandes cidades, as encostas de morro e as beiradas de rio, extensas jornadas de trabalho e salários miseráveis [...] (LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE, 2012, p. 01). As palavras de ordem sustentadas e defendidas pelos movimentos aqui pesquisados e os princípios com base nos quais se organizam, revelam o tom da ideologia44 afirmada em seus processos de organização e de mobilização, como bem ilustra o lema aclamado pelo MLB (“Lutar pela reforma urbana e pelo socialismo!”), assim como expressa a carta compromisso do Levante Popular da Juventude, produzida e socializada nacionalmente em ocasião do I Acampamento Nacional do movimento, realizado no Rio Grande do Sul, com a participação de 1.200 jovens de 17 (dezessete) estados brasileiros: [...] Nos comprometemos: com a luta pela construção de uma democracia popular, que socialize com qualidade as terras, a água, a energia, os meios de comunicação, o acesso à saúde, à educação, à moradia, ao transporte; com a luta pela soberania, porque os povos devem tomar seu país e sua história nas mãos, sem serem sujeitados pelo imperialismo ou outros poderosos. O desenvolvimento deve ser ambientalmente sustentável e estar voltado aos interesses do povo; com a prática permanente de solidariedade com todos os povos que sofrem e lutam, com atenção especial para nossos hermanos latino americanos, que carregam a mesma história de opressão e luta que nós [...] (LEVANTE POPULAR DA JUVENTUDE, 2012, p. 01). A tradição marxista já nos demonstrou que a burguesia, classe dominante por deter os meios de produção, finda também, por decorrência, dominando o conhecimento produzido e, com isso, difundindo suas idéias de tal forma que estas nos parecem universais e são reproduzidas no conjunto da sociedade. Contudo, este “amoldamento” à ideologia dominante não é algo dado. A ideologia contra- hegemônica tem sido construída pelos movimentos sociais da classe trabalhadora e representado um contraponto, sobretudo, quando expressa uma consciência de classe, semeada a partir da vivência de contradições particulares. 44 Aqui pode-se visualizar perfeitamente a observação que fizemos em nota anterior, pois a “luta pelo socialismo”, por exemplo, não é apenas parte da “ideologia” dos movimentos estudados, mas também parte de seu projeto, sua práxis, sua direção, etc. 116 Sob a ótica da luta social da classe trabalhadora, a ideologia se contrapõe às ideias, valores e projetos da classe dominante, que se apresentam principalmente como instrumentos para difundir as desigualdades como determinações naturais e ocultar/dissimular a dominação e a própria luta de classes. Nessa perspectiva, não se trata apenas de moradia, assim como não são somente melhores condições econômicas e sociais almejadas pelos movimentos analisados. O projeto destes movimentos (MLB e LPJ) inscreve-se dentre aqueles que visam “mudar o modelo de sociedade”, inclusive evidenciando em seus depoimentos uma perspectiva para além das reformas: As famílias são sabedoras, têm essa compreensão de que é importante lutar e mudar. Não reformar. Porque quando a gente reforma, tá dizendo que concorda com o que tem de ruim. Então, a gente prefere mudar, transformar, o velho pelo novo, e o novo é construir uma luta comunitária, uma luta organizada, uma luta pra frente (MLB 2). Não significa, da parte do MLB, nenhum estrito contraponto à luta por reformas, mas construir sua ação política tendo a clareza de que não se deve permanecer limitado a estas. Logicamente, o movimento percebe a importância da defesa de quaisquer melhorias na condição das massas, ainda que sejam mínimas. Sua ressalva é para a necessidade de se fazer a articulação com a luta anticapitalista e com a revolução proletária, conforme nos foi possível verificar: Há séculos que sucessivos governos em nosso país governam somente para as classes ricas. Nós lutamos pela reforma urbana e pelo socialismo porque acreditamos que o capitalismo tornou impossível a construção de cidades justas e democráticas por meio de uma simples reforma. Só o socialismo é capaz de garantir aos trabalhadores o direito humano de morar dignamente [...] aí nossas reivindicações podem parecer que ainda é pouco, como a busca de infraestrutura no bairro e contra o aumento do custo de vida, mas só que na verdade nós utilizamos estas reivindicações para fazer uma luta mais geral, uma luta que beneficie os interesses coletivos (MLB 2). Não temos dúvidas de que as reformas estruturais representam uma bandeira necessária ao proletariado em sua constituição como classe em si. A tarefa consiste em converter a revolução dentro da ordem, nos termos de Florestan Fernandes (2005), ou seja, o processo a partir do qual o proletariado se organiza ainda reivindicando os indicadores de transformação que são possíveis ao padrão de acumulação burguesa no Brasil, em revolução contra a ordem. 117 Dito de outra forma, o processo a partir do qual o proletariado percebe que a concretização daquelas tarefas – as chamadas reformas estruturais – depende da tomada revolucionária do poder. A respeito do referido movimento de constituição do proletariado em classe, no Brasil, face às críticas das quais o pensamento de Florestan Fernandes tem sido alvo constantemente por parte de setores da esquerda45, consideramos não há nada mais revestido de atualidade do que a resposta a estes setores encontrada na própria elaboração de Florestan: Os que repudiam tais tarefas históricas do proletariado por temor do oportunismo e do reformismo ignoram duas coisas. Primeiro, que sem uma maciça presença das massas destituídas e trabalhadoras na cena histórica, as possibilidades nacionalistas e democráticas da ordem burguesa não se libertam e, portanto, não podem ser mobilizadas na fase em transcurso de organização do proletariado em si. Segundo, que o envolvimento político das classes trabalhadoras e das massas populares no aprofundamento da revolução dentro da ordem possui consequências socializadoras de importância estratégica. A burguesia tem pouco que dar e cede a medo. O proletariado cresce com a consciência de que tem de tomar tudo com as próprias mãos e, a médio prazo, aprende que deve passar tão depressa quanto possível da condição de fiel da ‘democracia burguesa’ para a de fator de uma democracia da maioria, isto é, uma democracia popular ou operária (2005, p. 60-61). Ora, a própria classe trabalhadora vive no cotidiano de sua existência a miséria gerada pelo capitalismo dependente, expressa na concentração fundiária, na superexploração, na falta de acesso a direitos humanos e sociais básicos, dentre tantos outros aspectos. É partindo das contradições reais vivenciadas pela classe trabalhadora que se constrói uma plataforma de mudanças e bandeiras de luta. Identificamos, assim, dentre os movimentos pesquisados, duas tendências vinculadas a projetos políticos diferentes: enquanto o MLB e o Levante Popular da Juventude demonstram intenções de rompimento com o que está posto, apontando para a perspectiva de construção de uma nova sociabilidade, a APAC sinaliza estar muito mais próxima a uma ideologia da participação, pautada na lógica do associativismo, em que a sociedade precisa organizar-se para procurar os meios necessários à resolução dos seus problemas mais imediatos. Configura, portanto, o 45 Uma das críticas mais comuns que temos tido conhecimento nos debates com as forças de esquerda dos quais participamos quanto à atualidade do pensamento de Florestan Fernandes é a tese de que a revolução burguesa no Brasil já teria chegado ao seu término. Seja porque já contaríamos com suficiente desenvolvimento das forças produtivas, não cabendo mais tarefas em atraso, seja porque a dominação burguesa já teria consolidado sua forma mais acabada de democracia. 118 Figuras 05 e 06 – Intervenção Urbana da APAC nas casas que serão desapropriadas pelas obras da Copa. Fonte: Arquivos do APAC (2012). que José de Souza Martins (1973) denomina consciência ambígua, conformada no seio dessa sociabilidade. É ambígua porque embora se paute pela recusa de determinada situação ou, ao menos, de parte dela, não propõe rupturas radicais e, por vezes, embora se contraponha, consegue também a justificar, em geral com base em noções extraídas do senso comum. Mobilizam-se forças e ação política para negar a situação vivida, mas sem superar o plano da ordem estabelecida. Consideramos, assim, que a Associação dos Atingidos pelas obras da Copa possui uma ideologia e um projeto político críticos à atual lógica societária, mas não incorporam a perspectiva de superação desta ordem em sua proposta política. O conjunto dessas questões alicerça nossas reflexões e nos permite identificar os elementos centrais para a compreensão da ação política dos movimentos urbanos em Natal, em um processo no qual a mediação da ação política, com maior frequência, tem se construído de modo que são utilizadas como estratégias as reuniões e visitas de rua em rua, casa em casa. Tem sido comum a adoção de abaixo-assinados, manifestos ou mesmo atos públicos na busca do comprometimento dos políticos locais com programas e ações que venham atenuar ou mesmo resolver, em alguns casos, os problemas que os afetam: A gente fez um pacto, construiu um pacto para os candidatos [à prefeitura de Natal], certo? Esse pacto, ele prevê, dentre outras coisas, a garantia da não violação dos direitos humanos nesse contexto [da copa do mundo 119 2014]. E de todas as formas. Desde o trabalhador informal até a desapropriação. Esse pacto ele foi assinado pelo futuro prefeito, que prevê diversas coisas de garantia dos direitos, inclusive zero desapropriações, revisão total do projeto. Eu não vou dizer a você que eu ache que vai ser fácil, porque quando o novo gestor assumir ele vai ouvir ‘ó, você tem esse prazo aqui pra providenciar essa obra da copa’. Mas no primeiro momento ele se mostrou muito disposto já a sentar com a gente, pra gente sentar e conversar a respeito do que pode ser feito [...] Então, a ideia é que com essa primeira gestão, tendo em vista que é o primeiro momento, a gente consiga sentar e encaminhar, e dar prosseguimento ao que vem sendo feito pelo menos nessa parte de realocação das pessoas e de algumas áreas que podem diminuir as intervenções... é manter essa luta (APAC). Nos momentos em que se faz necessário grande número de pessoas envolvidas para viabilizar atividades e lutas, a APAC utiliza também instrumentos de comunicação de massas, a exemplo dos carros de som, e principalmente da comunicação verbal, dotada de uma capacidade de mobilização muito maior. Como afirmara Gramsci (2007, p. 67) “[...] a comunicação falada é o meio de difusão ideológica que tem uma rapidez, uma área de ação e uma simultaneidade emotiva enormemente mais amplas do que a comunicação escrita”. Assim sendo, de modo geral, nos depoimentos dos(as) militantes entrevistados(as) percebemos, especialmente, o diálogo e as conversas individuais com os(as) moradores como uma das estratégias mais presentes no cotidiano da organização e mobilização dos movimentos sociais e organizações populares em Natal. Fica explícito, dessa forma, que os movimentos vêm adotando, no cotidiano da organização política, o diálogo como expressão de um processo pedagógico para potencializar o desenvolvimento de uma consciência política contra-hegemônica. Daí a importância de situamos as estratégias dos movimentos sociais no contexto de luta pela hegemonia, questão central quando nos referimos ao processo de organização e mobilização popular. Significa, por um lado, o processo de empreender a crítica teórica e prática à dominação capitalista e, por outro lado, construir as possibilidades de alteração desta realidade. Para Gramsci (2001, 2000a, 2000b, 2001b e 2002), a construção de uma hegemonia das classes subalternas requer uma intensa “preparação ideológica das massas”, um trabalho de construção de uma nova concepção de mundo e, nessa direção, o exemplo assume a dimensão de estratégia de mobilização pedagógica na construção de uma contra-hegemonia, como evidenciam os depoimentos de lideranças entrevistadas: 120 Temos mobilizado muito pelo exemplo. Não é o discurso que diz se a prática é válida. É a prática que diz se o discurso é válido ou não. Quem mobiliza mesmo, de verdade, é muito mais a prática do que o discurso. O trabalho concreto pra mobilizar exige isso (LPJ 1). Tem uma companheira nossa que sempre diz ‘os nossos discursos eles podem até convencer, mas os nossos exemplos, estes sim arrastam’. Então se a gente for pra comunidade fazer o discurso bonito que eles têm que lutar, que eles têm que se organizar e na hora que esse momento chegar, a gente querer ficar em casa e mandar eles, não vão resolver. Então a gente tem que começar, participar do meio e ir até o fim [...] (MLB 2). Para o pensador italiano Antonio Gramsci, a organização e a luta política são pensadas na perspectiva de superação da sociedade de classes e da construção de outra sociabilidade radicalmente diferente. Assim, a reflexão sobre a organização política não pode prescindir da discussão sobre a divisão da sociedade em classes antagônicas46. Neste sentido, Gramsci refere-se à necessidade de organização da classe para a construção de uma nova hegemonia, entendida aqui como direção/domínio e consenso ideológico (mas não somente) exercido por uma classe sobre a sociedade. Para tanto, indica estratégias anticapitalistas com o objetivo de levar a classe trabalhadora a ascender ao poder político, a exemplo, da guerra de movimento e da guerra de posição47. A primeira constitui uma forma de enfrentamento direto com o poder do Estado, enquanto a segunda se caracteriza por conquistas contínuas de espaços de direção ideo-políticos. A construção da hegemonia é, assim, um processo pedagógico que se efetiva no próprio modo dos movimentos atuarem, utilizando uma pedagogia do convencimento: Hegemonia é um modo bem específico de poder. Mas não qualquer tipo de poder. É o poder de expressar, aprofundar, organizar e interpretar um querer coletivo. É um poder que se legitima pelo consentimento e não pela força. A hegemonia se contrapõe, então, ao poder de mandar, decretar, punir, premiar, decretar. Quem exerce a hegemonia é dirigente. Quem exerce a dominação é ditador ou algo da mesma ordem. Não se trata também de qualquer pequeno exercício de convencer ou obrigar. A 46 Com efeito, [...] governados e governantes, dirigidos e dirigentes existem realmente. Toda ciência e arte da política se baseiam nesse fato primordial, irredutível (em determinadas condições gerais) [...] a seguinte premissa é fundamental: queremos que governados e governantes existam sempre ou queremos criar condições para que a necessidade dessa divisão desapareça? Partiremos do princípio de que a perpétua divisão do gênero humano é inevitável ou acreditaremos que ela seja apenas um fato histórico que responde a determinadas condições? (GRAMSCI, 2005, p. 11-12). 47 Em alguns momentos, a exemplo de Lênin, Gramsci compara luta política e arte militar, mas reconhece que: “[...] a luta política é enormemente mais complexa” (2005, p. 68). 121 hegemonia é o processo de construção e afirmação de um modo de sentir, pensar, querer, agir em todas as dimensões da vida. É a construção de uma concepção de mundo pensada e exercitada. Tem, portanto, uma dimensão cultural e uma dimensão prática (SALES, 2002, p. 16). Dessa forma, a partir de determinada compreensão do processo de transformação social, Gramsci amplia, consideravelmente, a noção de política ao se preocupar com os elementos de preparação das condições ideológicas da práxis revolucionária, sem perder de vista a importância da articulação e complementaridade dos processos cultural e econômico, entendendo este último como determinante para a compreensão da realidade social e para sua transformação. Distingue duas formas de política: a grande política – ações que intencionam modificar ou preservar a ordem social – e a pequena política, ações vinculadas a questões parciais e cotidianas, como a política parlamentar. No complexo processo de passagem da pequena para a grande política ou ainda da consciência e da prática egoístico-passional para a ético-política se constitui a esfera da política em Gramsci (DURIGUETTO, 2007). O pensador italiano ressignifica, ainda, o conceito de sociedade civil, tornando o debate mais complexo. Em contraponto às posições que consideram a sociedade civil funcional ao projeto capitalista, a acepção gramsciana a concebe como a esfera em que as classes organizam e defendem seus interesses e disputam hegemonia. A sociedade civil passa a ser, portanto, “[...] palco de um pluralismo de organismos coletivos ditos ‘privados’ (associações e organizações, sindicatos, partidos, atividades culturais, meios de comunicação, etc), é a nova configuração da dinâmica social, na qual se precisava repensar a política” (DURIGUETTO, 2007, p. 55). Assim, Gramsci demarca uma diferença radical de posição com relação a acepções dominantes de sociedade civil e, consequentemente, defende a construção de projetos políticos a partir deste entendimento. Nessa direção de construção da hegemonia, a retórica das lideranças do MLB no que concerne às estratégias adotadas pelo movimento no seio da luta política inspiram e sugerem ainda ação imediata e confronto direto. Na trajetória particular deste movimento, estratégias como ocupação/acampamento foram sendo construídas como ações intrínsecas à sua atuação política, a partir da realização de 122 discussões periódicas nas comunidades sobre a situação daqueles que não possuem casas, seguido de levantamento das pessoas dispostas a integrar e realizar a ocupação, isto é, concordando em ocupar e acampar, literalmente, em alguma área da cidade como meio de pressionar e agilizar a conquista de casas, como expressa o fragmento a seguir de entrevista cedida por uma das lideranças do MLB: Isso aqui era um terreno público, que estava abandonado. Que o governo do Estado inclusive tinha o recurso pra construir 105 casas e perdeu esses recursos. Um absurdo nós termos hoje uma falta de moradia grande na cidade e dinheiro voltar para Brasília por incompetência do governo do Estado! Por isso que o MLB tomou a decisão de ocupar essa área, pra pressionar o governo do Estado e a prefeitura pra que aqui seja construído, futuramente, um conjunto habitacional. Hoje somos 200 famílias que entramos no terreno. A tendência nossa é aumentar, porque a comunidade vizinha que vive de aluguel, que vive em co-habitação, tá nos procurando pra entrar também nessa luta (MLB 1). O momento do acampamento tende a constituir a ocasião na qual as discussões políticas mais específicas das propostas do MLB são travadas. Os barracos de lona preta, moradia por um tempo incerto e provisório, são fixados no período da ocupação, juntamente com as bandeiras e simbologias do MLB, deixando espaço reservado para as assembleias do movimento, nas quais são debatidos os próximos passos a serem dados, incluindo as questões do acampamento, especialmente no que diz respeito à distribuição de tarefas. Afinal, a necessidade de organização do acampamento apresenta novas exigências e demandas internas para o movimento e para o processo de organização das famílias. Existe, assim, todo um conjunto de normas e disciplinas a serem seguidas, conforme identifica a pesquisa de Marques e Medeiros (2012): as chamadas regras de convivência, sendo parte da necessidade de auto-gestão do movimento, devem ser seguidas por todos(as) participantes da ocupação. Caso contrário, são acionadas sanções definidas previamente de forma coletiva e legitimadas pelo consenso da comunidade. Referindo-se às ocupações urbanas do MLB, a pesquisa supracitada destaca três formas de pena: a advertência; a perda do direito de voto nas assembleias do movimento e, nas situações mais graves e/ou reincidentes, há ainda a possibilidade do membro infrator ser expulso da comunidade. De acordo com o caráter de uma ou outra situação, a avaliação do caso e a adoção de seu conseqüente encaminhamento 123 Figura 07 – Ocupação em terreno abandonado realizada pelo MLB. Fonte: Arquivos do MLB (2012). Figura 08 – Assembleia realizada durante ocupação liderada pelo MLB. Fonte: Arquivos do MLB (2012). caberá ora à direção do movimento, ora à assembleia constituída pelo conjunto da comunidade ocupante. Durante o período do acampamento, a organização interna do MLB compreende o direito ao voto nas assembleias gerais por parte de todos os(as) ocupantes; a necessidade de contribuição financeira das famílias para a sustentabilidade material do movimento e suas ações; a proibição de roubo, passível de conduzir à expulsão do acampamento, assim como igualmente o é o caso de identificar-se ocorrências de agressão e violência contra as mulheres da ocupação. Para exemplificar e melhor caracterizar a estratégia em questão, o próprio MLB faz referência ao lugar e ao sentido dessas ações de ocupação para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), haja vista anteriormente este trabalho ser feito quase que exclusivamente pela militância deste movimento: Somos parecidos com o MST, que segue essa mesma linha, a luta deles é no campo e a gente na zona urbana (MLB 2). A relação entre a ação política do MST e do MLB, como sinalizado pelo dirigente deste último movimento, não se restringe apenas ao uso de uma estratégia comum, e isto fazemos questão de enfatizar. Trata-se, na realidade, de uma relação bem mais profunda, na medida em que constitui uma relação estrutural, entendida dessa forma porque em momento algum perdemos do horizonte a estreita vinculação campo e cidade. 