UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL TRAJETÓRIAS, GRAFIAS E ARTE DE RUA NA CIDADE DO NATAL/RN - BRASIL. JOSÉ DUARTE BARBOSA JÚNIOR NATAL/RN MAIO DE 2019 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL JOSÉ DUARTE BARBOSA JÚNIOR TRAJETÓRIAS, GRAFIAS E ARTE DE RUA NA CIDADE DO NATAL NATAL/RN - BRASIL. NATAL/RN MAIO DE 2019 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL JOSÉ DUARTE BARBOSA JÚNIOR TRAJETÓRIAS, GRAFIAS E ARTE DE RUA NA CIDADE DO NATAL NATAL/RN - BRASIL. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do título de doutor em Antropologia Social, sob orientação da Profª Dra. Lisabete Coradini. NATAL/RN MAIO DE 2019 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede Barbosa Júnior, José Duarte. Trajetórias, grafias e arte de rua na cidade do Natal/RN - Brasil / Jose Duarte Barbosa Junior. - 2019. 390 f.: il. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. Natal, RN, 2019. Orientadora: Profa. Dra. Lisabete Coradini. 1. Pintura e decoração mural - Tese. 2. Imagens da cidade - Natal (RN) - Brasil - Tese. 3. Graffiti - Tese. 4. Pixo - Tese. 5. Antropologia Visual - Tese. 6. Antropologia urbana - Tese. I. Coradini, Lisabete. II. Título. RN/UF/BCZM CDU 75.052(043.2) Elaborado por FERNANDA DE MEDEIROS FERREIRA AQUINO - CRB-15/301 JOSÉ DUARTE BARBOSA JÚNIOR TRAJETÓRIAS, GRAFIAS E ARTE DE RUA NA CIDADE DO NATAL NATAL/RN - BRASIL. BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________ Profª. Dra. Lisabete Coradini – PPGAS/UFRN (Presidente da Banca) ____________________________________________________ Profª. Dra. Glória Maria dos Santos Diógenes – UFC (Examinadora Externa) ____________________________________________________ Profª. Dra. Roselene Cássia de Alencar Silva – UFBA (Examinadora Externa) ____________________________________________________ Prof. Dr. Paulo Victor Leite Lopes – PPGAS/UFRN (Examinador Interno) ____________________________________________________ Profª. Dra. Ângela Mercedes Facundo Navia – PPGAS/UFRN (Examinadora Interna) Aos meus professores, mestres que ao longo de toda minha trajetória escolar ensinaram o valor do saber. À minha mãe, que foi desde sempre referência de humanidade e solidariedade. Aos meus amigos e a Max por serem fonte de tanta alegria. Aos artistas da cidade que, a duras penas, tornam a existência mais atraente e interessante. AGRADECIMENTOS A educação escolar sempre teve um papel fundamental na minha vida, não só pela razão quase óbvia pela qual os pais enviam os filhos ao colégio, mas pela coisa sempre surpreendente que foi para mim o saber, a aula e os professores. Trago de casa a curiosidade que me foi implantada, seja pela enciclopédia do estudante, seja pela cultura material que havia. Mas, aprender as coisas sempre foi tão estimulante e desafiador que criei forte admiração e simpatia pelos professores. Do Ensino Fundamental ao Ensino Médio acumulei tanto o aprendizado objetivo das matérias, quanto o aprendizado da ética profissional. Descobriria ou confirmaria mais tarde, já na universidade, a importância de ouvir a palavra dos mestres e depois a responsabilidade de ser um. Na universidade e, mais especificamente no curso de Ciências Sociais aprendi o valor da dedicação rigorosa aos estudos, lugar onde desenvolvi habilidades e competências que culminaram na minha trajetória profissional. A vontade de saber que tive desde criança e a inclinação que desenvolvi ao longo da minha trajetória escolar pelas Artes, pela História e pela Arqueologia levaram-me, surpreendentemente não a estas disciplinas, mas, à Antropologia, tamanha era a curiosidade de conhecer o universo simbólico, como também para estratigrafar a experiência humana. A experiência escolar na Antropologia, creio eu hoje, moderou meu ímpeto juvenil, ou seja, amadureceu a minha forma de ver, como um processo que amplia a paleta de cores com a qual se apreende o mundo em volta. A disciplina certamente me presenteou com essa ética que é ver e respeitar a diversidade cultural humana. Nesses agradecimentos, portanto, eu não poderia deixar de homenagear esses mestres que vêm me iluminando desde tenra idade até hoje, e creio que me iluminarão pelo resto da vida: Tia Sandra, Tia Wanda e Tia Wanusa do Colégio Bereiano; Professora Rejane (Português), Professora Lígia (História), Professora Meirice (Geografia) da Escola Doutor Manoel Vilaça; Professora Arimar (Português), Professora Aparecida (Português), Professor Josenildo (História), Professora Valdina (Artes) da Escola Edgar Barbosa; Professores: Alípio, Gabriel Vitullo, Maria do Livramento (Orientadora de Monografia) e Edmundo Pereira durante a graduação em Ciências Sociais; Professores (em ordem de oferta de disciplina na pós-graduação em Antropologia Social): Carlos Guilherme, Elisete Schwade, Eliane Tânia, Juliana Melo, Rita de Cássia, Julie Cavignac; também os professores convidados ou os quais eu fui ao encontro: Andrea Barbosa (UNIFESP), Clarice Peixoto (UFRJ), Barbara Glowczewski (CNRS-França), Miriam Grossi (UFSC), Carmen Rial (UFSC); aos membros da minha banca de qualificação, Fernando Manuel Rocha da Cruz (PPGEUR/UFRN), Ângela Mercedes Facundo Navia (PPGAS/UFRN), Paulo Victor Leite Lopes (PPGAS/UFRN), que deram uma contribuição valiosa para as reflexões da presente tese; e mais recentemente na experiência de acordo bilateral entre a UFRN e a Universidade de Bordeaux, França: Dragoss Ouédraogo e Isabelle Gobatto; e também Géraldine Le Roux pelas valiosas contribuições sobre a possibilidade de exposição das imagens deste trabalho. Essa trajetória de educação institucional não é completa sem citar o campo de possibilidades que se cria para a construção de amizades, inclusive aquelas que são duradouras. Ali também se aprende a ética do cuidado de si e do outro e muitas vezes os amigos se tornam irmãos. Aqueles que conheci durante toda a trajetória acadêmica, e mesmo antes, são tantos que minha memória corre o risco de ser injusta. Mesmo aqueles que antes motivaram a entrada na vida acadêmica, como foi a querida Maria Leuça Teixeira Duarte, a minha gratidão é infinita. Faço um agradecimento especial àqueles que permaneceram próximo durante esses 13 anos de universidade e inspiraram tão boas discussões, momentos de lazer fora do campus, como também nos eventos acadêmicos como foram Rafael Medeiros e Gabrielle Dal Molin e, mais recentemente Thágila Maria e Paulo Filho que deambularam comigo na França. Estes, em suas trajetórias também me inspiraram com as suas lutas e com o carinho que tiveram sempre comigo. Um agradecimento especial à Juliara Borges Segata é preciso pela amizade e pelo apoio inestimável durante nossa experiência na organização da 29ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA), que ficará marcada para sempre. Considero que neste mesmo âmbito estão vários colegas de trabalho que passaram a fazer parte da minha vida concomitantemente ao meu ingresso no Doutorado de Antropologia. Por um cruzamento de trajetórias e como resultado dessa prática que sempre me encantou, que é a docência, tornar-me professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN) trouxe-me colegas muito queridos. Esse grupo de professores que se reunia todas as terças para celebrar a vida e o estar juntos enobreceu não só esse dia da semana como o meu ser. Estar junto deles foi, e é até agora, tão “escola” quanto as salas de aulas pelas quais passei como aluno. Pela força que sempre me deram, pelas ironias que me fizeram repensar valores e pelo amor que temos, não poderia deixar de ser-lhes grato. E ainda que as voltas da vida tenham feito alguns de nós caminhar por outras cidades e estados, a memória está viva. À gratidão aos meus mestres, amigos e colegas, junto minha admiração, carinho e respeito pelos estudantes que foram confiados à minha responsabilidade. É com eles, em suas origens, motivações e disposições diversas, que se aprende realmente o que é ser professor e o que é a sala de aula. Com eles também se aprende muito sobre o que é o conhecimento, tanto por uma curiosidade incurável que muitos têm e com a qual me identifico, quanto pelo desdém estratégico que alguns têm nas peripécias quase inexplicáveis do que é ser jovem no mundo de hoje. Minha admiração é sem dúvida recíproca nos feedbacks que muitos dão das nossas experiências coletivas nessa viagem do aprendizado. Meu carinho é sobretudo pela paciência que a maioria tem em ouvir minha voz irritante que sempre amenizada pelo revezamento das muitas fotografias que fazemos e apreciamos, mas também por desejar sempre que se desenvolvam plenamente em suas habilidades. Respeito e encorajo os sonhos que muitos têm e os outros que estão em vias de descobrir, e faço desse agradecimento um voto de esperança de dias melhores para todos. Agradeço à paciência de todos aqueles que aceitaram embarcar nessa empreitada e cuja interlocução foi tão escolar, tão pedagógica, tão esclarecedores, sem eles não haveria pesquisa, texto e nem a alegria que foi conhece-los. Aos artistas que dialoguei e aos que cultivo o desejo de ainda dialogar, meus sinceros agradecimentos. Eu agradeço finalmente ao dedicado trabalho de orientação da professora Lisabete Coradini, ao trabalho minucioso da secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRN (PPGAS), à companhia extremamente agradável dos colegas e amigos dessa turma pioneira de doutorado, e reitero o agradecimento ao corpo docente do programa em sua dedicação milimétrica e pela excelência de seu trabalho. O homem não termina com os limites de seu corpo ou a área que compreende sua atividade imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que emana dela temporal e espacialmente. Da mesma maneira, uma cidade consiste em seus efeitos totais, que se estendem para além de seus limites imediatos. George Simmel A própria Grande Metrópole que observa seu hóspede. Massimo Canevacci The mental world – the mind – the world of information processing – is not limited by the skin. Gregory Bateson Eu mesmo, quando escrevo este texto de que sou, portanto, autor, bem se vê onde se originam estas linhas. Fernand Deligny Caminhar é viajar na mente, tanto quanto sobre a terra: é uma prática profundamente meditativa. Tim Ingold O homem possuía uma fórmula simbólica com a qual transformar a paisagem. Essa forma era o caminhar. Francesco Careri RESUMO Este trabalho analisa a produção das imagens na cidade do Natal/RN – Brasil através do trabalho de artistas locais em seus protagonismos na arte de rua, graffiti e pixo, estendendo a reflexão também para além das fronteiras nacionais. A realização dessa etnografia foi baseada em procedimentos metodológicos como a caminhada em regiões centrais da cidade, no registro e coleção fotográfica, na interlocução com artistas, na participação em eventos, na pesquisa documental e na reflexão antropológica, urbana e visual. Os resultados da pesquisa sugerem que há uma relação de reciprocidade nesse processo que envolve a arte de rua e a cidade, onde o percurso dos artistas, além de figurar uma ação gráfica e plástica, implica também numa ação biográfica. Ao caminhar pelas ruas, trajetos e pedaços da cidade, intervindo em sua estrutura física, vive-se essa experiência exprimindo-a através dessas formas, ressaltando os conflitos e as contradições urbanas, mas também sua poética. Na cidade do Natal, como em outras cidades, resguardadas suas especificidades, o exercício da arte realizado ao longo dos caminhos, cria um conhecimento sócio espacial. Esse conhecimento é compartilhado na esfera visual urbana em imagens ofertadas a qualquer um que pare para ver e pensar sobre elas. PALAVRAS-CHAVE Cidade; Imagem, Imagens da cidade; Graffiti; Pixo; Natal/RN; Brasil; Antropologia urbana; Antropologia visual; Etnografia. ABSTRACT This work analyzes the production of images in the city of Natal/RN - Brazil through the work of local artists in their protagonism in street art, graffiti and pixo, extending the reflection also beyond national borders. The realization of this ethnography was based on methodological procedures such as walking in central regions of the city, taking photos and photographic collection, interlocution with artists, participation in events, documentary research and anthropological, urban and visual reflection. The results of the research suggest that there is a relationship of reciprocity in this process that involves street art and the city, where artists’ journeys, in addition to a graphic and plastic action, also implies a biographical action. When walking through the streets and places of the city, intervening in its physical structure, they live this experience expressing it through these forms, emphasizing the conflicts and the urban contradictions, but also its poetics. In the city of Natal, as in other cities, preserving their specificities, the exercise of art performed along the streets creates a socio-spatial knowledge. This knowledge is shared in the urban visual sphere in images offered to anyone who stops to see and think about them. KEY WORDS City; Image; Images of the city; Graffiti; Pixo; Natal/RN; Brazil; Urban anthropology; Visual anthropology; Ethnography. RÉSUMÉ Le travail analyse la production d'images dans la ville de Natal / RN - Brésil dans le travail d'artistes locaux protagonistes dans le street art, le graffiti et le pixo, j’ai également étendu la réflexion au-delà des frontières nationales. La réalisation de cette ethnographie reposait sur des procédures méthodologiques de visite dans les régions centrales de la ville, l'enregistrement et la collection de photographies, l’interaction avec des artistes, la participation à des événements, la recherche documentaire et la réflexion anthropologique, urbaine et visuelle. Dans les résultats de la recherche il y a une relation de réciprocité dans ce processus impliquant le street art et la ville, où les itinéraires des artistes, en plus d'une action graphique et plastique, impliquent également une action biographique. En marchant dans les rues, les allées et les quartiers de la ville, en intervenant dans sa structure physique, ils vivent cette expérience en l'exprimant à travers ces formes, en soulignant les conflits et les contradictions urbaines, mais aussi sa poétique. Dans la ville de Natal, comme dans d’autres villes, tout en préservant leurs spécificités, l’exercice d’art effectué le long des itinéraires crée un savoir socio-spatial. Cette connaissance est partagée dans la sphère visuelle urbaine dans des images offertes à quiconque s’arrête pour les voir et y penser. MOTS CLÉS Ville; Image; Images de la ville; Graffiti; Pixo; Natal/RN; Brésil; Anthropologie urbaine; Anthropologie visuelle; Ethnographie. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 17 PASSEANDO PELA HISTÓRIA DA CIDADE DO NATAL E DAS SUAS ARTES ................... 26 CAPÍTULO 1 – ANTROPOLOGIA DA CIDADE GRAFITADA. ............................................. 38 1.1. WRITING ART: PERCURSOS DA ESCRITA À ARTE DE RUA. .................................. 39 1.2. UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA .............................................................. 49 1.2.1. CIDADE E IMAGEM .................................................................................... 49 1.2.2. GRAFITEIROS, PIXADORES E A ARTE DE RUA NA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA. ............................................................................................... 54 1.3. ARTE DE RUA, GRAFFITI, PIXO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO. ................... 61 CAPÍTULO 2 – PESQUISA DE CAMPO E ESTRATÉGIAS DE INTERLOCUÇÃO. ................... 73 2.1. O CAMINHAR NA PRÁTICA ETNOGRÁFICA. ....................................................... 74 2.2. FOTOGRAFIA E IMAGENS DA ARTE DE RUA....................................................... 83 2.3. ESTRATÉGIAS DE INTERLOCUÇÃO E IMERSÃO. .................................................. 86 2.4. COLANDO LAMBE-LAMBE. .............................................................................. 103 CAPÍTULO 3 – BIOGRAFFITI. ...................................................................................... 121 3.1. TRAJETOS E TRAJETÓRIAS INDIVIDUAIS NA CIDADE. ....................................... 122 3.2. BIOGRAFFITI. .................................................................................................. 126 3.3. RAOM HAI. ..................................................................................................... 129 3.4. KEFREN POK. .................................................................................................. 143 3.5. ARBUS. ........................................................................................................... 156 3.6. TRAJETOS E TRAJETÓRIAS EM COMUM. ......................................................... 168 CAPÍTULO 4 – NARRATIVAS VISUAIS .......................................................................... 176 4.1. O GRAFAR E O ETNOGRAFAR COMO NARRATIVAS. ......................................... 177 4.2. FAZENDO O TRAMPO I: POK ........................................................................... 179 4.3. FAZENDO O TRAMPO II: PAZCIÊNCIA – “LIVRO ABERTO” ................................ 187 4.4. FAZENDO O TRAMPO III: ARBUS ..................................................................... 194 4.5. FAZENDO O TRAMPO IV: PAZCIÊNCIA – “CARACOL”. ...................................... 204 CAPÍTULO 5 – IMAGENS DA DIVERSIDADE VISUAL NA ARTE DE RUA EM NATAL/RN. . 215 5.1. ALCANCE DA PESQUISA, PROTESTOS NA CIDADE E A DIVERSIDADE DA ARTE DE RUA. ...................................................................................................................... 216 5.2. IMAGENS DA DIVERSIDADE NA ARTE DE RUA EM NATAL/RN .......................... 220 5.2.1. GRAFFITI EM MUROS E EQUIPAMENTOS URBANOS DIVERSOS ................ 220 5.2.2. PIXO, ESCRITAS E MENSAGENS DIVERSAS ................................................ 224 5.2.3. LUGARES ABANDONADOS OU ESQUECIDOS PELO PODER PÚBLICO ......... 228 CAPÍTULO 6 – DISCRIÇÃO, EXTRAVAGÂNCIA E SATURAÇÃO. ..................................... 231 6.1. USOS DA CIDADE NA ARTE DE RUA. ................................................................ 232 6.2. CAMINHANDO PELAS CIDADES E PELAS ARTES. .............................................. 234 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 339 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................. 344 ANEXOS .................................................................................................................... 351 LISTA DE FIGURAS Figura 1. Galeria de Arte Popular nos anos 1960. ........................................................ 28 Figura 2. Praça das Mães Martha Salem ...................................................................... 29 Figura 3. Mural de autoria do artista Dorian Gray para praça das mães Martha Salem. ................................................................................................................................... 29 Figura 4. “Mães”, mural de autoria do Raom Hai próximo ao mural de Dorian Gray em referência ao painel do pintor. .................................................................................... 30 Figura 5. “TGA”, pichação do grupo “Torcida Gang Alvi-Negra” com referência aos bairros Cidade da Esperança (CDE) e Nossa Senhora de Nazaré (BNZ) na rua Hidrógrafo Vital de Oliveira........................................................................................................... 32 Figura 6. Mapa dos bairros e localidades da cidade do Natal/RN – Brasil. ................... 37 Figura 7. “Tags rupestres” em um muro da rua Jouannet em Bordeaux, França. ......... 39 Figura 8. Keith Haring para o fosso do elevador do Museu de Arte Contemporânea de Bordeaux. ................................................................................................................... 45 Figura 9. Tags e Stickers em Rue de Rivoli, Paris. ......................................................... 46 Figura 10. Humanoides encapuzados de Marcelus Bob no Beco da Lama (detalhe)..... 61 Figura 11. Faces emaranhadas de Binho Duarte na UFRN (detalhe). ........................... 62 Figura 12. Personas de Arbus e Binho Duarte em “Barcelona”, no bairro da Candelária. ................................................................................................................................... 63 Figura 13. “Vendo poesia”, grafismos urbanos no bairro da Ribeira. ........................... 64 Figura 14. “Florescer 1”, escrita na Travessa Extremoz, bairro da Cidade Alta (detalhe). ................................................................................................................................... 65 Figura 15. “Florescer 2”, escrita na Travessa Extremoz, bairro da Cidade Alta (panorama). ................................................................................................................................... 66 Figura 16. “De: Amarelo Cura Para: Caos” na rua Chile, no bairro da Ribeira. .............. 68 Figura 17. “Lágrimas” por Sheep na UFRN. .................................................................. 69 Figura 18. “Faces”, vários artistas em “Barcelona” no bairro da Candelária. ................ 71 Figura 19. Concentração de intervenções artísticas entre os bairros da Lagoa Seca, Tirol e Lagoa Nova. ............................................................................................................. 74 Figura 20. Concentração de intervenções artísticas entre os bairros da Candelária, Lagoa Nova (destaque para o campus central da UFRN) e Capim Macio................................ 75 Figura 21. Concentração de intervenções artísticas entre os bairros da Candelária e Lagoa Nova. ................................................................................................................ 76 Figura 22. Mapa do bairro de Lagoa Nova e localidades. ............................................. 78 Figura 23. Concentração de intervenções artísticas entre os bairros da Cidade Alta e Petrópolis. .................................................................................................................. 80 Figura 24. Concentração de intervenções artísticas no bairro da Ribeira. .................... 81 Figura 25. Concentração de intervenções artísticas no bairro da Ponta Negra. ........... 82 Figura 26. Registro do registro, o pesquisador na cena registrando um trabalho do Raom Hai no bairro de Lagoa Nova. ...................................................................................... 84 Figura 27. Um olhar sobre o caos da cidade. Detalhe de uma intervenção do Pok. ..... 88 Figura 28. “Totem urbano”, arte de Raom Hai. ............................................................ 90 Figura 29. Narrativa fotográfica do processo de criação do artista Toliga durante o 2º mutirão de graffiti em Ponta Negra............................................................................. 92 Figura 30. Cartaz do bate-papo “Arte urbana: graffiti e pixo”. ..................................... 94 Figura 31. Cartaz do 2º Leilão das Artes. ..................................................................... 95 Figura 32. Banner da exposição “URBANOLHAR”. ....................................................... 96 Figura 33. Cartaz da roda de conversa “Arte urbana e seu desenvolvimento no RN” ... 98 Figura 34. Detalhe da exposição “Segunda Matéria” de Raom Hai (1). ........................ 99 Figura 35. Detalhe da exposição “Segunda Matéria” de Raom Hai (2). ........................ 99 Figura 36. Cartaz do debate sobre a exposição “Segunda Matéria”. ............................ 99 Figura 37. “Descendo a ladeira”, arte do Raom Hai no bairro da Cidade Alta. ........... 129 Figura 38. “Cabeça estupefata”, arte do Raom Hai na Avenida Bernardo Vieira, bairro de Lagoa Nova. .............................................................................................................. 130 Figura 39. “A cidade invadida pelo vazio do amanhã”, arte do Raom Hai na Avenida Prudente de Morais no Bairro do Tirol. ..................................................................... 131 Figura 40. “Rua caderno de rascunho”, arte do Raom Hai na Avenida Prudente de Morais no Bairro de Lagoa Nova. .......................................................................................... 132 Figura 41. “Antropozoomórfico” ou “o feiteiceiro da grota de Gabilou”, arte do Raom Hai na Rua General Osório, bairro da Cidade Alta...................................................... 132 Figura 42. “Aquele que trama a onda”, arte do Raom Hai na Avenida Prudente de Morais, no bairro da Candelária. ............................................................................................ 133 Figura 43. “Janus”, arte do Raom Hai no bairro de Lagoa Nova. ................................ 134 Figura 44. “Explosão original”, arte do Raom Hai na Rua Coronel Joaquim Manoel, no bairro de Petrópolis. ................................................................................................. 136 Figura 45. “Perfil”, arte do Raom Hai na Rua Coronel Cascudo, no bairro da Cidade Alta. ................................................................................................................................. 137 Figura 46. “Interações distraídas”, arte do Raom Hai na Avenida Bernardo Vieira, no Bairro de Lagoa Nova. ............................................................................................... 138 Figura 47. “Sob custódia”, arte do Raom Hai na Avenida Rio Branco, no bairro da Cidade Alta. .......................................................................................................................... 139 Figura 48. “P.M. mata”, arte do Raom Hai no bairro da Cidade Alta. ......................... 141 Figura 49. “Escrita do abandono”, arte do Raom Hai na Avenida Nascimento de Castro, no bairro de Lagoa Nova. .......................................................................................... 142 Figura 50. “Observando a praia”, arte do Pok na praia de Ponta Negra. .................... 143 Figura 51. “Um pensamento na cabeça”, arte do Pok na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro de Lagoa Nova. .......................................................................................... 144 Figura 52. “Pok”, tag do artista na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro de Lagoa Nova. ........................................................................................................................ 145 Figura 53. “Um olho, um pássaro”, arte do Pok na Avenida Prudente de Morais, no bairro do Tirol. .................................................................................................................... 146 Figura 54. “Dois olhos, dois pássaros”, arte do Pok na Avenida Prudente de Morais, no bairro do Tirol. .......................................................................................................... 146 Figura 55. “Olhar urbano”, exposição do Pok no Betweem Food & Gallery. .............. 147 Figura 56. “Ondas visuais”, arte do Pok na Avenida São José, no bairro de Lagoa Nova. ................................................................................................................................. 148 Figura 57. “Decomposição visual”, arte do Pok na Av. Alex. de Alencar, no bairro do Tirol. ................................................................................................................................. 148 Figura 58. “Atropelo: da tag à propaganda”, assinatura do artista na avenida Prudente de Morais, no bairro de Lagoa Nova. ......................................................................... 149 Figura 59. “Olhares do artista no antigo bairro”, arte do Pok na Travessa Aureliano, no bairro da Ribeira. ...................................................................................................... 150 Figura 60. “Um olhar sobre a Cidade Alta”, arte do Pok na Avenida Câmara Cascudo, no bairro da Cidade Alta. ............................................................................................... 151 Figura 61. “Encruzilhada”, arte do Pok na Avenida Odilon Gomes de Lima, no bairro do Capim Macio. ............................................................................................................ 152 Figura 62. “Ruínas e abandonos”, arte do Pok na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro de Lagoa Nova. ............................................................................................... 154 Figura 63. “Fim Do Mundo”. ...................................................................................... 154 Figura 64. “Graffiti praieiro” arte do Arbus e do Pok na praia de Ponta Negra. .......... 156 Figura 65. “Boy”, arte do Arbus na, Avenida as Américas, Parnamirim, Região Metropolitana de Natal. ............................................................................................ 157 Figura 66. “Oi!”, arte do Arbus na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro do Mirassol. ................................................................................................................................. 158 Figura 67. “Periférico”, arte do Arbus na rua Coronel Cascudo, no bairro da Cidade Alta. ................................................................................................................................. 158 Figura 68. “Múltiplas personas”, arte do Arbus na rua Pastor Gabino Brelaz, no bairro do Capim Macio. ............................................................................................................ 159 Figura 69. “Hang Loose”, arte do Arbus em “Barcelona”, no bairro da Candelária. .... 160 Figura 70. “Mano”, arte do Arbus na rua Porf. Zuza, no bairro da Cidade Alta. .......... 161 Figura 71. “Maioral”, arte do Arbus exposta na galeria da Capitania das Artes. ......... 162 Figura 72. “Pagodeiro”, arte do Arbus exposta na galeria da Capitania das Artes. ..... 162 Figura 73. “Mano”, arte do Arbus e do Stomp na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro de Lagoa Nova. ............................................................................................... 163 Figura 74. “Radical”, arte do Arbus em “Barcelona”, no bairro da Candelária. ........... 164 Figura 75. “SK8”, arte do Arbus em “Barcelona”, no bairro da Candelária. ................ 164 Figura 76. “Câmara Cascudo e o Beco da Lama”, arte do Arbus e outros artistas no Beco da Lama, bairro da Cidade Alta.................................................................................. 166 Figura 77. “Em elaboração...”, arte do Arbus em parceria com PazCiência em “Barcelona”, bairro da Candelária. ............................................................................ 167 Figura 78. “Sopa de letras”, mural de bombs por NAY, PAZCIÊNCIA e outros artistas em “Barcelona”, no bairro da Candelária. ....................................................................... 168 Figura 79. Fases possíveis em uma trajetória na arte de rua. ..................................... 170 Figura 80. “Obrigado”, arte do Kendo no Natal Shopping Center, no bairro da Candelária. ................................................................................................................................. 171 Figura 81. “Na atividade!”, arte do PAZCIÊNCIA no bairro do Alecrim. ...................... 172 Figura 82. “Personas, coração e ‘Resistência’” arte de vários autores e PazCiência no bairro do Tirol. .......................................................................................................... 174 Figura 83. “Nós somos aqueles que sabem a verdade”, arte do Kendo na parede de sua residência em Bordeaux. ........................................................................................... 175 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABA Associação Brasileira de Antropologia BRP Brigada Ramano Parra CNRS Centre National de la Recherche Scientifique EUA Estados Unidos da América FDM Fim Do Mundo FLM Fout La Merde GFL/G4L Galados For Life IFRN Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do RN IRA Irish Republican Army IUAES International Union of Anthropological and Ethnological Sciences LKS Loukos MACBA Museu de Arte Contemporânea de Barcelona NAVIS Núcleo de Antropologia Visual da UFRN PPGAS Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRN PPGE Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRN RBA Reunião Brasileira de Antropologia RN Rio Grande do Norte SEMURB Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal UDA Ulster Defense Association UFA Unidentified Free Artist UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFSC Universidade Federal de Santa Catarina UNIFESP Universidade Federal de São Paulo UnP Universidade Potiguar UVF Ulster Volunteer Force VEP Viciados Em Pixação VLP Vive La Peinture 17 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 18 A pichação de muros, consequência do caos urbano, está em todas as cidades brasileiras, dividindo a paisagem urbana das metrópoles com propagandas e intervenções artísticas (pinturas) variadas (SOUZA, 2007, p. 117). Os jovens que fazem graffiti são exploradores da sua cidade, buscam nas superfícies conhecidas as melhores telas e materiais para nos dizerem algo sobre si e sobre o mundo que os rodeia (CAMPOS, 2007, p. 12). Este texto é resultado da pesquisa etnográfica conduzida no âmbito do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRN (PPGAS) a nível de doutorado. O objetivo principal do projeto foi estudar a cidade do Natal abordando a visão e a experiência dos artistas atuando na rua. Capital do estado do Rio do Grande do Norte e a sua cidade mais populosa, Natal é uma metrópole em formação com diversos desafios e possibilidades relativos à essa condição seja para gestão pública, para as populações urbanas, ou para a pesquisa acadêmica. Objeto de apropriação por diferentes atores sociais, a dimensão visual do espaço urbano encontra nas artes uma forma de compartilhamento de ideias e atitudes, que do ponto de vista antropológico são indicativos de processos sociais em curso na cidade. No desenvolvimento da pesquisa a complexidade do problema apontou para o graffiti e o pixo/pichação como formas recorrentes de intervenção visual nos espaços da cidade; mostrou ser uma prática que faz parte do estilo de vida de seus autores, portanto, constituinte de suas trajetórias individuais; trouxe à tona questões que perpassam outros problemas da cidade como o dilema do espaço público nas práticas legais e ilegais; como também a questão da circulação das coisas, das pessoas e das ideias na cidade, portanto, dos fluxos. Em Natal/RN o campo da arte de rua é complexo e está representado principalmente por artistas e coletivos que espalham traços, cores e formas pela cidade. Proponho que aceitemos a proposição “arte de rua” como definição abrangente das formas diversas de arte que ocupam as ruas da cidade na qual reside o graffiti e seus congêneres. O termo “artista de rua”, em sua gênese, também remonta a um universo variado de indivíduos, a um “mundo artístico” (BECKER, 1977) e práticas como a música, malabares, artes plásticas, etc. Aqui utilizaremos na acepção idêntica à língua inglesa, street art, como um tipo de arte visual surgida de uma interação social na rua, em grande parte no contexto de grupos juvenis marginalizados. Esta arte visual, plástica e gráfica está em toda a malha urbana e se expressa através de categorias que orbitam em torno de práticas peculiares de escrita e pintura. Das formas recorrentes, o graffiti, o pixo e 19 mesmo o cartaz/pôster lambe-lambe1 e o sticker, os artistas locais exercitam as técnicas, desenvolvem estilos próprios, expressam ideias e as compartilham estampando lugares da cidade como verdadeiros tecidos. A arte de rua e as formas singulares desenvolvidas por seus autores demonstram ser, ao mesmo tempo, um fenômeno urbano2 atrelado ao crescimento das cidades, à autonomia intelectual e artística dos indivíduos; como também um fenômeno visual no quadro do desenvolvimento das tecnologias da comunicação e da cultura da imagem. Nessa intercessão, considerando que a cidade é também um fenômeno visual e que a imagem encontra nela um “habitat”, que esta pesquisa vem buscar nos saberes da antropologia urbana e da antropologia visual seu apoio epistemológico. Como primeiras palavras é imprescindível reiterar a complexidade do objeto e do contexto em que o mesmo está inserido. Por um lado, são os campos disciplinares que atravessam o fenômeno e obrigam ao pesquisador a estabelecer um diálogo, em alguma medida, entre a comunicação social, a geografia, a antropologia, a arte e a arquitetura. Para Ingold (2011), o que estas últimas têm em comum com a antropologia é o fato de “observarem, descreverem e proporem” (p. 11), enquanto as duas primeiras, eu afirmo, têm a imagem, o espaço social e a territorialidade como categorias transversais. Por outro lado, é o próprio campo de pesquisa em seus desafios, riscos e frustrações. Em relação ao primeiro campo, existe tanto o desafio de compreender o diálogo dos saberes e das práticas antropológicas com os daqueles, quanto o de delinear a especificidade da nossa própria abordagem. No campo da pesquisa há o desafio de delimitar o objeto a partir de um fenômeno fluído, complexo e atravessado por outras categorias antropológicas como é a da performance e da juventude/cultura juvenil; tratar formalmente e publicamente o que ocorre muitas vezes de forma anônima e não autorizada; e, “flutuar” sobre o tempo e a disposição dos interlocutores para receber o pesquisador que bate à porta através de alguma rede social ou mesmo o surpreendendo na rua ou num evento. 