UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA MÍDIA
MANOEL MEIRELLES AMORIM BATISTA
A PAISAGEM NORDESTINA NO FILME O CÉU DE SUELY:
UMA ANÁLISE DE ESPACIALIDADES NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
NATAL / RN
2017
MANOEL MEIRELLES AMORIM BATISTA
A PAISAGEM NORDESTINA NO FILME O CÉU DE SUELY:
UMA ANÁLISE DE ESPACIALIDADES NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Mídia, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para a obtenção do título de mestre em
Estudos da Mídia.
Linha de Pesquisa: Estudos da Mídia e Produção
de Sentido
Orientadora: Profa. Dra. Josimey Costa da Silva
NATAL / RN
2017
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Batista, Manoel Meirelles Amorim.
A paisagem nordestina no filme "O Céu de Suely":
uma análise de espacialidades no cinema contemporâneo
/ Manoel Meirelles Amorim Batista. - 2017.
140 f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos
da Mídia, 2017.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Josimey Costa da Silva.
1. Paisagens - Brasil, Nordeste. 2. Cinema
contemporâneo. 3. Cinema - Brasil, Nordeste. I. Silva,
Josimey Costa da. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU
791.43(812/813)
Manoel Meirelles Amorim Batista
A PAISAGEM NORDESTINA NO FILME O CÉU DE SUELY:
UMA ANÁLISE DE ESPACIALIDADES NO CINEMA CONTEMPORÂNEO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos da Mídia, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial para a obtenção do título de mestre em
Estudos da Mídia.
Apresentada em: ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dra. Josimey Costa da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Orientadora
_______________________________________________
Prof. Dra. Maria das Graças Pinto Carvalho
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Presidente da Banca
_______________________________________________
Prof. Dr. Marcel Vieira Barreto Silva
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Examinador Titular
_______________________________________________
Prof. Dra. Maria Angela Pavan
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Examinadora Titular
_______________________________________________
Prof. Dr. Allyson Carvalho de Araújo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Examinador Suplente
Dedico este trabalho à minha avó Zuleide.
Vida.
Dedico aos meus tios Pedro e Sheila, Elbio e Neuma, Jorge e Helen, Robério e Margarida.
Família.
Dedico também à Sarah.
Amor.
“Não espere nada do centro /
se a periferia está morta /
pois o que era velho no norte /
se torna novo no sul”.
Tony Regalia
AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos acadêmicos dirijo, em primeiro lugar, à minha orientadora, Prof. Dra. Josimey
Costa da Silva, que com tanta dedicação e acertada sensibilidade soube me guiar nesta caminhada.
Inúmeras vezes teve que me socorrer, auxiliar, indicar soluções e caminhos. Para ela os meus mais
profundos e sinceros agradecimentos.
Agradeço à Prof. Dra. Maria Helena Braga e Vaz da Costa pelas observações e sugestões emitidas
enquanto integrante da banca examinadora de minha qualificação, que ocorreu no dia 30 de setembro
de 2016. Seu espírito crítico certamente provocou em mim muitas dúvidas e abriu novas questões para
o desenvolvimento posterior deste trabalho.
Agradeço ao Prof. Dr. Durval M. Albuquerque Júnior pelas observações e sugestões emitidas também
enquanto integrante da banca examinadora de minha qualificação, no dia 30 de setembro de 2016.
Suas numerosas considerações construtivas são notórias ao longo de meu texto, tendo assim
contribuído substancialmente para que eu chegasse a bom termo nesta dissertação.
Agradeço também à Prof. Dra. Maria das Graças Pinto Carvalho, que tem sido minha professora e
coordenadora do curso, por concordar em assumir a presidência da presente banca. A ela me ligam
laços profundos do passado que ainda hoje marcam minha forma de encarar a vida.
Um agradecimento especial faço à Prof. Dra. Maria Angela Pavan, a qual me acompanha desde a
graduação e tem estado presente de forma vital e certeira, sem a qual esse percurso não teria sido
possível. Sua presença na banca é para mim inestimável.
E agradeço desde já aos demais membros da banca, Prof. Dr. Marcel Vieira Barreto Silva e Prof. Dr.
Allyson Carvalho de Araújo, por terem aceitado integrar a banca examinadora.
Nos agradecimentos não acadêmicos, pessoais, faço aqui meu reconhecimento a todos aqueles
que me alentaram, apoiaram, incentivaram, me fizeram acreditar, me deram forças quando
estas faltaram. A toda essa grande família, lato sensu, minha reverência sincera.
RESUMO
A presente pesquisa se propõe a analisar a paisagem nordestina construída no filme “O Céu de
Suely”, dirigido por Karin Aïnouz em 2006. Considerando que a paisagem é uma construção
do olhar humano em direção a uma dada região espacial, e que esse olhar organiza e seleciona
os dados da realidade a partir das referências prévias subjetivadas e do imaginário de cada
observador, exploramos a representação da paisagem nesse filme por meio da análise fílmica
preconizada por Jacques Aumont (2004), acrescida de uma abordagem plurimetodológica que
agrega concepções da paisagem atinentes a diversos campos das humanidades como arte,
geografia, história e literatura. Primeiramente, a construção da paisagem nordestina foi
examinada em sua correlação com outros filmes do cinema contemporâneo e de períodos
anteriores do cinema nacional. Em seguida foram investigados diferentes aspectos da
paisagem no filme escolhido para ser objeto empírico desta pesquisa, como sua produção,
roteiro, equipe técnica, orçamento e locações, bem como averiguamos como se formou o
olhar do diretor em relação a essas espacialidades, por meio do levantamento de dados
profissionais e biográficos, que ajudaram a entender suas referências prévias subjetivas. Com
esse aporte teórico, a análise em específico do filme foi direcionada por três chaves de leitura
selecionadas, sendo elas o céu, o sertão e a mulher. Tais chaves potencializaram as reflexões
sobre a paisagem referenciadas por pontos de adensamento simbólico e marcadores espaciais,
sendo examinadas as funções e peculiaridades que a paisagem assume nessa narrativa, tendo
funcionalidades além da mera descrição espacial, apontando fortes evidências de que ela pode
impulsionar a narrativa, refletir estados subjetivos dos personagens, ou até funcionar como
antagonista em certos momentos. Em “O Céu de Suely” a paisagem constitui exemplo das
novas tendências no cinema nordestino, as quais trazem para o foco as transformações, a
diversidade e atualizações que ocorrem nessas espacialidades, e permitem assim, a
incorporação de elementos urbanos, globalizados, transculturais a essas construções espaciais.
Palavras-chave: Paisagem, nordeste, cinema contemporâneo, cinema nordestino.
ABSTRACT
The following research intends to propose an analysis of Northeastern landscape built in the
movie “Suely in the Sky”, directed by Karin Ainouz in 2006. Considering that a landscape is
built by the human eye directing of a certain spatial region and that that look organizes and
selects subjective previews and the imaginary of each viewer, it was explored a landscape
representation in the movie via a film analysis penned by Jacques Aumont (in 2004),
expanded by a plethora of methodological lines which adds landscapes concepts linked to
several fields of humanities such as Arts, Geography, History and Literature. Firstly, the
construction of the northeastern landscape was examed in its correlation to other movies from
Contemporary Cinema and previous periods of National Cinema. Secondly, different aspects
of the referred movie were investigated, since it was chose as the research empirical object,
such as its production, screenplay, crew, budget and locations; it was also examined how the
director’s style originated from those spatialities, elaborating a research through his career and
biography – that enabled a full understanding of his preliminary references. With this
theoretical input, the movie’s specific analysis was driven by three selected themes: the sky,
the sertão and the woman. These themes boosted the discussions about landscape, deepened
by its symbolism and spatial markers, thus, examined its functions and peculiarities which are
elaborated towards landscape in this piece of work. An analysis supported beyond mere
spatial description, leading to strong evidence for the narrative’s appeal, communicating the
character’s personal states or even functioning as an antagonist in certain moments. In “Suely
in the Sky”, the landscape itself constitutes an example for the new tendencies of Northeastern
Cinema, linked to its transformation, diversity e actualization characteristics that occurs in
such spacialities, also enabling the embodiment of urban, global and transculturals elements
to those spatial constructs.
Keywords: Landscape, northeast, contemporary cinema, northeastern cinema.
LISTA DE IMAGENS
Figura 1 - Imagens do filme Aitaré da Praia (1925) - identificando contrastes entre a
paisagem litorânea e da cidade. ................................................................................................ 30
Figura 2 - Imagens do filme Vidas Secas (1963) - enfoque em elementos naturais da paisagem
nordestina. ................................................................................................................................ 35
Figura 3 - Sequência inicial do filme O Pagador de Promessas (1962) - elementos da
paisagem desde o sertão até a capital. ...................................................................................... 36
Figura 4- Imagem da cena final do filme Dona Flor e Seus dois Maridos (1976). ................. 41
Figura 5 - Imagens do filme Baile Perfumado (1997) – paisagem do sertão apresentada fora
da época das secas, mostrando uma mata verde e abundante (à esquerda); Lampião participa
de um baile no acampamento, usando perfume francês e ouvindo gramofone (à direita). ...... 44
Figura 6 - Imagem do curta-metragem Rifa-me, 2000 (à esquerda); e do longa O Céu de Suely,
2006 (à direita) – planos abertos em que o céu predomina na paisagem e personagens ficam
reduzidos no enquadramento. ................................................................................................... 47
Figura 7 - Imagem do curta-metragem Rifa-me, 2000 (à esquerda); e do longa O Céu de Suely,
2006 (à direita) – planos que indicam o uso crescente de equipamentos eletrônicos compondo
a paisagem. ............................................................................................................................... 48
Figura 8 - Imagem do curta-metragem Rifa-me, 2000 (à esquerda); e do longa O Céu de Suely,
2006 (à direita) – planos usando a estrada como marcador da paisagem, que indicam
passagem de tempo e impulsionam a narrativa. ....................................................................... 48
Figura 9 - Imagens da vídeoinstalação Sua Cidade Empática em que fotografias e vídeos da
cidade de São Paulo são misturadas a diferentes camadas de cores e luzes. ............................ 60
Figura 10- Cartazes dos cinco longas-metragens realizados por Karim Aïnouz. ..................... 62
Figura 11 - Imagens do filme Gabriela (1983) – sendo um exemplo de filme que enfatiza o
aspecto erótico da figura feminina na condição de objeto sexual, submetida ao olhar
masculino. ................................................................................................................................. 74
Figura 12 - Imagem do filme O Céu de Suely, 2006 (à esquerda); e do filme Central do Brasil,
1998 (à direita) - em ambos os protagonistas deixam o Sudeste em direção ao Nordeste. ...... 77
Figura 13 - Recurso usado pela direção de fotografia e edição - Hermila conduz o olhar do
espectador, induzindo o olhar da personagem feminina sobre as paisagens. ........................... 78
Figura 14 - Pórtico na entrada e saída da cidade e paisagens na acepção naturalista,
respeitando a regra dos terços. .................................................................................................. 79
Figura 15 - Imagens de sequência no início do filme - contraste entre a paisagem tranquila
próximo a casa de avó de Hermila e o movimento no centro comercial da cidade. ................ 82
Figura 16 - Imagens do posto Veneza e de caminhões: espaços sofrem transformações no
período diurno e noturno, conforme a funcionalidade que lhe é atribuída. .............................. 83
Figura 17 - O trabalho feminino aparece como elemento humano do cotidiano usado para
compor a paisagem do filme. .................................................................................................... 84
Figura 18 - Ausência da figura masculina representada simbolicamente, primeiro a imagem
borrada da memória, depois o telefone e por fim o rompimento simbolizado pelo mesmo
plano, sem o orelhão. ................................................................................................................ 86
Figura 19 - Figura 19 - Máquina de costura pesada e mecânica em contraste com
eletrodomésticos leves e elétricos compõem as espacialidades tornando a paisagem um
palimpsesto. .............................................................................................................................. 87
Figura 20 - Imagens da sequência em que a casa da mãe de Matheus é mostrada em situação
precária e com eletrodomésticos novos; bebê brinca com o controle remoto. ......................... 88
Figura 21 - Georgina, junto a uma figurante, convida Hermila para cantarem forró e
tecnobrega no caraoquê. ........................................................................................................... 91
Figura 22 - A vida em Iguatu cobra seu preço: preço das passagens, preços da vida noturna,
preços em sua paisagem. .......................................................................................................... 93
Figura 23 - Hermila vende as rifas com facilidade em ambientes masculinos......................... 96
Figura 24 - Hermila/Suely é ameaçada, sendo expulsa de ambientes públicos por causa da
rifa. ............................................................................................................................................ 97
Figura 25 - Na esfera privada Hermila/Suely também é agredida e humilhada. ...................... 97
Figura 26 - Hermila se sente inadequada, caminha solitária na paisagem. .............................. 98
Figura 27 - Hermila resiste ao assédio de João e a pipa enroscada nos fios como elemento
marcador da paisagem. ............................................................................................................. 99
Figura 28 - Hermila no motel e árvore solitária como marcador da paisagem, superando a
aridez do meio. ....................................................................................................................... 102
Figura 29 - Hermila deixa Iguatu em busca de seu céu. ......................................................... 103
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 13
1. CAPÍTULO 1: A PAISAGEM, O NORDESTE E O CINEMA NACIONAL ........... 22
1.1 MODOS DE VER A PAISAGEM ............................................................................................ 22
1.2 A PAISAGEM NORDESTINA NO CINEMA ............................................................................. 28
2. CAPÍTULO 2: DELINEANDOO CÉU DE SUELY E CHAVES DE LEITURA ...... 45
2.1 SOBRE O CÉU DE SUELY E KARIM AÏNOUZ ....................................................................... 45
2.2 CHAVES DE LEITURA ........................................................................................................ 64
2.2.1 O Céu........................................................................................................................ 64
2.2.2 O Sertão.................................................................................................................... 67
2.2.3 A Mulher ................................................................................................................... 71
3. CAPÍTULO 3: ANÁLISE DO FILME O CÉU DE SUELY ........................................ 76
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 105
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 107
6. REFERÊNCIAS DE FILMES ..................................................................................... 114
7. ANEXOS ........................................................................................................................ 117
ANEXO A -FICHA TÉCNICA ................................................................................................ 117
TÍTULO: O CÉU DE SUELY ............................................................................................. 117
ANEXO B - TRECHOS SELECIONADOS DO ROTEIRO............................................................ 118
8. APÊNDICE .................................................................................................................... 122
APÊNDICE A - ENTREVISTA DE KARIM AÏNOUZ PARA A REVISTA TRIP ............................. 122
APÊNDICE B -ENTREVISTA DE KARIM AÏNOUZ PARA A REVISTA CINÉTICA ..................... 129
APÊNDICE C - CARTA ESCRITA POR FELIPE BRAGANÇA, EM IGUATU, ENQUANTO
TRABALHOU EM O CÉU DE SUELY COMO DIRETOR ASSISTENTE E ROTEIRISTA .................... 137
13
APRESENTAÇÃO
A paisagem nordestina apresentada no filme O Céu de Suely, dirigido por Karin
Aïnouz em 2006, parece-nos bastante profícua para fazer uma análise interpretativa dos
elementos escolhidos para expressar a região Nordeste no cinema contemporâneo nacional.
O filme se passa em uma pequena cidade do sertão do Ceará chamada Iguatu e conta
uma parte da história de Hermila, uma migrante de 21 anos que volta com um filho bebê de
São Paulo para sua cidade de origem, e aguarda o marido que prometeu retornar um pouco
depois. Porém, o marido de Hermila não regressa e, apesar de suas tentativas de readaptação
ao ambiente local, surge nela a vontade de partir novamente em busca de novos horizontes, no
local mais distante possível (no caso a cidade de Porto Alegre). No entanto, Hermila não tem
dinheiro para comprar a passagem e como a sua beleza é almejada pelos homens da região,
ela tem a ideia de rifar o próprio corpo, oferecendo uma noite de relações sexuais para o
ganhador do bilhete premiado. Tal atitude tem grande repercussão, mas revela também
preconceitos enraizados nessa cidade.
Quanto ao conceito de paisagem que utilizaremos nesta pesquisa, consideramos a
paisagem sempre como uma construção do olhar humano, uma vez que o observador se põe
diante de parte perceptível de determinada espacialidade para mirá-la. Mais do que uma
extensão de território e de seus elementos que se alcança num lance do olhar, como sugerem
os dicionários (refletindo o entendimento popular generalizado), a paisagem é efetivamente
construída pelo olhar a partir de dados emanados do real concreto, mas profundamente
modificados por esse mesmo olhar. Um olhar que é construído simbolicamente, na medida
que implica em uma atividade organizativa dos dados colhidos pela percepção e lhe confere
sentido, trazendo a ideia de conjunto ou de um todo coerente por meio de repertórios prévios
subjetivados, do imaginário, da sensibilidade estética do observador. (COLLOT, 2012, p.11).
Nesse sentido entendemos que o olhar do diretor de O Céu de Suely em direção às
espacialidades que foram usadas para fazer o filme, acrescido de suas referências subjetivas,
foi preponderante para construção das paisagens que serão analisadas nesta pesquisa. E por
isso se torna importante entender como se formou o olhar do diretor, bem como também dos
membros de sua equipe, em relação ao Nordeste, procurando conhecer quais suas referências
cinematográficas, como desenvolveram suas carreiras e até mesmo informações sobre a sua
vida particular que nos auxiliem compreender como se deu a estruturação dessa forma de
encarar a mencionada região, a qual está impressa nas paisagens mostradas no filme.
14
A construção das paisagens nordestinas nesse filme possui várias peculiaridades que
motivaram a sua escolha para servir de objeto de estudo para a presente pesquisa. Inicialmente
destacamos a temática centrada em uma migrante que retorna para o Nordeste em meados de
2005, para retomar seu projeto de vida (de abrir com o marido uma barraca para vender CDs e
filmes), fato que já aponta uma abordagem dos retirantes diferente, por exemplo, da realizada
por cineastas da década de 1980 em relação à imagem dos migrantes que deixavam o
Nordeste, principalmente ao longo da segunda metade do século passado, por causa da seca
ou devido a precárias condições de vida conforme encontramos em filmes como O Homem
que virou suco (de João Andrade, 1981) ou A Hora da estrela (de Suzana Amaral, 1985).
Em relação a outros períodos, ao longo da história do cinema nacional, a paisagem
nordestina muitas vezes foi apresentada de forma estereotipada tanto em relação a elementos
naturais que compõem suas espacialidades, ligados ao litoral ou à seca do sertão, quanto em
relação aos tipos humanos, surgindo assim figuras conhecidas do imaginário popular como
cangaceiros, beatos, coronéis e migrantes. Essa forma de olhar o Nordeste continua presente
em boa parte da cinematografia nacional atual, entretanto, reputamos que há filmes no cinema
contemporâneo como O Céu de Suely que apontam possibilidades distintas na forma de
construir e apresentar essas paisagens (a qual pode adquirir variadas funcionalidades),
salientando as transformações, atualizações e a diversidade que elas possuem, conforme será
explicado no decorrer de nossas análises nos capítulos seguintes.
Quanto ao recorte do cinema contemporâneo usado na pesquisa, os estudiosos não são
unânimes em relação a sua definição e ao momento em que teve início. Uma parte dos autores
considera que o cinema contemporâneo teria começado com o cinema da retomada (tomando
como marco inicial o filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, 1995), mas há autores como
Juliana Antonelli que afirmam que a retomada já teve seu encerramento e que o cinema
contemporâneo teria início a partir de uma nova etapa chamada por alguns de pós-retomada,
1
dado seu caráter mais voltado para produção industrial e nova tentativa de aproximação com o
público. No entanto, o uso dessa nomenclatura não é consensual entre os teóricos de nosso
cinema, havendo diferentes posicionamentos quanto ao período em que teria tido início a pós-
retomada e se houve de fato o encerramento do período antecedente da retomada. Assim,
acreditamos ser pertinente, para nossa pesquisa, o uso da expressão “cinema contemporâneo”
para referir-se à produção cinematográfica atual, abrangendo indistintamente o cinema da
1Para ver mais sobre autores que trabalham o cinema da Pós-Retomada, ver Juliana Antonelli (2011)"Vale a pena ver de
novo? A Globo filmes e as novas configurações do audiovisual brasileiro na pós-retomada".
15
retomada e pós-retomada, evitando essa celeuma, por meio de critério semelhante ao utilizado
por Luiz Zanin Oricchio (2008, p. 139) ao discorrer sobre o tema:
Como estabelecer um marco para o início do cinema brasileiro
contemporâneo? A opção mais adotada tem sido datá-la a partir de uma
espécie de grau zero, que encerra um ciclo e não vai a parte alguma, pelo
menos no início: o desmanche operado no início do governo de Fernando
Collor (1990-1992).
Assim, conforme apontado por Oricchio (2008, p. 146) ao analisar as divisões internas
do cinema contemporâneo nacional, “há hoje uma clara partição entre o cinema de mercado
brasileiro e o cinema de empenho cultural brasileiro”. Dessa maneira, o chamado cinema de
mercado tem por prioridade atingir o maior público possível, sendo amplamente dominado
pelas produções da Globo Filmes
2
, podendo ser citados diretores como Daniel Filho e Jayme
Monjardam que trabalham nessa linha; ao passo que o outro grupo, do “cinema de empenho
cultural”, estaria interessado em fazer um cinema voltado para aspectos sociais e culturais,
tendo mais liberdade estética e criticidade, a exemplo de diretores como Cláudio Assis, Júlio
Bressane, Rogério Sganzerla e Karim Aïnouz (ORICCHIO, 2008, 146).
Quanto à discussão em relação ao “cinema de mercado” e ao “de empenho cultural”
contemporâneos é importante frisar que essa dicotomia também é objeto de discordância entre
os autores, uma vez que teóricos como Cesar Migliorim (2011) preferem falar em “cinema
pós-industrial” o qual se opõe, em sua visão, a um “cinema industrial”, este pautado em
fórmulas que buscam um produto de funcionamento perfeito e com modelo de produção
previsível. Dessa maneira, Migliorim considera que “O cinema pós-industrial se constitui com
uma outra estética do set e das produtoras. Grupos e coletivos substituem as produtoras
hierarquizadas, com pouca ou nenhuma separação entre os que pensam e os que executam”.
Além disso, ele considera ainda que o cinema pós-industrial não implica em uma produção
que esteja distante do mercado e do circuito comercial, explicando que “a inserção dessas
obras no mercado nacional e internacional não pode ser deixada de lado. Pós-industrial não é
pós-mercado. Trata-se de uma outra engenharia de produção.”
Além dessa divergência, é importante ressaltar também que a caracterização e recorte
do cinema contemporâneo brasileiro pode ser feita também por meio do prisma estético.
Nesse sentido autores como Felipe Bragança apontam justamente o desenvolvimento de
elementos estéticos e de linguagem decorrentes dessa forma de produzir filmes que acabaram
cartacterizando parte da produção contemporânea. Bragança (2011) explica que a partir de
2 A esse respeito Butcher (2005, p.76) menciona que o público dos filmes da “Globo Filmes em 2003 representou nada
menos que 92% do público total das produções nacionais nesse ano, uma produção que se repetiu em 2004”
16
2006 filmes como O céu de Suely passaram a contribuir para renovação na linguagem no
cinema nacional.
De qualquer forma, desde 2006, e nos últimos cinco anos, uma verdadeira
marcha de acontecimentos vem ecoando aquelas brechas ainda sem uma
síntese. Aquela velha agenda da “renovação de linguagem” do cinema
brasileiro começou a sair da teoria da cinefilia alternativa e se expressar em
filmes (...) especialmente com o destaque que o curta e o longa-metragem
cooperativo e de pequenas produtoras começaram a ganhar no panorama
internacional.
Em relação a produções contemporâneas realizadas no Nordeste, que participam
dessa renovação estética e da linguagem, é percebida a proximidade de cineastas (a exemplo
de Cláudio Assis, Paulo Caldas e Karim Aïnouz, Marcelo Gomes e outros) que costumam
trabalhar de forma colaborativa e pouco hierarquizada na produção, partilhando uma
identidade de grupo, concepções de mundo, havendo estudiosos que usam termos como
“cinema a partir do Nordeste” (Marcia Santos, 2014, p. 11) para definir esse conjunto de
diretores
3
. O filme O Céu de Suely foi produzido dentro dessas condições de trabalho e
também serão enfatizados, no decorrer de nossas análises, aspectos ligados à estética, à forma
e à linguagem decorrentes do modo de produção desse filme que o colocam no recorte do
cinema contemporâneo. Entretanto, entendemos ser suficiente para os objetivos desta
pesquisa uso do termo “cinema contemporâneo” para analisar as paisagens nordestinas no
filme escolhido como objeto, e caso seja necessário nos referirmos a um segmento do cinema
nacional em específico (como por exemplo: cineastas nordestinos, ou cinema de mercado),
essa ressalva será feita no decorrer do próprio texto.
Quanto ao ponto de vista teórico, o filme O céu de Suely se mostra igualmente
relevante, tendo sido objeto de estudo em diferentes áreas do conhecimento. Em nível de pós-
graduação destacamos a dissertação de mestrado em sociologia de Márcia Santos (2014),
intitulada de O salto do cinema brasileiro contemporâneo no céu do sertão: uma análise dos
filmes O céu de Suely e Viajo porque preciso, volto porque te amo. Há também estudos como
de Diogo Velasco que pesquisou o filme em sua dissertação de mestrado, com título de O
Poder do Local: Sertões Nordestinos no Cinema Brasileiro Contemporâneo (2011), e
prosseguiu com a análise do filme também em sua tese de doutorado: Imagens-sertões:
3 Conforme Marcia Santos (2014, p. 94-95)explica: “Assim, optamos por falar em um cinema a partir do Nordeste. Isso
porque, apesar de o grupo de Pernambuco ter traçado uma trajetória singular de amizade, o diálogo entre produtores e
pessoas envolvidas com o cinema na região é intenso. A exemplo disso podemos citar o próprio Karim Aïnouz (cearense)
que co-dirigiu Viajo porque preciso, volto porque te amo com Marcelo Gomes, além de partilharem dos mesmos
colaboradores e pessoas da equipe técnica em seus trabalhos.”
17
imagens-espaço de sertões-prosa e sertões-poesia no cinema brasileiro contemporâneo
(2015).
Além disso, há diversos artigos acadêmicos que tem o filme como fonte de análise,
entre os quais ressaltamos Corpos em deslocamento: passagens pelo sertão de O Céu de
Suely e Deserto Feliz de Marcelo Dídimo e Érico Lima (2014); bem como Memória e
esquecimento em O Céu de Suely de Acir Silva e Eder Santos (2009) que também serviram de
fonte para nossa pesquisa. Também há o trabalho de conclusão de curso (TCC), em nível de
graduação em geografia, de Carolina Zechinatto (2015) com título Entre Hermila e Suely:
deslocamentos do corpo-mundo no ser-em-transição.
Em relação a publicações especializadas destacamos o livro “No coração do mundo”
de Denilson Lopes(2012), que trata do filme em diversos trechos, tendo inclusive esse servido
de referência em um dos módulos do curso Paisagens Transculturais no cinema
contemporâneo ministrado pelo mesmo autor; e ainda vale ressaltar a publicação do capítulo
intitulada Framing Landscapes: the Return Journey in Suely in the Sky escrito por Mariana
Cunha, no livro The Brazilian Road Movie, publicado pela University of Walles Press Cardiff
como parte do Iberian and Latin American Studies.
Sob outra ótica teórica, para melhor acondicionamento do nosso objeto de pesquisa,
sentimos a necessidade de fazer uma procura de textos acadêmicos envolvendo três eixos de
pesquisa: cinema, paisagem e Nordeste. Assim, primeiramente recorremos ao Banco de Teses
e Dissertações da Capes
4
, e usando as palavras “cinema, paisagem e Nordeste” encontramos
como resultado satisfatório – que contemplasse nossos três eixos de pesquisa – a dissertação
de mestrado em geografia de Renato Nascimento, publicada em 2012e intitulada de A
paisagem narrativa do nordeste e dos nordestinos nos filmes de Vladimir Carvalho, que nos
permitiu um maior contato com os conceitos de paisagem em geografia, mas fazia uma
abordagem específica do documentarista paraibano Vladmir Carvalho sem relacioná-la a
outros filmes ficcionais e períodos do cinema nacional; também localizamos a dissertação em
geografia de Pedro Maia (2011), intitulada de Paisagens Sertanejas no Cinema: Urbanidades
e Ruralidades no Semiárido nordestino, que trouxe uma referência interessante de filmes no
recorte temporal de 1996 a 2006, tendo em comum alguns dos filmes contemporâneos a que
recorremos em nossa análise. Porém, não localizamos pesquisas que tratassem dos três eixos
na área de comunicação e estudos da mídia.
4
Disponível em .
18
Recorremos também ao Banco de Teses do Instituto Brasileiro de Informação em
Ciência e Tecnologia (IBICT) e encontramos os mesmos dois trabalhos citados anteriormente,
mas como resultados alternativos fornecidos pelo sistema de busca encontramos ainda a
indicação interessante da dissertação de mestrado na área de comunicação de Alisson
Gutemberg (2016), O Nordeste no cinema brasileiro: o espaço contemporâneo em novas e
velhas abordagens, que traz questões proveitosas referentes ao espaço na sua dimensão social
e cultural, mas não trata de forma específica da paisagem nordestina.
Por fim, fizemos pesquisas no Google Acadêmico que nos direcionaram a um
quantitativo pequeno de artigos envolvendo simultaneamente nossos três eixos de pesquisa;
porém, destacamos o artigo Vede sertão, verdes sertões: cinema, fotografia e literatura na
construção de outras paisagens nordestinas de Durval Albuquerque(2016); bem como o
artigo Narrativa e paisagem no cinema brasileiro - imagens do sertão de Meize Lucas
(2012); e também o artigo de nossa autoria Paisagem nordestina e os ciclos do cinema
nacional (publicado em 2016 e que foi em grande medida incorporado ao texto dessa
dissertação), os quais abarcam de forma próxima as temáticas aqui trabalhadas. Portanto,
diante do material levantado, percebemos que o tema das espacialidades nordestinas no
cinema já vem sendo trabalhado há alguns anos no meio acadêmico, mas o foco direcionado
em relação às suas paisagens é encontrado com menos frequência.
Ainda em relação a esses eixos de pesquisa foi utilizada a bibliografia que está descrita
detalhadamente no final do trabalho, mas consideramos conveniente apontar livros como
Cinema Mundial Contemporâneo (BAPTISTA, Mauro; MASCARELLO, Fernando, org.,
2008) e História do Cinema Brasileiro (RAMOS, Fernão, org., 1987), que estão relacionados
ao tema do cinema; bem como os livros Literatura e Paisagem em Diálogo (NEGREIROS,
Carmem; ALVES, Ida; LEMOS, Masé, org., 2012), A invenção da Paisagem (CAUQUELIN,
Anne, 2000) e Introdução à Geografia Cultural (CORRÊA, Roberto; ROSENDHAL, Zeny,
org., 2011) em relação às paisagens; e também os livros A invenção do Nordeste e outras
artes (ALBUQUERQUE, Durval, 2012) e A terra e o homem no Nordeste (ANDRADE,
Manuel Correia, 1986), ligados ao Nordeste, pois foram de grande utilidade para nossos
estudos.
Quanto à metodologia de pesquisa empregada, trabalhamos a análise fílmica,
recorrendo a autores como Jacques Aumont (2004), Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété
(2013). Para Vanoye e Goliot-Lété (idem, p. 14-15) a análise do filme se compõe de duas
fases, de maneira que “analisar um filme ou fragmento é, antes de mais nada, no sentido
científico do termo, assim como se analisa por exemplo a composição química da água,
19
decompô-lo em seus elementos constitutivos”; e em seguida completa “uma segunda fase
consiste, em seguida, em estabelecer os elos entre esses elementos isolados, em compreender
como eles se associam e se tornam cúmplices para fazer surgir um todo significante”. Assim,
a primeira etapa está mais próxima de uma ação de descrição e a segunda de uma
interpretação dos elementos descritos.
Dessa forma, ao fazer a análise do filme selecionado procuramos seguir essa
orientação, primeiramente realizando uma descrição inicial de cada trecho da narrativa,
especificando os aspectos espaciais e paisagens envolvidos, para em seguida interpretar como
a paisagem estava sendo trabalhada naquele fragmento fílmico, verificando as suas
especificidades, funções narrativas e simbólicas assumidas. Também foi feita em alguns
momentos a comparação da paisagem analisada com outros filmes do cinema contemporâneo
e com períodos anteriores do cinema nacional, nos casos em que tal abordagem se apresentou
pertinente.
Ainda quanto à análise fílmica, Jacques Aumont (2004, p. 39) menciona três
princípios para defini-la. Primeiramente ele explica que não há um método universal de
análise aplicável a todos os filmes, devendo assim, cada analista fazer as devidas adaptações
em seu método; em seguida afirma que a análise fílmica é interminável em relação às
possibilidades e aspectos analisáveis, cabendo ao analista delimitar o campo em que pretende
empreender análise; e depois menciona que “é necessário conhecer a história do cinema e a
história dos discursos que o filme escolhido suscitou para não os repetir”. Tais princípios
foram levados em consideração para a análise que decidimos fazer da paisagem nordestina em
O Céu de Suely, sendo válido ressaltar que procuramos colocar esse filme em seu devido
contexto em relação à história do cinema nacional, assim como buscamos outros discursos e
trabalhos anteriores sobre o filme, mas sempre com intuito de ampliar e acrescentar
informações, dando maior profundidade às analises que haviam sido feitas previamente por
outros autores.
Outro aspecto metodológico a ser ressaltado é que com nosso aprofundamento no
estudo das paisagens, demo-nos conta da pluridimensionalidade que esse objeto de pesquisa
admite. Dessa forma, encontramos abordagens em diferentes áreas do conhecimento para esse
tema, as quais se mostraram muito proveitosas para realizar a análise fílmica pretendida.
Assim, nessa pesquisa foram usadas concepções atinentes a campos de estudo da arte, do
cinema, da geografia, literatura e história, cada qual acrescentando uma dimensão
significativa para as paisagens conforme foram sendo exploradas em nosso estudo.
20
Essa abordagem de nosso objeto ampliou a análise fílmica realizada em nossa pesquisa
que, além de meramente estruturalista e isolada, passou a se aproximar de uma análise
culturalista, dialogando, assim, com diversos aspectos da dimensão socio-hisórica da
realidade nordestina, os quais se mostraram expressos na paisagem do filme analisado. Nesse
sentido, optamos por uma análise que abarca maior conteúdo culturalista em consonância com
concepção de Vanoye e Goliot-Lété (2013, p. 51), ao considerar que “um filme é um produto
cultural inscrito em um determinado contexto socio-histórico. Embora o cinema usufrua de
certa autonomia como arte (...) os filmes não poderiam ser isolados dos outros setores de
atividade da sociedade que os produz.”
Dessa maneira, fizemos uma análise fílmica em que recorremos a uma
plurimetodologia com o intuito de englobar esses diferentes tipos de conhecimentos e poder
utilizá-los de forma colaborativa, promovendo um enriquecimento em nossa pesquisa. A esse
respeito, trazemos Simione Silva (2001, p. 1) ao justificar o uso da plurimetodologia em
relação ao seu estudo das paisagens.
O instrumental metodológico, assim concebido é um processo que
construímos também durante a pesquisa, no confronto sujeito & objeto [...].
Desta forma, primamos por uma visão plurimetodológica, contra a visão
individualista. Na prática, isto permite-nos entender que quando se vai a
campo, precisamos ter olhares aguçados para observar, apreender, interpretar
o objeto estudado em sua integridade, em seu movimento, na sua contradição
e confirmação.
Passando para a estrutura da pesquisa, esta foi dividida em três capítulos. No primeiro
capítulo, apresentamos as abordagens teóricas sobre a paisagem usadas nesse trabalho. Assim,
apontamos a importância da paisagem no campo do conhecimento das humanidades e
trouxemos a referência de autores que desenvolvem pesquisas relacionadas à paisagem em
contato com suas respectivas áreas de estudo, sendo eles a literatura, arte, geografia e história.
Por meio dessas teorias percebemos a relevância que conteúdos simbólicos e subjetivados têm
na formação das chamadas etnopaisagens, tendo em vista o “papel que a imaginação ocupa no
mundo contemporâneo” (APPADURAI, 2004, 16), de forma que exploraremos as
transformações espaciais ocorridas na paisagem ligadas a esse processo. Em sequência, no
mesmo capítulo, realizamos uma breve contextualização da paisagem nordestina no cinema
nacional, de forma que enfocamos como essas paisagens foram representadas ao longo de
diferentes etapas desde os períodos dos ciclos regionais da década de 1920, até alcançar o
cinema contemporâneo.
O segundo capítulo tem início com o delineamento dos aspectos relacionados à
produção de O Céu de Suely, que consideramos importantes para compreender como foram
21
construídas suas paisagens, de forma que tratamos o início do projeto do filme e seu roteiro,
bem como da equipe técnica, elenco, orçamento e locais de filmagem. Delimitamos com o
mesmo intuito, os dados biográficos e profissionais da carreira do diretor Karin Aïnouz, bem
como suas referências cinematográficas. Em seguida, elencamos as três chaves de leitura que
selecionamos para fazer a análise fílmica posteriormente, sendo elas o céu, o sertão e mulher.
Quando comentamos o céu como chave de leitura, destacamos as possibilidades de
significação que a palavra admite desde questões ligadas à dimensão física até outras mais
figurativas como a ideia de horizonte utópico. Já na chave do sertão constatamos a
possibilidade de entendê-lo dentro do contexto da transculturalidade de suas paisagens em
conformidade com Denilson Lopes (2012), e como se manifestam elementos da modernidade
e da tradição nessas espacialidades. E quanto à chave da mulher, observamos a forma como
ela é tratada em meio a essa paisagem, assim como a busca da personagem principal do filme
para ultrapassar as barreiras de um olhar machista que predomina na cidade em que se passa a
obra.
No terceiro capítulo, realizamos a análise fílmica das paisagens de O Céu de Suely,
utilizando as chaves de leitura mencionadas e destacando elementos marcadores da paisagem.
Dessa forma, constatamos as funções diferentes que ela alcança no filme, pois além de mero
elemento descritivo, a paisagem pode demarcar temporalmente ou impulsionar a narrativa,
bem como pode adquirir um simbolismo crescente no decorrer da obra, refletindo ou
influenciando estados subjetivos da personagem principal, podendo ainda ser considerada
equiparada a um personagem em dados momentos da trama.
Assim, foram acionadas as contribuições dos estudos teóricos referentes ao tema,
sendo feito também, quando oportuna, a correlação com outros períodos do cinema nacional e
filmes do cinema contemporâneo. Por fim, elaboramos as considerações finais sobre a
pesquisa, onde reforçamos ou esclarecemos pontos que reputamos relevantes para esse
fechamento.
Ressaltamos que o tema pesquisado permite, de igual maneira, outras possíveis
abordagens sobre a paisagem do Nordeste, por exemplo, em relação à forma como tais
espacialidades são apresentadas nas diversas mídias, tais como televisão, fotografia ou em
meios digitais. Dessa maneira, seria bastante enriquecedor correlacionar a construção da
paisagem no cinema com as criadas nessas outras mídias. Todavia, haveria um prolongamento
na extensão da presente pesquisa que, mesmo atraente, ultrapassa em muito nossos propósitos
e possibilidades atuais.