124 Neste sentido, a reforma agrária – principal bandeira que move as reivindicações dos Sem-Terra – revela-se como uma dimensão da questão também urbana; quiçá seja a reforma agrária a principal questão urbana (SILVA, 1996), ou seja, componente fundamental da reforma urbana e da materialização do direito à cidade. Nessa perspectiva, a respeito da legitimidade da estratégia de ocupação, José Gomes da Silva, ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), assevera: As ocupações existem porque, no contexto social que vivenciamos, o ocupante procura por trabalhos em espaços vazios, abandonados, sem destinação, empurrado pela necessidade de fome, de trabalho, como imperativo de emergência. Assim, em razão de ser famélica esta ocupação, ela não pode ser punível. Ocupar terra para plantio [e para moradia] não é delito; delito é o estoque especulativo de terras. Merecem punição, de acordo, com a lei, os proprietários que mantém a terra ociosa, sem destinação social (SILVA, 1996, p. 02). Duas preocupações aparecem implícitas na nota supracitada: insistir na defesa das ações do movimento, reafirmando a legitimidade da estratégia de ocupação, e demarcar enfaticamente uma diferença radical entre ocupação e invasão. Esta preocupação em diferenciar bem estas duas noções decorre especialmente do fato de invasão ser tipificada no Código Penal como “esbulho possessório visando à obtenção de vantagens econômicas ou financeiras” e, não correspondendo, portanto, de forma alguma ao que fazem os movimentos sociais urbanos e rurais. Dada a imensa desigualdade sócio-espacial, geradora também de significativa quantidade de pessoas despejadas de seus territórios de moradia, não resta a estas famílias qualquer alternativa legal, a não ser a estratégia legítima de ocupação da terra para morar. Mas, neste percurso entre a ilegalidade e a legitimidade da ocupação, também novas formas e conteúdos de segregação sócio- espacial vão se consolidando, sob a marca de uma onda de larga estigmatização da pobreza urbana, via ampla disseminação da “cultura do medo” e conseqüente isolamento da elite em verdadeiros guetos de luxo. Nada mais do que um reforço à dualidade entre cidade dos ricos e cidade dos pobres, ou mesmo, entre cidade legal e cidade ilegal (BONDUKI, 2010), aprofundando as contradições e desdobramentos da questão social na atualidade, bem como a criminalização da pobreza com base na noção de “classe perigosa”. 125 Aqui, cabe atentar para o alerta de Ermínia Maricato (2011) ao ressaltar sobre a ilegalidade da propriedade da terra urbana não se referir somente aos pobres, haja vista serem também ilegais os loteamentos fechados – alguns bastante famosos – que se multiplicam nos arredores das grandes cidades, na proporção em que estes usufruem privadamente de áreas verdes e também vias fechadas de trânsito intramuros48. Outrossim, impera no cotidiano da atuação política dos movimentos sociais o largo quadro de dificuldades contemporâneas de organização e mobilização das massas, adensado em um cenário de ampliação do desemprego, precarização do trabalho e agravamento da pobreza. Por certo, reconhecemos que a realidade está prenhe de focos de resistência classista, com diversos sujeitos coletivos empreendendo lutas concretas em prol dos interesses das classes subalternas. Todavia, não podemos negar que as transformações ocorridas no mundo do trabalho e na dinâmica de produção capitalista, nas últimas décadas, operaram alterações substantivas no seio da classe trabalhadora e produziram um cenário de inúmeras dificuldades para a organização política crítica e combativa, como atestam os depoimentos dos(as) dirigentes dos movimentos sociais em Natal: Acho que o principal desafio é a pouca mobilização da juventude. É muito forte o pensamento de que os problemas devem ser resolvidos de cima, pelos outros [...] uma grande dificuldade é conseguir trazer os jovens para o movimento social. Muitos até apóiam, não criticam, mas não querem se envolver. Porque não é só uma questão dos jovens não quererem se mobilizar, é também porque é muito difícil mesmo pro jovem se envolver com a militância e dedicar seu tempo a isso, quando já tem que se desdobrar entre os estudos e entre o trabalho (LPJ 1). [...] o trabalho da APAC com o Comitê, de mobilização, é um trabalho de formiguinha. Apesar das pessoas terem consciência hoje (isso já devido o nosso trabalho), apesar das pessoas terem consciência dessa necessidade de participação e dos direitos, as pessoas são muito pacatas ainda. Acho que essa parte de mobilizar pras pessoas participarem é o mais difícil (APAC). É possível transformar essa sociedade. Agora, o povo é que é muito receoso, porque vê os acontecimentos mundiais e acha que isso não é possível na nossa cidade. Tivemos exemplo aí com a juventude quando a política da nossa cidade quis impor um aumento de passagem e o resultado foi esse. Pra transformar a sociedade, não há outro caminho, tem que ir por esse caminho, do enfrentamento; do debate, da discussão e do 48 Do ponto de vista legal, o parcelamento da terra nua é regido pela Lei Federal 6.766 de 1979 e não pela que rege os condomínios, a Lei 4.591 de 1964. 126 enfrentamento. Se a gente se acovardar agora, a gente vai viver pelo resto da vida de joelhos (MLB 1). Reaparecem, nos depoimentos dos dirigentes de movimentos e organizações populares de Natal, preocupações antigas e bastante caras aos movimentos urbanos no que diz respeito à participação, organização, mobilização e conscientização, conforme atestam os debates realizados nos Encontros de Movimentos Populares, sistematizados por Ana Maria Doimo: a) há muita dificuldade em mobilizar a população. É preciso descobrir meios para motivar à participação; b) há falta de líderes e os que existem têm muitos compromissos assumidos; c) a televisão é a maior rival; d) faltam recursos financeiros para o incremento de meios de divulgação e mobilização. Por outro lado, os meios de comunicação pouco apoio dão; e) a investida do poder público é muito grande e a maneira como ele se apresenta torna difícil entender se ele é adversário ou protetor; f) as pessoas querem resultado a curto prazo e não têm um objetivo maior para lutar; g) o povo não acredita na sua força e nem na política; h) é preciso integrar mais os movimentos de bairro e não ficar só a nível das reivindicações, mas promover o lazer e a cultura (teatro, cine-clube, etc) (1984, p. 37). Verificamos com isso que preocupações da década de 1980 permanecem na ordem do dia no que se refere à ação política dos movimentos populares de Natal no período recente. Entendemos que dois aspectos são especialmente centrais para engendrar e atualizar de modo permanente tais dificuldades de mobilização, a saber: o peso da formação sócio-histórica brasileira e, nos dizeres de Ivo Tonet (2009), as expressões socioculturais da crise capitalista na atualidade, que traz como uma de suas manifestações o alargamento da ideologia individualista. A interlocução com o pensamento social brasileiro nos permite assinalar, dentre os aspectos da formação do Brasil, alguns que merecem maior atenção quando se trata de articulá-los com a realidade atual dos movimentos sociais. A noção de desenvolvimento desigual e combinado, bem como a idéia de modernização conservadora, adotadas para explicar o processo de transição do capitalismo competitivo ao capitalismo monopolista se situam nessa direção, por serem conceitos que expressam o descompasso verificado entre o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social. Ora, na formação social e econômica do Brasil, a pobreza e a desigualdade crescem de forma relativa, na proporção em que ocorre a expansão das forças produtivas e a concentração do capital. 127 Outro elemento refere-se à marca da heteronomia e da dependência na formação social brasileira, a qual não apenas mantém e aprofunda as disparidades econômicas e sociais no país, como também engendra um modo particular de dominação política e de subsunção ao capital internacional. Por fim, um aspecto presente e de natureza duradoura na formação social brasileira, igualmente relevante para considerarmos em nossas análises, refere-se à incongruência entre as normas legais e as normas práticas. Explica-se este aspecto da nossa formação histórica pela acentuada especificidade do liberalismo no país em relação ao padrão europeu. Ao se construir ora com caráter de um liberalismo heróico no qual convergiam e mesmo se confundiam as aspirações da elite com os demais grupos sociais, ora com caráter de um liberalismo regressista, distante e apartado das pressões democráticas, como destaca Iamamoto (2010, p. 139), “[...] o liberalismo no Brasil não se constrói sobre a universalidade da figura de cidadão”. Ao contrário, no caso brasileiro, a cidadania se constrói sob o signo das relações de favor e de dependência, muitas vezes combinada com o assistencialismo e a repressão. Com efeito, marcas de nossa herança colonial se atualizam e se transformam ao mesmo tempo, se reapresentando sob novas condições históricas e a produzir novos elementos para pensarmos os processos político-organizativos contemporâneos. Nesse contexto, como assinala Iamamoto (Op. cit) o desafio é compreender o modo como o capital articula essa multiplicidade de relações, trazendo para as determinações do tempo presente a incorporação de outras tantas diferentes lógicas e relações que produziu no passado. Essas considerações parecem-nos imprescindíveis a qualquer abordagem teórico-metodológica coerente com a perspectiva de totalidade, pois, sem dúvidas, a particularidade do desenvolvimento brasileiro repercute, em diversas outras dimensões da realidade atual, mais ainda na forma como os movimentos sociais se organizam no país. Ademais, para além do exercício retrospecto do passado, reconhecendo as reedições reproduzidas nos tempos atuais, consideramos indispensável, da mesma forma, pensar as novas determinações que se apresentam neste contexto. Não nos surpreende, assim, os depoimentos das lideranças dos movimentos sociais em Natal a reiterar constantemente que “é muito forte o pensamento de que os problemas devem ser resolvidos de cima, pelos outros”; “as pessoas são muito 128 pacatas ainda” e, na mesma lógica, “o povo é que é muito receoso”, como transcrito em página precedente. Sabemos que o desenvolvimento capitalista brasileiro foi conduzido de forma elitista e anti-popular, marcado por apoios e negociações entre as classes dominantes, que, estrategicamente, antecipavam as reivindicações da classe trabalhadora ou, a depender da conjuntura, recorriam à repressão via Estado, como se verifica no caso da prática dos golpes de Estado. Importa, sob a ótica da classe dominante, pacificar a classe trabalhadora e evitar grandes pressões populares em direção a uma ruptura radical com a ordem vigente. Prova disso é que “[...] todas as opções concretas enfrentadas pelo Brasil, direta ou indiretamente ligadas à transição para o capitalismo (desde a independência política ao golpe de 1964, passando pela proclamação da República e pela Revolução de 1930), encontraram uma solução pelo alto” (COUTINHO, 1988, p. 106 – 107). Vale ressaltar que Carlos Nelson Coutinho (Op. cit) chama de “solução pelo alto” o fato de historicamente os rumos dos processos políticos no país serem resultado da conciliação entre as frações das classes economicamente dominantes com a exclusão forçada das forças populares, ao invés de serem resultado de movimentos verdadeiramente populares, o que não significa ausência de reivindicações, protestos e lutas das forças democráticas. Em linhas gerais, fica evidente na leitura do autor o quanto a noção de “revolução passiva” problematizada tanto por Florestan Fernandes quanto por Gramsci constitui pressuposto indispensável para a construção de uma “imagem do Brasil” (COUTINHO, 2013), isto é, de uma formulação não restrita à determinada questão específica da vida social do país. Se é verdade que nas elaborações de Gramsci encontramos apenas breves referências literais ao Brasil, também é inegável a contribuição ao entendimento da realidade brasileira fornecida pelas categorias teórico-analíticas com as quais o marxista italiano trabalha. Em Florestan Fernandes (2005), contudo, a “imagem do Brasil” aparece de forma ainda mais explícita e sob uma ótica fundamentalmente marxista e revolucionária. A rigor, sua obra articula passado – presente – futuro ao processo de apreensão da sociedade e da vida política brasileira, contribuindo para uma leitura acertada e atual do movimento do real em curso. Presumimos assim ser o seu pensamento uma bússola indispensável para todo aquele que, em uma perspectiva 129 marxista, opte por dedicar-se à compreensão e enfrentamento dos dilemas postos à revolução brasileira. Doravante, é praticamente consensual entre os diversos analistas da perspectiva histórico-dialética que as profundas transformações societárias em curso a partir da década de 1970, momento em que a crise capitalista irrompeu de forma mais acentuada, redesenharam amplamente o perfil do capitalismo contemporâneo. Tais transformações têm estreita conexão tanto com a materialidade da vida dos sujeitos quanto com a sua subjetividade (TONET, 2009), dimensões de profundo imbricamento entre elas. Ambas vêm sendo cada vez mais degradadas, como decorrência inevitável da reprodução do capital. No âmbito das necessidades materiais, as manifestações da crise atual do capital têm posto em evidência um imenso cortejo de negação de condições de vida dignas, dado o não acesso ou acesso extremamente precário a direitos sociais básicos e elementares, acompanhado de políticas públicas predominantemente emergenciais e focalizadas. O resultado disso é um quadro de desmobilização da organização dos(as) trabalhadores(as) e despolitização das políticas públicas, “[...] visto que não é necessária nenhuma reivindicação ou organização dos trabalhadores para ser ‘beneficiário’ da política social focalizada, mas sim ser e manter-se pobre ou miserável” (DURIGUETTO, 2009, p. 59). Ademais, em que pese a classe trabalhadora nunca ter sido uma classe homogênea, é inegável que as transformações societárias recentes comprometeram também o grau de unidade e de identidade no interior da classe. Com efeito, dentre outros mecanismos, a própria “[...] focalização divide os trabalhadores em diferentes categorias (miseráveis, pobres) e estimula a disputa no âmbito interno da classe trabalhadora para a entrada nos programas de transferência de renda” (DURIGUETTO, 2009, p. 59), dificultando sobremaneira o processo de mobilização e organização da classe trabalhadora. No tocante às manifestações da crise do capital no âmbito da subjetividade dos indivíduos, dimensão de necessário enfrentamento, o professor Ivo Tonet nos ajuda a elucidar o debate por meio da explicitação das expressões socioculturais que marcam a crise da sociabilidade capitalista atual, ao fazer referência à efemeridade e a perenidade; ao desmesurado aumento do fundamentalismo religioso e do salvacionismo; e ao individualismo exacerbado. Ora, muitas vezes as dificuldades dos movimentos para mobilizarem suas bases são atribuídas por suas 130 lideranças ao perfil que particulariza os sujeitos que estão na composição social do movimento, seja a juventude ou a terceira idade, como nos foi possível constatar: No contexto geral, a maioria das pessoas que vão ser atingidas [pelas obras da copa] são idosos, entre adultos e idosos. E pra você levar as pessoas pras ruas, é difícil. Não é fácil você tirar uma pessoa de 60 anos de casa. Graças a Deus, nas audiências públicas a gente vai. É meio que um trabalho de formiguinha, eu mesma já fui diversas vezes de porta em porta batendo ‘e aí, a audiência pública, tal dia, vamo lá, é interessante...’ Nas audiências públicas a gente sempre conseguiu lotar a casa. Nos atos, na rua, a gente não conseguiu muita projeção. Se de 449 desapropriados fossem um de cada casa já era 449 pessoas, mas a gente conseguia nos atos só umas 60 pessoas na rua (APAC). Entretanto, apesar disso e considerando tais elementos, pensamos ser importante situar as dificuldades de mobilização enfrentadas hoje pelos movimentos e organizações populares de Natal circunscritas à esfera do modo de ser e pensar, amplamente difundido, segundo o qual ao mesmo tempo em que parece nada existir de estável, também se tem a convicção de que esta sociabilidade atingiu um patamar insuperável. Diante da aparente ausência de soluções para o lastro de problemas cotidianos com os quais os indivíduos se deparam, “[...] o indivíduo, desconhecendo a lógica que levou a esse resultado [...] sente-se impotente (para compreender e para intervir e mudar) e desvalido. Sua reação é buscar soluções para além desse mundo, em poderes fora da realidade humana ou natural” (TONET, 2009, p. 119), o que tem provocado o desmesurado aumento do misticismo e da religiosidade mais primária. À lógica salvacionista como fator que contribui para a desmobilização, agrega-se a convicção individualista, em um evidente reforço às análises que advogam não serem viáveis as soluções coletivas e que, portanto, a solução dos problemas somente pode ser encontrada no plano individual. Nesta concepção, os sucessos ou fracassos na vida dependem dos próprios indivíduos, considerados isoladamente. Reeditam, assim, o liberalismo e atuam no sentido da verdadeira legitimação da barbárie. Além dos fatores já delineados, em nossas leituras de conjuntura, acrescentamos, ainda, novos elementos e determinantes que merecem ser considerados. Referimo-nos a elementos integrantes do contexto particular dos anos 2000, período marcado pela ascensão de um partido de esquerda ao governo brasileiro, imprimindo particularidades à atuação dos movimentos sociais nesse 131 período e, por decorrência, à sua capacidade de mobilização e de organização para as lutas. A partir da eleição de Luís Inácio Lula da Silva49, em 2002, havia uma expectativa no campo democrático-popular de ruptura com a diretiva burguesa que hegemonizava as decisões no âmbito do Estado, conduzindo o processo de contrarreforma. Afinal, tratava-se do “início de um governo de origem operária e popular, eleito, dentre outros elementos, com base na insatisfação com as conseqüências do projeto da contra-reforma [sic] no país, e que mobiliza a esperança de milhões de brasileiros” (BEHRING, 2003, p. 283). Não por acaso, a candidatura de Lula conta, então, com amplo apoio de vários movimentos sociais. Desta afirmação podemos apreender a historicidade na qual o fenômeno do lulismo está imerso, haja vista que desde o final dos anos 1980 a esquerda brasileira se organiza e se unifica centralmente em torno de um único projeto: a eleição de Lula para presidente do Brasil, expresso na meta-síntese “Lula lá”. Dados dos pleitos eleitorais de 2002 e 2006, analisados por Singer (2009), demonstram que o lulismo configura-se como expressão de uma camada social específica: eleitores de baixíssima renda ou, em outras palavras, o subproletariado50 brasileiro. Segundo Singer, a reeleição de Lula, no pleito de 2006, (Ibid), não constitui mera repetição do resultado do pleito eleitoral de 2002, na proporção em que este último representa um importante realinhamento político de estratos decisivos do eleitorado: o subproletariado, que até então se mantinha distante de Lula, adere em massa à sua candidatura, após o primeiro mandato, ao mesmo tempo em que a classe média, estudantes universitários(as) e intelectuais se afastam51. 49 Ex-sindicalista e co-fundador do PT, Lula assumiu a presidência do Brasil, por este partido, de 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. Tornou-se o primeiro presidente desde Getúlio Vargas a fazer o seu sucessor nas urnas e fez com que o PT se tornasse o primeiro partido desde a democratização a ficar no governo federal por três mandatos consecutivos. 50 “Subproletários são aqueles que oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais. A menos que organizado por movimentos como o MST, tende a ser politicamente constituído desde cima, como descobriu Marx a respeito dos camponeses da França em 1848. Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber a projeção de suas aspirações” (SINGER, Op. Cit, p. 98-99). 51 Na tese de Singer (Op. Cit), dessa forma, a eleição de 2006 é que teria sido decisiva. Ousamos supor, entretanto, que é possível tal realinhamento já vim se desenhando um tanto antes disso, principalmente nas camadas populares da região Nordeste. Possibilidade que mais tarde – em publicação recente – será reconhecida pelo próprio autor (Cf. SINGER, 2012). 132 Múltiplos fatores têm sido apontados, por diversos estudos, numa tentativa de explicar o porquê das preferências ideológicas de brasileiros e brasileiras, no período pós-redemocratização, serem marcadas por certo ‘conservadorismo popular’, no sentido da expectativa por um Estado suficientemente forte para diminuir a pobreza, sem ameaçar, todavia, a ordem estabelecida, como destaca Singer: Os eleitores mais pobres buscariam uma redução da desigualdade, da qual teriam consciência, por meio de uma intervenção direta do Estado, evitando movimentos sociais que pudessem desestabilizar a ordem. Para eleitores de menor renda, a clivagem entre esquerda e direita não estaria em ser contra ou a favor da redução da desigualdade e sim em como obtê-la. Identificada como opção que colocava a ordem em risco, a esquerda era preterida em favor de uma solução pelo alto, de uma autoridade já constituída que pudesse proteger os mais pobres sem ameaça de instabilidade. Esse seria o sentido da adesão intuitiva à direita (2009, p. 87- 88). Percebemos ser grande a legitimidade de Lula durante os seus governos, junto ao subproletariado, parcela da sociedade que a esquerda sempre teve particular dificuldade para organizar. Ademais, a eleição, em 2010, da ex-ministra Dilma Rousseff52 (PT) representou mais uma expressão da legitimidade do fenômeno do lulismo e da ideologização nele contida. No período de campanha eleitoral, foi possível notar que na medida em que o eleitorado adquiria a informação de que ela era “a candidata do Lula”, mais cresciam suas chances de vitória nas urnas, com base no apoio do subproletariado brasileiro, mesmo perfil do eleitorado de Lula; Parece-nos, aliás, contrariando muitas das expectativas primeiras, que a presidente Dilma Rousseff conseguiu manter viva a reprodução do lulismo em sua lógica, ideologização e popularidade, mesmo sem contar com os mesmos atributos carismáticos da figura de Lula, como demonstram os índices de popularidade e aprovação do governo Dilma, noticiados pela imprensa, estipulados em torno de 50%, no primeiro semestre de 201253. Também se verifica na realidade de Natal expressões da legitimidade dos governos Lula e Dilma: 52 Economista, filiada ao Partido dos Trabalhadores e eleita para presidente do Brasil no período de 2011 a 2015, sem nunca antes ter disputado uma eleição. 