1 “Cartaz” ou “pôster lambe-lambe” é uma peça publicitária, artística de origem imprecisa, mas que costuma ser remetida geralmente ao século XV com o cartaz de Saint Fleur (1454) e aos cartazes do século XIX a exemplo do artista Toulouse-Lautrec e no século XX pelos revolucionários de 1917 na Rússia e pelo partido nazista. Para uma visão do “lambe-lambe” na perspectiva dos artistas, ver o documentário “Cola de Farinha.doc” (2012). 2 Ou preponderantemente urbano, já que o alcance da arte vai até as praias não urbanas e às áreas rurais. 20 Há ainda uma amálgama de razões que envolve um lugar compartilhado dessas artes: o questionamento e, por vezes, a subversão da ordem social vigente; e, as reações diversas advindas das interações da arte com a sociedade e com o Estado. O recorte histórico que vai de 2015 a 2019, que acompanha o desenvolvimento da presente tese, está marcado por fatos que denotam o conflito, principalmente entre o poder público e os artistas, numa relação complicada de aproximações e distanciamentos. Vê-se nesse fato, que a história de alguma forma se repete. Cria-se o dia do graffiti (ver ANEXO 1), mas a pichação permanece criminalizada. Usa-se o graffiti como instrumento pedagógico e até comercial, mas criminaliza-se jovens e adultos por intervir com arte na cidade. Apaga-se o maior mural de graffiti a céu aberto da América Latina3, condena-se o ato de apagá-lo4. Consagra-se o graffiti, condena-se o graffiti. Esvazia-se de todas as formas essa palavra etimologicamente plural e cria-se no senso comum um estado de confusão. Também a relação entre os artistas é acompanhada de dilemas, como é a questão da prática na rua e na galeria e mesmo a questão de classe. Diante dessa problemática, e percebendo o papel heurístico do tema, propus o projeto de pesquisa “Urbanidades negociadas e a construção das imagens da cidade do Natal/RN - Brasil” para a seleção do doutorado do PPGAS/UFRN. O projeto teve como orientação teórico-metodológica a execução da pesquisa baseada na antropologia urbana, portanto numa antropologia da cidade, das sociedades complexas e da contemporaneidade. No curso da pesquisa e pela experiência adquirida como membro do Núcleo de Antropologia Visual da UFRN (NAVIS) em pesquisar, expor fotografia e organizar eventos e livro (CORADINI e BARBOSA JÚNIOR, 2014), essa antropologia da 3 “Doria passa tinta cinza e apaga grafites da avenida 23 de Maio”. . Acesso em 27/02/2019. “Doria apaga grafites em avenida e cria polêmica em SP”. . Acesso em 27/02/2019. “A ‘maré cinza’ de Doria toma São Paulo e revolta grafiteiros e artistas”. . Acesso em 27/02/2019. 4 “Doria é condenado por apagar mural de grafite inaugurado por Haddad”. . Acesso em 27/02/2019. “Justiça de SP condena Doria e a Prefeitura por remoção de grafites na 23 de Maio”. . Acesso em 27/02/2019. 21 cidade tornou-se, no diálogo que procurei estabelecer com os aportes da imagem, cada vez mais, uma antropologia da cidade grafitada. Baseado também na experiência anterior de pesquisa com populações urbanas em bairros populares em Natal, considerei relevante abordar regiões centrais da cidade e de grande fluxo de pessoas e automóveis, lugares onde justamente emergiam a arte de rua5. Nesse sentido, elegi como ponto de partida o bairro de Lagoa Nova na zona administrativa sul da cidade. Como veremos, trata-se de um bairro que além de possuir uma série de equipamentos urbanos, manchas comerciais e instituições públicas, tornou ao longo dos últimos anos uma nova Ágora, como poderíamos chamar a escolha de suas principais avenidas para a realização de paradas e protestos. O exercício inicial nessa região expandiu-se, como veremos, para outros lugares da cidade. A pesquisa também foi estendida a duas experiências vividas em Barcelona e Paris, em abril de 2018 e à Bordeaux e outras cidades francesas entre outubro e novembro do mesmo ano. Essa segunda experiência ocorreu dentro do quadro de cooperação internacional em acordo bilateral entre o PPGAS/UFRN e a Universidade de Bordeaux. Tratou-se de uma oportunidade de falar sobre a pesquisa para professores e estudantes, imergir na cultura e na língua francesa, e observar a arte de rua em outro contexto. Para alcançar os objetivos da pesquisa, ou seja, acionar uma rede de interlocução dos protagonistas da arte de rua em Natal e abordar seus pontos de vista propus, como procedimentos metodológicos, caminhadas exploratórias a fim de observar e registrar as artes; e colecionar as fotografias agrupando-as por categorias e depois por autores. Assim, a fotografia teve um papel fundamental nesta pesquisa, tanto pela potencialidade dos conteúdos visuais, documentação e apresentação dos dados de pesquisa, quanto pela mediação no diálogo entre pesquisador e interlocutor (MEIRINHO, 2017). Numa lógica multissituada (MARCUS, 1995), o exercício etnográfico de seguir a arte de rua, permitiu conhecer a sua circulação, e por essa extensão, seguir os seus autores conhecendo suas ideias e trajetórias. Chegar aos artistas e segui-los em seus percursos permitiu lhes ouvir e observar o protagonismo dos seus trabalhos. Essa metodologia apontou para o fato de que as artes não eram inertes, mas que tinham 5 Anteriormente ao meu ingresso no curso de doutorado, eu já havia desenvolvido uma percepção para as formas e cores espalhadas por toda a cidade, colecionando-as através da fotografia. 22 uma vida social, ou seja, “seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetórias” (APPADURAI, 2008). Identificar os artistas a partir das suas assinaturas permitiu contata-los. Segui-los em seus trajetos e realizações, também não seria possível sem um exercício de pesquisa e comunicação via redes sociais como Facebook, Instagram e Tumblr. A decisão de fazer o contato com os artistas cujos trabalhos mais se repetissem nos trajetos percorridos, mostrou-se ser mais tarde o indício de uma fase em suas trajetórias na arte de rua. Iniciado o processo de interlocução, pude seguir os interlocutores em seus circuitos, o que implicava frequentar eventos, exposições, mesas redondas e rodas de conversa. Outros procedimentos concomitantes a estes, implicaram numa revisão da literatura, que apontava para a complexidade e para a incapacidade de esgotar o tema. O exercício reflexivo levou-me, junto ao trabalho de orientação, a apresentar trabalhos em congressos da área como Reunião de Antropologia do Mercosul (2015), a Reunião Brasileira de Antropologia organizado pela ABA (2016) e ao Congresso Internacional da IUAES (2018). Foi no exercício de ser afetado pela arte (FAVRET-SAADA, 2005), pela cidade e pelas imagens que observei a repetição de formas e padrões em diversos lugares e suportes do bairro de partida e, em seguida, passei a perceber e registrá-las em outros trajetos. Inquieto com a questão de quem as fazia e por que as fazia, passei a realizar caminhadas errantes para visualizar a cidade e para registrar as formas insistentes. Havia naquelas imagens os indícios de evidências simbólicas (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2007) e, como já mencionei, as pistas de quem eram seus autores já que os mesmos assinavam os seus trabalhos. Dessa forma uma interlocução se estabeleceu com seus autores, o RAOM, o POK, o ARBUS, o PAZCIÊNCIA; e com outros artistas que contribuíram indiretamente com a reflexão do tema de pesquisa, como NEURO, CARCARÁ, LENNON LIE, GAPIX e KENDO. Busquei acompanhar o trabalho desses artistas, seguindo suas realizações na medida do possível e na forma singular dos seus fazeres. Após analisar os dados levantados na pesquisa, discutindo-os num primeiro texto sintético apresentado a uma banca de qualificação, aproveitei as contribuições para pensar as questões que que colocaria em seguida aos interlocutores6. Na cidade de 6 Tentei desenvolver anteriormente um questionário experimental no qual os interlocutores responderiam com desenho. A gestão do meu próprio tempo em conflito com o tempo dos meus 23 Bordeaux tive oportunidade de entrevistar o artista francês KENDO. O resultado dessa fase de entrevistas será abordado nos capítulos a seguir. O perfil dos entrevistados deve ser considerado como resultado da pesquisa e não como dado preliminar. Em outras palavras, seguir as imagens, especificamente a profusão delas em regiões da cidade, trouxe como perfil os homens brancos, na faixa entre 28 e 32 anos, de classe média e com Ensino Superior. A meu ver esse dado não deve ser encarado somente como um corte de classe no campo da arte de rua, mas como um aspecto da relação entre a cidade e a produção da arte. Ou seja, as ruas são muitas vezes hostis à presença feminina, às mulheres e aos homens negros o que, no entanto, não inibe a presença desses perfis na arte de rua, nem tampouco faz do perfil a que cheguei como dominante. A condição social do perfil de artistas a que cheguei também não é um dado que os isenta dos riscos de atuar na rua. Com relação às formas mais expressivas da arte de rua, nas falas e nas práticas dos artistas potiguares, são o graffiti e pixo, o que apareceu nas discussões dos artistas pesquisadores. A meu ver, mesmo compondo o quadro amplo da arte de rua, em algumas circunstâncias, essas expressões se aproximam, e em outras se afastam. Como foi alegado nas rodas de conversas e nas entrevistas, alguns artistas são “iniciados” na arte de rua com a pichação/pixo e depois migraram para o graffiti. Ambos graffiti e pixo possuem complexidades próprias. O graffiti, como veremos a seguir, possui uma história longa e complexa, mas é comumente associada à cultura do Hip-Hop surgida nos Estados Unidos dos anos 1970. O graffiti no Brasil é certamente uma ressignificação daquele movimento ocorrida por volta dos anos 1980 e que parece encontrar semelhanças nas demandas sociais que lhe dão mote e nas populações que lhes animam. Essa “antropofagia”, como afirmam alguns artistas em menção a Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e ao Movimento Modernista dos anos 1920, não se trata de uma cópia, mas de um processo de identificação e ressignificação. Trata-se de uma atitude crítica em face a problemas de ordem social como racismo, pobreza e violência urbana, como também do desenvolvimento de formas peculiares de criação da arte nas ruas da cidade. Esse desenvolvimento encontra um exemplo na emergência das trajetórias do Jean-Michel Basquiat (EMMERLING, 2016) e do Keith Haring interlocutores impediu que eu desenvolvesse melhor esse experimento. Uma experiência piloto foi feita com o RAOM e encontra-se em anexo (ANEXO 2). 24 (KOLOSSA, 2016) nos Estados Unidos. Como veremos, o terreno de aparecimento do graffiti em Natal encontra influência principalmente no trabalho do artista potiguar Marcelus Bob no começo dos anos 1980. A “pichação7” é, algumas vezes, remetida a práticas antigas de denúncia ideológica, mas é mais comumente associada à atitude crítica a políticas contemporâneas, como aquelas do maio de 1968. Há ainda a interface estética e gráfica da prática do pixo em São Paulo com a tipografia das capas de bandas underground dos anos 1970-80. Em Fortaleza a prática da pichação remete a ação das gangues e em Natal às torcidas de futebol, podendo ser retomada também às formas políticas de campanha e protesto dos anos 1940 até a atualidade. Esse processo de identificação, ressignificação e criação no âmbito da arte urbana, graffiti e pixo, e o vir- a-ser artista, ocorre tanto pelas via do aprendizado social da técnica, da identificação de um conjunto de símbolos e a redefinição da visão do mundo (BECKER, 2008) que se dá em situações na rua; como pela via das tecnologias da informação e da comunicação, notadamente a Internet, as redes sociais, e a vasta produção documental (audiovisual e literatura) com um forte grau de intuição. A formação dos grupos, crews8 e coletivos, também ocorre nessa dinâmica. A denúncia política, a atitude ideológica e o ímpeto juvenil observadas no writing estadunidense permanecem em grande medida na arte de rua, mas esta também se reveste de aspectos singulares de acordo com os contextos locais e sua relação com os contextos internacionais. Além dessa reinvenção criativa do writing, há uma apropriação de técnicas e a invenção de outras que fazem das grafias urbanas brasileiras singulares. Também os artistas não representam um grupo social homogêneo, variando em seus perfis sócio econômicos, ou seja, alguns dos artistas atuando hoje na cidade não são necessariamente de origem periférica e não tem o Hip-Hop como cultura motivadora, embora a reconheçam como forma urbana precursora. Há também uma ressignificação da ação artística e da obra de arte na construção de formas alternativas 7 Algumas vezes utilizada com a grafia “pixo”, referida, por vezes, como “xarpi”, ou seja, a palavra “pixar” na forma invertida. Nas interlocuções predomina a palavra “picho”, ao passo que “pichação” denota, por vezes, uma forma pejorativa ou uma categoria de acusação às formas puramente gráficas, escritas. 8 “Crew”, expressão da língua inglesa cuja tradução literal é “equipe”, um grupo de pessoas que trabalham juntas. No universo writer, crew é um coletivo de artistas, grafiteiros, picha[x]adores, que partilham uma estética e uma ideia e, além de fazer seus trabalhos individuais, trabalham algumas vezes juntos. O indivíduo pertencente a uma crew, geralmente, além de assinar seu trabalho, assina junto a sigla do coletivo. No Brasil a palavra é utilizada com a mesma grafia e o mesmo sentido, havendo uma modificação fonética de kro͞o para kri.o. 25 de intervenção no meio urbano, como também uma modulação da arte na cidade a partir da ação dos artistas na rua, e uma modulação do ser do artista a partir das experiências vividas no exercício da arte de rua. Na intercessão entre essas modulações está a transformação recíproca do artista, da cidade e de quem for “capturado” por esse processo em curso na cidade. Em outras palavras, trata-se de um processo ontológico no qual a cidade e o artista inscrevem-se mutuamente um no outro. Nas imagens geradas por esse processo, que abarca a biografia dos artistas em suas trajetórias individuais e em seus trajetos na cidade, como a própria biografia da cidade capturada pela fotografia, coloca a questão de que, A imagem é capaz de ideações – capaz de suscitar ideias –, da mesma forma como sabemos reconhecer esse potencial à frase escrita ou à frase musical. Todavia, a ela negamos essa habilidade, sem no entanto nos fundamentarmos das razões. Evidentemente, sabemos de sua polissemia. Contudo, quando conseguirmos resolver imagens cruzadas, é certo, teremos avançado muito na arte de ler as imagens (SAMAIN, 2012, p. 35)9. Ler as imagens da cidade grafada e grafitada, captura-las por meio da fotografia abordando seus sentidos, inferindo suas biografias, dialogando com autores múltiplos em múltiplas motivações, foi certamente um exercício de “imagens cruzadas”. Essas imagens observadas na aventura antropológica urbana (CARDOSO, 2004), seja a da arte in urbis, seja pela verve fotográfica, ofereceram algo para pensar: como “Toda imagem (um desenho, uma pintura, uma escultura, uma fotografia, um fotograma de cinema, uma imagem eletrônica ou infográfica) nos oferece algo para pensar: ora um pedaço de real para roer, ora uma faísca de imaginário para sonhar” (SAMAIN, 2012, p. 22). Dessa forma, percebe-se também nas imagens da arte de rua um “processo vivo”, um “propósito pensante”, Dentro da categoria arte urbana, considero todo traçado que, mesmo constituindo-se como assinatura, tag, designada no Brasil de pichação, desenha um propósito “pensante”, anunciando mais que um objeto, um processo vivo (Samain, 2012), um tipo de participação intempestiva na visualidade da cidade. A participação visual de artistas urbanos pode ser traduzida num tipo de desconexão, resistência e distância em relacã̧o à arte agenciada nas galerias e museus (DIÓGENES, 2015, p. 686-687). 9 Grifos do autor. 26 Essa participação visual dos artistas na cidade implica também um exercício de partilha sensível (RANCIÈRE, 2005) de atos estéticos, modos de sentir e subjetividades políticas. Na mesma vibração o ato de ver, coloca uma ambivalência inquietante, ao que se abre um abismo entre “o que vemos” e “o que nos olha”, dilemas do visível experimentados na vida urbana (DIDI-HUBERMAN, 2005). Essas problematizações são trazidas nesse texto com o objetivo de compreender o que a arte de rua e as suas grafias oferecem para pensar, quais pensamentos portam, qual o diálogo e a comunicação que fazem entre si, e quais os dilemas visuais. Nos processos, nos propósitos e nos dilemas, descobrimos trajetórias de vida vividas ao longo dos trajetos urbanos de artistas que nos fazem descobrir também os caminhos da cidade, e talvez, uma “outra cidade”. Nas páginas a seguir veremos os espaços urbanos encontrar os espaços oníricos10 na perambulação criativa de artistas que povoam a cidade com olhos, seres, indivíduos, palavras, poesia e símbolos. PASSEANDO PELA HISTÓRIA DA CIDADE DO NATAL E DAS SUAS ARTES Natal é a capital do estado do Rio Grande Norte, situada no litoral da região Nordeste e com população de 803.739, segundo censo (BRASIL. IBGE., 2010), e sua região metropolitana em mais 1.409.021 habitantes segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo (NATAL. SEMURB., 2018). A história da cidade remonta efetivamente ao final do século XVI (MEDEIROS FILHO, 1991), (LYRA, 1998), (CASCUDO, 1984), arrastando-se lentamente ao longo de 200 anos. O cenário da Segunda Guerra Mundial, na primeira metade do século XX, possibilitou um maior crescimento em termos populacionais e da rede urbana (CLEMENTINO, 1995). A cidade foi fundada em 1599 (antecedida apenas pela construção da fortaleza militar na desembocadura do Rio Potengi em 1598) junto à sua Igreja Matriz de Nossa 10 “Espaços dos sonhares”, refiro-me ao diálogo entre Barbara Glowczewski e Félix Guattari que esse espaço, pensado pelos aborígenes da Austrália central, inclui “o ritual, o mito e a experiência onírica de encontro com espíritos ancestrais totêmicos, que também são agentes materiais que se transformam em todas as formas animadas e aspectos da terra e do céu” (GLOWCZEWSKI, 2015, p. 31). Encontro nessa fórmula o devir de artistas de rua atuando nesse lugar no qual o desenho e a pintura invocam os mitos, os ritos, o “encontro com espíritos ancestrais” da cidade enquanto transformam as suas feições. 27 Senhora da Apresentação (1599) e um largo à sua frente que só ganharia aspecto de “praça”, ou seja, que sofreria intervenção arquitetônica, em 1888 ganhando o atual nome, Praça André de Albuquerque, marco zero da cidade. As descrições, em sua maioria dos séculos XVIII e início do XIX constroem a imagem de uma cidade precária, cercada de mato, com poucas casas e ruas, sua igreja matriz e a sua igreja de escravos (TEIXEIRA, 2009). O século XIX inauguraria, talvez um período de maior fortalecimento da vida urbana com suas funções administrativas, comerciais e legais. Uma característica ideológica oitocentista, qual seja o esquadrinhamento e o alinhamento do espaço urbano, com a limpeza e o asseamento, o aformoseamento do espaço público e a valorização de profissionais para tais fins (o médico, o engenheiro, o fiscal), agia sobre a própria conduta dos indivíduos construindo a mentalidade da época. Os códigos de postura11 das cidades brasileiras no século XIX refletiam essa dinâmica, ao mesmo tempo em que normatizavam permissões e proibições, tornando determinadas práticas aceitáveis em detrimento de outras que iam se tornando criminalizadas (SELBACH, 2010). Esses códigos revelam a realidade da época e, curiosamente, mostram como a regulação do espaço físico e da forma urbana estavam imiscuídos com o controle do comportamento. Essa preocupação, que no final do século XIX também incluiu o controle dos escravos libertos e do trânsito crescentes nas cidades, vai concentrar-se cada vez mais neste último, uma vez que as cidades brasileiras, cada qual a seu modo, vão se preparar no século XX para o trânsito de automóveis. Essa realidade, um pouco mais tardia para Natal, foi sentida com mais vigor pela população, inicialmente na última década do século XX, associada a um fluxo migratório para a cidade e ao turismo (LOPES JUNIOR, 1997) como também pelo considerável aumento da frota de carros nas cidades do estado do Rio Grande do Norte no início deste século (CNT, 2018). Como se pode perceber, a partir desse breve passeio, trata-se de uma cidade que se desenvolveu ao longo de pouco mais de 400 anos, sendo pelo menos 2/3 destes longos e lentos. Não é o objetivo desta sessão inventariar a história da arte na cidade ou no estado, inclusive pela dificuldade de acessar uma fonte sistemática sobre o campo 11 Conjunto de regras originadas no Brasil colonial que tinham como finalidade a normatização e o controle da vida social: do trânsito, do comércio, da estética da cidade e das atividades profissionais, por exemplo. 28 e a história da arte no Rio Grande do Norte (CARVALHO, 2009). No quesito “arte”, especificamente urbana e “pública”, pode-se considerar como primeira expressão a “singela” arte sacra das suas igrejas (que até 1759 eram apenas duas). Em segundo lugar poderíamos considerar a arquitetura de seus prédios, mas que só toma contornos mais sólidos no século XIX com as preocupações sobre a forma urbana (NESI, OLIVEIRA, et al., 2001). Seria uma digressão por demais longa remeter à pré-história norteriograndense? É válido ressaltar a riqueza de sua arte rupestre espalhada por todo o estado (ALVES, 2010), como também a ancestralidade do graffiti, a ela atribuída (GITAHY, 1999). Figura 1. Galeria de Arte Popular nos anos 1960. Fonte: DHnet - Rede de Direitos Humanos & Cultura. São nomes como os de Maria do Santíssimo (São Vicente/RN, 1890-1974), Newton Navarro (Angicos/RN, 1928-1992) e Dorian Gray (Natal/RN, 1930-2016) que constroem efetivamente a referência sobre a arte no estado do Rio Grande do Norte, já no século XX. Os anos 1920 também conheceram uma época de ouro na modificação da paisagem da cidade e no florescimento das artes com a implantação de ideais modernistas, planos urbanísticos e o próprio desenvolvimento da imprensa e da literatura. O campo das artes em Natal nas décadas seguintes foi diversificado. Em 1950 o I Salão de Arte Moderna de Natal contribuiu para emergência dos artistas já mencionados, Newton Navarro e Dorian Gray (MEDEIROS, 2017). O professor Vicente Carvalho acredita que o primeiro concurso de artes visuais na cidade tenha sido realizado no ano de 1957 dentro do evento Jogos Olímpicos de Verão que teve como componentes da comissão julgadora os artistas Newton Navarro e Dorian Gray Caldas e os premiados, Thomé Filgueira e Túlio Fernandes. 29 Entre os anos 1960 e 1970 a busca do Estado pela modernização de sua estrutura administrativa favorece a criação da Fundação José Augusto e a ocupação de cargos públicos por artistas e intelectuais. É possível mencionar também nessa época uma expressão pública da arte que havia na cidade: a Galeria de Arte Popular e o Painel da praça das Mães, ambos na Cidade Alta, o primeiro bairro da cidade. A Galeria de Arte Popular estava situada na Praça André de Albuquerque, sítio mais antigo da cidade do Natal, construída nos anos 1960 durante a administração popular de Djalma Maranhão. Havia exposições de obras de arte no interior da galeria com obras de Xico Santeiro, Francisco Brennand, Maria do Santíssimo, Dorian Gray Caldas e Newton Navarro, o autor do painel na face externa da galeria. Figura 2. Praça das Mães Martha Salem Fonte: Elaborado pelo autor em agosto de 2018. Figura 3. Mural de autoria do artista Dorian Gray para praça das mães Martha Salem. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2018. 30 Da mesma década é o mural de Dorian Gray cujo tema “mães” dá nome ao local, a Praça das Mães Martha Salem, também em um dos sítios mais antigos da cidade (a praça em sua forma atual data de 1909, no entanto, o sítio remonta ao início do século XIX quando marcava o limite norte da cidade). A Galeria de arte popular destruída pela violência do regime militar, e a Praça das Mães, embora guarde ainda o mural de Dorian Gray, padece pelo esquecimento e por intervenções gráficas sobre a obra que causaram breves polêmicas e caiu no esquecimento12. Figurou durante um tempo na base do prédio por trás do painel, um “graffiti” discreto (Figura 4) que dialogava com o tema do painel do artista potiguar já falecido. Figura 4. “Mães”, mural de autoria do Raom Hai próximo ao mural de Dorian Gray em referência ao painel do pintor. Fonte: elaborado pelo autor em setembro de 2016. No entanto, esses trabalhos da década de 1960 nos ajudarão apenas a passear por um certo “muralismo” na cidade do Natal, uma “arte na rua”, diferente da “arte de rua”, mesmo num sentido amplo, mesmo num sentido estrito, sinônimo de “graffiti”. 12 “Painel de Dorian Gray na Praça das Mães é encontrado Pichado” por Lara Paiva para o jornal Brechando. . Acesso em 04/03/2019. 31 Os anos 1980, no entanto, viu o florescimento da arte contemporânea em Natal com artistas empenhados em intervir nos espaços da cidade como Sayonara Pinheiro, Guaraci Gabriel, Civone Medeiros e Cícero Cunha. Fundadora do coletivo “Oxente”, Sayonara organizou uma dessas intervenções junto com o coletivo, no então prédio abandonado, o solar João Galvão de Medeiros com o tema “Vômito: O Declínio Sinfônico da Sociedade” (PINHEIRO, 2013). Com a ideia de “captação ambiental” o coletivo se servia de materiais disponíveis em redor para composição das suas obras. A dinâmica desses artistas já possui um tom “de rua” pela forma, lugar e motivações com as quais organizaram suas intervenções. Nos anos 1990, a arte reaparece com a iniciativa de jovens e adultos em inserir seus trabalhos, marcas e trabalhos de artes, nos lugares diversos da cidade. Assim, a artes na cidade do Natal, se diversificaram. Nos anos seguintes observa-se o incentivo do Estado na restauração de prédios antigos que se tornaram galeria de arte, teatro, centros culturais, ou entidade pública. Também a iniciativa de grupos da cidade com apoio da iniciativa privada, investimentos diretos e através das leis de incentivo à cultura Câmara Cascudo e Rouanet, como foi o caso do prédio que abriga atualmente o espaço Casa da Ribeira, idealizado em 2001 pelo grupo de teatro Clowns de Shakespeare. Algumas galerias de arte comerciais foram inauguradas ao longo dos anos 1990 a 2000 arriscando manter-se num mercado de arte apático e de pouca duração. Permanecem, mas sem atrair público massivo, as galerias e centros culturais sob incentivo do Estado, e os espaços comerciais são “sazonais”. Atualmente os shoppings centers da cidade reservam espaços para exposição e/ou possuem “lojas-galerias” e, ao lado desse fenômeno de ordem predominantemente comercial, existem ainda dois seguimentos que renovam o sentido da arte na cidade: um seguimento alternativo que une gastronomia a exposições de jovens artistas da cidade (esse seguimento, como veremos, será um pedaço no roteiro do presente trabalho), “espaços híbridos expositivos” (SILVA, 2018); e outro segmento alternativo de feiras sazonais (mensais, trimestrais, etc.) que agrupam sebos, antiguidades, artesanato e artes plásticas. Quanto ao graffiti e ao pixo em Natal sua história é recente. Segundo relata Lisabete Coradini, Os precursores do graffiti em Natal foram Marcelino William de Farias, conhecido como Marcelus Bob, e Geraldo [Souza] e Luciano Lut (hoje tatuadores). O Artista Marcelus Bob é conhecido internacionalmente pelos 32 seus humanoides que, em Natal, podemos encontrar espalhados pela cidade. Suas “interferências urbanas”, como ele intitula sua obra, são referências para os grafiteiros contemporâneos. Sendo assim, em Natal, o grafite se consolida no final da década de 1990, e se soma a outra expressão que aparece nas ruas: o rap (CORADINI, 2016, p. 161). Figura 5. “TGA”, pichação do grupo “Torcida Gang Alvi-Negra” com referência aos bairros Cidade da Esperança (CDE) e Nossa Senhora de Nazaré (BNZ) na rua Hidrógrafo Vital de Oliveira. Fonte: elaborado pelo autor em março de 2019. Quanto ao “pixo” ou à “pichação”, Coradini afirma com base em pesquisa anterior (COSTA e DOZENA, 2014): As primeiras pichações na cidade de Natal surgem nos anos 1990, associadas ao surgimento das duas torcidas organizadas, ligadas aos dois clubes de futebol da cidade, a saber: a Gangue alvinegra do ABC Futebol Clube, e a Máfia vermelha, do América futebol clube. Essas torcidas utilizavam as pichações para demarcar seus territórios (CORADINI, 2016, p. 162). Esse histórico mostra o quanto a inserção da cidade do Natal é recente nessa dinâmica e como ela aí se insere de uma forma muito particular. Numa escala internacional, como já mencionado, o graffiti está ligado ao desenvolvimento dos transportes, notadamente aos trens, à cultura pop e ao futebol, ao movimento estético para pensar uma arte nas ruas da cidade, e às revoltas dos anos 1968. Os anos posteriores conheceria um crescimento desse fenômeno nas grandes cidades em todo mundo. Havia em Natal, nos anos 1970, um movimento de arte na rua com a galeria do povo, levada a cabo pelo artista Eduardo Alexandre (LEMOS, 2015), mas é só nos anos 1980 que a arte de rua, se compreendida por essas mesmas chaves de entendimento 33 (desenvolvimento do transporte, aumento da população, inserção em fluxos internacionais, etc.), começa a se manifestar. Portanto a linha férrea da cidade, que dos seus dias de glória no ciclo do algodão (CLEMENTINO, 1986) no estado foi reduzida a dois trechos na Região Metropolitana, não serviu de base visual, nem esteve inserida efetivamente no movimento de maio de 1968. No entanto, ainda que uma geração tenha levado formas variadas de arte para a rua, foi somente nos últimos vinte anos que a arte de rua identificada ao writing e ao graffiti ganhou espaço na cidade. O hip-hop é certamente um dos maiores indutores à prática da expressão pelo graffiti e por fazer uma nova geração de jovens da cidade, notadamente da periferia, a atuar nas ruas. A identificação com o hip-hop se encontra na luta contra a invisibilidade social e são expressas tanto nas letras do rap quanto pelo graffiti. Como afirma a pesquisadora: O grafite se instalou em Natal como uma rede de comunicação e expressão, inicialmente com a intenção de territorializar-se, tornar-se visível e vivo, nos ensinando a olhar a cidade e buscar, arqueologicamente, os resquícios de suas mensagens. Nos termos de Canevacci (1997), a cidade é espaço para as múltiplas manifestações e se refere aos mutantes processos de comunicação visual (CORADINI, 2016, p. 150). Ao etnografar as imagens da arte de rua, nessa busca arqueológica dos seus sinais e das suas mensagens inseridas em trajetos centrais da cidade do Natal, busquei questionar: a) Qual a relação dessas imagens com a cidade? Outras questões se colocam, portanto, no escopo dessa questão abrangente: b) Qual o papel da cidade na produção dessas imagens? Considerando a possibilidade de um processo entre os termos (cidade e imagem) a partir das questões anteriores: c) Como se dá a produção dessas imagens, ou seja, “quem”, “como” e “por que”? E, talvez de forma mais ousada: d) Qual o sentido dessa produção imagética? A partir dessas questões, a hipótese levantada é a de que: 34 Há uma relação dinâmica entre a arte de rua e a cidade num jogo de imagens que se inscreve na cultura, na história, nos processos sociais em curso na vida presente. Essa relação é marcada por uma produção simbólica13 e por uma reciprocidade14, ou seja, o que está traçado nos muros é produto formulações da e sobre a vida social e tem como objetivo interferir em suas dinâmicas realizando uma “troca simbólica”. Os artistas responsáveis por essa produção visual vivem o espaço urbano de forma que desenvolvem um saber-fazer sobre essa esfera15 que é realizado pela prática estética do caminhar. Os sentidos dessas interferências são variados, mas se expressam em formas, frases e personagens que compartilham uma visão e um agir no mundo. As intervenções da arte de rua expressam uma crítica da vida social e da cultura. Ao construir esse conhecimento “sobre” a cidade (a cidade como objeto de reflexão) e “através” da cidade (a cidade como meio e suporte de intervenção visual) inscrevem no tecido urbano suas experiências de vida, como também essas experiências passam a escrever suas trajetórias individuais. A prática do caminhar, do observar e do fotografar permeou grande parte deste trabalho em campo, e gerou um acervo fotográfico a partir do qual extraí o material que é apresentado e discutido na presente tese. Dele também extraio as imagens que ilustram cada capítulo e algumas sessões e que lhes serve de “epígrafe”. As quase 600 fotografias aqui apresentadas são de minha autoria, testemunhas que são dessa forma de escrita a qual optei em alternar com a forma do texto escrito. Seus títulos são, em sua maioria, um exercício de pensá-las e interpretá-las a partir das minhas próprias impressões ou mesmo a partir dos símbolos que elas disponibilizam. Um conjunto delas estará enumerada em todo o corpo do texto, intituladas e listadas na sessão de pré- textuais, e assim estão com o objetivo de não se confundir com as imagens utilizadas de 13 Para uma abordagem antropológica e dialética do símbolo ver (DURAND, 1993). 14 Refiro-me às trocas como “uma síntese imediatamente dada ao e pelo pensamento simbólico que, na troca como em qualquer outra forma de comunicação, supera a contradição que lhe é inerente de perceber as coisas como os elementos do diálogo, simultaneamente relacionados a si e a outrem, e destinadas por natureza a passarem de um a outro” (LÉVI-STRAUSS, 2015, p. 40-41). 