22
1. CAPÍTULO 1: A PAISAGEM, O NORDESTE E O CINEMA NACIONAL
As abordagens teóricas sobre a paisagem e uma contextualização da paisagem
nordestina no cinema nacional são de grande valia para os aportes teóricos realizados ao
longo de nosso trabalho, bem como para análise fílmica do nosso objeto de estudo, pois
permitem perceber como diferentes elementos (naturais, humanos, históricos, simbólicos e
interpretativos) podem ser acrescidos ao entendimento da paisagem que se pretende analisar.
O interesse em estudos sobre a paisagem teve grande desenvolvimento, sobretudo, a
partir da década de 1970, quando as pesquisas e composições teóricas referentes campos do
conhecimento das humanidades desenvolveram abordagens desvinculando a concepção da
paisagem, limitada unicamente ao seu aspecto natural e morfológico. Esses estudos foram
associados à expressão spatial turn (virada espacial), repercutindo em áreas como a
antropologia, história, geografia, literatura, arte e estética, por meio da ampliação do uso de
construções conceituais relacionadas à formação social, percepção e comportamento dentro
das abordagens espaciais. Nessa concepção, conforme lembra Carmem Negreiros (2012, p. 6),
a paisagem se torna uma construção do olhar e “passa a ser compreendida como uma
formulação cultural e, simultaneamente, produto do sujeito”.
1.1 Modos de ver a paisagem
Dentre os modos de ver a paisagem destacamos inicialmente Michel Collot (2012),
que estabelece o conceito de paisagem por meio da estruturação de seus elementos essenciais,
esses que nos ajudarão a ter em perspectiva a definição de paisagem que usaremos nessa
pesquisa. Para este autor, a paisagem está ligada ao olhar humano, direcionado para uma
dimensão visível e perceptível do espaço, mas que não consiste em uma mera acumulação
passiva dos dados sensoriais, uma vez que é inerente a esse processo uma atividade que
organiza e confere sentido a esses dados, de modo que a paisagem percebida pelo homem se
torna construída simbolicamente.
Dessa maneira, concordamos com Collot (2012, p. 11) quando ele recorre aos
dicionários para apresentar os elementos essenciais da paisagem, identificados por meio das
noções de “ponto de vista”, “parte” e “unidade ou conjunto”:
Partirei de duas definições da palavra “paisagem”, fornecidas
respectivamente pelo dicionário Robert (“Parte de uma região [pays] que a
natureza apresenta ao olho que a observa”) e pelo Littré (“Extensão de uma
região que se vê sob um único aspecto. Deve ser observada de um lugar
bastante elevado onde todos os objetos anteriormente dispersos reúnam-se de
um único golpe de vista”). [...] Três elementos essenciais dessas definições
23
chamarão minha atenção: a ideia de ponto de vista, a de parte e a de unidade
ou de conjunto.
Assim, essa concepção permite o entendimento de que a paisagem alcança apenas uma
parte da região, pois existem limites na própria sensorialidade e no campo visual do
observador, de maneira que nesse ponto a definição de paisagem se distancia de uma ideia
totalizante em relação a uma área como faz, por exemplo, a concepção de mapa trazida por
Yves Lacoste (2012, p. 14), onde “o mapa (concluído) representa uma porção do espaço em
sua totalidade, enquanto uma paisagem caracteriza-se necessariamente por espaços que não
são visíveis, de um determinado ponto de vista”. Desse modo as partes não visíveis da
paisagem são complementadas por meio dos conteúdos de referência subjetivados pelo
observador, sendo esta complementação que lhe permite a ideia de unidade ou conjunto que
seria o terceiro elemento a compor a definição de paisagem (COLLOT, 2012, p. 15).
Em outra abordagem mais ligada ao campo das artes, é importante ressaltar que essa
definição de paisagem amplamente usada em dicionários, como a anteriormente mencionada,
guarda proximidade com a origem etimológica do termo, conforme explica Vicente Silva
(2007, p. 201) por meio da alusão a Roger Brunet (1992), desde sua raiz no século XV na
época das pinturas renascentistas:
[...] a palavra paisagem, no seu sentido etimológico, é aquilo que se vê do
país, o que pode ser compreendido como o que se tem ao alcance da vista;
aproxima-se da palavra italiana paesaggio, que surge na pintura durante o
Renascimento. Essa se refere ao que o olho abarca, ou capta, num único
golpe de vista, o campo do olhar.
E foi por meio dos entendimentos alcançados pela paisagem ao longo do tempo, que
teóricos como Anne Cauquelin (2000) acompanharam o desenvolvimento desse conceito no
campo da arte, o qual foi adquirindo autonomia em relação aos temas que faziam parte das
pinturas, de maneira que ela destaca:
A inesgotável riqueza dos elementos naturais encontraria um lugar
privilegiado, o quadro, para aparecer na harmonia emoldurada de uma
forma, e incitaria então o interesse por todos os aspectos da Natureza, como
por uma realidade à qual o quadro daria acesso. Em suma, a paisagem
adquiriria a consistência de uma realidade para além do quadro, de uma
realidade completamente autônoma, ao passo que, de início, era apenas uma
parte, um ornamento da pintura. (Idem, p. 37).
Dessa maneira, essa concepção possibilitou que a paisagem fosse considerada como
tema central de uma pintura, sendo desenvolvido a partir daí o ramo específico chamado de
“pintura de paisagem” entre os artistas europeus posteriores ao Renascimento, o que já indica
como a paisagem passou a alcançar outras funções além de cenário ou mero espaço físico (em
que tomam lugar as ações dos personagens) em suas aparições nas obras de arte. Essa
24
formulação também é trazida por Mariana Cunha (2011), a qual usa a referência de termos
gregos como paregon e ergon para lidar com essa dimensão da paisagem, explicando que a
paisagem pode ser definida
[...] “a partir da distinção entre papergon (que se refere à paisagem como
elemento marginal ou acessório para a cena) e ergon (que se refere à
paisagem como tema central). A invenção da paisagem na pintura, por
exemplo, revela uma mudança de foco na representação da natureza”. (Idem,
p. 1)
Entretanto, apesar dessa perspectiva da paisagem que nos interessa, podendo assumir
importância crescente no interior de uma obra (seja pintura ou cinema), em nossa pesquisa
procuramos adentrar em outras dimensões da paisagem, não nos limitando à questão estética
ou morfológica. Dessa maneira, o entendimento da paisagem que usaremos nessa pesquisa
admite também sua dimensão simbólica, colocando-nos em contato com Denis Cosgrove
(1998, p. 103) ao explicar que “a paisagem, de fato, é uma ‘maneira de ver’, uma maneira de
compor e harmonizar o mundo externo em uma ‘cena’, uma unidade visual”. E também
afirma que “todas as paisagens possuem significados simbólicos, porque são o produto da
apropriação e transformação do meio ambiente pelo homem” e acrescenta: “Revelar os
significados na paisagem cultural exige habilidade imaginativa de entrar no mundo dos outros
de maneira autoconsciente”.
Dentre essas dimensões que podem ser acionadas há também historiadores como
Durval Albuquerque (2016, p. 13), que trazem explanações relacionadas ao conceito de
paisagem como construção do olhar humano, as quais se mostram elucidativas para nosso
foco de pesquisa:
É a mirada humana que realiza um dado recorte na natureza, que dá a ela
[paisagem] uma dada conformação e uma configuração, ao projetar sobre o
substrato natural, seus afetos, seus sentimentos, seus desejos, seus sonhos,
seu imaginário. Nosso olhar não é um receptáculo que apenas percebe e
recebe uma paisagem exterior a si. Nosso olhar é definido por dadas
maneiras de ver, por dados conceitos, por dados valores, por dadas ideias,
por dadas mitologias, por dadas memórias.
Dessa maneira, o mencionado aspecto pretérito relacionado às camadas de memórias
que compõem uma determinada espacialidade permite evocar Simon Schama (1996, p.
17),que explica em suas formulações a impossibilidade de separar completamente o
observador e a paisagem como objeto do seu olhar: “Pois, conquanto estejamos habituados a
situar a natureza e a percepção humana em dois campos distintos, na verdade eles são
inseparáveis.[...] Antes de poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente.
Compõe-se tanto de camada de lembranças quanto de estratos de rochas.”
25
Esse entendimento nos coloca novamente em contato com Collot (2012, p. 15), ao
trazer que: “Do mesmo modo o ‘pedaço’ de região que dá a ver a paisagem não é jamais
considerado como absolutamente isolado; eu o percebo precisamente como ‘parte’ de uma
região mais vasta que me compete descobrir, viajando, ou recolhendo o testemunho de outras
pessoas”, de maneira que “Justamente porque não se dá a ver por completo, a paisagem se
constitui como totalidade coerente; ela forma um ‘todo’ apreensível ‘de um só golpe de vista’,
porque é fragmentária”. Dessa forma, essa sensação de coerência e conjunto, decorrente da
confluência dos diversos elementos constitutivos da paisagem, ensejam sua capacidade de
significar e a tornam uma unidade de sentido, que “fala àquele que a olha” (COLLOT, 2012,
p. 17).
Em aprofundamento a este conceito, poderemos trabalhar com mais propriedade em
relação a outras acepções decorrentes da paisagem como, por exemplo, as etnopaisagens,
trazidas por Arjun Appadurai (2004 p. 51) por meio da conciliação de conhecimentos entre
etnografia e paisagem, que designa seu entendimento a respeito desse termo:
[...] por etnopaisagem designo a paisagem de pessoas que constituem o
mundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados,
exilados, trabalhadores convidados e outros grupos e indivíduos em
movimento constituem um aspecto essencial do mundo e parecem afectar a
política das nações (e entre as nações) a um grau sem precedentes.
Dessa maneira, conforme Appadurai, os elementos humanos em trânsito integram as
paisagens, gerando uma troca constante de informações e visões de mundo (facilitadas pelos
meios de comunicação globalizados), sendo esse um aspecto essencial para as modificações
ocorridas no mundo contemporâneo, pois através de sua carga de repertórios subjetivados
transportam para diferentes partes do mundo "a imaginação e atividade mental cotidiana"
(Idem, p. 17), modificando o espaço em torno e suas paisagens.
Além disso, a partir dessas trocas culturais ensejadas, será possível adentrar em
acepções de paisagens aproximadas do conceito de paisagem transcultural, a partir das
explicações de Denilson Lopes; ou ainda conhecer os reflexos que trazem para as paisagens
cinemáticas, definidas por Jeff Hopkins (2009). De modo que esses conceitos serão acionados
juntamente com outros para análises nos textos subsequentes à medida que estes forem
aparecendo, e não mais de maneira agrupada e preliminar como fizemos até aqui.
Como pode se constatar, e é comum em Ciências Sociais, há uma grande diversidade
de concepções e interpretações sobre o conceito de paisagem. Por oportuno, assinalamos que,
utilizando as referências dos autores mencionados, entendemos paisagem nesta dissertação
como sendo uma construção do olhar humano que organiza e seleciona os dados da realidade,
26
sendo a dimensão simbólica importante nesse processo para agrupar elementos dispersos do
entorno, atribuindo-lhes significação, e gerando a noção de conjunto em relação à região
espacial observada. Assim, analisaremos os dados da paisagem presentes no filme O Céu de
Suely, tendo por referência como se formou o olhar do diretor (e sua equipe) sobre o
Nordeste, possibilitando agregar, além dos dados físicos espaciais, o aspecto humano,
comportamental, cultural, social na estruturação dessas espacialidades.
Dessa maneira, buscaremos acrescentar camadas de significação que enriqueçam essa
construção, percebendo que elementos cênicos aparentemente banais (como eletrodomésticos,
por exemplo) podem funcionar como indicadores simbólicos de uma realidade social, ou
cultural e, portanto, de uma dada forma de organizar o espaço, sendo assim integrados ao
olhar que constrói a paisagem. Nesse sentido aqui diferenciamos uma paisagem com
elementos cênicos de uma simples cena com objetos (que se limitariam a fazer apenas a
descrição física do ambiente). De maneira semelhante, ao realizar análise fílmica da
composição de planos que estruturam a paisagem nos trechos selecionados do filme
utilizaremos como referência tanto planos abertos (que apresentam, por exemplo, elementos
naturais da paisagem nordestina), como também planos fechados (ou até mesmo detalhes em
close) que podem indicar traços da cultura nordestina que estão presentes nessa mesma
paisagem. E, assim, pretendemos distinguir de maneira clara os elementos que compõem a
paisagem de um filme (como objetos cênicos e planos individualizados), os quais não
confundem com a própria ideia de paisagem, a qual resulta do agrupamento desses elementos
pelo observador, acrescidos de sua carga subjetiva, trazendo a ideia de um conjunto ou de um
todo unitário.
Assim, ao analisar as paisagens do filme abarcaremos estratos de significação
diversos, nos colocando também em contato com possibilidades de interpretação que vão
além do plano visual, para recepcionar também seus aspectos sonoros, por meio da chamada
paisagem sonora
5
. É válido acrescentar que os elementos sonoros contribuem de forma
decisiva para imersão do espectador nas paisagens das obras audiovisuais, de modo não há
preponderância ou submissão relacionadas ao grau de importância que tais elementos
possuem na construção espacial da obra. E para trabalhar as paisagens sonoras trazemos a
referência de Murray Schafer (1997, p.23):
5
Dessa forma, trazemos a lição de Milton Santos ao dizer que a paisagem não “é formada apenas de volumes, mas também de
cores, movimentos, odores, sons etc.” (SANTOS, 1991, p.61),
27
[...] a paisagem sonora é qualquer campo de estudo acústico. Podemos
referir-nos a uma composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a
um ambiente acústico como paisagens sonoras. Podemos isolar um
ambiente acústico como um campo de estudo, do mesmo modo que podemos
estudar as características de uma determinada paisagem.
Finalmente, a paisagem assim entendida possui dimensões atinentes a diferentes
aspectos da realidade, como é aqui o caso, de modo que ao tratarmos da paisagem nordestina
nesta pesquisa, estaremos considerando justamente a que tem como objeto a região Nordeste.
Destarte, abrangemos todo universo de atributos ligados às características físicas e culturais
relacionados a essa região, a qual algumas vezes é apresentada no cinema de forma inovadora
e outras vezes de forma estereotipada, conforme observaremos no decorrer dos tópicos
seguintes.
28
1.2 A paisagem nordestina no cinema
Iniciaremos agora uma breve contextualização para elucidar como a paisagem
nordestina foi apresentada em outros períodos do cinema nacional. Embora não exista aqui o
interesse de fazer uma análise histórica aprofundada e pormenorizada, essa contextualização
será importante para melhor referenciar os pontos de adensamento simbólico na paisagem do
filme selecionado para análise, bem como servirá para tornar mais claro em que aspectos a
paisagem explicitada nesse filme se aproxima ou se diferencia de momentos anteriores da
história do cinema brasileiro.
Dentro dessa análise, foram selecionados filmes dos principais períodos do cinema
brasileiro, começando pelos ciclos regionais da década de 1920
6
, destacando como recorte o
ciclo da cidade de Recife; depois seguindo para o período das grandes companhias privadas,
representadas pela Atlântida e Vera Cruz na década de 1940 e 1950; avançaremos para
abordar o cinema moderno, por meio do cinema novo, durante a década de 1960;
posteriormente, versaremos sobre a paisagem nos filmes da época da Embrafilme, dentro do
modelo de financiamento estatal que se estendeu nos anos de 1970 a 1990; e, por fim,
discutiremos filmes da retomada, que desembocou no cinema contemporâneo, com as
produções mais recentes.
A paisagem nordestina esteve presente em diversos períodos do cinema nacional e
acompanhou diferentes tendências cinematográficas ao longo dos anos. Se por um lado, esses
diferentes momentos trouxeram considerável variedade de concepções estéticas e de
linguagem (sendo bastante perceptível a influência do cinema clássico, passando para o
moderno e posteriormente para as recentes tendências do cinema contemporâneo), por outro
lado os temas escolhidos para criar uma expressão do Nordeste no cinema apresentaram certa
constância, sendo periodicamente retomados e reinterpretados. Além disso, outro ponto que
justifica essa análise dos períodos anteriores é o fato de que o cinema, assim como qualquer
manifestação cultural ou artística, tem influência direta ou indireta dos períodos que lhe
antecederam, bem como do contexto atual, de forma que até mesmo de maneira inconsciente,
essas inter-relações acabam se manifestando na realização dessas obras. Dessa forma,
consideramos pertinente avaliar as possibilidades de conexões entre esses filmes de diferentes
épocas, tendo em vista uma posição que tem similaridade com o entendimento de Roland
6
Fernão Ramos (1987) separa o Cinema Paulistano e o Cinema Carioca, diferenciando-os dos Ciclos Regionais
de Minas Gerais, do Norte, do Nordeste e Sul-Sudeste, durante as décadas de 1910 a 1930, no Livro História do
Cinema Brasileiro.
29
Barthes (2004, p. 236) ao discorrer sobre a intertextualidade e a influência de textos
anteriores:
[...] todo texto é um intertexto, nele estão presentes outros textos, em níveis
variáveis com formas mais ou menos reconhecíveis: os textos da cultura
anterior e os da cultura circundante; qualquer texto é uma nova trama de
citações passadas [...] toda linguagem anterior e contemporânea vem ao
texto, não pelo caminho de uma filiação reconhecível ou de uma imitação
voluntária, mas por uma disseminação.
Esta proposição inclusive também se aproxima da explicação do diretor de fotografia
Walter Carvalho (2010) ao mencionar Vittorio Storaro:
Uma frase do grande mestre da fotografia Storaro, italiano, quer você queira
ou não, qualquer produção de imagem que você fizer hoje tem por traz de
você, esteja consciente disso ou não, mais de 2000 anos de história. Não
sendo possível pensar na representação do objeto sem estudar a própria
representação do objeto na história da arte.
O ciclo regional do Recife, ocorrido na década de 1920
7
, foi um dos pioneiros entre os
ciclos regionais do cinema mudo no Brasil, conforme explica Cunha Filho (2006, p. 14). Os
ciclos regionais foram iniciativas ocorridas fora do Rio de Janeiro e São Paulo, tentando
descentralizar a produção para outras áreas do país, tais como Pernambuco, Minas Gerais, Rio
Grande Sul, Paraíba e Amazonas, sendo o ciclo do Recife um dos que obteve maior destaque
com treze longas-metragens. O cinema mudo ou silencioso, realizado nessa época era
profundamente influenciado pelo cinema americano e buscava reproduzir a montagem
clássica de D. W. Griffith, tendo um enredo que praticamente se resumia ao trinômio do herói,
mocinha e vilão, seguido por um final feliz.
Nesses filmes recifenses já percebemos em Aitaré da Praia (de Gentil Roiz, 1925),ou
em Jurando Vingar (de Ary Severo, 1925), a presença de conteúdos relacionados à pobreza,
violência, religiosidade, ligados à dualidade entre sertão e litoral, campo e cidade, os quais se
acoplarão a outros elementos temáticos intermitentes para consolidar a construção imagética e
discursiva do Nordeste. Em Aitaré da Praia
8
, por exemplo, verificamos a presença de
imagens relacionadas ao dia-a-dia dos pescadores, indicados nas paisagens litorâneas (com
suas praias, jangadas e coqueiros), as quais de imediato são contrastadas ao ritmo de vida
acelerado da cidade (com seus prédios, avenidas e bondes), aludindo à modernidade e ao
desenvolvimento presentes na capital.
7
Na época tais filmes eram chamados de filmes “posados” ou de “enredo” e aproximavam-se dos atuais filmes
de ficção, ao passo o que os “naturaes” eram próximos dos documentários.
8
Segundo Amanda Nogueira (2009, p. 20) filmes “como Aitaré da Praia (1925) já inovavam o cinema do
Nordeste pela introdução de elementos regionais ao tratar da vida de pescadores nordestinos. A busca por
elementos da região pode ter sido uma influência do movimento regionalista no cinema local.”
30
Figura 1 - Imagens do filme Aitaré da Praia (1925) - identificando contrastes entre a paisagem litorânea e da
cidade.
Essa dualidade entre centros urbanos em contraste com o litoral e interior rural, que
aqui ainda se apresenta de forma embrionária, será recorrente ao longo de vários momentos
do cinema nacional, estampando o choque cultural entre uma parte do país que buscava suas
referências na modernização e na tecnologia, tendo acesso a inovações diversas (sendo o
cinema mais uma delas), e outra parte que permanecia atrelada às tradições agrárias e
extrativistas. Dessa maneira, a lente cinematográfica era apontada da cidade em direção a si
mesma e também para outras espacialidades, estabelecendo uma troca simbólica que
paulatinamente ajudou a criar formas distintas de apresentar cada uma dessas localidades a
partir da referência do outro. Era, portanto, assim que tinha início a construção de paisagens
cinemáticas sobre o Nordeste.
Conforme Jeff Hopkins (2009, p. 60): “Uma paisagem fílmica, ou uma paisagem
cinemática, poderia ser definida, no sentido mais amplo do termo, como uma representação
fílmica de um meio ambiente real ou imaginado, visto por um espectador”, e acrescenta que:
[...] consequentemente a paisagem cinemática não é um lugar neutro de
entretenimento, nem uma documentação objetiva ou espelho do ‘real’, mas
sim uma criação cultural e ideologicamente impregnada, pela qual sentidos
de lugar e de sociedade são feitos, legitimados, contestados e ocultados.
(HOPKINS, 2009, p. 64).
31
Ou seja, o próprio cinema, através das representações que fazia da realidade na cidade
e no campo, passou a interagir com as realidades espaciais que retratava, influenciando a
construção simbólica, ampliando as experiências sensoriais e acrescentando camadas de
subjetivação a cada um desses lugares. A análise dos conflitos entre o urbano e rural permite
perceber a influência que os contextos sociais impõem às construções simbólicas referentes a
esses espaços, modificando inclusive a organização espacial das paisagens cinematográficas
representadas. E, por outra via, permite compreender que essas mesmas representações
9
passam a repercutir na forma como se estruturam e se configuram as organizações sociais e as
espacialidades na realidade concreta, em um fluxo de processo contínuo. A esse respeito
trazemos a referência de Armando Silva (2011, p. XXIV):
Se aceitamos que a relação entre coisa física, a cidade, sua vida social, seu
uso e representações, suas escrituras formam um conjunto de trocas
constantes, então vamos concluir que em uma cidade o físico produz efeitos
no simbólico: suas escrituras e representações. E que as representações que
se fazem da urbe, do mesmo modo, afetam e conduzem seu uso social e
modificam concepção do espaço.
O desdobramento dessa ideia nos permite entender que as representações feitas sobre a
realidade nas mais diferentes linguagens (e também no cinema), em razão da carga de
subjetivação que transportam, são detentoras de um potencial transformador que retorna a
essas realidades e ultrapassam a função de mera reprodução das localidades desprovidas de
uma intencionalidade. Nesse sentido, Ana Francisca Azevedo (2006, p. 156) se refere a
Gurhah para demonstrar a influência da cultura na construção de geografias imaginativas:
Como repositório de formas simbólicas e de experiências sociais individuais
e coletivas (Gurnah, 2002:355), a cultura funciona como veículo de troca
interpessoal e como médium para a construção de significados. Através dela,
misturam-se ‘ambições e desejos por forma a legitimar uma ordem moral e
ação política, autoridade e o sistema econômico’ (Gurnah, 2002:355), os
quais interferem para a produção de geografias imaginativas.
9
Em relação ao conceito de representação usado nessa pesquisa, entendemos que as representações são
elementos que ajudam a construir a realidade que nos cerca, próximo dos entendimentos encontrados em
dicionários de comunicação, como o organizado por Ciro Marcondes (2009, p. 405), de onde extraímos “para o
sociólogo Pierre Bourdieu as representações mentais podem ser tanto mentais como objetais. As primeiras são
atos de percepção de apreciação, de conhecimento e reconhecimento, em que os agentes investem seus interesses
e seus pressupostos. As segundas ganham materialidade em coisas (livros, filmes, campanhas publicitárias) ou
atos (manifestações públicas) [...] deve-se considerar que para Bourdieu as manifestações, sejam materiais ou
objetais, são indissociáveis das relações de poder, uma vez que têm a capacidade de construir uma realidade.”
Portanto, ao nos referirmos à representação das paisagens no cinema, estamos mais próximos da definição de
representação objetais de Bourdieu, evitando uma possível confusão com ideia de representação desenvolvida
por outros autores como Serge Moscovici e Denise Jodelet que preferem trabalhar com a ideia de representação
social ou representação coletiva a partir de Émile Durkheim. Consideramos também que aprofundamento nas
discussões em torno das possibilidades de uso do termo em questão não se faz aqui necessário além desses
termos, pois nos afastaria do nosso objeto de trabalho, tendo em vista que não configura como foco de nossa
pesquisa.
32
Em relação à paisagem nordestina tal como foi expressa no ciclo do Recife,
percebemos que há uma representação realista e naturalista, em que a paisagem funciona
predominantemente como cenário, tendo diminuta influência direta no desenrolar da
narrativa, sendo pouco exploradas outras possibilidades simbólicas dessas imagens que
pudessem ir além das propriedades físicas desses espaços. Apesar disso, elementos como
esses ajudaram a estabelecer a visão que se tem da região Nordeste, decorrente de variadas
linguagens, as quais vêm sendo acumuladas ao longo de décadas, passando por abordagens
que vão desde a literatura, música, poesia, cinema, jornais, televisão, bem como saberes
científicos. Tais expressões formam camadas de significação que se sobrepõem para
estabelecer conceitos relacionados aos elementos culturais referentes ao Nordeste.
Há historiadores como Durval Albuquerque (2012) que identificam uma maior
atividade inventiva na construção imagética e imaginária do Nordeste, principalmente no
decorrer das décadas de 1920 e 1960. Essa maior profusão na construção das espacialidades
regionais ganhou maior expressão em decorrência da busca de unificação em torno do
discurso nacional sobre a cultura popular, especialmente a partir do início do século XX,
devido ao deslocamento dos eixos de poder e disputas políticas entre o Norte (atual Nordeste)
e o Sul (atual Sudeste), surgindo daí movimentos artísticos e culturais que buscavam
intensificar a identidade e os caracteres referentes a cada uma dessas regiões. Sobre os
discursos regionalistas do início do século XX, Albuquerque (2012, p. 53) afirma:
A partir deste momento, para visualizar a nação em toda a sua
complexidade, os vários discursos, tanto no Norte quanto do Sul, partem
para análise do próprio espaço onde são emitidos. [...] A busca da nação leva
a descoberta da região com um novo perfil. Diferentes saberes, seja no
campo da arte ou da ciência são mobilizados no sentido de compreender a
nação, a partir de um jogo de olhares que perscruta, permanentemente as
outras áreas e volta para si próprio.
Em relação ao cinema contemporâneo percebemos que muitos filmes ainda mantêm
entre suas temáticas a comparação entre o meio urbano e rural, a exemplo de O Som ao redor
(de Kleber Mendonça, 2012) que vincula concentração fundiária ao processo de verticalização
das cidades, ou O Céu de Suely (que trata, em grande medida, da modernização e urbanização
do sertão no contexto da globalização). Entretanto, as espacialidades nesses filmes recentes
ganham importância devido sua maior interferência no desenrolar da narrativa e no destino
dos personagens. A maior relevância atribuída à paisagem em O Céu de Suely é percebida por
meio de recursos como, por exemplo, o adensamento de significações em elementos que
marcam a paisagem e também pela forma como a cidade de Iguatu se harmoniza e depois se
contrapõe aos propósitos e estados subjetivos de Hermila, sendo crescente a influência do
33
meio espacial na história, aspecto esse que será melhor detalhado no capítulo referente à
análise do filme.
Voltando à contextualização dos períodos anteriores, com o surgimento do cinema
sonoro, a partir da década de 1930, a produção cinematográfica nacional voltou a se
concentrar no setor mais ao Sul do país (atual região Sudeste), o qual dispunha de melhor
estrutura e meios financeiros para investir nessa atividade. Assim, registramos nas décadas de
40 e 50 o surgimento de grandes companhias de cinema como a Vera Cruz (1949-1954, em
São Paulo) e Atlântida (1941-1962, no Rio de Janeiro), as quais deram continuidade a esse
processo de formar ou inventar identidades regionais por meio do cinema.
Nessa época, em meio a grande influência do cinema clássico americano, Albuquerque
(2012, p. 297) explica que o Nordeste passa a ser apresentado no cinema nacional por meio de
imagens previamente estabelecidas em outras fontes, tendo como referência o romance
regionalista da década de 1930
10
. A esse respeito, Albuquerque (2012, p. 297) assevera que:
[...] não tendo uma produção imagética capaz de se autorreferenciar, o
cinema recorrerá a imagens e enunciados cristalizados sobretudo pelo
romance, para produzir o efeito de verossimilhança desejado, para que o
público possa ter referências anteriores e possa identificar de que realidade o
filme está falando. Os filmes com temáticas nordestinas, por exemplo,
quando não são adaptações para o cinema de romances produzidos pela
geração de trinta, buscarão nesses romances suas imagens e enunciados mais
consagrados.
Nesse período, o Nordeste e suas paisagens passaram a ser retratados a partir do ponto
de vista do Rio de Janeiro e São Paulo, tanto que o filme O Cangaceiro, de Lima Barreto,
lançado em 1953 pela Vera Cruz, foi rodado na cidade de Vargem Grande do Sul, no interior
paulista. Esse filme conseguiu grande alcance de público
11
, venceu duas Palmas de Ouro no
festival de Cannes (de melhor canção e melhor filme de aventura), sendo distribuído para 84
países pela Columbia Pictures, e tal projeção contribuiu para que o tema do cangaço passasse
a ser explorado em diversas outras obras, as quais eram chamadas de northerns
12
(devido à
10
Dentre os autores e romancistas da década de 1930 que ajudaram a construir esse imaginário, os quais também
foram destacados por Albuquerque (2012), ressaltamos as obras: O Quinze de Rachel de Queiroz (2013); São
Bernardo e Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2003); Banguê, de José Lins do Rego (2001); Mar Morto e
Capitães de Areia, de Jorge Amado (2009); Casa-grande e Senzala, de Gilberto Freyre (2003). Tais romances
permitiram evidenciar panoramas distintos sobre elementos naturais das paisagens nordestinas (do litoral ao
sertão), tendo também cristalizado traços culturais em comum.
11
Sobre o público alcançado pelo filme “O CANGACEIRO atinge dez semanas de exibição contínua em
inúmeros cinemas ao mesmo tempo, tendo sido visto por mais de 800 mil pessoas, um recorde absoluto de
bilheteria no país.” (RAMOS, Fernão, 1987, p. 220).
12
Para exemplificar os filmes northerns podemos citar filmes como A Morte Comanda o Cangaço (1960); O
Primo do Cangaceiro (1955); Os Três Cangaceiros (1961); Entre o amor e o Cangaço (1965); As Cangaceiras
Eróticas (1974); O Cangaceiro Trapalhão (1983).
34
influência dos clássicos westerns americanos), disseminando o imaginário das paisagens do
cangaço a partir do filme original de Lima Barreto (RAMOS, 1987, p. 341). Assim, surge
uma espécie de tipificação do Nordeste que passa a ser presente também nos elementos
humanos que compõem essa paisagem. Por exemplo, em relação às produções cariocas da
Atlântida, Albuquerque (2012, p. 297) identifica a proliferação desses estereótipos
13
ao
explicar que:
Os tipos "nordestinos" do pau-de-arara, do coronel, do cangaceiro, do
jagunço faziam parte da coleção de tipos que a chanchada agenciava dos
programas de humor de rádio e levava para a tela já na década de quarenta.
O nordestino se aproxima muito da imagem do matuto ou do caipira [...] o
tipo "nordestino" quando não era o coronel tacanho, machista, mulherengo,
valente e ridículo [...] podia ser o protótipo do homem honesto, inocente e
simples.
Dessa maneira, passa a haver um reforço na imagem de um sertão estático e avesso à
modernidade contraposto ao avanço e à civilidade que se apresentam nas grandes cidades. A
respeito das visões sobre o sertão e de como essa região é identificada repetidas vezes ao
Nordeste, Meize Lucas (2015, p. 87) considera que:
[...] se para alguns o sertão será o depositário da “brasilidade”, para outros
constituirá a marca do atraso: um lugar refratário à modernização e,
consequentemente, à integração ao restante do país. Esse sertão – cuja
definição espacial e social será sempre imprecisa – será reiteradamente
identificado ao Nordeste. Tanto numa perspectiva como noutra, a região
permanece como algo a ser descoberto [...].
É nesse contexto que os elementos da paisagem natural se tornam imagens chave para
representar espacialidades nordestinas a partir do discurso da seca, tendo como elementos o
sol escaldante, o solo rachado, a vegetação da caatinga com galhos secos e retorcidos, animais
mortos e urubus sobrevoando as carcaças. Tais imagens aparecem em filmes dessa época
como Canto do mar (de Alberto Cavalcanti, 1953), e em filmes do cinema novo como Vidas
Secas (de Nelson Pereira dos Santos, 1963) ou Os Fuzis (de Ruy Guerra, 1963). Esse discurso
vai criando a ideia de uma vitimização e subserviência do nordestino frente a essas condições
naturais, a qual é trazida em alguns filmes junto ao elemento da religiosidade, como em O
Pagador de promessas (de Anselmo Duarte, 1962); ou junto ao elemento da violência, em
13
O termo estereótipo possui diversas acepções em diferentes ramos do conhecimento. No tocante a esta
pesquisa são acolhidas compreensões atinentes ao campo da comunicação, a qual considera estereótipo “uma
ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou sobre algo, resultante de uma visão
convencional, simplificada e formulista” (MARCONDES, 2009, p. 176); bem como da psicologia social: “uma
imagem simplificada e naturalizada, criada a partir da necessidade de desenhar uma diferença entre o Eu e Outro
e que dá uma estrutura para processos cognitivos” (Idem).
35
filmes como O Cangaceiro, mostrando o bando de lampião mergulhado em uma barbárie
anárquica e descontextualizada de qualquer elemento social ligado à concentração fundiária.
Figura 2 - Imagens do filme Vidas Secas (1963) - enfoque em elementos naturais da paisagem nordestina.
A paisagem nordestina apresentada por meio desses estereótipos em relação à natureza
e aos tipos humanos, em certa medida continua sendo usada em filmes contemporâneos que
trabalham na vertente do humor, a exemplo Lisbela e o Prisioneiro (de Guel Arraes, 2003) e
Tieta do Agreste (de Cacá Diegues, 1996), e também em alguns filmes com viés histórico que
valorizam a estetização de tais paisagens, a exemplo de Abril Despedaçado (de Walter Salles,
2001). Porém, outra parcela de filmes contemporâneos como O Céu de Suely tem intenção de
explorar outras possibilidades de apresentação dessas paisagens mostrando, por exemplo, o
cotidiano e a influência de elementos da modernidade no sertão nordestino como ocorre em
cenas nas quais Hermila circula pelo comércio de Iguatu, consumindo produtos eletrônicos ou
roupas coloridas fabricadas em diferentes partes do mundo.
Retomando a contextualização, durante a década de 1960 houve uma disputa entre
grupos de cineastas brasileiros – ligados ao cinema clássico e ao cinema novo – que tentavam
cada qual apresentar suas tendências cinematográficas como legítimas portadoras dos
elementos populares e valores regionais. Os diretores alinhados ao Cinema Novo
consideraram O Pagador de promessas acadêmico e ainda muito eivado da influência
americana. Apesar dessas considerações, autores como Fernão Ramos (1987, p. 340-341)
considera que o filme de Anselmo Duarte apresenta características que em alguns momentos
se aproximam e em outros se afastam das tendências cinemanovistas, conforme explicado no
trecho a seguir:
Anselmo fazia parte da velha guarda oriunda da chanchada e da Vera Cruz e
nunca se deu muito bem com os “meninos” do jovem cinema. Em O
PAGADOR DE PROMESSAS apresenta toda uma temática próxima ao
Cinema Novo, mostrando, além do universo ficcional carregado de
“brasilidade”, a questão da opressão e sofrimento popular. (…) Apesar do
36
mesmo núcleo temático e de personagens e universo ficcional próximos, a
distância com relação ao Cinema Novo se estabelece ao abordarmos a forma
narrativa através da qual este conteúdo é disposto.
Ou seja, para Ramos o conteúdo de O Pagador de promessas se aproxima das
temáticas do cinema novo, porém a forma de apresentar a narrativa ainda estava mais ligada
ao cinema clássico de influência americana. Quanto à descrição paisagística, fazemos a
ressalva de que apesar do uso de imagens estereotipadas da região, percebemos em sua
sequência inicial uma evolução da linguagem por meio do uso de atributos naturais da
paisagem como recurso narrativo. No decorrer dos sete minutos iniciais, sem qualquer
diálogo, o diretor consegue apresentar o conflito disparador do enredo em que o personagem
principal, Zé do Burro, faz uma promessa em um terreiro de candomblé e passa a carregar sua
cruz atravessando diversas nuances espaciais do Nordeste. Zé do Burro sai do sertão árido,
caracterizado por cactos, solo rachado, animais sofrendo com a seca, caminha até locais com
chuvas, chegando a regiões com climas mais amenos, prossegue até o litoral, representado
inicialmente pelos coqueiros e praias, posteriormente pela vida noturna e moderna da capital
Salvador. Por fim, o protagonista completa seu trajeto chegando à escadaria de uma igreja
barroca, local em que pretende pagar sua promessa. A partir daí passa a ser evidenciada a
predominância de elementos humanos na composição da paisagem do filme, comportando
conflitos diversos, em que se desenvolverá a história.
Figura 3 - Sequência inicial do filme O Pagador de Promessas (1962) - elementos da paisagem desde o sertão
até a capital.
37
O deslocamento espacial do nordestino que aparece em O pagador de promessas e em Vidas
Secas ajuda a moldar o estereótipo do migrante no cinema. Dentro dessa temática o retirante
procura afastar-se da opressão (geográfica e social) dessas espacialidades, colocando-se em
movimento constante em busca de melhores condições de vida, sendo posteriormente
associado aos caminhões pau-de-arara e à estrada como elemento marcador da paisagem, a
qual vai adquirindo maior significação metafórica e poética no decorrer dos anos.
Encontramos a figura retirante também em filmes do período da Embrafilme, como O homem
que virou suco (1981), bem como A hora da estrela (1985) e Bye Bye Brasil (de Cacá
Diegues, 1979). Ressaltamos ainda sua presença em filmes do cinema contemporâneo como
Central do Brasil (de Walter Salles, 1998), Deserto Feliz (Paulo Caldas, 2007) e O Céu de
Suely, sendo que no caso deste último filme há uma perspectiva distinta, com a migração
invertida da protagonista, a qual deixa o Sudeste e retorna para o sertão (chegando a uma
região que apresenta uma paisagem com grande influência globalizada e conectada ao resto
do mundo), indicando uma tentativa de contraposição a este estereótipo cristalizado.
A respeito da migração e do trânsito entre culturas que aparece em O Céu de Suely,
Lopes (2012, p. 63) pondera que:
[...] longe das situações desesperadas da seca culminando em morte ou em
impossibilidade de volta, ruptura radical com a origem, em O céu de Suely, a
experiência migratória, sem pretensão alegórica, é tradução afetiva do
trânsito entre culturas, em que a vivência íntima é central.