53 Disponível em: http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,EMI232968- 16418,00- POPULARIDADE+DE+DILMA+DEVE+RESISTIR+A+INFLAÇÃO+EM+ALTA.html. Acesso em: 15 de agosto de 2012. 133 O governo federal, se diga de passagem, mudou a política. Lula disse para nós: ‘eu posso até não ter resolvido todos os problemas de vocês, mas eu digo a vocês, nós conversamos’ (MLB 1). Apoiamos o Lula e apoiamos a Dilma. Entendemos que é uma etapa da luta, vai chegar o momento que vamos dizer: Lula não resolveu tudo, vamos votar na Dilma, mas ela também não vai resolver. Vai chegar o momento em que a gente tem de ter outro caminho. A gente votou num operário, não resolveu tudo, fez alguns paliativos, algumas reformas. Votamos na mulher que ele mandou. Etapas são importantes para a democracia, no nosso sistema democrático, mesmo sendo burguês [...] existe uma questão econômica por trás disso (MLB 2). Todavia, inexistem análises uníssonas a respeito. Ao contrário. A caracterização dos até então dez anos de governo do PT constitui objeto de debates e polêmicas constantes no seio da intelectualidade e da militância política. Identificamos pelo menos três grandes tendências que vêm abrigando análises acerca dos governos Lula e Dilma, as quais oscilam entre caracterizar estes governos como neoliberais e/ou de direita (quiçá centro-esquerda); como governos neodesenvolvimentistas ou ainda como governos marcados pelo denominado “reformismo fraco”. Isso para ficarmos apenas no campo das posições explicitadas por dentro da esquerda brasileira. Na análise de significativa parcela da esquerda, o governo seguiu não só mantendo e sustentando a lógica neoliberal, como, também, aprofundando muitos de seus aspectos, dada a radical mudança de direção do PT. Asseguram, desse modo, ter sido a continuidade ao modelo neoliberal uma opção feita pelo Partido dos Trabalhadores na medida em que este passou a assumir as reformas orientadas para o mercado, anteriormente combatidas pelo partido (GALVÂO, 2006). Para estes setores, a chegada do PT ao governo constitui, portanto, a ascensão de um governo supostamente de esquerda, notadamente atuando no sentido de implementação e avanço das políticas neoliberais e das contrarreformas do Estado. Em tais análises constitui tendência predominante atribuir ao governo petista a condição de inimigo principal da classe trabalhadora e/ou ao PT a condição de aliado do imperialismo e do grande capital, sem sombra de dúvidas, estes sim, os verdadeiros inimigos da classe. Por vezes, situa-se os governos Lula/Dilma como governos de direita a serem combatidos, afirmando ser constitutivo do modo petista de governar “[...] ações de extrema direita que fazem o governo FHC parecer de extrema esquerda e revolucionário” (GARCIA, 2013, s/p). 134 Entretanto, especialmente a partir do segundo mandato do governo Lula (2007-2010), ganha fôlego uma nova expressão teórica de análise do governo: a tese do neodesenvolvimentismo. Tal caracterização do governo: [...] supõe crescimento econômico, ampliação e formalização do emprego, intervenção do Estado, dentre outros aspectos que, pelo menos em tese, rechaçam medidas neoliberais [...] podemos afirmar que a era Lula é palco da conciliação de iniciativas aparentemente contraditórias: as diretrizes do receituário liberal e a pauta desenvolvimentista. Note-se que na primeira etapa do seu mandato foram realizadas as contrarreformas da previdência e da educação, concomitante ao aumento das taxas de juros; enquanto que no mesmo período era expandida a assistência social, o crédito ao consumidor, os empréstimos populares e os aumentos do salário mínimo (MOTA, 2010, p. 19-21). O governo do PT atenderia, assim, a interesses muito distintos, respondendo as reivindicações das classes subalternas e, ao mesmo tempo, assegurando as exigências das classes dominantes. A caracterização do governo petista como neodesenvolvimentista é, sem dúvidas, polêmica. A própria parcela da intelectualidade e da militância da esquerda brasileira que sustenta a tese em questão, parte do pressuposto que em comparação ao período de 1930 a 1980, há diversos limites e aspectos que diferenciam este primeiro momento do período atual (décadas de 2000 e de 2010). Na análise de Armando Boito Júnior (2012), essa política é o desenvolvimentismo possível para uma economia que não rompeu – e para um governo que não quer romper – com o modelo capitalista neoliberal. Apresenta, nesse sentido, um crescimento menor que o do velho desenvolvimentismo; uma menor capacidade de investimento do Estado; uma importância menor do mercado interno e do desenvolvimento da indústria e menor capacidade de distribuição do patrimônio e da renda. Note-se que a caracterização do governo como neodesenvolvimentista apresentada aqui não supõe de forma alguma qualquer ruptura ou superação do neoliberalismo. Sob esta ótica da análise, este permanece extremamente atual e condiciona os limites e desvantagens da política econômica e social atual frente à velha política desenvolvimentista, aliás, vivenciada pelo Brasil de modo bastante particular. Outros setores da esquerda têm chamado atenção para o equívoco de se estabelecer o neodesenvolvimentismo como expressão característica do governo 135 petista, embora existam diversos pontos de acordo com a análise realizada pelos setores que apostam nesta caracterização. Para este último campo teórico e político, constitui análise mais acertada a leitura do governo PT como sendo um reformismo fraco (Cf. SINGER, 2012) e, por isso mesmo, desmobilizador. A perspectiva em voga não nega a atualidade da polarização PT x PSDB (os dois principais partidos políticos que encontramos atualmente na cena política brasileira), inclusive a reconhecendo como fundamental no âmbito da luta de classes. Contudo, o conteúdo desta polarização já não é mais o mesmo há algum tempo. Para a perspectiva do governo petista como “reformismo fraco”, o fenômeno da legitimação destes governos na sociedade brasileira pode ser explicado, em síntese, porque na raiz da formação do lulismo encontram-se o discurso e a prática que unem a manutenção da estabilidade e a ação distributiva do Estado, articulando elementos de direita e de esquerda. Nessa lógica, ao incorporar pontos de vista conservadores, “[...] principalmente o de que a conquista da igualdade não requer um movimento de classe auto-organizado que rompa a ordem capitalista, como progressista [...] de que o Estado fortalecido tem o dever de proteger os mais pobres [...]” (SINGER, 2009, p. 102), Lula consegue adesão e legitimidade significativa entre o subproletariado, aliado a um crescente abandono do programa político original do Partido dos Trabalhadores (PT). Desse modo, o governo petista tem contado não apenas com o apoio da burguesia, mas também, de bases de apoio na classe média e em setores populares e, nesse processo, tem disposto da confiança e do apoio de parcela significativa dos movimentos sociais, colocando novas dificuldades para o cotidiano da mobilização popular. Disso deduzimos ser a análise e caracterização dos governos Lula e Dilma parte de um imenso debate em aberto, ao qual sinalizamos neste trabalho de forma ainda muito tímida. Mas se optamos por não deixar de minimamente esboçá-lo aqui, foi por entendermos que tais análises estão inscritas e diretamente vinculadas à ação política e atuação de importantes centrais sindicais, movimentos camponeses, movimentos populares por moradia e também – importante atentar – estão relacionadas com as posições que tomam imensas parcelas da classe trabalhadora, não organizada em movimentos, seja pelo voto ou por outras formas de manifestação. 136 No que diz respeito às dificuldades de mobilização sinalizadas pelas lideranças dos movimentos organizados em Natal, evidente que a própria dinâmica da sociabilidade do capital é determinante, muitas vezes, para a geração de processos de acomodação à ordem - amparados na apatia e no imobilismo - e entender esta dinâmica contribui para compreendermos o porquê da expressiva quantidade de sujeitos que não se inserem ou participam de algum espaço político e tampouco acreditam nas possibilidades da organização coletiva, atitudes extremamente difundidas pela lógica desta sociabilidade. Ao mesmo tempo, as contradições, produzidas no cotidiano das relações sociais, possibilitam que, ao elevarmos nosso nível de consciência, nos percebamos como sujeitos das alterações históricas. Nessa dialética, “[...] a acomodação do proletariado à lógica do capital não é a negação da luta de classes, mas uma das formas de sua manifestação” (IASI, 2007a, p. 114). À mobilização, entretanto, precede trabalho de base contínuo, pois embora aparentemente – dadas as suas péssimas condições de vida - possamos logo pensar que o morador vai se envolver em qualquer tipo de luta, visto não ter nada a perder, não é de modo tão mecânico e imediato que este processo se delineia. Predominantemente, é tão grande o seu nível de desilusão, medo e descrédito diante de todas as agruras vividas, que para ele parece indiferente qualquer ação. À medida que vai sendo chamado, ele vai se recusando e, certo dia, acaba indo a uma das reuniões ou alguma manifestação pública e acaba se envolvendo (SILVA, 1992), como ilustram bem os depoimentos a seguir: Nós saíamos panfletando e batendo de porta em porta, sem discriminar casa alguma, falando com todos, perguntando se moravam de aluguel, chamando para reunião. A grande maioria das pessoas ficavam desconfiadas, achando que era algum tipo de golpe, e outras tinham medo ou até discordavam da ocupação. Íamos preparados para argumentar e convencer essas pessoas e, na maioria dos casos, conseguíamos (MLB 1). A primeira reunião que fizemos [na origem do movimento] contou apenas seis pessoas. Explicávamos sobre a necessidade de organizar a ocupação, falávamos da experiência do MLB em outros estados e todos saíam com o compromisso de trazer mais pessoas nas próximas reuniões. Em pouco tempo, tivemos que conseguir uma sala numa escola, porque já não cabia mais tanta gente onde fazíamos a reunião. Depois, a gente viu que várias pessoas tavam vindo (MLB 2). Logo, para mobilizar para as lutas, o movimento necessita que seus militantes estejam cotidianamente trabalhando junto às bases e mostrando aos sujeitos os 137 desafios e perspectivas das lutas. Trabalho de base, compreendido aqui como o desafio de despertar nos indivíduos o encanto pelo movimento político, com esperança na organização coletiva e na possibilidade de construção de ações políticas democráticas: [...] nós temos um trabalho de ir até os bairros mais carentes né? Nós visitamos as famílias, fazemos o levantamento de quem mora em área de risco, casa de parente, de aluguel.... então nós convidamos essas famílias pra participar das reuniões do MLB. A partir dessas reuniões, a gente começa a expor pra elas que não é justo que poucas pessoas tenham tanto durante uma vida e tantas tenham tão pouco (MLB 2). A gente primeiro tem que compreender que essa juventude, ela estuda, trabalha, e tem toda uma vida privada que não a deixa estar nos espaços organizativos políticos. Então, o que é que a gente tenta fazer pra que essa juventude sinta um gozo né, sinta uma vontade de querer tá em algum espaço, né? Primeiro, acho que uma característica importante que o Levante vem trazendo é a animação. E aí, pra mobilizar a juventude, a gente às vezes traz pautas que não parecem ser importantes pra alguns setores políticos, que às vezes é o simples fato de mobilizar a juventude pra tirar o lixo do bairro, da rua... e aí se isso mobiliza, é uma estratégia importante pra gente pautar outras coisas, como a saúde, a educação... pra tá depois pautando lutas concretas e massivas (LPJ 2). Percebemos, a partir dos depoimentos das lideranças entrevistadas, ser o trabalho de base visualizado pelos movimentos sociais como uma das melhores formas de comunicar às pessoas o projeto político e a concepção de mundo que orienta a ação do movimento. Tomado concretamente, o trabalho de base assume diferentes formas, a depender do setor ou segmento da sociedade com o qual o movimento está lidando, mas em todos os casos pressupõe a necessidade de traçar pontes de diálogo e conversação entre o movimento e àqueles sujeitos que potencialmente constituem a sua base. Fundamental para o processo de mobilização popular, o trabalho de base revela-se também como uma estratégia importante para a luta política, em que pesem as diferentes perspectivas e métodos a partir dos quais pode vir a ser materializado: Um dos jeitos é quando o povo tem que descobrir, com a ajuda do formador, o que ele precisa fazer e combinar como deve ser feito [...] Só assim ele se sentirá como sujeito do processo, da luta, e assumirá as consequências de suas decisões [...] Outro jeito é quando o formador passa a dizer o que e como o povo deve fazer. Não basta apenas contar ou relatar o que foi decidido. Se o povo se sentir mandado não lutará de forma apaixonada, não se sentirá parte interessada, e colocará a culpa nos outros quando algo sair errado (PELOSO, 2009, p. 47). 138 Trabalho popular que possui caráter educativo, revelando-se fundamental no processo de sensibilização para as lutas, como ressalta PELOSO (2009, p. 49): “Quando se fala que em um lugar tem trabalho de base se está dizendo que ali há o surgimento de novos militantes, à altura, para dirigir uma parte, um setor ou uma luta dos trabalhadores”. Desse modo evidencia-se nitidamente outra dimensão presente no trabalho de base: seu caráter formador de quadros para os movimentos. Afinal, para que os movimentos não percam sua capacidade de mobilização para as lutas, a formação política de seus militantes revela-se fundamental. Compreendemos formação política como um processo no qual o indivíduo se percebe como ser histórico capaz de intervir na realidade. Entende-se por formação política a apropriação de conhecimentos teóricos e da prática política que instrumentalizem o sujeito para a análise da realidade e para a elaboração de alternativas visando sua contestação e alteração. Portanto, a formação política constitui um aspecto complementar e indissociável do exercício da militância, justamente por ser indispensável à luta política. O papel da formação no processo de construção da consciência é demonstrado pelo fato da formação significar um momento teórico da prática política, que consiste na socialização da teoria acumulada, relacionando-a com um contexto concreto e, desse modo, incorporando como um novo horizonte para futuras ações do movimento: A formação política é muito importante pra gente porque sem formação a gente não consegue se organizar. A gente tem que saber o porquê tá lutando.... ter uma mínima compreensão do que tá acontecendo no Brasil (LPJ 2). O estudo da teoria e a formação política são responsáveis pelo conteúdo dado às reivindicações dos movimentos, bem como por orientar as táticas e estratégias a serem adotadas. Quando a formação política encontra-se fragilizada, por conseguinte, as ações perdem a radicalidade e seu potencial de intervir qualitativamente na realidade; um aspecto não se dissocia do outro. Ao contrário, trata-se de uma relação intrínseca e direta. 139 Certamente, por mais profunda que seja a formação política, ela é incapaz de gerar, por si mesma, a ação. Na realidade, a formação política acontece, sobretudo, na prática concreta, na ação política, na práxis. Contudo, a mediação da prática concreta pela teoria reveste-se de fundamental importância. Caso contrário, não teremos nada além de um ativismo inconsequente e estéril, alimentando intervenções políticas com base na “boa vontade” e na espontaneidade. Em síntese, apreende-se, no tocante ao cotidiano da ação política dos movimentos e organizações populares de Natal, que dentre as estratégias tomadas pelos movimentos pesquisados, organizados na cidade, no contexto da luta pela hegemonia, é comum a adoção de abaixo-assinados, manifestos ou mesmo atos públicos e, com maior frequência, são utilizadas como estratégia o diálogo e a comunicação verbal e, por vezes, instrumentos de comunicação de massas. Ao mesmo tempo, a ação política destes movimentos também inspiram e sugerem ação imediata e confronto direto, com destaque para as estratégias de ocupação/acampamento. Tais formas de atuação, compreendidas como parte do trabalho de base realizado por estes movimentos, inscrevem-se como expressões diversas do processo pedagógico de sensibilização e desenvolvimento de uma consciência política contra-hegemônica. Todavia, deparam-se estes movimentos com um largo quadro de dificuldades contemporâneas de organização e mobilização das massas, adensado em um cenário de ampliação do desemprego, precarização do trabalho e agravamento da pobreza, pois não podemos negar que as transformações ocorridas no mundo do trabalho e na dinâmica de produção capitalista, nas últimas décadas, operaram alterações substantivas no seio da classe trabalhadora e produziram um cenário de inúmeras dificuldades para a organização política. 4.2 Para o indivíduo sozinho é mais difícil, mas de forma coletiva fica mais fácil... Avanços e entraves no cotidiano das lutas Os avanços e entraves nas lutas dos movimentos sociais em Natal são analisados nesta seção à luz das formulações teóricas de autores clássicos da tradição marxista, privilegiando a discussão a partir das contribuições leninistas sobre a teoria da organização. Contribuições estas que trazem imbricadas em si as 140 necessidades expressas pela luta de classes, no contexto em que este autor exerceu, ao mesmo tempo, a atividade de pensador e militante, teórico e dirigente político. Não obstante, discutir os processos de transformação societária e a concepção de revolução nessa perspectiva contribui para apreendermos melhor o movimento político das massas em seus avanços e recuos, dimensão importante do nosso objeto de estudo. Ora, tal como aprendemos com Lênin, uma revolução é feita por uma série de batalhas. Perceber a revolução como uma série de batalhas constitui um evidente contraponto à noção ingênua de revolução como um ‘ato único’, ou uma ‘única batalha’, facilmente desenvolvida e sem grandes contratempos. Em Lênin, a revolução pressupõe uma nova concepção de história, capaz de percebê-la como um processo complexo e contraditório, jamais linear ou passível de se realizar somente em condições totalmente favoráveis (LENIN, 1961; 1979). Na leitura de Lênin, encontra-se também a ideia da vanguarda do partido na condução do movimento político das massas. Na ótica leninista, cabe ao partido de vanguarda fornecer em cada etapa uma palavra de ordem adaptada à situação objetiva e ainda reconhecer o momento oportuno para a insurreição. Todavia, isto não representa negação da dimensão política presente na prática dos movimentos sociais, dimensão amplamente reconhecida pelo autor. Aliás, por diversas vezes, Lênin admite que a revolução depende, em primeiro lugar, da classe e não do partido. Como podemos verificar em sua Carta ao Comitê Central do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR): “[...] para ter êxito, a insurreição deve se apoiar não numa conjura, não num partido, mas na classe avançada. Isso em primeiro lugar. A insurreição deve se apoiar no ascenso revolucionário do povo [...]” (LÊNIN, 1980, p. 308). Tal afirmação é feita por Lênin em um contexto de insurreição, não podendo, nesse sentido, ser descontextualizada e interpretada desconsiderando as determinações histórico-conjunturais em que foi forjada. Caso contrário, poderíamos incorrer em um deslize autonomista que não corresponde ao pensamento de Lênin. Ora, para o autor, o partido político é condição e instrumento sem o qual não há revolução; é a partir dele que as massas articulam seu projeto de libertação para avançar. Nesta acepção, uma revolução política constitui também e, sobretudo, uma revolução social, uma mudança na situação das classes que compõem a sociedade, 141 especialmente porque é síntese de múltiplas contradições acumuladas durante um longo período histórico. Traduz o fim de uma superestrutura que já não mais corresponde às relações de produção estabelecidas. A revolução – expressa Lênin de modo contundente, em muitos momentos – por isso mesmo não pode nem ser ‘provocada por encomenda’, tampouco ser indefinidamente protelada54. Do mesmo modo, a ocorrência da revolução proletária não representa de forma alguma uma verdade dada, pré-determinada e inquestionável. Ao contrário, Lênin sempre se preocupa em alertar sobre a influência de diversos outros elementos da conjuntura social e política – para além do esgotamento das condições do desenvolvimento econômico e social face à superestrutura vigente. Elementos como a própria força e o nível de consciência e organização do proletariado cumprem papel importante no desencadeamento dos processos revolucionários, na concepção do autor. Contudo, a luta estabelecida entre os interesses do capital e do trabalho, [...] antes de ser sentida por ambos os lados, percebida, avaliada, compreendida, confessada e proclamada abertamente, manifesta-se previamente apenas por conflitos parciais e momentâneos, por episódios subversivos [...] As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em trabalhadores. A situação do capital cria, para essa massa, uma situação comum, de interesses comuns. Essa massa, pois, é já frente ao capital uma classe, mas não o é para si mesma. Os interesses que defendem se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política (MARX, 1982, p. 117-119). Sabemos que incidir na luta de classes em favor dos interesses do trabalho requer capacidade de conquistas e vitórias, mas também, muitas vezes, os movimentos se defrontam com derrotas e entraves. Historicamente as reivindicações do movimento popular - ao proclamarem abertamente sua luta - têm como primeiro 54 Não por acaso, o Prefácio de Marx à Contribuição à crítica da Economia Política é bastante reforçado por Lênin: “[...] na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual [...] Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura” (MARX, 2008, p. 45). 142 interlocutor as estruturas governamentais, na condição de formuladoras e implementadoras de políticas públicas, sendo muitos os dilemas e desafios que permeiam essa interlocução com o poder público, como bem expressam os depoimentos dos sujeitos de nossa pesquisa: Sem organização, sem luta concreta, sem massificar, as políticas públicas (principalmente dentro dos bairros de periferia) elas não serão trazidas pra população. A população marginalizada, pobre, ela só tem direito, se ela buscar esse direito. Não tem como você ter um posto de saúde sem material básico de trabalho, sem ter um profissional... a política pública ela não vem de graça, de jeito nenhum! Então, se a gente não se organizar ela não vai vim da forma que nós queremos (LPJ 2). Eles [o poder público] não esperavam que a gente se articulasse tanto. A gente teve uma relação deles nos receberem num primeiro momento muito bem, (com caras e bocas, mas receberem) e quando a gente efetivamente começou a encher o saco, a cobrar esse é meu direito, eu tenho esse direito, a gente começou a ser extremamente maltratado, de ter audiência pública da gente ter chegado e ter voltado sem ter podido dizer nada, tendo que fazer confusão pra poder apresentar as outras possibilidades. A relação com a atual gestão é uma relação muito difícil [...] a gente tem 1 ano de APAC e 1 ano e meio do Comitê em Natal e a prefeita nunca recebeu a gente. Sempre é um secretário adjunto, um assessor, um num sei o quê.... (APAC). Talvez a relação estabelecida com o Estado sempre tenha variado, dentre outros fatores, em função dos objetivos estratégicos dos próprios movimentos (GOHN, 2007) e das condições em que operam os processos de negociação, da correlação de forças, dentre outros aspectos. Indubitavelmente relaciona-se também às diferentes configurações assumidas pelo Estado no devir histórico, donde decorre somente ser possível entender o Estado – transvertido de poder público – pelas suas interdependências, em especial as que mantêm com a sociedade, haja vista esta ser o seu principal oposto, mas também principal termo de complementação (IANNI, 1986): O movimento encara o diálogo com os órgãos públicos como importante por vários motivos: em primeiro lugar, porque as famílias não possuem recursos para a construção das casas pretendidas, em segundo lugar porque o governo administra o que de fato pertence ao povo, os recursos advindos dos impostos, e, em terceiro lugar, os mecanismos desenvolvidos pelo MLB qualificam o debate. Porque se antes o déficit habitacional e as reivindicações populares eram resolvidas com muitas promessas e entrega de algumas casas, em situações muito específicas, funcionando mais como ‘um cala a boca’, hoje em dia o uso do mecanismo de diálogo e intermediação de conflitos junto aos órgãos públicos promove uma maior participação dos movimentos nas decisões (MLB 1). 143 O processo de diálogo com o poder público nem sempre funciona, diante da necessidade das famílias, resultando, muitas vezes, num processo de morosidade excessiva dos agentes públicos, e uma das consequências é a atuação mais forte do movimento; passeatas, ocupação de prefeituras, organização de barricadas e bloqueio de vias, reuniões, entre outras formas de reivindicação (MLB 2). Daí a necessidade de superação dialética de uma concepção restrita de Estado e a formulação de novo conceito capaz de contemplar as exigências postas pelo movimento do real, como nos indica Coutinho (1987). Consideramos que a noção de Estado Ampliado cunhada por Gramsci nos permite uma análise da dinâmica do real na qual se articula economia (domínio crescente do capital) e política (espaço legítimo de luta). Exatamente por isso “[…] cuando hay oposición entre Estado y sociedad civil se trata más de una oposición entre proyectos e interesses organizados disímiles y no de esferas o âmbitos de vida de la sociedad – la sociedad civil no es una esfera orgánicamente diferenciada del Estado [...]” (OLIVER, 2009, p. 103), afinal, sob esta ótica, ambas são um espaço social organicamente integrado. Em que pesem as tensas relações com o poder público, a Associação dos Atingidos pelas obras da copa, na visão da liderança entrevistada, tem, efetivamente, uma história muito mais marcada por conquistas do que por não conquistas, quais sejam: a conscientização, a redução das desapropriações, a mudança do projeto original de mobilidade urbana e a possibilidade de realocação das pessoas de áreas de interesse social. Como destaca uma das lideranças entrevistada: [...] além dessa conscientização, a gente primeiro conseguiu diminuir as desapropriações de 600 pra 449 e hoje, não oficialmente, 264, porque tem uma mudança proposta no projeto [...] a gente elencou assim possibilidades e começou a bater nessas possibilidades nas secretarias e sempre a gente levando porta na cara, “não tem condições de mudar o projeto, o projeto não é discutível, não é discutível”.... e de repente a gente recebe, numa segunda-feira, no Diário de Natal, “Prefeitura municipal diz que vai mudar o projeto de mobilidade diminuindo as desapropriações em 200”. Duzentas desapropriações a menos! E mesmo não sendo oficial, mesmo a gente não tendo acesso ao projeto, isso é uma vitória. Você chegar pra’quela pessoa que não tá mais dormindo há 2 anos e dizer “olha, sua casa não vai mais sair” é uma vitória (APAC). Sobretudo a redução das desapropriações previstas no projeto inicial das obras da copa representa um avanço para a APAC, na medida em que possibilita a permanência destas famílias em espaços urbanos relativamente bem localizados na 144 cidade. O avanço se caracteriza e acentua-se sobremaneira por tratar-se não de uma concessão “espontânea” dos grupos dominantes, mas uma evidente consequência de lutas populares protagonizadas pela Associação. Ademais, esta não é tão somente a luta por um espaço físico e sua conquista. A mudança do projeto original de mobilidade urbana e a redução das desapropriações expressam a conquista de uma determinada condição para o exercício de direitos sociais e humanos no espaço urbano. Nesse sentido e, no que concerne ao MLB, as conquistas coletivas do movimento ora expressam demandas essencialmente jurídicas e institucionais, ora se confundem com os processos de luta gerados, ponto de encontro/confronto de interesses distintos e antagônicos na condução da política pública urbana, como podemos observar no depoimento de uma das lideranças: O que eu poderia destacar foi o que a gente conseguiu nesses últimos 4 anos, 8 anos, que foi o ministério das cidades, a criação do plano diretor, todos esses segmentos que envolvem a reforma urbana, mas infelizmente eles não conseguem sair do papel rápido. Aí por causa dessa morosidade da Justiça, da legalidade, o recurso finda tendo que retornar pra Brasília, porque o ministério das cidades é muito rígido em relação ao tempo [...] e quem sofre com isso é a população, que sabe que tem um plano diretor, sabe que existe um orçamento participativo onde ela discute onde vai ser gasto o seu próprio dinheiro, mas que não sai do papel (MLB 2). Embora não tenha deixado de ocupar imóveis ociosos que descumprem a determinação constitucional de atendimento à função social da cidade e, ao mesmo tempo, continue organizando amplas manifestações de rua, a lista de conquistas destacadas pelo movimento possui caráter demasiadamente jurídico e institucional. Esta percepção fica ainda mais explícita quando a confrontamos com outra listagem de conquistas dos movimentos urbanos, dessa vez, encontrada em Maricato (2011). A pesquisadora contabiliza, entre as conquistas dos últimos vinte anos:  Alguns capítulos da Constituição Federal de 1988;  A Lei 10.257/01;  O Estatuto da Cidade, em 2000;  A medida provisória 2.220/01;  A criação do Ministério das Cidades, em 2003;  A realização da Conferência Nacional das Cidades em 2003, 2005 e 2007;  Um Programa Nacional de Regularização Fundiária inédito em nível federal, em 2003; 145  O Conselho Nacional das Cidades, em 2004;  A Lei Federal 11.445/07, que institui o marco regulatório do Saneamento Ambiental;  A Lei Federal 11.107, de 2005, dos Consórcios Públicos;  A Lei Federal 11.124/05, do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social;  A instituição, em 2006, deste Fundo;  A Campanha Nacional do Plano Diretor Participativo, dentre outras. Incitando reflexões sobre os movimentos sociais urbanos, Maricato (2011) já alertava – com base na relação supracitada - para o quanto se tornou remota a possibilidade dos movimentos urbanos debaterem temas estruturais, em um contexto no qual a preocupação central tem sido a busca por melhores condições de vida. Ora, não é fácil conciliar a urgência no atendimento às necessidades imediatas relacionadas com a sobrevivência do núcleo familiar com a disposição e disponibilidade para participar de lutas coletivas que podem demandar tempos mais largos. Ademais, também é bastante forte o apelo ao individualismo e às soluções e isoladas em contraposição a construção de vias coletivas, o que constituem entraves à organização dos movimentos sociais urbanos. Maricato (Op. Cit) preocupa-se ainda com a condução da luta política na proporção em que esta vem sendo cada vez mais impactada pela forte atração para o espaço institucional. A crítica da autora parece não se estruturar no sentido de ignorar a luta por espaços institucionais, seja pela via eleitoral ou por outra qualquer, mas como um indicativo da necessidade imperativa de atribuirmos à luta institucional a sua devida dimensão. Não há, em sua elaboração, uma negação do quanto as conquistas das reivindicações concretas imediatas constituem alimento essencial para qualquer movimento reivindicatório de massas. Ao contrário. Apenas reitera a necessidade de entendermos o Estado em sua complexidade, especialmente considerando as marcas patrimonialistas e desiguais presentes e atuantes na sociedade brasileira. Ora, é sintomático das contradições postas o fato de, desde a aprovação da Constituição Federal em 1988, muitas legislações municipais terem entrado em vigor – até porque o Estatuto das Cidades determina a elaboração de planos diretores para municípios com 20 mil habitantes ou mais – e são numerosos também os 146 tratados e convenções assinados pelo governo do Brasil, muitos com força de lei. Todavia, prevalecem ainda imensas desigualdades sócio-ambientais e particularmente a crise da moradia no país. Como explicar tanta sofisticação nos aparatos jurídicos e, ao mesmo tempo, todo este descompasso com a realidade? Para o professor Edésio Fernandes, este descompasso explica-se por três vias: 1) pela falta de informação e pelo desconhecimento do Estatuto da Cidade, tanto por parte dos juristas como da sociedade em geral; 2) pela precariedade da formação jurídica no país, pois os cursos de Direito em grande parte têm currículos defasados e com pouquíssima ênfase no Direito Público e na questão urbana; 3) pelas disputas em torno das questões centrais postas no Estatuto da Cidade, que têm a ver com as condições de interpretação e efetividade da lei em seus aspectos centrais, quais sejam: o paradigma do direito de propriedade como central, a função social da cidade e a responsabilidade territorial do poder público55. A nosso ver neste último aspecto reside os principais determinantes para entender o descompasso entre avanços jurídicos e uma debilidade de concretização no âmbito da realidade social. Ora, a função social da propriedade expressa na constituição federal e reforçada pelo estatuto da cidade, como condição sine qua non para a efetivação da função social da cidade e, logo, para que o direito à cidade se universalize colide com o paradigma do direito à propriedade que deve ser assegurado pelo Estado; o primado do direito à propriedade no âmbito das sociedades capitalistas contrapõe-se a uma possível materialidade da função social da propriedade. Esta segue como horizonte de lutas para os trabalhadores, justamente aqueles moradores das cidades em condições precárias de moradia, que permite tensionar a ação do Estado com vistas ao desenvolvimento de políticas urbanas e de moradia com dimensão social. Diferente da concepção do professor Fernandes, adotamos, porém, como chave explicativa, a concepção de que o direito, na sociedade capitalista, atravessa diversas tensões e expressões contraditórias, pois “[...] o direito surgido porque 55 [informação verbal] palestra proferida em 29 de março de 2012 em ocasião do debate “A nova ordem urbanística a partir da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade”, promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Natal-RN. O professor Edésio Fernandes está entre aqueles que iniciaram uma corrente de novos estudiosos e operadores do Direito que deu sequência ao esforço de produção teórica sobre a questão urbana no âmbito da área jurídica, embora trabalhe a questão da incongruência verificada entre a legislação e a realidade sob uma perspectiva distinta da que adotamos em nossas análises. 147 existe a sociedade de classes é, por sua essência, necessariamente um direito de classe: um sistema para ordenar a sociedade segundo os interesses e o poder da classe dominante” (LUKÁCS, 1981, p. 208). Do mesmo modo, o direito também apresenta limites e potencialidades que somente podem ser definidos no interior da luta de classes e, por isso mesmo, apesar de reconhecermos as suas contradições, apostamos na luta por direitos como uma necessidade extremamente atual, no âmbito da qual os sujeitos coletivos podem ser fortalecer. Igualmente, sendo a posse ou propriedade expressão da conquista de uma posição na hierarquia urbana (SANTOS, 1987), não nos surpreende que dentre as principais conquistas apontadas pelas lideranças do MLB encontre-se a comunidade de Leningrado, fruto de um processo de ocupação e de luta coletiva, tornando-se mais tarde Conjunto Habitacional ao ter culminado com a construção de unidades habitacionais para cerca de 1.500 famílias, como relata uma liderança entrevistada: Para nós, o símbolo maior e de nível nacional, podemos dizer assim, é a comunidade de Leningrado aqui em Natal, no bairro do Planalto. Foi a primeira conquista executada pelo MLB por moradia... nós temos outras, mas o expoente, o símbolo é Leningrado. Nós começamos a organizar as famílias em 2003, e em 2004 nós decidimos no feriadão da sexta-feira da Semana Santa a gente ocupar o terreno que ficava ali no Planalto, na divisa dos Guarapes e que tinha uma disputa entre Nelson Paiva e a família do deputado federal Carlos Alberto de Sousa. Quem era o dono de quem, a gente descobriu isso e ocupamos. Quando veio a ordem de despejo, nós perguntamos para a juíza: ‘bem, que é o dono?’ Ai a gente conseguiu retroceder a ordem de despejo, até saber quem era o dono, que de fato era Nelson Paiva. Depois, o prefeito Carlos Eduardo desapropriou o terreno e fomos juntos para Brasília onde conseguimos os primeiros recursos em nível nacional para o movimento construir casas (MLB 1). Hoje aqui na nossa cidade, em Natal, nós temos seis principais conquistas e a mais importante delas – a gente vai dizer em todos os lugares – é a conquista do Conjunto Habitacional Leningrado, que foi a nossa primeira ocupação aqui em Natal, na zona oeste da cidade, num bairro que hoje é conhecido como Planalto, mas geograficamente é nos Guarapes né? Então ali chegou a morar mais de 1.500 famílias e, no decorrer da luta, umas foram desistindo, por seus motivos foram abandonando a luta, mas ainda conseguimos fazer um conjunto habitacional com 520 famílias. Então a partir do Leningrado, aí sim, as outras famílias viram que é possível transformar um terreno sem nenhuma função social em um conjunto habitacional, pra gerar uma melhor renda pras famílias e continuar sua vida um pouco mais digna (MLB 2). Ainda segundo informações de lideranças do movimento, foi somente decorridos cinco anos da ocupação que os órgãos públicos viabilizaram a construção de 445 (quatrocentos e quarenta e cinco) imóveis em Leningrado. 148 Destes, 400 (quatrocentos) foram destinados às famílias do MLB e 45 (quarenta e cinco) direcionados ao atendimento do cadastro da Prefeitura de Natal. A ocupação de Leningrado foi inclusive considerada pelo MLB, à época, como uma das maiores ocupações do Norte-Nordeste, o que denota muito do peso e do sentido (material e simbólico) que esta conquista tem para a trajetória do movimento. Importante lembrar ainda que outras ocupações recentes encontram-se em processo de negociação do terreno, busca de recursos para a construção dos imóveis ou mesmo em processo de construção, entre às quais se destacam as ocupações Luiz Gonzaga, 8 de outubro, Anatália de Souza Alves e Ernesto Che Guevara. O processo de ocupação e de construção das unidades habitacionais do Conjunto Habitacional Leningrado resultou no fato de, hoje, esta ser considerada uma das maiores expressões da luta pelo direito à moradia em Natal, ao lado de outras ocupações/comunidades que compõem atualmente o leque de conquistas do movimento, conforme pode ser visualizado no quadro a seguir. QUADRO 1 Mapeamento das Residências construídas a partir das ações do MLB OCUPAÇÃO/COMUNIDADE RESIDÊNCIAS LOCAL Emanoel Bezerra 280 unidades Planalto – zona oeste Leningrado 445 unidades Planalto – zona oeste Santa Clara 190 unidades Planalto – zona oeste Praiamar 205 unidades Bom Pastor – zona oeste Nova Esperança 117 unidades Cidade da Esperança – zona oeste Djalma Maranhão 130 unidades Jardim Progresso – zona norte TOTAL 1.367 unidades Fonte: MLB/Natal-RN A construção das casas, sem dúvidas, materializa importante conquista na luta pelo direito à cidade, mas também suscita novos questionamentos na perspectiva de analisar os movimentos urbanos e a organização popular em Natal, na sua dinâmica e contraditoriedade. Afinal, mais do que um ponto de chegada, a ocupação e sua posterior transformação em Conjunto Habitacional não consistiriam senão o início de novas experiências, sinalizando a partir daí para novas dimensões na trajetória de luta e de organização popular relativas à questão urbana? 149 Considerando que direito à moradia anda longe de restringir-se a quatro paredes e um teto ou mesmo a um depósito de gente onde se empilham as pessoas e as guardam na hora de dormir (RONILK, 2011), então, não seria pertinente indagarmos como tem se dado o acesso aos serviços sociais públicos e aos equipamentos urbanos na comunidade de Leningrado? Como tem se configurado a pobreza e a desigualdade social no Leningrado, sobretudo no que se refere às condições de vida e às necessidades sociais de seus moradores, pós-processo de mobilização e ocupação? A pesquisa de diagnóstico social do conjunto Leningrado, realizada pelo Programa Lições de Cidadania/UFRN, em 2010, já sinalizava esta preocupação. E, indo além, a referida pesquisa demonstrou o quanto esta é uma comunidade bastante marcada pela negação de direitos e pela invisibilidade. Distante e afastada do centro urbano da cidade e, por isso, mesmo praticamente invisível aos olhos da população natalense, ao Leningrado também tem sido negado o acesso a direitos e equipamentos sociais básicos e elementares, como é o caso do transporte, iluminação, segurança, educação, saúde, lazer e trabalho. Ademais, dados da própria prefeitura de Natal demonstram que atualmente o Conjunto Leningrado figura como uma das áreas mais frágeis no que diz respeito a aspectos sócio-econômicos e ambientais da cidade, haja vista sua localização em área considerada insalubre ou de risco. Seu perfil populacional é constituído predominantemente por famílias detentoras de renda inferior a um salário mínimo, com elevado índice de analfabetismo e que realizam principalmente serviços ligados à reciclagem de resíduos sólidos e ao comércio informal. Conforme veiculado pelo jornal Tribuna do Norte: Cerca de 500 integrantes do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) saíram em passeata pelas avenidas do centro de Natal na tarde desta quarta-feira (22) para reivindicar melhorias à Prefeitura de Natal e à Assembléia Legislativa. A mobilização, denominada pelo grupo de Marcha em Defesa da Moradia Digna e da Dignidade Humana, reuniu famílias sem teto de 14 comunidades em Natal e na região metropolitana, entre elas Planalto, Leningrado, Emanuel Bezerra, Cidade Nova e Ocupação oito de outubro. O presidente estadual do MLB, Wellington Bernardo, destacou ainda que a mobilização tem a finalidade de alertar a administração municipal sobre o abandono atual dos planos habitacionais de Natal. Segundo ele, as pessoas beneficiadas pelas casas entregues por essa gestão sofrem sem a infra-estrutura [sic] necessária. “Os moradores têm as casas, mas não tem transporte, saúde, educação... como viver 150 dignamente diante destas condições? 