15 Utilizarei a ideia de “esfera visual” ao longo do texto a fim de tocar na dimensão da cidade na qual as imagens emergem. Essa esfera compreende tanto os suportes variados, apropriados/planejados para fins comunicacionais (outdoors, por exemplo), como também aqueles reutilizados/ressignificados para os mesmos fins (muros e outros equipamentos urbanos). Não pretendo criar um conceito, mas salientar sobre a dimensão visual do fenômeno urbano. 35 outras formas e finalidades. Uma sessão é dedicada à narrativa visual dos processos criativos elaborados pelos interlocutores valendo-se da técnica/modelo sequencial. Duas sessões apresentadas em capítulos distintos trazem o levantamento fotográfico realizado durante a pesquisa em Natal com o trabalho de artistas variados. O capítulo seguinte traz um levantamento fotográfico da experiência de campo fora do Brasil, cujas sequências organizadas por cidade permite o leitor visualizar desde o suporte, às mensagens e as suas singularidades. No Capítulo 1, uma “antropologia da cidade grafitada”, esboço os percursos da escrita e da arte de rua. Abordo a relação entre cidade e imagem e passeio pela bibliografia antropológica sobre a cidade pintada. Ainda nesse capítulo abordo a produção do conhecimento subjacente à prática da arte de rua e à pesquisa acadêmica feita sobre o graffiti e o pixo/pichação por artistas pesquisadores em Natal. No Capítulo 2 discorro sobre a pesquisa e as estratégias de interlocução e imersão que resultaram no presente texto. Aqui apresento o papel do caminhar na prática etnográfica, ou seja, como prática de observação e participação na captura de imagens da arte de rua. Nesse mesmo esteio, explico o papel da fotografia e das imagens da arte de rua na elaboração do presente trabalho e apresento os resultados de uma experiência de imersão em colar cartazes/pôsteres lambe-lambe. No Capítulo 3 desenvolvo a ideia de “biograffiti” através da qual o andar e o grafar a cidade são compreendidos como práticas constitutivas das trajetórias de vida dos artistas. Nesta sessão são abordadas as trajetórias na arte de rua do RAOM HAI, do KEFREN POK e do ARBUS. Ainda neste capítulo, busco realizar uma discussão sobre as regularidades e as especificidades dessas trajetórias dentro de campos de possibilidades em diálogo com os artistas PAZCIÊNCIA e o grafiteiro francês KENDO. No Capítulo 4 apresento um conjunto de narrativas visuais nas quais abordo os processos de criação da arte de rua a partir da proposta de intervenção feita pelos artistas na cidade do Natal. Essas narrativas são apresentadas no modelo de pranchas sequenciais, onde o gesto e a técnica são capturados e apresentados pela fotografia. No Capítulo 5 abordo a diversidade visual na arte de rua em Natal através de fotografias coletadas durante o processo de pesquisa. Tendo realizado caminhadas exploratórias pela cidade com a câmera na mão, um número de significativo de 36 intervenções emergiu colocando a necessidade e o desafio de não as preterir. Para isso discuto o alcance da pesquisa e apresento as imagens do graffiti em muros e equipamentos urbanos diversos; o pixo, as escritas e mensagens diversas; e, os lugares abandonados ou esquecidos pelo poder público. No Capítulo 6 abordo as imagens da arte de rua através de fotografias coletadas durante a ampliação da experiência de pesquisa nas cidades de Barcelona, Paris, Bordeaux e outras cidades francesas. A partir da experiência de campo e da análise das fotografias desenvolvo as categorias experimentais de “discrição”, “extravagância” e “saturação” para ler a inserção e a disposição das artes de rua na cidade. 37 Figura 6. Mapa dos bairros e localidades da cidade do Natal/RN – Brasil. Fonte: Elaborado pelo autor a partir de SEMURB, 2014 e Google Earth, 2019. 38 CAPÍTULO 1 CAPÍTULO 1 – ANTROPOLOGIA DA CIDADE GRAFITADA. ANTROPOLOGIA DA CIDADE GRAFITADA 39 1.1. WRITING ART: PERCURSOS DA ESCRITA À ARTE DE RUA. Figura 7. “Tags rupestres” em um muro da rua Jouannet em Bordeaux, França. Fonte: Elaborado pelo autor em outubro de 2018. A arte de rua e suas grafias estabeleceram seu lugar na cultura em uma longa jornada. Num passado longínquo, ao qual as técnicas são geralmente remetidas (GITAHY, 1999), esteve a possibilidade de expressão do pensamento em rochas e cavernas e depois as inscrições políticas em Roma e Pompéia. No início do século XX foram a “arte viajante” dos hobos16 e tramps17 nos Estados Unidos e na Inglaterra com uma lógica errante e com o emprego de signos de comunicação interna; as pinturas dos trens na Revolução de Outubro de 1917; e, ainda as gravuras “Kilroy was here” deixadas por soldados norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial, exemplos de formas peculiares de ação na esfera visual da cidade. Também a cultura imagética das histórias em quadrinhos (comics) e dos desenhos animados (cartoons), anteriores ou concomitantes à Segunda Guerra Mundial, com personagens e cores vibrantes, tiveram 16 “Hobo” é uma expressão da língua inglesa que se refere ao trabalhador itinerante, sem-teto e pobre que viajava sem destino e quase sempre como passageiro clandestino em trens de carga nos Estados Unidos. Para uma abordagem sociológica ver Ezra Park (1992), capítulo 9. 17 “Tramp” é uma expressão inglesa para designar uma espécie de “vagabundo”, um sem-teto que viaja sem destino de um lugar ao outro. O termo parece ter se tornado uma forma de se referir a essas pessoas na Grã-Bretanha e na América do século XIX. Para uma abordagem sociológica e fotográfica ver Douglas Harper (2016). 40 influência significativa na produção do terreno no qual emerge o writing, a street art e o graffiti (FONTAINE, 2012). A forma dessa arte que se espalhou pelo mundo e povoou o arcabouço imagético das populações urbanas foi de fato o graffiti, redescoberto como forma de expressão da juventude do estado da Filadélfia por volta de 1965 (LEY e CYBRIWSKY, 1974). Nos anos 1970 em Nova York, a arte já aparece desenvolvida nas formas da tag18, da piece19, do character20 e da throw-up21 e nos anos 1980 já havia se expandido por todos os Estados Unidos e passava a chegar em outros lugares do mundo. Essa expansão se deu através de exposições em galerias, pelas mídias culturais e pelas relações interpessoais dos artistas (NOVAK, 2017). Também os momentos de passagem na história da arte são episódios que contribuíram para nutrir o terreno que diversas formas de arte urbana surgiram, como a arte na rua e de rua. Do dadaísmo à land art, têm-se os protótipos do caminhar, da deambulação como forma de escrever e inscrever nos espaços da cidade, ao próprio caminhar como forma autônoma de arte. Assim como o stalker de meados dos anos 1990 na Europa, os artistas de rua que atuam nos moldes dos interlocutores da presente pesquisa, estão em vias de perder-se entre as “amnésias urbanas”, onde encontra, “aqueles espaços que o dadá definira banais e aqueles lugares que os surrealistas definiram como o inconsciente da cidade” (CARERI, 2013, p. 30). Esse andar transurbante que a arte permite é, em alguma medida, aquele realizado por jovens e adultos norte-americanos, e depois por jovens em todo o mundo, cujos percursos arquitetam a paisagem urbana. A invenção da bomba de pintura aerossol, o spray, nos anos 1950, foi um marco técnico que acentuou sobremaneira a estética da deambulação juvenil e consequentemente da arte feita na rua. As subculturas dos grupos urbanos, a exemplo das torcidas de futebol, promoveram uma extensão visual do comportamento no estádio aos muros da cidade o que reforçou a identidade daqueles grupos, a simpatia 18 “Tag”, assinatura, etiqueta. 19 “Piece” (“peça”), abreviatura de “masterpiece” (“peça mestre”) um graffiti geralmente grande, complexo e trabalhoso em sua execução. Incorporam quase sempre efeitos 3D, setas, uma variedade de cores, e outros efeitos. Quase sempre são realizados por artistas com mais experiência. 20 “Character” ou “persona”, um personagem, marca de um artista. 21 “Throw-up”, é uma modalidade que está entre entre a tag e o bomb (uma forma ainda mais simples e rápida de escrita) no que toca complexidade e o tempo de realização. Consiste quase sempre no contorno de letras no formato de bolhas que são preenchidas por outra cor contrastante. Essa modalidade é feita de maneira rápida para evitar a abordagem policial e para conseguir espalha-la em vários lugares. 41 ou a rivalidade entre um e outro. Esse ponto histórico de agregação de conteúdo à trajetória da arte de rua é particularmente importante quando se fala da cidade do Natal/RN, à qual voltaremos mais à frente. Ainda que a rua tenha sido desde longa data o palco da maioria dessas manifestações da arte, é aparentemente entre os anos 1960 e 1970 que há um maior investimento nesses espaços das cidades em todo o mundo. Nessa dinâmica há o uso da rua como espaço poético e espaço plástico, seja pelas letras do “Poema Público” do escritor e poeta Alain Arias-Misson ou pelos estênceis do pintor e desenhista Ernest Pignon-Ernest, a partir da questão do lugar da arte nos limites entre a rua e a galeria e, como veremos, ecoa como tensão ainda hoje. Em outra direção, os anos 1960 viram surgir nos Estados Unidos os writers (“escritores”) que ambicionavam estar em todos os lugares da cidade através da inserção de sua marca/nome (na forma de um diminutivo ou pseudônimo), diferente daquele graffiti promovido pelas gangs, que tinham como objetivo marcar os limites dos seus territórios com a inserção da marca/nome do grupo (que se diferencia do termo cunhado pelos writers para definir seus agrupamentos, a crew [“equipe”]). A categoria writer será adotada fortemente nos Estados Unidos da época expandindo-se internacionalmente, mesmo após as primeiras leis anti-graffiti no começo dos anos 1970. Talvez pela rapidez na execução de uma “inscrição” (à época hits ou signatures, e depois a tag como referido atualmente) com bomba de aerossol e pela possibilidade de estar em toda malha urbana, o writing difundiu-se em ônibus, metrôs e nos muros das cidades (CHALFANT e PRIGOFF, 1999). Nessa dinâmica de expansão, experimentação de técnicas e adesões à arte, a simplicidade das assinaturas dá lugar a trabalhos mais elaborados: as “pieces” (letras garrafais contornadas [“peças”]), as “bubbles” (letras literalmente semelhantes a bolhas) e em meados dos anos 1970 aparece o “wildstyle” (um emaranhado de letras muito estilizado, tridimensional e difícil de ler). Os anos 1970 veem nascer o reclame do graffiti como arte através das associações de artistas nos EUA; as investidas do Poder Público em campanhas de “limpeza” nas cidades; e a prática da pintura de vagões de trens inteiros. A segunda metade dos anos 1960, com destaque para o ano de 1968 é um marco na agregação de conteúdo crítico às intervenções na paisagem visual de cidades em volta do mundo, como foi no Brasil, nos Estados Unidos e na França. No Brasil uma geração de jovens estudantes revoltava-se contra a Ditadura Militar e alcançava ponto 42 alto com a morte do estudante Edson Luiz numa ação da polícia no Restaurante Central dos Estudantes da UFRJ. Durante os protestos que levaram milhares de pessoas às ruas, palavras de ordem, faixas e “pichações” cobriram a paisagem do Rio de Janeiro. Uma das imagens mais conhecidas é a fotografia que captura um homem escrevendo “abaixo à ditadura” em um equipamento urbano. Nos Estados Unidos e na França havia o surgimento de uma juventude internacional insatisfeita com a Guerra do Vietnã e com as políticas do governo francês. Mas é no maio de 1968 na França que o paradigma da escrita política e a crítica se desenvolve, como nos exemplos célebres: “Écrivez partout” (“Escreva em todos os lugares”); “Ne travaillez jamais” (“Nunca trabalhe”), atribuída a Guy Debord; e, “Prenez vos désirs pour des réalités” (“Tome seus desejos por realidades”). Os temas da escrita na França durante maio de 1968 são variados e versam sobre a sociedade ideal, o simples prazer de escrever, o apelo ao levante, a crítica ao Gaullismo, a crítica da universidade, a contestação da ideia de arte, a crítica do sistema legislativo, a solidariedade, o ataque à polícia, a escrita de questionamento às regras fonéticas, a inspiração dadaísta (BESANÇON, 1968). No entanto, o contexto do final dos anos 1960, é de uma complexidade que envolve conflitos e transformações de ordem política, econômica, social e tecnológica em todo o mundo. No Chile é criada a Brigada Ramona Parra (BRP) em 1968 para pintar murais clandestinos para a campanha de Pablo Neruda, e posteriormente para a eleição de Salvador Allende. Os murais chilenos deviam ser visíveis ao máximo de observadores, feitos geralmente à noite e com atenção à atuação da polícia. O entusiasmo dos murais é brutalmente interrompido pelo golpe de Estado de Augusto Pinochet em 1973 que passa a perseguir os pertencentes da Unidade Popular (ao qual a BRP era sua frente muralista) com prisão e morte. As intervenções na rua entram num regime de discrição, com trabalhos de execução mais rápida que denunciavam a ditadura de Pinochet. Também na Irlanda do final dos anos 1960 a pintura foi evocada nas ruas e nos muros. Aquela prática era uma extensão do conflito histórico entre legalistas protestantes e republicanos católicos. Esse conflito esteve reproduzido também nas desigualdades cívicas e na própria divisão dos bairros. Multiplicaram-se nos muros as pinturas: entre os integrantes do IRA (Irish Republican Army) a revolta republicana, como também as homenagens aos mortos no Domingo Sangrento (Bloody Sunday); e, 43 entre os legalistas da UVF (Ulster Volunteer Force) e da UDA (Ulster Defense Association); a ação nos muros marcava um território e afirmava uma identidade. A partir dos anos 1980 as propagandas legalistas investem em murais carregados de imagens de combatentes encapuzados e armados com o objetivo de impressionar pela violência da mensagem. Após o Acordo de Belfast, assinado em 1998 entre diferentes partidos, as tensões começam a se dirimir lentamente. No entanto, a cultura dos muros pintados permanece comemorando eventos históricos, os murais de lembranças mais dolorosas são cobertos e novos temas como o futebol começam a aparecer. Entre os anos 1970 e 1980 o writing está em seu apogeu nos Estados Unidos, sobretudo em Nova York com um número crescente de writers. Esse período é também o de uma grave crise orçamentária, desemprego e de políticas que agravaram as desigualdades entre os bairros da cidade. É nesse contexto que o movimento Hip-hop vem à tona, ligando-se ao movimento writer posteriormente. Esse é também um período de endurecimento do Estado contra o graffiti na mobilização em apagar os seus traços. Curiosamente, ao lado da repressão à prática writer, várias galerias passaram a se interessar por aquele tipo de arte ao mesmo tempo em que diferentes estilos, meios e técnicas se consolidavam, muitas vezes experimentados nos black books (um caderno de esboços) antes de ir para os muros. Até então, a corrida dos writers por estar em todo lugar e a rivalidade das tags, no metrô somados a ausência de remoção das marcas, criou uma atmosfera visual “saturada” (categoria desenvolvida no capítulo 6). No começo dos anos 1980, com o fim da crise orçamentária da cidade de Nova York, a campanha de dissuasão da arte põe fim a era de ouro do writing no metrô. Durante os anos 1980 o writing passa a se estabelecer midiaticamente, seja pela campanha contra, pela curiosidade das mídias ou pelo engajamento “underground” na produção documental. Num quadro de busca de reconhecimento social e artístico e das intempéries da repressão do Estado e mesmo da vida familiar nas trajetórias individuais, ocorre também uma ampliação dos suportes incluindo agora os meios legais com a introdução da “tela”, da galeria e das exposições coletivas. Essas exposições trazem à tona nomes como os de Keith Haring e Jean-Michel Basquiat associados à estética e ao movimento da arte na rua. Esse é também o contexto de surgimento do termo “street art”, na dinâmica da busca pelo reconhecimento, inclusive institucional das práticas que usam a rua como 44 suporte para arte. A categoria passa a abarcar variadas técnicas e estéticas e os artistas passam a denominar seus trabalhos de forma diversa expondo tanto nas ruas como nas galerias. A street art tende ainda a diferenciar a prática do graffiti do “vandal/vandalism”/“vandalismo”. A “arte de rua” parece, no entanto, não nascer em um lugar específico, mas em lugares diversos com a ideia constante de experimentar, significar e interferir na rua e na vida urbana. Assim, a ideia de intervir artisticamente na rua encontra eco no movimento dadaísta, no ready made do início do século XX e inspira, entre os anos 1969 e 1982, o artista francês Gerard Zlotykamien22 em suas intervenções que denunciam os crimes contra humanidade. A aventura urbana em desbravar a rua é vivida também por “Blek le rat” que espalha uma série de figuras feitas a estêncil, do qual foi um precursor, na Paris da primeira metade dos anos 1980. A atuação na rua encontra forte significado na prática do grupo “Vive La Peinture” (VLP) que é influenciado pelos ideais do Maio de 1968 e que reage também à arte conceitual usando jogos de palavras na tônica de uma poesia urbana. A poesia é ainda um forte recurso no trabalho de “Miss.Tic”, artista atuante nas ruas e nas galerias francesas. As composições da artista demonstram um conteúdo crítico ao jogar com obras clássicas da pintura e com frases de escritores célebres. Entre os anos 1980 e 1990 a difusão midiática da cultura, em grande medida da cultura norte-americana, permite a expansão da cultura hip-hop em vários lugares do mundo. O movimento que agrega a escrita/writing, a música composta pelo DJ, a breakdance e o Rap chega a Europa. Em 1983 na Holanda e na França são abertas as primeiras galerias dedicadas ao graffiti, pouco tempo depois daquelas inauguradas nos Estados Unidos. A publicação de livros dedicados a arte urbana contribui para a difusão de referências culturais. Essa internacionalização da arte ocorre ainda com uma série de intercâmbios de experiências e saberes entre os artistas norte-americanos e europeus. Nessa altura, já existe um estilo que envolve as quatro dimensões do hip-hop, mas também uma maneira de se portar com vestimentas e com a busca da fama. O writing alcança na França o reconhecimento institucional que o leva às salas dos museus. Ao mesmo tempo em que ganha prestígio, o universo writer torna-se alvo de uma 22 Ver: “The Art of the First Street Artist Gerard Zlotykamien in an Exhibition at Galerie Mathgoth” por Elena Martinique para Widewalls. . Acesso em 04/03/2019. 45 repressão crescente resultando em multas e prisões denotando, já no final dos anos 1980, o dilema entre reconhecimento e ilegalidade correntes nas décadas seguintes. A arte de rua se constituiu também como uma forma de resistência à preponderância dos muros nas cidades e em suas fronteiras como elemento de segregação social. Dessa forma o Muro de Berlin é um ícone dessa segregação e que passa ser coberto por graffitis durante toda a década de 1980. Nomes como Thierry Noir e Keith Haring pintam murais quilométricos entre os anos 1984 e 1986. Na África do Sul com a segregação racial do Apartheid, os muros de confinamento de comunidades negras são testemunhos da violência do regime como também da resistência política pelas campanhas eleitorais multirraciais. Nesse mesmo contexto, a pintura dos muros salienta outras questões da vida social como as territorializações das gangues, o combate ao abuso de menores e a campanha contra o HIV. Nos Estados Unidos a construção de muros na fronteira entre o país e o México, e na Palestina o muro entre Israel e Cisjordânia denotam a consolidação dessa segregação. Nos muros e paliçadas do “Mural da Irmandade” ou nos trabalhos do Banksy na Palestina, o graffiti também se afirma como sonho de ver esses muros virem abaixo. A busca pela visibilidade no universo writer é marcada por tensões em lugares diversos do mundo, como demonstram alguns eventos. A intervenção feita pelos “graffeurs” franceses na Figura 8. Keith Haring para o fosso do elevador do Museu de Arte Contemporânea de Bordeaux. Fonte: Elaborado pelo autor em novembro de 2018. 46 estação do metrô Louvre-Rivoli na Paris do começo dos anos 1990 marcou uma tensão com o poder público23. O golpe das tags na estação mais respeitada de Paris teve como efeito o endurecimento contra os grafiteiros ao nível da reformulação do código penal sobre os delitos ligados à prática writing, incluindo o recolhimento do infrator à prisão. Por outro lado, nos anos 1990, a atividade se espalha pelas cidades francesas, livros de referência são lançados por adeptos do graffiti, fanzines e revistas especializadas passam a circular além das exposições em tela. Na segunda metade dos anos 1990 em Paris os grafiteiros, o graffiti e os estilos se multiplicam mais ainda, as throw-ups são mais constantes, as portas de rolo dos comércios da cidade passam a ser suporte para os graffitis. Figura 9. Tags e Stickers em Rue de Rivoli, Paris. Fonte: Elaborado pelo autor em abril de 2018. No Brasil dos anos 1980, em várias cidades, com grande força em São Paulo, aparece um gênero singular, a “pichação”. A palavra remonta às mensagens políticas escritas com alcatrão/piche nos muros das cidades brasileiras desde os anos 1940. Nos anos 1960 as mensagens de protesto contra o regime militar no Brasil se multiplicam e o tom das intervenções gráficas nas ruas se coadunam com a poética dos protestos 23 “Graffiti illégal : cette nuit où des tagueurs ont ravagé la station Louvre-Rivoli” por François Chevalier para Télérama. Fonte: . Acesso em 05/04/2019. 47 mundiais alcançando seu apogeu no ano de 1968. O auge da insatisfação popular nos anos 1970 parece ter sido o elemento disparador para o crescimento das escritas nos muros da cidade e até o início dos anos 1980 passa a conhecer variedade de traços, cores e formas. São Paulo é o terreno de aparecimento de grafiteiros como Alex Vallauri, Hudnilson Júnior, Maurício Villaça, Jorge Tavares e Celso Gitahy, autor do livro “O que é graffiti” (1999) pela coleção Primeiros Passos da Editora Brasiliense. Esses artistas trabalhavam inicialmente em grande parte com a técnica do estêncil. Também o artista norte-americano John Howard protagonizou inúmeras pinturas coloridas na cidade de São Paulo e influenciou posteriormente outros artistas a exemplo de Rui Amaral, influenciado, por sua vez, pelo trabalho de Keith Haring, que esteve no Brasil entre 1984 e 198624. A evolução de arte de rua no Brasil embora seja um fenômeno complexo, conhece uma diferenciação básica entre o graffiti e a pichação, às vezes grafada “pixo”, “pixação” ou “Xarpi”. A partir dos anos 1980, a “pichação” é ressignificada para dar nome as assinaturas espalhadas na cidade por jovens, em grande parte da periferia. Como atesta o documentário PIXO (Pixo, 2009) sob a direção de João Weiner, a tipografia das assinaturas foi fortemente inspirada nas capas dos LP’s de heavy metal. As assinaturas mais elaboradas também foram chamadas “grapixo”, uma referência à complexidade do graffiti somada à “simplicidade” das assinaturas. É uma característica do pixo, a escala de aplicação, ou seja, fachadas inteiras de prédios da cidade que se repetem incessantemente, marcam a pertença a um grupo de pixadores e, muitas vezes, se desenrolam num clima de forte competição. Os grupos de pixadores se caracterizam pelo encontro para pixar, geralmente no centro da cidade de São Paulo, precedido pelo treino das assinaturas num caderno. A prática da pichação é muito malvista, designada por parte da população como “vandalismo” e se opõe, algumas vezes, categoricamente contra as várias formas da “street art”. Essa contraposição ficou marcada com a intervenção de uma dezena de pichadores na bienal de São Paulo em 200825 e, no 24 “Keith Haring e as areias do tempo” por Carlos Albuquerque para o jornal O Globo. . Acesso em 04/03/2019. 25 “Bienal sofre ataque de 40 pichadores no dia da abertura” por Camila Molina para o jorna Estadão. . Acesso em 04/03/2019. 48 mesmo ano na escola de Belas Artes26. Essas ações demonstram uma tentativa de não ser confundido como “artista” e de romper com os constrangimentos institucionais relacionados à arte. No Brasil de meados dos anos 1980 o graffiti torna-se mainstream e a diferenciação em relação à pichação fica mais nítida (MANCO, ART e NEELON, 2014). Soma-se nesse momento também a influência exercida pelo hip-hop do graffiti nova- iorquino. Nesta cena emerge artistas como Os Gêmeos cuja entrada no mundo do graffiti se deve à música e à dança no hip-hop. Nesse contexto se estabeleceram lugares dedicados à cultura hip-hop e consequentemente à prática do graffiti. Os anos 1990 foram de desenvolvimento desse campo no mundo e no Brasil, e neste com o desenvolvimento de técnicas, com a busca de criações, com trocas artísticas internacionais e, até o começo dos anos 2000 havia filmes, revistas, fanzines, além da arte nacional se projetar internacionalmente. A prática do graffiti se estabeleceu e se desenvolveu no Brasil, enfrentando hoje a relação ambivalente de ainda ser alvo do abuso de poder da polícia, e de ser um modo de vida permeado fortemente pela sociabilidade e pela busca da expressão. De lá para cá, writing, graffiti, pixo ou, de forma englobante aquilo que chamamos “arte de rua” ganhou as ruas e o arcabouço imagético das pessoas. Parte de uma trama complexa, esse tema não será reinventado neste trabalho, mas será abordado em uma dinâmica particular. Ou seja, será desenvolvido a partir da surpresa das imagens da e na cidade, nas tramas que ocorrem em grande parte na rua, e que são constituintes de visões de mundo. De toda maneira, para além das intenções que, às vezes, desejam lhes aniquilar, essas formas possuem um lugar estabelecido que pode ser muito bem observado nas ruas de cidades de todas as proporções em todo o mundo; em sessões inteiras de livrarias dedicadas ao graffiti ou à street art; na composição da paisagem de filmes e de jogos de vídeo game; na consagração de artistas pelo reconhecimento de seus trabalhos; e, não obstante, pelo crescente interesse acadêmico. 26 “Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte” por Laura Capriglione para o jornal Folha de São Paulo. . Acesso em 04/03/2019. 49 1.2. UMA ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA 1.2.1. CIDADE E IMAGEM Na pesquisa que resultou em minha dissertação de mestrado (BARBOSA JÚNIOR, 2013), estive preocupado inicialmente com a questão da violência urbana, tema que vinha pesquisando anteriormente com viés demográfico. No entanto a abordagem antropológica levou-me a considerar a produção do sentido e a relativizar visões dominantes sobre a relação entre violência e lugar. Dessa forma, ao partir para o campo, deparei-me, dentre outras coisas, com representações visuais curiosas: murais que pareciam reforçar, em alguma medida, o estigma daqueles locais. Senti não ter problematizado suficientemente essa questão, uma das razões pelas quais resolvi pesquisar a construção das imagens da cidade do Natal através da arte de rua em suas intervenções na cidade. O que eu tinha em mente para uma pesquisa em antropologia urbana tinha sido, a princípio motivada pelas referências: era a cidade um modo de vida (WIRTH, 1979), um palco de interações (HANNERZ, 2015), (GOFFMAN, 2009) e uma forma com zonas marcadas por valores variados, as regiões morais (PARK, 1979). Também a experiência de campo anterior havia feito refletir sobre o papel da dimensão visual na etnografia e na antropologia. Havia aí, portanto, um campo de possibilidades tanto analítico (CAMPOS, 2012), quanto metodológico (MEAD, 1995). Naquela experiência de pesquisa para escrita da dissertação de mestrado, estabeleci uma relação entre o urbano e o visual27, que ficou para ser aprofundada e desenvolvida posteriormente. De forma empírica, foi o conjunto daquelas imagens, “pichações” fotografadas durante a pesquisa de campo, que serviram como mote a questionar o papel das imagens na reflexão antropológica e na escrita etnográfica. Aqueles traços, inseridos nos muros ou em outras bases de aplicação dos bairros 27 Talvez a ideia de “imagem” que estava implícita no trabalho estivesse mais próxima a uma concepção primária de imagem como sua forma imaginada, mentalizada e, consequentemente verbalizada, mas não materializada como arte plástica. Essa dimensão da imagem, plural em muitos sentidos, interessa-me desta vez por parecer “verbalizar” sentidos em que a voz é, muitas vezes, calada ou quando não há espaço para fala, ou ainda, de uma forma ou de outra, ser a maneira mais “objetiva” de expressar uma ideia, uma visão de mundo. 50 pesquisados, levantavam questões sobre a produção de signos e as interferências nos fluxos imagéticos no tecido urbano. Um marco nos estudos sobre a cidade está no trabalho dos pesquisadores da Escola de Chicago que, no início do século XX, problematizaram a questão urbana sob o signo da Ecologia Humana (PIERSON, 1970), preocupados que estavam com a investigação da relação entre processos sociais e processos bióticos. A questão desses estudos é o processo no qual os indivíduos relacionam-se entre si, suas influências e os seus impactos, daí, portanto: o crescimento da cidade, da delinquência juvenil, das perturbações mentais, da migração, da segregação espacial, do suicídio, problemas que, decorridos mais de cem anos, ainda fazem parte da dinâmica das cidades. Em “O crescimento da cidade”, originalmente publicado em 1925, Burgess desenvolve o conceito experimental de “zonas” ou “círculos concêntricos”. A ideia principal é a de que as grandes mudanças sociais “são medidas pelo crescimento físico e pela expansão das cidades” (BURGESS, 1970, p. 353-354). Dessa forma, a concepção de círculos concêntricos seria uma espécie de ilustração dos processos de expansão ou sucessão da cidade e da tendência de uma área invadir a outra. É importante ressaltar, que mesmo Burgess considera, a imperfeição dessa ilustração, pois nenhuma cidade se adapta completamente a este esquema ideal dos círculos concêntricos. Mas os processos de expansão podem ser estudados não apenas em seu crescimento físico e comercial, mas também no seu ritmo, nas mudanças na organização social e nas tipificações de personalidade, Nessa multiplicidade de grupos, com seus diferentes padrões de vida, a pessoa encontra o seu mundo social afim – o que não é possível nos estreitos limites de uma vila – podendo mover-se e viver em mundos largamente separados e, quiçá, em conflito. A desorganização pessoal pode consistir apenas em deixarem de harmonizar-se os cânones de conduta de dois grupos divergentes (BURGESS, 1970, p. 362). Os fenômenos de expansão e metabolismo, ou seja, fenômenos do crescimento e de “vida” e “morte” das cidades, indicam, por um lado, que um grau moderado de desorganização pode facilitar a organização social, mas, por outro, lado a rápida expansão urbana pode vir acompanhada de índices indesejáveis de doenças e crimes, por exemplo. Os fenômenos de expansão e metabolismo parecem, por conseguinte, 51 estar ligados a processos que têm um efeito como “onda de maré” e que, exemplificado pelo fenômeno da imigração, representam movimento e mobilidade. Para Burgess, é mais fácil “classificar” o movimento dentro da cidade do que “medi-lo”: “Há o movimento de residência para residência, mudança de ocupação, repasse de trabalhadores (labor turnover), movimento de ida e volta do emprego, movimento para diversões e aventuras” (BURGESS, 1970, p. 364). Mas há uma diferença entre “movimento” e “mobilidade”. Para o autor “movimento”, em si, não é evidência de mudança ou crescimento. O movimento do tipo significativo é aquele que muda diante de uma nova situação ou estímulo, ou seja, é “mobilidade”: “O movimento da natureza da rotina encontra sua expressão típica no trabalho. A mudança do movimento, ou “mobilidade”, expressa-se caracteristicamente na aventura” (BURGESS, 1970, p. 365). Como veremos a seguir, é na “aventura” em desbravar a cidade, tantas vezes hostil ao movimento dos citadinos, que jovens artistas percorrem trajetos deixando suas impressões artísticas e biográficas. Sua atuação na cidade, longe das ideias formuladas pelo senso comum, são indicadores do crescimento da cidade e dos processos em seu encalço, seja de uma renovação da produção da arte, seja de evidenciação e contestação das desigualdades sociais. O objeto do presente trabalho insere-se nesse quadro de expansão da cidade e de transformação dos modos de vida, tendo em conta o seu lócus como uma metrópole em formação (CLEMENTINO e PESSOA, 2009). Em muitas circunstâncias, os processos urbanos hoje assemelham-se aqueles investigados, seja pelos estudos clássicos, seja pelas abordagens contemporâneas. Traçar esses paralelos com o presente estudo importa pela inserção de seu objeto dentro de processos sociais particulares, inseridos em processos sociais amplos como os movimentos de mudança e continuidade na vida da cidade (VELHO, 2003). Na tensão entre estes movimentos se insere o processo de intervenção da arte de rua e que parece requerer de seus autores uma contínua “negociação da realidade”. Essa constatação na pesquisa faz com que, Ao se perceber a vida social como um processo, contraditório e complexo, em que a realidade tem de ser permanentemente negociada por diferentes atores, a possibilidade do conflito e da disrupção perde o seu caráter catastrófico e anormal para ser encarada como mais um fenômeno a ser pesquisado (VELHO, 1997, p. 57). 