E é a partir dessa possibilidade de entrelaçamento cultural na vida cotidiana que o
autor explica que as paisagens transculturais podem contribuir para os estudos do cinema:
"creio que a paisagem transcultural pode ser uma alternativa que dialoga com outras
possibilidades nos estudos de cinema, mas que tem um caminho próprio — na defesa de um
multiculturalismo crítico" (LOPES, 2012, p. 13). Nesse sentido ele aborda como chegou ao
conceito de paisagem transcultural: "incorporei à noção de paisagem transcultural toda a
tradição que vem da história da arte sobre a paisagem para pensá-las não só como
‘comunidade de solidariedade transnacional’, nos termos de Appadurai, mas também como
espaço estético a contemplar." Assim, o autor considera que a contemplação dos aspectos
cotidianos, acrescida de um olhar crítico em relação a essas espacialidades, possibilita o
entendimento da estruturação transcultural presente nessas paisagens.
Voltando o olhar novamente para a contextualização da paisagem nos períodos do
cinema nacional, destacamos em relação ao cinema novo, que os elementos naturais da
paisagem nordestina mantêm inicialmente o viés realista e naturalista, mas acrescidos agora
de uma intenção política, pois a partir da orientação marxista, esses cineastas perseguiam o
intuito de explorar essas imagens para contrapor às condições sociais da miséria e do
subdesenvolvimento, instigando na população o ideal de uma utopia revolucionária. Assim, o
38
cinema novo passa a buscar um rompimento com a forma clássica de fazer cinema
estabelecida pelas grandes companhias inspiradas no modelo estrangeiro. Acompanhando
movimentos que despontaram em várias partes do mundo, com destaque para inspiração
maior do cinema francês e italiano (tendo como principais expoentes Jean-Luc Godard e
Roberto Rosselini), o cinema moderno brasileiro também apostou na autoralidade em
contraposição ao cinema clássico americano. É nessa época que surgem os filmes Os Fuzis,
de Ruy Guerra (1964), Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha (1964) e Vidas secas
de Nelson Pereira dos Santos (1963), que compõem a chamada trilogia do sertão, considerada
por muitos, a exemplo de Ismail Xavier (2001), momento de auge do cinema novo. Se em
períodos anteriores do cinema nacional a busca pelo popular era feita a partir de um olhar
distanciado, implicando uma hierarquia que indiretamente ainda opunha cidade e campo,
mundo civilizado e atrasado, por outro lado, os participantes do Cinema Novo se dispunham a
utilizar a influência adquirida a partir da cultura estrangeira para mergulhar na forma como o
povo enxergava a realidade (incorporando seus signos, apropriando-se de seus costumes e
valores) e a partir dessa mistura, fazer emergir uma abordagem estética distinta, consciente
das suas limitações técnicas, mas que buscava incorporar tais deficiências em uma colagem
que fundaria as bases de um novo cinema.
Já em relação a Deus e o diabo na terra do sol, o uso de elementos realistas da
paisagem serve como ponto inicial a partir do qual várias camadas se entrelaçam e vão do
mítico ao real, proporcionando a multiplicidade e simultaneidade de visões sobre um mesmo
objeto, em um processo de apreensão semelhante ao da pintura cubista. A esse respeito, Pedro
Pereira (2008, p. 25) explica que:
No processo de dramatização de determinados momentos históricos do país,
o filme reinventa a realidade, urdindo tempo, espaço, biografia e geografia,
sempre em novas configurações imaginativas, e possibilitando visão
alternativa dos personagens e dos episódios. Narrando uma história do
Brasil, a película não se contenta em apresentar o real, ou identificar
‘personagens reais’; antes, prefere (re)criá-los alegoricamente.
Os elementos da paisagem natural são trazidos por Glauber Rocha de forma ampla,
com uso de muitos planos abertos, os quais enfatizam a dimensão vasta do sertão. Ele cria a
sensação de uma paisagem que parece infinita e intransponível, um fardo pesado, na medida
em que a natureza se impõe ao homem rural de forma rústica, tornando-o pequeno diante
dessa força maior. Para reforçar essa sensação, Glauber Rocha usa como recurso – o qual
demonstra a habilidade do autor em construir metáforas espacializantes – o olhar fixo que os
personagens apontam em vários momentos do filme para o horizonte distante, momento em
que se perdem em suas reflexões, desapontados por não ter como ultrapassar sua existência
39
trágica, fato que os traz de volta ao tempo da natureza, um tempo cíclico e mítico. A forma
quase naturalista de apresentar a paisagem é abandonada nos momentos de efervescência e
conflitos sociais. Casos em que a calmaria é rompida por uma descarga de emoções crescentes
e moduladas até a metáfora final, em que o sertão se torna mar. Conforme traz Malafaia
Wolney (2012), a pacata paisagem sertaneja é transgredida por rompantes de violência e
cólera, como no assassinato do Coronel, por Manuel, ou do Santo Beato, por Rosa. O homem
é apresentado como produto deste meio, mas decorre de uma história, de uma trajetória social.
Assim, as dimensões da paisagem nordestina coberta pelo Sol são construídas em um meio
transformado pela força exploradora do latifúndio e da ideologia messiânico-carismática.
Todavia, apesar da inovação estética pautada dentro da função político-social no
período do cinema novo, a recorrência de imagens impactantes para retratar a paisagem
nordestina, teve um efeito homogeneizador
14
para essas espacialidades, reforçando muitos
estereótipos já associados a essa região. E posteriormente, parte dos diretores do cinema
contemporâneo vão recorrer às temáticas do cinema novo (principalmente o sertão e a favela),
enfatizando outras possibilidades apresentar a paisagem nordestina.
Essa perspectiva cinemanovista de mostrar as paisagens nordestinas imbricadas em um
caráter político mudará com o golpe militar
15
em 1964. A censura e a derrocada dos ideais
revolucionários e utópicos geram modificações nas temáticas – e consequentemente nas
paisagens – dos filmes produzidos nessa época, os quais gradualmente passam a se afastar do
elemento popular regional para chegar a temas mais próximos da classe média, visando maior
alcance de público. Além disso, com o surgimento da Embrafilme (Empresa Brasileira de
Filmes S/A)
16
, voltam a predominar as produções mais urbanas abordadas por meio de uma
linguagem simples, usando diretores de prestígio preferencialmente internacional e atores que
já tinham aproximação com o público devido à participação na televisão. Assim, em 1976, o
filme Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, se tornou símbolo dessa forma de
14
Conforme Albuquerque (2011, p. 311-312): "O Nordeste no Cinema Novo aparece como um espaço
homogeneizado pela miséria, pela seca, pelo cangaço e pelo messianismo. [...] Importa pouco a diversidade da
realidade nordestina e todas as suas nuanças, o que interessa são aquelas imagens e temas que permitam tomar
este espaço como aquele que mais choca, aquele capaz de revelar nossas mazelas e, ao mesmo tempo indicar a
saída correta para elas”.
15
Wolney (2012, p. 28) explica que com o golpe, setores conservadores reagem por meio de censura e dura
repressão, especialmente a partir de 68, com o AI-5, gerando a prisão e exílio de vários artistas, intelectuais
cineastas, dentre eles Glauber Rocha (entre 71 e 76) e específica acontecimentos “entre 1964 e 1968, quando a
proposta cinemanovista se consolidou, conhecendo o seu apogeu, quando se afirmou como linguagem
cinematográfica original, e seus realizadores, como intelectuais de oposição ao regime militar instaurado em
abril de 1964”.
16
A Embrafilme foi uma empresa estatal surgida no período militar que se encarregou da produção distribuição
cinematográfica em todo território nacional no período de 1969 a 1990.
40
produzir filmes pela Embrafilme, sendo o segundo filme com maior público na história do
cinema nacional. A respeito dessa obra, Wolney (2012, p. 150) afirma:
O filme seguiu o modelo de sucesso já proposto anteriormente: elenco
televisivo, roteiro conhecido, trilha sonora de qualidade, técnica
aperfeiçoada e sexo, muito sexo. Obviamente, para esse sucesso contribuiu,
e muito, o fato de a atriz Sonia Braga protagonizá-lo. Tendo desempenhado
recentemente na televisão o papel de Gabriela, em telenovela inspirada no
romance homônimo de Jorge Amado, agora reaparecia nas telas de cinema
na pele de outra personagem do mesmo escritor: a cândida e sensual Dona
Flor. A identificação do público com a história e com suas personagens foi
total.
A paisagem em Dona Flor voltou a se aproximar de uma construção realista e
naturalística, retomando a função principalmente de cenário, devido à influência que a
teledramaturgia passou a imprimir à linguagem do cinema nacional, afastando-se de maiores
elaborações estéticas e criativas que pudessem ser mal apreendidas pelo público. Há poucas
cenas de planos mais aberto e a espacialidade do filme praticamente se resume a tomadas
internas nos ambientes habitados pelos personagens. Já em relação aos elementos humanos,
são valorizados no decorrer da película características culturais da Bahia por meio das receitas
de culinária ensinadas por Dona Flor, bem como das enfeitadas cerimônias de candomblé. Há
grande ênfase nos espaços boêmios construídos de forma estereotipada, como casas de jogo,
bares e bordéis; sendo apresentados tais ambientes de maneira amigável, dotados de pura
alegria e descontração, os quais são frequentados por Vadinho (primeiro marido da
protagonista) e seus amigos. Porém, conforme ressalta Carla Paiva (2014), há momentos em
que Vadinho trata mal a esposa, chegando a bater nela quando precisa de dinheiro e os traços
de machismo são também revelados pela desvalorização social do trabalho feminino, como o
de Dona Flor, por ser professora de culinária. Além disso, há grande exploração do corpo
feminino no filme, colocando a mulher na posição de objeto sexual.
A personagem de Dona Flor, em 1976 nos traz a referência de como a figura feminina
foi construída no cinema nacional dentro de um ambiente predominantemente machista.
Assim, de acordo com a pesquisa feita por Paiva (2014, p. 153-154) sobre a representação da
mulher no cinema brasileiro
17
:
Em linhas gerais, a imagem do feminino pode ser situada em três
movimentos cinematográficos distintos: Chanchadas (1950/1960) – musicais
que apresentavam histórias simples e cenários carnavalescos que parodiavam
os filmes americanos, nos quais as mulheres eram representadas como a
17
Na mesma pesquisa Paiva (2014) enfatiza que o primeiro longa-metragem protagonizado por uma mulher
nordestina surgiu apenas em 1968, no filme Maria Bonita, rainha do cangaço (de Miguel Borges), seguido de
Luciana, a comerciária (de Mozart Cintra, 1976); e a terceira protagonista nordestina presente no cinema
brasileiro é Dona Flor, de Dona Flor e seus dois maridos.
41
mocinha ingênua sempre à espera de ser salva pelo “herói” masculino. [...]
Cinema novo (1960/1970) – que associava a figura feminina ao aspecto
social e à luta individual no contexto de uma sociedade ainda controlada
pelo homem, e as Pornochanchadas (1970/1980) – que tematizavam a
malandragem, o adultério, a homossexualidade e a bissexualidade feminina,
construindo a sua representação como objeto sexual.
Entretanto, esses dramas envolvendo o machismo são abordados em Dona Flor e seus
dois maridos sem um maior desenvolvimento que aponte suas causas ou mesmo um
questionamento dos valores morais envolvidos, sendo evitado o adentramento na
complexidade desses temas devido ao conservadorismo e à censura militar da época. Nesse
sentido, o ingrediente do humor aparece como um elemento amenizador de antagonismos e
conflitos da sociedade brasileira, sendo usado frequentemente de forma versátil e inteligente.
Figura 4- Imagem da cena final do filme Dona Flor e Seus dois Maridos (1976).
Isso ocorre, por exemplo, na cena final do filme em que Dona Flor é cumprimentada
na rua ao lado dos dois maridos, o que poderia dar a ideia de tolerância e liberação sexual em
relação ao desejo feminino. Porém, o personagem que aparece nu na cena é o fantasma de
Vadinho (primeiro marido falecido) e apenas a personagem principal percebe sua presença, de
modo que ela caminha com os dois maridos sem causar estranhamento na população. Dessa
maneira, é encontrada uma solução fantasiosa cômica e fantástica para tratar de questões
ligadas ao desejo e à sexualidade da personagem, ao passo que problemas concretos ligados
ao machismo (como as agressões físicas sofridas por Dona Flor) não são debatidos nem
criticados.
42
Assim o machismo, apesar de ser um elemento humano bastante presente na paisagem
nordestina, raramente foi contraposto, sendo aceito com muita naturalidade praticamente por
um longo período na filmografia nacional. As exceções começam a aparecer a partir dos anos
de 1980
18
, em filmes como Das Tripas Coração (de Ana Carolina, 1982), que focaliza o
desejo e a sexualidade no ambiente de um colégio interno em São Paulo, mas sob um olhar
feminino que subverte a lógica do controle repressor masculino; e em relação às figuras
nordestinas, tem destaque em filmes como Parahyba mulher-macho (de Tizuka Yamasaki,
1983), que conta a história da professora e poetisa Anayde Beiriz, considerada uma das
precursoras do feminismo no Brasil; e A Hora da estrela, baseado no romance de Clarice
Lispector. Já em filmes do cinema contemporâneos como O Céu de Suely a temática do
patriarcado também é tratada junto à sexualidade, quando Hermila vende as rifas para
ultrapassar as dificuldades impostas pelo meio e lançar-se em busca de sua felicidade.
Posteriormente, com a extinção da Embrafilme em 1990, tem início um período de
baixíssima produção e consequente afastamento do público que havia sido adquirido. Em
meados de 1992 a atividade começa a retomar força em razão da criação de um modelo de
incentivo fiscal e com o surgimento da Ancine (Agência Nacional de Cinema), sendo esses
fatores que possibilitaram o cinema da retomada. O filme Carlota Joaquina, de Carla
Camurati, em 1995, marca o início desse ciclo que viabilizou a retomada da produção e do
interesse do público pelo cinema nacional, estendendo-se até o cinema contemporâneo. Vale
ressaltar que a atuação da Ancine em relação ao cinema nacional interessa para nossa
pesquisa na medida em que criou condições para uma nova descentralização das produções
cinematográficas para diferentes regiões do país por meio de editais públicos, possibilitando
que a produção de filmes no Nordeste voltasse a ser estimulada, impactando não só no cenário
artístico e das produtoras, como na representação dos repertórios e expressões da cultura local
que passaram a ser veiculados (agora tomando a paisagem sob o ponto de vista dos
realizadores locais), através desses novos filmes nordestinos.
Conforme Luiz Oricchio (2008, p. 146), esse novo modelo permitiu a convivência e o
delineamento de tendências diversificadas de produção, surgindo dessa maneira subgrupos
que vão desde o modelo do “cinema de mercado brasileiro”, estando mais preocupado com o
público e resultados de bilheteria (tendo predominância da Globo Filmes ocupando cerca de
70% desse segmento), até o “cinema de empenho cultural”, formado por um grupo de
18
De acordo com a pesquisa de Paiva (2014, p. 105), “ainda na década de oitenta, época da abertura do regime
militar, essa interação entre filme e questões sociais assume formas variadas, algumas narrativas
cinematográficas de curta e longa metragens passam a discutir a condição das mulheres (…) afirmando a
perspectiva feminina a partir de uma nova ótica, como em Das tripas coração (1982), de Ana Carolina”.
43
cineastas e artistas que “acreditam mais no cinema de baixo custo, os chamados BOs (baixos
orçamentos), que permitem maior pluralidade de títulos, acesso mais democrático aos poucos
recursos disponíveis”, tendo, portanto caráter mais independente, mais voltado para o
desenvolvimento da linguagem e inovação estética.
No âmbito da paisagem nordestina, diretores como Guel Arraes (Auto da
Compadecida, 2000; e Lisbela e o Prisioneiro, 2003) e Cacá Diegues (com Tieta, 1996; e
Deus é Brasileiro, 2003) são exemplos de diretores que deram continuidade a suas produções
dentro do modelo do “cinema de mercado” na contemporaneidade. No “cinema de empenho
cultural”, a paisagem nordestina contemporânea vem sendo trabalhada por diretores que
procuram ampliar os horizontes dessas espacialidades, colocando em debate a diversidade, a
transformação e atualização dos elementos que compõem essa paisagem. Com essa
concepção, esses novos diretores demonstram, por exemplo, em filmes como Som ao Redor
(de Kleber Mendonça, 2012), que as questões fundiárias e conflitos rurais migraram para a
paisagem urbana, gerando concentração de renda, violência e urbanização descontroladas;
outras vezes, em filmes como O Céu de Suely é trabalhada a figura do migrante que deixa o
Sudeste e retorna para o Nordeste encontrando um sertão transcultural e globalizado; já em
Boi Neon (de Gabriel Mascaro, 2015), o vaqueiro é mostrado de forma sensível, integrado ao
glamour da iconografia pop e ao mundo da moda; e no Baile Perfumado (de Lírio Ferreira e
Paulo Caldas,1997) aparece a figura de Lampião como sanguinário e feroz, mas também
desejoso do mundo moderno, interessado em fotografia, cinema, gramofone, whisky e
perfume francês, ao mesmo tempo em que foca o sertão como uma paisagem verde e
abundante, evidenciando que a seca na região é periódica e frequente, mas definitivamente
não é constante. É este o grupo de cineastas nordestinos que mais se aproxima do foco de
nossa pesquisa.
44
Figura 5 - Imagens do filme Baile Perfumado (1997) – paisagem do sertão apresentada fora da época das secas,
mostrando uma mata verde e abundante (à esquerda); Lampião participa de um baile no acampamento, usando
perfume francês e ouvindo gramofone (à direita).
Essas novas representações da paisagem nordestina decorrem também, dentre outros
fatores, das recentes modificações no ambiente econômico e do desenvolvimento
empreendido nos centros urbanos ocorridos em grande parte das cidades nordestinas, as quais
passaram a constituir espacialidades que não comportam mais um grande hiato diferencial em
relação às demais capitais do país. Além disso, essas cidades foram atingidas pela
globalização das formas de comunicação, que se tornaram onipresentes em todo planeta,
sendo suas paisagens alcançadas também pelo efeito homogeneizador dessas novas formas de
midiatização. Essa situação se enquadra na designação de Appadurai (2004 p. 53) referente à
formação de mediapaisagens, que surgem através da capacidade de se distribuir informações
(por meio de jornais, revistas, estações de televisão, filmes) aos lugares mais distantes do
mundo globalizado, permitindo a formação de espacialidades que dividem anseios
econômicos, políticos e sociais. E assim ele explica que "o aspecto mais importante destas
mediapaisagens é que fornecem vastos e complexos repertórios de imagens, narrativas e
etnopaisagens a espectadores de todo o mundo e nela estão profundamente misturados mundo
da mercadoria e o mundo das notícias e da política", e explica que dessa forma essas
mediapaisagens "ajudam constituir narrativa do Outro e protonarrativas de vidas possíveis"
para os espectadores (APPADURAI, 2004, p. 54).
Por fim, para encerrar essa contextualização, não é excessivo sublinhar que a
abordagem desses cineastas contemporâneos, trazida para o foco da nossa discussão, não
pretende se contrapor ou mesmo desconsiderar os estereótipos usados de maneira cristalizada
em outras produções e períodos anteriores do nosso cinema, mas sim apontar novas
perspectivas que também podem ser acrescentadas, integrando essas paisagens e construções
espaciais.
45
2. CAPÍTULO 2: DELINEANDOO CÉU DE SUELY E CHAVES DE LEITURA
2.1 Sobre O Céu de Suely e Karim Aïnouz
Ressaltamos inicialmente que traremos dados para o corpo da pesquisa sobre a
produção da obra, pois essa é uma ferramenta que serve de auxílio no processo interpretativo
realizado na análise fílmica. Pontuamos aqui que desde “os primeiros esboços […], passando
pelas diversas fases de argumento e planificação, a gênese do filme é um processo longo,
cujas marcas podem eventualmente clarificar alguns aspectos do filme concluído."
(AUMONT, 2004, p. 80). Essa explicação de Jacques Aumont ao discorrer sobre os
instrumentos e técnicas de análise dos filmes, ajuda a entender que fatores como o ambiente
de produção, a equipe envolvida, prazos de produção, formas de financiamento, as locações, e
até mesmo a época do ano em que foi filmado, fazem parte de um contexto que influencia
diretamente o resultado final (e, portanto, as paisagens) do produto fílmico.
Além disso, Jaques Aumont (2004, p. 236) explica que:
[...] a quase totalidade dos filmes que evocamos ao longo desta obra
desconfiavam com razão das abordagens baseadas no recurso às fontes, às
intenções anunciadas pela equipe de realização e ao discurso crítico
estritamente contemporâneo à distribuição do filme […]. Não é, contudo
inútil conhecer bem o contexto de produção de uma obra e a genealogia
estética na qual ela pretende inscrever-se.
Logo em seguida o referido autor traz a análise de dois filmes de Godard para elucidar
sobre o “interesse da perspectiva intertextual”. Assim, acreditamos que nessa pesquisa a
análise de dados, além do texto exclusivo do filme O Céu de Suely, configura-se em um
desses casos menos frequentes em que a intertextualidade de tais informações se torna
bastante relevante, como será explicado no decorrer deste capítulo, tendo em vista que até
dados biográficos do diretor relacionados à sua infância no Nordeste influenciaram na forma
como foram concebidas as paisagens nordestinas no filme objeto de nossa análise.
Sobre o projeto que deu origem ao filme, temos em consideração que não é tarefa fácil
determinar o momento específico em que surge a ideia de um roteiro ou o início de um
projeto, até mesmo porque os roteiristas usam diversas fontes para desenvolver as primeiras
estruturas que darão origem a argumentos e roteiros cinematográficos. A esse respeito,
trazemos uma passagem do roteirista português João Nunes (2006), que fala dos passos para
criar um roteiro (chamado em Portugal de “guião”):
Um guião começa sempre com uma ideia. Esta pode surgir das formas mais
variadas: uma linha de diálogo que ouvimos, um personagem curioso que
imaginamos, uma notícia que lemos ou uma situação que nos parece
46
interessante. [...] Todos os dias passam por nós as sementes de muitas boas
estórias cinematográficas, mas normalmente estamos demasiado distraídos
ou ocupados para as perceber. O mundo à nossa volta, o mundo dentro de
nós, a tradição que herdamos, são fontes inesgotáveis de inspiração: basta
saber onde procurar.
A partir dessa informação podemos perceber que as narrativas cinematográficas
podem ser criadas por meio de vários elementos das situações que nos cercam, utilizando
referências culturais e dados sociais diversos para transformar em linguagem simbólica a
visão de mundo e o olhar específico que os cineastas têm sobre determinados aspectos da
realidade (SILVA, 2008). É o que costumam fazer cineastas como Karim Aïnouz, que no
momento utilizam suas referências locais para trabalhar temáticas sobre o Nordeste, as quais
já foram objeto de tradições cinematográficas anteriores, mas que permitem o direcionamento
do foco para um olhar atento às atualizações e modificações que ocorrem nessas
espacialidades.
No caso de O Céu de Suely, o processo disparador do projeto surge da apropriação de
uma ideia que teve origem no ambiente de uma paisagem sertaneja e foi sendo retrabalhada
em diversos meios. A ideia inicial do roteiro remete a real história de Ana Paula, uma jovem
com 19 anos de Juazeiro do Norte, no Ceará, que em meados do ano 2000, para conseguir
comprar uma passagem para São Paulo, fez uma rifa na qual o vencedor teria direito a ter
relações sexuais com ela por uma noite. O fato logo se tornou notícia no jornal e na mídia
local, dando origem também ao livreto de cordel de Abrão Batista, com nome de Rifa-se.
Baseado neste cordel em 2000, Simone Lima e Karim Aïnouz escreveram o roteiro do curta-
metragem Rifa-me, o qual anos depois geraria o argumento de O Céu de Suely
19
.
Cabe aqui fazer uma rápida distinção entre roteiro e argumento. A diferença entre eles
é técnica, pois o roteiro é considerado “um documento onde deve ficar registrado tudo o que
se vai ver e ouvir no filme. Como tal, é o documento chave para toda a produção do filme”
(NUNES, 2013), de maneira que apresenta as cenas que compõem o filme em ordem
sequencial, descrevendo as ações e diálogos dos personagens, bem como os demais detalhes
de aspectos visíveis e audíveis do filme, tendo a extensão média entre 90 a 120 páginas (O
Céu de Suely, por exemplo, tem 116 páginas de roteiro). Ao passo que o argumento é “uma
descrição literária e sequencial do filme, em texto corrido, que não está ainda dividido por
cenas (embora elas estejam normalmente já implícitas) nem inclui os diálogos dos
19
Outro filme que pode ser mencionado como referência para o roteiro de O Céu de Suely é o filme italiano La
Riffa (de Francesco Laudadio, 1991), que conta a história de uma viúva bela e rica a qual vende todos os bens
para pagar débitos que o marido deixou em vida, e que rifa o próprio corpo para conseguir continuar mantendo
seu padrão de vida.
47
personagens” (NUNES 2013), assim, o argumento é um documento que precede o roteiro em
seu processo de desenvolvimento, tendo uma extensão de 05 a 30 páginas em geral. O curta-
metragem Rifa-me tem um argumento muito parecido com o do longa-metragem O Céu de
Suely, porém todos os diálogos, processo de criação dos personagens – e suas relações com as
espacialidades, que é o que mais nos interessa nesta pesquisa – foram desenvolvidos
posteriormente no roteiro que tem a autoria de Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Mauricio
Zacharias.
Além da proximidade do argumento, o curta-metragem Rifa-me tem também uma
linguagem visual que foi retomada e aprofundada em O Céu de Suely. Essa influência pode
ser percebida no uso do plano geral bastante aberto, no qual as figuras humanas ficam
reduzidas em detrimento da predominância de elementos naturais da paisagem. Ou ainda é
percebida a sua presença em elementos marcadores da paisagem, que tem um papel narrativo
crescente no decorrer das cenas, servindo para marcar o decurso do tempo, ou marcar um
ponto importante da estrutura narrativa, os quais ganham distinção no contexto do filme ora
pelo estranhamento, ora pelo caráter poético ou pelo adensamento simbólico que passam a
adquirir no conjunto da obra. No caso específico de Rifa-me, destacamos o céu que ocupa a
maior parte do plano, em um enquadramento que enfatiza sua profundidade e dimensão, como
marca da direção de fotografia; há também a inserção crescente de equipamentos
eletroeletrônicos no cotidiano das pessoas; e ainda a utilização da estrada como um marcador
de paisagem, o qual impulsiona a narrativa; sendo todos esses elementos que são depois
reaproveitados e melhor desenvolvidos em O Céu de Suely.
Figura 6 - Imagem do curta-metragem Rifa-me, 2000 (à esquerda); e do longa O Céu de Suely, 2006 (à direita) –
planos abertos em que o céu predomina na paisagem e personagens ficam reduzidos no enquadramento.
48
Figura 7 - Imagem do curta-metragem Rifa-me, 2000 (à esquerda); e do longa O Céu de Suely, 2006 (à direita) –
planos que indicam o uso crescente de equipamentos eletrônicos compondo a paisagem.
Figura 8 - Imagem do curta-metragem Rifa-me, 2000 (à esquerda); e do longa O Céu de Suely, 2006 (à direita) –
planos usando a estrada como marcador da paisagem, que indicam passagem de tempo e impulsionam a
narrativa.
Vale salientar que o filme O Céu de Suely guarda algumas diferenças em relação ao
texto do roteiro realizado previamente (a exemplo dos nomes dos personagens, mudanças nos
diálogos ou em algumas cenas), sendo este fato considerado comum e corriqueiro na prática
cinematográfica, pois o diretor tem liberdade para usar sua sensibilidade artística para fazer
essas alterações. Além disso, questões de orçamento, viabilidade técnica ou praticidade
podem ensejar essas mudanças, cabendo ao diretor tomar esse tipo de decisão e, desse modo,
o roteiro é um instrumento que muitas vezes serve como ponto de partida, ou como um guia
(decorrendo daí o nome usado em Portugal de “guião”), mas o percurso efetivamente
realizado durante as filmagens dependerá dessas escolhas a serem feitas pelo diretor.
Após essas considerações iniciais sobre o roteiro, vamos apresentar um resumo da
sequência narrativa do filme após sua finalização, destacando as principais cenas e indicando
os elementos que consideramos como marcadores da paisagem, de modo a facilitar a
percepção geral da estrutura da história e as temáticas abordadas. Em seguida, no capítulo
referente à análise fílmica, aprofundaremos as considerações retomando as temáticas e
marcadores de paisagens apresentados.
49
O filme tem início com uma espécie de prólogo no qual Hermila fala do dia em que
conheceu seu marido Matheus. Nesse monólogo há um tom confessional que aproxima o
espectador da personagem, trazendo a ideia de uma revelação sobre a privacidade de Hermila.
A imagem mostra o casal se abraçando, embalados por uma música romântica da cantora
Diana. No texto do monólogo há remição ao CD que Matheus havia gravado para Hermila
com suas músicas preferidas e também há referência ao cobertor de lã azul escura. Trata-se de
uma memória da protagonista de um período de felicidade, trazida por meio de imagens quase
oníricas, que ela tentará dar continuidade no seu retorno a Iguatu.
Em seguida, aparece o rosto de Hermila dentro de um ônibus olhando pela janela.
Silenciosa ela cuida do filho, Matheusinho, com um semblante pensativo. Ela busca formas de
se distrair para passar o tempo, fuma um cigarro. Em uma sequência de planos gerais o ônibus
vai cruzando a estrada debaixo de um céu azul em destaque, que ocupa dois terços da tela e
toca o terreno seco compondo a paisagem do sertão do Ceará. No percurso da estrada, o
ônibus atravessa o pórtico da cidade onde se lê: "Aqui começa Iguatu”, sendo este também
um elemento marcador da paisagem.
O ônibus deixa Hermila na estrada em frente ao posto de gasolina – chamado Veneza
– local onde ela espera a chegada da tia. O movimento de ônibus e caminhões é grande na
estrada, sendo o posto um local de parada para abastecer ou mesmo para descansar uma noite,
fazendo de Iguatu um lugar de passagem. Hermila vai para a casa da avó junto com a tia e se
divertem em um jantar familiar reunidos com o novo integrante Matheusinho. O ambiente
familiar é modesto, mas aconchegante. A paisagem da cidade é marcada por um plano geral
da praça em que se vê uma grande caixa d'água e a casa da avó de Hermila ao fundo; um
orelhão em primeiro plano, crianças correndo e bicicletas passando em um chão de terra
batido. Depois do jantar, sentadas na calçada em frente à casa da avó, Hermila e a tia
conversam. Ela conta que foi pra São Paulo repentinamente em razão da grande paixão por
Matheus, porém voltou devido ao alto preço do custo de vida. Ela espera que o marido retorne
em breve, trazendo uma máquina para gravar CDs, jogos de videogame e filmes e com isso
começarem um pequeno negócio conforme combinaram.
Enquanto espera a chegada de Matheus, Hermila busca trabalho vendendo rifas de
whisky. Ela percorre o centro da pequena cidade e chega ao mercado central que concentra
grande comércio informal, cheio de produtos fabricados na Coréia ou na China, camelôs,
jogos de azar, também restaurantes e cabeleireiros. Esse fluxo de pessoas e produtos se
mistura com vozes, carros de som, máquinas e outros sons artificiais que mobilizam esse
espaço, perseguindo a melhor possibilidade de venda. À noite, Hermila se diverte no posto
50
Veneza na companhia da tia e de uma nova amiga, Georgina, que ganha a vida como
prostituta. Lá, Hermila reencontra um antigo namorado, João, mototaxista, com quem tem
uma breve conversa. No período noturno o posto se transforma em um ambiente boêmio de
diversão, paquera e luxúria, misturando prostituição, músicas de forró, tecnobrega e bebidas
alcoólicas. Há muitos caminhões estacionados e os motoristas se aproximam da população
local por um período de tempo curto, pois logo continuarão seguindo viagem.
Hermila faz um movimento de tentar se readaptar ao modo de vida da cidade, que é
intercalado pelas diversas tentativas de se comunicar com Matheus por meio do orelhão da
praça. Ela vai à rodoviária e espera a chegada do marido até o último ônibus, mas ele não
aparece. Hermila caminha sozinha e triste numa rua escura no entorno da cidade. Quem
aparece é João, com o farol da moto aceso, iluminando a noite. A trilha sonora que indicava
tristeza passa comportar certa esperança. Ao perceber que o marido não retornará, a narrativa
tem seu primeiro ponto de virada.
20
Tal fato implica em uma mudança da personagem em
relação ao seu estado subjetivo e também na forma como ela interage com as espacialidades
no filme.
Logo em seguida, Hermila vai à casa da sogra para buscar notícias sobre o marido, e
leva o bebê, sugerindo que necessita também de apoio financeiro. É um casebre simples,
ainda sem cimento e de tijolo aparente, mas com uma geladeira nova e televisão. A sogra
afirma que Matheus é muito novo e não pretende voltar de São Paulo. O bebê chora e é
acalentado com o controle remoto da TV. O uso crescente de eletrodomésticos é constante na
paisagem do filme, compondo o cotidiano das personagens. Diante da frustração dos planos
com o marido, Hermila começa a perambular pela cidade, sem um rumo definido. Passa a ter
mais contato com Georgina, fica mais próxima do ambiente boêmio de Iguatu, canta em um
caraoquê
21
improvisado no posto Veneza, se distrai com jogos de roleta eletrônicos e caminha
ao lado da linha do trem de carga, o qual marca a paisagem indicando que Iguatu é um lugar
20
Ainda de acordo com Nunes (2011), desde A Poética de Aristóteles, a maior parte das narrativas costuma ser
estruturada em três atos. “Assim, cada estória começa com um primeiro ato, de Exposição (set-up) em que os
ingredientes da estória nos são apresentados. Segue com um segundo ato, de Complicação (confrontation), em
que esses elementos são desenvolvidos, combinados e ampliados. E termina num terceiro ato, de Resolução
(resolution) em que as questões levantadas são esclarecidas e encerradas”. Havendo entre esses atos o primeiro
ponto de virada ou viragem, “que marca a transição do 1º para o 2º atos” e o segundo ponto de virada ou “2ª
Viragem (2º plot point ou turning point), que marca a transição para o 3º ato”.
21
Sobre a origem do oriental da palavra caraoquê, trazemos a curiosa explicação do site Cultura Japonesa: "O
termo 'karaokê' é uma composição das palavras 'kara', de 'karappo' que quer dizer vazio, e 'oke' de 'okesutora'
(orquestra), significando sem orquestra. O termo foi inventado há 20 anos, mas já consta da última edição do The
Oxford English Dictionary, tal foi a sua popularização." Disponível em
. Acesso em 06 de dezembro de 2016.
51
de passagem não só de pessoas como de mercadorias. A avó chama atenção de que a neta
deve ficar mais com o filho, e diz que não pode ficar cuidando dele todo o tempo, pois precisa
trabalhar.
Sobre a composição das paisagens com o uso de objetos do cotidiano, como por
exemplo, os eletrodomésticos, salientamos que tais elementos não possuem a função
exclusiva de objetos de cena que preenchem os cenários, pois tais objetos auxiliam na função
de indicar simbolicamente as transformações ocorridas na realidade concreta da paisagem
nordestina, as quais podem ser incorporadas às representações cinematográficas. De modo
que parte dos cineastas contemporâneos, como Aïnouz, procuram enfatizar aspectos como
esse da vida moderna e cotidiana nordestina em seus filmes.
Hermila decide deixar cidade e vai para a rodoviária tentando comprar uma passagem
para o local mais distante possível de Iguatu. O preço da passagem é muito alto. Ela tenta
outras formas de trabalho como lavar carros no posto Veneza e pergunta a Georgina o preço
que ela cobra pelos programas, mas os valores são muito pequenos. Sabendo que é bastante
desejada pelos homens da região, Hermila decide fazer uma rifa em que entregará seu próprio
corpo como prêmio por uma noite ao sorteado. Ela oferece "uma noite no paraíso" e cria a
identidade de Suely para vender suas rifas. Este ato representa o segundo ponto de virada na
história.
As rifas são vendidas com facilidade em alguns ambientes, porém há outros lugares
em que Hermila (ou Suely) é hostilizada pela ideia inusitada. Antes mesmo do dia do sorteio,
Hermila já é tratada como prostituta por muitos dos moradores da cidade. Um homem a
expulsa do mercado central após entender de que se trata a proposta; uma outra mulher tenta
agredi-la enquanto ela compra roupas no comércio local. No ambiente familiar, a avó e a tia
endurecem a postura para fazê-la desistir da ideia. Hermila deixa a casa para ir morar com
Georgina, mas não desiste de rifar seu corpo. O machismo e preconceito da população
decorrentes do sistema patriarcal
22
aparecem como componentes arraigados aos elementos
humanos da paisagem. Nesta parte do filme, a câmera focaliza uma pipa presa em fios de
poste de eletricidade, como elemento marcador da paisagem. Veremos posteriormente que a
interpretação simbólica dessa imagem, representa a reação do ambiente em contraposição ao
22
A cartilha sobre prostituição disponibilizada pela Sempreviva Organização Feminista-SOF (2014), destaca
que: “O patriarcado é um sistema social, político e econômico, no qual os homens controlam, individual e
coletivamente, o trabalho, o corpo e a sexualidade das mulheres. São valores, regras, normas e políticas que se
baseiam na suposição de que existe uma superioridade natural dos homens como seres humanos”, sendo o
machismo e preconceito formas de manifestação que decorrem desse sistema.
52
desejo da protagonista de deixar a cidade e alcançar novos horizontes, como será melhor
detalhado no decorrer do capítulo sobre análise fílmica.
No dia e local marcados, Hermila encontra-se com o sorteado em um motel de beira de
estrada. Hermila prossegue com o plano e tem relações sexuais com o homem sorteado. No
dia seguinte, ele lhe dá uma carona de carro e a deixa num ponto da estrada para encontrar
com a tia. Da janela do carro em movimento, vê-se uma árvore solitária crescendo no terreno
seco do sertão. Hermila volta para casa da avó e conta que precisa partir de Iguatu. Conseguiu
o dinheiro da passagem para Porto Alegre e ainda sobrou algum dinheiro para despesas da
casa. A avó pede para Hermila não levar Matheusinho ao partir. Há um jantar familiar de
despedida, que remete a cena inicial do filme, dando a ideia de um ciclo que se encerra na
vida desses personagens. No dia seguinte, Hermila parte sem o filho em um ônibus em
direção a Porto Alegre. Os enquadramentos com o céu predominante na paisagem sertaneja
são usados novamente. Aparece a parte de traz do pórtico da cidade onde se lê: "Aqui começa
a saudade de Iguatu". João ainda aparece em sua moto em alta velocidade. Ele pretende
convencer Hermila a ficar em Iguatu, volta a tocar a trilha musical dos momentos em que
estão juntos. Apesar da tentativa, João volta sozinho em sua moto. O desejo de deslocamento
e a busca de outros horizontes prevalecem como anseio por novos sonhos, talvez novas
utopias. Hermila persiste em sua viagem e o filme chega ao seu término.
Portanto, a partir desse contato inicial que tivemos com a narrativa do filme finalizado,
podemos começar a ter em consideração o uso de elementos marcadores da paisagem (como
por exemplo, a estrada, o céu, o trem, a pipa e a árvore solitária), os quais pontuam momentos
importantes da história e muitas vezes interagem, reforçando ou refletindo os estados de
espírito da personagem principal, adquirindo maior densidade simbólica e importância
crescente na narrativa. Apesar de não possuir uma definição precisa, entendemos que esses
elementos são identificáveis na narrativa na medida em que contribuem para a sua descrição
espacial, mas também adquirem funções outras, como as anteriormente mencionadas,
aumentando o potencial significativo e tendo maior relevância no decorrer do filme.