56 ”, indagou (TRIBUNA DO NORTE, 2011, p. 03). Com infraestrutura básica e os serviços urbanos essenciais praticamente inexistentes, após algum tempo de permanência nos conjuntos habitacionais, a tendência maior tem sido a da não permanência de grande parte dos moradores e a tentativa de retorno às favelas de onde aquelas família são originárias ou ainda a implantação em outras áreas de favela melhor localizadas. Afinal, não tem se verificado alterações significativas das condições de vida e de trabalho desses sujeitos, decorrentes da mudança radical do local e do tipo de moradia. Ao contrário. Tem casos em que as pessoas vendem a casa depois, mas temos de ir na raiz do problema. Não podemos só acusar. Se você pega uma comunidade, que mora aqui no Maruim, que ninguém vê essa favela, mas existe, que é insalubre, precária, joga ela lá no Planalto, sem escola, sem creche, sem trabalho.... O cara do Maruim vive do peixe, da reciclagem, não passa fome, fica no barraco, mas está dando de comer aos filhos... na casa vai ter de pagar água e luz, que na favela não pagava e ficava perto de tudo, no que chamamos do “lixo rico”. Não paga ônibus, tem a carroça dele para ir catar lixo... O que ele catava para comer... No Leningrado e no Emanoel Bezerra onde temos um levantamento mais preciso, hoje nós temos um déficit de venda de casa de 20% (MLB 1). Fecha-se, com isso, um verdadeiro círculo vicioso, que vai da favela ao conjunto habitacional, e de volta à favela, em um percurso no qual o conjunto habitacional – fruto de intenso processo de luta e de mobilização – representa uma “área de passagem” ou “área de trânsito” (VALLADARES, 1980) na trajetória dessas famílias. A “solução”, para muitos tem se revelado, deste modo, parcial, limitada e provisória. Em tempos adversos para as lutas do trabalho em contraponto aos ditames do capital, os ganhos e avanços destacados pelos movimentos urbanos, com atuação na cidade de Natal, têm se caracterizado por serem muito mais de cunho político e ideológico (no sentido de avanço no processo de consciência coletiva e de disposição para organizar-se politicamente), do que propriamente concretos. Ainda que sejam ganhos circunscritos à determinadas regiões da cidade com lutas particulares mais amplas, a exemplo da luta contra o aumento das passagens de ônibus, não podemos menosprezar o processo de formação e de sensibilização para 56 Grifo nosso. 151 a luta política em curso, sobretudo, em tempos de exacerbação do individualismo, como confirmam os depoimentos a seguir: O Levante preencheu uma lacuna que havia no bairro em termos de organização política da juventude e esse foi um passo muito importante, conseguir organizar jovens que antes estavam desorganizados (LPJ 1). Primeiro, o trabalho de conscientização. Isso pra mim é primordial, a gente conseguiu conscientizar as pessoas de que essa história de que a prefeitura vai vim, vai derrubar sua casa e você não vai poder dizer nada não existe. Você é cidadão, você elegeu aquela gestão, então você tem direito à participação. Essa foi a primeira vitória da APAC. A gente conseguiu. Hoje em dia a gente tem muitas pessoas envolvidas, mesmo que não participem ativamente do processo, elas têm essa consciência. Tanto que quando elas foram abordadas outras vezes pelas secretarias municipais elas foram bem enfáticas: “olha, esse é meu direito, eu não vou sair da minha casa, eu não vou lhe dar nenhuma documentação” e isso foi excelente (APAC). Uma conquista importante é fazer com que as pessoas passem a entender que somente juntas poderão lutar contra suas dificuldades, porque para o indivíduo sozinho é mais difícil, mas de forma coletiva fica mais fácil... por que as pessoas sempre passaram fome de certa forma individual, elas sempre viveram em barracos, em favelas, debaixo das pontes, de maneira individual. Na ocupação, elas passaram a viver de forma coletiva [...] quer dizer coletivizando a miséria. Lógico! Coletivizando a miséria... incentivou o povo!l lutou pra vencer. Então elas começaram a ter uma perspectiva: ‘bom, se eu ficar aqui eu sei que futuramente eu vou sair desse barraco de lona, desse barraco de chão batido, pra uma casa de alvenaria, vou ter outra qualidade de vida (MLB 1). A vitória mais importante que conseguimos foi a expansão do movimento e o aumento da consciência dos nossos militantes. A cada luta que fazemos, nossas famílias ficam mais unidas e decididas a lutar por seus direitos e pela sociedade socialista [...] nas lutas do MLB, eu aprendi o sentido da palavra companheiro: em qualquer lugar que houver injustiça, somos todos companheiros e amigos. Tudo foi tão rápido nos cinco anos de luta em Leningrado que hoje parece que foram apenas alguns meses. Tive tantas descobertas desde o início da ocupação, que parece que foi ali que minha vida começou (MLB 2). O lugar de destaque atribuído pelas lideranças dos movimentos sociais de Natal à incidência da organização popular no processo de construção e de reconstrução da consciência política indica o reconhecimento da natureza do avanço presente no cotidiano da ação política destes movimentos, aquilo que parte expressiva da literatura especializada tem denominado de caráter educativo dos movimentos sociais. Como elucida Kowarick (1985) existe, nos chamados grupos populares, uma consciência crescente em construção, denominada pelo autor de desnaturalização dos problemas sociais. Tal desnaturalização pode ser identificada na medida em que as condições de vida e trabalho nas quais estão imersos os sujeitos que compõem 152 tais grupos passam gradativamente a não ser mais vistas como advindas de fenômenos naturais. A organização popular possibilita, assim, a estes sujeitos perceber origens e causas sócio-econômicas e políticas para os problemas com os quais se deparam, embora muitas vezes esta não passe de uma consciência ainda fragmentada. O referido processo pedagógico tem “[...] originado aquilo que se poderia chamar de campo incipiente de organização de reivindicações populares, onde a população se organiza por meios próprios, com recursos ditos informais que permitem a ela sobreviver nessas cidades” (KOWARICK, 1985, p. 75). Nesta linha de pensamento, o exercício da prática cotidiana nos movimentos sociais gera um processo educativo em seu interior que se constrói de várias formas e tem dimensões articuladas e não apriorísticas, dentre as quais destacamos: a) A dimensão da organização política, expressa na consciência processada e produzida pelos sujeitos inseridos nos movimentos, na medida em que vão gradativamente adquirindo uma série de conhecimentos relativos às questões postas na luta, a partir dos interesses coletivos problematizados de modo subjacente à organização do grupo. Concomitante a isso e como parte desse processo, figuram a identificação dos interesses opostos ao movimento e a elaboração de táticas para atribuir visibilidade às demandas do movimento e também para o enfrentamento dos desafios postos em determinado tempo histórico. b) A dimensão da cultura política, construída com base na vivência do passado e o consequente acúmulo de experiências presentes no imaginário coletivo do movimento como modo de apropriar-se de novos elementos para a leitura do momento atual. Com isso, uma nova cultura fundamentada e com horizonte na perspectiva do aprender multifacetado vai sendo construída. Trata-se, por exemplo, de perder o medo de tudo aquilo que foi historicamente inculcado como proibido e/ou inacessível ao povo, de elaborar formas criativas e simbólicas de expressar seus discursos e bandeiras de luta, bem como se relaciona com o processo de apreensão e construção dos princípios e valores que balizam os interesses do movimento. c) A dimensão espacial-temporal, que está presente e é traduzida por meio do reconhecimento das condições de vida da população e a identificação de datas e espaços comunitários para atividades grupais, que são fortes representações na mentalidade coletiva popular. Esta é uma dimensão que esta imbricada ao processo 153 de consciência engendrado pela participação em um movimento social e contribui para o desenvolvimento do sentido do acesso a serviços e bens públicos como um dos referentes fundamentais na luta dos movimentos populares. Face tais avanços e entraves presentes na ação política dos movimentos urbanos em Natal – em muitos aspectos similares, quando não idênticos – às tendências que observamos hoje estarem postas para a organização popular, no plano geral, não podemos olvidar que a luta pela hegemonia de um projeto societário crítico e radicalmente oposto a esta sociabilidade, exige dos movimentos sociais a capacidade política de estabelecimento de alianças com outros sujeitos individuais e coletivos, mas também requer a capacidade de identificar os mecanismos de atuação dos seus opositores. 4.3 Quando a sociedade clama por uma resposta é toda a sociedade que tem que participar... Aliados e opositores no processo da ação política A história dos movimentos sociais não compreende exclusivamente sua história interna. Constrói-se cotidianamente como resultado de suas próprias ações, mas também e, especialmente, por meio das relações e interações, tensas ou não, que estes movimentos estabelecem com outros sujeitos (SADER, 1988). As análises apresentadas pelos estudos que se lançam em torno da dimensão política dos movimentos sociais, residem primordialmente na compreensão de que a política não se limita ao Estado ou meramente à arte de governar e que, ademais, não pode ser apreendida desconectada do solo histórico da sociedade na qual se desenvolve. Reconhece, por conseguinte, que os movimentos sociais apresentam especificidades na constituição de sua dimensão política e esta se realiza em múltiplos aspectos: a) no plano da organização interna, estão incluídos linguagens, valores e reivindicações que visam potencializar e garantir o direito à organização política, o que implica, por definição, levar em conta a dimensão de classe presente nestes elementos. Em seu dinamismo e contraditoriedade, a sociedade burguesa comporta, além, logicamente, da moral dominante, outras linguagens e valores ético-morais, construídos a partir de projetos sociais em oposição. Os movimentos sociais classistas, ao negarem a ideologia dominante por meio das suas reivindicações, evidenciam perspectivas ético-políticas oriundas do processo de lutas da classe 154 trabalhadora; b) no plano social, as reivindicações dos movimentos sociais tomam forma e se materializam em múltiplas bandeiras de luta; e c) no plano das articulações com outras instituições e práticas sociais, os movimentos estabelecem diversas alianças, sendo que historicamente estas vêm priorizando principalmente a Igreja, os partidos e os sindicatos, mas também setores do Estado, entendido como espaço contraditório. Afinal, nas palavras de Gramsci (1989, p. 24) um movimento social – ou qualquer grupo social que seja – “[...] não é isolado; têm amigos, afins, adversários, inimigos”. Mas, logicamente, uma dimensão histórica e conjuntural perpassa as articulações e alianças estabelecidas. Articular e ampliar a luta pelo direito à cidade exige ações imediatas, mas também a capacidade política de estabelecimento de alianças dos movimentos urbanos com outros sujeitos individuais e coletivos, elemento fundamental na ação política dos movimentos sociais, abrindo os horizontes da luta por direitos em direção a lutas emancipatórias. Com efeito “um projeto mais global de democratização da sociedade, para se concretizar, necessita da articulação das diferentes forças organizadas da sociedade civil e de representação através de partidos políticos” (SCHERRER-WARREN apud SOUSA; GÓIS e SANTOS, 2010, p. 205). Os depoimentos a seguir explicitam os principais sujeitos coletivos com os quais os movimentos e organizações populares de Natal vêm se articulando no processo de afirmação de seu projeto político e de luta pelo reconhecimento e ampliação do direito à cidade, em suas diversas dimensões: O Levante tem um diálogo muito forte com as organizações campesinas, com os movimentos sociais que compõem a Via Campesina, até porque nacionalmente o Levante surgiu a partir delas, e as escolas do bairro também são aliados importantes (LPJ 1). Nossos principais apoiadores são os sindicatos. A gente identifica quais são os sindicatos mais combativos, que estão nas ruas mobilizando os trabalhadores pelas suas reivindicações. Então esses sindicatos mais combativos contribuem sim com a luta do MLB (MLB 1). Para os(as) dirigentes entrevistados(as), são exatamente outros movimentos sociais classistas e combativos os interlocutores privilegiados das organizações populares articuladas em Natal. O destaque é dado para os movimentos da Via Campesina e o movimento sindical, sujeitos com os quais se têm concretizado alianças em períodos de mobilizações, greves, passeatas de protesto, bem como 155 realização de debates e inclusive contribuições financeiras para viabilizar a ação política dos referidos movimentos. O reconhecimento da importância e da necessidade de articulação entre as lutas do movimento sindical e as lutas do movimento popular, na cidade e no campo, aparece documentado desde, pelo menos, o início dos anos 1980, tendo sido reafirmado repetidas vezes em encontros, assembleias e espaços diversos dos mais variados movimentos. Enunciada no âmbito da literatura especializada como “Triangulação Sindicato/Fábrica/Bairro” (DOIMO, 1984), a busca de articulação entre o movimento operário e sindical com os movimentos urbanos e vice-versa, constitui aspecto historicamente presente na configuração da luta de classes no Brasil. Nesse sentido, o Documento de São Bernardo – construído por dirigentes sindicais e representantes de movimentos populares de diversos estados do Brasil em encontro realizado em Taboão da Serra (SP) – é bastante ilustrativo desta preocupação, ao reforçar a necessidade de interligação do movimento sindical com outras organizações populares: a) Dentro do princípio de que o movimento sindical não deve isolar-se dos outros movimentos populares, mas considerar-se parte dele, existe a necessidade urgente de rompermos com preconceitos, tanto do movimento sindical como dos demais movimentos populares, difundidos pela ideologia dominante e que nada contribuem para a efetivação dessa interligação; b) Exercitar a solidariedade na cooperação mútua com os sindicatos, imprimindo e divulgando o material e a prática das organizações populares. Utilizar a imprensa sindical para divulgar as lutas que estão sendo travadas nos bairros, ao mesmo tempo em que, nos seus órgãos de divulgação, as organizações populares façam chegar até o bairro as lutas sindicais do momento, permitindo, dessa forma, que os trabalhadores que moram no bairro com as suas famílias participem das lutas das categorias; c) As bandeiras dos movimentos populares que visam a melhoria das condições de vida da população (saúde, habitação, educação, transporte, etc) também devem ser apoiados pelos sindicatos; d) Em resumo, que os sindicatos e os outros movimentos populares discutam permanentemente entre si todas as bandeiras comuns e formas de solidariedade” (DOCUMENTO DE SÃO BERNARDO, 1981, p. 4-5). Como constatamos, esta articulação se faz presente na realidade contemporânea local, à qual se somam os processos de alianças políticas estabelecidas com a Via Campesina, movimento de caráter internacional que, no Brasil, agrega em especial quatro movimentos: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), dentre outros. 156 [A Via Campesina] coordena organizações camponesas de pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e comunidades indígenas e negras da Ásia, África, América e Europa. O principal objetivo da organização é desenvolver solidariedade entre as organizações de pequenos agricultores; preservação da terra, soberania alimentar (direito dos povos de decidir sobre sua própria política agrícola e alimentar); produção agrícola sustentável, entre outros (DURIGUETTO; MONTAÑO, 2010, p. 298). Assim, não restam dúvidas de que a articulação dos movimentos populares com outros movimentos sociais e organizações de esquerda mostra-se extremamente necessária, principalmente nesse contexto de grandes ofensivas do capital. Especialmente sobre a fundamental aliança operário-camponesa, ao ressaltar o papel de grupos sociais urbanos convenientemente desenvolvidos no campo da produção industrial, Gramsci (1978, p. 08) afirma em seguida: “[...] a formação de uma vontade coletiva nacional-popular é impossível se as grandes massas dos camponeses cultivadores não irrompem simultaneamente na vida política”. Mas vale ressaltar que as alianças entre os movimentos possibilitam um salto qualitativo em termos de avanços políticos quando se consegue efetuar uma verdadeira ruptura com o corporativismo, entendendo a importância de abranger também, nas lutas e pautas defendidas, os interesses de outros grupos e organizações da classe trabalhadora, fortalecendo uma luta unitária. Entretanto, dois sujeitos coletivos tradicionalmente presentes nas articulações com os movimentos urbanos não foram mencionados. Nenhum dos militantes destacou a Igreja e/ou os partidos políticos de esquerda como alianças importantes, quando sabemos ser, na história recente, expressivo o envolvimento da Igreja Católica com os movimentos sociais do Brasil. Aliás, diferente do que foi observado na Europa, nos Estados Unidos ou mesmo no restante da América Latina, o papel de liderança exercida pela Igreja Católica junto aos movimentos sociais brasileiros, principalmente entre os anos de 1970 e 1980, foi único. Para Evanson (1999) foi inclusive uma instância de alta improbabilidade histórica, exercendo influência direta particularmente nos movimentos do campo e nas organizações por local de moradia. Uma decorrência direta das novas modalidades de intervenção inspiradas nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica e da base filosófica- 157 ideológica da teologia da libertação – a “teologia do ponto de vista do oprimido” (MURRARO, 1999, p. 187) - ainda que não seja menos verdadeiro que o envolvimento político de determinados setores da Igreja com a organização popular tenha sido uma resposta à proliferação junto aos setores populares tanto da umbanda e das seitas pentecostais, como ao espectro do comunismo, que colocava em risco seu “rebanho” (SINGER e BRANT, 1980). Face os distintos impasses e ambiguidades da relação da Igreja com os movimentos populares há, porém, quem suponha que “[...] com o seu trabalho de base a Igreja estaria não só preparando o povo como força viva nos movimentos, mas, sobretudo, conferindo a ele o processo de tomada de decisões – de baixo para cima – inaugurando uma nova fase no caráter dos movimentos sociais [...]” (DOIMO, 1984, p. 35), a partir do trabalho teórico, teleológico e político dos intelectuais orgânicos da “nova Igreja”. Sabemos que a presença da Igreja nas ações dos movimentos dos bairros populares de Natal foi substancial em muitos momentos. Durante muito tempo, aliás, a Igreja Católica foi o único espaço onde era possível desenvolver um trabalho com o movimento popular. Mas é possível perceber uma sensível diferença no espaço que vai sendo ocupado pela Igreja em Natal junto aos movimentos sociais, acompanhado por alguns deslocamentos quanto ao apoio da Arquidiocese de Natal às lutas sociais e políticas articuladas na cidade. Uma inclinação que, em Natal, já vinha sendo esboçada desde os anos 1970/1980 (Cf. CEPAU, 1987). Destarte, nenhuma das lideranças entrevistadas explicitou também qualquer aliança com partidos ou fez referência a isso, apesar deste ser um segmento tradicionalmente presente. Entendemos que a ausência de referências mais explícitas aos partidos políticos como aliados importantes na luta pela transformação societária expressa a cultura política brasileira, na qual impera ainda uma visão negativa dos partidos, além de estar diretamente relacionada com a crise de representatividade dos partidos políticos da atualidade. A consequência mais abrangente desta combinação de fatores – práticos e teóricos – foi a progressiva crise da forma partido como organização política revolucionária precisamente porque se exauriram (também progressivamente) as possibilidades objetivas de revolução, e com elas as condições subjetivas que exigiam o protagonismo político do partido [...] a crise da forma partido é, antes, uma crise fundada na objetividade da realidade social do que uma crise teórico-analítica, ainda que esta possa reforçá-la e que, de alguma maneira, seja ela mesma consequência da 158 dinâmica societal. Ela deita raízes nos modos de ser concretos das classes trabalhadoras (em especial do proletariado urbano-industrial) que têm imposto sérias dificuldades de organização política do tipo universal (BRAZ, 2011, p. 304). Pesquisas precedentes a que ora apresentamos, já identificaram como uma das tendências presentes nos discursos dos militantes de movimentos sociais a enorme resistência à presença dos partidos e a negação da necessidade de articulação com estes (Cf. GUIMARÃES, 2011c; SANTOS, 1995). Tais discursos se baseiam em experiências de relações dos movimentos sociais com os partidos políticos de caráter instrumental, que, conforme Santos (1995, p. 55), se caracteriza por “uma supervalorização dos ensinamentos da vanguarda do partido, a ponto de minimizar as necessidades e reivindicações concretas dos MS”. Com base nessa perspectiva, os partidos políticos utilizam os movimentos sociais, dentre eles o movimento urbano, exclusivamente como espaço para divulgar suas concepções e para fins políticos definidos pelo partido. Devido a práticas desse tipo, muitos militantes passam a manifestar grande resistência à presença de partidos políticos nos espaços dos movimentos e, no cotidiano da organização política, a satanização das estruturas partidárias implica, também, na negação da necessidade de qualquer articulação com partidos políticos, numa lógica que conduz, em última instância, ao isolamento e a um reforço do corporativismo. Todavia, considerando as contribuições e embates da complexa relação entre movimentos sociais e partidos, podemos afirmar que acreditamos na possibilidade de se estabelecer uma relação verdadeiramente democrática entre estes sujeitos coletivos. Em outras palavras, isso significa a construção de uma relação fundada no confronto entre saberes, tal como situa Santos (loc. cit). Sob essa ótica, são consideradas as singularidades de organização e os interesses tanto do movimento social como dos partidos políticos que nele atuam. Desse modo, ao mesmo tempo em que os movimentos sociais não se configurariam como meros transmissores de diretrizes externas, também não estariam construindo um projeto político de forma isolada. Importante recordar, nessa perspectiva, que Florestan Fernandes ao discutir movimento socialista e partidos políticos57 afirma com clareza que há uma relação 57 Conferência promovida em 1978 e publicada em Teoria da Organização Política III, obra organizada por Ademar Bogo pela Editora Expressão Popular. 