52 Velho coloca nitidamente a possibilidade de, na dinâmica da cidade, abordar o conflito como um objeto de análise. Ou seja, a vida social urbana, entendida como processo “contraditório e complexo”, é perpassada cotidianamente pelo o que o autor compreendeu ser essa negociação da realidade. Ao abordar as trajetórias individuais de jovens artistas de Natal, percebe-se que há um conflito de natureza geral que tem a ver com o campo da arte urbana, e de forma mais específica esse conflito se dá na rua na interação face a face com pessoas comuns e, algumas vezes, vai até situações em que o conflito declina em violência, em grande parte pela abordagem policial. Com essa problemática, estamos lidando diretamente com a vida mental e o conflito na grande cidade (SIMMEL, 1979). Nos encontros cotidianos da vida metropolitana, a possibilidade de dissociação coloca o conflito como forma possível de restauração da unidade: “A conflict breaks out only based on them; thus it is actually a curative move againts the dualism leading towards division, and a way to work out some kind of unity, even if by annihilating one party” (SIMMEL, 2009, p. 227). Trata-se de um processo de sociação, ou seja, “os indivíduos estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si e pela determinação recíproca que exercem uns sobre os outros. (...) Algo que os indivíduos fazem e sofrem ao mesmo tempo” (SIMMEL, 2006, p. 17-18). A arte de rua tem sintetizado esses processos desde muito tempo tocando em vários problemas sociais. Ao longo de seu desenvolvimento produziu um conhecimento sobre a cidade tendo a rua como laboratório e atelier. Ainda que tenha sido “domesticada” para propósitos institucionais e mercantis, conserva em suas variantes a insujeição e a indocilidade. Quando o assunto é a cidade propriamente como um problema social, nada mais significativo do que os seus muros utilizados como suporte, já que em sua natureza e propósito têm servido, junto com o discurso sobre a violência, para a manutenção da desigualdade e da distância entre as pessoas (CALDEIRA, 2000). O lugar da imagem na cidade, como o das pessoas que a habitam, também é uma realidade negociada. Os lugares de destaque para os outdoors e para a propaganda em geral, como também para as sinalizações diversas, são disputados e negociados. Aqui não se trata de abordar o valor na política fundiária, mas a importância que assume os lugares específicos da cidade e os seus equipamentos como suportes para a imagem, notadamente para a arte urbana. A produção dos espaços da cidade, tendo a arte de 53 rua como “sintoma” desse processo geral coloca, portanto, a questão da paisagem urbana, seja na esfera da comunicação visual, e mesmo da cultura visual. Em todos esses aspectos, que constituem propriamente um “tecido visual” da cidade, as coisas do urbano, Objetos, serviços, cultura e entretenimento não só habitam o cotidiano como fazem parte de uma cultura de consumo que demanda exposição para que possam circular. Não à toa, a cultura pop nasce com Andy Warhol e Roy Lichtenstein, nas artes plásticas; com o rock’n’roll, na música; além do coletivo inglês Archigram, que foi pioneiro na incorporação da publicidade à linguagem arquitetônica (RODRIGUES, 2011, p. 17). O processo de modificação da cidade mediado pela arquitetura, pela arte e pela propaganda, sem dúvida atua nessa esfera visual dando contorno aos lugares e enchendo-os de signos. Como já mencionado, a transformação das paisagens urbanas não encontra terreno apenas na dinâmica fundiária, mas na própria cultura visual das grandes cidades. Trata-se da “metrópole comunicacional” onde “variegadas e fluidas formas de comunicação que cruzam essa nova metrópole [vão] se tornando mais importantes do que o conceito de sociedade” (CANEVACCI, 2004, p. 112). Como percebido por Canevacci em São Paulo, mas possível de ser vista em outras cidades, a dinâmica está baseada no “tríptico da contemporaneidade pulsante: cultura-consumo- comunicação” como também na “fantasmagoria das mercadorias-visuais” que têm vida social, corpo, alma e biografia (CANEVACCI, 2001). Não deve espantar o papel assumido pela arte de rua na trama urbana, seja para apontar as falhas do Estado para com a cidade, seja para, em virtude dessas falhas, ocupar os espaços transformando-os em lugares outros, heterotópicos (FOUCAULT, 2013). A complexidade na qual está inserida permite, portanto, múltiplas abordagens, nem sempre uníssonas, mas cruzando, algumas vezes, pontos em comuns com a juventude, a violência e a deriva urbana. O papel da arte de rua e das suas variantes parece, portanto, ter rompido há muito tempo com esquemas internos simples ou com o senso comum e a opinião pública. O estêncil, o graffiti e o pixo/pichação são a partilha sensível (RANCIÈRE, 2005) da arte produzida na rua que, tendo invadido as residências dos que as produzem e dos que as consomem, como também as galerias, os shoppings, 54 os filmes, as roupas e a própria universidade/academia, retornam com um conhecimento sofisticado sobre a vida urbana. 1.2.2. GRAFITEIROS, PIXADORES E A ARTE DE RUA NA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA. As marcas deixadas nos muros das cidades brasileiras possuem histórias e razões que se aproximam e se distanciam em suas singularidades. Assim é, por exemplo, a diferença entre o graffiti e a pichação. Segundo o artista e pesquisador, Tanto o graffiti como a pichação usam o mesmo suporte – a cidade – e o mesmo material (tintas). Assim como o graffiti, a pichação interfere no espaço, subverte valores, é espontânea, gratuita e efêmera. Uma das diferenças entre o graffiti e a pichação é que o primeiro advém das plásticas e o segundo da escrita, a palavra e/ou a letra (GITAHY, 1999, p. 19). As histórias dessas artes no Brasil são quase sempre contadas a partir da perspectiva da região Sudeste, notadamente das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Não é coincidência que as cidades mais populosas do país sejam referidas como palco de surgimento dessas formas, como também precursora de uma variante mundialmente conhecida, o “pixo” (Pixo, 2009). No entanto, a proporção territorial do Brasil e a sua diversidade cultural proporcionou o desenvolvimento de formas e trajetórias singulares. Também o impacto, ou seja, a recepção de cada uma dessas formas por um público especializado, geral ou mesmo o Estado, é diferente e instável. Assim, no início dos anos 1990 na cidade de Fortaleza no estado do Ceará, região Nordeste do Brasil, jovens de bairros periféricos estabeleceram uma territorialidade baseada na dinâmica das gangues e das galeras (DIÓGENES, 1998). Tal dinâmica foi constituída por encontros e performances que tinha como um dos principais objetivos atrair o olhar espectador como forma de obter visibilidade e instituir-se como gangue. Uma espetacularização da violência na atuação desses grupos denotava a reprodução da desigualdade social no espaço urbano. É ao cruzar essa fronteira que esses grupos cearenses organizam o “agito” na cidade, nessa territorialidade que envolve os bailes funks, os locais de “enxame” e as zonas de ronda policial. 55 A complexidade dessa territorialização na lógica das gangues também envolve regras, hierarquia e reciprocidade e, em sua cartografia percebe-se uma relação básica entre o espaço e o indivíduo. Para a pesquisadora, O território das gangues é movediço. Ele se constitui sob o referente territorial, o lugar de moradia e circula, explicita-se, através do nomadismo de seus integrantes, em pontos diversos da cidade. (...) Cada local, mas que um uso tendo por base a moradia, pressupõe ação, enfrentamento, domínio e refúgio. Cada local é cena de disputas, palcos de tramas de reconhecimento onde se produz atores, registra-se marcas, institui-se territórios físicos, corporais e outros, que ficam indeléveis, fincados nas mentes e corações (DIÓGENES, 1998, p. 211-212). Essa relação de territorialidade desenvolve-se, ainda, na elaboração de um conhecimento sobre a dinâmica da cidade, dos seus riscos, disputas, relações de poder e desigualdades. Ela prenuncia aqui o que estou chamando nas sessões seguintes de uma “produção do conhecimento” que é percebida também por outros pesquisadores. Como lugar de enfrentamentos, a cidade é o palco também da explosão da violência, do confronto com a polícia, das hierarquias onde “conhecer” a cidade rompe com os limites físicos, como “linhas de fuga” (DELEUZE e GUATTARI, 2012) no movimento das metrópoles modernas. O lugar privilegiado da cidade onde se desenrolam essas tramas é a rua, palco onde os jovens afirmam sua presença e encontram na pichação a forma gráfica da sua existência. Desde, pelo menos, meados dos anos 1980 a pichação ou o “charpi28” faz parte da paisagem urbana de Fortaleza e da sociabilidade de jovens cearenses. É uma forma muito particular de “escrita” e de letra estilizada que se aproxima e se distancia das práticas “originais” das gangs e dos taggers no writing norte-americano. O “charpi” fortalezense não se reduz a assinaturas e abreviaturas, mas agregam frases e formas híbridas entre desenho e letra. Essas marcas estão carregadas de memórias e intenções, como são as da sociabilidade entre pichadores e do desejo de visibilidade em “meter seus nomes” e “detonar” na cidade (SANTIAGO, 2011). 28 Nesta sessão, manterei as formas originais de definição das artes que os autores utilizaram em seus trabalhos. Assim serão encontradas nos parágrafos a seguir as formas “charpi”, “pichação”, “pixo” e “graffiti”. 56 Como já mencionado, o caminho da arte de rua em Natal também possui sua singularidade, com aproximações e distanciamentos das formas clássicas do writing. Outras cidades brasileiras conhecem o fenômeno em suas singularidades e são problematizadas no escopo das pesquisas sociais. Dessa forma, a pesquisa de Alexandre Pereira (2005), ao abordar o percurso dos jovens nas ruas São Paulo, traz à tona as práticas de inscrição do “pixo” em muros, prédios e viadutos. Em São Paulo a apropriação do espaço através dos pontos de encontros (points) e no movimento pelos trajetos entre centro e periferia, percebe-se também uma dinâmica territorial. Neste trabalho o pesquisador reconhece a elaboração de um conhecimento sobre a cidade: “os pixadores têm uma forma muito particular de vivenciar a cidade. Apesar de serem acusados de sujá-la e torná-la mais feia, eles a conhecem como poucos, circulando pelos mais diferentes lugares e percorrendo todas as regiões, da periferia ao centro” (PEREIRA, 2005, p. 40). Também nessa pesquisa, a rua é o lócus de atuação, da sociabilidade com amigos e dos conflitos, como também da busca de aventura e do lazer. São, predominantemente, homens jovens da periferia de São Paulo e, as suas ações na rua, diferenciam-se esteticamente da prática do graffiti. A experiência na rua, conforme constata o pesquisador, é geradora de um conhecimento particular e aqui a territorialidade é mais uma vez importante. É na rua que os pixadores constroem a forma peculiar de ocupação dos espaços da cidade, os points: são jovens em práticas de lazer e sociabilidade que encontram um ponto em comum no pixo29. A natureza, no entanto ilegal e transgressiva da atividade entra quase sempre em conflito com os órgãos de repressão policial, fazendo do point muitas vezes móvel nos lugares possíveis da cidade como demonstra sua etnografia. Esse caráter móvel do espaço social vivido por jovens também foi identificado em outro lugar (DIÓGENES, 1998) no que tange as territorialidades móveis das gangues na Fortaleza dos anos 1990. “No point são marcados os rolês” (PEREIRA, 2005, p. 52). O “rolê” é a expressão do movimento dos jovens na cidade, e significa “dar uma volta” ou “sair para se divertir”, ao passo que, para os pixadores significa “sair para pixar a cidade”. “O melhor lugar para se pixar é o centro, pois é por onde passam pixadores de todas as regiões. Assim, as 29 O pesquisador sugere que outros trabalhos demonstram essa mesma dinâmica em outras cidades. Ver PEREIRA, 2005, p. 48. 57 pixações feitas na região central adquirem maior visibilidade” (PEREIRA, 2005, p. 55). Isso ocorre porque a maioria dos pixadores é das quebradas, ou seja, da periferia, região da cidade em que moram. Dali tomam seus trajetos para pixar no centro e encontrar os pares no point. A categoria “quebrada” é ambivalente e pode invocar tanto a ideia de um lugar longínquo, um bairro periférico, pobre e violento; como pode identificar um lugar comum e familiar das periferias da cidade na representação dos pixadores sobre elas. Assim, o centro é o lugar onde os pixadores de todas as partes da cidade interagem, e a periferia e as suas quebradas, os lugares de referência para as relações de reciprocidade. Assim como em Fortaleza e em São Paulo, Natal também conhece uma territorialização da cidade levada a cabo por “gangues”, “grafiteiros” e “pichadores”, para falar apenas de alguns daqueles que a tomam como suporte para os seus grafismos ou as suas artes plásticas. Selecionam lugares para intervir, outros para sociabilizar e, outros ainda para as duas coisas. Os lugares da cidade, nesse sentido, não são apenas de passagem. Quanto às categorias da arte, elas podem sinalizar identidades, mas podem ser também redutoras ou simplificadoras das realidades e esconder em suas generalidades uma diversidade de pessoas que escrevem e desenham sobre o tecido urbano. São jovens e adultos de idades, classes e motivações variadas que, ao interferir na rigidez da cidade física, implicam-se em tramas complexas. O fenômeno da pichação de muros na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (SOUZA, 2007) tem algo a dizer sobre essa questão, particularmente sobre as trajetórias individuais dos pichadores. Assim, A etnografia pode levar a uma bastante plausível hipótese de como se dá a entrada no universo da pichação, ou seja, quais elementos são os principais motivadores ao ingresso na atividade, mas sem dúvida é invariavelmente observado nestes indivíduos um ímpeto que antecede estes fatores. A escola, sem dúvida, apresenta-se muitas vezes como um laboratório primeiro de exercício da atividade clandestina (SOUZA, 2007, p. 103-104). Percebe-se, no curso de várias trajetórias, seja no Rio de Janeiro, ou em Natal como retomarei mais a frente, que existe um campo de possibilidades com formas de associativismo juvenil e redes de sociabilidades que servem como disparadores na formação da identidade do grafiteiro/pichador/artista de rua. Esse processo de 58 socialização vai desde a prática de rabiscar as folhas do caderno, as carteiras, estendendo-se, em certos casos, aos muros da escola e, em algum momento, chegando às marquises de prédios e muros de ruas movimentadas. No Rio de Janeiro, como em outras cidades brasileiras, as redes de jovens atuando na paisagem da cidade possui origens socioeconômicas diversas, que têm em comum a dinâmica de lazer e da diversão. Essa experiência comum é denominada por Souza como “sociabilidade delinquente”, ou seja, que envolve a violação das normas de conduta como via de valoração da virilidade e da coragem do indivíduo. Trata-se de uma busca por afirmação e da construção de uma reputação valorizada nessas redes juvenis cuja atividade desviante é também vista com admiração. Nesse contexto as trajetórias individuais, desde cedo para alguns, se cruzam numa dinâmica espacial, uma territorialidade que envolve o lazer nas ruas das vizinhanças. Nessa dinâmica as identidades são insinuadas ou estimuladas pela presença do outro e pela interação com este. A etnografia da pichação carioca desenvolvida por Souza é singular, porque o próprio pesquisador teve uma trajetória no universo da pichação a partir da qual pode descrever em caráter autobiográfico a sua inserção e as territorialidades entre os playboys e as crianças do bairro. Os playboys eram jovens de classe média moradores do bairro, pichadores famosos da Zona Norte da cidade. A amizade com um vizinho, pichador famoso, estimulou sua inserção no universo da pichação o auxiliando no “tornar-se” pichador, para usar os termos de Becker (2008), estilizando seu nome (a assinatura). Como se percebe em outras trajetórias de pichadores e grafiteiros, no Brasil e em outros contextos internacionais, ocorreram situações iniciáticas com sucessivas saídas à noite com uma fase de empolgação em desbravar a cidade, depois uma fase de desinteresse na pichação com retomada posterior e a formação de um grupo de pichadores com outros colegas. A partir dessa trajetória, o pesquisador afirma que os “fatores externos, tais como o convívio com pichadores de fato e com pares em potencial, são capazes de impulsionar, mas não determinar essa entrada [no universo da pichação]” (SOUZA, 2007, p. 111). A projeção social dessas trajetórias após à fase intensa de empolgação na atividade de rua é diversa. Para Souza, em vários casos, a atividade da pichação não é tão determinante que não possa ser conciliada com uma vida escolar e profissional bem- 59 sucedida. Dos quatro últimos membros do seu grupo de pichadores, após o encerramento das carreiras na pichação, havia entre eles engenheiro, vendedor de loja, policial militar e cientista social. Gangues, crews, pixo/pichação e graffiti, salvaguardadas suas peculiaridades, compreendidas dentro de quadros singulares como a territorialização, a juventude e as trajetórias individuais, desdobram-se também numa impressão visual sobre a cidade. Essas formas plurais já são uma marca das grandes cidades tendo se tornado um elemento sem o qual a paisagem urbana parece incompleta. Esse fenômeno em Lisboa, como também no Brasil e em outras cidades do mundo, expressa a ação das culturas juvenis sobre o espaço urbano, um território habitado por essas pessoas Que estabelecem vínculos sociais, afectivos, simbólicos, usando diversos recursos para exprimir algo sobre a sua condição. (...) Os jovens que fazem graffiti são exploradores da sua cidade, buscam nas superfícies conhecidas as melhores telas e materiais para nos dizerem algo sobre si e sobre o mundo que os rodeia (CAMPOS, 2007, p. 12). A partir dessa perspectiva, a cidade é uma “entidade comunicante” tornando-se um meio pelo qual as identidades são afirmadas, os territórios delimitados e a existência dos indivíduos afirmada. Ao falar de “cultura juvenil” para se referir à prática do graffiti, leva-se em conta a inserção desse objeto num contexto perpassado pelos processos amplos da globalização, do hibridismo cultural e da midiatização da vida social. Esse fenômeno é, ainda, uma relação juventude e cidades contemporâneas, em que a cultura visual implica ainda outros processos como o consumo, a estetização do cotidiano, as mídias de massa e as novas tecnologias da informação e da comunicação. Munidas desse aparato e do campo de possibilidades do urbano, as novas gerações protagonizam essa cultura tendo na visualidade um recurso para a comunicação e para a construção identitária que protagonizam. Assim, é de relevância antropológica conhecer as trajetórias individuais e o campo de possibilidades dentro de processos amplos em curso na cidade. Segundo a experiência etnográfica de Ricardo Campos sobre o graffiti em Portugal, a trajetória de um grafiteiro possui regularidades possíveis de se abarcar. Ao abordar essas trajetórias ele explica que são 60 “caminhos comuns, paralelos, bifurcações e vias sem saída, que se apresentam aos indivíduos e tornam a experiência no graffiti, sempre, uma experiência única. A vivência no graffiti está repleta de situações inesperadas, é experimentada com intensidade, é altamente permeável a outros territórios da vida social e vai acompanhando a maturação dos jovens” (CAMPOS, 2007, p. 334). Trata-se de uma “carreira”, uma “trajectória cronológica, associada a práticas e hierarquias” (p. 334) com obstáculos e riscos que devem ser superados para alcançar o reconhecimento e a aclamação dos pares. As trajetórias são singulares, mas em muitos casos obedecem a certas regularidades ligadas aos constrangimentos sociais dos grupos. Para Campos, a trajetória de um writer é tipicamente juvenil, ou seja, é uma cronologia delimitada por idades que representam um breve período na vida dos indivíduos. Segundo Campos, “a biografia de cada um no graffiti articula-se com modos de vida tipicamente juvenis, acompanhando a gradual passagem ao estado adulto e a consequente alteração de papéis e estatutos sociais” (p. 336). As regularidades a que se refere o pesquisador implicam numa fase de prática intensa na “vertente ilegal do graffiti”, ou seja, não autorizada, depois uma fase média de “decréscimo da produtividade”, à uma fase final de abandono da “atividade criminalizável”. O writer (grafiteiro, escritor) “nasce” da sua aceitação num grupo, na escolha de um “nome de guerra” e de uma “tag” (assinatura) através do qual se lhe desenrola uma “operação simbólica”. De forma pormenorizada a trajetória no graffiti requer trabalho, dedicação, demonstração de qualidades e aceitação na “família” writer. A inserção numa crew, também marca a qualidade social desse agrupamento que implica numa hierarquização do meio. Percebe-se que há nessa dinâmica, um investimento emocional que alimenta o desejo pelo reconhecimento e pela fama, mas também tensões e rupturas com outras configurações sociais como a família e a escola. O final da carreira de um writer pode ocorrer por mais de uma via, mesmo que haja uma forma mais ou menos regular de encerramento. Esse final está relacionado à incompatibilidade dos papéis sociais impostos a jovens e adultos, e que leva o indivíduo que está entrando na fase adulta, a reconsiderar as estratégias de sua atuação. Nesse quadro existe também a possibilidade da “reconversão de carreira”, ou seja, a possibilidade de redirecionar a carreira para além da rede writer aproveitando a 61 visibilidade social alcançada. Como se percebe na pesquisa de Campos e nas pesquisas citadas nesta sessão, as vidas vividas nessas trajetórias implicam uma experiência com fortes emoções, problemas e riscos. Percebe-se a importância dos laços construídos, da amizade e de uma rede de afeto e solidariedade. Nessas experiências, vive-se os riscos e os prazeres que reforçam a paixão pela arte e por um espírito de contestação que, para alguns chega até a obsessão. Como veremos, as regularidades apresentadas por esse conjunto de etnografias, em muitas circunstâncias aplicam-se ao campo abordado pela presente pesquisa. Ver-se-á também uma constelação de singularidades ligadas ao contexto e às trajetórias individuais de artistas atuando entre os anos de 2015 e 2019 na cidade do Natal/RN - Brasil. 1.3. ARTE DE RUA, GRAFFITI, PIXO E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO. Figura 10. Humanoides encapuzados de Marcelus Bob no Beco da Lama (detalhe). Fonte: elaborado pelo autor em fevereiro de 2019. A arte de rua na cidade do Natal está ligada principalmente a duas correntes: a atuação de artistas visuais na cidade desde o início da década de 1980, cuja maior referência de pintura nos muros da cidade é Marcelus Bob. O trabalho do artista, intitulado por ele mesmo como “interferências urbanas”, trata-se de grandes murais realizados principalmente nos bairros da Cidade Alta e da Ribeira, Zona Leste de Natal. 62 São “personas encapuzadas”, os “humanoides”, que ficaram famosas internacionalmente30 e são a influência para a primeira geração de grafiteiros na cidade. A segunda corrente está ligada às torcidas organizadas de times de futebol de Natal, o ABC e o América, durante os anos 1990. A pichação é uma prática desses grupos com o intuito de delimitar a sua territorialidade, uma espécie de escrita que associa geralmente o nome do grupo (na forma de uma sigla) ao nome de uma localidade (bairro ou região), e algumas vezes ao nome de um membro. Ainda que olhando de fora sem pouca reflexividade, a pichação territorial das torcidas organizadas seja confundida com o graffiti derivado do tagging das crews, e mesmo com o pixo, existe uma diferença nítida entre uma e outra. A forma gráfica dessas intervenções na paisagem urbana pode inclusive ser confusa para os próprios iniciantes em uma ou outra prática, já que não é raro o trânsito deles entre elas como também a migração definitiva para uma delas. No exercício de identificar as outras marcas, capturadas pela fotografia (apresentadas no capítulo 5) e com a ajuda dos interlocutores da presente pesquisa, estes mesmos não conseguiram identificar todas elas, o que demonstra o caráter difuso da prática na cidade. Figura 11. Faces emaranhadas de Binho Duarte na UFRN (detalhe). Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2011. 30 “A história e a arte de Marcelus Bob”. < http://www.somsemplugs.com.br/a-historia-e-a-arte-de- marcelus-bob/>. Acesso em 09/04/2019. 63 Essas correntes têm influência significativa nas novas gerações de artistas atuando no começo dos anos 2000. E, embora as trajetórias desses indivíduos estejam atravessadas por aquelas práticas de origem, a atuação nas ruas e o desenvolvimento de uma marca ou um estilo próprio é estimulada também por outros fatores. Assim, uma curiosidade humanística sobre o graffiti e a pichação em Natal, aparece na produção acadêmica na UFRN depois do ano de 2010. Esses trabalhos vêm de diferentes departamentos e programas de pós- graduação, e as pesquisas que lhes resultam são em boa parte feita por estudantes que estão ou estavam inseridos no campo da arte de rua durante o processo de pesquisa. Ainda que venham da geografia, das artes visuais e do desenvolvimento urbano e regional, esses trabalhos quase sempre recorrem a procedimentos antropológicos de pesquisa ou de análise. No meu caso, a motivação para pesquisar a arte de rua vêm da experiência com a pesquisa antropológica em contexto urbano, da qual considerei relevante partir, do estudo de bairros periféricos, para regiões centrais e de grandes fluxos na cidade. Figura 12. Personas de Arbus e Binho Duarte em “Barcelona”, no bairro da Candelária. Fonte: elaborado pelo autor em janeiro de 2016. Na monografia intitulada: Paredes que falam: simbolismo e transgressão espacial na cidade de Natal-RN (COSTA, 2012), apresentada ao curso de graduação em Geografia, o pesquisador aborda o que chama de “geografia marginal”. Trata-se de um 64 conhecimento espacial produzido pelos grafiteiros em suas caminhadas pela cidade e pelo pesquisador através de uma topologia e uma tipologia do graffiti que invade a paisagem urbana. Como poderemos perceber a seguir em outras pesquisas realizadas na cidade do Natal e nos próximos capítulos desta tese, ali também se salienta a produção de um conhecimento espacial. Há também a construção de biografias através da relação entre trajetórias individuais e o campo de possibilidades nos trajetos percorridos na cidade. Figura 13. “Vendo poesia”, grafismos urbanos no bairro da Ribeira. Fonte: elaborado pelo autor em setembro de 2016. Como afirma Costa, o graffiti, o pixo, a arte de rua ou simplesmente os “grafismos”, subvertem discursos estabelecidos na paisagem da cidade, a exemplo da voz de mulheres que desafiam um universo predominantemente masculino e o próprio espaço hostil das ruas. O enfrentamento dessa hostilidade ocorre justamente pelas práticas de caminhada, às vezes noturnas, nas quais se conhece a cidade de forma cartográfica. Essas práticas e essas formas, veremos mais detidamente no decorrer desse texto, trata-se de uma forma de percepção e ação sobre o fenômeno urbano onde andar pela cidade é, ao mesmo tempo, uma ação estética e biográfica. Esses conhecimentos, dos quais fala o pesquisador, abarcam as dimensões espaciais e simbólicas da vida urbana e são reproduzidos na paisagem da cidade com o graffiti. A efemeridade das intervenções da arte na rua implica uma contínua renovação da arte nos espaços da cidade, elegendo lugares mais propícios a ação. Como afirma o 65 pesquisador, “a relação dos grafiteiros e pichadores com a cidade (...) beira a topofilia” (COSTA, 2012, p. 25), já que se trata de um tipo de relação com os lugares que lhes causa prazer. Na dissertação intitulada: Subversão na paisagem: do canto do graffiti ao grito da pixação (SANTOS, 2015), apresentada ao Programa de Pós-graduação em Geografia da UFRN, a pesquisadora e artista, afirma que a paisagem da cidade contemporânea está marcada por grafismos urbanos, como é o caso do graffiti e do pixo, que representam vozes socialmente marginalizadas. Até aqui, portanto, as duas perspectivas, a de Costa (2012) e a de Santos, é a de que essa voz e esse conhecimento, produzidos pela arte de rua, ocupam uma posição marginal na cidade. De fato, a imprecisão legal da prática, a violência a que são submetidos os artistas e a arte, são alguns fatores que contribuem para essa situação de marginalidade. Para Santos, esses grafismos expressam um discurso e agem politicamente nos muros da cidade subvertendo a sua paisagem. A partir do trabalho de campo, a autora e grafiteira destaca três protagonistas com as quais manteve diálogo: Caos, Sheep e Leitoa que aponta, na perspectiva feminina, as características do campo do graffiti em Natal. Elas colocam o desafio de entrar nesse campo predominantemente masculino, sendo mulher e enfrentando situações de machismo. Afirmam que o conflito com a justiça e a gravidez são fatores inibidores da presença delas e de outras mulheres na rua. Figura 14. “Florescer 1”, escrita na Travessa Extremoz, bairro da Cidade Alta (detalhe). Fonte: elaborado pelo autor em setembro de 2016. 66 Figura 15. “Florescer 2”, escrita na Travessa Extremoz, bairro da Cidade Alta (panorama). Fonte: elaborado pelo autor em setembro de 2016. Alguns elementos motivadores elencados por Santos se coadunam com o que outros pesquisadores têm apontado sobre o fato que leva homens e mulheres jovens a riscar as ruas. São eles o contato com documentários sobre graffiti; com a arte de rua através de redes de amizade; no caso das mulheres, um namorado atuante na rua é um elemento motivador; e, o contato ou pertencimento com torcidas organizadas, como já foi mencionado. Ao abordar o processo de inserção de suas jovens interlocutoras, protagonistas na arte de rua, a pesquisadora destaca também a sociabilidade como forma de inserção na “turma”; a sensação de prazer e adrenalina na prática; o desafio do “proibido”; como também o contexto da indústria cultural e da internet que as estimula. No trabalho de Santos (2015), como no de Costa (2012), a dimensão da experiência nas ruas da cidade é constituinte de um conhecimento. A pesquisadora acrescenta, ainda, que a experiência do grafiteiro e do pixador em suas caminhadas pelas ruas da cidade, “subvertem (...) [a] lógica urbana, já que vivenciam de outra forma a cidade. A cidade para o pixador é um ‘caderno’ aberto para escrever suas anotações que variam entre tag, mensagens políticas, recados de amor, poesias, insultos e reflexões” (SANTOS, 2015, p. 92). O paradigma estético do caminhar (CARERI, 2013) ganha nitidez em seu trabalho quando aponta para o fato de que, quando há menor policiamento, a caminhada noturna permite conhecer a cidade de uma forma cartográfica; que a tag marca a passagem dos sujeitos pelos lugares; e que a prática do caminhar figura-se também como um pensar intrínseco a essa prática que é andar pela cidade. De forma sintética, O prazer em pixar e grafitar, carrega no seu âmago o prazer de estar na cidade, de andar pelas ruas noturnas, sozinho ou em grupo, arriscando-se e riscando os concretos. A possibilidade gerada pela relação pixador-cidade, é a criação de brechas e evidências espaciais de outras racionalidades 67 presentes na cidade, o que contrapõe os valores estéticos e comportamentais hegemônicos, difundidos pela sociedade (SANTOS, 2015, p. 94-95). A natureza marginal dessa prática e desse conhecimento, como apontado por Santos (2015) e Costa (2012), trata da percepção dos artistas de rua sobre a desigualdade urbana, principalmente na relação centro e periferia, mas também sobre a arquitetura da cidade em seus lugares altos, vias de grande circulação, paredes de pedra, lugares abandonados e os bairros de moradia. A marginalidade da prática também se caracteriza nas situações de violência, como é relatado sobre as abordagens truculentas da polícia e humilhações de todas as ordens sofridas na rua, violência física e agressão, disparos de arma, prisões e processos judiciais. Os artistas relatam também a desproporcionalidade no uso da força e nas formas violentas de punição, as contradições da justiça e de suas polícias onde na maioria das vezes o acusado/suspeito não têm direito à defesa ou qualquer forma de argumentação. O grau de truculência nessas abordagens, no entanto varia e se acentua quando há cortes sociais e de cor da pele, com grande peso sobre jovens negros e pobres (ALENCAR e CARADE, 2018). Essa experiência violenta e injusta retorna, muitas vezes, na forma dos grafismos que a denuncia e questionam o status dos espaços públicos da cidade. Também na monografia intitulada: Mulheres que se arriscam por um risco: uma cartografia da pixação e graffiti feminino na cidade de Natal-RN (BRAZ DA CRUZ, 2018), apresentada ao curso de graduação em Artes Visuais, temos uma pesquisa sobre a arte de rua protagonizada por mulheres jovens na cidade. Sendo a autora do trabalho ela mesma uma artista de rua, buscou elaborar um diálogo sobre o tema ao construir uma cartografia feminina das marcas grafadas na cidade. Em verve autobiográfica explica: Escolhi falar da rua e de mulheres que se arriscam por um risco, por ser mulher e ser da rua. Intervenho, sinto a situação e as diferenças. Tanto no fazer, como os transeuntes (que observam), dos quais escutamos várias coisas, desde xingamentos a assédios. No meio do graffiti, não temos reconhecimento e, consequentemente, respeito. Já perdi as contas de quantos trabalhos meus já foram boicotados (BRAZ DA CRUZ, 2018, p. 11). 68 Figura 16. “De: Amarelo Cura Para: Caos” na rua Chile, no bairro da Ribeira. Fonte: elaborado pelo autor em setembro de 2016. A partir da sua experiência na rua e a das suas entrevistadas, buscou abordar as experiências vividas nos percursos da rua, os elementos motivadores da arte, mas também os seus percalços. A autora e as suas entrevistadas relatam o começo da atividade artística durante a adolescência, com forte motivação da ação que chamam “vandal” (ou seja, intervenção sem autorização) como forma de ingresso na arte de rua, seguido de conflitos na rua; e, do posterior abandono da carreira. A paisagem da cidade grafitada é também listada como elemento motivador para toda uma geração que começa a grafitar e/ou pichar na primeira década dos anos 2000. O conteúdo das artes deriva muitas vezes das afinidades estéticas que têm a certos personagens e mesmo a experiências pessoas com forte carga emocional e amorosa. Esses conteúdos também agregam mensagens de solidariedade e de protesto ao público feminino. Trata-se, como já mencionado em Costa (2012) e Santos (2015), de um retorno da experiência vivida (violência policial, agressão verbal e física impetrada por indivíduos do sexo masculino e diversas formas de machismos) na forma de grafismos que denunciam processos cruéis e desiguais em curso na cidade. 69 Figura 17. “Lágrimas” por Sheep na UFRN. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2011. A partir da sua trajetória e experiência pessoal na rua, a artista e pesquisadora conta o começo na arte com o lambe-lambe utilizando temáticas femininas, travestis e transexuais, e em seguida no pixo com frases de apoio à mulher e em referência aos orixás; e, depois no graffiti, com um personagem de sua criação que expressa um corpo feminino de idade avançada e algumas vezes mutilado. Ela conta, ainda, sobre a necessidade de enfrentar caminhadas quilométricas para realizar seus trabalhos. Como afirma, sua inspiração vem do universo dessas poucas e corajosas mulheres que atuam na arte de rua, a atesta a importância dos eventos os quais participou. A experiência na rua trouxe para a artista um conhecimento dos riscos na cidade, principalmente quando se é uma mulher jovem pintando a temática feminina dentre outras. Na rua ouve-se comentários e vive-se situações que faz a artista pensar e repensar as suas práticas e os seus conteúdos. Assim, ela reforça: “faço das ruas meu livro, e minhas intervenções como minha voz, de que a imagem fala, grita” (BRAZ DA CRUZ, 2018, p. 67). Também numa perspectiva que atravessa a autobiografia e a trajetória individual está a dissertação intitulada A cidade como um livro aberto: caligrafias urbanas nas ruas 70 de Natal/RN (AZEVEDO, 2018), que aborda o fenômeno da arte urbana em Natal nos seguimentos do graffiti e do pixo articulando a teoria sociológica com a experimentação artística. O pesquisador e artista de rua busca descrever, o que chama de “escritas citadinas” que desafiam a arquitetura da cidade, se articulam com o mobiliário urbano e ressignificam os lugares. O campo reflexivo que Azevedo buscou trabalhar é aquele onde a cidade e a arte urbana são analisadas a partir da metáfora “a cidade como um livro aberto”, ou seja, “pensar a paisagem visual da cidade enquanto um espaço onde se escrevem estórias” (AZEVEDO, 2018, p. 24). Assim, em certos lugares abandonados da cidade, os quais o pesquisador denominou “ruínas citadinas”, constroem-se narrativas e heterotopias: As ruínas, podem ser concebidas como heterotopias de desvio, partindo da deterioração da arquitetura, aos destroços espalhados pelo chão, dos vestígios do que um dia já foram, são lugares marcados pela incerteza do que está por vir. (...) A ruína não é apenas um espaço físico, mas torna-se também um espaço circunscrito, capaz de produzir sentido para o escritor, utiliza-se da sua superfície para agenciar a prática da escrita, para fazer ver e fazer viver o seu nome que se dissemina na cidade (AZEVEDO, 2018, p. 99). Segundo o artista e pesquisador, essas escritas fogem à norma atravessando a cidade por seus muros e seus equipamentos, como também se entremeiam em prédios abandonados onde são escritos os seus enunciados. Como desenvolverei mais a frente, e como Azevedo ilumina já aqui essa questão, nessas escritas citadinas (pixadas, grafitadas, ou simplesmente “grafadas”), seus autores aí se inscrevem, inseridos num arranjo coletivo maior que os constitui. Afirmo que essa dinâmica é produtora de biografias como também de um conhecimento particular, como dito e percebido pelos pesquisadores anteriormente citados. Nesse livro aberto que é a cidade: “Esses escritores se aventuram (...) atravessando lugares esquecidos e despercebidos (...). Através dessas experiências revelam nuances de uma (...) forma de experimentar a cidade, a escrita citadina compõe um modo singular de conhecer” (AZEVEDO, 2018, p. 119). 