Mudando o enforque para a produção e o relacionamento da equipe técnica envolvida
nesse filme, ressaltamos que o cinema como obra coletiva decorre do esforço criativo de
profissionais de diferentes áreas que se conjugam para alcançar o objetivo comum de
realização do filme. Sendo assim, a produção final do filme decorre da conjunção de olhares
formados pelo somatório das funções de fotografia, arte, som, edição e montagem, as quais
têm chefes das equipes responsáveis por cada uma dessas áreas técnicas, sendo todos eles
orquestrados e conduzidos pelas orientações dadas pelo diretor do filme.
53
Nos filmes que dirige, Aïnouz costuma manter uma postura de trabalho na qual
procura estar o mais perto possível de todas as etapas de produção, sendo assim um diretor
bastante centralizador, conforme relatado por ele em entrevistas (AÏNOUZ, 2014). Além
disso, Aïnouz procura manter trabalhando com ele profissionais com os quais já possui
afinidade artística e temática decorrente de trabalhos prévios, consolidando parcerias que
provam eficientes em alcançar o resultado esperado. Nesse sentido, todos os chefes de equipe
que participaram de O Céu de Suely já haviam trabalhado com o diretor em seu primeiro
longa-metragem, Madame Satã (de 2002); ou passaram a fazer parte da sua equipe em filmes
posteriores, criando uma rede de produção na qual o diretor transita por diferentes grupos de
profissionais, mas que acaba criando uma relação de camaradagem afetiva pelo longo período
e repetição das parcerias
23
. Ele afirma: "até hoje acredito nisso, em trabalhar com amigos. Isso
foi fundamental para a minha formação. Sempre faço cinema com idealismo" (AÏNOUZ,
2014).
Em relação ao elenco, o filme tem como personagens principais Hermila (representada
pela atriz Hermila Guedes), sua tia Maria (representada por Maria Menezes), a avó Zezita
(Zezita Matos), o ex-namorado mototaxista João (João Miguel) e a prostituta Georgina
(Georgina Castro). É interessante notar que o diretor optou por manter os nomes reais dos
atores para os personagens do filme, assim como fez com a cidade de Iguatu, sendo essa uma
escolha feita pelo diretor que indica a intenção de privilegiar naturalidade e realismo às
situações interpretadas no filme.
Com relação à equipe técnica, começando pelo roteiro, Aïnouz participou como co-
roteirista em todos os seus longas-metragens, o que evidencia sua característica de diretor
participativo e/ou centralizador. Em relação ao roteiro de O Céu de Suely, que foi escrito
também por Maurício Zacharias e Felipe Bragança, a influência do diretor (que é também
arquiteto e artista plástico, com vertentes de trabalhos nessas áreas) é percebida na construção
espacial dos ambientes e paisagens que se destacam no filme pelo detalhamento e importância
que adquirem no decorrer da narrativa.
Já a direção de fotografia foi feita por Walter Carvalho, que é considerado um dos
diretores de fotografia de maior destaque no cinema brasileiro. Na ativa desde 1971, Carvalho
23
“No Brasil, embora seja cearense, Aïnouz mantém maior proximidade com uma rede de produção ligada aos
profissionais do cinema de Pernambuco (como o diretor Gabriel Mascaro, o diretor de arte Marcos Pedroso, ou
produtor João Vieira Júnior), gerando uma partilha de afinidades de acordo com Amanda Nogeuira,
caracterizada pela ‘prática de produção colaborativa, ou como é chamada em Pernambuco, a ‘brodagem’’, uma
referência a camaradagem e fraternidade a partir da palavra da língua inglesa ‘brother’.” (NOGUEIRA, 2009,
94).
54
trabalhou com diretores de outros períodos importantes do cinema nacional como Glauber
Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Tendo bastante experiência em fotografar as paisagens
nordestinas, o diretor de fotografia paraibano afirma: “Mas acho que o lugar que mais me
seduz e que mais me deixa indefeso é o sertão [...]. Com o sertão tenho uma relação que não
sei se é nostálgica, se é romântica ou se é tudo isso junto” (CARVALHO, 2014). Além disso,
ele se mantém em contato com o cinema contemporâneo, trabalhando em filmes como Baixio
das Bestas (2007) e Febre do Rato (2012), ambos do diretor Cláudio Assis; também em
Central do Brasil (1998) e Abril Despedaçado (2001), de Walter Salles. A versatilidade de
Carvalho decorre de sua larga experiência e pode ser percebida em O Céu de Suely na forma
como ele aborda os diferentes elementos da paisagem no filme. Assim, quando enquadra os
elementos naturais da paisagem de Iguatu, normalmente é usada a câmera estática com os
personagens distanciados, gerando a sensação de profundidade e amplidão do ambiente; já em
relação aos aspectos do cotidiano, são comuns os enquadramentos que remetem ao cinema
documental, sem um controle maior de atributos técnicos, como a iluminação; e nas cenas em
que Hermila está em evidência, a câmera acompanha seu corpo bem de perto (geralmente sem
tripé) com planos fechados de close em seu rosto e longos planos sequência, que indicam
aproximação em relação a elementos subjetivos da personagem.
A direção de arte foi feita por Marcos Pedroso (que também assina o figurino) e se
mostra bastante importante na caracterização do filme, porque houve a tentativa de mostrar as
influências na cidade de Iguatu de produtos vindos da China e outros países asiáticos,
apresentando um sertão que não se mostra refratário diante das influências da tecnologia de
um mundo globalizado. De forma que os figurinos e elementos de cena (como relógios,
eletrodomésticos, assessórios de casa e de vestimenta) refletem como esses objetos se
espalham pela cidade. Sobre o processo realizado junto à direção de arte no filme, Aïnouz
(2007) comenta:
[...] toda vez que a gente caía para o folclórico ele [Marcos Pedroso] nos
lembrava que aquilo não existia, que era uma fantasia que a gente tinha
daquele lugar. A gente ficou um tempão ali em Iguatu tentando observar
como eram essas negociações objetuais. A cidade era lotada por lojas de
1,99, com coisas que eram muito coloridas, mais coloridas ali do que em
qualquer outro lugar.
A edição e montagem ficaram a cargo de Isabela Monteiro de Castro e Tina Baz Le
Gal. Na edição, percebemos o uso de longos intervalos sem cortes que demonstram uma
persistência do diretor em manter o espectador conectado por mais tempo com determinadas
espacialidades (a exemplo dos planos em que Hermila anda sozinha pela cidade); em outros
momentos, o ritmo do filme é acelerado pelo uso de elipses, por meio de cortes que indicam
55
avanços temporais (como nas cenas do mercado central), em um processo que busca induzir o
olhar do espectador em relação a aspectos que o diretor busca privilegiar.
·.
Em relação à sonoridade do filme, a edição de som foi feita por Waldir Xavier; a
mixagem por Branko Neskov e música de Berna Ceppas e Kamal Kassin. A paisagem sonora
é bastante trabalhada no filme, acrescentando camadas de significação aos ambientes que são
apresentados nas imagens visuais. Os sons de animais como cachorros latindo, bois, grilos e
pássaros ajudam a descrever Iguatu como um ambiente que tem grande influência rural; mas
essa mesma sonoridade se transforma em barulhos de máquinas, motos, caminhões e carros de
sons quando o ambiente urbano passa a ser enfatizado. Além disso, merecem destaques as
músicas da cantora Diana e do DJ Lawrence compondo a trilha sonora.
Passando agora a enfocar outros elementos ligados à produção, convém lembrar que
dentro da lógica cinematográfica, o trabalho do diretor e de todos os chefes de equipe é
limitado quanto ao orçamento e às condições materiais disponibilizadas pela produtora do
filme. A produção de O Céu de Suely foi feita por Walter Salles – que já havia feito a
produção do primeiro filme de Aïnouz, Madame Satã (2002) – sendo importante mencionar a
contribuição de seu trabalho no cinema contemporâneo através da produtora Videofilmes,
produzindo cineastas veteranos (como Eduardo Coutinho e Nelson Pereira dos Santos) e
também da nova geração (Karim Aïnouz, Sérgio Machado, Luiz Fernando Carvalho, Eduardo
Valente, dentre outros).
Quanto à locação, foi escolhida para as filmagens a pequena cidade de Iguatu
localizada no sul do estado do Ceará. O município tem cerca de cem mil habitantes e situa-se
a 380 quilômetros da capital Fortaleza. Em Iguatu, predomina a paisagem sertaneja com clima
semiárido, havendo poucas chuvas durante o ano. Apesar da dimensão diminuta, a cidade
constitui um polo econômico local, sendo um entreponto de passagem e parada de transportes
rodoviários que cruzam a região
24
. Essa foi uma das características que levou o diretor a
escolher esse local para contextualizar seu filme, assim como a grande quantidade de lojas
vendendo produtos de R$ 1,99, que trazem objetos eletroeletrônicos – oriundos de diversas
partes da Ásia – que colorem e enchem o sertão de sons improváveis, preenchendo a
paisagem da cidade com signos globalizados.
Iguatu foi mantida com seu nome real na ficção, sendo esse um dado muito
relacionado à maneira como o diretor trabalha ao apropriar-se das locações e condições reais
24
Conforme dados do site do IBGE. Disponível em
. Acesso em 08 de dezembro de
2016.
56
do lugar em que está filmando. Vários dos pontos específicos escolhidos para encenar a
narrativa do filme, como o posto de gasolina Veneza, o mercado municipal, o motel, o pórtico
na entrada da cidade, a praça com o orelhão em frente à casa da avó de Hermila, aparecem no
longa-metragem em uma abordagem que se aproxima do documentário, enfocados como
cenas que não foram ensaiadas e controladas tecnicamente pela produção, permitindo que haja
maior penetração do real em sua dimensão ficcional. Porém, apesar dessa relação com a
realidade em torno do filme, o diretor frisa bastante que essa representação nunca deixa de ser
uma construção: “O realismo é uma construção” (AÏNOUZ, 2006), ou seja, um recorte que
implica em um olhar sobre a realidade (construído em cima das vivências e experiências de
quem se coloca diante da paisagem para pintá-la, descrevê-la, filmá-la). A esse respeito Karim
Aïnouz (2006) relata:
Acho que essa aproximação com o real está muito presente nas cenas em que
os atores encontram as pessoas da cidade. Antes o filme tinha outro título,
Rifa-Me, que eu mudei assim que chegamos a Iguatu, porque a produção ia
virar a piada da cidade, tipo olha lá a mina que rifou a... , não sei o quê. E
tem uma cena em que ela está vendendo rifa, no posto de gasolina, e os caras
não sabiam que rifa era aquela, então é documental mesmo [...]. O filme tem
o desejo, o tempo inteiro, de brincar e se apropriar do real. Mas tem também
um desejo, maior do que esse, que é dizer que não tem real, é tudo uma
construção. O realismo é uma construção.
Além disso, o diretor alega que “uma das coisas que me fizeram escolher Iguatu
[como locação] é que é uma cidade onde nunca se filmou” (AÏNOUZ, 2006). Talvez até
mesmo por isso, percebemos a precaução do diretor em relação aos desdobramentos que a
produção ficcional poderia trazer para o ambiente em que se deu a filmagem. O ato de evitar
as piadas na localidade em relação ao título Rifa-me – que poderia trazer conotações sexuais
inconvenientes– demonstra de maneira prática como o imaginário pode repercutir nas
representações técnicas e na maneira como elas são interpretadas; bem como indica a
capacidade do cinema influir na construção de imaginários locais e a consciência e
sensibilidade do diretor em relação a esses processos.
Outra característica da produção de Aïnouz é a transnacionalidade (que se faz presente
em suas obras, na temática de alguns de seus filmes e até na biografia do diretor). Essa marca
de um cinema que pretende se por em contato com várias partes do mundo, teve repercussão,
por exemplo, em relação ao modelo de financiamento de O Céu de Suely, que surgiu a partir
de uma co-produção entre Brasil, França, Alemanha e Portugal
25
. O filme teve o custo de 1,5
25
Antes disso, a transnacionalidade em O Céu de Suely já se fez presente desde o roteiro, que teve o seu primeiro
tratamento escrito em Berlim, quando o cineasta participou como bolsista de um programa de residência para
artistas estrangeiros, chamado DAAD (Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico), no ano de 2004.
57
milhão de reais, estando localizado na faixa dos filmes de baixo orçamento (conforme os
editais de incentivo da Agência Nacional de Cinema – ANCINE), e a produtora Videofilmes,
pertencente ao também cineasta Walter Salles, garantiu a colaboração de técnicos estrangeiros
para o filme. Como resultado, a obra teve um desempenho bastante premiado em festivais,
percorrendo muitos países do mundo
26
. A respeito da transnacionalidade dos diretores latino-
americanos no cinema contemporâneo, Cleber Eduardo (2008, p. 204) destaca que:
Após esse efeito de revalorização das "nacionalidades latino-americanas no
cinema" viu-se uma nova internacionalização de filmes e diretores da
América Latina nos anos 2000. Em movimento quase simultâneo os
brasileiros Walter Salles e Fernando Meirelles, os mexicanos Alejandro
González Iñárritu, Afonso Cuaron e Guillermo Del Toro, e o argentino
Alejandro Agresti tornaram-se transnacionais [...] como cidadãos originários
da América, assumem-se como cidadãos de um planeta conectado, em que
uma rede, mais ou menos direta, coloca ingleses, árabes, etíopes, mexicanos
e japoneses em uma mesma cadeia de acontecimentos.
Embora não tenha sido citado expressamente, o cineasta Karim Aïnouz pode ser
incluído nesse grupo, tendo em vista o percurso que tomaram sua carreira e suas obras, sendo
importante ressaltar que esse dado da transnacionalidade se mostra relevante em relação à
paisagem nordestina construída em O Céu de Suely, na medida em que o diretor procura
enfatizar o sertão nordestino como uma região que mantém suas tradições ainda consolidadas
em muitos de seus aspectos culturais, mas que não escapa dos efeitos da globalização que
modificam suas espacialidades, aderindo também esses signos da modernidade.
Em continuidade, com intuito de obter mais elementos para analisar o filme,
procuramos contextualizar dados biográficos e profissionais do diretor que se mostraram
pertinentes para melhor compreender e aprofundar nossos conhecimentos sobre as paisagens
em O Céu de Suely. Entendemos que a paisagem nordestina representada no filme em questão
é uma construção que decorre de um olhar específico sobre o Nordeste, que foi organizado e
desenvolvido a partir das experiências simbólicas subjetivadas pelo diretor e artistas
envolvidos no projeto, e que podem ser percebidas nas referências cinematográficas, na
carreira e até mesmo na vida pessoal dos realizadores da obra. Assim, o adentramento em
dados biográficos dos participantes do filme feito nessa pesquisa tem por objetivo apenas
alcançar informações que possam auxiliar a interpretação da paisagem estruturada no filme e
signos nela empregados.
26
Participou do Festival de Cannes (pela seleção oficial) e aproximadamente mais de 30 festivais nacionais e
internacionais; assim como recebeu prêmios em Cu -
(3º Festival Cinema Brasil), em Portugal (10º Festival de Cinema Luso
Brasileiro), no Uruguai (10º Festival Internacional de Cinema de Punta Del Este) e no Brasil (APCA –
Associação Paulista dos Críticos de Arte; Festival Internacional do Rio).
58
O diretor Karin Aïnouz tinha 40 anos quando foi lançado o filme O Céu de Suely em
2006, no enredo é possível perceber traços autobiográficos a partir da temática da
protagonista que deixa a cidade natal para buscar outros horizontes mundo afora. De maneira
similar à personagem do seu filme, Aïnouz deixou Fortaleza aos 16 anos e morou em várias
cidades como São Paulo, Berlim, Paris, Nova York e Rio de Janeiro, atendendo ao desejo de
deslocamento que o levava para diferentes espacialidades em busca de novas perspectivas,
experiências ou atividades profissionais. Essa é uma das marcas de sua obra, a temática do
deslocamento atravessada pela afetividade.
A origem familiar de Aïnouz já aponta sua relação com os deslocamentos e
espacialidades, pois ele é filho de uma bióloga cearense e de um engenheiro argelino, que se
conheceram enquanto moravam nos Estados Unidos. Depois se separaram, tendo a mãe
voltado grávida para o Brasil e o pai para Argélia. Na infância, Aïnouz teve pouco contato
com o pai e recebia cartões postais de vários países do mundo em que esse trabalhava (como
Argélia, Japão, Arábia Saudita, Suécia) e ansiava pelo reencontro com a figura paterna. Ele
conta que imaginava conexões e possibilidades de aproximação entre o Brasil e Argélia,
tentando encontrar similaridades entre os dois lugares. Uma das conexões que encontrou foi
pela geografia, pois ainda criança em Fortaleza, descobriu a predominância de desertos na
paisagem argelina
27
, que logo associou ao sertão do Nordeste brasileiro (AÏNOUZ, 2014).
Aïnouz veio a conhecer o pai aos 18 anos em Paris, mas as marcas dessa experiência
familiar envolvendo vários países podem ser percebidas pela tendência transnacional que
permeia seus filmes – geralmente feitos em co-produção internacional, a exemplo de O Céu
de Suely e Praia do Futuro (2014) – e também na forma como o diretor constrói as paisagens
nordestinas, permitindo um olhar que enfoca o Nordeste conectado com o resto do mundo,
afastando-se de uma visão estereotipada (presente em grande parte da cinematografia
nacional) de uma região isolada e condenada ao arcaísmo. Ao comentar um episódio na
produção do filme média-metragem Carranca de Acrílico Azul Piscina (2004), que depois
deu origem a Viajo porque preciso volto porque te amo (2009), o diretor explica:
Quando fui visitar meu pai, que mora na França, ele me deu um monte de
CDs de um cantor argelino, que é o cantor que está em Carranca. [...]. E ali
eu usei muito como uma necessidade que eu tinha de conectar, quase como
se os trovadores estivessem cantando ali no sertão. Havia um desejo ali de
dizer que esse lugar não é tão específico assim, que ele poderia ser um outro
lugar no mundo. E eu achava que a Argélia, para onde eu nunca tinha ido,
deveria ter alguma coisa muito semelhante com o sertão, então coloquei
aquela música de propósito, para criar um estranhamento. Eu tentava assim
27
O deserto do Saara ocupa cerca de 80% do território argelino.
59
entender a relação que aquele deserto tinha com minha outra origem
argelina. (AÏNOUZ, 2006).
Outro dado biográfico que se conecta a O céu de Suely, é o fato de ter visto ao longo
da infância no Ceará várias famílias em que a figura feminina predominava devido à migração
dos homens que deixavam a região para tentar melhores condições de vida no Sudeste. Essa
vivência lhe despertou o interesse de fazer um filme mostrando, em vez da figura de um
homem, uma mulher migrante, a qual retorna para o Nordeste cheia de planos e busca
incansavelmente apoderar-se de seu destino.
Essa inversão na temática do filme possibilita uma atualização na construção dos
elementos humanos que compõem a paisagem nordestina, pois em períodos recentes tem
havido (embora com oscilações a cada ano) um fluxo migratório de retorno de populações que
haviam deixado o Nordeste para ir para outras regiões. A chamada migração de retorno foi
constatada com bastante expressividade, por exemplo, nos anos de 2005 e 2009 (conforme a
PNAD do IBGE, desses respectivos anos), e segundo “o instituto, na última década começou
a haver um movimento de retorno da população às regiões de origem em todo o país.” A
pesquisa também revela que a “região Nordeste foi a que apresentou o maior número de
migrantes retornando para seus estados, seguida, em menor escala, pela região Sul” (IBGE -
PNAD, 2009). Além disso, essa perspectiva de Hermila como migrante coloca a mulher no
centro dessa narrativa, enfatizando a autonomia da figura feminina, em contraponto ao
estereótipo do masculino que geralmente é associado ao desbravamento e virilidade.
Por fim, outro elemento de sua biografia que merece ser destacado é referente à sua
carreira acadêmica. Aïnouz graduou-se em Arquitetura pela Universidade de Brasília (UNB),
concluiu mestrado em Teoria do Cinema pela New York University (NYU); e se especializou
em Teoria Cultural pelo programa de estudos independentes do Whitney Museum of
American Art, também em Nova York. Assim, por meio dessa vertente acadêmica, o seu
interesse pela construção dos espaços em meio ao ambiente cultural se mostra presente na
maioria dos seus filmes, inclusive em outros trabalhos do artista ligados ao audiovisual, que
serão analisados em seguida.
Passando para outros aspectos da carreira do diretor, além do cinema, Aïnouz se
dedica também a projetos ligados às artes visuais como a fotografia, videoinstalação e artes
plásticas. Quanto a seus trabalhos de vertente mais experimental, podemos citar a vídeo
instalação com título Sua Cidade Empática
28
, que usa o “fenômeno óptico conhecido como
28
Essa obra foi exposta em 2011, na 17
o
Festival de Arte Contemporânea SESC Videobrasil, feita em
colaboração com o artista dinamarquês Olafur Eliasson.
60
afterimage (a retenção de imagens pela retina) e de imagens de São Paulo para revelar
dimensões sensoriais da cidade que o olhar acostumado pelo cotidiano já não percebe”
(VIDEOBRASIL, 2011).
Figura 9 - Imagens da vídeoinstalação Sua Cidade Empática em que fotografias e vídeos da cidade de São Paulo
são misturadas a diferentes camadas de cores e luzes.
Na abordagem dessa obra são enfatizadas as consequências das cores em relação ao
tempo, sobrepondo camadas de realidade que implicam em mudanças nas construções e
distorções das espacialidades. Ainda merece destaque a videoinstalação Terra Prometida
29
, na
qual Aïnouz usou vídeos e fotografias feitos durante as filmagens do longa-metragem Praia
do Futuro (2008), rodado na praia de mesmo nome no Ceará, para abordar as modificações
ambientais e espaciais decorrentes da erosão costeira que prejudicou empreendimentos
próximos ao mar nessa área, transformando completamente a paisagem local.
Passando para a produção documental do diretor, destacamos sua participação em
Cathedrals of Culture, de 2014, filmado em 3D e produzido por Wim Wenders junto com
29
Obra exposta em 2014 no Museu de Arte Contemporânea (MAC) e Museu da Cultura Cearense (MCC), no
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC).
61
outros cinco cineastas. Nesse documentário, Aïnouz foi encarregado de tratar do Centre
Pompidou, localizado em Paris. Trata-se de um centro cultural que conjuga as funções de
biblioteca, museu e salas de exibições para cinema, teatro, palestras e concertos musicais. A
cada episódio do filme um dos diretores reflete a partir de marcos da arquitetura mundial,
como cada um dos seis edifícios selecionados abrigam a cultura e memória coletivas.
Já quanto às obras ficcionais para o cinema, Aïnouz possui cinco longas-metragens,
dos quais três deles se passam no Nordeste. O primeiro filme, Madame Satã, lançado em
2002, se passa no Rio de Janeiro, na década de 1920, e conta a história da figura lendária da
boemia carioca que ficou conhecido como Madame Satã, um negro, transformista e ex-
presidiário, que lutou contra o preconceito e a marginalização. O filme guarda pouca
proximidade com O Céu de Suely – segundo filme lançado em 2006, excetuando-se o fato de
que é centrado bastante na construção do personagem principal através do corpo. A figura de
Madame Satã é construída exaltando cenas de dança e violência e traz um personagem
heroico que repele duramente a realidade que o envolve através da resistência de caráter e
lutas corporais. Já Hermila em O Céu de Suely é mostrada como um corpo que absorve
silenciosamente as influências do ambiente, acumulando forças para superar em um único
golpe – o ato de rifar-se – a animosidade do meio que impede seu deslocamento.
O terceiro longa, Viajo porque preciso, volto porque te amo (co-dirigido por Marcelo
Gomes e lançado em 2010), é o mais próximo de O Céu de Suely em relação às paisagens e
ambientações. Ambos têm a estrada como marcador da paisagem e os deslocamentos no
sertão nordestino servem para descrição de estados subjetivos dos protagonistas em contato
com a paisagem. Porém, Viajo porque preciso, volto porque te amo tem um personagem com
uma postura apática quanto ao ambiente que lhe rodeia, ao passo que Hermila se transforma
em razão do contato que tem com a paisagem, criando até mesmo a identidade de Suely.
62
Figura 10- Cartazes dos cinco longas-metragens realizados por Karim Aïnouz.
Em Abismo Prateado (2011) há novamente uma personagem feminina em
deslocamento por razões afetivas. Porém, diferentemente do que o ocorre em O Céu de Suely,
a personagem parte em busca do marido que repentinamente deixou o Rio de Janeiro e foi
para Porto Alegre, sendo a vida e as perspectivas da protagonista transformadas no decorrer
desse trajeto. Entretanto, apesar das semelhanças na centralização em uma personagem
feminina, em razão das locações escolhidas, Abismo Prateado possui poucos dados que
possam auxiliar a entender a paisagem nordestina no cinema.
O quinto e último filme ficcional do diretor é Praia do Futuro, lançado em 2014. O
longa-metragem mostra a vida de um salva-vidas que se muda para Berlim ao se apaixonar
por um alemão que conheceu no Brasil. Nesse filme há uma preocupação especial com a
paisagem em relação à Praia do futuro, em Fortaleza, que possui uma grande quantidade de
edificações inutilizadas pelo desgaste e pela erosão costeira.
30
No caso desse filme o
30
Ressaltamos que há obviamente outras questões enfatizadas em seus filmes, como por exemplo, a sexualidade
dos personagens ou planejamentos urbanos das grandes metrópoles, mas que preferimos não abordar por não
terem uma maior proximidade com o eixo de nossa pesquisa. Para o foco aqui trabalhado interessam
63
questionamento referente às paisagens tem relação com os projetos imobiliários que se
instalaram na região dessa praia, modificando boa parte da paisagem da orla, mas
posteriormente tais empreendimentos se tornaram inviáveis devido ao desgaste da maresia
que corrói as estruturas físicas dos edifícios dessa área, tornando-se cada vez menos habitada.
Dessa maneira, essa praia que tinha um potencial comercial de investimentos projetado no
futuro, hoje se tornou uma paisagem que guarda marcas do passado, dissolvidas a cada dia
pela corrosão marítima, inspirando, assim o filme Praia do Futuro e a videoinstalação Terra
Prometida (AÏNOUZ, 2014).
Passando agora para as referências cinematográficas de Aïnouz, percebemos que elas
incluem cineastas nacionais e de outros países, de maneira que seu trabalho dialoga com
diferentes tendências do cinema mundial. Essa característica se reflete na transculturalidade
que emerge em seus filmes, gerando uma acomodação de estéticas e temáticas que, apesar de
aparentemente contraditórias, como o arcaico e contemporâneo, tecnologia e tradição,
materialidade e utopia, são colocadas lado a lado funcionando em um regime de
complementaridade.
Entre as referências que são apontadas em entrevistas do diretor (AÏNOUZ, 2003 e
2014), estão filmes de diretores asiáticos como Jia Zhang-ke e no Hou Hsiao-hsien. Com
obras que apresentam sinais de modernidade junto com elementos da tradição, sendo uma
reflexão sobre o processo de globalização e modernização da China atual. Havendo destaque
para o filme O Mundo (2005) de Jia Zhang-ke e o uso de técnicas de câmera de Hou Hsiao-
Hsien, a quem Aïnouz (2003) chama de “o mestre do plano-sequência”. Os planos-sequência
são bastantes presentes em O Céu de Suely, sendo usados pelo menos em cinco cenas do
filme, aparecem em sequências de maior introspecção da personagem (em que a câmera
acompanha os movimentos de Hermila andando sozinha pela cidade), ou quando é exaltada a
sensualidade pela aproximação do corpo de Hermila (por exemplo, no plano sequência em
que ela dança com um rapaz ao vender o primeiro ingresso da rifa).
Já em relação aos desdobramentos políticos do cinema, Aïnouz menciona a referência
do diretor grego Constantin Costa-Gravas (que dirigiu o clássico do cinema político “Z”, em
1969). Porém, a abordagem do diretor cearense quanto à dimensão política tem mais
proximidade do aspecto cotidiano e individual, enfatizando as condições materiais de
sobrevivência do cidadão. Nesse sentido, aparece mais sua vertente documental, quando
principalmente as temáticas das espacialidades e traços culturais referentes ao Nordeste, que como se
demonstrou são uma constante na maior parte das obras do autor.
64
Aïnouz (2003) faz referência ao documentarista Eduardo Coutinho, mencionando uma
conversa sobre o roteiro do filme Cidade Baixa (de Sérgio Machado, 2005):
Sérgio mostrou o roteiro de Cidade Baixa para o Coutinho, e ele perguntou:
“mas esse povo não trabalha não? Eles ficam viajando de barco, ela fazendo
programa. Mas quanto custa o programa? Quanto custa isso e aquilo? ”. E aí,
em O Céu de Suely, isso me pareceu importantíssimo. Porque, de novo,
voltamos à questão de como se pode falar de questões políticas e questões de
classe [...] principalmente num lugar onde a regra básica é o salário mínimo.
E então há uma questão fundamental: mostrar que as pessoas trabalham.
São mencionadas também a influência do cinema belga dos irmãos Dardenne, quanto
à importância da experiência e percepção subjetiva dos personagens frente aos
acontecimentos da vida (sendo essa também uma justificativa para o uso dos planos-sequência
e da câmera junto ao corpo de Hermila). E do cinema independente americano por meio do
diretor Todd Haynes, com quem teve uma experiência de trabalho considerada marcante em
coletivos bem no início da carreira, com orçamentos mínimos, trazendo a utopia e idealismo
para as obras.
2.2 Chaves de leitura
Os elementos apontados previamente nos ajudam a entender como se formou o olhar
do diretor em relação ao Nordeste, conhecendo suas referências cinematográficas, outras
obras do diretor, e as condições de produção do filme que é objeto dessa pesquisa. Agora,
para auxiliar a análise fílmica do nosso objeto de estudo, teceremos comentários sobre as
chaves de leitura que selecionamos para interpretar as paisagens em O Céu de Suely, sendo
elas o céu, o sertão e a mulher.
2.2.1 O Céu
A chave de leitura inicial que usaremos para analisar o filme é o céu. A palavra céu
(presente desde o título do filme) é polivalente, podendo assumir diferentes significados a
depender do contexto em que ela é empregada. Na análise do filme de Aïnouz, o céu também
alcança possibilidades de interpretações variáveis de acordo com o enfoque que é colocado
em relação à obra.
Em uma primeira acepção a palavra céu aparece em dicionários sob a definição de:
“Abóbada aparente, limitada pelo horizonte; firmamento” (MICHAELIS, 2017), ou ainda
como: “Espaço ilimitado em que se movem os astros. Parte desse espaço, limitado pelo
horizonte: o céu está nublado” (FIGUEIREDO, Dicionário, 2017). Esse entendimento do céu
se relaciona aos estudos da física e das ciências naturais, tomando a expressão no sentido de
sua materialidade, e se aproxima da concepção naturalista da paisagem, a qual também está
65
presente em O Céu de Suely. Ressaltamos ainda nesta concepção que o céu pode ser
contraposto à terra, estando acima do sertão, sendo este último caracterizado muitas vezes no
cinema de forma limitada em razão dos seus atributos naturais, tendendo a uma
estereotipação. Dessa maneira, a escolha da palavra céu (se considerada como antítese de
terra) como parte do título do filme já é um indicador de uma forma de abordar a região sobre
outras perspectivas, talvez uma tentativa de se afastar de uma caracterização do Nordeste
umbilicalmente ligada às questões do sol que castiga a terra, como sugerem os próprios títulos
de filmes anteriores, a exemplo de Vidas Secas ou Deus e o diabo na terra do Sol.
A palavra céu possui também significações ligadas a seu sentido religioso: “Região
habitada por Deus e os anjos e onde estão as almas dos justos; paraíso” (MICHAELIS, 2017),
trazendo ainda exemplos bem conhecidos do censo comum – “minha mãe está no céu”
(FIGUEIREDO, 2017), ou definições que procuram maior elaboração, como em dicionários
de filosofia – “extrema periferia do universo: nesse sentido, dá-se o nome de Céu à região que
se acredita ser a sede da divindade” (ABBAGNANO, 2007, p. 133). Essa compreensão
religiosa, ligada à ideia de vida após a morte, não compõe as temáticas envolvidas no filme O
Céu de Suely. Porém, há uma referência ao sentido religioso da palavra céu quando
Hermila/Suely oferece como prêmio de sua rifa “uma noite no paraíso”, já que a sexualidade é
associada nas leituras bíblicas ao motivo que gerou a expulsão de Adão e Eva do Paraíso,
podendo ser relacionada a uma forma irônica de tratar da temática, pois a salvação que ela
oferece é através do corpo e do sexo e não uma salvação sobrenatural. É curioso notar que
essa associação entre paraíso e sexo é muito difundida no senso comum, aparecendo também
em obras de autoajuda que se propõem a ensinar segredos sexuais – “convide o seu
companheiro a partilhar a sua recém-descoberta sabedoria transformando-a num ato a dois
que a levará ao paraíso”31. A esse respeito o diretor do filme menciona de forma crítica as
possibilidades de salvação que estejam ligadas necessariamente a uma busca religiosa: “acho
que existe um projeto de utopia hoje [...] que é muito assustador, que é uma utopia religiosa: a
possibilidade de um exílio para um lugar sobrenatural. Isso anula qualquer possibilidade de
uma utopia física, material, imanente, não-transcendente” (AÏNOUZ, 2006).
Passando para sentidos mais figurados a palavra céu é associada à felicidade: “lugar
onde há bem-aventurança, felicidade; paraíso”, ou ainda: “Sétimo céu, fig.: o máximo de
felicidade, de satisfação” (MICHAELIS, 2017). Nesse sentido o céu remete a concepção
31
Trecho do livro O guia para o bom orgasmo, de Kate Taylor (2009).
66
abstrata a qual foi usada pelo diretor para o desenvolvimento do filme, tendo recorrido ao
dicionário Aurélio para ajudá-lo a definir a busca da personagem para alcançar seus objetivos:
Uma das definições da palavra "céu" no dicionário Aurélio é "qualquer lugar
onde se possa ser feliz". O céu é um lugar distante, onde qualquer um pode
ser feliz. O céu está em todos os lugares e em lugar nenhum. Esse filme
conta a história dos passos de uma mulher para chegar lá. (AÏNOUZ, 2006).
Ou seja, o céu pode ser associado ao deslocamento frequente de Hermila, que remete
ao sentimento de nomadismo e é concretizado quando ela se põe em movimento para alcançar
outras possibilidades de satisfação pessoal e felicidade. No filme ela tenta alcançar esse céu
por distintas formas: vai ao Sudeste, retorna para o sertão, tenta se fixar em Iguatu, e por fim
decide partir novamente, pois assim como o céu que a acompanha em todos os lugares,
também permanece nela o desejo de mudança, de encontrar o caminho para alcançar seu
destino em outro lugar.
Essa concepção tem proximidade com acepção de céu que trazemos através de nossa
interpretação para este filme, pois entendemos que o céu para Hermila/Suely está ligado a um
horizonte, um lugar a ser alcançado, que sendo uma espécie de utopia, se configura em sonho
ou desejo, colocando a protagonista sempre em movimento, ainda que este céu (ou lugar
ideal) não possa ser alcançado. A palavra utopia aparece nos dicionários como “lugar ou
estado ideal de completa harmonia entre os indivíduos” (HOUAISS, 2016), ou também:
“Plano ou sonho irrealizável; ideia generosa, porém impossível; fantasia, quimera”
(MICHAELIS, 2017); de maneira que a utopia, assim como o céu às vezes é associado às
pessoas idealistas que vivem com “a cabeça nas nuvens”, não tendo contato mais próximo
com a realidade concreta, pois habitam “um mundo de sonhos”.
Porém, há definições que assinalam o poder transformador das utopias, conforme
descrito no dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano (2007, p. 987):
Em geral, pode-se dizer que a utopia representa a correção ou a integração
ideal de uma situação política, social ou religiosa existente. Como muitas
vezes aconteceu, essa correção pode ficar no estágio de simples aspiração ou
sonho genérico, resolvendo-se numa espécie de evasão da realidade vivida.
Mas também pode tornar-se força de transformação da realidade, assumindo
corpo e consistência suficientes para transformar-se em autêntica vontade
inovadora e encontrar os meios da inovação.
Preferimos, contudo finalizar com uma ideia de utopia que se coloca entre essas
posições discrepantes, através de uma imagem (nem tanto ao céu, nem tanto à terra) trazida
por Eduardo Galeano (1994, p. 234), pois para este autor: “A utopia está lá no horizonte. Me
aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez
passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso:
67
para que eu não deixe de caminhar”. Portanto para nós, um dos possíveis significados de céu
neste filme é o que associa a ideia de utopia e horizonte ao movimento. Ou seja, a atitude de
Hermila de procurar novos horizontes, às vezes considerada utópica, em certa medida pode
ser vista como uma atualização da trajetória da vida de muitos nordestinos de períodos
anteriores, que mesmo não tendo encontrado paisagens favoráveis (por exemplo, em razão da
seca no sertão ou da diminuição de oportunidades nos grandes centros como São Paulo),
persistiram e persistem em busca de seus objetivos pessoais ou ideais. E da mesma maneira,
consideramos que esse fator, que alia utopia e movimento, também guarda estrita conexão
com dados biográficos do diretor do filme, o qual se mantém em constante deslocamento em
sua carreira cinematográfica em busca de horizontes aprazíveis.
2.2.2 O Sertão
A paisagem externada no filme objeto desta pesquisa está bastante ligada à concepção
de um Nordeste revisto dentro do contexto contemporâneo, o qual admite outras
possibilidades além da imagem estereotipada de uma região arcaica e avessa a qualquer traço
de modernidade. Nesse sentido, essa região é exposta como um espaço atravessado por
diversas camadas, que o transformam em um ambiente que abriga diferentes possibilidades
culturais de construções espaciais, formando faixas de significação que se misturam e se
sobrepõem. Assim, aproximar essa leitura da ideia de paisagem transcultural nos auxiliou
nesse trajeto, permitindo “ver as conexões mais inesperadas até nos locais mais aparentemente
distantes de todos os centros” (LOPES, 2012, p. 21), adentrando nas possibilidades de um
sertão que mantém muitas de suas características já sacramentadas, mas que se conecta para
receber as influências de um mundo globalizado. Essa forma de ver e entender o sertão se alia
ao que Lopes (2012, p. 22) chama de desejo “cosmopolita de estar no mundo sem deixar de
estar no local”, e na sua forma entender as paisagens transculturais.
Dessa maneira, a abordagem que propomos da paisagem nordestina não se limita a
apresentar os elementos da paisagem natural (ligados à seca e a pobreza) para qualificar a
região, mas abre o leque da análise da paisagem procurando focalizar seus elementos
humanos, as atividades cotidianas, mostrando os trabalhos do dia a dia, as maneiras de
consumir e ocupar o tempo, seja por meio do lazer, de festas ou perambulando pela cidade
como faz Hermila. A esse respeito Dídimo e Lima (2014, p. 5) esclarecem ao comentar O
Céu de Suely:
68
A imagem que se vai buscar desse novo Sertão já não é dos galhos
retorcidos, dos mandacarus e xique-xiques: a cidade é vista em seu comércio
diário e em suas festas, e a câmera ocupa o interior das casas, onde as
pessoas simplesmente conversam, almoçam, discutem e eventualmente usam
drogas.