159 profunda entre o movimento socialista, o partido e a classe, sendo esta o elemento central que condiciona e regula o vigor do movimento e do partido. Assim, evidencia uma relação de interdependência entre movimento e partido, obviamente mediada pela luta de classes, enquanto realidade histórica condicionante dessa relação. Assinala que à fragilidade do movimento socialista corresponde aquela dos partidos socialistas: “Basta que vocês pensem sobre o Brasil: nós não temos um movimento socialista vigoroso. Qual é a consequência? Nós não temos também partidos socialistas fortes, que possam exercer funções agregadoras ou aglutinadoras [...]” (FERNANDES, 2008, p. 391). Dessa feita, o mapeamento dos conflitos urbanos presentes na capital potiguar, empreendido pela Câmara de Estudos e Pesquisas em Arquitetura e Urbanismo (CEPAU) há mais de duas décadas, nos demonstra, entretanto, que não há nada de inédito neste dado da fragilidade ou ausência de articulação com partidos e igreja, na história da cidade. Os resultados deste mapeamento permitem afirmar que, em Natal, as lutas urbanas neste período (1976-1986) se davam acompanhadas por um baixo nível de politização presente na organização da população, isto fazia com que houvesse dificuldades para articular as lutas que se davam no espaço urbano com uma luta que, em última instância, é contra o capital e à sua lógica de produção do espaço. O mapeamento realizado revelou ainda que, em Natal, a politização dos conflitos urbanos ocorreu, sobretudo, quando se contava com a participação dos chamados agentes externos, a exemplo de partidos políticos, Igreja e Sindicatos. Entretanto, dos conflitos analisados pela CEPAU em apenas 22,92% dos casos é visível a participação de partidos de esquerda, enquanto somente em 12,50% deles, a Igreja – expressa na Arquidiocese de Natal – teve participação registrada, para falar apenas das duas maiores forças que, no Brasil, têm tido papel importante na organização política popular. Notamos assim, uma participação reduzida destas forças políticas em Natal, no período analisado, em atividades de organização e mobilização dos moradores dos bairros populares da cidade, tendência que parece se estender aos anos 2000. Outrossim, entre 2008 e 2010, a partir dos registros das entidades cadastradas na SEMURB, das organizações comunitárias que atuam no Orçamento 160 Participativo e em diferentes conselhos setoriais do município58, Cunha (2011) identificou, em Natal, a existência de cento e trinta e uma (131) ONGs, três (03) movimentos sociais urbanos e 400 (quatrocentas) organizações de bairro, dentre associações de moradores, conselhos comunitários, clubes de mães e idosos, conforme evidencia o quadro a seguir: QUADRO 2 Mapeamento das Organizações Comunitárias existentes em Natal ORGANIZAÇÕES NORTE SUL LESTE OESTE TOTAL Conselhos Comunitários 51 20 11 16 98 Associações e Centros 52 44 45 76 217 Clube de Mães 22 16 07 17 62 Grupo de Idosos 03 02 11 07 23 TOTAL 128 82 74 116 400 Fonte: CUNHA (2011). De acordo com os dados anteriormente indicados, a região Norte é a que mais comporta organizações comunitárias em Natal, seguida pela região Oeste. Ao observarmos o quadro acima, lembramos ainda da criação e existência de mais de uma entidade dentro do mesmo bairro, fenômeno bastante comum que também se repete em Natal. Nada mais do que um reflexo das diferentes formas e concepções da ação cotidiana das organizações populares articuladas na cidade. Em Natal, o caso que veio à tona na cena pública de forma mais evidente foi em relação ao Bairro de Felipe Camarão, em ocasião do Movimento Fora Micarla. Enquanto as lideranças do conselho comunitário II de Felipe Camarão estavam, junto a outros movimentos, presentes na ocupação da câmara municipal, a diretoria do conselho comunitário I, do mesmo bairro, assinou o documento intitulado “Fica Micarla”, acirrando ainda mais as diferenças ideopolíticas entre os dois conselhos. Não obstante, à primeira vista, tais organizações comunitárias nos pareciam serem potenciais alianças estabelecidas pelos movimentos urbanos locais. Todavia, na realidade, prevalece uma relação de distância ou de tensa aproximação, 58 Conselho de Desenvolvimento Municipal (CDM), Conselho Municipal de Saúde (CMS), Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), Conselho Municipal de Educação (CME) e Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (COMDICA). 161 particularmente entre a militância do MLB e da APAC, em relação aos movimentos comunitários, como indica o depoimento de um de nossos entrevistados: Têm três conselhos comunitários, que é o de Bom Pastor, que é Silvino o conselheiro de lá que é parceiro, muito parceiro da gente, muito parceiro... o do Bairro Nordeste, apesar de algumas diferenças políticas que a gente tem com ele... e o conselho comunitário do Km 06 que, de uma maneira menos participativa, vem ajudando a gente.... e por incrível que pareça a gente não tem apoio do conselho comunitário do Bairro das Quintas! O conselheiro do bairro das Quintas nunca participou de uma reunião da APAC a não ser no dia que tinha o secretário lá e no dia que ele foi pra audiência pública pedir a George Câmara pra adiar a audiência pública! (APAC). No que concerne ao MLB, a relação de distância com relação aos conselhos comunitários decorre da leitura dos integrantes do movimento sobre a realidade destas entidades, consideradas distantes dos moradores, na proporção em que não atuam no sentido de mobilizá-los em torno de reivindicações expressivas das diversas questões e problemáticas existentes nos bairros. A distância mantida em relação aos conselhos comunitários e Associações de Moradores é justificada ainda pela crítica segundo a qual, sendo estas entidades atreladas aos políticos tradicionais, não representam, portanto, os interesses populares. Entretanto, tal entendimento não indica que o MLB seja um movimento isolado em si mesmo. Ao contrário, o movimento demonstra reconhecer a necessidade de se articular ao movimento mais amplo da sociedade: Hoje aqui na nossa cidade nós não conhecemos um outro movimento que lute tão continuamente pela reforma urbana da nossa cidade né? Tem outros movimentos, mas que na nossa cidade não faz esse trabalho. Como assim esses outros movimentos? Os conselhos comunitários, associações de moradores... Uma das principais funções delas era resolver essa questão, da família que tá lá morando num casebre, num barraco que tá caindo, tem que resolver a situação dela. Mas eles não fazem mais isso hoje. Então o MLB quando chega até essas famílias, tenta resolver a situação delas [...] (MLB 1). [...] Sempre que nós temos atividades que envolvem todos os setores da sociedade, nós não disputamos espaço com eles, nós apenas ocupamos o nosso espaço. Então eles respeitam a nossa posição, nós respeitamos a posição deles. Conseguimos fazer ato unificado com a universidade, com sindicatos, com movimentos sociais, ONGs... porque quando a sociedade clama por uma resposta é toda a sociedade que tem que participar. Nenhuma pessoa que se diz lutador por uma sociedade socialista pode se esquivar nesse momento (MLB 2). Dada a diversidade de movimentos sociais existentes, inclusive em relação às mesmas demandas, por apresentarem diferenciações internas entre si quanto à 162 forma de organização e o projeto político, a construção da unidade tem se configurado uma das dificuldades mais frequentemente encontradas no âmbito da ação política. Mas, sua necessidade e importância estão presentes no alerta de Rosa Luxemburgo, segundo o qual uma simples luta econômica por salários pode tomar proporções de um importante fenômeno político. Da mesma forma, a luta política pode potencializar a luta econômica, em um movimento de relação permanente entre ambas, resultante do fato de: “[...] as greves gerais em determinadas cidades, as pacíficas lutas salariais e os massacres nas ruas, as batalhas nas barricadas: todas se entrecruzam, correm paralelas, se encontram, se interpenetram e se superpõem [...]” (ROSA LUXEMBURGO, 2005, p. 282), em contínuo movimento. Além disso, também na concepção gramsciana de hegemonia, identificamos a preocupação expressa com esta questão, posto que Gramsci (1978) defende a denominada unidade cultural-social, através da qual seriam solidificados em torno de um mesmo fim e idêntica concepção de mundo, toda uma multiplicidade de vontades desagregadas. Este seria para o autor, o processo pelo qual o proletariado desenvolve a “vontade coletiva”. Todavia, há para tanto um pressuposto: a construção da vontade coletiva é eminentemente política e, portanto, exige a formação de alianças, condição fundamental – quiçá decisiva – para a conquista da hegemonia do proletariado. Na expressão do próprio Gramsci, “[...] o proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue criar um sistema de alianças de classe que lhe permita mobilizar contra o capitalismo e o Estado burguês a maioria da população trabalhadora [...]” (GRAMSCI, 1977, p. 22, grifos nossos). O depoimento a seguir não somente reforça um traço peculiar da organização popular em Natal - fato das questões que envolvem a Via Costeira serem historicamente um dos maiores pólos geradores dos conflitos urbanos da cidade (CEPAU, 1987) - como também figura como um depoimento ilustrativo das alianças estabelecidas entre os próprios movimentos em Natal: Um movimento que a gente conseguiu apoio e, assim, vice-versa né? De ter apoio e de oferecer apoio, foi a ‘Via Costeira é nossa’, porque meio que ficou uma luta igual, que eles tão lutando pra que a via costeira não seja devastada pra construção de hotéis pra copa do mundo. Então é a mesma luta, cada um defendendo o seu, mas todo mundo defendendo o de todos (APAC). 163 Para além de outros movimentos, as alianças externas à Associação e às suas lideranças também são buscadas em pessoas “estudadas e de confiança” que sejam simpáticas às causas das classes subalternas e possam prestar assessoria ao movimento. Uma das principais alianças da Associação nesse sentido consiste no Escritório de Advogados Populares e no próprio Comitê Popular da Copa, na proporção em que este aglutina arquitetos, professores, advogados, moradores e conselhos comunitários em torno da mesma causa. Não há como – ou pelo menos, não conseguimos – pensar na aliança com estes sujeitos profissionais, predominantemente advogados(as) e arquitetos(as), sem percebê-los na condição de vanguarda, a qual cabe contribuir para a organização das massas e para o avanço destas em seus processos de luta, enquanto dirigentes políticos oriundos das massas e construídos numa relação dialética com elas. Não poderia ser diferente. A tarefa a ser cumprida por esta vanguarda intelectual exige o permanente contato com as massas, afinal, segundo a formulação de Gramsci (1978), é exatamente neste contato que ela encontra a fonte dos problemas a serem estudados e resolvidos. Aliás, esta vinculação é condição intransferível para que se efetivem as contribuições da vanguarda ao processo de ação coletiva e, em um salto qualitativo, esta possa se constituir como uma ação política cada vez mais orgânica. Evidentemente, não se trata de nenhuma condução arbitrária dos processos organizativos das massas, tampouco, de substituí-los ou anulá-los, e sim de atuar dentro das classes como sujeito organicamente vinculado à sua luta. Mas outros apoios foram também mencionados: O vereador George Câmara que, por incrível que pareça, foi a única pessoa que ouviu a gente, que ouviu nossas reivindicações, que veio participando ativamente. É formado em Direito, então ele não tá lá numa discussão vazia, ele sabe quais são os direitos. E aí o apoio que a gente conseguiu na Câmara [Municipal] foi de George. O deputado Fernando Mineiro que, também, por incrível que pareça, é a única pessoa da Assembleia [Legislativa] que vem apoiando a gente. É claro que tem aqueles que de vez em quando vão ali dá uma pintadinha pra se vangloriar, mas o deputado Fernando Mineiro é uma aliança... que, infelizmente, não conseguiu o pleito de prefeito, porque senão a gente podia conseguir muito mais coisa (APAC). A afirmação da liderança da APAC (“por incrível que pareça”) para acentuar e caracterizar a aliança da Associação com o deputado Mineiro (PT) e o vereador 164 George Câmara (PC do B) nos parece ser possivelmente sintomática de certa atitude de desconfiança das massas em relação aos seus “representantes” e aos seus governantes de modo geral. Os políticos, outrora figuras centrais no encaminhamento dos problemas urbanos, atualmente perdem sua posição de relevo, na medida em que os movimentos passam a se reconhecer como força social, colocando-os num plano secundário, isto é, na condição de elemento intermediário das reivindicações originárias dos bairros. Não obstante, demonstram que a intermediação entre povo e poder municipal permanece sendo feita em Natal, muitas vezes, por vereadores e/ou deputados que tradicionalmente regionalizam um espaço mais amplo, seja esse uma pequena vila, a cidade média ou a grande cidade. Com isso, não se pode ignorar a expressiva participação de políticos tradicionais, que funcionam como uma espécie de “protetores” das comunidades locais, onde possuem suas bases eleitorais (SILVA, 1992). Assim sendo, a reivindicação popular, no território natalense, continua vindo à cena acompanhada da ação/articulação com um político local. Mas recorrer a articulações com os políticos tradicionais não tem sido impeditivo para que, paralelo a isso, os movimentos sigam articulando e encaminhando suas reivindicações de forma autônoma, estabelecendo seus próprios planos de luta e de organização. Não se trata desse modo, de retorno aos tempos em que os vínculos estabelecidos com os políticos locais eram sintomáticos de uma situação na qual tudo o que se aspirava alcançar era pela via da articulação com um vereador ou parlamentar. Com efeito, evidencia-se que muitos movimentos continuam percebendo estas figuras como canais de acesso aos órgãos públicos e às instâncias de poder do Estado59, ainda que apostem em uma relação de autonomia ou que restrinjam tais articulações aos políticos por eles caracterizados como ‘comprometidos com as lutas populares’ e, predominantemente, demonstrem resistência ao estabelecimento de qualquer relação. Prevalece, num e noutro caso, a recusa a um retorno do político tradicional como o dono do bairro, a única fala, a fala competente (SILVA; AMORIM; MONTENEGRO, 1988). Nesse caso, especialmente por temer que o movimento se torne dependente e atrelado a estas 59 Argumenta-se, dentre as razões para as organizações populares estabelecerem alianças com as lideranças da política institucional, o fato delas facilitarem e agilizarem as soluções, conseguirem recursos, subsídios, melhorias. 165 figuras, bem como por entender que, em troca, tais políticos exigirão do movimento comprometer os votos da sua militância. Os núcleos, ocupações e conjuntos habitacionais constituem, sem dúvidas, um campo extremamente propício para a demagogia eleitoreira e para as disputas por parte de diversos partidos institucionalizados, especialmente porque nesses espaços urbanos, mais do que qualquer noutras áreas da cidade, espera-se encontrar um determinado perfil de eleitor, com base em certa categoria de problemas urbanos. Problemas estes que os políticos tradicionais reiteradamente utilizam em suas propagandas eleitorais, com vistas a ampliar suas relações com esses espaços e com os sujeitos que ali moram, usando o voto como moeda de troca para barganhar benefícios e serviços para a comunidade. Isto não significa precisamente o desconhecimento por parte dos moradores do jogo político do qual estão sendo objeto, muitas vezes até mesmo nele envolvendo-se propositadamente, como sintetiza Medina (1964, p. 88): “O eleitor diz que vai votar, mas não vota. O cabo eleitoral finge que acredita, mas não acredita. O candidato, pelo menos antes da eleição, embora já informado pelo cabo eleitoral, continua afirmando que conta com o apoio de todos”, todos cúmplices de uma mesma simulação. Os depoimentos dos dirigentes do MLB, particularmente, demonstram séria preocupação com relação a tal jogo político e sinalizam para uma postura de resistência às alianças e articulações com a política institucional: O nosso movimento é um movimento auto-sustentável. Ele principalmente depende da conscientização das famílias, que as famílias do MLB elas tem que manter a sua política econômica, pra que a gente não tenha que se articular com políticos. Porque quando a gente tenta se articular com os políticos, mais cedo ou mais tarde, eles findam cobrando. Então a gente não aceita isso, a gente não usa as famílias como barganha de troca (MLB 1). [...] é na eleição que os políticos, poder público, os vereadores, os deputados, vão atrás das lideranças [...] nesse momento é que chegava os cabos eleitorais pra tentar cooptar, e aqueles mais fracos do grupo nosso, acabavam se iludindo e iam por 200, por 300 reais, mas que ganhavam pouco. Por exemplo, dessas figuras que foram cooptadas, hoje nenhuma tem expressão [no movimento], eram lideranças inclusive da ocupação, tipo João. Cara da ocupação, depois que ele foi cooptado, que a gente identificou isso, fomos pra assembleia, colocamos em votação e ele foi afastado. Depois ele se isolou e hoje ele praticamente não existe. O cabo eleitoral usou ele e depois jogou fora, porque é isso que eles fazem, o que não serve mais pra eles, eles jogam fora (MLB 2). 166 Todavia, períodos de eleições municipais, como foi o caso do ano 2012, são em geral excelentes momentos para apreensão da relação estabelecida entre movimentos sociais da cidade e os sujeitos da cena política local. Dos três movimentos urbanos objetos de nosso estudo, dois deles – a APAC e o LPJ – entraram em contato com candidatos para a realização de debates entre eles e o conjunto da militância organizada naqueles movimentos. No caso da APAC, o debate se deu com os candidatos a prefeito e, no caso do Levante, o debate envolveu candidatos à câmara municipal de Natal originários do próprio bairro de Felipe Camarão. Nenhum dos dois movimentos se envolveu em qualquer campanha eleitoral que fosse e/ou elaborou nota pública explicitando a posição assumida em defesa de uma ou outra candidatura. Entendemos com isso que: ou a postura adotada por ambos os movimentos foi de promover o debate e deixar seus militantes livres para se manifestarem individualmente como favoráveis ou contrários às candidaturas em disputa, ou ainda, que os movimentos optaram por direcionar e definir o voto de seus militantes apenas internamente. Neste caso, não se tratava de resolução política que pudéssemos ter acesso enquanto pesquisadora. A postura do MLB foi, entretanto, diferenciada. Desde o primeiro turno das eleições municipais60, o movimento já manifestava seu voto para prefeito e para vereador(a). O trecho a seguir do panfleto distribuído pelo movimento nas ruas da cidade não deixa qualquer margem para dúvidas acerca da posição assumida: O Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) decidiu apoiar Carlos Eduardo para prefeitura de Natal por ele ter demonstrado, em sua gestão, sensibilidade com os movimentos sociais e em particular com os sem-teto. Prova disso foi a construção de quase 1.200 moradias, entre elas o Conjunto Emmanuel Bezerra, Conjunto Leningrado, Conjunto Santa Clara e Conjunto Esperança quando esteve a frente da prefeitura. No dia 25 de agosto, Carlos Eduardo participou de uma reunião com membros do MLB e deu uma nova mostra desse comprometimento, antecipando a proposta de incorporar sistemas de saneamento básico a todos os projetos de construção de casas populares que vier a executar num futuro governo. ‘Assim como fizemos quando estivemos à frente da Prefeitura 61 , só entregamos à população casas que tenham sua infra-estrutura [sic] completa, e nisso está inserido o saneamento básico’. Entretanto temos 60 Foram 06 (seis) os candidatos que concorreram à prefeitura de Natal: Carlos Eduardo (PDT), Fernando Mineiro (PT), Hermano Moraes (PMDB), Robério Paulino (PSOL), Roberto Lopes (PCB) e Rogério Marinho (PSDB). A eleição foi definida no segundo turno, entre os candidatos do PDT e do PMDB, ocasião em que Carlos Eduardo foi eleito prefeito de Natal com 214.687 votos. 61 Em 2000, Carlos Eduardo foi eleito vice-prefeito de Natal na chapa encabeçada por Wilma de Faria e em 2002 assumiu a prefeitura de Natal com a renúncia da titular para disputar e vencer o Governo do Estado. 167 certeza que as vitórias só foram possíveis porque nos organizamos e fomos a luta. Por isso temos que seguir em frente e continuarmos organizados para continuar a luta até que não exista mais um só sem-teto em Natal. Por isso o MLB através dos seus diversos núcleos, ocupações e conjuntos habitacionais em Natal, votam em Carlos Eduardo 12 62 (MLB, 2012, s/p). As candidaturas postas no centro do embate da disputa eleitoral deste ano de 2012 – Hermano e Carlos Eduardo - mais uma vez, refletiam a realidade de uma cidade historicamente marcada pela dominação oligárquica, expressa na submissão dos interesses do povo aos interesses das oligarquias Alves e Maia. Apesar de amplamente aclamada como “a festa da democracia”, corroboramos com a posição segundo a qual a luta eleitoral é compreendida como uma tática, e não apenas como mera fórmula burocrática. Portanto, não está dado de imediato, na concepção por nós defendida, que todos os partidos, movimentos e organizações de esquerda devam dedicar-se a ela do mesmo modo e em toda e qualquer conjuntura sócio-histórica, considerando-se os limites postos para um real acúmulo de forças da classe trabalhadora na luta eleitoral. Assim, o horizonte central para este momento permanece sendo a organização popular como mediação fundamental para a realização de uma transformação estrutural nesta sociedade. Nessa direção, diante do processo de disputa hegemônica, os movimentos populares de Natal demonstram bastante clareza quanto a que/quem são os opositores à concretização de seu projeto político: Nos confrontamos à ideia do sistema capitalista. Temos uma proposta de construção do projeto popular para o Brasil e construção da revolução brasileira (LPJ 1). E contra o que a gente luta hoje? Hoje a gente luta contra o sistema. Não é contra um político ou outro, é contra o sistema capitalista. Porque a gente acredita que enquanto existir o capitalismo, jamais a sociedade vai ser dividida de forma igualitária. Sempre alguém vai querer ficar com mais, mesmo sem ter trabalhado. Então quando a gente conseguir atingir esse nível de consciência de nossas famílias, que elas devem lutar por uma sociedade melhor, mais igualitária e que essa sociedade ela só vai encontrar dentro do socialismo, aí as coisas vão avançar na nossa luta (MLB 1). 