71 Figura 18. “Faces”, vários artistas em “Barcelona” no bairro da Candelária. Fonte: elaborado pelo autor em janeiro de 2016. Como se pode avaliar, há nesses trabalhos uma parcela significativa de congruências, das quais a que aparece com maior relevo é a construção de um conhecimento espacial produzido pelas caminhadas na cidade e, ainda, uma variação desse conhecimento através da experiência de pesquisa conduzida pelos próprios artistas. Nessa perspectiva, a arte de rua, notadamente nas variantes graffiti e pixo, também é vista como prática modificadora da paisagem. Estratégias de visibilidade são desenvolvidas para atuar nas ruas com vistas a fazer dos espaços da cidade, lugares democráticos ou, como a pesquisa recente demonstra, onde as intervenções interajam com a paisagem e os indivíduos convidando-os a lê-las, pensar sobre elas e mesmo participar da sua criação (ROCHA e ECKERT, 2017). A arte nas ruas da cidade, na poética proposta por seus autores, ocorre por muitos caminhos e motivações, e transita entre um campo de possibilidades e conflitos. No campo do possível está a própria cidade em sua polifonia, numa constelação policêntrica (CANEVACCI, 2004) que se vive, que se risca e se desenha. A situação citadina leva os artistas a pensarem sobre as suas vidas, suas posições na estrutura social e sobre as dinâmicas da cidade. Ser uma mulher ou negro jovem de periferia nesse campo arriscado da intervenção através da arte de rua, são dimensões da identidade em tensão na cultura cujas experiências se expressam, por sua vez, nas artes inseridas na cidade. Dos anos 1980 à segunda década dos anos 2000 a paisagem da cidade mudou 72 radicalmente, suas populações e seus costumes. O desenvolvimento da arte de rua parece ter acompanhado esse ritmo, seja na diversificação da cultura visual urbana, seja na luta pela expressão, visibilidade e pelo reconhecimento de demandas sociais reprimidas. 73 CAPÍTULO 2 – PCESQAUISPA DEÍ CTAMUPO EL ESOTRAT ÉG2IAS DE INTERLOCUÇÃO. PESQ UISA DE CAMPO E ESTRATÉGIAS DE INTERLOCUÇÃO 74 2.1. O CAMINHAR NA PRÁTICA ETNOGRÁFICA. Para acompanhar a arte de rua e para realizar essa etnografia, impôs-se, desde o início, a prática do caminhar como forma de seguir os rastros dessa arte que vive, conhece e interfere na cidade. A experiência do caminhar vivida pelos movimentos estéticos (CARERI, 2013) e as narrativas do mundo e o conhecimento gerado pelo movimento de caminhada (INGOLD, 2015) permitiram compreender a importância de tal ação, fosse na prática da arte de rua, fosse na prática da pesquisa etnográfica. Recorri a procedimentos metodológicos baseados na observação participante, precedidos por uma revisão bibliográfica, e que também incluiu entrevistas, registro fotográfico, formação de acervo de imagens, e elaboração de mapas. Também utilizei procedimentos alinhados com novas exigências do campo etnográfico: acompanhamento presencial em eventos, bem como via internet; e o estabelecimento de uma dinâmica de comunicação com os interlocutores via redes sociais. Assim, o exercício da pesquisa se deu através de caminhadas por regiões centrais de grande fluxo na cidade. Figura 19. Concentração de intervenções artísticas entre os bairros da Lagoa Seca, Tirol e Lagoa Nova. ALECRIM LAGOA SECA RIBEIRA TIROL LAGOA NOVA NOVA DESCOBERTA PARQUE DAS DUNAS 200 m Fonte: Elaborado pelo autor a partir de SEMURB, 2014 e Google Earth, 2019. Esse processo levou-me a compreender que abordar as imagens da cidade do Natal através daquelas artes implicava em seguir um pouco as intermitências de tais 75 trabalhos e que eu compreenderia, por conseguinte, ser resultado dos trajetos percorridos por seus autores, RAOM, POK, ARBUS, PAZCIÊNCIA e outros, e das situações propícias à intervenção no espaço urbano. Uma etnografia das imagens da cidade, era também uma etnografia da e na rua (ROCHA e ECKERT, 2013). Compreendi que os trabalhos abordados durante a pesquisa eram elementos de um conjunto de intenções comunicacionais e também constituintes de um espaço de lutas pelo reconhecimento. O campo pesquisado mostrou-se estar inserido numa rede complexa de relações entre indivíduos, grupos e instituições; mas também atrelado ou tendo como efeito o desenvolvimento de consciências e de produção simbólica. A criação de “personagens”, caracteres e alegorias que manifestam qualidades, especificidades do ser humano, de um certo tipo social, de situações de conflito, ao expressar-se em toda a cidade, denotam a elaboração de uma biografia escrita com a arte. Essa afirmação implica no fato de que, além dessa arte estar imbuída das técnicas do ofício, ela também está perpassada pela experiência de vida de seus autores, sendo em alguma medida uma extensão deles. Figura 20. Concentração de intervenções artísticas entre os bairros da Candelária, Lagoa Nova (destaque para o campus central da UFRN) e Capim Macio. LAGOA NOVA CANDELÁRIA CAPIM MACIO 100 m Fonte: Elaborado pelo autor a partir de SEMURB, 2014 e Google Earth, 2019. Algumas motivações justificam a opção em pesquisar esse campo. Por um lado, passei toda a graduação (2006-2010) próximo a colegas da universidade que 76 trabalhavam com estêncil, grafitti/pixo e produziam fanzines31. Por outro lado, a pesquisa que realizei entre os anos de 2011 e 2013, como já mencionei, e que resultou na minha dissertação de mestrado, deixou algumas interrogações sobre as pichações e os murais nos bairros pesquisados (ambos nas zonas Oeste e Norte da cidade). Foram também os meus próprios trajetos, em primeiro lugar no bairro em que moro, e depois aqueles no centro da cidade, que estimularam um exercício de percepção sobre as imagens que agora são objeto da presente pesquisa. Tal fato não se tratou de uma “coincidência”, se essa palavra tem o sentido de aleatoriedade, mas talvez de uma “serendipidade”, algo que eu não sabia que ia encontrar, mas para o qual deveria estar preparado. Figura 21. Concentração de intervenções artísticas entre os bairros da Candelária e Lagoa Nova. LAGOA NOVA CANDELÁRIA 100 m Fonte: Elaborado pelo autor a partir de SEMURB, 2014 e Google Earth, 2019. Curiosamente, essa palavra que encontrei primeiro no romance histórico (GONÇALVES, 2009), encontraria depois em um trabalho sobre a cidade no que toca à reflexão sobre a construção ou a revitalização de regiões e espaços da cidade para o inesperado, o não planejado, o criativo, os “espaços da criatividade artística” (CRUZ, 2016) e de “integração de jovens artistas” (COSTA, 2016). Essas motivações e as hipóteses iniciais do trabalho de pesquisa conduziram-me ao fato de que a arte de rua 31 Trata-se de uma publicação geralmente não profissional que reproduz conteúdos de um determinado seguimento como a música, a fotografia, o desenho, etc. Esse tipo de publicação remonta a meados dos anos 1960 e o termo parece ser a aglutinação de “fanatic magazine” 77 está articulada ao movimento à mobilidade dos artistas onde a cidade atua no entrecruzamento dos trajetos dos citadinos como ocorreria naqueles dos interlocutores e do pesquisador. Assim o bairro de Lagoa Nova, Zona Sul da capital, foi um nó central no desenvolvimento da pesquisa e seu lugar de “decolagem”. Isso se deve à complexidade que mencionava anteriormente cujos componentes podem ser aqui exemplificados. Numa breve descrição do bairro, o mesmo teve seu processo de ocupação a partir dos anos 1960, seguido nas duas décadas seguintes pela construção de conjuntos habitacionais, da instalação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e do Centro Administrativo do estado. O bairro é um dos mais populosos da cidade e, embora esteja localizado na região administrativa sul, espacialmente ele está posicionado numa porção central do município. Em termos de mobilidade, o que nos interessa bastante, o bairro é servido por vias de grande fluxo na cidade (algumas que lhe serve de limites e outras que lhe corta) como a Av. Senador Salgado Filho (BR-101), a Av. Prudente de Morais e a Av. Bernardo Vieira. 78 Figura 22. Mapa do bairro de Lagoa Nova e localidades. Fonte: Elaborado pelo autor a partir de SEMURB, 2014 e Google Earth, 2019. 79 Ao longo dessas avenidas foram construídas as primeiras habitações do bairro e o seu comércio. O aumento do fluxo de veículos nos últimos quinze anos, a construção dos shoppings centers e dos condomínios verticais modificaram a paisagem do bairro de forma significativa. A presença de localidades menos favorecidas também é uma realidade, ainda que não se sobressaia. Em preparação para a Copa do Mundo de 2014, um novo estádio foi construído, comércios se instalaram, espaços do entorno foram remodelados e novas estruturas viárias foram inseridas junto com mobiliários urbanos, o que contribuiu ainda mais para o incremento da paisagem. Ligados a esse processo de transformação, está uma centralização de atividades comerciais e de serviços em bairros e regiões da cidade, do qual Lagoa Nova participa. Este em especial, por sua localização e estrutura e pela construção do valor do lugar ao longo dos anos, obteve crescente visibilidade, o que permitiu que fosse descoberto também como uma nova “ágora” da cidade. Isso quer dizer que as mobilizações políticas mais recentes (principalmente entre os anos 2013 e 2017) têm ocorrido predominantemente na Av. Sen. Salgado Filho/BR- 101, nos trechos entre os shoppings Midway Mall e o Via Direta (mobilizações que ocorriam com mais frequência no bairro histórico da Cidade Alta e que vem sendo desusado para esta finalidade). Fosse a Rua João Pessoa na Cidade Alta, seja hoje na Avenida Senador Salgado Filho em Lagoa Nova, as mobilizações ocorreram sempre em regiões centrais, de grande fluxo de pessoas e automóveis e de comércio. A meu ver, existe nesse dado uma questão social em comum que é a dos usos e da forma do espaço, o que o transforma em um “lugar”, imbuído não só da utilidade, mas carregado de sentidos. A arte de rua é um indicador desse processo através do qual a imagem levanta questões, dialogam entre si e oferece um disparador para a percepção e para o pensamento do citadino. Quanto a essa “centralidade”, trata-se, portanto, de um pouco menos do processo no qual o bairro constrói estruturas mais autônomas em relação aos demais lugares da cidade; e um pouco mais do processo em que o bairro vem ganhando centralidade no conjunto total da cidade. Ao longo da evolução da malha urbana a cidade teve como seu primeiro núcleo central urbano o bairro da Cidade Alta que, até hoje é conhecida popularmente como “Cidade” ou “Centro”. A Segunda Guerra Mundial e as migrações do interior do estado para capital propiciaram o desenvolvimento de 80 outro “centro”, o bairro do Alecrim como também o bairro das Quintas. Já o bairro de Lagoa Nova, implantado nos anos 1960, teve seu processo de expansão nos anos 1970 e 1980, ao mesmo tempo que outras localidades da cidade. Figura 23. Concentração de intervenções artísticas entre os bairros da Cidade Alta e Petrópolis. PRAIA DO RIBEIRA MEIO CIDADE ALTA PETRÓPOLIS TIROL 100 m Fonte: Elaborado pelo autor a partir de SEMURB, 2014 e Google Earth, 2019. Num caminho inverso ao desenvolvimento desses “novos centros” há um movimento em direção aos “velhos centros”, em grande parte às manchas de lazer dos bairros da Cidade Alta, Ribeira e Petrópolis. Essas manchas têm como característica a busca de uma reavivamento da cultura nesses espaços circundados de prédios e sítios históricos, como também a existência de redes de sociabilidade. Outra característica é a presença de bares e restaurantes que buscam agregar o seguimento da alimentação e do lazer com a prática e a divulgação das artes (e como veremos constituiu o campo da presente pesquisa), e da apresentação de bandas locais. Nesses espaços a presença da arte de rua é nítida. 81 Figura 24. Concentração de intervenções artísticas no bairro da Ribeira. ROCAS RIO POTENGI RIBEIRA 90 m Fonte: Elaborado pelo autor a partir de SEMURB, 2014 e Google Earth, 2019. A perspectiva antropológica desses lugares se deu pela experiência etnográfica, em práticas de caminhadas a pé pela cidade, utilizando o transporte público ou particular. Duas razões impuseram o andar pela cidade como prática etnográfica. Em primeiro lugar, a dinâmica da arte de rua na cidade se dá em grande parte nesse exercício que é transitar, ver e interferir na cidade. Seguir esses passos, deveria ser em alguma medida retraça-los, imitá-los. A segunda razão é o fato de que a antropologia se constituiu como disciplina e consagrou a etnografia como sua prática traçando caminhos pelo mundo. As expedições ao Estreito de Torres e a Gesup, os trabalhos de campo de Malinowsk e Radcliff-Brown, as teorias e metodologias de Margaret Mead e Gregory Bateson estão nessa experiência da disciplina. Essas realizações ocorreram em alguma medida, na ideia de reconstituir trajetos, em perfazer os caminhos. Também a experiência pioneira dos estudos de ecologia humana e depois de sociologia e da antropologia urbana, ainda no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, debruçaram-se sobre as dimensões do trânsito e do movimento na cidade e entre as cidades (PARK, BURGESS e MACKENZIE, 1992). O estudo de Park sobre a mentalidade Hobo pode iluminar essa discussão, se considerarmos que aqueles, assim como os artistas de rua hoje, “são levados a agir por propósitos individuais, mas ao fazê-lo, percebem um fim comum. Seus impulsos são privados, mas as ações são públicas” (p. 158) e, ainda, “vagam”, possuem um “temperamento artístico” e poético, e são 82 “indivíduos de fronteiras” (p. 160). Também obras como a “Sociedade de Esquina” de 1934 (WHYTE, 2005) e “Outsiders” (BECKER, 2008) de 1963 ao abordar o modo de vida urbano trazem à tona a aventura de viajar nos universos que constituem a cidade e as suas zonas. Figura 25. Concentração de intervenções artísticas no bairro da Ponta Negra. CAPIM MACIO OCEANO ATLÂNTICO PONTA NEGRA 100 m Fonte: Elaborado pelo autor a partir de SEMURB, 2014 e Google Earth, 2019. Uma característica fundamental do campo pesquisado foi, portanto, o movimento do transitar na cidade, seguindo o exercício feito pelos artistas. Eles cruzam a cidade a pé, de bicicleta, carro ou ônibus. É nesse movimento que a arte de rua e a cidade se encontram. Também as pessoas comuns que transitam nas diversas formas, podem perceber as marcas deixadas na cidade, e interpretá-las ao seu modo. No exercício que realizei de andar de carro, ônibus ou trem, foi no andar a pé que senti maior imersão na microfísica da cidade, caminhando por praças, ruas vicinais e becos; experimentei o “estar lá” e permanecer lá por algum tempo. A caminhada permitiu dosar as quantidades do “andar” e do “parar”, e nisso, fotografar, anotar e conversar. 83 2.2. FOTOGRAFIA E IMAGENS DA ARTE DE RUA. O exercício que resultou no presente trabalho foi, de forma sintética: andar com a câmera ou o celular em mãos pelas regiões centrais e de grande fluxo de pessoas e veículos na cidade; observar e fotografar as intervenções visuais cuja aparência fosse semelhante ao que é entendido genericamente como graffiti ou pichação (formas coloridas e grafias diversas) e que mais se repetissem nos trajetos; e, a partir das assinaturas anexas às artes na rua, contatar seus autores e buscar uma interlocução. A imagem foi nesses procedimentos, um elemento disparador e um objeto na medida em que orientou a coleção fotográfica e capturou um conteúdo que em si é efêmero (a arte de rua pode desaparecer dias ou horas após ter sido feita), mas que pode ser revisitado por meio da fotografia. A análise das fotografias impôs, portanto, uma reflexão sobre as imagens da cidade. O trabalho com a imagem não é uma tarefa fácil. O paradoxo se estabelece desde o exercício primeiro de ver, esse ato que “estabelece nosso lugar no mundo circundante” (BERGER, 1980), como também nessa operação cindida “quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa” (DIDI-HUBERMAN, 2005). Capturar a imagem, esse trabalho de “magia” que é, coloca uma tarefa artesanal para reapresentar ao mundo a experiência da visão. Tarefa não menos importante, mas também não mais fácil é a de, ao final de uma pesquisa, apresentar os resultados coadunando artefatos de naturezas aparentemente diferentes: imagem e texto. Como já foi afirmado sobre a “relação tensa” entre os dois: “lemos um texto, olhamos uma imagem. De modos muito diversos ambos comunicam. Tanto as palavras e as frases que lemos em um texto, quanto as formas e as cores que vemos na imagem expressam algo sobre o mundo” (CAIUBY NOVAES, 2008, p. 455). A tarefa da imagem fotográfica, vem talvez aqui como a “concatenação sintagmática” e a significação contextual “heterotópica” citadas por Pinney, a respeito do paralelismo entre a antropologia e a fotografia, via Umberto Eco e Michel Foucault (PINNEY, 1996). O desafio e a dificuldade se dão também pelo fato da captura fotográfica ser o registro do que já é imagem nos muros e equipamentos da cidade. De toda forma, constitui uma “escuta sensível da alteridade”, tal qual a que se desenrola 84 na elaboração de documentário (COUTINHO, 1997), onde o registro fotográfico é uma forma consciente e uma arte da escuta e do registro de ideias (CORADINI e PAVAN, 2017). Figura 26. Registro do registro, o pesquisador na cena registrando um trabalho do Raom Hai no bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em março de 2016. A fotografia, portanto, teve um papel fundamental na pesquisa e no processo de elaboração deste texto uma vez que permitiu a) registrar a experiência; b) colecionar imagens da arte de rua; c) refletir a experiência de campo; e, d) refletir a complexidade da arte de rua na dinâmica da cidade. Ainda que tivesse habilidade no manejo da câmera fotográfica, o trabalho com esse tipo de imagem consistiu num triplo desafio: 1) registrar o objeto da fotografia dentro de parâmetros mínimos; 2) ter em mente que o registro fotográfico da arte de rua é o registro de “ideias”; 3) tornar essas fotografias em material etnográfico, ou seja, representar um determinado conhecimento e ser uma versão possível da realidade (PINK, 2006). Em termos metodológicos, essas imagens capturadas pela fotografia, atuam como documento, como representação visual e elemento de diálogo entre pesquisador e interlocutor (MEIRINHO, 2017). O registro fotográfico e a coleção de imagens foram feitos em quatro anos de pesquisa, e pelo menos três em campo. Foram aproximadamente duas mil e quinhentas fotografias realizadas durante caminhadas exploratórias em Natal, Barcelona e em 85 cidades da França. Essas fotografias também foram feitas nos eventos dos quais participei. O registro contemplou ainda os processos de criação para montagem das narrativas que virão nas sessões seguintes. Esse exercício fotográfico agiu muitas vezes como um “caderno de campo”, gravando a experiência e permitindo refletir sobre ela posteriormente, ao passo que as anotações em algumas circunstâncias lhes foram complementares. Além de fazer as fotos e revisitá-las para classificá-las, nomeando e datando-as em pastas, o exercício foi também muito específico em relação à proposta de registrar a arte de rua. A paisagem urbana eminentemente visual causa confusão no início, até que se perceba a própria dinâmica imagética dos lugares da cidade. No caso da arte de rua, é preciso olhar para todas as direções e ter em conta que elas vão surgir não apenas durante uma caminhada exploratória, mas também na realização de trajetos costumeiros. Nesse sentido, criar sensibilidade a essas imagens coloca o pesquisador num movimento constante de percebe-las, registrá-las e refletir sobre elas. Dessa forma é preciso “flutuar” um pouco sobre a possibilidade do seu aparecimento e das interlocuções que podem surgir posteriormente (PETONNET, 2008). Assim, o registro fotográfico requereu um exercício de percepção da paisagem urbana e dos lugares da cidade, como também colocou o desafio prático de manejo da câmera fotográfica. Utilizei uma câmera Sony a6000 em algumas ocasiões de eventos para filmar e/ou fotografar em lugares fechados, e em poucas ocasiões a céu aberto. O objetivo final do uso da imagem no texto final e o manuseio da câmera em determinadas ocasiões, tornaram inviável o uso desse equipamento. Concomitantemente ao uso da Sony a6000, estive realizando registros com uma câmera Canon PowerShot A1400. A partir de 2015 passei a utilizar um aparelho celular Samsung modelo GT-I9192 (Galaxy Mini), em 2016 passei ao aparelho iPhone 6, em 2017 ao aparelho iPhone 7 Plus, e entre 2018 e 2019 ao aparelho iPhone X. Considero que uso do celular com qualidade de câmera superior (tamanho da foto e abertura da lente) foi importante no registro, na portabilidade e na possibilidade de se ter no mesmo instrumento a câmera, o gravador, o bloco de notas e, não menos importante, a agenda telefônica. A ferramenta de associação das fotografias aos locais onde o registro foi realizado pelo aparelho celular (GPS) também mostrou-se prático na espacialização da experiência etnográfica e na posterior construção dos mapas temáticos. 86 Tendo em conta a possibilidade no uso simplificado dos equipamentos, consistiu num problema seguinte a feitura da fotografia em parâmetros ou padrões mínimos aceitáveis, ou seja, cuja lógica do enquadramento e da iluminação, da composição basicamente não fossem tão discrepantes de foto para foto. Considerei que a aparência da fotografia pudesse também ser “simplificada”, optando por fazer fotografias na proporção 3x4 para as fotografias cujo objetivo fosse “mostrar o objeto” e fotografias panorâmicas quando o objetivo fosse mostrar a inserção do objeto numa paisagem ou ainda quando o objeto fosse longilíneo. Nesses casos, principalmente nas fotografias 3x4, busquei quase sempre enquadrar o objeto considerando as regras dos terços em consonância com o recurso da grade na câmera. Esse exercício de enquadramento permitiu construir uma certa harmonia nas imagens, como mostrar em alguns casos uma grande porção de parede no registro de um cartaz lambe-lambe, por exemplo, que foi enquadrado no canto de uma fotografia em modo retrato. Nesse exemplo, pode-se observar tanto o conteúdo do cartaz quanto ter noção da textura da parede onde ele foi inserido. Em termos de iluminação, preferi os registros diurnos e evitei o uso do flash (que exige um conhecimento especializado que eu não tinha) e fiz apenas poucas fotografias durante a noite. 2.3. ESTRATÉGIAS DE INTERLOCUÇÃO E IMERSÃO. Para construir essa etnografia urbana com vistas a uma antropologia da cidade grafitada, vali-me de estratégias de interlocução que permitiram uma imersão e um olhar de perto e de dentro, ou seja, apreender “padrões de comportamento, não de indivíduos atomizados, mas de múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre na paisagem da cidade e depende de seus equipamentos” (MAGNANI, 2012, p. 260). Assim, o trabalho de campo foi a principal forma de imersão nessa realidade. De acordo com Emerson, Fretz e Shaw: O etnógrafo procura uma profunda imersão no mundo dos outros no sentido de abordar o que para eles é uma experiência significativa e importante. Com a imersão o pesquisador de campo vê, a partir de dentro, como as pessoas lidam com as suas vidas, como elas conduzem suas rotinas diárias de 87 atividades, o que elas consideram significante. Essa forma de imersão dá, ao pesquisador de campo, acesso a fluidez da vida dos outros e a sensibilidade da interação e do processo (EMERSON, FRETZ e SHAW, 1995, p. 02)32. Essa imersão foi, como definem os autores, uma forma de abordar a fluidez da vida e ser sensível às interações e processos em torno da realidade pesquisada. Uma das razões da escolha do objeto de pesquisa foi a capacidade de afecção que algumas daquelas imagens tiveram sobre mim mesmo, mas também, é claro, de minhas disposições para percebê-las. Estando em campo, seja numa exposição formal ou em situação de intervenção na rua, o “estar junto” na pesquisa implicou diferentes sensações das do receptor comum (transeunte), como euforia e apreensão; e mesmo do artista, já que a minha situação como pesquisador foi liminar, ou seja, não era nem artista, nem mais um receptor comum. Essa experiência de pesquisa, foi então um processo de “ser tomado” pela situação e um processo de interlocução no qual está em jogo o aprendizado de um sistema simbólico (no meu caso, onde os signos e significados em sua maioria, a princípio, me fugiam). Esses processos em vários momentos, em campo ou depois de frente para o computador, fizeram vir à tona a experiência de Fravet-Saada (2009) que, a respeito da experiência de campo e da etnografia, afirmou: A etnografia, como eu aprendi e até ensinei, não se pode designar como uma ciência somente se apagar os vestígios do que foi o trabalho de campo: é tanto um aprendizado, em que um estranho é ensinado a decodificar um sistema simbólico até então desconhecido para ele; e um longo processo de interlocução33 (FAVRET-SAADA, 2009, p. 52). A partir, portanto, dessa imersão e desse ser tomado na pesquisa, percebi que a sensação de estar na rua, de ousar intervir na esfera visual da cidade, implicava um investimento pessoal (emocional, corporal) e social/cultural (ético, político). Assim, 32 Tradução livre minha do original “The ethnographer seeks a deeper immersion in others worlds in order to grasp what they experience as meaningful and important. With immersion, the field researcher sees from the inside how people lead their lives, how they carry out their daily rounds of activities, what they find meaningful, and how they do so. In this way immersion gives the fieldworker access to the fluidity of others lives and enhances his sensitivity to interaction and process”. 33 Tradução livre minha do original “L'ethnographie, comme je l'ai apprise et même enseignée, ne peut se désigner comme science qu'à la condition d'effacer la trace de ce que fut le travail sur le terrain: à la fois un apprentissage, au cours duquel un étranger se fait enseigner à décoder un système symbolique jusqu'ici inconnu de lui; et un long procès d'interlocution”. 88 estar na rua implica riscos, daí o investimento emocional, que pode implicar em confrontos ou mesmo em ser surpreendido pela polícia. “Estar na rua” consiste também em colocar-se em oposição à circunscrição dos lugares fechados que remetem no senso comum à uma sensação de segurança e proteção, em outras palavras, é a tensão entre segurança e liberdade que assombra a civilização (FREUD, 2010). Figura 27. Um olhar sobre o caos da cidade. Detalhe de uma intervenção do Pok. Fonte: elaborado pelo autor em junho de 2018. Muitos dos temas das intervenções da arte de rua trazem símbolos dessa experiência do estar na rua e da crítica a determinado “projeto civilizatório” que, como denunciam algumas imagens, é excludente, desumano e mortal. A ideia de “caos” que permeia o trabalho do Pok, como na assinatura de uma artista da cidade, subjaz a tônica de um conhecimento do urbano e a sua crítica. Essa impressão inicial foi sucedida, no processo de pesquisa, por uma etapa de procedimentos que tinham como objetivo conhecer o “quem” e o “como” da arte de rua em Natal. Após um período de caminhadas e de levantamento fotográfico, busquei nas redes sociais os perfis daqueles artistas cujos trabalhos mais se repetiam nas regiões que percorri. Percebi que os mesmos participavam de eventos culturais com exposição de arte e considerei que tais eventos seriam canais de conhece-los e conhecer seus trabalhos e, como depois presenciaria, uma parte do processo criativo. De certa forma, 89 tratou-se de um exercício de “observação flutuante” sobre a agenda dos eventos e dos artistas, ou seja, Ele consiste em permanecer vago e disponível em toda a circunstância, em não mobilizar a atenção sobre um objeto preciso, mas em deixá-lo “flutuar” de modo que as informações o penetrem sem filtro, sem a priori, até o momento em que pontos de referência, de convergências, apareçam e nós chegamos, então, a descobrir as regras subjacentes (PETONNET, 2008, p. 102). No que toca ao encontro com os interlocutores, objetivo mais próximo do que buscamos com a observação participante na pesquisa de campo, ressalto a incursão no campo da arte34 em Natal/RN. A visita à exposição “PalavrArt”, durante a noite de 12 de maio de 2016, do artista francês Kendo (capa, folha explicativa e contracapa do encarte no ANEXO 3), o qual não imaginava encontrar e entrevistar quase três anos depois em Bordeaux na França, foi uma ocasião de grande valor para pesquisa. Foi nesse evento que pude iniciar a interlocução com o artista Kefren Pok e encontrar com outros atores do campo da arte em Natal. Essa situação levantou novas questões como é o caso do papel da arte na vida cultural da cidade e a relação com a pesquisa. O reconhecimento efetivo da arte de rua na cidade passa por um campo complexo de lutas pelo espaço e pela legitimidade num contexto dicotômico de valorização e desvalorização da arte e da “cultura” (esta última entendida mais em seu uso estatal do que antropológico). Esse conflito aparece numa velha relação conhecida pelas ciências sociais que é a do “patrimonialismo”, uma confusão entre o público e o privado e que aparece tanto nas práticas de agentes do estado como nas categorias de acusação entre artistas: “artista de rua” versus “artista de galeria”. Através da imagem e das interlocuções, essas acusações se explicitam, como também se desdobram, em outras acusações, como é o caso da categoria “playboy” para descrever o artista de camada média, capaz de respaldar financeiramente sua própria prática artística, em detrimento do artista que tem que “ralar”, ou seja, conseguir por meio de editais ou do trabalho (com a arte ou não) o seu respaldo. O que se tornou claro é que alguns dos “acusados”, por outro lado, 34 Como resultado do contato com esse campo, senti a necessidade de levantar bibliografia relativa à arte, o que fiz durante o Seminário de Pesquisa, componente curricular obrigatório do programa do doutorado em Antropologia Social. Uma abordagem dessa bibliografia e do trabalho de campo foi apresentado durante a 30ª Reunião Brasileira de Antropologia – RBA. 90 dividem suas práticas artísticas com seus trabalhos, ou seja, não vivem estritamente da arte (de rua). Tendo a pesquisa se desenvolvido, penso que o campo para as artes de rua é difícil para qualquer um que queira enfrenta-lo, que é preciso estar disponível a um aprendizado (das técnicas e da vida), a ser aceito numa rede de relações e a um campo de possibilidades incerto. Figura 28. “Totem urbano”, arte de Raom Hai. Fonte: elaborado pelo autor em abril de 2016. Outros eventos e situações contribuíram para o processo de familiarização e de aproximação com artistas e realizadores. A frequência nos eventos e a continuidade da prática do caminhar pela cidade também foram de importância fundamental na construção etnográfica de um entendimento da arte de rua. Conforme já mencionei, cumpriu fundamental importância o fato de, anteriormente à pesquisa, já ter uma curiosidade antropológica à arte de rua, fotografando-a e colecionando-a. Mas é a partir do início da pesquisa em 2015, que o fenômeno complexo passa a dar evidências de sua conexão na trama e nos fluxos da cidade. A partir daí passei a perceber a conexão da arte de rua com determinados lugares da cidade e suas dinâmicas de encontro para lazer e discussões, para intervenção ou para exposições nas galerias. Além de fazer os exercícios de caminhadas em regiões centrais, sucedidas por caminhadas sem destino fixo para observar e registrar a arte, cumpriu como papel de imersão e criação de contatos a frequência aos eventos voltados para a arte urbana e 91 de rua. Assim, fui a diversos eventos que ajudaram a compreender certas dinâmicas daquele campo, como também apreender outras que só fariam sentido bem mais tarde no trajeto da pesquisa. Foi dessa forma, num domingo nublado de 29 de março de 2015, que fiz minha primeira incursão em campo. Foi o 2 Mutirão de Graffiti que ocorreu na Vila de Ponta Negra, bairro da Zona Sul de Natal onde se localiza sua praia mais famosa. Embora estivesse marcado para as 09:00 horas, a adesão ao mutirão teve várias fases, de modo que, ao meio dia, já havia murais finalizados e outros em processo. Havia artistas que eu já conhecia de outros settings, de vista ou de diálogos breves como o TOLIGA e o LENNON LIE; outros que jamais havia visto ou reconhecido nos trajetos percorridos; e, pelo menos um outro que seria um dos principais interlocutores da presente pesquisa. Ao falar desses “settings”, cumpre afirmar que ambos os interlocutores, pesquisador e “pesquisados” são “considerados como pontos de intersecção entre várias configurações sociais de mútuo conhecimento e uma trajetória pessoal como pontos de intersecção35” (WEBER, 2001, p. 489). 35 Tradução livre do minha do original “A person can be regarded as the point of intersection between various settings of mutual acquaintance, and a personal trajectory as the succession of these points of intersections”. Grifos meus. 92 Figura 29. Narrativa fotográfica do processo de criação do artista TOLIGA durante o 2º mutirão de graffiti em Ponta Negra. Fonte: elaborado pelo autor em março de 2015. 