Esse olhar que se volta para a comunidade e para o local tem também ligação com as
concepções de Appadurai (2004, p.51), que esclarece sobre as dimensões culturais da
globalização ao trabalhar as etnopaisagens no mundo contemporâneo:
Estes termos com paisagem como sufixo comum indicam também que essas
não são relações objectivamente dadas que parecem o mesmo de todos os
ângulos de visão, são construções perspectivadas pela localização histórica,
linguística e política de diferentes tipos de actores: Estados-nações, empresas
multinacionais, comunidades da diáspora, bem como grupos e movimentos
subnacionais [...] e mesmo de grupos próximos como aldeias bairros e
famílias. Com efeito, o indivíduo actuante é o último locus deste conjunto
perspectivado de paisagens.
Ou seja, este é um olhar para as paisagens que permite identificar no “indivíduo
atuante” do sertão nordestino de que forma ele é permeável a essa influência transcultural, a
qual pode se mostrar em nível internacional pela invasão de produtos de diferentes partes do
mundo que chegam às cidades de interior, a exemplo de Iguatu; ou ainda em nível de
movimentos subnacionais, caso em que podemos tomar em consideração a influência da
região Sudeste do país na construção de espacialidades e do imaginário das outras regiões do
país a ela interligadas e consideradas periféricas.
Essa possibilidade de deslocamentos e influxos simbólicos nos permite evocar também
a análise em torno da paisagem sonora nessas espacialidades, as quais se tornam local e global
ao mesmo tempo. Dessa forma, em O Céu de Suely é feita uma alusão a essa maneira de erigir
a paisagem sonora composta pelas músicas de Diana, Tudo que eu tenho de 1975 e pela
música Somebody told me, de Lawrence – um DJ da cena tecno minimalista da Alemanha,
composta em 2003. Além dessas duas trilhas extradiegéticas (ou não diegéticas)
32
, que
tematizam a personagem Hermila, há também outras músicas que aparecem no decorrer do
filme e que são versões de músicas estrangeiras que se popularizaram, sendo tocadas em ritmo
32
A respeito dos sons diegéticos e não diegéticos trazemos os esclarecimentos de Álvaro Barbosa (2001, p. 02):
"
enquadramento visual da cena ou (on screen / off screen).
, mas que t
.
69
de forró ou tecnobrega, fato bastante recorrente em várias partes do Nordeste brasileiro. Ainda
quanto à paisagem sonora, Schafer, (1997, p. 23) ressalta que o ambiente acústico se constitui
em uma ferramenta interpretativa proficiente, pois conforme o autor, “o ambiente acústico
geral de uma sociedade pode ser lido como um indicador das condições sociais que o
produzem e nos contar muita coisa a respeito das tendências e evolução da sociedade”.
Outro enfoque que nos interessa sobre o sertão como chave de leitura é o
deslocamento, pois a partir dele pudemos analisar a constituição dos não lugares e migrações,
percebendo as interferências nos elementos humanos que compõem essas paisagens e de que
maneira essas temáticas se transformam em forças de movimento e fixação nas paisagens
criadas em O Céu de Suely.
Conforme relata Andrea França (2003, p.19), ao discorrer sobre as produções do início
deste século: “O que se vê, nestas novas narrativas, são deslocamentos contínuos, um estado
de nomadismo e de estrangeiridade que faz ressoar um desejo de futuro, de novos traçados de
vida, de esperança”. A autora enfatiza que a diluição de fronteiras nacionais, culturais,
étnicas, ideológicas e linguísticas geradas pelo processo de internacionalização se tornaram
presentes no cinema contemporâneo em diferentes partes do mundo,
33
gerando personagens
que assumem as figura de refugiados, imigrantes, sobreviventes e estrangeiros que se
deslocam espacialmente em busca de novas possibilidades (FRANÇA, 2003, p. 13).
Em O Céu de Suely, a cidade nordestina de Iguatu implica em movimentos de
deslocamento e fixação que espelham os estados de espírito de Hermila, primeiro no sentido
de retorno às origens, depois a desilusão afetiva em razão da ausência de Matheus, que
proporciona um outro movimento subjetivo para Hermila, modificando a experiência que a
personagem passa a ter com a paisagem de Iguatu. Ela continua a tentar formas de se adaptar,
tanto materialmente (quando procura trabalho lavando carros) como afetivamente (ao se
reaproximar do antigo namorado), mas não se sente satisfeita nem adequada à cidade, gerando
a busca por novos deslocamentos. Essa particularidade da exploração do deslocamento
enquanto potência no filme foi bem percebida por Dídimo e Lira (2014, p.6):
Daí em diante, passamos a acompanhar os movimentos do corpo da
personagem, perambulações pelo espaço e também reverberações das forças
do mundo no corpo dela. É que no filme de Aïnouz, esse deslocamento não é
o constante trânsito de uma cidade a outra, é muito mais expresso como
inquietação de um corpo na própria cidade, um movimento em potência ao
longo de boa parte do filme, concretizado, sobretudo, na sequência final,
33
Nesse sentido Andrea França (2003, p. 17) explica ainda que leva em “perspectiva o cinema iraniano,
iuguslavo e brasileiro, para além das suas diferenças culturais, históricas estéticas e políticas", para analisar
“como eles operam imaginariamente com as ideias de terra e fronteira, semelhança e diferença”.
70
quando a cidade de Iguatu fica para trás e a placa na estrada indica o início
de uma saudade, a despedida de um lugar.
Assim, começa a ficar mais claro que a paisagem em O Céu de Suely não tem a função
de mero cenário, mas ganha maior importância simbólica e narrativa no decorrer da história,
tendo características que em alguns momentos a aproximam da importância de um
personagem que antagoniza
34
as ações de Hermila. Tal concepção do espaço que sobrepõe
dimensões significativas é uma das singularidades da paisagem apresentada nesse filme e tem
relação com o entendimento sobre as representações do espaço literário de Luís Brandão
(2013, p. 59), ao discorrer que há:
[...] tendências naturalizantes, as quais atribuem ao espaço características
físicas, concretas. Aqui se entende espaço como ‘cenário’[...] recurso de
contextualização da ação. Mas há também significados tidos como traslados.
‘O espaço social’ é tomado como sinônimos de conjuntura histórica,
econômica, cultural e ideológica [...]. Já o ‘espaço psicológico’ abarca as
atmosferas, as projeções sobre o entorno, de sensações, expectativas,
vontades, afetos de personagens e narradores, segundo linhagens variadas de
abordagem da subjetividade.
Outra abordagem dentro da chave de leitura do sertão transcultural é a questão dos
lugares de passagem ou não-lugares. Os lugares de passagem são espacialidades
caracterizadas pela transitoriedade das relações, tendo em vista que a principal funcionalidade
atribuída a estes lugares é a de permanecer o menor tempo possível neles, adquirir o que se
necessita desse lugar e depois deixá-lo. Assim, autores como Marc Augé (2005, p. 67)
trabalham com a ideia de lugares de passagem, ou não-lugares, destacando esses ambientes
como opostos ao lugar antropológico
35
.
Se um lugar se pode definir como identitário relacional e histórico, um
espaço que não podes definir-se nem como identitário, nem como relacional,
nem como histórico, definirá um não lugar. A hipótese aqui defendida é que
a sobremodernidade é produtora de não lugares, quer dizer de espaços que
não são eles próprios lugares antropológicos, (…) um mundo assim
prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao
efêmero.
34
Conforme roteirista Nunes (2009), os antagonistas não necessariamente assumem formas humanas, podendo
referir-se a espacialidades ou fenômenos da natureza: “O antagonista é o personagem que representa a principal
força opositora ao protagonista. Uma história pode ter vários antagonistas, obviamente, mas normalmente há um
deles que se destaca pela sua importância. […] Em muitas histórias o antagonista principal não é sequer humano.
Por exemplo, o Terminator ou A maior tempestade de todos os tempos”.
35
Sobre os lugares antropológicos (que Marc Augé contrapõe aos não-lugares), Teresa Sá (2006, p. 180)
esclarece ainda: “Os não-lugares aparecem como o oposto, o inverso, dos lugares antropológicos. Estes
correspondem a uma relação forte entre o espaço e social, que caracterizam as sociedades arcaicas e são
portadores de três dimensões: são identitários, históricos e relacionais. Estes lugares acompanham a
modernidade, mas com as recentes transformações da sociedade eles vão se perdendo, desaparecendo e sendo
substituídos por outros a que Marc Augé vai chamar de não lugares”.
71
Porém, os chamados “não-lugares” convivem simultaneamente com os lugares, pois
“na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os espaços, os lugares e os não-lugares,
emaranham-se e interpenetram-se” (AUGÉ, 2005, p. 90). Encontramos essas duas dimensões
(de lugares e não-lugares) também no sertão de Iguatu, que apresenta as características da
transculturalidade no mesmo ambiente em que se expressam suas tradições. A acepção do
espaço sertanejo composto de várias camadas culturais de significação sobrepostas nos
permite, portanto, sob o ponto de vista das temporalidades, compactuar com a inteligibilidade
de paisagem indicada como palimpsesto, de modo que consideramos esclarecedor evocar
Santos (2006, p. 67) a esse respeito:
Paisagem e espaço são sempre uma espécie de palimpsesto onde, mediante
acumulações e substituições, a ação das diferentes gerações se superpõe. O
espaço constitui a matriz sobre a qual as novas ações substituem as ações
passadas. É ele, portanto, presente, porque passado e futuro.
É, por conseguinte, a partir da sobreposição de temporalidades que entendemos e
podemos aceitar sem maiores choques de interpretação a possibilidade de coexistirem na
mesma paisagem, e de maneira específica, no mesmo ambiente doméstico representado pela
casa da avó de Hermila – lugar normalmente ligado ao aconchego e mais próximo das
tradições familiares, que possui uma máquina de costura antiga a qual remete a imagem clichê
da mulher rendeira, ao lado de eletrodomésticos modernos como a geladeira nova, recém-
adquirida. Sob esse prisma retomamos Lopes (2012, p. 15), ao refletir sobre a dimensão
cotidiana das paisagens transculturais, em que o autor procura:
[...] pensar o cotidiano e o homem comum, o cotidiano do homem, ou
simplesmente o comum como potência estética no quadro contemporâneo
[...] pensar um cotidiano global, não derivado simplesmente do trânsito de
mercadorias e informações, nem mesmo associado à presença de um aparato
tecnológico, mas como todos estes elementos (mercadorias, informações,
tecnologias) constituem o cotidiano, a experiência no dia a dia.
Assim, por meio dessa abordagem, estaremos em contato com imagens que procuram
expor a paisagem nordestina em meio a um contexto contemporâneo, que vem passando por
constantes atualizações, ensejando novas possibilidades de abordagens temáticas e estéticas
para essas espacialidades.
2.2.3 A Mulher
Outra chave de leitura que usaremos para analisar a paisagem nordestina em O Céu de
Suely é a mulher. Dentro da ideia de explicitar modificações e possibilidades de diferentes
nuances na paisagem nordestina, esse filme se propõe a colocar o olhar feminino da
72
personagem principal de maneira central na narrativa, mostrando uma migrante que retorna
para o Nordeste. Essa escolha de colocá-la como protagonista, em um ambiente marcado no
filme por personagens femininas, permite perceber a importância que as mulheres tiveram
para o desenvolvimento da região Nordeste, especialmente em localidades em que a presença
masculina não perdurava nas casas, seja pelo índice de migração de homens em direção aos
centros maiores, seja pela viuvez em razão da maior longevidade que alcançam as mulheres,
ou por abandono do lar por motivos afetivos.
Assim, optamos por fazer a escolha de um elemento humano para compor a terceira
chave de leitura (diferente das duas chaves anteriores mais ligadas ao espaço físico), pois
entendemos que no filme selecionado para análise, o aspecto feminino tem bastante influência
na forma escolhida pelo diretor para construir as paisagens cinemáticas sobre o nordeste,
sendo, portanto, um aspecto com grande potencial simbolizar a maneira como se estruturam e
organizam essas espacialidades. Além disso, é importante frisar mais uma vez que os seres
humanos são componentes importantes na construção de muitas paisagens, sendo até mesmo
difícil imaginar, a título de exemplo, uma paisagem carnavalesca sem os seus foliões, ou a
paisagem da praia de Ipanema sem seus banhistas.
A mulher na paisagem nordestina geralmente aparece dentro de uma postura
subalterna e dependente do homem, sendo esse um traço do patriarcado que se reproduz nas
produções cinematográficas. A esse respeito, Paiva (2014, p.17) analisou a representação
feminina no cinema e esclarece sobre a função da mulher nessas obras:
[...] suas principais atividades seriam, basicamente, ajudar os maridos e/ou
filhos a lutarem pela sobrevivência requerida no nordeste devido,
principalmente, ao clima seco, sem chuvas e à situação econômica precária,
ancoradas na religiosidade e na passividade. Essas representações do
universo feminino seriam produzidas, segundo as teorias feministas, a partir
de um “olhar masculino” que reforça a existência de uma postura patriarcal
no cinema - repetição de esquemas estáticos e de estereótipos femininos.
Assim, O Céu de Suely diferencia-se de grande parte dos filmes do cinema
contemporâneo, pois apesar de ter sido dirigido por um homem, propõe-se a referenciar toda a
história a partir do olhar de uma personagem feminina. Essa intenção se evidencia, por
exemplo, em recursos técnicos relacionados ao processo de edição e fotografia do filme,
quando a personagem principal direciona o olhar do espectador para as paisagens do filme por
meio de dois atos: primeiro é focalizada a reação e interação de Hermila frente ao ambiente
(sem necessariamente mostrá-lo), logo em seguida a paisagem é exposta de forma ampla para
o espectador, em planos de longa duração, os quais sugerem a contemplação desses espaços,
conforme explica Cunha (2013, p. 79):
73
Essa estratégia sugere que a protagonista feminina é também portadora do
olhar. Os enquadramentos do seu rosto e dos seus olhos fazem dela o agente
que conduz o olhar do espectador pelas paisagens. Em vez de identificar-se
com o olhar masculino, o ponto de vista da edição aqui se alinha com o da
protagonista, cujo olhar em torno produz e enquadra as paisagens.
O Céu de Suely traz ainda Hermila na figura do migrante (em contraponto aos
estereótipos de fragilidade e passividade da mulher em relação ao próprio destino), mostrando
sua determinação e força para alcançar seus objetivos ante diferentes sistemas normativos que
desmerecem sua condição de mulher. A esse respeito trazemos também Sandra Souza (2011,
p. 152-153):
Certamente, a proposta dos produtores e do diretor deste filme traduz-se na
valorização positiva da representação da mulher nordestina e pobre, que em
meio às dificuldades constantes em que está imersa, busca saídas ousadas,
anticonvencionais, com muita coragem, enfrentando o poder normativo,
desfazendo enlaces, relações familiares, fraturando identidades, deslocando-
se de territórios conhecidos.
Essa percepção, sob outro prisma se torna interessante para expor as marcas da
ausência masculina nessa região, as quais influenciaram diretamente no comportamento
feminino e como seus corpos passam a ocupar essas paisagens nordestinas. Há nesse sentido
referências aos reflexos impostos por essa situação no sistema de trabalho feminino e na
forma como as mulheres acabam assumindo papéis masculinos, os quais são trazidos do ponto
de vista histórico por Albuquerque (2013, p. 225):
As chamadas ‘viúvas das secas’ teriam que saber circular pelo universo
masculino se quisessem sobreviver na ausência de seu homem, ausência às
vezes muito prolongada e até definitiva. O embrutecimento das mulheres
durante os períodos de seca e a necessidade de se masculinizarem é um tema
presente na literatura regionalista, desde pelo menos o final do século XIX.
Percebemos em O Céu de Suely grande ênfase nas relações de trabalho que as
mulheres assumem ao longo do filme. A precarização do trabalho é explorada e as mulheres
aparecem enfrentando todas as dificuldades pertinentes a esses contextos (a avó trabalha em
um restaurante, a tia é mototaxista, Hermila vende rifas e depois passa a lavar carros).
Inclusive sob o ponto de vista dos papeis de gênero predefinidos socialmente para profissões
de homens e mulheres, Hermila chega a ser chamada a atenção em tom de brincadeira por
Georgina, que afirma ser “a primeira vez que vejo uma mulher lavando carro”. Sendo essa
uma forma sutil usada no filme para demonstrar os efeitos da ausência da figura “do pai e do
marido sem recorrer a discursos ideológicos previsíveis”, conforme destacado por Cunha
(2013, p. 77).
Essa abordagem do machismo no filme também se faz presente por meio do
questionamento da exploração do corpo feminino no cinema. Segundo Laura Mulvey (1983 p.
74
444), ao discorrer sobre o prazer visual e a narrativa no cinema, as “mulheres são
simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência codificada no sentido de emitir um
impacto erótico e visual de forma a que se possa dizer que conota a sua condição de ‘para ser
olhada’”. No filme objeto de análise dessa pesquisa, a ênfase no corpo de Hermila, tem a
função de conduzir o olhar do espectador para as paisagens (conforme mencionado
anteriormente) e colocar o corpo de Hermila/Suely em evidência para mostrar como a
submissão imposta pelos homens afeta o corpo feminino – por meio da prostituição e outros
tipos de violência – em lugares como Iguatu.
Figura 11 - Imagens do filme Gabriela (1983) – sendo um exemplo de filme que enfatiza o aspecto erótico da
figura feminina na condição de objeto sexual, submetida ao olhar masculino.
Sobre a prostituição, podem ser enumeradas inúmeras situações de perigos, além dos
evidentes problemas de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), HIV-AIDS e hepatites
virais e condições de saúde, as quais são explicadas em cartilhas para as mulheres nessa
condição conforme encontramos na cartilha da Sempreviva Organização Feminista –SOF
(2014):
Os perigos que as mulheres enfrentam são externos e internos. Como perigos
externos destacamos a violência sexista (agressões, estupros, assédio sexual),
as diferentes formas de prepotência masculina de muitos homens, a
exigência de práticas sexuais não desejadas pelas mulheres. Entre os perigos
internos destacamos a interiorizarão que as mulheres fazem da feminilidade
tradicional, que contribui para que vivam a sexualidade como algo perigoso.
O aspecto da violência ligada à prostituição tem maior destaque no filme
principalmente a partir do momento em que Hermila decide rifar seu corpo, criando a
identidade de Suely. É interessante notar que a personagem usa justamente o corpo que
normalmente é explorado e submetido aos caprichos da vontade masculina (tanto nas
paisagens nordestinas da realidade concreta, como nas telas de cinema), para conseguir uma
estratégia que lhe permite ultrapassar as condições materiais e sociais que lhe afligem. É,
portanto, através do corpo que Hermila consegue vender as rifas e parte em busca de seus
75
objetivos para alcançar o seu céu. Mas será que ela alcança? A análise fílmica apresentada no
próximo capítulo nos colocará mais próximo desse processo vivido por Hermila em meio à
paisagem nordestina.
Assim, o percurso que fizemos até aqui ajuda a entender como se formou o olhar e o
imaginário do diretor, apresentando informações e perspectivas sobre como ele conseguiu
trazer imagens e sons para a representação da paisagem do filme, que indicam no universo do
sertão elementos ligados à globalização, à presença feminina, às suas relações afetivas, ao
consumo e ao cotidiano. No próximo capítulo analisaremos com maior detalhamento como
esses elementos tomam forma na paisagem do filme objeto de nossa pesquisa.
76
3. CAPÍTULO 3: ANÁLISE DO FILME O CÉU DE SUELY
Inicialmente é importante explicar que a análise feita do filme O Céu de Suely teve por
base cenas em que consideramos a paisagem ter maior relevância na narrativa, assumindo
outras funções além da meramente descritiva, que por vezes limita a paisagem e
espacialidades a um simples cenário. Assim, optamos por dividir o filme por meio de seus
cinco grandes atos
36
(prólogo, seguido dos três primeiros atos e, por fim, o desfecho),
destacamos em cada um destes atos as cenas que melhor ilustraram as nossas análises, e
chegamos a um total de 42 cenas (cerca de um terço do total de cenas do filme). O critério que
nos pareceu mais eficiente para diferenciar as cenas de paisagens a serem escolhidas foi a
distinção da locação de filmagem de cada uma, de modo que procuramos colher elementos
(ligados a composição de imagem, objetos cênicos, enquadramento, repetição e continuidade
temática) que, ligados às chaves de leitura, justificaram essa função diferenciada da paisagem
no decorrer do filme. Destacamos ainda que, em relação ao terceiro ato (iniciado quando
Hermila passa vender as rifas) as questões ligadas à representação da figura feminina
passaram a ter maior importância na seleção das cenas de paisagem analisadas.
Partindo para a análise propriamente dita, o prólogo do filme apresenta uma paisagem
que não permite identificar com exatidão em que local a situação ocorreu, pois se trata de uma
memória da personagem principal que não é referenciada posteriormente ao longo da obra, de
maneira que não se pode afirmar com segurança que a cena foi filmada no Nordeste. A
imagem mostra Hermila e Matheus se abraçando em um campo de futebol de barro e, na
revelação feita pela protagonista em off
37
, é mencionado o dia que ela engravidou, aos 19 anos
e um CD gravado que ela ganhou. Nesse trecho, o elemento da paisagem que se destaca é a
trilha sonora romântica da cantora Diana, a qual ajuda a compor um ideal apaixonado que
acompanha Hermila no início do filme. A música é uma versão em português de um sucesso
americano da década de 1970
38
, sendo esse um indicativo da transculturalidade que passará a
compor muitas das paisagens que fazem parte desse filme. É importante ressaltar que o
prólogo é o único momento do filme em que aparece a imagem de Matheus, e devido à
tessitura borrada da cena, não é possível identificar com clareza seu rosto.
36
Conforme Vanoye e Goliot-Lété (2013, p.118) ao explicar a “segmentação do filme em grandes atos” para
realizar a análise fílmica.
37
Conforme João Nunes (2008), off é a “abreviatura de Off Screen (fora do écrã). Aplica-se quando ouvimos a
voz de um personagem mas não o estamos a ver, apesar dele estar fisicamente presente na cena”.
38
A música de Diana, Tudo que eu tenho (1975), é uma versão da canção composta originalmente por David
Gates (ex-integrante da banda romântica Bread, nos anos 70).
77
Logo em seguida é feito um corte que afasta essa memória afetiva da personagem e
retoma a realidade presente. Hermila está num ônibus com seu filho bebê voltando para
Iguatu. O transporte atravessa as paisagens do sertão, acolhidas por um céu azul que
predomina na paisagem, fazendo alusão ao título do filme. Essa perspectiva da personagem
principal já se distingue bastante da imagem clichê mais antiga na qual os nordestinos
deixavam o local de origem amontoando-se em caminhões pau-de-arara em direção ao
Sudeste. A imagem interna do ônibus de Hermila escutando música com fones de ouvido
demonstra certo conforto, apresentando um meio de transporte moderno e silencioso, com ar-
condicionado e banheiro disponíveis. Ela viaja com o seu filho de maneira tranquila e até
mesmo monótona, diferente, por exemplo, da viagem sofrida e insegura retratada em filmes
como Central do Brasil.
Figura 12 - Imagem do filme O Céu de Suely, 2006 (à esquerda); e do filme Central do Brasil, 1998 (à direita) -
em ambos os protagonistas deixam o Sudeste em direção ao Nordeste.
Nessas primeiras imagens, a estrada aparece como um elemento marcador da
paisagem que indica a possibilidade de movimento e contato com outras regiões do país.
Hermila retorna de uma experiência malsucedida em São Paulo para voltar a ter contato com
o Nordeste, de forma semelhante a muitos migrantes que tentaram construir seus sonhos longe
de suas origens. A estrada simboliza o caminho de volta para casa, lugar onde ela pretende se
fixar ao lado do marido e do filho.
Desde aqui, o olhar da personagem feminina sobre as paisagens passa a ser trabalhado
pela direção de fotografia e pela edição de maneira a conduzir o olhar do espectador.
Conforme explica Cunha (2013, p. 82):
[...] outra relação entre o corpo feminino e a paisagem, que é mais frequente
no filme é o obsessivo enquadramento do rosto da protagonista seguido ou
precedido dos ambientes da paisagem de Iguatu. [...] nessas sequências
recorrentes – especialmente no início e no final do filme onde a protagonista
78
está no ônibus e a paisagem é uma imagem vista pelo passageiro – Hermila
se torna o agente que dirige o olhar do espectador em direção às paisagens.
É, portanto, por meio de estratégias como essa que o diretor do filme procura enfatizar
uma forma de abordar as temáticas ligadas ao mundo feminino sob o olhar de Hermila,
tratando essas questões com maior aprofundamento no decorrer da história; de forma
diferente do que ocorreu em boa parte da história da cinematografia nacional (principalmente
até os anos 80), na qual a subjetividade das personagens femininas tinha pouca relevância e a
preponderância masculina aparecia como um dado natural.
Figura 13 - Recurso usado pela direção de fotografia e edição - Hermila conduz o olhar do espectador,
induzindo o olhar da personagem feminina sobre as paisagens.
Ainda em relação à estrada, ressaltamos o pórtico de entrada e saída da cidade como
outro elemento marcador da paisagem. Apresentado no início como o local onde começa
Iguatu, o pórtico depois é retomado no final quando se mostra sua outra face, contendo a frase
79
“aqui começa a saudade de Iguatu", de forma que esse marcador territorial é usado para
indicar os limites temporais do universo ficcional, indicando o momento em que tem início e
término a história do filme. Ou seja, esse elemento exemplifica uma situação em que os
marcadores do espaço, além da sua função natural de contextualizar espacialmente a história
(mostrando nesse caso um dado da paisagem bastante presente e característico em muitas
cidades do interior do Brasil), pode adquirir outras funções na narrativa, afastando-se da
utilização de descrições espaciais como cenário meramente passivo.
Figura 14 - Pórtico na entrada e saída da cidade e paisagens na acepção naturalista, respeitando a regra dos
terços.
Nesse princípio de filme, o sertão é apresentado predominantemente de maneira
naturalista, que nos remete a uma maneira clássica
39
de apresentar as paisagens, pois não há
39
Nesse sentido é curioso perceber que nos enquadramentos usados pelo diretor de fotografia no início do filme,
o céu ocupa dois terços do enquadramento e a terra um terço, em perfeito atendimento à regra dos terços bastante
conhecida e utilizada na fotografia e na pintura. A respeito dessa regra Artur Ricardo (2011) esclarece: “A regra
dos terços tem por princípio uma grid (grade, malha)mas com a peculiaridade que além de ter sua proporção
definida, também pressupõe certas regras e enquadramentos. A regra consiste em subdividir a área útil em três
seções iguais, tanto na horizontal como na vertical, formando assim 9 seções (3×3). Cada ponto de interseção é
considerado um ponto focal, e deve ser considerado no momento de enquadrar os elementos.[…] Nesse sentido,
a regra dos terços é uma maneira simples e prática de evitar a centralização. O uso de 1/3 ou 2/3 da imagem
desloca o objeto de seu centro e gera, quase sempre, um “arejamento” na composição, ou seja, trabalha
compondo a forma e a contra-forma”.
80
aqui o uso explícito de alegorias ou a tentativa de criação de uma paisagem mítica como no
cinema novo. Nesse sentido, trazemos Dídimo e Lima (2014, p. 5):
Quando a paisagem ampla do Sertão cearense surge na tela e o céu azul
passa a ser enquadrado amplamente em planos de O Céu de Suely,
percebemos que não existem tentativas de negar o espaço físico que compõe
esse sertão: a paisagem ao redor de Iguatu é árida, o sol que chega à cidade é
quente e o céu é carente de nuvens, características físicas que há tempos
acompanham o imaginário sobre o sertão nordestino. Entretanto, o interior
do Nordeste já não é mais um espaço isolado, ainda a ser descoberto ou
revelado. Em épocas de globalização, os mesmos elementos das grandes
metrópoles podem ser encontrados na pequena cidade de Iguatu.
Dessa maneira, percebemos que, posteriormente, no decorrer do filme não serão
enfatizados os elementos da paisagem natural de Iguatu, mas sim o trabalho, o cotidiano e as
ocupações das pessoas em um espaço, que devido ao fluxo de mercadorias e informações não
está mais apartado do resto do mundo. Nesse início do filme, são usados novamente os
enquadramentos que colocam os personagens bastante distantes da câmera, privilegiando um
olhar contemplativo da paisagem por meio de planos amplos e de longa duração.
É interessante perceber que a escolha de Walter Carvalho como diretor de fotografia é
coerente com a forma de apropriação da realidade usada pelo diretor para conceber as
paisagens do sertão nordestino. Nesse sentido, Aïnouz buscou um diretor de fotografia que já
tinha bastante experiência em filmar o sertão (tendo realizado inclusive trabalhos de direção
de fotografia que primavam pela estetização, a exemplo de Abril Despedaçado), mas que
dessa vez estava sendo direcionado para abordar essas espacialidades a partir de outras
temáticas (mais cotidianas e com enfoque nas transformações ocorridas nessa região), criando
um olhar incomum para essas paisagens. Sob esse ponto de vista, a direção de fotografia em
O Céu de Suely se distingue da estratégia usada em outros filmes contemporâneos
nordestinos, como Boi Neon,em que o diretor de fotografia escolhido foi Diego Garcia, que é
mexicano e que não tinha relação prévia com a forma de fotografar o sertão na cinematografia
nacional, visando assim também evitar os clichês e formas estereotipadas ao filmar o
Nordeste. Portanto, em ambos os filmes existe a intenção de construir um olhar diferenciado a
partir de estratégias distintas, mas usando o mesmo referencial espacial.
Terminada a viagem, Hermila desce do ônibus em frente ao posto de gasolina em que
vai esperar a chegada da tia, que vem buscá-la de moto. O tráfego na estrada é intenso, o que
dificulta a passagem da personagem que precisa atravessar a autopista carregando uma mala
pesada e o filho nos braços. É também a partir da estrada como marcador da paisagem que a
cidade de Iguatu é caracterizada como um local de passagem – ou não-lugar para Marc Augé
(2005, p 116), constituída em grande parte de relações efêmeras que ocorrem entre as pessoas
81
que estão passando pela cidade e a população local, ou conforme ainda o referido autor:
“podemos admitir que o não lugar de uns (por exemplo, os passageiros em trânsito num
aeroporto) seja o lugar de outros (por exemplo, os que trabalham nesse aeroporto)”. Nesse
sentido, o posto de gasolina Veneza, com seu constante movimento de caminhões, motos e
ônibus, identifica diferentes perspectivas para as pessoas que transitam pela pequena cidade.
Essas imagens do posto na beira da estrada contrastam com as primeiras imagens de
uma parte mais central da cidade em que se vêm crianças brincando na praça e os habitantes
andando de bicicleta. Os elementos da paisagem sonora desse ambiente remetem a quietude
de uma cidade do interior, sendo ouvidos sons de pássaros, latidos de cachorro e um galo
cantando. O enquadramento mostra a praça em frente à casa da avó de Hermila, na qual se
destaca um orelhão em primeiro plano e a casa da avó ao fundo, há também uma grande caixa
d'água, sendo esse um indicador – junto com as longas cenas de Hermila no chuveiro– de que
escassez da seca não aflige mais essa região como em períodos anteriores. A família se reúne
para almoçar e a avó dá um banho em Matheusinho em um ambiente de descontração. Assim,
Hermila volta a tomar contato com a cidade e a paisagem nordestina é (re)apresentada para a
protagonista e para o espectador nesse princípio de filme.
O movimento inicial feito por Hermila é de readaptação a Iguatu. Dessa maneira,
enquanto ela prossegue com o plano de esperar o retorno do marido para montarem uma
banca para venda de CDs e eletrônicos, há uma reambientação na qual ela conhece Georgina,
reencontra o ex-namorado João e tenta conseguir dinheiro vendendo rifas. No dia seguinte,
observamos Hermila falando com Matheus pelo orelhão, ela aguarda que ele volte de São
Paulo e o mesmo enquadramento da praça em frente à casa da avó é repetido. Em seguida
Hermila vai vender rifas de whisky no comércio da cidade, trata-se de um centro aberto em
que se percebe uma intensa atividade de vendedores ambulantes, jogo do bicho, restaurantes,
crediários, cabeleireiros e outros serviços. Cédulas de dinheiro são enfocadas pela câmera e é
percebido o uso de não atores em cena. A edição é feita com cortes rápidos que geram a
sensação de aceleração no ritmo da narrativa que remete a agilidade presente neste ambiente,
assim como os efeitos da paisagem sonora que misturam sons de vendedores ambulantes,
caixas de som anunciando produtos e consumidores conversando nas ruas. A esse respeito
Schafer (1997, p. 135) fala da sobreposição dos sons “feitos a máquina” em relação aos sons
naturais, explicando o surgimento de “uma paisagem sintética na qual os sons naturais estão
cada vez mais se tornando não-naturais, enquanto seus substitutos feitos a máquina são os
responsáveis pelos sinais operativos que dirigem a vida moderna”.
82
Figura 15 - Imagens de sequência no início do filme - contraste entre a paisagem tranquila próxima a casa de
avó de Hermila e o movimento no centro comercial da cidade.
Dessa maneira, a paisagem de um interior tranquilo e monótono é contrastada com a
imagem de uma cidade que tem dinamicidade, sendo presente uma troca intensa de
mercadorias, informações e valores simbólicos. Nesse ponto do filme, um trem bem antigo é
mostrado em movimento, simbolizando a grande circulação de pessoas e mercadorias na
cidade. Porém, esse mesmo marcador da paisagem aparecerá em dois outros momentos da
história, indicando disposição de Hermila de seguir a trilha para alcançar seus planos – por
hora ainda vinculados ao retorno de Matheus.
Pouco depois, à noite, Hermila sai com a tia para se divertir no posto Veneza. É
interessante notar que o posto de gasolina na beira da estrada (inicialmente mostrado como
ponto de referência para a parada de ônibus) durante a noite se transforma no local onde
83
ocorrem as festas de Iguatu. Essa situação permite perceber o espaço físico sendo modificado
em razão de outras possibilidades de uso, mostrando que as espacialidades são determinadas
não apenas pelas suas propriedades físicas, mas principalmente pela funcionalidade a que são
destinadas. Essa mesma abordagem é feita em outro momento do filme em relação aos
caminhões, que durante o dia indicam o deslocamento, mas durante a noite são usados como
casa pelos caminhoneiros, com redes e cozinhas improvisadas. Esse olhar atento de Aïnouz às
transformações do espaço que parecem banais ou sutis reforça a ideia de que o espaço (assim
como a paisagem) não é um dado pré-estabelecido que não admite ser remodelado, mas sim
uma construção decorrente da ação humana que pode ser reinterpretada, assumindo
qualidades distintas.
Figura 16 - Imagens do posto Veneza e de caminhões: espaços sofrem transformações no período diurno e
noturno, conforme a funcionalidade que lhe é atribuída.
Ainda em relação à parte inicial do filme, ocorre a caracterização das personagens: a
avó trabalha em um restaurante que serve comidas por quilo, ao passo que a tia é mostrada
trabalhando como mototaxista na sede da empresa junto com outros motoristas. Ao mesmo
tempo, Hermila tenta, sem sucesso, falar com Matheus em um orelhão próximo da empresa
em que a tia trabalha. Nessa cena, enquanto espera o retorno da ligação, Hermila aparece na
empresa jogando roleta eletrônica ao lado dos mototaxistas que aguardam as próximas
84
corridas jogando sinuca. À noite, na cena seguinte, Hermila vai à rodoviária para esperar a
chegada de Matheus, ela espera a saída do último passageiro, mas ele não aparece. Hermila se
decepciona e passa a se sentir abandonada. A protagonista caminha sozinha de volta pra casa
em uma rua escura e deserta, mas João aparece com sua moto e convence Hermila a voltar
para casa com ele. À noite, o enquadramento do orelhão é repetido e Hermila insiste em falar
com Matheus, mas é informada de que ele se mudou e sai indignada, pois finalmente se
convence de que Matheus de fato não voltará mais para Iguatu.
Dessa maneira, o filme passa a mostrar por meio de cenas cotidianas como a ausência
masculina interfere nas relações sociais estabelecidas nessas paisagens. Em muitas famílias
dessa região as mulheres têm que sustentar os demais parentes sem a ajuda dos homens, sendo
por isso reforçada no filme as imagens de mulheres que precisam trabalhar duramente,
inclusive em profissões habitualmente masculinas, como é o caso da tia mototaxista. A esse
respeito, Cunha (2013, p. 79) lembra, em relação à pequena presença dos homens no filme,
que a família de Hermila é composta de três gerações do gênero feminino, mas nenhuma
referência (seja por meio de imagens ou diálogos) é feita em relação aos pais e maridos dessas
mulheres.
Figura 17 - O trabalho feminino aparece como elemento humano do cotidiano usado para compor a paisagem do
filme.
85
Cenas como essa, que remetem ao trabalho em sua dimensão cotidiana, muitas vezes
são consideradas pouco producentes do ponto de vista de tornar a narrativa mais dinâmica ou
envolvente para o espectador, sendo esse um dos aspectos que distancia esse tipo de produção
de outras que tem maior apelo comercial. Porém, são trechos que conseguem relatar de forma
bastante singular especificidades (relacionadas a aspectos históricos e sociais) dos elementos
humanos que fazem parte da paisagem nordestina, enriquecendo a composição das
espacialidades retratadas. A respeito da importância descritiva de cenas dessa natureza no
filme, Aïnouz (2014) comenta:
Eu briguei muito com os produtores por causa disso, pois há muitas cenas
que não têm função narrativa, mas têm função descritiva: “essa mulher [Avó
de Hermila] trabalha num lugar quente, tem que ficar carregando essas
panelas”. É árduo, é fisicamente difícil, o dinheiro não cai como essa chuva
que está caindo aqui. E, curiosamente, nessa série da HBO, Alice, é uma
dificuldade falar disso, não se fala de dinheiro, não há interesse nessa
questão. Aí eu fiquei pensando, como um contra-plano, que a novela nunca
fala de dinheiro, ninguém trabalha, só a empregada doméstica.
Além disso, o desligamento afetivo por parte de Hermila em relação à figura
masculina é indicado na forma como a referência de Matheus vai sendo diminuída no decorrer
da história. Primeiro, sua imagem aparece borrada no prólogo, depois o orelhão passa a
indicar sua conexão com Hermila, através dos planos repetidos em frente à casa da avó, onde
a voz masculina é ouvida apenas pela protagonista, mas não pelo espectador. E no final do
filme, “um pouco antes de partir de Iguatu, o mesmo plano passa a ser composto apenas pelas
casas e pela caixa d’água, sem o orelhão, apontando para a superação completa da conexão de
Hermila com o marido”, conforme lembra Santos (2014, p. 118). Esse é um exemplo de
situação em que a construção da espacialidade no filme se relaciona com os estados afetivos
da personagem, ao mesmo tempo em que simboliza o encolhimento da figura masculina nessa
paisagem nordestina.
86
Figura 18 - Ausência da figura masculina representada simbolicamente, primeiro a imagem borrada da
memória, depois o telefone e por fim o rompimento simbolizado pelo mesmo plano, sem o orelhão.
Outro aspecto que chama a atenção na construção das paisagens nesse trecho do filme
é a diferença de temporalidades e espacialidades em objetos que vão sendo colocados lado a
lado com finalidades semelhantes, apesar de pertencerem a tempos e situações tecnológicas
distintas. Assim, no mesmo espaço em que Hermila se distrai com uma roleta eletrônica com
luzes coloridas e sons mecânicos (provavelmente proveniente de um país distante), os
mototaxistas se divertem jogando em uma tradicional mesa de sinuca, assim como aparecem
outros senhores mais velhos jogando dominó no centro comercial da cidade. O mesmo tipo de
comparação pode ser feito em relação às motocicletas que aparecem ao lado de bicicletas, ou
ainda na casa da avó de Hermila, que tem uma máquina de costura antiga junto de
eletrodomésticos modernos. De modo que essas imagens explicitam como as camadas
temporais, espaciais e culturais se interpenetram formando paisagens transculturais.