62 Grifos do próprio documento. 168 Os opositores ao projeto político dos movimentos e organizações populares de Natal podem ser englobados nos mais diferentes movimentos e sujeitos que defendem um projeto de direita, atuando a serviço dos interesses do capital. Até porque, no Brasil contemporâneo, as forças de direita atuam em absoluta consonância com “a versão moderna das ideologias que alimentaram a perpetuação do poder das elites e das mentalidades conservadoras e antidemocráticas [...] Representa hoje a consolidação de uma sociedade de apartação social” (SADER, 1995, p. 193). Não sem razão, nossa pesquisa de campo indicou que uma análise da ação política dos movimentos sociais face o atual contexto pressupõe identificar os mecanismos engendrados pela atuação da direita brasileira na atualidade. Esta, além de permanecer atuante e com uma agenda própria em defesa dos privilégios e interesses das elites, tem não apenas operado na contramão à defesa de direitos sociais historicamente conquistados, como também investido, pesadamente, na criminalização dos movimentos sociais, conforme atesta o depoimento dos dirigentes dos movimentos urbanos em Natal: Nacionalmente o Levante já teve visibilidade midiática por conta dos escrachos realizados, e como isso mexe na ferida de muita gente, faz com que a relação com a mídia seja de atritos e de criminalização do movimento (LPJ 1). O maior desafio pro movimento hoje é a criminalização. Hoje nós temos um movimento massivo. Se não for o único, é o principal que consegue colocar hoje, do dia pra noite, 200, 500 pessoas nas ruas, por elas estarem organizadas, então por isso a gente sofre represálias né? [...] dizem que nós somos uma sociedade paralela, um poder paralelo. A gente sabe que isso é uma forma de criminalizar o movimento. Então nós temos companheiros que passaram por esse processo de represália... conseguirmos reverter. As famílias têm essa consciência de que não somos um Estado paralelo [...] (MLB 2). Ora, atualmente, a direita brasileira articula e combina muito bem formas de convencimento e apassivamento das pressões sociais com a truculência peculiar e histórica com a qual sempre tratou os interesses e os movimentos da classe trabalhadora. Esta realidade impõe, assim, imensos desafios para a articulação e materialização das bandeiras de luta da classe trabalhadora, pois o esforço direitista é justamente na direção de invisibilizar e despolitizar contradições sociais e lutas políticas. 169 [...] a gente fez um grande ato aqui na nossa cidade em direção ao ministério público. Então, houve o acirramento Justiça-Movimento [...] e, com isso, a gente foi processado né? Por depredação ao patrimônio público, por vandalismo, por organizar as famílias (MLB 1). Nós tivemos três companheiros processados. Uma companheira foi considerada culpada pela Justiça por organizar as famílias e a sua pena foi pagar com serviço social, zelando uma creche durante três meses. E o outro companheiro, ele ainda não foi julgado, o processo dele ainda está em aberto. Mas a gente sabe que não vai ser um processo que vai impedir da gente continuar, que não é o primeiro processo que os companheiros enfrentam, já é o quarto processo e mesmo assim, por mais que eles insistam em dizer que é impossível organizar as famílias, é possível sim (MLB 2). A criminalização dos movimentos sociais, reeditada e intensificada, em um contexto de ascensão dos setores conservadores e reacionários, adensa e torna mais agudos os impasses postos ao avanço das forças populares, nos levando a crer em uma reatualização das formas de dominação política historicamente empreendidas pelas oligarquias tão presentes e atuantes na cidade de Natal e no estado do Rio Grande do Norte. Por certo, anteriormente, as engrenagens constitutivas do jogo político das oligarquias Alves e Maia para legitimar-se no poder reproduziram amplamente a subalternidade das classes populares. Essas se baseavam, especialmente, na cooptação e no uso eleitoreiro de organizações populares. Nos anos 2000 acrescenta-se de forma mais nítida a estes mecanismos – ainda amplamente utilizados, como bem atesta a atuação dos modernos representantes destas oligarquias na cidade – o recurso largamente adotado de não apenas negar direitos via prestação de serviços precários, como também criminalizar aqueles sujeitos individuais e coletivos que se contrapõem a essa lógica em suas através de suas organizações. Aliás, como já anotara Antonio Gramsci (2002), quando ainda no cárcere, a dominação capitalista, mesmo que apareça disfarçada sob uma roupagem de hegemonia, nem por isso passa a descartar as medidas coercitivas de repressão às resistências populares, embora nem sempre nos sejam nítidos os traços de continuidades e rupturas entre uma medida e outra. Em geral, o braço coercitivo do capital se faz presente e atuante justamente nos momentos de eclosão de grandes acirramentos políticos e de confronto à sua hegemonia, momentos expressos, sobretudo, nas ocasiões em que os conflitos de classe ganham as ruas em forma de protestos, reivindicações e politização das demandas e dos interesses do trabalho. 170 Não por acaso, o grau de consenso ou de coerção adotado é definido pelo nível de acirramento dos conflitos classistas, isto é, quanto maior a capacidade de dominação ideológica do capital, mais reduzidos são os recursos coercitivos. Ademais, se por algum momento se intensifica o nível de consciência de classe e se ampliam as capacidades políticas e organizativas da classe trabalhadora em confronto com o capital, não tenhamos dúvidas: maior e mais ampla é, neste caso, a utilização dos mecanismos coercitivos. Isto porque a ação política dos movimentos sociais – urbanos e/ou rurais – constitui não apenas perigoso exemplo a atuar nas franjas da ação consciente, como a “[...] influir nesse espírito social disseminado que faz tantas vezes com que situações aparentemente calmas se vejam de súbito transtornadas por processos subjacentes em tempestades e tornados” (FON, 2008, p. 81). No processo de criminalização dos sujeitos que se opõe e questionam, de alguma forma, o status quo revela-se o papel coercitivo do Estado na defesa dos interesses do capital. Quando as disputas entre as classes antagônicas assumem formatos mais violentos, não é o capital e sim o Estado que conduz os referidos conflitos, ao mesmo tempo em que aparece disfarçado como Estado autônomo e neutro (WOOD, 2005), o que não apenas denuncia ser a repressão às classes dominadas – via exército, polícia, sistema judiciário e penitenciário – uma das funções do Estado, como também demonstra de modo mais evidente o seu compromisso com as classes dominantes, se desresponsabilizando para com as expressões da questão social, em sua dupla dimensão de desigualdade e rebeldia. Contudo, não se trata de um simples retorno ao passado do tratamento da questão social como caso de polícia - e nisto temos acordo com Rodrigo Castelo (2009) - embora esteja constatado o progressivo aumento do exercício da violência policial, militar e paramilitar na contenção das tensões sócio-políticas. O que temos é, na realidade, um novo padrão de intervenção na questão social que, ao agregar elementos consensuais e coercitivos, hegemônicos e ditatoriais, não recorre apenas aos aparelhos policiais, mas também aos militares. Não se trata, nesse sentido, de nenhuma particularidade das lutas urbanas em Natal e sim de uma realidade expressa na organização popular latinoamericana, o fato de estarmos diante de uma verdadeira militarização da questão social no continente, com os conflitos políticos sendo gradativamente deslocados para o plano militar, realidade a respeito da qual exemplos exaustivos podem ser encontrados em Castelo (Op. Cit). 171 Tendo em vista o poder de alcance da mídia, não somente como transmissora de informações, mas, sobretudo, na condição de formadora de opinião – dada sua ampla inserção no cotidiano dos indivíduos – ficamos a interrogar em que medida esta influencia compreensões acerca da questão social e dos movimentos que a politizam e, subjacente a isso, até que ponto a mídia poderia ser situada como aliada e/ou opositora à ação política dos movimentos sociais em Natal. Em Natal, verificamos que os movimentos populares demonstram considerar a mídia um espaço importante para publicizar questões que lhe são caras. Intencionam utilizar o espaço da mídia para “mostrar o seu lado”, contar a sua versão dos fatos e processos sociais e ao mesmo tempo questionar o papel do Estado na reprodução das desigualdades sociais. Contudo, encontram inúmeras dificuldades para se inserirem nos meios tradicionais de comunicação existentes na cidade, dado elucidativo do tratamento dado pela mídia aos movimentos sociais locais: A mídia ela nos trata de uma forma como se fosse... se a gente tá brigando contra o governo, só quem aparece é a mídia do município. Se a gente tá reivindicando contra o município, só quem quer aparecer é a mídia do governo. A gente acha isso errado. Porque não estamos disputando espaço político com ninguém, a gente quer que as reivindicações sejam atendidas. Então nós convidamos toda a imprensa, o jornal, o rádio, a TV, mas infelizmente eles só vêm quando acham que podem usar essas imagens pra prejudicar o outro lado e não pra mostrar pra sociedade que existe um movimento organizado que está reivindicando uma melhoria pra nossa cidade (MLB 1). A mídia de Natal, assim, é uma mídia tendenciosa... extremamente tendenciosa... porque é uma mídia deles né? A TV Ponta Negra é de Micarla, a Tribuna do Norte é dos Alves... então, a gente conseguir projeção na mídia local, a gente nunca conseguiu [...] aqui, as poucas vezes que a gente conseguiu ser entrevistado... sempre é uma coisa bem rápida. Aí quando você vai ver a entrevista... tem uma entrevista da única audiência pública promovida pela prefeitura que é duas laudas de Tereza Cristina mentindo e um parágrafo das reivindicações da APAC. A gente nunca conseguiu de, por exemplo, no dia em que Demétrios Torres foi dizer no Diário de Natal que a gente tinha interesses privados nessa construção da APAC, eu liguei pro Diário de Natal pedindo direito de resposta e me foi negado! ‘não, vamos deixar isso pra lá...’ mas você não ouviu o outro lado? Então, você tem que me ouvir... Mas as poucas vezes que eles procuraram a gente, a gente deu a entrevista, algumas saíram totalmente distorcidas... você diz A e sai C lá... mas da gente consegui ‘ah! A gente vai fazer um ato público aqui, vocês podem vim cobrir?’ não, podem não (APAC). Ratificando o depoimento da liderança da APAC, Marques (2011) afirma que, no Rio Grande do Norte, grande parte dos políticos são donos ou sócios de canais abertos de televisão e emissoras de rádio, quais sejam: TV Ponta Negra (Família Souza, isto é, família de Micarla, prefeita de Natal 2008-2012), InterTV Cabugi 172 (Família Alves, a família de Carlos Eduardo, atual prefeito da cidade, eleito em 2012) e TV Tropical Natal (Família Maia, do então senador Agripino Maia), o que sugere a tamanha relevância que tais veículos de comunicação assumem na conquista do eleitorado e na manutenção dos cargos políticos, assim como o quanto estes favorecem e impulsionam os interesses econômicos e políticos de grupos sociais específicos. Constitui tendência nacional que vem historicamente se delineando, estando bastante explícita na contemporaneidade, “[...] a concentração dos meios de comunicação nas mãos de empresários, dublês de políticos, e de algumas poucas famílias poderosas, os quais fazem desse ofício um negócio lucrativo” (SALES, 2007, p. 99), sem dúvidas em detrimento de qualquer papel social e público que poderia cumprir. As intervenções da mídia dominante, ao contrário do que muitos pensam e do que ela própria proclama, estão longe de serem neutras e imparciais. Desse modo, embora a mídia anuncie em muitos momentos as demandas sociais das classes pauperizadas, um exame mais apurado demonstra o quanto esta é perpassada pela ideologia das classes dominantes. Fragmentos e recortes da realidade são veiculados como sendo a totalidade do real, sob a ótica das elites políticas detentoras da mídia local, contribuindo também em muitos dos casos para a criminalização dos movimentos. O esforço midiático é por sedimentar consensos, na proporção em que procura minimizar contradições e antagonismos. Mesmo quando os movimentos conseguem algum espaço na mídia natalense, as notícias apregoadas são predominantemente seguidas por análises que culpabilizam os sujeitos, criminalizam os processos político-organizativos, naturalizam as desigualdades e ocultam suas determinações. Ainda que não neguemos a contradição, podemos dizer que a relação dos movimentos sociais em Natal com a mídia local é expressão dos conflitos e tensionamentos políticos e ideológicos do território da cidade, denotando um diálogo desigual, marcado pela unidirecionalidade da comunicação praticada (NOVA, 2000), mesmo que tal comunicação não esteja isenta dos tensionamentos e das contradições da dinâmica social. Identificar aliados e opositores no processo da ação política empreendida pelos movimentos urbanos em Natal nos remete à lembrança de que, com o avançar 173 do pensamento pós-moderno, tem sido cada vez mais comum afirmações que negam a validade da distinção entre Direita e Esquerda, para os dias de hoje, tanto do ponto de vista teórico, como principalmente do ponto de vista prático-político, o que nos é digno de preocupações. Afinal, até que ponto ocultar ou tentar omitir a existência de uma real distinção prático-política entre Direita e Esquerda, não seria, em última instância, uma postura de Direita ou, em outros termos, uma estratégia da política conservadora? Temos afirmado que, em uma sociedade marcada pela divisão de classes, são os interesses antagônicos que impulsionam a política, por meio do enfrentamento de forças entre as classes e, não nos contempla, portanto, o argumento da mera insuficiência conceitual de qualquer par ambivalente que se apresente. A oposição entre Direita e Esquerda constituiria um maniqueísmo? Estes seriam os termos de um debate que já não mais interessa? Direita e Esquerda seriam hoje “nomes sem sujeitos”? A complexificação das relações sociais impossibilita dizer o que é próprio de um campo político e o que seria de outro? Ora, se para alguns é preferível falar, por exemplo, em conservadores e progressistas, tudo bem. Mas essas novas nomenclaturas em nada nos autorizam a considerar inválida a distinção Direita e Esquerda. Tendemos a crer que se tomamos como horizonte o solo histórico no qual se processam as relações sociais concretas – concretude e materialidade da qual as análises tecidas em nossa pesquisa representam apenas uma pequena parcela -, teremos mais elementos para afirmar que Direita e Esquerda estão longe de poder assumir a forma de “dialetos de uma mesma língua”63. Ademais, em ambos os casos, permanece a existência de sujeitos sociais que as materializam a partir de interesses em disputa. 63 Conclusão, do nosso ponto de vista bastante equivocada, a que chega parte da literatura especializada das ciências sociais. 174 Considerações Finais ... Aquele que parte não é nunca o mesmo que regressa... 175 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste item nos limitamos a retomar e sintetizar as discussões fomentadas no decorrer de todo o trabalho, ressaltando, principalmente, os resultados da nossa pesquisa e as conclusões elaboradas a partir disso, tendo a clareza de que no que se refere ao campo da produção científica de conhecimento, nenhuma afirmação é insuperável. Apesar da singela pretensão inicial, não nos omitimos da reflexão acerca do que foi nosso percurso de pesquisa, destacando especialmente reflexões acerca do temário aqui discutido e da concepção de intelectual que passa a nos orientar. Até onde fomos e aonde chegamos? “O caminho acabou... A viagem apenas começa” (Lukács). Dando por pressuposto que a reprodução do capital permeia as distintas expressões da vida em sociedade, o presente estudo demarcou as desigualdades sócio-espaciais como parte da reprodução ampliada das relações de produção capitalista. Com essa dimensão, a pesquisa nos permitiu destacar as relações e processos sociais por meio dos quais a questão urbana se realiza e, nesse sentido, demonstramos qual a influência da acumulação ampliada do capital sobre a configuração do urbano, da cidade e da existência social de quem nela vive e trabalha. Evidenciamos, assim, que o processo de produção capitalista do espaço é um processo de relações sociais entre classes. Relações estas engendradas contraditoriamente e marcadas pelos antagonismos de interesses que as caracterizam e tendem a se aprofundar, os quais se expressam na luta de classes. Face o crescimento do capital, do ponto de vista da classe trabalhadora, o que se tem é um crescente pauperismo, do qual as questões relativas ao urbano e à moradia representam apenas uma de suas dimensões. Procuramos, assim, explicitar que os fundamentos que explicam as contradições particularizadas nos espaços urbanos devem ser buscados na análise 176 rigorosa do processo de produção do capital. O desenvolvimento das forças produtivas, que conduz à gênese e desenvolvimento do modo capitalista de produção, apresenta como características imanentes a exploração, a apropriação de espaços e a destruição de recursos naturais e da força humana de trabalho, com vistas a assegurar taxas crescentes de lucro. No contexto de aprofundamento da crise do capital e das formas de segregação sócio-espaciais, temos assistido o avanço dos processos de expropriação urbana e das investidas do grande capital transnacional. Tais dinâmicas sociais inscritas no espaço urbano ocorrem em um momento histórico em que as cidades se situam ao mesmo tempo como ponta de lança de grandes investimentos e como sedes das infraestruturas necessárias ao processo de acumulação e de reprodução ampliada do capital com repercussões graves sobre as condições de vida e de moradia de segmentos da classe trabalhadora. Desse modo, a dinâmica de produção e de reprodução do espaço não pode ser pensada excetuada de sua intrínseca relação com os processos de acumulação capitalista e de exploração da força de trabalho. Nesse sentido, o método da economia política se revelou de grande valor para apreendermos a dinâmica atual da sociedade capitalista, com o agravamento das desigualdades sociais geradoras de fenômenos como a pobreza urbana e rural, de situações de pauperismo tanto no campo quanto na cidade, o uso predatório dos recursos ambientais, mas também as formas de resistência frente às expressões da questão social e às lutas em defesas de direitos das classes trabalhadoras, no campo e na cidade. A luta pela sobrevivência e o confronto direto ou indireto com os interesses do capital constitui o movimento no qual e através do qual as bandeiras de luta, reivindicações e frentes de atuação dos movimentos sociais articulados no território urbano natalense se engendram, se renovam e se peculiarizam. É neste contexto de reprodução das relações contraditórias entre as classes que se torna possível apreender o sentido histórico das bandeiras de luta empreendidas. A centralidade que as pautas em torno da questão da moradia assumem na ação política dos movimentos sociais urbanos, conforme indicado pela pesquisa, é sintomática do quanto a habitação constitui uma das necessidades básicas à reprodução social e da força de trabalho, assim como é o caso também de 177 serviços e equipamentos sociais básicos, igualmente objeto das reivindicações e demandas construídas pelos movimentos sociais em Natal. Com ressalvas e receios quanto a generalizações apressadas, podemos afirmar a partir da pesquisa realizada, que as formas de que se revestem as reivindicações e lutas dos movimentos e organizações populares em Natal perpassam por reuniões e visitas de rua em rua, casa em casa, adoção de abaixo- assinados, manifestos e realização de atos públicos, mas principalmente revelou-se o diálogo e as conversas individuais com os(as) moradores como uma das estratégias mais presentes no cotidiano da organização e mobilização dos movimentos sociais e organizações populares em Natal. Estratégias como ocupação/acampamento também vão se delineando e sendo construídas como ações intrínsecas à atuação política dos movimentos organizados em torno do direito à cidade em Natal. Processo no qual nos foi possível constatar que, sob a ótica dos movimentos pesquisados, o chamado trabalho de base se movimenta sob uma dupla perspectiva: a de algo fundamental tanto para a mobilização popular (no sentido de estratégia importante a ser cultivada no seio da luta social) quanto para o despertar da consciência e da necessidade de formação política da militância. As dificuldades que os movimentos encontram para mobilizar e organizar suas bases estão inscritas no âmbito das questões advindas de uma série de mecanismos de reprodução da ordem dominante. Perpassa pela vivência cotidiana de negação de direitos e está diretamente relacionada à noção amplamente difundida do ‘triunfo do mais forte ou do mais esperto impondo-se contra a vontade dos outros’ (SADER, 1989) ou ainda da concepção segundo a qual ‘Estado deu – Estado tirou’, em analogia ao ‘Deus deu – Deus tirou’ (FAUSTO NETO, 1993). A ofensiva ideológica e suas implicações no campo da subjetividade humana – entendida aqui como sendo dialeticamente determinada pelo processo produtivo e as particularidades da formação sócio-histórica brasileira, mas nem por isso de menor importância – foi também mencionada em nosso estudo como fator gerador de parte significativa das dificuldades de organização e mobilização com as quais se deparam os movimentos sociais na construção da ação política cotidiana, na proporção em que tal ofensiva ideológica revitaliza o conservadorismo e seus valores. Torna-se, com isso, o trabalho de mobilização dos moradores da periferia urbana uma tarefa ainda mais difícil. 