93 Fotografei alguns processos/sequências, panoramas e quadros. Fiquei aproximadamente duas horas no evento. Cumprimentei alguns conhecidos de conhecidos e conversei brevemente com outros presentes, não quis estabelecer fronteira ou marcar nitidamente a posição pesquisador/pesquisado, foi uma prospecção. Nesse sentido, percebi, ainda que com olhar pouco treinado para aquela realidade, uma significativa sociabilidade e entrosamento fácil. Havia, ainda, uma solidariedade, ou seja, um certo sentido de estar junto que os agrupava no evento, como também uma forma de cultivo da criatividade. Mas foi, talvez, em 08 de maio de 2015 que as interlocuções começaram a se estreitar e a ter um conteúdo epistemologicamente desafiador. Assim foram os diálogos com o artista Raom e com a fotógrafa Isadora, na época bolsista do NAVIS, possibilidade aberta pela pertença ao setting universitário e pelo interesse em fotografia. A abertura e disponibilidade para dialogar e responder questões foi de fundamental importância para a pesquisa. Nesse primeiro encontro conheci o trabalho de ilustração do artista. Como veremos, ao abordar sua trajetória na arte, trata-se de um jovem prolífico não apenas na arte de rua, mas também na ilustração (seleção de páginas no ANEXO 4) e publicação autônoma de fanzines, e ilustrações sob encomenda para o seguimento da arte na cidade. Na manhã de 25 de maio de 2015 participei na condição de ouvinte da roda de conversa: Graffiti e arte urbana ocorrido no âmbito da Semana de Artes Visuais no Departamento de Artes da UFRN e tendo como convidados os estudantes Paulo Victor (PazCiência) e Larissa Braz, e como mediadora a estudante Julia Monteiro, com aproximadamente 15 ouvintes. Na ocasião, os participantes levantaram questões fundamentais como a diferença “graffiti e pixo”, a noção ampla de arte de rua e fine art. Ressaltaram o status de arte que o graffiti alcançou em detrimento do pixo, na mudança legal que autoriza e reconhece um como arte e criminaliza o outro. Questionaram, assim, qual é autoridade legal que possui e qual o arcabouço estético da polícia para julgar o que é pichação e o que é graffiti. Mencionaram Basquiat como um divisor de águas no campo da arte de rua e da “tensão” com a galeria. Outra questão levantada foi o conflito dentro da própria instituição na dificuldade de lidar e compreender a atuação dos estudantes nas paredes da universidade. A questão da legalidade, com a ideia de “autorização” é problematizada, já que o graffiti surge, se estabelece e se avizinha ao 94 não autorizado e disputa, de certa forma, com diversas formas de publicidade na cidade, mesmo as não profissionais, os prestadores de serviço de “gesso” e de “detetive”. A visibilidade das intervenções é trazida à tona para ressaltar o fato de que elas ativam alguma coisa em quem lê, desperta uma reação. Há ainda o fato de que se trata de uma linguagem que não é compreendida por todos e que é preciso um esforço para decifrar, para entender. Ainda em 2015, na noite de 19 de agosto visitei o estabelecimento Enquanto seu lobo não vem. Embora a lanchonete já existisse antes em outro bairro da cidade, só a conheci em seu novo endereço na Avenida Afonso Pena, nº 483 no bairro de Petrópolis, em Natal/RN – Brasil. A ida consistiu na apreciação do bate-papo intitulado Arte Urbana: Grafite e Pixo com os artistas Glauber Arbos (PE), Bones, Raom Hai e Kefrem PoK. Na ocasião estávamos Lisabete Coradini (orientadora desta tese) tomando notas do bate- papo. Figura 30. Cartaz do bate-papo “Arte urbana: graffiti e pixo”. Fonte: extraído da página do evento no Facebook. O evento foi dinâmico. Raom iniciou a fala. Houve ainda uma discussão acalorada sobre a legitimidade da arte e da intenção de quem “está na rua” produzindo versus quem apenas “produz na rua”. O que pareceu foi uma série de acusações de uma das partes, artistas paulistas, que colocavam em questão o fato de o Raom não ser da rua, nem estar na mesma condição social deles. O fato se desenrolou com uma atitude de descontração do Raom que ofereceu aos colegas beijos e abraços, ao passo aquele ato não pareceu ser bem recebido. Houve depois também a intervenção dos demais participantes e da plateia. 95 Já em 2016, no dia 12 de março, visitei novamente o Enquanto seu lobo não vem em razão da segunda edição do evento Leilão de artes do seu lobo. Cheguei ao restaurante por volta das 17:00 horas, embora o evento estivesse marcado para às 16:00, mas foi apenas por volta das 17:30 que a banda Joseph Little Drop começou a tocar abrindo o evento. Até então os participantes/clientes foram chegando culminando com a presença de aproximadamente cem pessoas no ato de exibição da banda. Em seguida deu-se o leilão que foi animado pelo estudante e responsável pela performance de leiloeiro, o Raphael Dumaresq. Segundo as organizadoras do leilão e proprietárias do estabelecimento, em entrevista dada a TVU, o objetivo do leilão foi permitir acesso à arte a partir de lances de R$ 1,99 e ao mesmo tempo criticar o mercado de arte. Participei então do leilão. O primeiro objeto a ser leiloado foi um trabalho do artista Kefrem Pok. Participei dos lances, mas não fui até o final, tendo a arte ficado com a proprietária do estabelecimento. O evento prosseguiu e três pequenas telas do Pok foram a leilão. A disputa das três peças foi acirrada e cheguei arrematá-las finalmente. A participação foi emocionante, pois nos lances finais eu estava no páreo com uma jovem que demonstrou também muito interesse nas telas. Após o arremate o público vibrou com a experiência. Figura 31. Cartaz do 2º Leilão das Artes. Fonte: extraído da página do evento no Facebook. 96 Estava nessa ocasião o PazCiência com quem conversei durante o leilão. Após o arremate, paguei as obras e ainda negociei a primeira com a proprietária que me cedeu gentilmente, um skate quebrado customizado pelo Pok. Estava nessa mesa também, mas a parte, o Filipe Marcus, vocalista da banda que havia tocado de início. Filipe veio ao meu encontro, elogiou as obras do Pok e falou que eram colegas, estudaram juntos o curso de design na Universidade Potiguar (UnP), onde sofreram constrangimentos institucionais pelo trabalho com a arte. Segunda-feira, dia 14 de março, contatei PazCiência, pois queria saber a impressão privilegiada dele como artista. Além de afirmar a importância da proposta do evento, criticou o fato de ter havido tanta disputa em torno da arte de Pok, o que não houve com as outras obras. Não se tratou de um crítica ao artista, mas à falta de tato dos participantes para outras artes e artistas. O mesmo ressaltou o que eu já imaginara, o fato do Pok ser um artista em ascensão em Natal, tanto nas ruas como nas galerias, e de estar com uma expressiva exposição em uma galeria da cidade. Figura 32. Banner da exposição “URBANOLHAR”. Fonte: extraído da página do estabelecimento no Facebook. Na noite de 02 de março de 2016, Lisabete e eu visitamos a exposição “URBANOLHAR” do Pok ocorrida entre os dias 20 de fevereiro e 19 de março no Between 97 restaurante e galeria. Segundo Raquel Jácome, curadora da exposição e proprietária do estabelecimento: URBANOLHAR é uma extensão entre o espaço externo e interno. É perceber o “invisível” e transformar em visível, em palpável. É saber que a arte faz parte do nosso contexto urbano e que está viva em nós. Aqui há a utilização não só do spray, mas de técnicas mistas e cortes com madeira que traduzem o movimento, a energia e a fluidez trazida das ruas. O equilíbrio, a estética e as cores apresentadas se materializaram e se apresentam em nosso espaço com esse novo formato, nada estático ou quadrado e sim como elementos de força vibracional. Começamos então a entender a relação entre o artista e a cidade, convidando a todos a enxergar os centros sob a perspectiva da arte urbana, valorizando a surpresa, o inesperado e o despertar do olhar (Raquel Jácome, texto de apresentação da exposição “URBANOLHAR”, Natal/RN, 2016). Na tarde de 25 de agosto de 2016 visitei o evento INarteurbana na Pinacoteca da cidade. Tratou-se de um evento organizado pela Casa Vermelha sob a direção da artista potiguar Sayonara Pinheiro e com forte atuação na comunidade do Passo da Pátria. É um projeto sociocultural com residência artística que reúne profissionais diversos com vistas a ativação/reativação de espaços públicos através de ações de arte. Realizado desde 2015, o projeto tem se afirmado como agente importante no desenvolvimento artístico e social da capital do Rio Grande do Norte. Na ocasião de abertura do evento pude tomar contato com artistas de Natal e do Brasil, além de ter sido de fundamental importância para conhecer esse trabalho singular na cidade. A partir dessa frequência no INarteurbana e tendo conhecido suas organizadoras, a artista Sayonara, e as curadoras Agathae e Nízia Montecinos, fui convidado a participar da roda de conversa Arte urbana e seu desenvolvimento no RN com as organizadoras do evento, e os grafiteiros do PazCiência e do Miguel Carcará. O encontro realizado no auditório da Aliança Francesa teve um público de aproximadamente cinquenta pessoas e foi bastante profícuo. Na manhã de 13 de setembro de 2016, participei da vivência sobre arte urbana experienciada dentro do evento VII Semana Acadêmica de Design da UFRN (Debulha) ocorrida de 12 a 17 de setembro de 2016 no Departamento de Artes conduzida pelo artista Kefren Pok. Ele iniciou a vivência explicando a trajetória do graffiti no Brasil e mostrou alguns fragmentos de vídeos. Explicou a importância dos eventos de graffiti que estão ocorrendo na Grande Natal, como o On Area, que reuniu artistas de outros 98 estados, a exemplo da participação do grafiteiro Crânio. Para ele, isso demonstra o desenvolvimento de um campo do graffiti e uma rede de artistas e coletivos com atuações, projetos e carreiras. Também se soma a isso a demonstração do interesse de empresas privadas no trabalho desses artistas e coletivos. Em seguida apresentou uma animação assinada pelos grafiteiros os Gêmeos e comentou o fato de os artistas serem os mais conhecidos no meio do graffiti e seguiu apresentando algumas fotografias. Figura 33. Cartaz da roda de conversa “Arte urbana e seu desenvolvimento no RN” Fonte: extraído da página do evento no Facebook. Naquela seleção de imagens, explicou que durante o ano de 2016 fez sua primeira exposição e antes disso só tinha trabalhos na rua. Explicou que a exposição foi importante para ser conhecido, o que deu mais vontade de fazer o trabalho e foi levando mais a sério e criando foco. Explicou também que passou um ano montando a exposição que resultou em 20 telas, e que nesse tempo parou de pintar na rua para produzir em casa. Dessa exposição os frutos apareceram, como o convite para fazer uma exposição individual, uma coletiva e outras pinturas em galerias e ruas de Paris. Ele acredita e reconhece que essa trajetória foi fruto do trabalho que desenvolveu, através de um caminho que percorreu e conquistou no graffiti. Afirma, ainda que, para que seu trabalho chegasse à galeria, ele teve que ser visto na rua, como acontece com outros artistas. Reconhece o desafio do graffiti em quebrar paradigmas, já que é visto de forma 99 marginalizada ou às vezes está colocado numa situação de imposição de temas, plataformas e lugares. Figura 34. Detalhe da exposição “Segunda Figura 35. Detalhe da exposição “Segunda Matéria” de Raom Hai (1). Matéria” de Raom Hai (2). Fonte: elaborado pelo autor em setembro de Fonte: elaborado pelo autor em setembro de 2017. 2017. Figura 36. Cartaz do debate sobre a exposição “Segunda Matéria”. Fonte: extraído da página do estabelecimento no Facebook. Em 29 de setembro de 2017 fui convidado por Raquel Jácome, proprietária do Between restaurante e galeria, a participar do bate-papo que culminou com o encerramento da exposição Segunda Matéria do artista Raom Hai. O debate contou com a participação também da curadora, Dora Bielschowsky que, em seu texto de apresentação, descreve a exposição: 100 O figurativo tem menos força em seu trabalho nesta fase mais atual, justo pela sua análise contundente à imagem. Entre suas experimentações há o desenho, a colagem, a pintura, escritos, o bordado, o xarpi, lettering e as mídias digitais. Apesar do modo tortuoso, seu trabalho se dá com um dinamismo peculiar. Raom desenvolve uma dialética da técnica e da forma, tecendo enunciados que criticam a concepção das tradições pictóricas ocidentais. Para ele, o traço depende de um movimento que precede a forma, como o dado apontado pelo artista “a palavra silêncio” que marca sua motivação (Texto de Dora Bielschowsky, 2017). Evidentemente o processo de interlocução não foi completamente circunscrito ao conjunto desses eventos. Trata-se de situações que foram acompanhados com maior precisão, obedecendo ao imperativo de documentá-los, ou seja, descrevê-los, gravar o áudio e vídeo, e fotografar. Como já mencionado, a simpatia prévia ao tipo de arte que representa o fenômeno e a integração em configurações sociais (settings) múltiplas foram fatores facilitadores nesse processo. Outros eventos, situações que ocorreram durante e depois do período relatado nesta sessão, também contribuíram para a interlocução e compreensão desses processos. Essas vivências são, na maioria das vezes, acompanhadas de boa recepção e de diálogo, principalmente quando se é introduzido por alguém já inserido no meio. Outras poucas vezes, o pesquisador é objeto de desconfiança, porque em algumas situações é um estranho aproximando-se, fazendo perguntas, sobre uma questão que foi até recentemente, e ainda é em alguma medida, ilegal. Esse sentimento de desconfiança não se trata de uma simples repulsa ao estranho/desconhecido, mas está no quadro de uma gama complexa de possibilidades que pode ser o encontro do pesquisador e do seu possível interlocutor no contexto urbano. A posição do indivíduo, e aqui especificamente do pesquisador, em um ou mais settings pode ser definidor do sucesso na interlocução, e mesmo na qualidade da informação. Assim, pertencendo o pesquisador ao setting acadêmico, essa realidade, a rigor, pode ser um bom código de acesso ao setting da arte de rua no seguimento de indivíduos que ocupam os dois settings. No entanto, a própria condição de pesquisador pode ser inibidora para outros indivíduos “na” rua como sendo um representante da educação formal, do Estado, da relação metódica ou outras formalidades que não as apreciam bem. Há ainda o fato de que alguns indivíduos no campo da arte de rua preferem ser conhecidos não pela entrevista acadêmica, mas pelo trabalho que inserem 101 anonimamente nos muros e equipamentos da cidade. Essas hipóteses não podem ser entendidas de forma genérica, mas como características compartilhadas por alguns indivíduos, considerando que outros se dispõem mesmo à academia, à imprensa e ao mercado/comércio. Participei ainda de outros eventos que também tiveram um papel importante no desenvolvimento da presente pesquisa. Foram eles o Bate-papo sobre arte urbana na condição de ouvinte no Between em 22 julho de 2017; a mesa de debate sobre Graffiti na CIENTEC (evento científico para os estudantes da UFRN) em 30 de junho de 2018 e a roda conversa no evento Camarão Street em 08 de fevereiro de 2019 organizado pelo PazCiência. A visita à exposições e eventos ligados ao graffiti, pixo e a arte de rua em Natal foram uma constante, assim como na experiência de mobilidade acadêmica em Bordeaux na França, onde visitei em outubro de 2018 a exposição Street Art Mirabilis que ocorreu dentro do evento 21# Vibrations Urbaines. Julgo satisfatória a apresentação da amostra trazida nesta sessão, considerando que outras atividades também concorreram para o desenvolvimento da presente pesquisa. Uma experiência significativa, ao mesmo tempo evento e estratégia de inserção, foi a participação no evento Circuito Grude 2016, evento nacional realizado em 14 capitais no dia 02 de julho, dentre elas Natal. Segundo os articuladores, O grude é um circuito livre de trocas de lambes, via correio, entre coletivos e artistas independentes de diferentes lugares, para realização de colagens nos espaços urbanos de diferentes cidades. Procura aumentar as trocas simbólicas, as possibilidades de conexão, colocar em parcerias artistas e movimentos que estão intervindo em diferentes contextos urbanos. Funciona de forma independente, não custeado por nenhum órgão governamental ou empresa privada, cada artista arca com seus custos, que não são muito onerosos – fazer os lambes e manda-los, como carta comum, pelos correios (Panfleto virtual). Em Natal o evento foi articulado pela artista Dora Bielschowsky e contou com adesão de um número aproximado de 15 artistas, divididos em duas equipes. Como desdobramento dos laços e da rede de relações criada durante a pesquisa, especificamente com Dora, Raom e Isadora, pude participar do evento em Natal e acompanhar a colagem dos “lambes” em três pontos da cidade. Durante o evento convencionei fotografar o processo em preto e branco e o resultado em cores. O que chamo aqui de “trampo” refere-se à categoria utilizada pelos interlocutores para 102 significar tanto o processo quanto a obra em si e faz menção a um tipo de trabalho que não é precisamente remunerado, que não se trata de uma “obrigação” para com uma empresa ou um patrão e que envolve alguma forma de prazer, criatividade e satisfação na sua feitura. 103 2.4. COLANDO LAMBE-LAMBE. 2.4. COLANDO LAMBE-LAMBE. 104 A experiência de “colar lambe”, embora não tenha sido o primeiro contato com os artistas e com o campo, foi o que mais se alinhou à clássica observação participante no laço indispensável entre pesquisador e interlocutores. Ali eu pude confirmar algumas expectativas, como ficar diante daquilo que temos chamado na antropologia dos “imponderáveis da vida real” (MALINOWSKI, 1978, p. 29). A dádiva e a reciprocidade (MAUSS, 2015) vieram à tona na troca da experiência e no estabelecimento da confiança e na oferta imagética feita pelos artistas à cidade. As expectativas teóricas que eu alimentava antes de ir nessa experiência de campo, eram, dentre outras, a pergunta de como e por que se dá, ou ainda, quais os estímulos para realização de uma arte de rua, especificamente na cidade do Natal? Os imponderáveis da vida real, cotidiana, urbana e da pesquisa de campo permitiram-me tornar aquela pergunta mais complexa e vislumbrar também algumas luzes. Uma questão no quadro complexo desses imponderáveis foi a apreensão de estar na rua para uma atividade cuja legalidade é objeto de incertezas. Em relação à questão legal, mesmo o cartaz lambe-lambe sendo uma prática que remonta aos fotógrafos urbanos do final do século XIX, as legislações, seja a que dispõe sobre atividades lesivas ao meio ambiente, a lei 9.605 (BRASIL, 1998)36, seja a lei 12.408 (BRASIL, 2011) que dispõe sobre a descriminalização do ato de grafitar, não mencionam a prática. No entanto o poder público, por seus aparelhos de repressão, pode entender a prática como um meio de “conspurcar edificação e ou monumento urbano” (Art. 65 da lei 12.408). A ciência de que a prática possa ser a qualquer momento alvo de uma abordagem policial, e que possa ainda envolver o uso da força física e da violência, fará necessariamente com que os participantes sintam alguma forma de apreensão. Eu tive esse sentimento, mesmo estando em condição de pesquisa, e mesmo não tendo sofrido posteriormente qualquer tipo de abordagem policial ou mesmo civil. A regra é não ser pego/abordado, mas existem as “exceções” que criam um mal-estar muitas vezes duradouro com impactos emocionais significativos na vida de quem se aventura na arte de rua. 36 Lei que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. 105 Conforme as fotografias narram, a colagem de cartazes lambe-lambe requer uma certa “mão de obra”, notadamente quando se tem uma quantidade significativa daqueles (é valido ressaltar que comumente não se cola tantos lambes em um único dia. Dependendo do objetivo de quem cola, há um planejamento de onde, quando e o que colar). Pode-se dizer que o processo de colagem/afixação começou com a triagem dos “papéis” enviados de todo o Brasil como também aqueles produzidos pelos participantes locais. Em seguida, com a preparação da cola, rolos e pincéis. Depois o “rolé” para colagem que começou numa altura de grande fluxo de carros da Avenida Prudente de Morais, em um muro do Centro Administrativo que já possui graffitis, lambes, pixos e propagandas comerciais. Ali começou efetivamente o “trampo”, ou seja, o trabalho de colar e afixar, sendo impossível não sujar as mãos de cola. O trabalho daquela dimensão requereu a realização em equipe, a quatro, a seis mãos: tratou-se de aplicar cola na superfície (do muro), no verso do papel, aplicar o papel na superfície e, por fim, aplicar cola sobre o lambe já colado. Ali é preciso vencer alguns obstáculos: controlar a adrenalina (pois, como já dito, se teme ser abordado pelas autoridades e prepara-se o tempo todo para a “fuga”, para “vazar”), vencer o vento que a todo tempo ameaça levar os papéis embora, livrar-se dos grânulos ora da cola, ora de areia ou mesmo da superfície áspera da parede; aplicar mais cola para o caso dos papéis de maior gramatura. Percebe-se, nos temas e nas escolhas simbólicas, um consenso dentro de sua variedade: vida cotidiana, regionalismo e classe, crítica à ideologia, luta pelo direito, feminismo, consciência política, arte pela arte. A experiência de colar lambe foi um processo de imersão que contribuiu para sentir no corpo um pouco da sensação de intervir na rua. Contribuiu também para perceber os lugares da cidade em outra perspectiva e atinar para as situações em que se elabora suas imagens, mensagens e se produz um tipo particular de conhecimento. Essa forma da arte urbana, assim como o graffiti e o pixo são objetos que circulam na cidade e, nas suas formas, usos e trajetórias, fazem circular os seus significados. 106 107 108 109 110 111 112 113 114 115 116 117 118 119 120 121 CAPÍTULO 3 CAPÍTULO 3 – BIOGRAFFITI. BIOGRAFFITI 122 3.1. TRAJETOS E TRAJETÓRIAS INDIVIDUAIS NA CIDADE. A produção do presente texto, da pesquisa que lhe motivou e dos dados apresentados, em grande parte foram resultado do ato de caminhar pela cidade. Foram exercícios de observação e deambulação, tanto nas suas regiões centrais, como nos seus interstícios. Foi uma busca dos grafismos e da arte de rua. Isso se deu, conforme já mencionado, pelo exercício da caminhada, da observação e da interlocução. Nessa dinâmica, registrando e colecionando as imagens capturadas na rua, pude encontrar nas redes sociais os autores de uma parte daquelas obras. Além de se abrir como uma prática etnográfica, o caminhar mostrou-se ser também uma prática biográfica, já que se tratou de seguir as artes deixadas por seus autores nas ruas da cidade. Suas experiências de explorar a cidade, traçando trajetos e imprimindo suas marcas, imprimiam, por conseguinte, os aspectos das experiências no mundo e das suas trajetórias de vida. Num primeiro momento, agrupando e classificando as fotografias feitas e depois percebendo os traços característicos de um autor, bem como suas assinaturas, desenvolvi habilidade para encontrá-las. Por um lado, a necessidade de delimitar um objeto, um campo ou mesmo a característica de um fenômeno, levou-me a eleger inicialmente dois principais interlocutores: POK e RAOM. Por outro lado, era também a presença quase imanente das suas obras, marcadas por personagens, grafias e símbolos, que os tornaram elegíveis como interlocutores aos quais colocaria as questões sobre as imagens e as dinâmicas urbanas. Tendo construído a ideia de que era preciso abordar as regiões centrais da cidade a exemplo da região em torno do shopping Midway Mall, ou seja, aquelas que são o palco de grande fluxo de pessoas e automóveis, que têm usos e valores fundiários diferenciados, encontrei ali as marcas deixadas por aqueles artistas. Descobriria mais tarde que, pelo menos, duas razões motivavam a intervenção naqueles espaços: eram lugares transpassados por seus trajetos costumeiros e eram lugares de visibilidade. A ação deles claramente não se limitava àquela região e, como descobriria depois, não apenas à ação na rua, mas também na galeria. Essa expertise dos artistas, em transitar 123 entre a rua e a galeria é particularmente uma marca de suas trajetórias individuais no campo da arte e da cidade. Finalmente, ao estabelecer uma interlocução com os artistas, mediada pelo interesse em conhecer seus trabalhos e em visitar suas exposições, passei grande parte da pesquisa em diálogo com eles, acompanhando suas ações nas redes sociais, nos eventos e na rua. Essa dinâmica de pesquisa produziu um material mais amplo sobre seus trabalhos. Posteriormente, considerando a perspectiva que pude ter a respeito da rede de artistas de rua, grafiteiros e pichadores, percebi a complexidade dessa trama, como também vislumbrei a impossibilidade de criar um mapa completo dessas relações. Decidi, portanto, abordar o trabalho de outros artistas que passavam a espalhar seus traços pela cidade, como foi o caso do ARBUS, do PAZCIÊNCIA e do KENDO em sua passagem por Natal. Entrevistei os artistas abordando suas trajetórias, suas concepções sobre a arte e os coletivos de arte. Ao abordar a dimensão biográfica dos meus interlocutores busquei considerar alguns “designadores rígidos” (BOURDIEU, 1998) como nome, idade e escolaridade, mas abordar principalmente as “trajetórias” trazidas à tona por questões sobre o interesse sobre a arte, a principal atividade no momento e os planos para o futuro. Ao falar de “trajetória”, evoquei em primeiro lugar a “série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações” (BOURDIEU, 1998, p. 189). Em segundo lugar, para pensar a noção de “trajetória” como uma ideia antropológica, considerei-a como o encadeamento de fatos nas experiências individuais vividas a partir de tensões entre situações particulares e o universo da cultura (VELHO, 2003). Ligado a essa ideia está a noção de “campo de possibilidades” formando um par conceitual com a “trajetória” e que se trata de um processo social onde os indivíduos não são meramente agentes de reprodução, mas são capazes de dotar a vida social de emoção e manipular seus projetos de vida (VELHO, 1986). A decisão de abordar essas trajetórias culminou em um passeio antropológico pelas biografias dos artistas e mesmo pela biografia da cidade. Tentei trabalhar uma “etnografia multi-integrativa” onde 124 Todo mundo pertence simultaneamente a várias configurações de mútuo conhecimento. Uma pessoa pode ser considerada como o ponto de interseção entre várias configurações de conhecimento mútuo e uma trajetória pessoal como a sucessão desses pontos de interseção. (...) Poder- se-ia, assim, interpretar as dificuldades que as pessoas “transplantadas” de uma configuração à outra têm em expressar “projetos definidos” ou uma “personalidade forte”, e em moldar um relato coerente da sua “biografia”37 (WEBER, 2001, p. 489-490). Essa ideia nos permite pensar as narrativas dos interlocutores como “resultantes” de um conjunto de relações (uma configuração) estabelecidas e mantidas com outras pessoas, coisas e lugares. Portanto, ao pensar a dimensão biográfica, ou seja, as trajetórias individuais em seus campos de possibilidades, importa considerar no esforço pela “apresentação de si” feita pelo interlocutor que “o universo de significados dos eventos e dos atos está intimamente ligado a um universo de relações interpessoais, cada uma baseada em experiências compartilhadas (lugares, coisas e eventos)38”. (WEBER, 2001, p. 490). Assim, a experiência dos artistas na rua é geradora de memórias e conhecimento do mundo e de si. Fatos biográficos decorridos da trajetória individual, nos variados processos de socialização, e na vivência dos trajetos da cidade (MAGNANI, 2002) constroem a singularidade do artista e a sua atitude no mundo. A ideia de trajeto é aqui fundamental não só como uma sinonímia à constelação de palavras que tratam dos deslocamentos humanos sobre a superfície39. Ela é uma categoria socioespacial que, agrupada a pontos, manchas e circuitos, permite analisar as práticas da vida cotidiana e os usos e significados dados à cidade. Também o movimento, de andar e grafar a cidade, aqui é mais que uma característica da física, do fluxo e da circulação: é em si uma forma de conhecimento. Trata-se de um conhecimento que é “integrado ao longo do caminho”, ou seja, “prosseguindo ao longo de um caminho, cada habitante deixa uma trilha. Onde habitantes se encontram, trilhas são entrelaçadas, conforme a vida de cada 37 Tradução livre minha e grifos meus a partir do fragmento: “Everyone belongs simultaneously to several settings to mutual acquaintance. A person can be regarded as the point of intersection between various setting of mutual acquaintance, and a personal trajectory as the succession of these points of intersection. (...) One could thus interpret the difficulties that persons ‘transplanted’ from setting to setting have in expressing definite ‘projects’ or a strong ‘personality’, and in shaping a coherent account or their ‘biography’”. 38 Tradução livre minha a partir do fragmento: “the universe of meaning of events and acts is intimately linked to a universe of interpersonal relations, each being based ultimately on shared experiences (places, things and events)” 39 Ver Careri, 2013, p. 26. 125 um vincula-se à de outro. Cada entrelaçamento é um nó, e, quanto mais essas linhas vitais estão entrelaçadas, maior é a densidade do nó”40 (INGOLD, 2015, p. 219). No presente estudo, esse conhecimento é o aprendizado a partir de experiências pessoais e coletivas que geram as atitudes ante a vida social. Esse conhecimento é construído ao longo de uma trajetória de vida e ao longo de “caminhos”. “Caminho”, essa palavra polissêmica, pode aqui significar tanto o percurso pelo qual se anda (trajeto), quanto as decisões que uma pessoa tem de tomar para dar um rumo à sua vida (trajetória). Não há de fato uma grande distância entre os dois sentidos que encontram na rua seu ponto de convergência. São passagens, caminhadas, itinerários, paradas e trânsito onde as vidas vão se desenrolando no contato que os indivíduos mantêm entre si e com a cidade. Também como citado anteriormente com base na pesquisa antropológica (PEREIRA, 2005), esse andar e grafar trata-se de práticas de explorar a cidade, conhecer as minúcias de seus cantos, sua arquitetura e as suas possibilidades. Ao deixar as suas marcas esses jovens interferem na paisagem criando referências para outros pichadores, outros jovens da cidade e para quem quer que tenha a perspicácia de vê- las. Ao seguir os trajetos nos quais aquelas marcas estão inseridas, refazendo o trajeto dos artistas, a pé, de carro ou de ônibus, percebe-se a lógica do deslocamento deles na cidade. Os deslocamentos promovidos pela cidade na lógica do rolê/rolé41, se dá em grande parte por longas caminhadas e, algumas vezes, pelo movimento centro/periferia. A arte feita na rua implica um tal conhecimento, um investimento de tempo vivido nesses espaços, relações estabelecidas, conflitos e solidariedade, e, não obstante uma reflexividade sobre a estrutura na qual a cidade e suas dinâmicas estão inseridos. Nessa experiência, a vida é vivida, pensada em seu presente ou lembrada em seu passado, ao longo dos caminhos percorridos, sendo também um exercício de memória dos/sobre os lugares (ROCHA e ECKERT, 2000). A vida social é vivida nos diversos 40 Consultado também na versão inglesa: “proceeding along a path, every inhabitant lays a trail. Where inhabitants meet, trails are entwined, as the life of each becomes bound up with the other. Every entwining is a knot, and the more that lifelines are entwined, the greater the density of the knot” (INGOLD, 2011, p. 148). 41 Há uma variação regional na fonética, mas os sentidos da expressão são convergentes. 126 encontros, nas sociabilidades que a cidade possibilita. É, ainda, a memória dos lugares, as memórias das interações travadas e as memórias de si. 3.2. BIOGRAFFITI. Trajetórias individuais e campos de possibilidades, experiências coletivas e processos de socialização e sociabilidades, reflexões de ordem antropológica sobre a produção simultânea da arte de rua e das vidas vividas ao longo dos caminhos da cidade sintetizam-se numa “biografia grafitada”. As personas criadas e inseridas pela cidade, aliadas algumas vezes à escrita, pichada ou em caracteres mais “literais”, refletem essa realidade. Decidir sair de casa numa noite qualquer, sozinho ou com os amigos, para interferir na dureza da cidade que “dorme”, enfrentar perigos de todas as ordens para ver uma marca sua figurar nos muros esquadrinhadores da cidade, não é apenas uma decisão que transforma a cidade, mas que transforma quem decide alterá-la. Alguma coisa muda naqueles que pintam a cidade; a cidade muda depois de pintada; e a sequência de mutações e interferências, das quais a arte de rua é apenas uma delas, segue e se desenrola. Para pensar as grafias na cidade, mas também na sua reprodução, ou ainda, na sua tradução textual, proponho pensar a partir da reflexão antropológica de que “as noções de vida [bio], ‘indivíduo’/‘pessoa’, anthropos/ethnos, podem ser ampliadas e tensionadas ao se pensar vidas e grafias na antropologia” (KOFES e MANICA, 2015, p. 17). Assim, opto por exercitar esse movimento de ampliação e tensão com as categorias biografia e graffiti. Um exercício com a sugestão de que A relação entre experiência narrada biograficamente e estrutura da experiência permite retirar a narrativa biográfica da oposição entre indivíduo e sociedade, subjetivo e objetivo. A expressão da experiência conteria relações, conexões, movimentos de vida, experiência social e reflexão dos próprios sujeitos, conteria a expressão da experiência que não prescinde da sua expressão narrativa. A estrutura da experiência conectaria experiência vivida e os sentidos dados e criados pelos sujeitos (KOFES e MANICA, 2015, p. 35). 127 O graffiti, como a etnografia e a biografia, é uma forma peculiar de escrita. Ainda que alguns autores remetam a sua origem às inscrições paleolíticas e mesmo às inscrições da antiguidade, o graffiti e o pixo constituíram-se e ganharam força como uma arte contemporânea e como uma escrita da e na cidade. Esse fenômeno frenético de pseudônimos assinados em ônibus, metrôs, vagões e muros nos anos 1960 nos EUA, não foi chamado writing (escrita) e os seus autores writers (escritores) gratuitamente. Inspirados nos grafismos das gangs norte-americanas, mas diferenciando-se daquelas, as tags (“etiqueta”) e depois as pieces (“peças”) surgiram para se espalhar pelas cidades em todo mundo e adquirir características singulares com cada artista e em cada lugar. Formas locais também, anteriores, concomitantes e ou posteriores ao fenômeno pungente nos Estados Unidos dos anos 1960, também contribuíram a seu modo para o quadro global do fenômeno. Como já foi mencionado, no Brasil, não apenas pela influência norte-americana ou europeia, mas por um movimento local e particular, nasce em meados dos anos 1960 (mas também como reflexo de práticas políticas de décadas anteriores) um gênero peculiar de escrita na rua, a pichação. Trata-se, no início, de inscrições políticas em resistência ao regime militar no Brasil que são ressignificadas nos anos 1980 em São Paulo para abarcar as séries de assinaturas, que também encontraram inspiração nas tipografias das capas de LP’s das bandas de heavy metal, e que começa a se espalhar pela cidade (Pixo, 2009). A partir daí encontra-se também a própria ressignificação da ortografia também como “pixação”, “pixo”, “xarpi”, “charpi” e sua emergência e difusão em outras cidades e, por conseguinte, suas criações e recriações regionais. A efervescência política das décadas anteriores já havia preparado o campo, com a explosão de intervenções de arte urbana no uso da escrita semelhante àquelas do maio de 1968 na França, espalhando-se por várias cidades do Brasil. Em meados dos anos 1970, um dos primeiros grafiteiros da cena brasileira, Alex Vallauri traz personas coloridas, “uma expressão de si mesmo sobre as ruas através de estênceis pintados com spray42” (MANCO, ART e NEELON, 2014, p. 14). Vallauri foi sucedido por uma série de artistas brasileiros e outros radicados no país que levaram figuras coloridas aos muros da cidade usando desde o estêncil ao látex e o spray usado à mão livre. As figuras 42 Tradução e adaptação livre minha a partir de “he began to express himself on the streets through spray- painted stencils”. 128 grafitadas representavam uma cultura e uma vivência da rua no estreitamento que possibilitavam da relação entre a arte e os moradores da cidade. A arte de rua, dessa forma, está intimamente ligada à vida vivida nos trajetos urbanos e à expressão de suas impressões ao citadino de uma experiência sensível na esfera visual da cidade. A arte de rua brasileira está repleta de poesia, política e criatividade e, além de animar uma parte significativa das trajetórias individuais de artistas inscrevendo-os no mundo, ofertam um sentido à vida vivida nas cidades compartilhando suas sensibilidades. Observamos em Natal dinâmicas semelhantes que são constitutivas de trajetórias, ao mesmo tempo que constituem um traço marcante da construção da paisagem e do tecido visual da cidade. Em Natal, graffiti, pixo, lambe- lambe e outras formas da arte de rua constituem uma diversidade de cores e formas que fazem desse campo até mais pungente do que o seguimento “tradicional” das artes na cidade com artistas engajados e atuantes, cujas trajetórias, motivações e intenções são apresentadas a seguir. 