87
Figura 19 - Máquina de costura pesada e mecânica em contraste com eletrodomésticos leves e elétricos
compõem as espacialidades tornando a paisagem um palimpsesto.
Em relação à narrativa, ressaltamos que no momento em que Hermila percebe que
Matheus não voltará para Iguatu, há o primeiro ponto de virada no roteiro, o qual influencia
na forma como a protagonista passa a interagir com a cidade. Se antes o ambiente da cidade
era mostrado de maneira bastante receptiva, por meio de elementos de segurança, como a avó
e do encontro com familiares e amigos, a partir de agora Hermila passa a ter sucessivamente
mais dificuldade diante da falta de dinheiro e condições materiais.
Na sequência, Hermila vai de mototáxi ao encontro da mãe de Matheus, que mora em
uma região mais afastada da cidade em um casebre de tijolos aparentes. Nesse local há outras
casas ainda em construção próximas ao lugar em que a sogra reside, indicando uma situação
econômica um pouco inferior à da casa da avó de Hermila. Porém, dentro da casa, apesar da
carência de alguns objetos (como a falta de armários para as panelas), os eletrodomésticos
estão presentes na cena, há ventiladores, uma geladeira exibida com orgulho e uma televisão
assistida em alto volume. Hermila procura notícia de Matheus, mas sua sogra indica que o
filho não voltará de São Paulo e afirma que foi com o dinheiro por ele enviado que ela
conseguiu comprar a geladeira. Hermila se irrita e a tensão cresce, a conversa é atrapalhada
pelo volume alto da televisão, Matheusinho chora e é acalentado com o controle remoto da
TV para se distrair.
88
Figura 20 - Imagens da sequência em que a casa da mãe de Matheus é mostrada em situação precária e com
eletrodomésticos novos; bebê brinca com o controle remoto.
Esses elementos caracterizam a paisagem urbana e indicam a forma como
eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos se tornam cada vez mais presentes no cotidiano
contemporâneo, sendo muitas vezes usufruídos antes mesmo da aquisição de serviços básicos
como saneamento, condições de higiene, segurança e saúde. Há uma referência ao
significativo aumento do consumo ocorrido principalmente por parte da população de baixa
89
renda, que passou a ter acesso a tais bens devido a programas sociais e linhas de microcrédito
que acabaram incentivando um consumismo em regiões mais pobres do Brasil
40
. O filme,
portanto, focaliza essas temáticas a partir das modificações que elas geram na paisagem de
Iguatu.
Em relação ao cinema contemporâneo, essa abordagem em O Céu de Suely converge
com a forma de mostrar o Nordeste (e as paisagens nordestinas), a partir de uma região que
não está mais fechada aos elementos da modernidade, sendo nesse sentido um olhar que
guarda semelhança com filmes recentes que retratam a região, como Baile Perfumado (que
apresenta um cangaceiro que gosta de whisky, fotografia e gramofone), Boi Neon (com um
vaqueiro que gosta de perfume francês e é ligado ao mundo da moda) ou Deserto Feliz, no
qual “podemos compor com o pensamento em imagens de Deserto Feliz e falar numa ponte
entre o Sertão e o mundo, já menos numa referência à dicotomia campo e cidade, sertão e
litoral, do que no sentido de uma mistura transnacional” (DÍDIMO e LIMA, 2014, p. 11).
Essa mesma questão da ênfase nos aparelhos eletroeletrônicos pode ser percebida em outros
ambientes ao longo de O Céu de Suely, como a casa da avó de Hermila em que a geladeira
aparece na imagem em primeiro plano; assim como na casa de Georgina, na cena em que
aparece junto com Hermila se refrescando no refrigerador, ou ainda na cena do motel em que
João e Hermila estão juntos, mas o enquadramento da imagem coloca o aparelho de TV a
cabo e a televisão entre os dois. Também ligados à questão do consumo, percebemos ainda
detalhes aparentemente sutis do figurino, como o sutiã da sogra de Hermila com alça de
silicone transparente, um acessório delicado para uma pessoa que leva um tipo de vida com
tantas carências, mas que ajuda a compor uma paisagem que vai se tornando cada vez mais
transcultural à medida que o acesso a modos de vida, informações e produtos vindos de outros
países se faz presente.
Em relação às paisagens retratadas em outros períodos do cinema nacional,
destacamos que a forma como é abordada a pobreza e as condições sociais da população se
mostra diante de outros questionamentos, pois na época do cinema novo, por exemplo, em
filmes como Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, havia grande preocupação em
denunciar (de maneira enérgica e ampla) a miséria decorrente das secas, trazendo um viés
político e ideológico para esses filmes; ao passo que atualmente esse viés político é mais
localizado, abordado por meio de outras temáticas, a exemplo do consumismo e do uso
crescente de aparelhos eletroeletrônicos. Nesse sentido, destacamos em O Céu de Suely a
40
Nesse sentido consideramos informações colhidas na pesquisa de Joanna Fustaino (2009) “O Consumo de
Crédito no Mercado de Baixa Renda: Fatores Contribuintes para o Aumento das Dívidas.”
90
imagem do filho de Hermila em um casebre brincando com um controle remoto em contraste
com as crianças miseráveis do filme Vidas Secas – sem qualquer espaço para brincadeira,
essas duas imagens representam abordagens em diferentes períodos das populações carentes
do sertão. Contudo, mais uma vez fazemos a ressalva de que percebemos nos diretores
contemporâneos a intenção de mostrar outras formas de apresentar o Nordeste (e suas
paisagens) por meio de novas possibilidades e atualizações das temáticas, mas sem
desconsiderar as antigas referências de outros períodos do cinema nacional. A esse respeito,
nos aproximamos da posição de Santos (2014, p. 87):
Não se trata, assim, de valorizar e/ou defender a forma de fazer cinema do
passado na atualidade, abstraindo o contexto histórico contemporâneo do
qual ele faz parte, agora marcado por uma indústria cultural consolidada, em
que a televisão adquiriu um papel central em uma sociabilidade cada vez
mais baseada no consumo. Trata-se, diferentemente, de perceber como esse
cinema trabalha com o tecido social contemporâneo sem abstrair – no
momento da crítica – os efeitos frutíferos do contexto dos anos 1950 e 1960,
em que cultura, política e sociedade estavam criticamente afinadas.
Acreditamos, pois, como demonstra os filmes escolhidos para a análise – que
O Céu de Suely e Viajo porque preciso, volto porque te amo – que o sertão
continua sendo campo fértil para um cinema preocupado com a questão
social dos marginalizados no país.
Nas cenas seguintes, Hermila passa a ter mais contato com Georgina, perambulando
por espaços da vida boêmia da cidade, talvez uma fuga em relação à perda do projeto de vida
ao lado do marido. A dupla de mulheres bonitas desperta o desejo dos homens da cidade, mas
Hermila parece ter mais interesse em se divertir, usar drogas e beber. Ela também vai ao
motel com o antigo namorado, mas em casa é cobrada pela a avó, que precisa trabalhar e não
pode ficar cuidando de Matheusinho.
Em relação à paisagem sonora dos ambientes boêmios de Iguatu, é interessante notar
que as músicas americanas que fizeram sucesso em outras décadas são cantadas por Hermila e
Georgina em ritmo de forró e tecnobrega em um caraoquê próximo ao posto Veneza. Nesse
caso, temos mais uma vez a possibilidade de interpretar as dimensões da paisagem como
palimpsesto, mostrando a mistura de tempos e lugares distintos (músicas antigas
internacionais e suas novas versões regionais) que são fundidos, aliando a tradição e o
moderno. Tais músicas, inclusive, são cantadas em um caraoquê, equipamento de bastante
sucesso em culturas orientais, o qual é utilizado com bastante naturalidade nessa paisagem
nordestina.
91
Figura 21 - Georgina, junto a uma figurante, convida Hermila para cantarem forró e tecnobrega no caraoquê.
Além disso, o aspecto transcultural da paisagem sonora é reconhecido em relação à
musica eletrônica que toca quando Hermila se encontra com João na estrada e vão juntos de
moto para o motel. A música Somebody told me (do DJ Lawrence) tematiza o reencontro do
casal e pode ser analisada em conjunto com a música de Diana (que toca no prólogo), pois são
as únicas músicas extradiegéticas que existem no filme. A música de Lawrence começa
calma, com uma melodia um pouco triste, seguida de batidas eletrônicas que tornam a música
mais animada. Esta melodia pode ser associada à esperança de Hermila de retomar os laços
afetivos, mas dentro de um molde mais moderno, o qual contrasta com a canção de Diana da
década de 1970, usada no início do filme. É interessante notar que ambas se relacionam ao
afeto de Hermila, sendo que a música cantada por Diana (cronologicamente mais antiga) está
ligada ao passado da protagonista e seu relacionamento romantizado com Matheus; ao passo
que a música de Lawrence (cronologicamente recente) se liga ao relacionamento atual de
Hermila, em que ela se sente confusa e deslocada, ainda ambivalente entre o sentimento de se
fixar ou deixar o sertão.
Nesse sentido, é interessante notar versões de músicas românticas estrangeiras
cantadas em português que fizeram bastante sucesso décadas atrás, sendo interpretadas por
cantores que tinham grande apelo popular, a exemplo de Roberto Carlos e Reginaldo Rossi,
de modo que a escolha feita da música de Diana, ao lado das versões recentes de forró e
tecnobrega, e da música de Lawrence, indicam que essa permeabilidade à transculturalidade
no sertão (e em outras regiões do Brasil) já ocorre há bastante tempo, mas que recentemente
essa imbricação de diferentes tempos e espaços tem se tornado cada vez mais comum e aceita
quase sem estranhamento na paisagem atual. Nesse sentido, Appadurai (2004, p. 47) reflete
sobre a utilização do passado e da nostalgia no contexto transcultural:
Os Rolling Stones quinquagenários, circulam entre a rapaziada de dezoito
anos que parece não precisar do mecanismo da nostalgia para embarcar nos
heróis dos seus pais. Paul McCartney vende os Beatles a novos públicos
92
colando a sua nostalgia oblíqua ao desejo deles de novidade a cheirar velho.
[...] O passado deixou de ser uma pátria a que regressar numa simples
operação de memória. Tornou-se um armazém sincrônico de enredos
culturais, uma espécie de central casting temporal a que recorrer
apropriadamente, conforme o filme a realizar, a peça a encenar, os reféns a
salvar.
Essa associação da paisagem nordestina a trilhas sonoras atuais também contribui para
a construção de um imaginário do sertão conectado com a modernidade, sendo presente em
filmes do cinema nordestino contemporâneo, como é o caso de Deserto Feliz (que tem a
música Metropolitano em sua trilha sonora, gravada em 2006 pela banda de rock Eddie) e
Baile Perfumado (com a música Sangue de Bairro, de 1997, da banda Chico Science e Nação
Zumbi). A esse respeito, quanto à trilha de Baile Perfumado, Renato Silva (2015, p. 50-51)
comenta em relação à retomada no cinema produzido em Pernambuco, onde diz
Zumbi
de um passado ‘moderno’”, e toca desde o início do filme trazendo um caráter inovador a esse
tipo de representação do Nordeste.
Já em relação a outras épocas do cinema nacional, percebemos situações em que as
trilhas sonoras foram usadas para acentuar o caráter tradicional e os elementos mais antigos
ligados à tipicidade nordestina, como no caso de filmes do cinema novo como Deus e o diabo
na terra do sol (que tem músicas de Sérgio Ricardo e letras escritas por Glauber Rocha),
fazendo remissão expressa à figura do cancioneiro, velho e cego do sertão nordestino; ou
ainda em relação a filmes mais próximos do cinema clássico, como O Cangaceiro (que tem
canções como Sôdade meu bem sôdade,composta por Zé do Norte, e Mulher rendeira, de
autor desconhecido), com músicas de forró no estilo pé de serra, com a formação do conjunto
pelo trio de zabumba, triângulo e sanfona, bastante características dessa região. Dessa forma,
percebemos em filmes contemporâneos como O Céu de Suely o uso de trilhas ligadas a
referências mais atuais, que em um primeiro momento podem até causar estranhamento, mas
se mostram coerentes com a forma de exprimir novas possibilidades ao abordar a paisagem
nordestina.
Nas cenas seguintes, o sentimento de inadequação e isolamento de Hermila crescem.
A cada dia ela se sente menos adaptada a cidade, e vai à rodoviária com a intenção de
comprar uma passagem, mas não tem dinheiro suficiente. Ela parte em busca de novas
perspectivas tentando ir para o lugar mais longe possível dali, no caso a cidade com o
sugestivo nome de Porto Alegre. Dessa maneira, o movimento inicial, que era de readaptação
e fixação na cidade, passa a ser transformado em aversão e incômodo que implicam a
necessidade de um novo deslocamento. Ela procura outras formas de remuneração e passa a
93
lavar carros no pátio do posto Veneza. Na paisagem aparece novamente o trem antigo que
indica sua determinação em buscar esse objetivo de deixar a cidade.
Nesse ponto da narrativa, a construção da paisagem de Iguatu, que já trazia as questões
relacionadas ao consumo de maneira menos expressa, passa a exibir anúncios publicitários de
maneira crescente, trazendo para o foco imagens e cenas que prescrevem a compra de
produtos e remetem ao preço das mercadorias, as quais indicam, no contexto do filme, a
mercantilização das relações humanas. Destacamos a imagem da placa no posto Veneza
indicando uma promoção de combustíveis no valor R$ 2,39; pouco depois, há uma cena em
que Georgina e Hermila compram uma garrafa de cachaça por R$ 5,00; ressaltamos ainda a
ida de Hermila para a rodoviária, em que são especificados para a protagonista os preços
exatos de cada uma das passagens (R$ 454,50 para Porto Alegre, 386,50 para Joinvile e
315,00 para Curitiba) e por fim a cena em que Georgina conta para Hermila o preço que cobra
pelos programas, sendo R$ 20,00 a hora e R$ 70,00 a noite toda.
Figura 22 - A vida em Iguatu cobra seu preço: preço das passagens, preços da vida noturna, preços em sua
paisagem.
94
Esse fato também aproxima a paisagem de Iguatu das condições atribuídas por Augé
(2005, p. 81) aos não-lugares, quando explica que esses espaços da “sobremodernidade [...]
têm a particularidade de se definirem pelas palavras ou pelos textos que nos propõe: as suas
instruções de uso em suma, que se exprimem segundo os casos de maneira prescritiva”, e tais
prescrições se encontram “por de trás das injunções, dos conselhos, dos comentários, das
‘mensagens’ transmitidas pelos inumeráveis ‘suportes’ (painéis, ecrãs, cartazes) que fazem
parte integrante da paisagem contemporânea”. Ainda a esse respeito, o autor descreve “a
invasão do espaço pelo texto” e também menciona a formação de uma “paisagem-texto”, a
qual se faz presente nos não-lugares, de modo que a solidão é o sentimento que prevalece para
as pessoas: “o único rosto que se desenha, a única voz que ganha corpo, no diálogo silencioso
que se desenrola com a paisagem-texto que a ele se dirige como aos demais, são os seus –
rosto e voz de uma solidão” (AUGÉ, 2005, P. 87).
Hermila quer sair de Iguatu, mas não consegue. Tenta trabalhar lavando carros e até
cogita a prostituição. A realidade social representada pelas dificuldades enfrentadas no
cotidiano compõe essa paisagem que impede o deslocamento almejado pela protagonista. É,
portanto, a partir dessa situação que Hermila percebe que suas possibilidades de ser feliz
diminuem em Iguatu, ela se sente inadequada, solitária e não consegue sequer dinheiro para
deixar a cidade. A solução por ela encontrada para superar esses obstáculos é criar a
identidade de Suely, rifar seu corpo, e conseguir dinheiro dos homens que esperam ganhar o
prêmio e passar com ela “uma noite no paraíso”. A paisagem da cidade vai adquirindo a
função narrativa de antagonista, na medida em que se apresenta (através das placas, dos
valores mercantilizados e das dificuldades materiais) e impede Hermila de atingir seu anseio
de deixar Iguatu. Destacamos que essa forma de apresentar a paisagem nordestina é uma
peculiaridade nesse filme, a qual por meio da função crescente que as espacialidades têm na
narrativa, e também por meio de marcadores que concentram maior adensamento simbólico,
contribui para uma construção espacial diferenciada no decorrer da obra.
Ainda de acordo com Augé (2005, p. 85-86), a dimensão contratual nas relações entre
as pessoas é uma característica bastante marcante do não-lugar:
[...] só, mas semelhante a outros, o utilizador do não-lugar esta com este (ou
com as potências que o governam) numa relação contratual. A existência do
contrato é-lhe ocasionalmente lembrada (as instruções de uso do não lugar
fazem dele parte): o bilhete que comprou, o ticket que deverá apresentar na
portagem, ou até o carrinho que empurra à sua frente pelos corredores do
supermercado, são outras tantas marcas suas mais ou menos fortes. O
contrato refere-se sempre à identidade individual daquele que o subscreve.
95
Percebemos que os elementos trazidos pelo autor relacionados à questão do
consumidor ou “utilizador” do não lugar têm implicações quanto à identidade e sua
comprovação, por vezes feita através de um bilhete ou ticket, guardando proximidade com a
forma criada por Hermila para escapar de Iguatu, que de uma maneira contratual passa a
vender suas rifas, e adquire uma nova identidade, a de Suely, para juntar dinheiro e fugir da
cidade. Porém, a identidade que Suely inventa é falsa e remete à prostituição, sendo, portanto,
uma transgressão aos códigos locais, gerando uma reação de repulsa social por parte da
cidade.
Quando Hermila inventa a identidade de Suely e reencontra a possibilidade de
deslocamento para viajar em direção ao seu céu, a narrativa tem o segundo ponto de virada,
encaminhando-se para o terceiro ato, em que se dará o desfecho da história. Entretanto, os
elementos humanos da paisagem de Iguatu, agora ligados ao machismo de uma sociedade
patriarcal, entram em ação para evitar a transgressão de Hermila. Ressaltamos ainda que as
relações de gênero sobrepondo o homem em relação à mulher, já estavam presentes desde o
início da história de maneira menos explícita, a exemplo da forma como João tratava Hermila
ou da prostituição de Georgina em precárias condições. Porém, a partir desse momento de
enfrentamento por parte de Hermila, os traços do machismo se tornam preponderantes nessa
paisagem. Vale salientar que esses traços do patriarcado, percebidos no comportamento dos
personagens, repercutem na forma de organizar o espaço social, nas estruturas de
configuração das formas de trabalho e até mesmo na delimitação de espaços físicos prescritos
para serem utilizados por meio de papéis predefinidos por homens e mulheres, tendo, assim
influência na forma como se configuram as paisagens nessas espacialidades.
Na sequência do roteiro, Hermila (usando agora a identidade de Suely) vende as rifas
em vários locais da cidade, principalmente nos predominantemente masculinos, a exemplo
das cenas em que negocia as rifas à noite com os mototaxistas no posto de gasolina, ou
durante o dia em bares da cidade. Porém, a ideia de vender o corpo começa a ganhar
opositores. A primeira a desaprovar a ideia é a tia Maria, confidente e companheira de
Hermila, classificando a iniciativa como “ideia de puta”. João, por sua vez, se mostra
completamente contrário, ao mesmo tempo em que se coloca na posição de homem racional e
protetor, considerando a vontade de Hermila mero devaneio, uma maluquice a que não se
deve dar importância. Em casa, a insistência de Hermila em deixar Iguatu é encarada como
teimosia. Em outro momento no comércio da cidade, uma vendedora tenta agredir Hermila,
(reconhece que ela é Suely pelo cabelo com duas cores diferentes) dizendo que ela merece
apanhar e que deveria ser presa.
96
Figura 23 - Hermila vende as rifas com facilidade em ambientes masculinos.
A reação violenta de Iguatu ao projeto de Hermila traz à tona as referências do
Nordeste arcaico, uma sociedade conservadora, com matriz binária e heterossexual na qual as
mulheres são submetidas a assumir papéis e lugares predefinidos socialmente, que
determinam formas de comportamento, subjetividade e personalidade ligados à ideia de um
sexo biológico. Dentro dessa binariedade, as mulheres assumem necessariamente, quanto ao
exercício da sua sexualidade, a condição de mulher para a procriação, sendo-lhes reservado
conforme acentua Tânia Swain (2000, p. 3), o papel de “mãe e esposa, sexo domesticado,
moralidade, espaço privado, família, reprodução do social”; ou seu contraposto, a condição de
prostituta, que ainda segundo a autora, trata-se da “mulher pública”, da “liberação do vício e
da lascívia latentes no feminino”, isto é, “a imanência na impureza de seu sexo”. A esse
respeito, Paulo Ceccarelli (2008, p. 6) esclarece que:
O sistema de valores que sustenta a família burguesa determina a moral
sexual vigente. Historicamente, na construção dessa moral, a mulher foi
“dessexualizada”, fazendo emergir a figura da “rainha do lar”. Para que a
“moça de bem” se mantivesse virgem até o momento de entregar-se a um só
homem, ela deveria aprender a conter seus desejos e a evitar os prazeres
carnais e mundanos. Ora, os espaços da prostituição, locais dos prazeres sem
limites, foram opostos ao lar, lugar de procriação. Os dois espaços são
inconciliáveis; quem frequenta um, não pode ser visto no outro.
Essa especificação dos territórios em que é permitida ou não a presença de mulheres
de sexualidade livre (associadas ao papel da prostituta) passa a ser enfrentada no filme a partir
do momento que Hermila vende suas rifas, pois conforme Dídimo e Lima (2014, p. 11): “a
subversão realizada por Hermila na relação livre que procura com o próprio corpo pode
apontar para uma fissura com as maneiras já esquadrinhadas de sentir, de afetar e ser afetado”.
Em seguida, Hermila persiste em vender as rifas, começa a juntar dinheiro e aparece
novamente consumindo produtos do cotidiano em algumas cenas, como na que ela sai do
supermercado e caminha ao lado do trem, o qual indica novamente um marcador da paisagem:
Hermila se movimentando em direção a seus planos. Nessa mesma cena João aparece com sua
97
moto, tenta convencer Hermila a desistir da ideia. Ele se propõe a comprar todas as rifas, tenta
beijá-la. Ela o afasta e prossegue em seu caminhando sozinha e chorando. As agressões
aumentam, no mercado central um homem expulsa Hermila do estabelecimento de maneira
violenta. A ameaça de que estaria cometendo um crime é repetida outras vezes. E por fim, à
noite em casa, a avó lhe arranca um pedido de desculpas a tapas, em razão do que estão
comentando sobre a prostituta da cidade. Ela sai de casa, à noite na rua, sozinha, apenas a
paisagem lhe faz companhia. Em seguida, vai para casa de Georgina, onde dias depois sua tia
Maria lhe faz uma visita, dizendo que a avó sente sua falta, mas reconhece que a rifa de
Hermila é um sucesso entre os homens da cidade. O plano do largo da praça em frente à casa
de Hermila aparece mais uma vez, mas sem o orelhão, e logo após aparece uma pipa
enroscada em fios de eletricidade como ponto marcador da paisagem.
Figura 24 - Hermila/Suely é ameaçada, sendo expulsa de ambientes públicos por causa da rifa.
Figura 25 - Na esfera privada Hermila/Suely também é agredida e humilhada.
98
Figura 26 - Hermila se sente inadequada, caminha solitária na paisagem.
A atitude de João perante Hermila mostra como ele procura fazê-la desistir da ideia de
rifar o corpo, mas ainda a partir de uma visão machista, pois ele atribui toda a mudança no
comportamento de Hermila à falta que ela supostamente sente de Matheus, tentando
reconquistá-la dentro da chave binária da “esposa domesticada” através do amor romântico.
Entretanto, Hermila não tem interesse no amor que João lhe propõe, além de que a construção
imagética e narrativa do filme indicam a ruptura da ligação afetiva com Matheus, tanto por
meio da frase: “eu queria que Matheus fosse atropelado por uma carreta”, como também pela
repetição do plano da praça que dessa vez aparece sem orelhão.
Assim, o ato de Hermila de rifar-se se torna uma atitude de resistência a essa
classificação machista, que insiste em tratar como prostituta as mulheres que se apoderam da
própria sexualidade. Ela afirma: “Quero ser puta não. Quero ser porra nenhuma!”. Dessa
maneira, ela assume a responsabilidade desse ato transgressor, de desobediência às normas
locais, e sofre assim a coerção de elementos que compõem essa paisagem em sua dimensão
privada (dentro da família e com o ex-namorado) e pública (no mercado e no comércio da
cidade).
E a pipa que aparece como marcador da paisagem, ao estar presa nos fios de
eletricidade, representa toda essa rede de comportamentos, os quais obedecem à norma do
patriarcado e tentam impedir Hermila de escapar a esse condicionamento. A pipa enroscada se
99
configura como uma metáfora de todo conflito existente no terceiro ato do filme, podendo ser
interpretada como uma mulher buscando a realização de sua felicidade em direção ao céu
azul, mas que é impedida de deslocar-se, sendo embaraçada por esse sertão conservador que
se mantém atrelado a valores morais, preconceituosos e machistas. Dessa forma, encontramos
concentrados nessa imagem a simbolização dos mesmos elementos que usamos como chaves
de leitura, sendo eles o céu, o sertão e a mulher.
Figura 27 - Hermila resiste ao assédio de João e a pipa enroscada nos fios como elemento marcador da
paisagem.
Em relação a períodos anteriores do cinema nacional, constatamos que as mulheres
geralmente eram trazidas para as telas como objeto sexual, e o machismo em relação a essa
exploração da imagem feminina dificilmente era sequer percebido como uma imposição do
olhar masculino predominante, de maneira que discussões relacionadas ao corpo e ao
empoderamento sexual das mulheres dificilmente podiam ter espaço ou serem levantadas. A
100
esse respeito, Paiva (2014, p. 221) reflete sobre tal perspectiva, usando como exemplo o
diretor Bruno Barreto ao enfocar o corpo de Sônia Braga no filme Gabriela, afirmando que a
personagem porta uma “sensualidade brejeira” e um “erotismo explícito”, ressaltando que nas
cenas em que ela “aparece, a câmera praticamente passeia voyeuristicamente por sobre a sua
anatomia, reforçando um papel tradicional atribuído ao corpo das mulheres nas telas muito
utilizado […] na década de oitenta”. Dessa maneira, essa autora considera o diretor Bruno
Barreto “como um diretor conservador que, apesar de ter escolhido uma narrativa fílmica
essencialmente feminina possui um ‘olhar masculino’ sobre o corpo feminino” (PAIVA,
2014, p. 222).
Essa dimensão que torna o machismo pouco perceptível é, porém, uma construção
histórica que muitas vezes é incentivada indevidamente, por exemplo, pelas figuras
estereotipadas de nordestinos “machões”, bastante comuns em filmes nacionais desde as
chanchadas. Porém autores como Albuquerque (2005 p. 7) advertem que:
Alimentar o mito do ‘cabra macho’ é contribuir para a permanência,
inclusive, da violência contra as mulheres e, ao mesmo tempo, alimentar um
modelo de masculinidade que tenta manter um tipo de relação entre homens
e mulheres que viria desde o período colonial e que, por isso mesmo, é vista
como natural, como eterna. Este modelo vitima os próprios homens, já que
os coloca em constantes situações de risco e deles exige renúncias afetivas e
emocionais importantes, como a do exercício da paternidade e da expressão
de sentimentos e emoções.
Quanto ao cinema contemporâneo nordestino, percebemos que uma parcela pequena
de filmes procura debater o machismo e evidenciar as injustiças decorrentes do patriarcado, a
exemplo de Aquarius (de Kleber Mendonça, 2016), que aborda de maneira simbólica a
resistência do lugar ocupado pelo feminino na sociedade frente à pressão de corporações
imobiliárias; ou filmes de diretoras como Ana Muylaert, em que o olhar feminino enfoca as
relações familiares em Que Horas ela volta? (2015) e Mãe só há uma (2016); há também
filmes como Boi Neon, que tratam o tema do machismo abordando a inversão de papéis
socialmente convencionados, tendo como personagens principais um vaqueiro fascinado por
moda e costura e uma mulher caminhoneira.
Na sequência da narrativa, Hermila retorna para casa da avó. Ela diz que precisa partir
de Iguatu e já comprou sua passagem para Porto Alegre, fala também que depois retornará
para buscar a avó e a tia para morarem com ela. Hermila deixa ainda dinheiro para compra de
um novo ventilador. A avó entende o momento de partida, pede que ela deixe Matheusinho
em Iguatu pra ela cuidar. Posteriormente, à noite, Hermila se prepara para encontrar o
ganhador da rifa no motel. É um estabelecimento bem simples, localizado na beira da estrada
101
e que possui uma fachada pintada à mão e luzes pisca-pisca em forma de coração. Hermila
pretende se livrar da obrigação o mais rápido possível, mas o ganhador se opõe, ele quer
desfrutar ao máximo do corpo de Suely. A câmera em close up mais uma vez se aproxima
muito de sua face e registra todo desconforto interno que se torna evidente em seu rosto.
Hermila cumpre a relação sexual acordada, dando prosseguimento a seu plano. No dia
seguinte, ela volta de carona no carro do homem sorteado, com olhar atordoado, ela vê pela
janela uma árvore verde sozinha em meio ao solo seco marcando a paisagem do sertão.
O pedido da avó de Hermila para deixar Matheusinho com ela remete novamente ao
conflito feminino que a coloca na posição socialmente estabelecida de mãe procriadora, no
sentido de sua função biológica e familiar. Pelo desenrolar da narrativa, percebemos que
Hermila se afasta do papel de mãe ao deixar Iguatu sem o filho, mas aparentemente esta é
uma situação temporária, uma vez que a protagonista afirma que pretende retornar para buscar
os parentes que ficaram na cidade quando tiver melhores condições de vida. Já em relação ao
cumprimento e contrato da rifa, identificamos um comportamento que aponta em outra
direção. Aqui há uma recusa expressa em se colocar em qualquer dos papéis determinados
socialmente, pois ela usa a logicidade da exploração do corpo feminino, transformado em
mercadoria, mas escapa da condição preestabelecida de prostituta, pois não tomará essa
atividade como meio de vida, transformando esse ato num espetáculo lucrativo, num grande
acontecimento com a venda de rifas na pequena cidade. Nesse sentido, Santos (2014, p. 121)
chama atenção de que Hermila:
[...] conscientemente, inventa uma lógica mercantil ao avesso. Não quer se
tornar mais uma prostituta, um corpo triturado pelo sistema mercantil, que
viva em condições limites às escuras da sociedade em Iguatu, que “trepa
com qualquer um”. Ela se vale da sua própria condição de “ser diferente” na
cidade interiorana, eleva o seu valor simbólico, adentra os domínios da
sociedade do consumo, da valorização da imagem, do espetáculo, e oferece
“uma noite no paraíso”. Cria, assim, uma espécie de slogan para si própria.
É nesse sentido que interpretamos também a árvore solitária, que aparece como
marcador da paisagem, a qual complementa em certa medida a imagem anterior da pipa, pois
com sua persistência Hermila consegue finalmente ultrapassar as barreiras do entorno que
tentavam bloquear seu sonho, seu desejo de movimento. Ou seja, ela se desvencilha das
dificuldades e inverte a lógica determinista que lhe impõe limites sociais e territoriais, sendo
um objeto que se destaca nessa paisagem, de maneira semelhante à árvore verde que insiste
em florescer mesmo em solo tão inóspito.
102
Figura 28 - Hermila no motel e árvore solitária como marcador da paisagem, superando a aridez do meio.
Na cena seguinte, Hermila passa um dia de despedida em casa com a família. Ao final
do dia, a cena do jantar é bastante parecida com a refeição feita no início do filme para
celebrar sua chegada. Hermila ouve o filho chorar e chora também. A separação do seio
familiar é penosa. Enfim, na manhã seguinte, ela parte de Iguatu no ônibus rumo a Porto
Alegre. Na poltrona do ônibus, seu semblante mistura um ar reflexivo e de satisfação pelo
desejo que se cumpre, na janela ela vê várias árvores verdes como a que apareceu na cena
anterior, a reflexão sobre a experiência de transformação pela qual passou em Iguatu é
inevitável. O céu predomina na imagem com enquadramentos da paisagem que repete os do
início do filme, porém agora com o ônibus se afastando da câmera. João surge montado em
sua moto em uma última tentativa de convencer Hermila a desistir da viagem, a música do DJ
alemão volta a tocar. O pórtico da cidade reaparece com a frase: “Aqui começa a saudade de
Iguatu”. O ônibus some na estrada e João volta sozinho, desapontando a expectativa de um
final romantizado em que Hermila desistisse da viagem para ficar com o antigo namorado.
103
Figura 29 - Hermila deixa Iguatu em busca de seu céu.
A tentativa frustrada de João indica a persistência de Hermila em buscar outras
possibilidades de vida. Ela passou por muitas transformações no período que esteve em
Iguatu, abandonou a ideia de um amor romântico e idealizado, lidou com as dificuldades
materiais, desafiou preconceitos e no final confirmou a intenção de seguir seu caminho para
tentar ocupar um lugar no mundo. Em todo esse percurso, a relação de Hermila com o espaço
a seu redor se fez presente, por vezes refletindo seu estado interior, em outras ocasiões se
acomodando, outras vezes antagonizando ou simplesmente sendo o último refúgio em
momentos de solidão. A paisagem nordestina apresentada no filme se fez vista em cargas de
104
grande simbolismo por meio de elementos que indicavam o moderno e o arcaico misturados
na mesma possibilidade espacial. Fez-se presente também através do machismo mostrado de
forma explícita ou em detalhes que poderiam passar despercebidos para um observador
desatento, ou que encarasse esses elementos do Nordeste como naturalizados e imutáveis.
Ao final do filme, os atributos naturais da paisagem são recolocados em cena por meio
de um processo que retoma a sua função como cenário, mas que depois de todo esse percurso,
não pode ser limitado a essa única finalidade, como bem lembra o pórtico da cidade,
sinalizando que ali tem início a saudade de uma experiência que se viveu naquele espaço. O
pórtico parece indicar que, assim como os homens demarcam os espaços, esses também
podem deixar marcas nos homens. Desde o título, o céu foi escolhido como elemento-chave
para marcar e caracterizar a paisagem nordestina nesse filme, podendo significar qualquer
lugar em que se possa encontrar a felicidade, ou podendo expressar uma utopia que permite o
movimento.
Procuramos mostrar aqui que a paisagem nordestina já foi (e continua sendo)
caracterizada em vertentes do cinema nacional por meio de estereótipos ou de utopias
político-ideológicas, porém a utopia que parte dos cineastas contemporâneos parece querer
perseguir é a que mostra essas paisagens em constante atualização, abrindo novas
perspectivas, que permitem novos movimentos.
105
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tão singulares quanto à motivação da escolha de um tema, são as conclusões às quais
se chega, pois até mesmo a metodologia de pesquisa aponta necessariamente uma visão de
mundo que decorre das leituras e influencia os resultados obtidos.
A intenção de trabalhar as paisagens nordestinas no cinema surgiu de três interesses
prévios que se tornaram eixos de minha pesquisa. Um deles é o cinema como atividade que
sempre me inspirou do ponto de vista emocional, prático e teórico, logo se tornou um dos
focos de estudo na pós-graduação. Quase ao mesmo tempo, percebi-me atraído por temas da
cultura nordestina, suas imagens, símbolos e representações; em seguida o estudo das
paisagens sobreveio como uma boa forma de complementar os dois eixos anteriores, dada a
minha afinidade com filmes nordestinos e estudos relacionados à área de direção de
fotografia.
A construção das paisagens em O Céu de Suely desde o princípio se mostrou uma
fonte bastante fértil de informações em relação aos assuntos que estavam na mira desta
pesquisa, tomando o recorte dos filmes contemporâneos. A forma como Hermila interage com
as paisagens e o uso de elementos espaciais que indicam e sintetizam momentos importantes
da narrativa, serviram de ponto de partida para definir o filme a ser analisado.
Entretanto, um entendimento mais amplo da paisagem nordestina em outros períodos
do cinema nacional se fez necessário e se revelou de grande valia, na medida em que permitiu
acompanhar como a linguagem cinematográfica tem evoluído ao tratar dessas espacialidades
no decorrer dos anos. Nessa ocasião, foi percebida com maior segurança a constância (até os
dias atuais) de certos temas, a exemplo da pobreza, religiosidade e violência, geralmente
ambientados em meio à dualidade que opõe o sertão ao litoral. Nesse retrospecto, a paisagem
nordestina, que antes servia de mero cenário, passou a ser preenchida por estereótipos, os
quais geraram imagens-chave sobre essa região. Ela também ganhou dimensão simbólica,
político-ideológica, mas outras vezes voltou à condição naturalista e passiva.
No cinema contemporâneo, parte dos cineastas aderiram à ideia de apresentar a
paisagem nordestina em outras perspectivas que fugissem aos estereótipos ou mitificações de
um Nordeste arcaico, enclausurado em si mesmo e intocável. Tais diretores fazem suas
produções procurando evidenciar a transformação, a atualização e a diversidade presentes
nesses espaços. O diretor Karim Aïnouz faz parte desse grupo, tendo sido importante
conhecer suas referências cinematográficas e parte da sua história para saber, por exemplo,
que desde criança, ele imaginava o Nordeste conectado ao resto do mundo, procurando
106
aproximar as paisagens do sertão e as da Argélia, ou de outros países em que seu pai
estivesse; ou ainda para ter ciência da experiência ensinada por Eduardo Coutinho, que exigia
saber os preços dos objetos cotidianos em seus filmes, sendo essa lição aproveitada depois nas
paisagens de Iguatu, nas quais os preços são exibidos com tanto excesso que ajudam a inspirar
em Hermila a ideia de rifar o próprio corpo. Ou seja, Aïnouz pode ser considerado um diretor
que coloca o seu imaginário junto a experiências pessoais e biográficas quando cria as
paisagens em seus filmes.
A paisagem construída em O Céu de Suely tem a peculiaridade de assumir diferentes
funções no decorrer da obra. Primeiramente, ela aparece propositadamente de forma
naturalista, evidenciando que sua capacidade de se tornar apenas cenário está sempre
presente. Depois, ela se mostra como palimpsesto, explicitando camadas de tempos e espaços
distintos que se fundem diante do espectador, aproximando o novo e o antigo, o local e o
global. Ela ainda concentra elementos simbólicos em marcadores específicos, tornando-se
metáfora e síntese de muitos acontecimentos da vida da personagem principal. Em dados
momentos, torna-se reflexo dos estados subjetivos de Hermila, em outros a paisagem também
surge como personagem, que agride a protagonista por meio do machismo, tornando-se
antagonista de seu desejo de deixar Iguatu para buscar o seu céu.
Portanto, juntando o aporte teórico utilizado na pesquisa à produção de sentido
decorrente das imagens, consideramos que a paisagem nordestina incorporada no filme O Céu
de Suley parece ter se prestado muito satisfatoriamente para proceder a uma análise
interpretativa dos elementos escolhidos para expressar a região Nordeste no cinema
contemporâneo nacional.
107
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6. REFERÊNCIAS DE FILMES
ABISMO Prateado. Direção: Karim Aïnouz. Produção: Rodrigo Teixeira. Brasil: RT Features,
2011. 1 DVD.