178 A pesquisa enfatiza, assim, que há que se considerar, nesse processo, a correlação de forças estabelecida. Nos momentos de confronto, de enfrentamento real de forças, a posição que um ou outro setor da sociedade assume pode até parecer óbvia, mas não o é em muitos dos casos. De um lado, a aliança construída entre os movimentos e organizações populares de Natal pesquisados e os movimentos da Via Campesina e o movimento sindical, bem como com políticos locais tidos como “comprometidos com as lutas populares” e intelectuais diversos, pode ser uma pista em relação a como superar a fragmentação ainda bastante forte entre as diferentes lutas. Envolve compreender que a subsunção do trabalho ao capital não se restringe ao espaço da produção, na medida em que é extensiva à totalidade da vida social e, nesse sentido, o seu enfrentamento exige a construção da unidade. Por outro lado, aqueles setores contrários ao projeto político dos movimentos e organizações populares de Natal – conglomerados em nossa pesquisa no âmbito dos mais diferentes movimentos e sujeitos que defendem um projeto de direita – têm buscado obliterar os antagonismos sociais e despolitizar os conflitos postos na cena pública pelos movimentos organizados na cidade, atuando a serviço dos interesses do capital. É neste intento que diversos recursos vêm sendo utilizados, desde a negação de direitos via prestação de serviços precários, até a criminalização daqueles sujeitos individuais e coletivos que se contrapõem a essa lógica em suas formas organizativas, o que fica expresso também no tratamento dado pela mídia aos movimentos sociais locais. Quanto ao embate entre projetos antagônicos, numa perspectiva radicalmente divergente da linha teórica pós-moderna e neoconservadora, nosso estudo evidenciou a fragilidade das assertivas que afirmam os movimentos sociais da atualidade evitarem confrontos com outros sujeitos e construírem sua ação política diluindo as fronteiras de classe, isto é, desconsiderando divergências em termos de projetos societários defendidos. Ao contrário, é verdadeiro afirmar que - dando por reconhecida as imensas dificuldades de resistência enfrentadas pelos movimentos classistas – alguns movimentos sociais têm (re)inventado importantes formas de confronto. 179 Todavia, o fazer político na realidade local e os conflitos de classe aqui gestados estão condicionados por um contexto nacional de “diminuição da pobreza com a manutenção da ordem”, isto é, sem confrontar os interesses do capital. Com isso, até se consegue em alguns momentos a atenuação de conflitos (e sua decorrente despolitização), o que se dá, todavia, às custas de um alargamento significativo do tempo necessário para arrefecimento da desigualdade social, fazendo com que esta decaia de modo substancialmente lento, sinalizando novos desafios postos à organização popular. Face às análises que nos esforçamos para tecer, nossa insistência é por reafirmar aquilo que, em nossa concepção, está longe de estar superado: a necessidade de refundar a esquerda para refundar o Brasil. Necessidade hoje ainda mais premente, na proporção em que diversas expressões da barbárie se manifestam acentuadamente e, nesse processo, a história transcorre e nela a ação política dos movimentos vai se delineando. Mas qual a validade desta afirmação em um tempo no qual se proclama amplamente o exaurimento das possibilidades objetivas de revolução? Em um tempo no qual o anúncio do adeus ao trabalho (GORZ, 1982) é também um anúncio de fim da luta de classes e um adeus à história e à possibilidade de construí-la? Ora, é inegável que as transformações ocorridas no mundo do trabalho e na dinâmica de produção capitalista operaram também alterações substantivas no seio da classe trabalhadora e produziram um cenário de inúmeras dificuldades, dilemas e desafios para a organização política crítica e combativa. Entretanto, a realidade também está prenhe de focos de resistência classista. Não nos rendamos, portanto, ao status de verdade irrefutável que parece ter adquirido o pensamento do fim da história. Tarefas primordiais e plenas de atualidade para a organização da classe nos são impostas. 180 Em busca da utopia nas asas da liberdade “É hora de voltarmos para casa. Arrumamos nossas malas, mas podemos perceber que as bagagens aumentaram, não temos mais o mesmo volume de quando chegamos, parece que tudo aumentou e as nossas roupas e objetos não cabem mais em nossas malas e sacolas. Não é quase sempre assim ao chegarmos ao fim de uma viagem? Na pesquisa também [...]” (Glaúcia Russo). O tema objeto de nosso estudo chegou a ser recebido com surpresa por determinados sujeitos, em espaços nos quais o apresentamos. Por vezes, nos disseram ser absolutamente compreensível a pesquisa de tal temática nos anos 1970/1980, mas o que poderia me provocar esta investigação na década de 2010? A surpresa nos parece está implicada ao fato de estarmos não em um período de ascenso das lutas sociais, e sim em tempos definidos por Bertold Brecht como um período no qual “depois de trabalharmos por tanto tempo parecemos estar em situação pior que no início”, pois “nossas palavras de ordem estão em desordem”, chegando até mesmo a ficarem irreconhecíveis. Nesse sentido, se o tema a ser discutido na Dissertação se constituiu como nosso ponto de partida para esta investigação, ao final da pesquisa e das análises dialeticamente possibilitadas e limitadas pelos nossos horizontes teórico- metodológicos - em um movimento de retorno - nosso objeto de estudo volta a ser o centro de nossas atenções. Agora, por estarmos já tão perto da “linha de chegada”, não olhamos mais para nosso tema sob a mesma ótica. Seja no que se refere aos movimentos sociais, seja no que diz respeito à questão urbana. Especialmente porque na medida em que pesquisávamos também procurávamos refletir sobre estas temáticas na condição de objeto de pesquisa do Serviço Social. Tomar como referência artigos publicados nos anais dos Encontros Nacionais de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS) e dos Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais (CBAS), situados dentre os principais eventos da categoria, foram balizas fundamentais para alimentarmos reflexões e incitarmos questionamentos a respeito. Para tanto, recorremos especialmente a duas pesquisas distintas que identificam e apreendem como o tema da questão urbana e dos movimentos sociais se fazem presentes nos espaços de divulgação e 181 socialização do conhecimento, fomentados pela categoria profissional de assistentes sociais no Brasil. A primeira pesquisa a que nos referimos, resultante de esforços de investigação no âmbito do Projeto: “Questão Urbana, Agrária e Ambiental na atual fase de acumulação capitalista”, demonstra que há crescente interesse pela temática da “questão urbana” por parte de pesquisadores, profissionais e estudantes de Serviço Social e esforços de sistematização e pesquisa, evidenciados no número de trabalhos e na busca de qualidade dos mesmos. Mas há também necessidade de aprofundamento teórico-metodológico para uma produção do conhecimento em consonância com o Projeto Ético-Político (Cf. GUERRA, GUIMARÃES e SILVA, 2012). No que se refere à produção teórica abordando a relação entre questão urbana e Serviço Social, a pesquisa citada percebe duas tendências se delineando: uma primeira, e menos expressiva, de trabalhos publicados, que situa esta relação no plano da dimensão político-organizativa e, uma segunda tendência, bastante frequente nos artigos analisados, que problematiza a relação do Serviço Social com a questão urbana do ponto de vista do exercício profissional. A segunda pesquisa, do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), revela que apesar do tema “movimentos sociais” não ter desaparecido por completo dos espaços de produção e socialização do conhecimento do Serviço Social, a profissão teve no último período um distanciamento profundo em relação ao mesmo, fruto das referências teóricas que orientaram as reflexões do tema na profissão, onde informavam o recuo ou simples desaparecimento dos movimentos sociais da cena política, tendo ainda poucos trabalhos que mencionam a relação entre movimentos sociais e o Serviço Social. Entretanto, a ressalva feita por Ribeiro e Schuelter (2011) é elucidadora: as ações e as conquistas no âmbito do Estado pelos movimentos sociais urbanos indicam que estes continuam interferindo nas políticas públicas por meio da formulação de propostas de programas e mecanismos de negociação e pressão, sendo elementos cruciais para a democratização das instâncias estatais e de acesso aos direitos urbanos. É urgente, pois, que a profissão tenha um quadro mais amplo e atualizado acerca das teorias dos movimentos sociais hoje, bem como uma nova percepção acerca destes. 182 Pequenas demonstrações que nos levam a crer no quanto as transformações societárias recentes não impactaram somente a ação dos movimentos, mas também o campo de pesquisa sobre eles, nos possibilitando a visualização de novos desafios para nossa pretensa condição de intelectual/pesquisadora. Não obstante, de tudo, fica uma lição a mais que não poderia escapar aos meus registros e foi no pensamento gramsciano que a encontrei: o papel dos intelectuais em sua atividade política e ideológica. Eis a elaboração que melhor contempla o meu entendimento daquilo que me cabe nesse processo. Ser intelectual, nesta acepção, não significa compor um restrito grupo de “especialistas” em conceitos e temas, tampouco a criticidade e capacidade teórica constitui atributo de exclusividade destes afamados especialistas. Até porque, não existindo atividade humana que dispense o uso do intelecto, também não existem “não intelectuais”. Pode-se falar, no máximo, em atividades intelectuais de diversos graus. Estamos tentando dizer com isso que a formação profissional e o acúmulo teórico e analítico são fundamentais (e estamos a buscá-los), mas são sem dúvidas insuficientes para a proposta de intelectual segundo a qual almejamos nos construir (e contribuir para a sua construção em outros sujeitos). Mesmo sendo um processo longo, difícil e permeado por muitas contradições, avanços e recuos, o fundamental aqui é saber não ser possível forjar-se intelectual sem estar próximo às massas (digo: intelectual orgânico do proletariado), sem vincular sua formação às experiências concretas de organização da classe. É inconteste que precisamos romper com o isolamento acadêmico. Já não nos pode ser mais permitido – se é que algum dia foi – continuarmos a ter como trilha sonora para nossas vidas acadêmicas o canto que diz “isso tudo acontecendo e eu aqui na praça, dando milho aos pombos”.... Não transformaremos a sociedade trancados em gabinetes de estudo, entre livros e computadores. Tarefas plenas de atualidade e de urgência histórica nos aguardam e, nesse sentido, se é verdade que ousamos não aceitar a realidade que temos, se não nos contempla a sociabilidade atual, então ousemos também projetar nossos sonhos. E mais: façamos isso nos reconhecendo como classe e caminhando, lado a lado, com a classe trabalhadora. Não nos distanciemos. Afinal... 183 “Abriu-se para nós nesta fresta de tempo ao fim do século a possibilidade de dizer: que fome, miséria e tirania não são heranças. Heranças são as obras, são os feitos, são os sonhos desenhados pelos pés dos velhos caminhantes que plantaram na história sementes de esperança e nos legaram a tarefa de fazer através da luta, o caminho de vencer [...] E nessas marcas de bravos lutadores iniciamos a edificação de novos seres construtores de um projeto que nos levará à nova sociedade. Marchamos por saber que em cada coração há uma esperança. Há uma chama despertada em cada peito. E a mesma luz é que nos faz seguir em frente e tecer a história assim de nosso jeito. A dor, a fome, a miséria e a opressão não são eternas. Eternos são os sonhos, a beleza e a solidariedade, por estarem ao longo do caminho de quem anda em busca da utopia nas asas da liberdade [...]” (Ademar Bogo). 184 REFERÊNCIAS: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Orgs). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ANDRADE, Ilza Araújo Leão de. Políticas e Poder: o discurso da participação. São Paulo: Ad Hominem, 1996. BARREIRA, Irlys Alencar Firmo. Movimentos urbanos, Estado e política social: dinâmica da reprodução e do conflito. In: BRAGA, E. M. F; BARREIRA, I. A. F. A política da escassez: lutas urbanas e programas sociais governamentais. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha; Stylus Comunicações, 1991. BARROCO, Maria Lúcia. As atividades emancipadoras. In: Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2007. BEHRING, Elaine. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo: Cortez, 2003. ______; BOSCHETTI, Ivanete. 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( ) Sim ( ) Não Qual? ____________________ 7 Há quanto tempo participa deste movimento social? ( ) menos de 2 anos ( ) 2 a 5 anos ( ) 6 a 10 anos ( ) mais de 10 anos 8 Participa da direção do movimento há: ( ) apenas uma gestão ( ) duas gestões ( ) três gestões ( ) mais de três gestões 197 09 Antes de sua inserção no MLB, participou de algum outro espaço de organização coletiva? ( ) Sim ( ) Não Qual? ___________ 10 É filiado(a) a algum partido político atualmente? ( ) Sim ( ) Não Qual? __________ 198 B – ROTEIRO DE ENTREVISTA 1. Fale sobre o surgimento, a articulação deste movimento / organização, o que motivou a articulação, como vocês decidiram constituir esta organização? 2. Explique a dinâmica de atuação 3. O que te motivou a participar deste Movimento Social? 4. Quais as principais lutas já realizadas e o que conquistaram? 5. Presença dos serviços e politicas públicas e relação com os poderes públicos (explicitar) 6. Fale das reivindicações atuais e das frentes de luta do movimento 7. Comente as estratégias adotadas no processo de organização e mobilização do movimento 8. Vocês têm alguns apoiadores, aliados? Com quem o movimento se articula na defesa de suas propostas e contra quem o movimento se confronta diretamente? 9. Quais os maiores desafios para o movimento na atualidade? 10. Como se dá a relação entre o referido movimento com outros Movimentos Sociais 11. Fale das relações com a mídia 12. Quais as principais iniciativas/ações realizadas pelo Movimento no sentido de defesa e garantia de direitos para os moradores que vocês representam 13. Quais os avanços/conquistas e dificuldades/entraves que o movimento encontra na sua intervenção? 14. Comentários e questionamentos que o/a entrevistado/a queira acrescentar 199 C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE) UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ESCLARECIMENTO Convidamos você, por meio deste documento a participar da pesquisa “CONTRADIÇÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE: movimentos sociais e organização popular em Natal-RN”. Temos como objetivo analisar dilemas e contradições que perpassam a organização política dos movimentos sociais urbanos e organizações populares existentes em Natal-RN. A pesquisa tem como orientadora a Dra. Eliana Costa Guerra, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Os riscos que podem decorrer para os(as) participantes da pesquisa são mínimos. As pesquisadoras responsáveis estão comprometidas em armazenar sigilosamente todos os dados obtidos, utilizando- os apenas para fins científicos de análise da realidade social, sem dar margem para pensamentos preconceituosos nem estigmatizantes. Não explicitaremos a identidade dos(as) informantes. Para assegurar o sigilo e a segurança, utilizaremos pseudônimos ao nos referirmos às mesmas nos nossos relatos de pesquisa. As gravações e os formulários serão guardados em local sigiloso e seguro, em arquivos digitais e impressos na secretaria do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, durante um período de cinco anos. Não reconhecemos outros riscos. Os benefícios da pesquisa para os(as) entrevistados(as) são considerados indiretos, de caráter sócio- cultural, uma vez que os resultados, quando divulgados amplamente, poderão subsidiar discussões e práticas no âmbito da organização e ação política no movimento de bairro. Deste modo, os dados e análises podem nortear ações públicas que busquem a efetivação do direito à cidade em Natal. A pesquisa em foco poderá ainda subsidiar a análise sobre os avanços e dificuldades dos movimentos urbanos em Natal, e, do mesmo modo, subsidiar possíveis intervenções/ações do poder público. Sua participação é importante porque suas respostas às nossas perguntas contribuirão com essa análise, viabilizando o entendimento da atual situação dos movimentos urbanos que atuam nos bairros da capital potiguar. Para isso, pedimos seu consentimento para realizar algumas perguntas sobre o movimento ou associação do qual você é dirigente e/ou coordenador. Para entender melhor a realidade social e como ela influencia a organização popular em Natal, necessitamos conhecer a sua experiência visando a ampliação do conhecimento sobre a realidade dos movimentos urbanos e da luta pelo direito à cidade, contribuindo com a discussão sobre os movimentos e as lutas urbanas nesta sociedade. Se você decidir participar, você será submetido(a) ao procedimento de entrevista nos fornecendo informações importantes sobre as experiências do cotidiano da atuação do movimento social do qual você faz parte. 200 Sua participação é completamente voluntária, de modo que você tem liberdade para desistir, retirando seu consentimento em qualquer momento da pesquisa, não tendo com isso prejuízo ou penalidade. Se sentir-se constrangido(a) de alguma forma, em qualquer momento poderá se recusar a responder a alguma pergunta ou solicitar a suspensão parcial ou total da gravação por nós realizada. Obedeceremos critérios técnicos adequados de forma a não prejudicar a qualidade e autenticidade das informações, utilizando a técnica de análise de conteúdo. Armazenaremos as transcrições em meio digital nos arquivos do Programa de Pós Graduação em Serviço Social – PPGSS/UFRN. Garantimos que serão mantidos sigilo e respeito, ou seja, o seu nome ou qualquer dado que possa identificá-lo não serão expostos nesse trabalho. Se você tiver algum gasto financeiro comprovado decorrente da sua participação na pesquisa, você será ressarcido(a). Se você sofrer algum dano comprovadamente decorrente desta pesquisa, você terá direito a indenização. Disponibilizaremos uma cópia deste Termo e as dúvidas que surgirem a respeito desta pesquisa, poderá perguntar diretamente para Maria Clariça Ribeiro Guimarães, no endereço eletrônico: clara_ama@yahoo.com.br ou pelo telefone: (84) 8731-1880. Dúvidas a respeito da ética dessa pesquisa poderão ser questionadas ao Comitê de Ética em Pesquisa da UFRN no endereço eletrônico: email: cepufrn@reitoria.ufrn.br ou o site: www.etica.ufrn.br ou pelo telefone: (84) 3215- 3135. CONSENTIMENTO APÓS O ESCLARECIMENTO Eu, __________________________________________________________, declaro que estou ciente dos objetivos dessa pesquisa e de ter compreendido as informações dadas pela pesquisadora, e por livre e espontânea vontade, aceito participar da pesquisa intitulada CONTRADIÇÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE: movimentos sociais e organização popular em Natal-RN. Permito que as informações que prestei sejam utilizadas para o desenvolvimento da mesma. Natal, ______ de ___________________ de ________ ______________________________________________________ ASSINATURA _____________________________________________________ Maria Clariça Ribeiro Guimarães Pesquisadora responsável 201 D – TERMO DE AUTORIZAÇÃO DA GRAVAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL TERMO DE AUTORIZAÇÃO Eu, __________________________________________________________, autorizo a gravação em áudio das informações que prestarei à pesquisadora responsável durante a entrevista que faz parte do processo de coleta de informações da pesquisa: CONTRADIÇÕES URBANAS E DIREITO À CIDADE: movimentos sociais e organização popular em Natal-RN. Permito que as informações que prestei sejam utilizadas para o desenvolvimento da mesma. Elas poderão ser gravadas em meio digital, e armazenadas em mídias eletrônicas, transcritas a partir de critérios técnicos adequados de forma a não prejudicar a qualidade e autenticidade das informações, bem como poderei solicitar a leitura das transcrições a qualquer momento. Estou ciente de que as transcrições serão armazenadas em meio digital nos arquivos do Programa de Pós Graduação em Serviço Social – PPGSS/UFRN durante o período de 5 (cinco) anos. Se sentir-me constrangido(a) de alguma forma em qualquer momento, poderei me recusar a responder qualquer pergunta ou solicitar a suspensão parcial ou total da gravação realizada. Certo de que as informações serão utilizadas apenas para fins científicos de análise da realidade social, permito que sejam utilizadas para o desenvolvimento da referida pesquisa. Natal, ______ de ___________________ de ________ ______________________________________________________ ASSINATURA _______________________________________________________ Maria Clariça Ribeiro Guimarães Pesquisadora responsável 202 E – CARTA DE ANUÊNCIA DO CRDH 203