ABRIL Despedaçado. Direção: Walter Salles. Produção: Arthur Cohn. Brasil/França/Suiça:
Video Filmes, 2001. 1 DVD.
AQUARIUS.Direção: Kleber Mendonça. Produção: Emilie Lesclaux, Michel Merkt. Brasil /
França: Cinemascópio, 2016. 1 DVD.
AITARÉ da Praia. Direção: Gentil Roiz. Produção: Joaquim Tavares. Brasil: Aurora-Film,
1925. Disponível em:. Acesso (colocar
o dia) de (mês) de (ano).
AUTO da Compadecida. Direção: Guel Arraes. Produção: Guel Arraes e Eduardo Figueira.
Brasil: Globo Filmes, 2000. 1 DVD.
BAILE Perfumado. Direção: Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Produção: Paulo Caldas. Brasil:
Riofilme, 1997. 1 DVD.
BAIXIO das Bestas. Direção: Cláudio Assis. Produção: Cláudio Assis. Brasil: Parabólica
Brasil, 2007. 1 DVD.
BOI Neon. Direção: Gabriel Mascaro. Produção: por Raquel Ellis. Brasil/Uruguai/Holanda:
Desvia Filmes, 2015. 1 DVD.
BYE Bye Brasil. Direção: Cacá Diegues. Produção: Bruno Barreto. Brasil /França/ Argentina:
Carnaval Unifilm, 1979. Disponível em: . Acesso 22 de
dezembro de 2016.
CANGACEIRO, O. Direção: Lima Barreto. Produção: Cid Leite da Silva. Brasil: Vera Cruz,
1953. Disponível em: . Acesso 22 de
dezembro de 2016.
CANTO do mar. Direção: Alberto Cavalcanti. Produção:Luiz Andrade, Osvaldo Katalian e
Romeu Estelita. Brasil: Kino Filmes S.A., 1953. 1 DVD.
CARLOTA Joaquina. Direção: Carla Camurati. Produção:porBianca de Felippes, Richard
Luiz. Brasil: Europa Filmes, 1995. 1 DVD.
CÉU de Suely, O. Direção: Karim Aïnouz. Produção:Walter Salles. Brasil / Portugal / França /
Alemanha: VideoFilmes, 2006. 1 DVD.
CENTRAL do Brasil. Direção: Walter Salles. Produção:Martine de Clermont. Brasil/França:
VideoFilmes, 1998. 1 DVD.
CIDADE Baixa. Direção: Sérgio Machado. Produção:Walter Salles. Brasil: Video Filmes,
2005. 1 DVD.
115
DAS Tripas Coração. Direção: Ana Carolina. Produção: Jacques Eluf e Veze Zahram. Brasil:
Crystal Cinematográfica, 1982. Disponível em: . Acesso 22 de dezembro de 2016.
DEUS é brasileiro. Direção: Cacá Diegues; Produção: Renata Almeida Magalhães. Brasil:
Columbia Pictures Television, 2003. 1 DVD.
DEUS e o diabo na terra do sol. Direção: Glauber Rocha. Produção:Jarbas Barbosa, Luiz
Paulino dos Santos. Brasil: Copacabana Filmes, 1964. 1 DVD.
DESERTO Feliz. Direção: Paulo Caldas. Produção:Germano Coelho Filho. Brasil/Alemanha:
Canada Filmes Ltda., 2007. 1 DVD.
DONA Flor e seus dois maridos. Direção: Bruno Barreto. Produção:Luiz Carlos Barreto e
Newton Rique. Brasil: Carnaval Unifilm, 1976. 1 DVD.
FEBRE do Rato. Direção: Cláudio Assis. Produção:Cláudio Assis. Brasil: Parabólica Brasil,
2012. 1 DVD.
FUZIS, Os. Direção: Ruy Guerra. Produção:por Ruy Guerra. Brasil: Copacabana Filmes,
1963. 1 DVD.
GABRIELA. Direção: Bruno Barreto. Produção:Hálio Ferraz e Ibrahim Moussa. Brasil:
Sultana, 1983. Disponível em:. Acesso
22 de dezembro de 2016.
HOMEM que virou suco, O. Direção: João Andrade. Produção:por Wagner de Carvalho.
Brasil: Embrafilme, 1981. 1 DVD.
HORA da estrela, A. Direção: Suzana Amaral. Produção:Assunção Hernandes. Brasil:
Embrafilme, 1985. 1 DVD.
JURANDO vingar. Direção: Ary Severo. Produção:Joaquim Tavares. Brasil: Aurora-Film,
1925. Trechos disponíveis em: . Acesso
22 de dezembro de 2016.
LISBELA e o Prisioneiro. Direção: Guel Arraes. Produção:Guel Arraes, Tereza Gonzales.
Brasil: Globo Filmes, 2003. 1 DVD.
MÃE só há uma. Direção: Ana Muylaert. Produção:Sara Silveira. Brasil: África Filmes, 2016.
1 DVD.
MADAME Satã.Direção: Karim Aïnouz.Produção:Walter Salles. Brasil / França:
VideoFilmes, 2002. 1 DVD.
MUNDO, O. Direção: Jia Zhang-ke. China/Japão/França: Xstream Pictures, 2005. 1 DVD.
116
PAGADOR de promessas, O. Direção: Anselmo Duarte. Produção: Oswaldo Massaini.
Brasil/Portugal: Cinedistri, 1962. Disponível em:
. Acesso 22 de dezembro de 2016.
PARAHYBA mulher-macho. Direção: Tizuka Yamasaki. Produção:Carlos Diniz e Anita
Harley. Brasil: Embrafilme,1983. 1 DVD.
PRAIA do futuro. Direção: Karim Aïnouz. Produção:Geórgia Araújo e Hank Levine. Brasil /
Alemanha: Coração da Selva, 2014. 1 DVD.
QUE horas ela volta? Direção: Ana Muylaert.Produção:Fábiano Gullane. Brasil: Gullane
Filmes, 2015. 1 DVD.
SOM ao redor, O. Direção: Kleber Mendonça. Produção:Emilie Lesclaux. Brasil:
Cinemascópio, 2012. 1 DVD.
TIETA do Agreste. Direção: Cacá Diegues. Produção:Cacá Diegues e Miguel Faria Júnior.
Brasil/Inglaterra/França: Columbia Pictures Telvision, 1996. 1 DVD.
VIAJO porque preciso volto porque te amo. Direção: Karim Aïnouz e Marcelo Gomes.
Produção: Daniela Capelato. Brasil: Gullane Filmes, 2009. 1 DVD.
VIDAS Secas. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção:Luiz Carlos Barreto Danilo
Trelles. Brasil: Sino Filmes,1963. 1 DVD.
Z. Direção: Constantin Costa-Gravas. Produção:Philippe d'Argila e Eric Schlumberger.
França / Argélia: Reggane Films, 1969. 1 DVD.
117
7. ANEXOS
ANEXO A -Ficha Técnica
Título: O Céu de Suely
Direção: Karim Aïnouz
Atores: Hermila Guedes, Georgina Castro, Maria Menezes, João Miguel, Zezita Matos e as
crianças Mateus Alves e Gerkson Carlos. Participações Especiais Marcélia Cartaxo e Flávio
Bauraqui.
Produção: Walter Salles, Mauricio Andrade Ramos, Hengameh Panahi, Thomas Häberle e
Peter Rommel
Produtora: Videofilmes, Celluloid Dreams e Shotgun Pictures.
Produtores Associados: Christian Baute e Luís Galvão Teles
Produção Executiva: João Vieira Jr.
Co-Produção: Fado Filmes
Argumento: Simone Lima, Karim Aïnouz e Maurício Zacharias
Roteiro: Karim Aïnouz, Felipe Bragança e Maurício Zacharias
Fotografia: Walter Carvalho A. B. C.
Direção de Arte e Figurino: Marcos Pedroso
Preparação de Elenco: Fátima Toledo
Montagem: Isabela Monteiro de Castro e Tina Baz Le Gal
Direção de Produção: Dedete Parente Costa
Maquiagem e Cabelo: Marcos Freire
Som Direto: Leandro Lima
Edição de Som: Waldir Xavier
Mixagem: Branko Neskov A. C. S.
Música: Berna Ceppas e Kamal Kassin
Brasil, França, Alemanha, Portugal, 2006, Cor, 35mm, 88 min.
Sinopse
Hermila (Hermila Guedes) é uma jovem de 21 anos que está de volta à sua cidade-natal, a
pequena Iguatu, localizada no interior do Ceará. Ela volta juntamente com seu filho,
Mateuzinho, e aguarda para daqui a algumas semanas a chegada de Mateus, pai da criança,
que ficou em São Paulo para acertar assuntos pendentes. Porém, o tempo passa e Matheus
simplesmente desaparece. Querendo deixar o lugar de qualquer forma, Hermila tem uma idéia
inusitada: rifar seu próprio corpo para conseguir dinheiro suficiente para comprar passagens
de ônibus para longe e iniciar nova vida.
118
ANEXO B - Trechos Selecionados do Roteiro
(Partes do roteiro que trazem alguns elementos da paisagem analisados. Disponível em:
. Acesso 22
de dezembro de 2016
(...)
2 – Int. ônibus / Estrada – dia
Sol amarelo na janela. Uma estrada sinuosa banhada por uma luz doce e dourada. Uma
paisagem de colinas, diferentes tons de verde. Poucas habitações. O ônibus segue em grande
velocidade. Suely está dormindo, o braço escondendo seu rosto da luz intensa. Agora é Suely
que se reflete na janela. Italo Júnior dorme na poltrona a seu lado, deitado entre uma mochila
e uma bolsa de bebê. Silêncio. Apenas o motor do ônibus e um diálogo abafado de aparelhos
de TV.
3 – Int. ônibus / Estrada sertão – noite
Escuridão. O ônibus segue – lá fora, uma estrada vazia e escura. Suely está acordada olhando
para fora, Italo Júnior dormindo a seu lado. Alguns poucos feixes de luz invadem o ônibus.
(...)
4 – Ext. Estrada / ônibus – dia
Um jorro de luz. Sol a pino. Sol branco. O ônibus segue em alta velocidade por uma estrada
esburacada, no meio de uma grande planície. Quase nenhum outro veículo. Suely no ônibus,
vento na janela – enfado e tédio. O rosto suado e a pele oleosa. Suely leva Italo Júnior bem
apertado junto ao peito. Mamadeira na mão. Hipnotizada pela luz. A seu lado, a mochila e a
bolsa de bebê, semi-abertas. Paisagem árida, plana – um quase deserto. Vegetação de arbustos
ressecados, e um céu azul, muito azul, com nuvens que flutuam aqui e acolá. Poderíamos estar
na lua num dia de sol e céu claro. Calor.
(...)
14 – Ext. trailer / bar / posto veneza –noite
Música estilo techno-funk tocando alto. Num trailer ao lado do Posto Veneza, uma pick-up
parada está com o som aos berros. As mesas estão cheias, umas 30 PESSOAS conversam
embaladas pela música, ao fundo, uma TV mostra imagens desconexas de um show de rock.
Motos e mototáxis, na frente do trailer. Algumas garotas arrumadas. Motoristas de caminhão
circulam entre o pátio do posto e o trailer. Ivonete está perto da pick-up, dançando animada e
enxugando o suor do suvaco com um paninho que carrega. Ao lado dela, uma amiga, Tânia.
As duas dançam juntas, meio abraçadas. Suely, míni-saia, camiseta, brinco e sapato alto,
observa tudo, com uma lata de cerveja na mão, balançadinho. Ela dá um gole duplo.
(...)
119
17 – Ext. centro de iguatu – dia
Sol forte. Um pequeno caos no centro da cidade: camelôs, mototaxistas, pedestres e lojas.
Suely está arrumada, mochila nas costas e Italo Júnior no colo. Parada em uma esquina,
próxima ao Café Líder. Suely distribui folhetos da pizzaria de Leandro. A menina se atrapalha
com o filho no colo, mas consegue manter o sorriso. A garrafa de uísque, na mochila
entreaberta, ameaçando cair. Caminha devagar. Quase engolida pelo movimento da cidade.
(...)
24 – int. cozinha self-service – dia
Vapor e sol. É uma cozinha simples, mas profissional, nos fundos de um restaurante. Suely
está sentada numa cadeirinha de metal, Italo Júnior no colo, comendo um prato grande de
arroz, feijão, macarrão e bife, que está em seu colo. Lugar abafado. Duas Funcionárias estão
lavando o chão. A terceira funcionária, Rosário, raspa um resto de comida de uma grande
panela. Telhado de alumínio, poucas janelas. As funcionárias suadas. Ao fundo, um pequeno
rádio de pilha toca músicas românticas. Suely come devagar, rosto triste, olhar no vazio, às
vezes olha para a avó. Rosário trabalha compenetrada.
25 – int. loja macavi – dia
Uma ampla loja de eletrodomésticos: luzes frias, aparelhos de TV ligados. Alguns vendedores
uniformizados observam o movimento dos clientes. Suely entra na loja vindo da rua, sem
Italo Júnior. Olhos curiosos e tristes. Suely caminha por entre os aparelhos de TV e rádios.
Passa por corredores de eletrodo mésticos, TVs, geladeiras, liquidificadores, sofás e DVDs.
Pára diante de uma TV de 29 polegadas – fica olhando a seu redor – quieta. Vê alguém
conhecido – acena. Sorriso de leve.
(...)
44 – int. quartinho de motel – noite
Quarto escuro – luz azulada de TV silenciosa. Suely está deitada, nua, de olhos abertos.
Sentado na cama a seu lado, vemos Luis quieto, olhos abertos. Ele muda
ila.
45 – Ext. fachada do motel – noite
A fachada do Motel. Noite. Um coração de luzinhas coloridas. Piscando. Intermitentes.
(...)
59 – int. casa de rosário – noite
Chiado de TV. Rosário está sentada no sofá de casa, vestido simples – bebe um copo de
uísque – séria. No meio da sala, vemos Ivonete sentada, pernas abertas, séria – cabos
coloridos de televisão nas mãos.
120
SUELY
E aí, tia?
IVONETE Fudeu, Suely... (sorriso contido)
Suely está de pé diante dela – com um controle remoto na mão e a garrafa de uísque na outra
– quase vazia. As duas estão tentando instalar um aparelho novinho de DVD na velha TV.
Sem sucesso. A TV só mostra chuvisco...
IVONETE Nada?
SUELY
Nadinha...
Ivonete continua trocando os cabos de lugar...
IVONETE
E agora?
O chuvisco continua.
SUELY
Sabe ligar isso mesmo, tia? (riso)
IVONETE
Sei, não... (séria) Achei que sabia...(sorriso
contido)
Ivonete continua futucando os fios, apertando
botões. Dá uns tapinhas no DVD.
(...)
62 – int. mercado da cidade – dia.
Sol forte lá fora. A luz entra por frestas no teto. O mercado de Iguatu tem longos corredores
escuros, de barracas – lá ao fundo, grandes portais dão para o movimento e a luz da rua. O
mercado está vazio, parece estar fechando.
SUELY
15 reais e você concorre... se ganhar passa a noite toda comigo. Já vendi um monte,
mas a chance é boa. (pausa) Faço tudo o que você quiser. Vale a pena, viu... E não sou garota
de programa, não. Sou moça de família, sabe?
Sérgio olha pro corpo dela, impressionado com tudo.
SÉRGIO
Olhe...(cuidadoso – duro) Puta aqui dentro não pode, não, menina.
SUELY
(dura) Já falei que não sô puta.
SÉRGIO
E isso é o quê?...
SUELY
É rifa.
SÉRGIO
Pois então venda tua rifa em outro lugar!...
SUELY
121
Vou não. Quê que eu fiz de errado? O
senhor é que veio pra cima de mim...
(...)
90 – int./ Ext. carro Gleidson / Estrada motel – dia
A moto de Ivonete voltando pela mesma estrada. Na garupa, Tânia segura firme. Seguimos
pela estrada e encontramos o Fiat velho de Gleidson. Suely a seu lado observa a tia pelo
retrovisor lateral – a tia acena de longe – seguindo o carro. Suely volta o olhar para dentro do
carro, Gleidson está compenetrado ao volante. Suely olha para frente. Manhã de sol.
Descampado. Uma árvore solitária se destaca no horizonte. Viagem longa, silenciosa. O
motor do carro chiando.
(...)
97 – Ext. Estrada final 1 – dia
Estrada de lado. A planície se estende ao fundo. Sol. Barulho de motor enche a imagem.
Plano fixo, o ônibus passa em alta velocidade, da direita pra esquerda – corta a imagem. Plano
aberto, longo, documentando tudo: O ônibus que se afasta, a estrada, o amanhecer meio
úmido. A moto que vai logo atrás e persegue o ônibus – se afastando. Uma tristeza e uma
alegria sem fim. Uma placa afixada num arco de metal anuncia: AQUI COMEÇA A
SAUDADE DE IGUATU.
122
8. APÊNDICE
APÊNDICE A - Entrevista de Karim Aïnouz para a revista Trip
(Disponível em: . Acesso 06 de dezembro de
2016).
Por que um dos maiores nomes do cinema nacional foi viver em Berlim?
Praia do Futuro, afinal, é ou não é autobiográfico? O personagem principal, assim como
você, é de Fortaleza e se muda para Berlim... A coisa mais autobiográfica de todas é essa
de sair de casa e ir para o mundo. Claro que o filme é sobre a minha casa e sobre a casa onde
eu decidi viver. Mas é mais amplo. É sobre quando você sai de casa. Acho que, quando você
sai, não pode mais voltar. E eu saí de casa muito cedo. Fui para Brasília, Nova York, Paris.
Agora estou em Berlim. Eu fui inventando essas casas na vida. Uma amiga dizia que alguém
tem que morar em muita casas para não ter uma vida chata. E eu acho que é verdade. A coisa
central do filme é sair de casa e se reinventar.
No filme, o personagem desaparece e inventa uma nova vida. Essa é uma fantasia
sua? Eu sempre tive vontade de sumir. Essa é uma fantasia. Começar sem passado. Isso é
impossível, o passado sempre volta e te assombra. Eu queria, precisava, filmar Berlim. Esse
filme só podia ser aqui. Esta cidade é nova. Filmei por amor. Filmar, para mim, é foder o
lugar. Tenho que ter tesão. E precisava fazer isso com Berlim.
O que faz você se apaixonar por uma cidade? Coisas pequenas. A voz do metrô, por
exemplo. Eu coloquei no meu filme duas vezes. É tão lindo... Queria também filmar meu
bairro. E os terrenos baldios, que eu adoro. Berlim está sendo construída ainda. Tem a coisa
das bombas... Hoje eu estava voltando do médico, andando por uma rua que conheço. Olhei
para dentro de um portal e era um lugar que provavelmente foi bombardeado. Olha isso!
Quando morei aqui em 2004, escrevi o roteiro de O Céu de Suely, mas fotografei muito a
cidade. Tenho centenas de fotos. Esse filme foi como voltar para essas fotos. Eu gosto dos
sons, dos não lugares. Falar que é um hino de amor à cidade é muito pretensioso. Mas
digamos que eu escrevi uma carta.
E é uma carta de amor a Fortaleza também? Não para Fortaleza. Mas para a Praia do
Futuro. Esse era um lugar muito importante na minha infância, e é uma praia que está
acabando. O filme começa com um cara olhando para o horizonte. Ele é salva-vidas, mas a
praia é vazia.
Você era tipo esse menino quando morava em Fortaleza? Outro dia achei uma coisa
interessante na casa da minha mãe. Ela vinha para a Europa todo ano, porque é pesquisadora
de bioquímica. Achei um livro que eu fiz assim que comecei a escrever, com 6 ou 7 anos. Ela
ficava tipo dois meses fora e me mandava muito cartão-postal. O primeiro livrinho que eu fiz
para a escola foi com os lugares que eu queria ir. Eu ficava com a minha avó. E morria de
inveja [risos]. Tinha a coisa do meu pai também...
123
Qual é a história do seu pai? É uma história muito louca! Meu pai é de uma tribo da Argélia.
Ele largou a gente e foi para a Argélia, depois para a França. E ficava me mandando cartão do
mundo todo. Ele era engenheiro, ia para Tóquio, Arábia Saudita, só esses lugares
sensacionais. Na verdade ele queria que eu fosse encontrar com ele. Mas minha mãe não
deixava, tinha medo de eu ir e não voltar. Eu tinha esse imaginário do mundo, sempre esteve
muito presente em mim. E, uma hora, eu comecei a rasgar essas cartas do meu pai [risos].
Teve um dia, com 8 anos, que eu rasguei várias. Tipo assim: “O que esse cara pensa? Isso é
uma tortura! Fica me mandando essas cartas e não vem aqui”. Eu já queria ir, mas não podia...
Onde seus pais se conheceram? Meu pai conheceu minha mãe nos Estados Unidos. Minha
mãe fazia doutorado e ele, mestrado. Isso foi nos anos 60, logo depois da Guerra da Argélia.
Na verdade, meu pai foi condenado à morte e meu avô também, pelos franceses. Meu avô
mandou meu pai para os Estados Unidos para ele estudar e ficar protegido. Eles casaram lá,
namoraram por dois anos e foram morar no Colorado. Ele voltou para a Argélia, porque a
situação já estava melhor. E lá ficou. Minha mãe voltou grávida para Fortaleza e eu fiquei
com ela. Esse desejo de ir embora está no meu DNA. Fui criado para me largar. E Berlim é a
minha ultima parada. Por enquanto, né [risos].
Você pensa em se mudar daqui? Não acho que saio daqui tão cedo, viu? Tenho uma rotina
tão gostosa, estou tão feliz... Mas viajo o tempo todo. Eu falo: “Vou ficar três semanas sem
viajar”. Mas não consigo.
Por que não? É esquizofrênico. Estou sempre falando: “Que legal ficar aqui, vou ficar dois
meses sem viajar”. Aí de repente aparece uma coisa para fazer, eu aceito e entro no
avião [risos]. Tipo amanhã eu vou para Rennes, na Bretanha, para uma retrospectiva. Na
verdade, não precisava ir. Mas eu não aguento. Pegar avião é tão gostoso! Estou coordenando
também uma oficina em Fortaleza, então vou para o Brasil a cada dois meses. Isso para mim é
perfeito, porque tem a parte da ruptura que eu adoro. Aqui eu meio que me escondo. É muito
fácil de desaparecer. Estamos no leste, longe. Mas estou muito presente em Fortaleza. Acho
que eu nunca fui tanto ao Brasil desde que moro fora. É incrível. E o avião parece que é um
trem.
Você não fica cansado de pegar tanto avião? Não. Eu adoro avião! Adoro! Quando chega o
táxi para me levar para o aeroporto é o momento de maior felicidade da minha vida. Essa
viagem para Rennes, por exemplo, é ótima, porque tenho que pegar um avião, depois um táxi,
ir para a estação de trem... Tudo isso em uma viagem que vai demorar só 3 horas.
Então você gosta de viagem que demora? Adoro! Amo conexão. E amo ainda mais perder
conexão. Juro [risos]! Eu amo hotel de aeroporto. Minha vontade é ficar um ano entrando e
saindo de avião. Tô amando que nessa viagem para a França tenho 4 horas
no [aeroporto] Charles de Gaulle. Já estou pensando no que vou escrever lá, planejando.
Adoro viagem pingada [risos]. Essas de ir para o Brasil, amo. Faço Berlim, Munique, Lisboa,
Fortaleza. Eu amo, amo mesmo.
Você gosta de trocar de avião? De fazer conexão? Sério? Sim, é meio louco. Mas eu adoro.
Na volta tem 6 horas de espera no aeroporto. É uma casa para mim o aeroporto de Lisboa.
124
Mas paraíso para mim mesmo é o aeroporto de Frankfurt. Amo o aeroporto de Frankfurt.
Amo [gritando]!
E o de Guarulhos? Não gosto. É muito vermelho e marrom. Prefiro ir por Fortaleza para não
ficar preso em Guarulhos. Mas eu gosto de voo longo, de tomar café da manhã. Não ligo para
classe econômica, nada disso. Eu me preparo. Entro, brinco de casinha. Tenho um kit. Coloco
aquele travesseirinho que eu assopro, a máscara e o cinto. Quanto está taxiando, eu já dormi.
Adoro! E gosto cada vez mais porque não tem telefone, internet. São os poucos momentos em
que a gente consegue desligar. E avião tem outra coisa maravilhosa: a gente não tem que
controlar nada! Os outros que controlam. Se atrasar, se cair, não é problema nosso. Estou
entregue. Se tiver trânsito e eu perder o avião, é culpa do táxi, não minha. Pego outro. Eu sei
que é meio maluco. Mas eu amo [risos]. Imagina, horas sem responder e-mail! Isso é
maravilhoso!
Você tem fobia de receber e-mail? Tenho visto muita gente sofrendo disso hoje em dia. Não
gosto de receber e-mail. Você já recebeu um com alguma notícia boa? Falando que você
recebeu uma grana, ganhou um prêmio? Nunca. É sempre um pedido, uma cobrança. A carta
tinha uma coisa bonita, de contar história. E-mail é sempre cobrança. Coisa que você tem que
resolver. Você nunca recebe um e-mail que você se deleita. É muito chato. E isso de ter
pessoas com acesso direto é muito louco. Eu não consigo não responder. Sofro com isso. É
horrível. "Eu não tenho tanto conhecimento de cinema assim. Não tenho vergonha de falar
isso"
Você disse que gosta de não ser o responsável por controlar as coisas quando viaja. No
set você tem que controlar tudo, não? Sim, eu concentro tudo. Sou centralizador. E, quando
não estou, parece que dá errado. Estou na ideia, no roteiro. Em todos os processos. Tenho
tentado não estar com as duas mãos no processo. Mas é difícil para mim. Preciso fazer teste
de elenco. Preciso estar perto. E, por exemplo, eu superencano com o pôster. Por isso eu acho
que eu não conseguiria fazer um cinema comercialzão. Meu pôster normalmente não é o mais
comercial. Eu fico pirando. Fiz com um cara e ele, de julho a novembro, me mandava coisas.
Eu estava no avião, no mais gostosinho, de Lisboa para Frankfurt. E quando cheguei em
Frankfurt, como sempre, tive uma epifania! Aqueles corredores de granito, a voz daquela
mulher em alemão. Aí pronto. Veio a ideia do pôster. Eu gosto de controlar, gosto, sim, de
mandar. Adoro mandar. Eu fiz colégio militar, né?
Como assim? Fiz colégio militar, vê se pode? E por ideia minha. Imagina, minha mãe era de
esquerda e não queria de jeito nenhum. Fiz por vontade própria, para me rebelar, né? Imagina,
coitada da minha mãe, dando aula na universidade, tendo que falar que o filho estudava no
colégio militar. Imagina que vergonha. Claro, um ano depois eu desisti. E ela não deixou.
Falou: agora fica até o final!
E era horrível? Cara, deve ter sido. Mas eu não lembro de ter sido horrível, não. Tenho uma
coisa Pollyanna com as memórias e acho que tudo foi meio bom, apesar de que deve ter sido
meio ruim [risos]. Mas tinha um lado legal. Aprendi muita disciplina. E isso é fundamental
no set. No set você tem que ser militar.
125
Qual a parte do processo de fazer um filme que você mais gosta? Eu gosto de tudo. Gosto
do ofício. Mas acho que o que mais gosto é a montagem. É uma hora de se recolher. Você fica
igual a um pintor. Você tem aquele material e pode mudar tudo, se quiser. Eu gosto dessa
coisa do controle. E no set você não tem. Tudo pode dar errado. O ator pode cair, pode
começar a chover. Em última instância, você não tem controle nenhum.
Quando você decidiu fazer cinema? Quando eu era adolescente nem passava pela minha
cabeça fazer cinema. Essa profissão não existia. Então, como queria sair de casa, resolvi fazer
arquitetura. Queria ir para São Paulo. Mas eu tinha uma prima em Brasília, por isso fui morar
lá. Minha mãe não tinha dinheiro para me bancar em São Paulo. Depois de dois anos em
Brasília pensei: “Nem morto, preciso sair daqui!”. E fui continuar a faculdade em Paris, foi
quando eu encontrei meu pai. Tive que voltar porque a minha mãe não me deixou ficar, mas
fui para Brasília. Para Fortaleza, mesmo, nunca voltei. Acho que a gente só volta para casa
para visitar mesmo.
E depois você foi morar em Nova York... Um dia meu pai me deu um presente. Ele me
mandou um cheque de US$ 5 mil. Imagina, US$ 5 mil para um adolescente! Eu fui para os
Estados Unidos para trocar o cheque, vê se pode! Porque tinha câmbio negro, aquelas coisas.
Você acha que eu voltei? Claro que não, né? Eu tinha 21 anos e estava em Nova York com
US$ 5 mil na minha mão. Comecei a fazer mestrado em arquitetura e a fazer uns cursos de
teoria de cinema. Mas não era para fazer cinema. Nem tinha tanto interesse no assunto! Era
mais para estudar psicanálise, arte, outras coisas. Aí fui me encantando, mas pelo viés teórico.
Fiz mestrado em cinema e, na hora do doutorado, comecei a encher o saco de tanta teoria. E vi
que era possível fazer. Conhecia pessoas que faziam curtas, essas coisas. Imagina, ninguém
no Brasil fazia isso. Nem existia cinema no Brasil!
E você começou? Entrei em um projeto de estudo legal e conheci o Todd Haynes [diretor
independente americano]. Aquilo me deixou muito encantado. Pensei: “Tem gente fazendo
filme com boneco, que legal”. Sabe o que eu fiz? Bati na porta da casa dele e pedi um estágio.
Ele aceitou na hora. Fui para limpar lata de lixo, claro. Mas foi maravilhoso. Eram pessoas
idealistas, que faziam cinema para mudar o mundo, tinha um projeto coletivo. Eu até hoje
acredito nisso, em trabalhar com amigos. Isso foi fundamental para a minha formação.
Sempre faço cinema com idealismo. Ele era guerreiro. Fazia filme de US$ 80 mil com efeito
especial. Acho que continuo a fazer cinema por causa dessa experiência.
E cinema dá dinheiro? Lembro que esse filme dele deu dinheiro. Custou R$ 80 mil, e deu
R$ 300 mil de bilheteria. Comecei a aprender um pouco sobre mercado e vi que o cinema
poderia ser uma coisa viável. Aí pensei: “Também posso”. E comecei a fazer meus curtas.
Mas não era um projeto de carreira. E não tenho tanto conhecimento de cinema assim. Não
tenho vergonha de falar isso.
Você nunca foi um cinéfilo? Não. Quando eu morava em Brasília, o lance era ir ao
cineclube. Eu ia, mas não porque eu era cinéfilo. Eu ia para paquerar, porque era sexy. E no
meio-tempo, claro, fui me encantando, vendo ciclos de Herzog, um monte de coisa. E quer
saber? Até fazer Madame Satã eu não sabia nada de cinema [risos]. Foi um blefe [risos].
126
Se você não sabia nada de cinema, como conseguiu levantar dinheiro para o filme? Eu
“obcequei”. Sou muito teimoso. Comecei a pensar que as pessoas deveriam conhecer a
história daquele cara, me apaixonei pelo Madame Satã. Achava que era um absurdo todo
mundo saber sobre Chateaubriand, Getúlio Vargas e não saber sobre ele. Eu sou teimoso.
Muito teimoso. Encarei isso como uma missão: “Tenho que contar a história desse cara!”. E
achei que pelo cinema era a maneira mais glamourosa de contar. Fiquei seis anos tentando,
enchendo o saco das pessoas. Uma hora desisti e resolvi estudar business em Nova York.
Pensei: “Estou louco, estou há seis anos tentando fazer essa merda. Chega!”. Aí começou a
entrar dinheiro... "Achava um absurdo todo mundo saber sobre Chateaubriand, Getúlio
Vargas e não saber sobre Madame Satã"
E por que foi um blefe? Eu trabalhei em uns três filmes em set e era um péssimo assistente
de direção. Trabalhei com montagem por muito tempo, era bom, mas era péssimo como
assistente. Como montador, comecei a ver muito filme, alugava mesmo, em VHS. Mas nunca
tinha feito set. Fiz o dever de casa, muita pesquisa, storyboard. Mas, quando eu cheguei no set
no primeiro dia de filmagem, não sabia o que fazer. E, menina, eu tinha mobilizado dezenas
de pessoas! Não era um orçamento de R$ 80 mil, era uma produção de R$ 1 milhão! Estava o
Walter Carvalho, era uma produção de uma festa, então tinha bicho, umas frutas. Fugiu do
meu controle. Eu não conseguia fazer. Sabe quem salvou? O Lázaro Ramos, que fez o
Madame. Ele estava fazendo aquilo com tanta verdade que cumpri o dia.
Voltou para casa desesperado? Pensei que tinha jogado tudo no lixo, né? Não tinha
experiência. Fiz planos sem foco. Foi ridículo [risos]. No dia seguinte, a gente filmou em uma
delegacia de polícia. E aí eu pensei: “Agora eu vou fazer tudo direito”. E fiz. Quando cheguei
na linha de montagem e vi como tinha ficado, usei coisas do primeiro dia no filme. Porque
podia não ser correto, mas tinha muita verdade. Eu aprendi fazendo o filme. Eu não sabia o
que era lente. Pensa que absurdo! E eu devia saber, né? Vamos combinar? Como eu me meti a
fazer cinema sem saber isso [risos]?
E agora, você sabe? Fui aprendendo. Tenho um domínio muito maior do cinema do que tinha
antes. Nesse filme, acho que já dá para perceber que eu tenho um domínio maior.
Mas você não tinha em O Céu de Suely, seu filme mais premiado? Não, quer dizer, acho
que eu tinha bem mais ou menos, né [risos]? Mas aí volto para esse meu começo de pessoas
fazendo filme por idealismo. Sei lá, se você faz de verdade, acaba dando certo.
O que você acha da atual situação do Brasil? Acho que não está desesperadora, está melhor
do que foi em muito tempo. Quando a gente era criança, tinha aquela coisa: o FMI, a inflação.
Mas, ao mesmo tempo, acho que as coisas estão muito estranhas. E não é só no Brasil, é no
mundo. Eu fico abismado com essas passeatas na França contra o casamento gay. Gente, o
que está acontecendo? E o número de crimes homofóbicos no Brasil, esses Felicianos? Acho
que tem uma virada à direita muito grande. Eu realmente não consigo entender o que está
acontecendo. Sempre acho que a história anda para a frente, e isso não está acontecendo. O
mundo anda muito conservador, esquisito. Não estou entendendo o projeto do Brasil. Existe
um plano para o futuro? Existe um projeto para São Paulo? Existe transporte público,
arquitetura? Não, deu tudo errado. Então, é isso, está tudo melhor. Mas, ao mesmo tempo, não
estou conseguindo decifrar certas coisas. Acho que a gente tem que olhar com cautela. Vai ver
127
é só um momento estranho. O Brasil cresceu no susto. Ninguém imaginava que o país fosse
crescer economicamente, nem em sonho.
E nesse filme você fala do amor entre dois homens... Eu faço questão de falar dos temas
que me interessam. Acho que as pessoas estão com muito medo e tento mostrar isso. O filme
mostra, sim, uma cena de sexo forte entre dois homens. Eles estão tentando se salvar. Mas
quis falar sobre homem. O Céu de Suely e Abismo prateado são sobre mulheres. As mulheres
são muito importantes na minha vida. Fui criado pela minha mãe e pela minha avó. Mas tive
essa vontade de falar sobre o masculino. De mostrar que homem chora, sente, sofre, se ama,
se ajuda, se fode. Quis, sim, fazer um filme masculino. Praia do Futuro só tem três
personagens. Mas eles passam por experiências que a gente não associa à masculinidade.
Fiquei com vontade de mostrar homem marrento, mau, rebelde. Tem homem que é super-
herói, homem que é covarde. Sempre quis fazer um herói covarde, acho isso bonito. Pensa,
peguei um salva-vidas, um clichê de um super-herói, e fiz esse salva-vidas fazer bobagem.
Em todos os seus filmes você fala sobre viagem... Todos os meus filmes falam sobre a
mesma coisa: viagem e abandono. Esse resolvi contar de outra maneira. Agora, meu sonho é
fazer um “Estou em um momento da vida em que me sinto mais livre para experimentar”.
Antes eu pensava que tinha que fazer um cinema com olhar crítico sobre o mundo, ainda acho
isso. Mas agora acho que estou mais livre.
Você é filho único? Eu sou filho único, mas tenho uma irmã. Minha mãe tem o maior
problema com isso. Ela viajou uma vez para Paris e descobriu que o meu pai tinha se casado
de novo e tinha uma filha. Ou seja, meu pai é bígamo, porque nunca se separou da minha
mãe. Eu tenho uma boa relação com meu pai. Quando vou a Paris, janto com ele. Mas é uma
relação meio distante.
Você é muito próximo da sua mãe? Totalmente. Muito mesmo. Ela está velhinha agora e
doente. E, como sou filho único, tomo conta de tudo. Filho único é tão difícil, né? Às vezes,
acho que devia ser proibido por lei. Essa é uma das razões de eu fazer esse trabalho em
Fortaleza. De dois em dois meses, vou ver a minha mãe, fico na casa dela, levo no médico,
tomo todas as decisões. Estou aqui em Berlim, mas, se ela precisar de mim, vou para
Fortaleza correndo.
Você está casado com o Mario (Brandão, artista plástico) há muito tempo. Isso te dá
segurança? Totalmente! Imagina, estamos juntos há dez anos. Nos conhecemos em Nova
York. Tenho para onde voltar nesta minha vida louca de viajar o tempo todo, isso é muito,
muito importante para mim. "Tenho para onde voltar nesta minha vida louca de viajar o
tempo todo. Isso é muito, muito importante para mim"
Às vezes você se arrepende de morar fora do Brasil? Olha, vou te contar uma história. Eu
fiquei quatro anos obcecado, querendo voltar para Berlim. Convenci o Mario, que não estava
assim tão certo. A gente estava morando em São Paulo e eu estava com um trabalho
estável [fazendo a minissérie Alice, para a HBO]. Mas desalugamos o apartamento e
empacotamos tudo. Tive um ataque. Olhava aquele apartamento todo empacotado e falava
para o Mario: “Meu Deus, por que a gente está fazendo isso? Estamos loucos, estava tudo
bem aqui. Por que estamos indo?” [risos]. Mas, assim que eu cheguei, vi que tinha feito a
128
escolha certa, e não penso em ir embora tão cedo. Hoje estou muito feliz, fui ao médico e ele
disse que estou com a saúde ótima, que posso viver mais 50 anos. Aí vim no metrô pensando:
“Que ótimo, eu posso viver mais 50 anos em Berlim” [risos].
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APÊNDICE B -Entrevista de Karim Aïnouz para a Revista Cinética
(Disponível em: . Acesso 06 de
dezembro de 2016)
A política do corpo e o corpo político - o cinema de Karim Aïnouz
Por Ilana Feldman e Cléber Eduardo
Cinética: Grosso modo, a biopolítica hoje diz respeito ao modo como a vida se tornou o
núcleo da política, da economia e da produção audiovisual contemporâneas, resultando em
um crescente valor de mercado que essa idéia de “homem ordinário” e de “autenticidade”
vem adquirindo. Por que essa ascensão do homem ordinário? Por que essa ascensão dos
reality shows? Por que essa demanda por autenticidade? A performance da autenticidade
pauta hoje a ponta do cinema brasileiro. Pois existe uma valoração daquilo que supostamente
se aproxima, da maneira mais fiel possível, ao que é a vida. A autenticidade hoje é um valor
artístico e um valor de mercado, seja através do documentário, seja através da ficção, que se
cerca de uma série de procedimentos para conseguir esse efeito de captura da vida. Isso está
muito valorizado na agenda contemporânea.
Karim Aïnouz: Eu ganhei um prêmio com O Céu de Suely no festival de Mar del Plata, na
Argentina, e a menção que justificava a premiação do filme dizia que ele tinha uma relação
muito forte com o real. Comecei a pensar que existe um conjunto de filmes brasileiros
contemporâneos que tentam captar o “real”. E eu acho que me coloquei de forma errada
quando falei de O Céu de Suely, porque, na realidade, eu nunca tive a intenção de fazer um
filme realista. Na ocasião, eu disse em entrevistas e a críticos que os atores moraram na casa
onde eu filmei, que o roteiro era reescrito o tempo todo, que havia improvisação, que a gente
conseguia filmar de uma maneira discreta, podendo usar quem estava passando no lugar.
Comecei a ouvir esse discurso [sobre “captar o real”] e pensei: “peraí, tem alguma diferença
aqui entre o que eu fiz e esse discurso”. Se em Madame Satã havia um personagem de
exceção, heróico, em O Céu de Suely eu queria muito fazer um filme sobre um personagem
comum. Quando passou pela primeira vez no Festival de Veneza, o primeiro embate crítico
que eu tive foi em relação ao Neo-realismo italiano. As pessoas diziam que o filme seguia a
tradição neorealista. Porque existe um filme italiano da tradição neo-realista chamado La
Riffa, em que havia o assunto rifa no filme, então O céu de Suely ficou eternamente
amalgamado por essa perspectiva neo-realista. Quando a gente olha para a tradição do Neo-
realismo, a construção da dramaturgia era sempre via questões financeiras, uma questão
objetual. O conflito do personagem era o que ele podia ter ou não ter. Então houve uma crítica
da Variety que descrevia o filme como se fosse a história de uma menina muito pobre, com
uma vida muito dura, que tinha que conseguir dinheiro para ir embora. Na verdade, o filme
para mim nunca foi nada disso, mas é engraçado como ele foi recebido dessa maneira. Para
mim, o filme era a história de uma pessoa comum que tinha um problema afetivo muito forte.
Ela tinha então que resolver isso de algum jeito e resolve atrapalhadamente, da forma que ela
resolveu, para poder viver uma outra vida. Quando eu comecei a pensar no Céu de Suely, eu
queria falar do anônimo, porque eu via que o anônimo nunca era representado no jornalismo
cotidiano, embora o Big Brother já existisse naquela época. Eu ficava muito curioso de ver
como era o problema afetivo de alguém que não tem dinheiro. Não como era a vida dele por
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não ter dinheiro, mas como era a vida cotidiana de uma pessoa que vive numa situação
financeira que não é confortável, mas que não é miserável também. Aquelas estratégias que
eu usei para fazer o filme, em nenhum momento eram para fazer um filme que fosse perto da
“verdade”, mas sim uma maneira de eu ter um material com o qual eu pudesse criar um
discurso na montagem. Que é um discurso completamente construído, completamente
artificial. O maior insulto para mim era quando diziam que o filme tinha “uma coisa
documental”. O que é “uma coisa documental’? Eu sinto que a gente está criando um discurso
em que as coisas se colapsam. Por que documental é o quê? Reportagem de televisão? É esse
que é o registro que de alguma maneira é fiel ao real, é autêntico e capta a verdade? Porque
quando se fala de uma nova vertente do cinema brasileiro, eu não acho que é documental, mas
sim reportagem de televisão. É muito diferente do documental. A única diferença do
documental para a ficção é que você não faz take dois. Mas há uma escolha, um recorte. Eu
estou dizendo tudo isso porque eu tenho uma grande resistência ao cinema que se pretende
“flagrar o real”, que pretende ser um não-olhar, ser um acidente. Eu até procuro o acidente
quando estou encenando, acho que é importante porque ele tem algum frescor, mas você pega
esse acidente e constrói um discurso a partir dele. É muito diferente de você pegar um
acidente bruto. Acidente bruto são as câmeras da CNN ou os caras que mandam um filme de
celular sobre a bomba que caiu hoje na Argélia. Acho muito perigoso esse discurso. Muito
delicado enquanto postura política, porque parece ser uma postura neutra, mas na verdade ela
não é.
Cinética: Em Céu de Suely, há uma tentativa de integrar experiências da personagem ao
espaço, mas buscando reter aquelas experiências em vez de transformá-las em sintomas de
ambiente...
Karim Aïnouz: Tem a ver com o meu próprio desejo de documentar! Eu não nego meu
desejo de documentar...
Cinética: E aí está a matéria-prima para o filme ser vinculado a uma idéia de realismo. Mas
não a um realismo que vai fazer uma interpretação da realidade, localizar de onde vêm os
problemas dela. Um realismo mais centrado no fenômeno da experiência.
Karim Aïnouz: Na experiência em si, exatamente...
Cinética: E isso é uma outra vertente do cinema hoje, em que se tem uma preocupação com a
experiência. Os irmãos Dardenne, por exemplo. Eles não estão interessados na origem do
desemprego da Rosetta. Eles estão interessados na tragédia que é o desemprego para a
Rosetta, a experiência dela...
Karim Aïnouz: Há uma coisa da repetição ali, em Rosetta, que é de uma outra ordem. Aquela
coisa das botas, em que ela tira e põe as botas quando sai daquele lugar, repete-se no filme. É
diferente da questão da causalidade. É da ordem da experiência. Tanto que o som, se você for
ver o som de O Filho, você ouve o barulho da respiração, o cara está respirando lá em
primeiríssimo plano. São os barulhos do corpo, o quanto o corpo está sentindo em mexer
naquelas madeiras, colocá-las naquelas pilhas. É diferente, é outra coisa. Utopia no
deslocamento
Cinética: Em Madame Satã, Satã usa o corpo para se impor ao espaço e para lá permanecer.
Já em O céu de Suely, Suely vai usar o seu corpo para sair de seu espaço. Existe esse vínculo,
embora ambíguo e não fechado, entre o deslocamento físico e uma certa potência de vida,
131
uma certa abertura para o desconhecido que pode ser potente. E pelo que sabemos de Alice
[série que está sendo realizada por Karim Aïnouz para o canal HBO], é a confirmação dessa
potência. Seria como se a Suely tivesse chegado ao Sudeste, e você a estaria acompanhando,
mostrando que há uma potência aí. Haveria então de sua parte um certo elogio à mobilidade?
Seria um projeto seu anterior aos filmes ou isso vai saindo das dramaturgias? Karim Aïnouz:
Eu não acho que seja um projeto deliberado. Há um projeto deliberado que é a afirmação da
vida, uma afirmação da vida que se exerce no caos, na desorganização, no não-planejamento.
Isso tem. E é curioso falar isso, pois estou desenvolvendo um filme novo que é muito fruto do
Alice, não enquanto conteúdo, mas enquanto processo. Porque quando eu comecei a fazer
Alice eu estava sem nenhum projeto de longa, estava muito desencantado, e este ano inteiro
eu fui encontrando, sem nenhuma aflição, sem nenhuma angústia, o que realmente me
interessava em falar. E nesse projeto há, de novo, uma questão do deslocamento muito forte,
um personagem muito forte e uma perspectiva do porvir. Na realidade, é um projeto que
começa numa praia no Ceará, que se chama Praia do Futuro, onde eu fui criado, e termina em
Berlim. Eu nem vou contar a história pois não sei direito qual ela é, mas eu tenho uma
intuição sobre os personagens. A primeira parte do filme é a história de um cara que trabalha
como salva-vidas nessa praia, que é a praia com o maior número de afogamentos do Brasil. E
a segunda parte do filme, que começa em Hamburgo e termina em Berlim, é a história de uma
personagem que está nessa primeira parte, mas que vai pra Hamburgo atrás de algo, que se
descobre ao final que é um irmão dela que morreu. Acho que é uma coisa muito intuitiva.
Nesse filme novo, eu não sentei e pensei “eu quero fazer um filme sobre isso”. Eu queria fazer
um filme sobre uma praia, que era uma praia utópica e distópica. É como se a Barra da Tijuca
[na zona oeste do Rio de Janeiro] não tivesse dado certo. Era um projeto imobiliário da
década de 70, que na década de 80 faliu, porque a salinidade que havia no ar era muito alta,
então os prédios começaram a se desintegrar. Portanto, para responder sua pergunta, eu não
acho que há um projeto consciente, ou melhor, deliberado. Mas eu acho que tem a ver com
certo desejo de anarquia, no final das contas. Primeiro, porque acho muito importante deixar
os personagens, no fim de cada filme, num pequeno abismo. Acho que tem que haver um “a
seguir”, embora eu não me interesse sobre o que é esse “a seguir”. A Suely, por exemplo,
tinha que ir para um lugar que, para ela, seria melhor do que o lugar em que ela estava. Aí eu
soltei “Porto Alegre”, por ser o lugar mais longe onde ela podia chegar saindo do Ceará em
direção ao sul, e por causa do nome, porque ela estava vivendo em um lugar onde não tinha
água e que era no interior, então eu queria um lugar que tivesse um porto, onde houvesse água
e que fosse alegre. É simplesmente uma pequena tradução de uma pequena utopia da
personagem. A personagem vai atrás de uma utopia. Berlim, nesse filme novo, é um lugar que
eu acho encantador. É quase como se fosse Porto Alegre de alguma maneira. O Paixão
Nacional, um curta que eu fiz há alguns anos baseado num fato real, era sobre um garoto, que
era flanelinha no Galeão, que tentou fugir do país dentro de um avião, mas se escondeu no
compartimento de carga e morreu congelado. Seu corpo foi encontrado na Europa. E o filme
conta essa trajetória. O filme dura nove minutos, porque é o tempo do corpo congelar e perder
a memória. São nove minutos da memória desse menino indo embora. Mas é quase como se
eu o absorvesse e permitisse que ele tivesse uma experiência transformadora, a partir do
momento em que ele fica dormente. Então, na realidade, há isso nos filmes. Eu nunca tinha
pensando nisso direito, mas há esse desejo de catapultar o personagem para um lugar abissal
132
onde ele tudo pode, onde tudo vai ser possível. Eu também acho que é muito violento,
enquanto alguém que imaginou aquilo, eu descrever o que é o possível. Mas é verdade, está
em todos os filmes mesmo.
Cinética: Nos últimos 12 anos, essa demanda do exílio, a necessidade de partir, tem sido
muito recorrente na dramaturgia audiovisual brasileira. O que é curioso porque não é um
momento histórico em que isso está sendo uma questão para nós. Se fosse na década de 70,
seria o exílio político...
Karim Aïnouz: Eu estava pensando hoje no último plano de Matou a família e foi ao cinema
[de Julio Bressane], por exemplo. Acho que são exílios diferentes. Até, por exemplo, no filme
do Walter [Salles, Terra Estrangeira], para mim não é o exílio enquanto estado-nação. Acho
que Terra Estrangeira fala de um exílio que é um descontentamento com o aqui e agora. Isso
eu descobri depois que O Céu de Suely estava pronto, que é um exílio utópico.
Cinética: Por isso a “demanda” de exílio, porque não importa o lugar onde você vai chegar,
porque a demanda vai continuar existindo para você partir de novo. É uma demanda
existencial e de deslocamento pelo corpo.
Karim Aïnouz: Realmente. Primeiro porque eu acho que existe um esgotamento de utopias
de várias ordens, a partir de 1989, com o fim da União Soviética, com o fim de uma fantasia
social que fosse de outra ordem. E O Céu de Suely também vem muito a reboque de uma
coisa que me aflige demais, que é uma utopia que seja através do corpo e que seja um lugar
que eu não sei qual é. Porque eu acho que existe um projeto de utopia hoje, no Brasil e no
mundo, que é muito assustador, que é uma utopia religiosa: a possibilidade de um exílio para
um lugar sobrenatural. Isso anula qualquer possibilidade de uma utopia física, material,
imanente, não-transcendente. Isso para mim é muito importante em todos os meus filmes.
Que, na realidade, é uma tentativa de utopia material, por mais que não seja explicada, mas
através de seu corpo. Há um desejo meu, que é um pouco programático até, mas é um
programático com certa liberdade, de que o espectador, no final dos filmes, tenha uma
possibilidade de utopia que ele possa exercitar. Um desejo de imaginar um comportamento,
uma experiência, que o espectador possa vivenciar e que não seja transcendente.
O individual como campo político
Cinética: Quando você fala da utopia do corpo, na verdade deixa de ser uma utopia, porque a
utopia lida com o espaço, com o lugar ideal, mas o lugar ideal não vai existir nunca. A utopia
lida com a noção de coletivo e de comunidade, como conceito. E você está fazendo a
afirmação do indivíduo. Ou seja, não havendo a possibilidade de uma transformação da
comunidade, resta ao indivíduo transformar sua trajetória. Essa é, digamos assim, uma pauta
de seu cinema. Mas essa afirmação do sujeito não é, de certa maneira, despolitizante, no
sentido de que, com ela, se abre a mão do projeto de transformação da comunidade?
Karim Aïnouz: Quando penso no cinema enquanto forma de discurso, eu não acho que seja o
melhor lugar para se fazer o discurso do coletivo. Eu não sei como fazer isso no cinema e eu
não sei se acredito no cinema que pretende fazer isso enquanto discurso. Eu me sinto
completamente desarticulado e atomizado. Acho que o experiencial dentro de uma narrativa
audiovisual é mais potente do que um discurso político do coletivo. Há no cinema uma coisa
da sensorialidade e suspensão daquele espaço que é bem diferente da TV. Esse é um discurso
delicado, que pode facilmente ser colocado como um discurso da apologia do indivíduo, do
tipo “se eu mudar, o mundo vai mudar”, essa coisa da microfísica do poder. Mas, ao mesmo
133
tempo, é a única maneira através da qual eu consigo falar sobre algo que me incomoda:
através desse discurso que é o discurso do indivíduo. O meu paradigma para algumas dessas
questões são alguns dos filmes do
Costa-Gavras. Fico pensando se eu queria fazer isso... Mas ao mesmo tempo eu me lembro da
raiva, da vontade que eu tinha de fazer algo quando eu vi Z, aos 15 anos de idade. Então eu
não sei, acho que não encontrei o jeito de se fazer isso. Talvez um dia eu encontre, mas eu
tenho essa intuição de que o cinema não é a melhor mídia para isso. O contemporâneo no
arcaico
Cinética: Chama atenção em O Céu de Suely a relação com dinheiro, com o valor que as
coisas têm, e como aquele universo do sertão, supostamente um universo mais preservado, é
radicalmente atravessado não só pelo consumo como pelos apetrechos tecnológicos. E é
incrível essa contradição entre uma suposta tradição e os elementos da modernidade, que é
uma temática do Jia Zhang-ke muito forte, que está em O Mundo, um filme que é atravessado
por esses sinais da modernidade.
Karim Aïnouz: Eu sempre me incomodei muito, minha vida inteira, com essa imagem do
sertão como espaço mítico. Quando fiz o Carranca com Marcelo Gomes, a gente foi atrás de
um sertão pop, porque achava que havia um apelo pop ali, das cores, por exemplo. Mas era
totalmente intuitivo, vindo de uma reflexão a partir do que a gente tinha estudado antes, lendo
vários ensaios sobre a questão da representação da modernidade e da contemporaneidade. No
sertão há algo muito evidente, que é o fato de que ele nunca se industrializou. A cultura do
gado, especificamente no Ceará, foi marcada por um nomadismo mesmo, com os tropeiros
que iam de um lugar para outro.
Na faixa da Zona da Mata, você tinha uma cultura mais sedentária, por causa da cultura da
cana de açúcar. E depois disso acabou. Com exceção de Recife na década de 50, quando você
teve um movimento de industrialização, o sertão ficou meio paradão ali, abandonado
economicamente, depois desses ciclos de monocultura. Isso para mim ficou muito evidente
quando a gente chegou em Caruaru. Pois há aquela cena da feira de Caruaru no documentário
com o Marcelo, onde realmente havia temporalidades muito diferentes, mas que estavam
aglutinadas ali num só tempo, que era o tempo do agora. Uma coexistência, que é um pouco o
que deve estar acontecendo na China nesse momento, e estou pensando no Jia Zhang-ke e no
Hou Hsiao-hsien. Eu acho que são temporalidades que são muito distantes e que se aglutinam.
Em São Paulo, na realidade, isso não tem nenhum impacto, porque são várias camadas: há a
camada do café, a camada da indústria, depois a camada dos serviços e a camada do trânsito
de objetos que são muito contemporâneos. Lembro que um amigo fez um filme, um curta-
metragem, sobre vaqueiros, em que esses vaqueiros não usavam mais animais, mas usavam
motos para tomar conta do rebanho. Então, para mim, era uma coisa que eu queria muito
implodir um pouquinho, que a gente começou a fazer lá no filme com o Marcelo e que em O
Céu de Suely era muito importante. E o [diretor de arte] Marquinhos Pedroso foi muito
importante nisso, porque ele é um cara muito contemporâneo, muito inquieto, e toda vez que a
gente caía para o folclórico ele nos lembrava que aquilo não existia, que era uma fantasia que
a gente tinha daquele lugar. A gente ficou um tempão ali em Iguatu tentando observar como
eram essas negociações objetuais. A cidade era lotada por lojas de 1,99, com coisas que eram
muito coloridas, mais coloridas ali do que em qualquer outro lugar. Porque ali era tudo tão
monocromático... Então eu comecei a observar como aqueles objetos que eram vendidos em
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Iguatu
se propagavam no cotidiano da cidade, no lugar onde você ia comer, onde ia cortar o cabelo.
Nesse sertão que a gente observou havia um desejo muito claro de se preencher com cor um
lugar que não tinha cor. E que essa invasão de produtos made in Taiwan ou made in China
servia muito bem. Há uma cena sobre isso no Carranca, em um lugar que vende flores
artificiais. Era um jardim que tinha na feira, à noite, só com flores de plástico, e aquilo vende
como água no deserto. Havia esse desejo de olhar para frente e não de olhar para um país que
está sendo dominado pela globalização, que está perdendo sua identidade e que está deixando
de ser autêntico. Na verdade, a autenticidade mora exatamente nesse lugar que é o lugar do
sincrético. A questão é como você se apropria disso e o que você faz com isso.
Cinética: E é muito interessante isso, primeiro, pelos produtos serem made in China, porque
não é uma conexão só simbólica, é uma conexão comercial avassaladora entre o sertão e a
China; segundo, é como esse sincretismo e essas tecnologias estão, no caso de O Céu de
Suely, atravessando o próprio corpo dela. Aquela mecha loura é justamente um signo da
modernidade que opera um deslocamento naquela figura.
Karim Aïnouz: Exatamente. E é um signo estranho, porque é um signo mal acabado.
Cinética: Isso. Ele conota uma precariedade e, ao mesmo tempo, esse corpo “precário” age
sempre como resposta a uma inadequação, seja uma inadequação existencial, seja social.
Karim Aïnouz: Completamente. As roupas, por exemplo. A gente ficou muito preocupado de
que as roupas fossem erradas para aquele corpo. Há uma cidade no Capibaribe, interior de
Pernambuco, que é tomada por indústrias de confecção. E todo dia há uma feira de roupas,
mas só com roupas feitas de tecido sintético, que é o resto, absolutamente inadequado para
aquele clima. Então há o fato das roupas serem muito justas e tal, mas que carrega uma graça.
E como é um tecido vagabundo, mas sintético, ele desbota muito pouco, trazendo umas cores
que são totalmente improváveis, enquanto os modelos são mal desenhados para aqueles
corpos. É como a comida. A comida no sertão é completamente absurda, porque, como não se
tem dinheiro, não se tem carne, come-se muito carboidrato, então o que aquilo faz com o
corpo é muito específico. Então havia uma vontade de brincar com isso, que no sertão é muito
mais flagrante do que em qualquer outro lugar.
Cinética: Nesse trabalho com o Marcelo Gomes, houve da parte de vocês, sobretudo na hora
de finalizar, uma disposição de tornar aquele sertão um território em conexão com outras
regiões do mundo? Porque há momentos em que o filme parece ter sido realizado no Oriente
Médio, sobretudo na trilha sonora...
Karim Aïnouz: No Carranca havia algo para mim muito pessoal. Meu pai é da Argélia e eu
nunca fui para a Argélia. Então a Argélia para mim sempre foi um território oriental, no
sentido de alteridade. Quando fui visitar meu pai, que mora na França, ele me deu um monte
de CDs de um cantor argelino, que é o cantor que está em Carranca. E eu ficava me
perguntando como minha mãe se apaixonou pelo meu pai e vice-versa. Mas quando eu ouvi
aquela música... E então quando eu estava montando o Carranca, lembrei da música naquele
momento em que eles chegam em Juazeiro. E ali eu a usei muito como uma necessidade que
eu tinha de conectar, quase como se os trovadores estivessem cantando ali no sertão. Havia
um desejo ali de dizer que esse lugar não é tão
específico assim, que ele poderia ser um outro lugar no mundo. E é engraçado, porque,
quando a gente começou a fazer o Carranca, a primeira idéia nem era sobre o sertão, era um
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projeto que eu queria fazer com o Marcelo, no qual a gente queria aglutinar um monte de
feiras-livres do mundo inteiro e ver como elas dialogavam, de onde vinha essa matriz de
mercado a céu aberto que vendia coisas “autênticas”. E eu achava que a Argélia, para onde eu
nunca tinha ido, deveria ter alguma coisa muito semelhante com o sertão, então coloquei
aquela música de propósito, para criar um estranhamento. Eu tentava assim entender a relação
que aquele deserto tinha com minha outra origem argelina. E agora, em 2008, vamos fazer
uma nova versão do filme, em longa-metragem, que é a história de uma pessoa que encontrou
aquele material, como se aquele material tivesse sido perdido por alguém que filmou o sertão.
É como se fosse a narrativa de alguém que fizesse aquele percurso dos lugares onde aquele
material foi filmado. Acho que o filme terá um quê de travelogue, sem nenhum fio narrativo.
Será um mosaico de fragmentos. O preço das coisas
Cinética: A questão das condições materiais em O Céu de Suely é muito sui generis: as coisas
têm preço, são valoradas. Então quando a Suely vai comprar a passagem, o trajeto do
deslocamento dela é centimetrado pelo preço; a avó de Suely trabalha num restaurante por
quilo; no posto Veneza há uma placa de promoção em primeiro plano. O valor da rifa, o
tempo todo. Acho isso um tipo de construção absolutamente politizante.
Karim Aïnouz: Isso começou numa leitura do Cidade Baixa com o Eduardo Coutinho. Sérgio
mostrou o roteiro de Cidade Baixa para o Coutinho, e ele perguntou: “mas esse povo não
trabalha não? Eles ficam viajando de barco, ela fazendo programa. Mas quanto custa o
programa? Quanto custa isso e aquilo?”. E aí, em O Céu de Suely, isso me pareceu
importantíssimo. Porque, de novo, voltamos à questão de como se pode falar de questões
políticas e questões de classe. Essa foi uma das maneiras que a gente encontrou ali de falar de
questões objetivas. Acho que as condições de vida de cada um são absolutamente ditadas em
função disso, principalmente num lugar onde a regra básica é o salário mínimo. E então há
uma questão fundamental: mostrar que as pessoas trabalham. Eu briguei muito com os
produtores por causa disso, pois há muitas cenas que não têm função narrativa, mas têm
função descritiva: “essa mulher trabalha num lugar quente, tem que ficar carregando essas
panelas”. É árduo, é fisicamente difícil, o dinheiro não cai como essa chuva que está caindo
aqui. E, curiosamente, nessa série da HBO, Alice, é uma dificuldade falar disso, não se fala de
dinheiro, não há interesse nessa questão. Aí eu fiquei pensando, como um contra-plano, que a
novela nunca fala de dinheiro, ninguém trabalha, só a empregada doméstica. E você não sabe
quanto ela ganha, mas deve ganhar super bem, porque se veste de um jeito... Então para mim
era importante falar do trabalho, de quanto o trabalho custa, o quanto esse custo permite e
quanto isso determina o jeito que você vive. Era importante que isso não fosse a questão do
filme, mas que fosse a trama do filme, que estivesse presente o tempo inteiro. Como é que
alguém que ganha o salário mínimo consegue pagar as coisas? Como é que ela consegue
acordar no dia seguinte? É isso que eu falo da questão de classe neste país. Acho que isso é
determinante do cotidiano de todos nós. A alimentação, por exemplo. Eu fiz um plano
documental em uma dessas passarelas do centro de São Paulo, e eu ficava olhando para essas
pessoas enquanto pensava como elas eram mal alimentadas. Por isso, acho que é fundamental
falar das condições materiais. Em qualquer trabalho que construa um personagem não há
como não se falar disso, porque é isso que determina as coisas ao final do dia. E eu falo isso
sem nenhuma autocomiseração. Teve uma época em que eu morava em Nova York e eu não
sabia direito o que eu queria fazer da vida. Ninguém me mandava dinheiro e eu tinha que
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pagar aluguel, então minha vida virou sobre aquilo. Na realidade, trata-se disso: de como você
consegue pagar as contas, de como você consegue se vestir, que roupa que você consegue
usar, que comida você consegue comer. Talvez aí esteja um jeito de falar dessa aflição e, ao
mesmo tempo, dar conta do coletivo.
Cinética: Dessa forma você vai estar lidando de uma maneira mais prática com o que é a
sociedade na vida cotidiana de uma pessoa. Porque é onde a estrutura política e social
determina a experiência de alguém. A falta de dinheiro, o lugar onde se vive, a estrutura ou
não do lugar onde se vive. Por exemplo, quando Suely chega com o filho na casa da sogra, a
sogra está com um sutiã de alça de silicone, num casebre sem cimento, de tijolo aparente, mas
com uma super geladeira, e ela [a sogra] dá ao menino um controle remoto para ele brincar...
aquilo é de uma sofisticação tão sutil...
Karim Aïnouz: Mas é uma coisa importantíssima. Foi o Coutinho quem me chamou a
atenção pra isso. O corpo inadequado
Cinética: Voltando à questão do corpo, eu sinto que em seu projeto de cinema o corpo é
sempre um elemento de resposta a uma inadequação ao espaço em que vive o personagem. E
a potência que eu vejo nesses personagens vem, justamente, dessa inadequação de um corpo
que não se adapta. Isso me lembra muito uma frase do Godard no Duas ou Três Coisas que Eu
Sei Dela, em que a personagem dizia: “tenho uma subjetividade que me exila e uma
objetividade que me oprime”. Então, como situar um corpo entre a opressão do meio social e
o exílio existencial?
Karim Aïnouz: Realmente há isso em todos os meus personagens, porque eu acho que é uma
condição necessária. No momento em que há uma adequação é a morte. Claro que,
dependendo do personagem isso é dramatizado, potencializado, exponencializado de maneiras
diferentes e por razões diferentes, mas eu acho que não saberia falar de personagens que são
adequados. Eu até gostaria um dia, talvez, seria um grande desafio. Mas não sei o quanto isso
é dramático, o quanto se presta ao discurso cinematográfico. Acho que essa inquietação é
sempre produtiva e, quando ela não existe, é perigoso. Se a gente acha que está tudo ok, tem
alguma coisa errada. No caso do Madame Satã, se trata de uma coisa muito específica, porque
eu queria falar da raiva, de uma postura que não fosse a cordialidade, mas que fosse reativa,
violenta, que não fosse de maneira nenhuma cordial e educada. Já no personagem da Hermila,
há outras cores, é um personagem que é inadequado pelo silêncio, pelo jeito como ele anda.
Ela tem raiva, mas a raiva é filtrada de um outro jeito. Eu acho que tem uma coisa agressiva
quando ela diz “eu vou fazer um sorteio e o prêmio serei eu”. Acho que há uma postura de
confrontação. Esses personagens inadequados possibilitam, então, um ato de confrontamento,
que eu acho, especificamente falando do Brasil, que é uma coisa muito importante. Não o
confronto pelo confronto, enquanto exercício de uma violência meio narcísica, mas o
confronto enquanto atitude promotora de movimento e de mudanças. Não é que eu sinta falta
de confronto nesse país, porque ele é cheio de confrotamentos, mas de um confronto que ande
para frente, que promova uma mudança e que indique que ali pra frente pode vir a ser melhor.
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APÊNDICE C - Carta escrita por Felipe Bragança, em Iguatu, enquanto trabalhou em
O Céu de Suely como Diretor Assistente e Roteirista
(Na época o filme tinha o título provisório de "Rifa-me". Disponível em:
. Acesso 06 de dezembro de 2016.
24/08/05 Iguatu – Ceará
Marina, saudades.
Não sei em quantos dias essa distância se transforma, então não sei prever quando
é que vai conseguir receber esta carta que escrevo às pressas da padaria “Tropikal”, comendo
alguma coisa rápida antes de ir para o set com o Karim.
Hoje à noite a gente completa a quarta semana de filmagem, o que significa que
estamos na metade do caminho. O trabalho no filme há muito ultrapassou as limitações de
uma função e estou completamente imerso em cada cena, cada movimento, cada diálogo... Te
contei que estamos reescrevendo muitas e muitas cenas do filme ao longo das filmagens?
Karim aposta muito no improviso dirigido dos atores e na descoberta emergencial dos espaços
– ensaiamos com câmera várias cenas e a partir dos ensaios redefinimos tons e passagens de
cada cena, de cada espaço. Já virei algumas noites reescrevendo seqüências para o Karim ler
no café da manhã e tchun (!): lá vamos nós para o set colocar as novidades para acontecer.
Isso quando eu não sento num canto do set para organizar no papel a profusão de idéias que
vem das conversas intermináveis com o Karim, das referências e dos afetos que carregamos
com a gente a cada dia.
Karim nutre uma adorável obsessão por tudo o que faz: cada plano, cada tom de
palavra, são pensados e pesados, sentidos, repensados, revistos, procurados em fragmentos de
filmes da coleção de DVDs que ele carrega consigo. Karim é um exemplar raro daqueles
diretores do cinema brasileiro que tem o costume raro de....ver filmes! E de Jia Zhang-ke, de
Hou, de Fassbinder, de Tsai, de Cassavettes e de Iracema vêm vindo os ares que dão o corpo e
o peso ao que ele vislumbra. Porque o Karim parece fazer este filme como quem intui um
tom, uma sintonia, uma radiação. Desde a escolha do elenco a coisa se deu assim: Karim
olhava para Hermila e nela ali via a substância que ele procurava. Não importaram os testes e
os meses de busca, a Suely de Karim se chamava Hermila. Hermila Guedes do rosto
quadrado, os olhos verdes e as pernas tortas. Não à toa, nesse processo de preparação com a
Fátima Toledo os personagens foram sendo moldados aos gestos e corpos dos atores,
ganhando seus contornos, seus tiques, e cada vez mais nos entregamos a encontrar nos atores
o lugar e o tom das personagens que tinham sido escritos antes deles aparecerem. Suely se
tornou Hermila e tomou para si o peso e a responsabilidade de carregar nos olhos um filme
inteiro. E como ela carrega... Hermila, mais do que uma protagonista, foi se tornando a fonte
de luz do filme – uma luz caótica, dura e alegre. Alguém que pode ser um vulto asiático ou
uma pomba-gira num intervalo de frações de segundo. E é isso que Karim procurava, eu acho:
esse desacerto, essa energia incontornável. Ontem filmamos a cena em que Hermila é expulsa
da casa da avó e estou até agora com um nó aqui no peito. No estômago. Fazer um filme para
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os sonhos e para o corpo. Fazer um filme em Iguatu?
Até hoje ouvimos nas ruas a pergunta dos locais boquiabertos: Por quê?
Foi em abril passado que eu comecei a entender, lembra? Quando pisei aqui pela
primeira vez numa visita relâmpago com o Karim e o Walter: Iguatu não existe. É um nada e
ao mesmo tempo é tudo o que existe no mundo. Um desejo imenso inacabado e uma sujeira
de vontades atravessadas, ecoadas, como se sonhos do mundo todo encontrassem aqui o lugar
de se perder...e de deixar as suas sombras. Iguatu é o deserto e o centro do mundo. E o
absoluto e o imprevisível. Um abismo de cores e luzes frias, de néons que são como a resposta
silenciosa ao chão seco em que se pisa, para o céu lavado ao qual se olha.
Uma falta que vai além do material, do dinheiro, de empregos, de futuro – mas um
pulso doído que parece ser o tom nos olhos dos mototaxistas, das meninas bonitas que
perambulam ouvindo Britney e forró eletrônico, nas praças escuras, nas vendedoras das lojas
de televisão, no recepcionista do hotel, no gosto da comida sempre cheia de misturas, moídos
e maionese.
Um caos monótono. Uma monotonia que intui o caos. É tudo falso, fluorescente, é
tudo verdadeiro. E a gente vai se impregnando dessa alegria iluminada por uma tristeza
profunda – como aquela melancolia inevitável de se olhar o mar.
Fazer um filme aqui é como não fazer um filme. É um despedaço e os tempos
longos são pequenos, curtos perto da imensidão. Iguatu não acontece. Karim e Marcos
Pedroso passavam dias e dias olhando a cidade, procurando gestos, tons, caminhos –
entendendo a imagem possível desse formigamento. A história aqui começou ontem, começou
a poucos segundos: não há prédios históricos, fachadas bucólicas, memórias... Narrar um
filme aqui é um desafio do tempo, contra o tempo e para o tempo. Porque não existem
eventos, dados, fatos: existe Iguatu e só.
Tenho pensado muito no Rio de Janeiro. Na maldição da beleza que a gente
carrega na nossa cidade. Iguatu e o Rio não são muito diferentes. Iguatu e o Rio de Janeiro
são tristes. Talvez o Rio de Janeiro seja mais triste que Iguatu. E fazer este filme tem me dado
raiva, angustia e uma vontade odiosa de filmar o Rio. Essa baleia morta na beira d’água – tão
bonita.
Outro dia a gente brincava que o sonho do Karim era fazer um filme asiático em
que as pessoas tivessem muita raiva, tesão, falassem alto e soubessem dançar. A gente ria.
Mas as vezes é mesmo assustador como o cinema de ficção no Brasil contemporâneo tem tido
tão pouco de verdadeiro interesse. Dramaturgia, temporalidade, tom e ritmo: é difícil
encontrar na filmografia brasileira alguma coisa que possa servir de norte para o que o Karim
procura. O vigor estético e a generosidade dramatúrgica que ele intui e tenta alcançar não se
vê em lugar algum do cinema hoje feito no Brasil. Isso dá muita vontade, coragem, mas
também dá uma tristeza absurda de se sentir um estrangeiro.
Suely-Hermila é esse desejo ambíguo de fugir e de enfrentar – de se esgueirar
nessa cidade viva-morta, e emergir dela como uma contração das ruas, do ar. Nem meio nem
agente – flutuações de um tom é que antes musical do que sociológico. Rifa-me (ou “Suely”
como o chamamos carinhosamente) queria ser ao mesmo o rigor e a liberdade, o vigor
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estético e a generosa afetividade. “Documentar um sentimento”, diz Karim. Encontrar a
emoção exata de uma composição apaixonada, às cegas, tateando.
Todo o filme é como a procura dessa sintonia exata em que sobrevive a vontade, a
alegria e a raiva que são de Karim e de Hermila. E Karim grita no set, pede mais: quase salta
na câmera como se algumas imagens precisassem de seu corpo agitado para poderem surgir.
Karim diz que o filme é um filme de amor... Eu vejo aqui um filme de paixão: feito por um
diretor e para um personagem apaixonados demais por tudo que os cerca. O elenco viveu
conosco na cidade por dois meses. Karim quer que não existe interpretação mas que exista
afeto. E que se afete junto à câmera o tempo dessa cidade. Se Madame Satã era a imagem do
claro-escuro, da raiva e da doçura através das máscaras, Hermila é a imagem de uma radiação,
de um sinal colhido no espaço-sideral. Um close como uma imagem intergaláctica – foto de
um telescópio apontado para o inverso dos olhos. Vibrações como imagens colhidas em um
deserto de postos de gasolina e luzes frias. De postes escassos e vultos.
Em pleno sertão cearense, sem chuva e com um céu tão iluminado que parece
tomado por um véu – vive este centro urbano, comercial, com ruas tomadas de jovens de
olhos perdidos e roupas coloridas. Tudo aqui se sorteia, se rifa. Bingos pelas ruas dão prêmios
em dinheiro, DVDs, cestas de sabonetes. Um sertão com o cheiro da gasolina das motos e dos
perfumes agudos das raparigas. Triste. E alegre como nada mais. Como as placas luminosas e
os neons que competem com as noites de lua. Ou os faróis de pick-ups que cortam as ruas
escuras.
Encontrar nas personagens não a chave do entendimento, mas o mergulho no
vozerio. Um vozerio que atravessa e emana de uma só menina: Suely é a vontade de ser tudo
e de ser porra nenhuma, de amar partir e de querer voltar. Uma menina só. De sua avó. De sua
tia. De suas amigas. De seus amores. Do choro de seu filho.
Tudo. Longos planos de silêncio - palavras sussurradas e gritadas. Pouca luz.
Roteiro de pontuações. Diálogos esboçados na sala de aquecimento. Viradas de madrugadas.
Nada está pronto em Iguatu. Tudo já aconteceu. Tudo está ainda para acontecer. Tudo se
resume a uma imagem. Mas nenhuma imagem em paz será suficiente.
Um filme vivido do extremo e na sutileza: como um melodrama, como um filme
de aventura, como um romance de capa-e-espada, como um bang-bang, como uma ficção
científica, como um musical sem música... Tsai, Hou, Jia Zhang-ke, Denis, Sirk, Fassbinder,
Hong, Dumont, Iracema, Wild Bunch e Juventude Transviada. Que Karim carrega nele todo o
tempo como um desejo. E que talvez na tela se realize em beleza. Na beleza que a gente quer
e que procura nos últimos três meses. Que é antes de tudo um sinal da força, do possível, do
vigor e do erro. Do erro que é a fresta, a fresta por onde - na platitude dos planos, na vagarosa
passagem das horas, na solidão, nos vazios, nos quadros quietos e nos travellings
fantasmagóricos, no abandono da luz pequena e da cenografia de impregnações e sem
símbolos - sonhamos saber gerar uma faísca quente, seca, aguda. E dela fazer um filme.
Até meados de setembro ainda falta tempo até eu chegar. Agora tenho que colocar
esta carta no correio antes que Karim apareça aqui buzinando o Uno Branco. A locação e a
sua decupagem escondida nos esperam... No mais, o tempo passando, e essa saudade e
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desgosto pelo Rio de Janeiro aumentando. Vontade de voltar ou de me exilar. Passar algum
tempo em Portugal escrevendo ou em um interior perdido. Um sentimento grande de
expansão, de sentidos aguçados, de corpo disposto. Queria você aqui comigo neste momento
de ebulição. Virei uma maquininha de escrever. Mande um abraço para o Valente – diga a ele
que já sei das boas novidades e que assim que eu chegar no Rio, quero saber do Vórtice, d’O
monstro e de tudo mais. Estou pensando em escrever uma carta como essa para ser publicada
na Contracampo – acho que pode ser bom. Karim topou a idéia. Está tudo apenas começando,
meu amor...Tenho certeza. E nossos amigos, todos, também sabem.
Me encha de idéias e planos assim que eu chegar.
Um beijo,
Felipe Bragança