129 3.3. RAOM HAI. Figura 37. “Descendo a ladeira”, arte do Raom Hai no bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em maio de 2017. Eu acho que esse ponto de rompimento [entre infância e maturidade] ele não é eterno, não vai ficar [rompido] para sempre com a imagética que [se] construiu na criança. (...) Depois o encontro com essa própria criança é modulador da experiência artística. (RAOM, entrevista concedida em 26/03/2018). Raom – Natal, 1988-*, artista visual multimídia, seu trabalho é marcado por uma permuta estética de suscitação espiritual que infere de modo importante nas suas concepções, um ritmo onde múltiplas camadas de sonho e atmosferas de signos travam uma guerra interna contra sua própria produção, linguagem que se dá por meio da força do fracasso e do acidente, vestígio de que sua obra representa o descontentamento como aspecto intrínseco do ser que opera sua linguagem por meio de uma conversação variante das coisas – da neurose na cultura, da amizade dos sentidos e da organicidade de tudo. É nítido que há em sua obra um processo de decomposição estética no sentido dialético de movimentação. (Dora Bielschowsky, 2017 – Texto de apresentação da exposição “Segunda Matéria” de Raom Hai). Personas, pessoas, cachorros, cabeças, feras, letras. São elementos que podemos encontrar na obra do artista, se aceitarmos a proposta de andar pelas ruas de Natal, folhear um fanzine (ver seleção de páginas nos ANEXOS 5 e 6) ou acessar seu Tumblr43. Essa simbologia fantástica dos contos de fadas, do esoterismo e mesmo da imagética judaico-cristã, invade a cidade na arte do Raom. Aos 30 anos de idade, nascido 43 Link: Acesso em 08/03/2019. 130 em Natal, Raom Hai, Raom HaiHai ou Raom Benarez, são nomes com os quais já assinou os seus trabalhos. Seu curriculum vitae reúne a participação em exposições coletivas, tendo realizado sua primeira exposição individual em setembro de 2014 na Pinacoteca do Estado, intitulada “Organismos de bonecos44”. Em 2016 realizou junto com o parceiro de crew, o artista Daniel Nec, a exposição intitulada “Microconspirações do Aparelho Digestivo45” (ver ANEXO 7) acompanhado do lançamento do fanzine de mesmo nome. Em setembro de 2017 organizou sua última exposição na cidade sob o título “Segunda Matéria46”, antes de partir para São Paulo. Essa exposição dá continuidade a um ininterrupto processo de criação aliado à crítica imagética. Como afirma a curadora da sua exposição, “Segunda Matéria” possui a marca de uma “permuta estética”, uma relação de troca entre a sua elaboração singular, onírica e poética com a experiência sensível do mundo externo. Figura 38. “Cabeça estupefata”, arte do Raom Hai na Avenida Bernardo Vieira, bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em janeiro de 2015. 44 “A arte de Raom Haihai em ‘Organismos de Bonecos’” por João Maria Alves para o jornal Tribuna do Norte. . Acesso em 17/02/2019. 45 “Um duelo de traços e linguagens na Lee Boards” por Tádzio França para o jornal Tribuna do Norte. . Acesso em 17/02/2019. 46 “Between Gallery inaugura exposição multimídia do artista Raom” por Alana Cascudo com base no texto de apresentação da exposição escrito por Dora Bielschowsky. . Acesso em 17/02/2019. 131 Essa marca distintiva de seu trabalho não encontra eco apenas na forma de apresentação da obra na galeria. Também se aventura nas plataformas virtuais alimentando periodicamente uma página no Tumblr; na elaboração de fanzines, como também na elaboração de trabalhos de design gráfico encomendados ou em parceria com outros realizadores. Promove, junto com a fotógrafa Isadora Gomes, a marca Andaluz Handmade que une, em diversos produtos (como bolsas, camisetas e estojos para lápis), os traços do artista e as habilidades manuais em bordado e costura da parceira. Mas é sua atuação nas ruas da cidade que terá sua atenção aqui. Figura 39. “A cidade invadida pelo vazio do amanhã”, arte do Raom Hai na Avenida Prudente de Morais no Bairro do Tirol. Fonte: Elaborado pelo autor em Julho de 2015. A interlocução com Raom começou por volta de maio de 2015. O encontro foi mediado por Isadora Gomez, então colega do Núcleo de Antropologia Visual da UFRN. Mas a relação com o seu trabalho na rua, antecede as formalidades. Moradores que somos da mesma cidade e do mesmo bairro, nossos trajetos talvez nunca tenham propiciado o encontro face a face na rua, mas seus traços certamente me “capturaram” nas caminhadas pelos bairros de Lagoa Nova, Candelária, Cidade Alta e Ponta Negra. Um primeiro encontro foi de grande valor: não se tratou de uma entrevista formal, mas uma visita para conhecer o trabalho que se seguiu com um longo diálogo sobre a arte e a produção gráfica. Pode-se dizer que aqueles passos iniciais, seja da coleta de imagens na rua, seja no primeiro encontro, foram essenciais para a pesquisa. Despertaram-me uma curiosidade a respeito de sua autoria e sentido, ao mesmo tempo em que me perguntava de que tipo de arte se tratava, ao que compreendi posteriormente como sendo uma forma singular. Aquelas imagens eram a expressão de rostos e cabeças de 132 pessoas, de animais e, às vezes, uma mistura dos dois, uma espécie de “antropozoomorfismo”. Figura 40. “Rua caderno de rascunho”, arte do Raom Hai na Avenida Prudente de Morais no Bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em outubro de 2015. Figura 41. “Antropozoomórfico” ou “o feiteiceiro da grota de Gabilou”, arte do Raom Hai na Rua General Osório, bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2016. O exercício de andar pela cidade, somado ao movimento costumeiro de ir a lugares do meu interesse, permitiu-me encontrar e registrar os trabalhos do Raom. Ao longo dos registros e das interlocuções, a obra mostrou-se complexa, o que eu veria mais tarde como e quanto estava embasada em uma visão de mundo. Um dos trabalhos que registrei e que considero de impacto, dado seu tamanho e localização, é um dos seres antropomórficos ladeado por escritos (figura 39). A imagem foi registrada em julho de 2015 na Avenida Prudente de Morais, entre os bairros de Lagoa Seca e Tirol, Zona Sul da cidade do Natal. O ser de face humana e corpo animal toca uma espécie de ferida na parede, uma interação da técnica com a base da aplicação. A imagem ainda está ladeada pelo texto “A prudente se torna uma elipse e é invadida pelo vazio do amanhã”. Dos outros lados o excesso de informação dos outdoors e do anúncio do detetive. 133 Nesta imagem há um complexo diálogo entre o ser e o texto, que é uma adaptação do poema de Marcelo Ariel. “A [Avenida] Prudente [de Morais] se torna uma elipse”: uma interseção na superfície. A imagem se encontra com a paisagem compondo-a dramaticamente, mas não se reduz a isso. O ser representado fere o muro que parece ser a própria cidade. A intenção da obra parece não ser a de repousar sobre uma ideia de harmonia, mas num conteúdo social crítico, na razão da interferência e mesmo na surpresa frente à profusão de imagens dispostas no tecido urbano: o “detetive”, os outdoors que lhe cerca, a vida imagética da cidade. A elipse poderia ser compreendida também como as possibilidades no âmbito da comunicação visual, que o artista encontra a partir dos seus percursos. Figura 42. “Aquele que trama a onda”, arte do Raom Hai na Avenida Prudente de Morais, no bairro da Candelária. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2015. Nessa altura as “linhas de errância” (DELEUZE e GUATTARI, 2012) do artista encontram a elipse (espaço, palavra, ou os dois), no saber-fazer manipular os símbolos, e que o observador mais atento poderá perceber em seu próprio universo interpretativo. Raom sabe, portanto, lidar com os símbolos e compreende sua posição na estrutura e na dinâmica de produção das imagens, dos discursos e do poder no tecido visual da cidade. Ele deixa uma “escrita-rastro”, uma forma “aracniana” (DELIGNY, 2015) de tecer fios repletos de sentido e possibilidades interpretativas. 134 Numa imagem registrada em julho de 2015 na avenida Prudente de Morais (figura 42), no bairro da Candelária, encontramos o motivo da cabeça. Aqui as cabeças se interseccionam, suas faces olham em direções diversas e são ladeadas pelo texto: “Aquele que trama a onda: elétron”. A noção de elipse aparece incidentalmente nos encontros entres as cabeças, uma espécie de atrito estático, energético. As cabeças saltam da parede e, com a simplicidade dos traços, transmitem expressões faciais com sutileza. As direções dos olhares, bem como as intersecções vão além da pura convenção das formas para acionar símbolos e aspectos da urbanidade: o encontro, a multidão, a energização pelo contato, a estática, as expressões, as vozes, os pontos de fuga, as trocas linguísticas e simbólicas. Figura 43. “Janus”, arte do Raom Hai no bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2017. O processo criativo do artista, certamente encontra eco nas experiências que teve ao longo de sua vida. Mesmo sendo jovem, e mesmo que só possamos “passear” pela sua trajetória, há um quadro de memórias que o próprio artista é capaz de acionar e compartilhar no diálogo para realização da presente pesquisa, como também o fez em entrevistas concedidas aos jornais da cidade. Na trajetória de vida do artista e designer, a arte sempre esteve presente, seja através da música introduzida por seu pai, seja pela atividade de copiar as capas revistas de desenhos animados. E como o mesmo atesta, a experiência infantil é fundamental na constituição de uma sensibilidade estética. 135 A constituição do artista, longe de defini-lo categoricamente por um conjunto limitado de dados biográficos, se dá em parte pela relação antitética no “ponto de rompimento” representado pela passagem da infância à vida adulta. Como o mesmo afirma, esse ponto de rompimento não é definitivo, resta ali, entre os constrangimentos sociais que impelem o jovem às responsabilidades da vida adulta, a vontade de brincar com o ser social, com a linguagem, com a imagem. Se esse ponto de rompimento ou “ponto de transformação” é possível de ser uma realidade nas trajetórias de outros artistas, como naquelas de quem não vem a ser um, na trajetória do Raom certamente o é. Se considerarmos alguns designadores rígidos, isso dá alguns contornos socialmente reconhecíveis à personalidade do artista. Assim, o desenvolvimento de um capital cultural possibilitado, ao jovem nascido em novembro de 1988, pelo cultivo dos pais, ou seja, pela educação da mãe professora e do pai músico, são possivelmente fatores estimulantes para a carreira artística. Na entrevista concedida ao jornal local, a Tribuna do Norte47, realizada pelo repórter Alexis Peixoto, a trajetória do Raom é descrita de seguinte forma: Raom está conectado desde cedo ao cenário cultural da cidade, por meio do pai, o cantor e compositor Clêudo Freire. Alias, foi graças a um show de Clêudo, no projeto Quarta Musical, na Casa da Ribeira, que Raom estreou profissionalmente. Aos 16 anos, assinou sozinho o cenário do espetáculo, ilustrados por sketches seus. “Sempre gostei de desenhar, desde criança mas na época desse show, nem pensava em levar isso como profissão. Encarei como um trabalho, uma atividade extra”, lembra Raom. “Só fui me encontrar mesmo como artista quando entrei na faculdade de design. Aliás, ainda estou me encontrando”. A decisão de fazer do hobby um ofício artístico pode ter demorado um pouco, mas o gosto e interesse pela história da arte esteve presente desde sempre. Ainda criança, o futuro artista devorava livros com ilustrações de Rembrandt, Millôr Fernandes, Goya, Basquiat e Egon Schiele. Desenhos animados e quadrinhos também entravam na dieta. Apesar das referências coletadas de vários lugares, Raom conseguiu criar um estilo próprio, uma interpretação particular que foge as citações óbvias dos artistas que admira (RAOM entrevistado por PEIXOTO, 2013). Mas é uma série de sucessões outras, fatos e experiências vividas no processo de amadurecimento e ao longo dos caminhos da cidade, que constituem a percepção desse mundo e a inclinação para interferi-lo. Ao falar sobre o contato inicial com a arte de rua, Raom afirma que: 47 “Entre muros e páginas” por Alexis Peixoto para o jornal Tribuna do Norte . Acesso em 17/02/2019. 136 Dá para falar de vários momentos que você tem essa primeira experiência jovial com a arte de rua. Na minha história dá para falar de vários momentos. O meu primeiro ato de fazer alguma coisa na rua foi pichar na parede, na Rua Apodi, uma letra “K”, porque a gente gostava daquele filme “Kids”. A gente falou: “vamos fazer uma crew de pixo “Kids”. A gente falava de crew de pixo, já havia entre nós esse papo que eu não me lembro de onde vem, essa coisa de gostar de graffiti. Daí depois de velho o tempo foi se passando, eu fui me envolvendo em outras coisas. E Daniel Nec e Rodrigo Duarte, dois amigos meus, eles faziam bomb e wild style graffiti, e aquilo ali foi me influenciando de novo novamente um pouco. E aí tiveram outros reencontros, até hoje tem, daqui a pouco vai ter mais (RAOM, entrevista concedida em 26 de março de 2018). Figura 44. “Explosão original”, arte do Raom Hai na Rua Coronel Joaquim Manoel, no bairro de Petrópolis. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2017. Percebe-se nessa narrativa tanto uma regularidade na carreira da arte de rua, ou seja, um revezamento de períodos de maior e menor estímulo da prática, mas também a própria “ondulação” da trajetória que não obedece a uma regra estrita de “ação e reação”, mas de composições e decomposições ao longo da trajetória. Isso também se aplica à própria composição da sua crew, a GFL, sigla para “Galados For Life”. Segundo Raom, “a história dela é cheia de episódios de separação e lacunas, e diferenças de ideias”, mas também possui uma característica jocosa como seu nome denota48. 48 “Galado” é uma gíria tipicamente natalense/potiguar que se originou, aparentemente, durante a Segunda Guerra Mundial e designava os soldados americanos trajados de gala para as festas na cidade. Inicialmente uma “categoria de acusação”, na contemporaneidade a expressão é utilizada em sentido 137 Também o conflito em diferentes níveis de socialização parece acompanhar essas composições no trabalho do artista. Assim, o estímulo à arte e ao desenho aparece na sua trajetória desde tenra idade, mas como o mesmo afirma “até hoje eles [seus pais] não entendem muito bem” a coisa do pixo. Se considerarmos também os settings dos quais o artista faz parte, ali também o conflito é constitutivo de uma experiência de mundo e, portanto, da constituição de uma trajetória. Curiosamente, ser um homem branco de classe média e com Ensino Superior parece não garantir sua exclusão das filas dos outsiders. Como ele coloca, [Possuo Ensino Superior] incompleto, Ensino Médio [por] supletivos, reprovações, acho que isso parte de estereótipos muito predefinidos. (...) E eu aqui falo assim, eu acho que é Hélio Oiticica, [que me permite afirmar ser] “outsider” em toda parte que ocupo. Mesmo entre brancos e estudados, e em outras partes, até mesmo dentro da minha casa eu me sinto um outsider. Eu acho que gente pra falar o que acha do seu proceder vai ter em toda esquina. Aí nesse pique eu sou julgado de “artista playboy” quando na verdade a galera que fala isso nem conhece como foi minha história, justo por partir de estereótipos: me vê como um cara branco, e [não] a batalha que eu tive (RAOM, entrevista concedida em 26 de março de 2018). Figura 45. “Perfil”, arte do Raom Hai na Rua Coronel Cascudo, no bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2016. Numa perspectiva antropológica, urbana e imagética, Raom é um artista polivalente, já que com seu trabalho também faz poesia e uma ciência da cidade, construindo um conhecimento e uma crítica da vida urbana. Nele, essas três categorias amplo e variado, podendo denotar uma pessoa desagradável ou mesmo uma pessoa admirável ou com quem se tem intimidade. 138 do saber se unem para recriar a linguagem descontente com a civilização e, como afirma a curadora de sua exposição, “opera sua linguagem por meio de uma conversação variante das coisas – da neurose na cultura, da amizade dos sentidos e da organicidade de tudo. É nítido que há em sua obra um processo de decomposição estética no sentido dialético de movimentação”. Esse “processo de decomposição”, essa dialética do sonho e da realidade encontrada na poesia (VIZIOLI, 2001), é o sinal de um trabalho em processo constante de criação e recriação, de uma “guerra interna” que termina pondo na “receita” um tanto de si que é difícil de se medir seja pela métrica antropológica seja pela histórica, biográfica. Figura 46. “Interações distraídas”, arte do Raom Hai na Avenida Bernardo Vieira, no Bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em setembro de 2017. Assim, andando pela cidade, principalmente pelos bairros de Lagoa Nova, Candelária, Petrópolis e Cidade Alta (este último considerado como um “Jardim do Édem” na cidade para o exercício artístico) a partilha sensível de sua experiência criativa surge em muros, postes e outros equipamentos urbanos para povoar a cidade e a mente dos citadinos com seres e sentidos. A base técnica de seu trabalho não ostenta técnicas por demais elaboradas: um trabalho simples, na maioria das vezes requer apenas um rolinho de dez centímetros, látex preto e um prato. A simplicidade dos instrumentos e, talvez, da técnica, no entanto não prescinde de conteúdos complexos do que há 139 disponível na cultura. O pixo/xarpi, por exemplo, somado às suas idiossincrasias, ressignificados ao seu modo, resultou num conjunto de personas distribuídas em vários pontos da cidade. Trata-se tanto de um aspecto marcante dos seus trabalhos, como uma fase prolífica de produção e atuação nas ruas e que coincide, como venho ressaltando ao longo do texto, com os meus trajetos mesmos na cidade. Figura 47. “Sob custódia”, arte do Raom Hai na Avenida Rio Branco, no bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2016. Nessa dialética bio, etno, gráfica, a vida é vivida e a trajetória é constituída ao mesmo tempo em que a cidade viabiliza e se transforma. Nos trajetos e ao longo dos caminhos um turbilhão de emoções ocorre, desde a verve do exercício artístico, passando pelos riscos de “subverter a ordem”, até o prazer de ver a obra acabada, ou as obras em diferentes lugares da cidade. A verve pode ser percebida tanto na profusão das obras do artista nas ruas do Natal, quanto na complexidade de alguns trabalhos que reúnem aspectos da cultura local e das dinâmicas urbanas. Quanto aos riscos de estar e atuar na rua, já mencionei de forma geral através das revisões dos trabalhos anteriores. Como os demais interlocutores, Raom acumula alguma experiência com os constrangimentos impostos ao artista de rua. Esses constrangimentos são sentidos todos os dias, principalmente com a atuação da polícia, e têm um efeito danoso para vida do indivíduo por resultar, dentre outras coisas, em processo judicial e por impactar em sua vida psíquica. Para ele, 140 De muitas formas a cidade reprime [e] a experiência de artista, ainda mais artista de rua, parece uma experiência que você está sob custódia: custódia do Estado para poder praticar alguma coisa. Então esse termo “sob custódia” deu uma camiseta e vários trabalhos e desenhos. Tem muito a ver com essa prática marginal (RAOM, entrevista concedida em 26 de março de 2018). A partir desse entendimento podemos compreender uma das formas possíveis com a qual “a cidade age” e de como essa ação retorna na forma de palavra e imagem. É preciso ressaltar que o uso do plural aqui em relação à cidade, é justamente porque ela não é apenas o lugar dos riscos, mas de outras formas de sociabilidade como o lazer (FRÚGOLI JUNIOR, 2007). No caso das formas de ação repressiva do Estado na gestão urbana, é importante avaliar os casos em que as mesmas não atuam como o mero instrumento de controle. Trata-se de considerar a forma diversa como se desenrolam as abordagens policiais, com variadas formas de dirimir o conflito. As formas com uso excessivo de força e mesmo de formas violentas, não tem gerado outro efeito senão o da revolta. Nos variados casos, essas situações têm um impacto na forma como o indivíduo, objeto de inquisição do Estado, forma sua visão da instituição e da cidade. Assim é a visão do artista sobre a cidade: Natal é uma cidade militarizada, uma cidade que os centros opressores e as instituições de repressão elas têm mais corpo justamente porque é uma cidade muito conservadora. Natal é uma cidade que reprime qualquer tipo de acidente, (...) é um tipo de cidade que reprime qualquer caminho errático. Se for andar em Natal parece que se está andando numa vila militar gigante, uma vila militar capitalista. Isso aí influi diretamente na arquitetura da rua: as calçadas não são feitas para as pessoas transitarem, para vagabundos, artistas e tal, a cidade é feita para empresa (RAOM, entrevista concedida em 26 de março de 2018). Na constituição dessa experiência do artista está, como discutido nas sessões anteriores, o conhecimento sobre as dinâmicas da cidade. Nesse fragmento da entrevista ele explica sua percepção sobre esse aspecto “disciplinar” da cidade que está, na sua opinião, relacionada ao próprio aspecto arquitetônico semelhante às vilas militares. Também o “conservadorismo” da cidade e a “repressão do diferente” se coadunam com uma “arquitetura da rua” que é estranha às pessoas. No meu entendimento, essa visão está alinhada com a própria história da expansão da malha urbana em Natal que, em pelo menos dois pontos, no Período Colonial e na Segunda 141 Guerra Mundial encontraram na região um terreno estratégico. Em segundo lugar está o fato de que as vilas militares e o traçado das ruas da cidade do Natal tiveram um papel importante na forma da ocupação do território em processo de urbanização. Depois são os conjuntos habitacionais, principalmente entre os anos 1960 e 1970, o modelo predominante de ocupação do território pela via da habitação. Esses modelos, nas políticas de distribuição espacial e valorização fundiária, reproduziram uma lógica social segregativa que hoje é marca da estima ou do desapreço por determinados lugares da cidade (BARBOSA JÚNIOR, 2013). Também a relação com as polícias expressa essa disciplina com os espaços da cidade e, como artista de rua, enfrenta-se a contradição do próprio campo dessa arte entre o autorizado e o não autorizado. Se mesmo o trabalho autorizado ainda chama a atenção da polícia, seja deliberadamente, através de denúncias ou dos sistemas de vigilância da cidade, o não autorizado rendeu ao artista alguns constrangimentos. Como já foi mencionado a ideia do “sob custódia” (figura 47), vem exatamente dessa experiência do risco na cidade. Figura 48. “P.M. mata”, arte do Raom Hai no bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2016. A constituição biográfica na experiência que marca a trajetória no campo da arte de rua envolve essa relação com a cidade, ou seja, é uma experiência reflexiva. Como afirma o artista: 142 O trabalho é artístico a partir do momento que você experimenta, critica e tem um ofício diário de linguagem estética. (...) O meu trabalho é arte, mas não a partir de uma visão de um status social da arte, mas a partir de reunir características fundamentais sobre o trabalho de artista, esse do ofício experimental da linguagem. Eu acho todo tipo de tensão fértil para criar terceiras realidades. Temos duas realidades que se entrelaçam já por natureza sem saber (RAOM, entrevista concedida em 26 de março de 2018). Figura 49. “Escrita do abandono”, arte do Raom Hai na Avenida Nascimento de Castro, no bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2017. Dessa forma, ele reflete sobre a condição artística como esse cultivo que envolve a crítica da linguagem e da estética. A arte ou o ser artista não se trata, para ele, de um status social, mas de um “ofício experimental da linguagem” que envolve tensões férteis e cria e recria realidades possíveis. É nesse processo de experimentação que ele constrói sua arte que transita pelo pixo, pela pintura e pela poesia. Sem saber ao certo quem são seus receptores, quem mais valoriza ou, ainda, quem “persegue” essa arte e seus autores, ele espalhou até o começo do ano de 2018 inúmeras personas, animais fantásticos e letras pela cidade. 143 3.4. KEFREN POK. Figura 50. “Observando a praia”, arte do Pok na praia de Ponta Negra. Fonte: elaborado pelo autor em maio de 2017. Eu tinha que fazer uma coisa rápida. Foi aí que veio o olho. Eu vivo aqui e nunca notei essas caixas [dos terminais telefônicos e do semáforo]. (...) O olho veio como algo que remetia à vida. Aí eu comecei a fazer o outro a enxergar também aquilo que não era visto. (POK, entrevista concedida em 26/12/2018). Ses oeuvres, pleines de symboles, font références aux regards des passants. Défenseur de la liberté d’expression, Pok voit la rue comme un espace de libération de la parole, où il est possible de faire entendre nos revendications. Selon lui, l’art urbain permet de montrer cette réalité aux autres et de donner toujours plus de couleurs à la jungle urbaine contemporaine. (La Galerie d’Art Contemporain da Ville de Créteil, 2016). Para o grafiteiro e designer Kéfren Pok, o graffiti é uma forma de expressão e crítica social. Pok defende que é preciso colorir a cidade através de uma expressão, de uma opinião e é sua opinião sobre Natal que ele busca imprimir nos muros. (GRUD, 2013). Olhos, emaranhados e uma assinatura estilizada espalhados em múltiplos lugares da cidade e da região metropolitana. Desde de o ano de 2010 eles estão em muros, portas de rolo, caixas terminais da telefonia analógica, caixas elétricas de semáforos e outros e outros equipamentos urbanos. Eles chegaram também à outras cidades brasileiras e à França. Esses olhos, envoltos em emaranhados singulares, semelhantes a fitas, flutuam sobre o tecido visual da cidade atraindo olhares, mas também deitando o olhar sobre as dinâmicas da cidade. Aos 30 anos de idade, nascido 144 em Natal, Kefren Pok, ou simplesmente Pok como assina sua obra, traz essa simbologia fantástica que passeia na mitologia e nas variadas formas da espiritualidade humana invadindo a cidade contemporânea. O artista e designer gráfico acumula uma extensa experiência ligada à sua trajetória na arte de rua, como a participação em exposições, a realização de trabalhos diversos para a Casa da Ribeira, o Instituto Câmara Cascudo, Banco do Nordeste, a Prefeitura do Natal, e para as empresas Cyrela Plano & Plano e a Constel. Participou de vários eventos de arte urbana em todo Brasil, dentre os quais: o Festival do Concreto (Fortaleza, 2013), o Festival Internacional Recifusion (Recife, 2013 e 2015) e o Festival Internacional de Graffiti Street of Styles (Curitiba, 2014 e 2015). Participou da exposição coletiva durante 4° Graffiti ExpoNatal (Natal, 2016. Ver ANEXO 8) e em fevereiro de 2016 realizou sua primeira exposição individual intitulada “Urbano Olhar49” (Natal, Between Food e Gallery; e depois no Enquanto seu lobo não vem + Espaço DUAS); e, em abril do mesmo ano, a exposição “Olhares Abstratos” (Natal, Mahalila Café & Livros). Organizou em 2013 o I Encontro de Graffiti de Macaíba, cidade onde reside, na Região Metropolitana de Natal. Figura 51. “Um pensamento na cabeça”, arte do Pok na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2011. 49 “Os olhos da urbe” por Yuno Silva. < http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/os-olhos-da- urbe/338367 >. Acesso em 19/02/2019. 145 A onipresença de seu trabalho nas ruas da cidade e da região metropolitana despertou a curiosidade não apenas dos antropólogos (BARBOSA JÚNIOR E CORADINI, 2018); mas também dos geógrafos (COSTA, 2012; SANTOS, 2015), para falar do âmbito da pesquisa; e, dos jornalistas50 e demais citadinos, já que sua obra passou a compor também os muros de residências via encomenda. Ao longo de aproximadamente oito anos de atuação na arte de rua, concedeu inúmeras entrevistas, foi indicado ao prêmio de melhor graffiti de 2012 e artes visuais em 2018 do Troféu Cultura em Natal, participou da produção coletiva de grandes murais em Natal e em outras cidades, ilustrou capa de CD de banda local, foi homenageado na 4ª Graffiti Expo em 2016 em Natal, estampou camisetas, bottons, relógios e cadernos. Figura 52. “Pok”, tag do artista na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2017. A interlocução com o Pok começou por volta de maio de 2016 durante a exposição “PalavrArt” do artista francês Kendo realizada na sede da Aliança Francesa de Natal/RN. A experiência foi propícia para conhecê-lo pessoalmente, embora já tivéssemos trocado correspondência eletrônica e eu tivesse fotografado alguns dos seus trabalhos na rua. O abordei e apresentei-me referenciando o dia 12 de março de 2016: eu era quem havia arrematado as obras que ele dispunha para o Leilão de Artes do Enquanto 50 “O grafite de Pok: conheça o artista que cobriu Natal com olhos coloridos” por Paulo de Souza. . Acesso em 19/02/2019. “Artista do Mês: os olhos enigmáticos de Kéfren Pok e a arte que observa a cidade” por Renato Medeiros Cordeiro. . Acesso em 19/02/2019. 146 seu lobo não vêm, que até então estava instalada na avenida Afonso Pena, no bairro de Petrópolis. A interlocução se deu descontraidamente, fazendo Pok lembrar-se da situação, embora não estivesse no evento. Ele relembrou o fato, porque em outro momento, havia encontrado a concorrente do arremate que lamentou não ter ido além do meu lance. Figura 53. “Um olho, um pássaro”, arte do Pok Figura 54. “Dois olhos, dois pássaros”, arte do na Avenida Prudente de Morais, no bairro do Pok na Avenida Prudente de Morais, no bairro Tirol. do Tirol. Fonte: Elaborado pelo autor em setembro de Fonte: Elaborado pelo autor em setembro de 2016. 2016. O diálogo foi prolongado e eu tive, portanto, a oportunidade de falar um pouco sobre a minha pesquisa ao que ele respondeu de forma receptiva: falou-me de sua primeira exposição no Between Food & Gallery, e das exposições correntes no Mahalila Café e Livros e no Enquanto seu lobo não vem (que, na ocasião, passou as instalações a um novo endereço, o Espaço Duas, uma galeria de arte e sede de residência artística no bairro de Ponta Negra). Outro fato colocado pelo Pok foi a da organização de um acervo e do projeto para atender ao convite que recebeu para expor na França. Embora eu não tivesse uma pauta estruturada de tópicos, porque era um primeiro e inesperado encontro, pude tocar em algumas questões como, por exemplo, o fato de haver tantos trabalhos dele espalhados na cidade. A essa questão ele respondeu de como já não lembrava de algumas intervenções que fez, acontecendo de pessoas comentarem ter visto seus trabalhos e ele ter que se esforçar um pouco para 147 se lembrar. Pok falou também das dificuldades de fazer a arte na rua, dos riscos de ser pego e dos constrangimentos que se seguem ao ato de ser flagrado. Figura 55. “Olhar urbano”, exposição do Pok no Betweem Food & Gallery. Fonte: elaborado pelo autor em fevereiro de 2016 durante a exposição URBANOLHAR. Como mencionei, a ida ao evento serviu como um desdobramento das aproximações prospectivas anteriores, como foi o caso do Leilão de Artes. O breve diálogo trouxe maior clareza para algumas questões sobre o trabalho do artista e do próprio status do graffiti e do pixo na cidade do Natal. Dentre elas está o caráter estratégico das disposições dos trabalhos nas ruas da capital potiguar e as perspectivas da cidade e do “caos” que acompanha sua obra. Sua primeira exposição, “URBANOLHAR”, ocorrida entre os dias 20 de fevereiro e 19 de março de 2016, foi de grande valor para compreender a motivação dos seus processos criativos e sua perspectiva da cidade. Quando comecei as caminhadas exploratórias no ano de 2015, um dos trabalhos que mais se repetiam, ou seja, um dos artistas mais onipresentes na cidade era o Pok. Ainda que eu tenha delimitado pontos centrais e de grande fluxo na cidade como lugares para explorar visualmente, os olhos e emaranhados do artista pareciam estar em todos os lugares. Outra característica era o fato de que seu graffiti não estava confinado apenas aos muros, mas o artista demonstrou bastante habilidade ao utilizar caixas de 148 terminais telefônicos (ver figuras 56 e 57), de semáforos (ver figura 55), como também molduras de janelas, portas e portões, e portas de rolo de comércios. Como eu perceberia, principalmente em Barcelona, mas também em Bordeaux, vários artistas também se utilizam dessa estratégia de interferir na cidade, o que considerei ser uma forma “discreta” de intervenção (ver Capítulo 6). Figura 56. “Ondas visuais”, arte do Pok na Figura 57. “Decomposição visual”, arte do Pok Avenida São José, no bairro de Lagoa Nova. na Av. Alex. de Alencar, no bairro do Tirol. Fonte: elaborado pelo autor em maio de 2017. Fonte: Elaborado pelo autor em maio de 2017. O processo criativo do artista vem no esteio de aproximadamente dez anos de prática da arte, e mais especificamente com a arte de rua. Entre os fatores estimulantes à sua carreira está, em primeiro lugar, uma percepção desde cedo para a paisagem urbana, de onde já fitava o graffiti da geração anterior, e a pichação das torcidas organizadas. Como ele narra, Quando tinha esse olhar já, eu morava em Candelária. Já tinha esse rolê de torcida, que antigamente era mais pichação. Eu fazia uns bombs. (...) E quando eu morava em Candelária eu queria assinar, mas não fazia esse rolé de torcida, assinava meu nome: era “Pok” mesmo, só a assinatura. E a galera que fazia o rolê era mais de torcida mesmo, a galera de Neópolis. Foi aí que, nessas referências, já comecei a pintar de spray, a conhecer a galera, a sair com FB e a gente estava estigado para fazer e estamos até hoje pintando (POK, entrevista concedida em 26 de dezembro de 2018). 149 Figura 58. “Atropelo: da tag à propaganda”, assinatura do artista na avenida Prudente de Morais, no bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2018. No quadro de memórias do artista sobre a sua trajetória está essa imagem dos lugares da cidade grafitada e pichada. Soma-se a elas os eventos que foi, as pessoas que conheceu, o conflito inicial com a família e mesmo o conflito pessoal a respeito dos estudos que o levou a fazer o curso de Design. Das idas e vindas na arte de rua que muitos artistas vivem dentro de suas trajetórias, o curso voltado à imagem serviu de estímulo fundamental à sua carreira reavivando mesmo a experiência infantil com o desenho, como ele mesmo afirma: E fui fazer outro curso, terminei os estudos, fazia Petróleo e Gás, fiz um ano, aí me senti mal pra caralho. Era um lance que eu já pintava desde boy, desde criança e era massa isso, mesmo que fosse só por pintar mesmo, por desenhar. Mas quando eu conheci a galera mesmo, que fui pintando assim, [eu pensei:] eu gosto mesmo de pintar, de desenhar, [então] descobri o instrumento, a lata, o látex, a rua, o suporte que a rua tem, isso instigou bem mais o olhar sobre a rua e tal. Então como eu já conhecia a galera, saí do curso, fui pra um curso onde a galera toda pintava, se não pintava, desenhava, tudo envolvendo arte. Então eu vi [e disse para mim mesmo] vou fazer esse rolê. Aí comecei a fazer uns lambe e colocava na faculdade, e galera começou a ver. Tipo, fazia tirando onda mesmo, botava assinatura e tal, mas já achavam massa. Assistia uns filmes do Banksy (POK, entrevista concedida em 26 de dezembro de 2018). 150 Figura 59. “Olhares do artista no antigo bairro”, arte do Pok na Travessa Aureliano, no bairro da Ribeira. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2018. A narrativa do artista e as suas lembranças, portanto, montam um quadro no qual as disposições primárias para o desenho encontram em vários momentos os fatores estimulantes, como foi aquele da experiência universitária. Como ele afirma, essa experiência foi importante para redescobrir a rua, os materiais e os suportes. Se considerarmos alguns designadores rígidos, isso certamente nos dá os contornos socialmente reconhecíveis do artista, como é o fato de o mesmo ser um homem com trinta anos de idade, residente da Região Metropolitana de Natal e formado em Design gráfico. Mas a constituição do artista, longe de defini-lo apenas por esses dados biográficos, se dá também pelo capital cultural possibilitado por seus pais, seja da sua mãe professora, seja do seu pai empresário. A sucessão de experiências vividas entre a rua, a casa e a universidade foram motivadoras também de um olhar singular para a cidade, na tônica do conhecimento abordado anteriormente. Trata-se de uma trajetória biograffitada que marca o seu trabalho. Esse olhar se trata de uma visão de mundo, especificamente do mundo urbano, que retorna no seu trabalho, sobretudo nas alegorias do olho e do emaranhado. Tendo adquirido visibilidade para o seu trabalho, em diversas circunstâncias teve voz nos meios de comunicação, principalmente nos jornais, onde falou de forma contundente sobre o papel da arte de rua: 151 Faço os meus trabalhos voltados para o olhar das pessoas em relação à rua, observando as coisas. Acredito que devemos expor as nossas ideias e expressões para as pessoas. Não podemos ficar mudos com o que vivemos na sociedade e a arte de rua fala um pouco dessas coisas. O objetivo da minha arte é trazer a realidade para a população e colorir um pouco do espaço em branco, ou até mesmo um espaço que está abandonado, transformando, assim, a estética da cidade (POK, entrevistado por LÁZARO, 201651). e, Quando faço meus trabalhos penso em alcançar o olhar das pessoas, ao mesmo tempo que, de certa forma, “observo” o movimento da rua através deles. Devemos expressar nossas ideias a partir de como percebemos a realidade, a arte de rua fala um pouco sobre a vida em sociedade, a necessidade de ocupar espaços públicos com cor e arte (POK, entrevistado por SILVA, 201652). Figura 60. “Um olhar sobre a Cidade Alta”, arte do Pok na Avenida Câmara Cascudo, no bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2018. Ainda que afirme não saber quem são especificamente seus receptores, ele sabe se tratar de um público variado, que é o próprio espelho da cidade. Mas considerando sua experiência, nos últimos anos a cidade tem sido mais receptiva à arte de rua com a profusão de artistas que tem emergido, a valorização de alguns seguimentos da esfera pública, como também do interesse das empresas privadas. Essa realidade é constatada 51 “Grafiteiro macaibense fará a sua primeira exposição individual neste sábado” por Jefferson Lázaro para o jornal Cidadão Macaibense. . Acesso em 20/02/2019. 52 “Os olhos da urbe” por Yuno Silva para o jornal Tribuna do Norte. . Acesso em 19/02/2019. 152 pelo artista através dos editais com chamada para arte de rua, a organização de eventos da área na cidade e as contratações feitas pelas empresas. Essa trajetória na arte de rua também está cheia de “imponderáveis”. Dessa forma, Pok narra um fato inusitado que tem a ver com esse processo de criação da obra e da sua recepção: Nem sacava que a galera estava nesse lance de observar até chegar um cara e parar o carro bruscamente para falar comigo. Eu estava pintando na avenida Nascimento de Castro, em frente a faculdade. Um cara veio num Corolla, quando vi ele freou, subiu na calçada, eu tirei o fone, mas fiquei meio naquela pintando. Do nada esse cara para [e pergunta]: “Pô meu irmão, é tu quem faz isso aí?” Eu pensei que o bicho ia me quebrar, [mas] eu disse, “sou”. Ia dizer o quê? E ele: “Me diga o que significa isso! Eu só vejo isso aonde eu vou. Eu vou ter que ligar para o meu psicólogo”. O bicho era pirado no meu trampo, e ele ligou para o psicólogo dele. Então eu expliquei a ideia. Nisso eu fui sentindo que fui chegando na vida da galera (POK, entrevista concedida em 26 de dezembro de 2018). Figura 61. “Encruzilhada”, arte do Pok na Avenida Odilon Gomes de Lima, no bairro do Capim Macio. Fonte: elaborado pelo autor em fevereiro de 2016. A recepção, portanto, é variada e atinge pessoas diferentes de diferentes formas. E é claro, o Pok soube manipular o universo dos símbolos elegendo o olho como mote dos trabalhos que espalhou pela cidade. Essa onipresença é uma qualidade intrínseca à própria história do “writing”, do graffiti e do pixo, coisa que o artista, tendo assistido os documentários e lido sobre a arte de rua, sabe bem. Tendo alcançado também a percepção dos pesquisadores e do antropólogo da cidade, fez com que atinasse para aquelas caixinhas metálicas, quase imperceptíveis, encravadas na base dos semáforos, 153 como também aquelas caixas retangulares, terminais da companhia telefônica, espremidas entre as calçadas e os muros da cidade. Foi numa oficina de graffiti no Rio de Janeiro que começou a perceber outras possibilidades estéticas do espaço urbano, dentre elas o uso dessas caixas para intervenção com arte urbana. Essa possibilidade terminou sendo também uma forma de fazer um trabalho rápido. Para Pok, os olhos significam uma forma de dar vida a essas caixas quase sempre despercebidas. É também uma metáfora à falta de percepção na vida citadina, sempre imersa em fluxos rápidos e pela falta de tempo. Mas foi pintando uma dessas caixas que sentiu o peso do constrangimento policial sobre quem arrisca a usar a rua como suporte para a arte. Essa experiência certamente o fez repensar sua prática na rua, como o fez pensar também sobre as dinâmicas da cidade. Como relatou ao jornal Tribuna do Norte em 2016: Há pouco mais de um ano fui pego pela polícia, estava pintando uma dessas caixas que controlam o sinal de trânsito ali na Av. Deodoro [da Fonseca]. Passei duas horas em uma cela com bandidos de verdade e fui condenado a prestar 30 horas de serviços comunitários. O mais irônico é que um dia antes de ser preso havia sido abordado por outros policiais, que gostaram do trabalho e permitiram que eu terminasse. Complicado, cada um sente de uma maneira (POK, entrevistado por SILVA, 2016). Esse ocorrido colocou o artista numa situação complicada, obrigado que foi a prestar atividades comunitárias em um hospital público de referência na cidade, causando mal-estar pessoal e familiar. Durante a prestação do serviço não era referido pelo nome de registro civil, mas como “apenado”. Para além de uma lógica objetiva, mas de humilhação, como ele sentiu, essa rotulação no encalço da situação foi inversamente contrária à uma proposta ressocializadora. Essa experiência o desanimou fazendo refletir sobre o fato de que, ao atuar na rua, ele estava propiciando à cidade uma experiência visual com custos tirados de seu próprio bolso, para correr o risco de sofrer constrangimento dos órgãos repressores. Embora isso não o tenha feito abandonar as ruas, o motivou à produção de telas no atelier e de outros experimentos para expor nas galerias. 154 Figura 62. “Ruínas e abandonos”, arte do Pok na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em fevereiro de 2018. Compondo um dos coletivos mais conhecidos no campo da arte de rua em Natal, a crew FDM (Fim Do Mundo), e cruzando o Atlântico para demonstrar suas habilidades, esse artista e cientista da cidade é uma referência para a nova geração. “Fim do mundo” e “caos” são termos metafóricos para abordar os fluxos da cidade, tanto em suas possibilidades estéticas quanto em seus processos desiguais. Numa cidade cujas desigualdades sociais estão reproduzidas no espaço e na ideia de lugar, o artista considera o graffiti como uma voz que também fala das comunidades, da periferia e da questão de raça. Figura 63. “Fim Do Mundo”. Fonte: elaborado pelo autor em junho de 2018. 155 Nessa experiência que molda sua trajetória, percebe como é nesses lugares que a arte e ele próprio são mais bem recebidos. Ele acredita que a cidade precisa ser valorizada pela concomitante valorização dos artistas, como se faz em outros lugares do Brasil e do mundo onde a arte está na rua de diversas formas. Atuando nas ruas e nas galerias, ele considera seu trabalho como uma forma de arte urbana e que tem o objetivo de embelezar a cidade, para os que o acham belo, e criar consciência em seus receptores transmitindo uma mensagem. 156 3.5. ARBUS. Figura 64. “Graffiti praieiro” arte do Arbus e do Pok na praia de Ponta Negra. Fonte: elaborado pelo autor em maio de 2017. Nascido em Natal em 1985 e com formação em publicidade em 2012, Arbus sempre se interessou por arte. Seu mundo único é apresentado com gestos simples e com características nítidas que constroem a história de seus personagens amarelos, sempre muito expressivos. Sua força reside na simplicidade do seu trabalho, nas expressões e emoções marcantes de seus personagens, explorando um ar ingênuo, inocente através dos tons quentes de sua paleta que acentuam as referências pessoais do artista. Sua obra conta a história de homens e mulheres do nordeste do Brasil. (ARBUS, Bio) Os personagens que crio atualmente estão diretamente relacionados às experiências de uma nova fase de produção artística: o graffiti. Quando comecei a pintar nas ruas minha ideia principal foi a de criar personagens que representassem uma espécie de “humanoides monstrengos” que se comunicassem de uma maneira lúdica com os transeuntes, ao passo que também criassem uma identidade original na cena do graffiti. Estes personagens que crio atualmente nasceram das relações e vivências urbanas, são feitos de maneira livre, e de modo que encontrem conexão com os espaços que pinto. (ARBUS, texto de apresentação da exposição “Universo Arbus”, em junho de 2016). Múltiplas personas, indivíduos desconhecidos da cidade, das memórias do artista, o próprio artista e personagens hipotéticos em interação com a paisagem e com as personas de outros artistas. Inspirado pelas suas caminhadas pelas ruas da cidade e as pessoas que nela transitam, principalmente as que vivem e sobrevivem da rua, suas personas retratam esse universo que lhe toca: “São seres que estão transitando perdidos por aí, e acabam sendo real. São criaturas que não existem transitando no meio 157 do real” (ARBUS, entrevista concedida à TVU em julho de 2016). Elas estão em toda a cidade interferindo na ausência de cores nos muros, atraindo olhares curiosos e oferecendo cenas e gestos para se pensar sobre a vida da cidade. Esses personagens em muitas circunstâncias, nos lugares onde estão inseridos, interagem não apenas com a paisagem vista somente como “espaço”, mas com as pessoas que a compõem e que fazem parte dela nas ruas e lugares da cidade. Seus trabalhos não estão espalhados apenas por Natal, mas também pela Região Metropolitana e por outras cidades do Nordeste. Figura 65. “Boy”, arte do Arbus na, Avenida as Américas, Parnamirim, Região Metropolitana de Natal. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2018. Esse é o trabalho do Arbus, o natalense de 33 anos de idade, graduado em Publicidade e Propaganda, e residente na cidade que a repovoa radicalmente com sua arte. Seu pseudônimo, um trocadilho com “arbusto” ou “arbustus” remete a um apelido de infância dado por sua irmã. Ao longo de sua trajetória na arte de rua, a partir de 2012, além de se aventurar pela cidade, tem participado de eventos variados como: o On Area Natal Street Art II (2016), coordenado pelo grafiteiro BONES, evento que pintou o maior mural de graffiti da cidade; ministrou oficina de graffiti na 6ª Feira de Livros e Quadrinhos de Natal – FliQ (2016); realizou a exposição individual Universo Arbus53 (ver 53 “Universo Arbus no Mahalila”. . Acesso em 24/02/2019. 158 ANEXO 9) no Mahalila Café e Livros (2016); foi convidado da primeira edição do evento INarte Urbana, residência artística e exposição no bairro do Passo Pátria (2016); ministrou oficina prática de arte urbana e expôs no projeto Eco Praça na cidade de São Miguel do Gostoso/RN (2017); participou da exposição coletiva na 6ª Graffiti Expo Natal (2018) com a temática “samba e futebol”; de sessões de grafitagem ao vivo no Festival DELTA9 (2018); expôs e ministrou oficina na instituição Casa Durval Paiva de apoio à criança com câncer (2018); e, participou da exposição coletiva Futebol & Arte no Bardallos Comida e Arte (2018). O artista também já concedeu várias entrevistas para jornais, blogs e para a TV54 e foi sujeito de um minidocumentário realizado em 201655. Já trabalhou em diversos seguimentos e agora dedica-se ao desenho, ao graffiti e aventura-se também na prática da tatuagem. Figura 66. “Oi!”, arte do Arbus na Avenida Figura 67. “Periférico”, arte do Arbus na rua Senador Salgado Filho, no bairro do Mirassol. Coronel Cascudo, no bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2016. Fonte: elaborado pelo autor em setembro de 2016. 54 “Os grafites de Arbus, que estão espalhados por Natal” por Lara Paiva para Brechando. . Acesso em 24/02/2019. 55 “Arbus em movimento” dirigido por Daniel Souza pela Soll Produções. . Acesso em 24/02/2019. 159 A relação entre sua atuação na rua e na galeria é precedia por uma fase de trabalho em tela, que logo se desdobrou na ação na rua. A galeria viria, como acontece com outros artistas, pela experiência na rua. Ele encontrou no graffiti a possibilidade de algo maior e mais criativo. A esfera visual da cidade foi um dos fatores motivadores para essa “evolução”: ver a cidade grafitada, inclusive com as figuras e nomes que lhes serviram de inspiração, desenvolveu ainda mais seu interesse em pintar. Em entrevista concedida ao Laboratório da Notícia do Departamento de Comunicação da UFRN, ARBUS afirma: “Acho mais empolgante desenhar coisas grandes, ir para o além da arte em tela. Pintar na rua faz com que a gente estabeleça um diálogo com a cidade, o grafite é comunicação” (ARBUS, entrevistado por ANÚZIA, LIMA e FROÉS, 201756) Figura 68. “Múltiplas personas”, arte do Arbus na rua Pastor Gabino Brelaz, no bairro do Capim Macio. Fonte: elaborado pelo autor em dezembro de 2016. A interlocução com o Arbus se estreitou durante a primeira edição do evento INarte Urbana em 2016, quando pude falar sobre o meu projeto de pesquisa e adquirir uma das suas obras expostas e, depois durante a sua exposição Universo Arbus que ocorreu no Between Food and Gallery e no Mahalila Café e Livros, também em 2016. Os encontros anteriores nos eventos de arte urbana da cidade não tinham sido propícios à 5656 “Os muros também contam histórias: a expressão da arte da periferia nas paredes da capital” por Aline Anúzia, Danielle Lima e Virgínia Fróes para o Laboratório da Notícia do Departamento de Comunicação da UFRN. < https://medium.com/laborat%C3%B3rio-da-not%C3%ADcia/as-cores-da- cidade-d6d6b2a6d370 >. Acesso em 22/02/2019. 160 interlocução. Depois disso, não só passei a colecionar fotografias do seu trabalho e acompanhá-lo nas redes sociais, como a obra do artista passou a aparecer mais nas regiões centrais da cidade. Durante as caminhadas a pé e os trajetos percorridos a carro na cidade, registrei trabalhos nos bairros da Ribeira, Cidade Alta, Lagoa Nova, Candelária, Mirassol, Ponta Negra e em Parnamirim, este último, município da Região Metropolitana de Natal. Quase dois anos mais tarde o entrevistaria e faria o registro fotográfico do seu processo de criação (ver narrativa fotográfica no Capítulo 4). Figura 69. “Hang Loose”, arte do Arbus em “Barcelona”, no bairro da Candelária. Fonte: elaborado pelo autor em janeiro de 2016. O processo de criação das personas idealizadas pelo artista encontra referência e motivação na sua própria percepção dos fluxos e das dinâmicas da cidade. Tendo considerado já alguns designadores rígidos, ou seja, ao identificar que se trata de um homem jovem, residente na cidade e formado no campo da comunicação visual, importa abordar outras circunstâncias significativas para sua trajetória na arte de rua. A sua percepção, a meu ver, é fruto de maturações na experiência juvenil em transitar na cidade e na inclinação ao campo da arte. É também fruto de motivações em seu processo de socialização, seja numa fase infantil, no eco que encontra na sua formação acadêmica, seja posteriormente no contexto de contato com a arte de rua. Nesse terreno de socialização mais fundamental, que envolve mais precisamente a família e a escola, ARBUS encontrou os fatores que motivaram sua carreira artística. Como ele mesmo retoma de suas memórias: 161 Quando eu comecei a desenhar mesmo, eu era criança e não podia ficar sozinho em casa, minha mãe me levava para o trabalho e lá eu me lembro que ficava desenhando. E aí quando eu fui crescendo, comecei a ler gibi e tive interesse em reproduzir o que eu via: os X-Man, os super-heróis. Eu desenhava muito eles copiando com folha carbono, até conseguir fazer sozinho. Eu já tinha noção do sketch. Eu lembro que fazia um palhacinho que tinha os palitinhos e depois eu fazia o coco. E fica desenhando mapa também, na época não tinha internet, era aquele Atlas. Eu gostava de ficar olhando e reproduzindo. Aí depois eu fui crescendo e nunca parei de desenhar (ARBUS, entrevista concedida em 23 de maio de 2018). Figura 70. “Mano”, arte do Arbus na rua Porf. Zuza, no bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em dezembro de 2018. Percebe-se, por esse fragmento, um encadeamento de experiências fundamentais para o desenvolvimento das habilidades de desenho do artista. Sua narrativa traz tanto a experiência singular, quanto o campo de possibilidades permeado pela cultura dos desenhos animados e pelo capital cultural familiar. Essa memória breve, mas cheia de fatos, parece demonstrar também que não houve na trajetória do artista qualquer descontinuidade significativa, na verdade ele mesmo afirma: “nunca parei de desenhar”. Ele recorda também da compulsão que teve por desenhar na fase escolar onde desenhava em todos os lugares: carteira da escola, caderno e livros. Mas a arte de rua apresenta-se, segundo ele, principalmente pelo uso da Internet, elemento ampliador do campo de possibilidades: Eu pesquisava muito sempre ilustração, sempre atrás de referência para trabalhar. E aí eu comecei a ter, com a internet, muita referência de arte 162 urbana e eu achei massa porque era diferente e criativo. Aí eu vi os personagens, alguns como os Gêmeos, foi na época que eles vieram aqui para Natal. Nessa época e eu os vi, eu não falei com eles, mas os vi pintando. Aí vi o personagem de Crânio que foi bem marcante para mim (ARBUS, entrevista concedida em 23 de maio de 2018). Figura 71. “Maioral”, arte do Arbus exposta na Figura 72. “Pagodeiro”, arte do Arbus exposta galeria da Capitania das Artes. na galeria da Capitania das Artes. Fonte: elaborado pelo autor em dezembro de Fonte: elaborado pelo autor em dezembro de 2018. 2018. As suas habilidades somadas a uma nova forma de expressão que se lhe apresentava, foram de grande relevo para o nascimento do novo artista das ruas de Natal. Foram, portanto, as chaves de pesquisa na internet, e depois a experiência de assistir a grafitagem dos vagões da CBTU em Natal pelos Gêmeos em 200757, como também a influência do graffiti de Crânio, dois nomes consagrados do graffiti brasileiro, os principais disparadores de uma sensibilidade para a arte de rua. Para Arbus, a sua família tem também um importante papel na sua trajetória, já que sempre o apoiaram. Nesse conjunto de fatores constitutivos da sua trajetória, sua carreira e, não obstante, da sua personalidade, soma-se à formação no campo da comunicação e à sua incansável 57 “Agora as viagens de trem até Ceará Mirim ficarão mais interessantes!” para o fanzine Lado [R]. . Acesso em 23/02/2019. 163 vontade de aprender e de se aperfeiçoar, a decisão de fazer cursos de softwares especializados em imagem. No curso atual da sua vida, portanto, acumula uma experiência com o desenho e a imagem, a diversificação dos saberes e a prática artística, como também de trabalho, que fez dele um profissional exitoso. Figura 73. “Mano”, arte do Arbus e do Stomp na Avenida Senador Salgado Filho, no bairro de Lagoa Nova. Fonte: elaborado pelo autor em outubro de 2016. Quanto ao conteúdo do seu trabalho, ele parece conservar traços de infância associados à irreverência juvenil que agrada bastante às crianças e aos adolescentes. Essa marca fica patente nas diversas experiências que o artista tem acumulado em realizar oficinas em escolas e instituições de caridade. A marca do ARBUS se destaca também pela nitidez do personagem, sua cor vibrante (quase sempre amarelo) e a habilidade que tem em lhes prover expressão corporal. Além de arte, ele considera seu trabalho também como uma linguagem e uma forma de comunicação, principalmente no diálogo com outros artistas de rua e na interação com os trabalhos daqueles. Como explica, ele tenta transmitir uma mensagem que, 164 Não é para falar de política, não é para falar de coisas muito sérias. Eu sempre levo para o lado mais cômico. Tento tirar uma onda sarcástica, alguma coisa assim. Aí é que tá: eu jogo isso aí e sei que as pessoas vão entender de alguma forma, não sei como exatamente isso vai passar na cabeça dela. E é uma coisa muito rápida, o graffiti você não para e fica olhando. O que a galera percebe muito são as características: o personagem amarelo, aquele nariz, aquela boca. E aí eu acho que primeiro é essa percepção que a pessoa tem e depois ela vai ver o resto (ARBUS, entrevista concedida em 23 de maio de 2018). Figura 74. “Radical”, arte do Arbus em Figura 75. “SK8”, arte do Arbus em “Barcelona”, “Barcelona”, no bairro da Candelária. no bairro da Candelária. Fonte: elaborado pelo autor em março de Fonte: elaborado pelo autor em fevereiro de 2018. 2019. O artista sabe, portanto, manipular os símbolos, conhece seu principal receptor, os outros artistas, mas sabe também da recepção difusa que o graffiti tem, já que é inserido massivamente em lugares públicos e de grande visibilidade. Como ele afirma, e como é perceptível em seus trabalhos, um traço marcante neles é a irreverência que faz, ofertando ao observador algo “leve” para pensar, mas não menos desprovido de sentido. Sua experiência de percorrer a cidade propiciou esse conhecimento espacial que ele chamou “ciclo caracol”. Trata-se dessa prática que tem de inserir personagens grafitados em interação com a paisagem e o ambiente a partir do seu próprio bairro em direção aos outros lugares da cidade para transformá-los. Dessa forma, a maioria dos 165 seus trabalhos estão na Zona Sul, principalmente no bairro em que mora há a aproximadamente vinte e cinco anos. Desde pequeno, eu acho que já rodei Nova Parnamirim todinha de bicicleta. Então o primeiro graffiti que eu fiz foi lá e aí esse efeito caracol: primeiro fazendo nas ruas que eu passo muito, nas ruas que eu passo todo dia eu faço um, todo dia eu quero ver se o graffiti está lá. Se sair de lá, eu vou fazer de novo e de novo. Por exemplo, cinco pontos, como se fosse um círculo sabe. Eu botei um graffiti meu numa parada de ônibus, que é uma parada improvisada, tem uns matos, um muro de tijolo que é gigantesco, vai quase a pista toda. Aí eu fiz um personagem lá interagindo, tipo como se estivesse pichando e olhando para quem está na parada. Aí eu acho massa porque toda vida que eu passo tem alguém na parada, para mim é como se fosse vendo o graffiti diferente, toda vez como se fosse uma arte diferente, está mudando (ARBUS, entrevista concedida em 23 de maio de 2018). Na experiência citadina, o artista realiza um verdadeiro experimento com os símbolos, com a esfera visual da cidade e com as percepções. Nessa dinâmica já foi contatado, via redes sociais, e questionado sobre os sentidos da sua arte. Para ARBUS, seu trabalho tem o objetivo de ser um exercício artístico, de fazer seu nome e, às vezes, de subverter a ordem. Para ele, o Estado muitas vezes atua como entidade que contribui para marginalizar a arte de rua. Assim, ele acumula algumas experiências desagradáveis com a polícia, e até mesmo a experiência de violência vinda de pessoa comum. Dessa forma, ocorreu a situação em que estava pintando uma casa abandonada com outros artistas no bairro de Mãe Luiza, na Zona Leste de Natal. Nessa ocasião sofreram uma “abordagem padrão”, mas não ficaram isentos de xingamentos e da acusação de desacato por tentarem argumentar e estabelecer um diálogo. No entanto, ARBUS afirma já ter sofrido outras abordagens policiais pelo fato de estar pintando na rua em que toda a situação se desenvolveu com tranquilidade e com diálogo. A situação mais tensa que afirma ter vivido ocorreu não com a polícia, mas com uma pessoa comum que o perseguiu de carro e quase lhe provocou um acidente. O artista estava trabalhando à noite junto com um colega elaborando um personagem com letreiro, Aí chegou um cara numa Duster cinza. Era meia noite e meia, por aí, já era um pouco tarde. Quando a gente viu o cavalo de pau, a gente só fez botar as tintas na sacola e foi andando. E ele foi perseguindo a gente, falando que a gente era para encostar, para botar a mão na parede, no entanto a gente não acatou não. A gente continuou andando e ele só ficava gritando e esbravejando que era para a gente encostar na parede. Até que ele parou um pouco à frente, desceu e estava armado. Ficou segurando a arma na camisa 166 dizendo para a gente encostar: “encosta! encosta!”. A gente se desvencilhou dele e foi andando mais rápido até chegar no carro e aí quando a gente estava chegando no carro, ele foi seguindo a gente, e aí ele ameaçou. A gente entrou dentro do carro, saiu correndo e aí esse cara perseguiu a gente por mais ou menos uns cinco quilômetros, eu acho. Inclusive ele tentou causar um acidente, ficou jogando o carro para cima do meu, tentando forçar que a gente parasse, filmou agente de dentro do carro dele e ameaçando o tempo todo, mandando a gente parar. A gente só se salvou porque eu tive que cruzar o sinal vermelho e aí tinha outros carros e aí a gente estava indo em direção à delegacia de polícia. Na hora a gente ficou com muito medo (ARBUS, entrevista concedida em 23 de maio de 2018). Essa narrativa demonstra um risco sério vivido pelo artista denotando um quadro de violência e preconceito existente na cidade. Outras pesquisas também têm registrado experiências semelhantes onde a violência é perpetrada por pessoas comuns aos artistas atuando na rua. Outras formas de conflito também compõem a cena e a paisagem urbana. A interação entre a arte e a paisagem urbana não encontra empecilho somente na atuação da polícia ou de pessoas comuns violentas, mas numa forma muito peculiar de “confronto”, a propaganda ilegal. Arbus considera que essa forma de propaganda é muitas vezes desonesta ao colocar seus cartazes indiscriminadamente por sobre as artes. Esses casos de tensão e violência, no entanto, contrastam com um quadro crescente de valorização e visibilidade que o graffiti vem alcançando nos últimos anos, como por exemplo, no interesse de arquitetos e profissionais ligados ao design de interiores. Figura 76. “Câmara Cascudo e o Beco da Lama”, arte do Arbus e outros artistas no Beco da Lama, bairro da Cidade Alta. Fonte: elaborado pelo autor em fevereiro de 2019. 167 Com um rolinho de quinze centímetros, três latas de spray nas cores preto, branco e laranja, tinta látex amarela e um pincel pequeno, instrumentos básicos que dá para fazer até cinco intervenções, ARBUS vai repovoando a cidade com seus personagens. Preferindo a manhã cedo ou o final da tarde para trabalhar, ele percorre a cidade no ciclo caracol, conhecendo-a e intervindo-a. Esse processo criativo de conhecimento visual e espacial da cidade é também uma forma “ecológica”. Seu trabalho tem sido aceito e requerido em vários meios, mas ele destaca a experiência vivida no Passo da Pátria como uma das mais receptivas e de como uma comunidade específica valoriza a arte. Ele compreende bem sua posição na estrutura social: sabe que muitas das abordagens pelas quais passou seria diferente se fosse negro, por exemplo. Em parceria com outros artistas, ou mesmo só, já deixou sua marca na cidade do Natal, como também tem se aventurado por outras cidades do estado e do Nordeste. Seus personagens, talvez duplos de si, são imagens, seres que interagem com a paisagem e convidam a qualquer para um diálogo sobre os processos em curso na cidade. Figura 77. “Em elaboração...”, arte do Arbus em parceria com PazCiência em “Barcelona”, bairro da Candelária. Fonte: elaborado pelo autor em fevereiro de 2019. 168 3.6. TRAJETOS E TRAJETÓRIAS EM COMUM. Figura 78. “Sopa de letras”, mural de bombs por NAY, PAZCIÊNCIA e outros artistas em “Barcelona”, no bairro da Candelária. Fonte: elaborado pelo autor em fevereiro de 2019. Essas três trajetórias na arte de rua, como se pode ver, são constituídas de experiências singulares, mas que se cruzam muitas vezes nos trajetos da cidade, nas redes de relações e na cena, como também compartilham de experiências comuns. As interlocuções que levaram a essas abordagens ocorreram, em síntese, em duas fases: a interlocução com RAOM e POK que começou numa fase preliminar da pesquisa e foram de vital importância para compreender uma dimensão da arte de rua em Natal, e entender como os seus trabalhos se aproximam ou se afastam do graffiti e do pixo, ou os ressignificam. Dificuldades “logísticas58” da pesquisa tornaram as interlocuções em alguma medida intermitentes. Também a necessidade de um período de amadurecimento das ideias após essa fase inicial, motivaram a busca por explorar o trabalho de outros artistas. Nessa fase, passei a seguir as artes emergentes na cena em Natal, o qual destaco ARBUS e PAZCIÊNCIA. A participação em redes e settings anteriores à pesquisa e comuns a estes dois últimos, não foi suficiente para uma aproximação que permitisse conhecer sua produção artística. Foi no contexto da pesquisa de campo, das caminhadas pela cidade e da participação em eventos que me coloquei em contato com a arte deles e de outros artistas na rua e nas galerias, como foi o caso do artista francês Kendo. 58 Ou seja, a necessidade de alinhar a pesquisa de campo, a observação e a participação à minha própria agenda de aulas ministradas em outra cidade e mais às exigências acadêmicas da pós-graduação, exigiu muita criatividade e disposição na gestão do tempo. 169 Tendo abordado as trajetórias dos três primeiros nas sessões anteriores, passo a discutir suas regularidades cruzando com elementos da interlocução com os dois últimos, respectivamente um mais recente na arte de rua e o outro com uma experiência de aproximadamente vinte anos. Como já mencionado, caminhar foi um dos principais exercícios da presente pesquisa, como também uma chave de entendimento dos processos em curso na cidade. Nesse sentido, vale dizer que o caminhar foi, de forma ambivalente, uma prática etnográfica através da qual se conhece os trajetos dos artistas e mergulha-se em seus universos simbólicos, como uma prática biográfica, ou seja, naqueles caminhos constituem-se em suas experiências e trajetórias de vida. Têm-se na trajetória e experiência individual um terreno fundamental onde geralmente na infância há a música, a atividade de desenho em casa, a atividade artística na escola, o estímulo familiar e o capital cultural. Em alguns casos o estímulo familiar ao desenvolvimento e habilidades artísticas, numa fase posterior entra em conflito com o redirecionamento do interesse pela arte para a arte de rua. No âmbito generalizante da cultura há um processo de socialização permeado pela presença de tecnologias da informação, principalmente com as possibilidades cognitivas ligadas à Internet, como também da comunicação, do consumo e das redes sociais. No cruzamento desses dois âmbitos, o da experiência individual e o da experiência coletiva, verifica-se junto às memórias desses artistas, as lembranças sobre o lazer na infância e na adolescência com o estímulo visual dos desenhos animados, da presença das revistas em quadrinhos e da estética dos brinquedos, que se mostram como elementos motivadores, numa fase primeira, da sensibilidade artística. A figura a seguir, não resume a trajetória, mas dá um panorama do campo de possibilidades para a carreira na arte. 170 Figura 79. Fases possíveis em uma trajetória na arte de rua. Fonte: elaborado pelo autor. Numa fase de maior amadurecimento, o vir a ser artista de rua, é permeado por um campo de possibilidades que envolve a exploração paulatina do campo das artes com a busca por técnicas, escolas e artistas, com o uso amplo da Internet e seus mecanismos de busca. Também a sociabilidade e o associativismo juvenil, que posteriormente se desdobram na formação das crews, é constitutivo como estímulo à carreira e fonte de obtenção e troca de conhecimentos. De forma geral as famílias recebem a opção da rua com reservas, mas parecem aceitar e conviver com a escolha dos jovens sem maiores conflitos. No caso de uma trajetória singular, no contexto dos anos 1990 na França, o artista Kendo afirma que seus pais receberam muito bem sua escolha: Eu tive muita sorte. Primeira coisa é que eu tenho um irmão 6 anos a mais que eu. Então quando eu tinha 8 anos, o meu irmão tinha a idade da primeira geração de pichadores e do Hip-Hop de Paris. O meu quarto, a gente tinha o mesmo quarto com meus dois irmãos, então o meu irmão começou a pichar no quarto e os meus pais deixaram (KENDO, entrevista concedida em 23 de novembro de 2018). 171 Figura 80. “Obrigado”, arte do Kendo no Natal Shopping Center, no bairro da Candelária. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2016. De forma sintética há, numa fase infantil, o estímulo ao desenvolvimento de uma sensibilidade artística com a introdução do lápis de colorir, da massinha de modelar, das revistas em quadrinhos e do desenho animado; depois há um processo de redirecionamento do interesse na arte para a arte de rua mediada pela sociabilidade juvenil e pelas tecnologias da comunicação; em alguma altura dessa fase, a atuação na rua torna-se fonte de conflito familiar. No caso particular do artista francês, essa fase não obedece a essa regularidade, e ele afirma também nesse sentido que, na primeira vez que foi preso aos treze anos “eles [seus pais] receberam [isso] muito bem”. Num período de maior amadurecimento alcança-se aceitação parcial pela demonstração de responsabilidades como a entrada na universidade ou no campo do trabalho, e então a arte de rua passa a não ser mais fonte de conflito familiar (embora os pais não compreendam) ou há uma aceitação total (familiares compreendem e apoiam). Quando coloquei a questão sobre como conheceram ou tomaram contato com a arte de rua, durante as entrevistas, foi a rua, a televisão e a Internet os principais meios de contato inicial com a arte de rua. Existe aí, portanto, uma relação significativa entre essas três fontes, muito embora seja a rua a fonte primária da ação e da imagética dessa arte. Em nossos diálogos, ao narrarem sobre as suas experiências vividas ao longo dos trajetos urbanos relataram, nessa relação entre arte e cidade, ter objetivos diversos com a intervenção urbana: desde ser um exercício da arte, passando pela ideia de comunicar mensagens, “fazer o nome”, para subverter uma ordem que consideram desigual e até 172 para sentirem-se bem consigo mesmos. Nessa dinâmica produzem seus estilos próprios, assinaturas, tipos, personas, que dão a característica marcante de cada um. Figura 81. “Na atividade!”, arte do PAZCIÊNCIA no bairro do Alecrim. Fonte: elaborado pelo autor em agosto de 2018. A vida vivida nos caminhos da cidade, para aqueles que fazem desta um suporte para a arte e que transitam entre o legal e o ilegal, está passível de riscos e conflitos com o Estado e outros indivíduos. Então os relatos de constrangimento policial e abordagens violentas marcam sobremaneira as memórias da rua. Como afirmou RAOM (2018), praticar essa arte é estar permanentemente “sob custódia”. Assim, essa experiência de estar na rua para a prática da arte impõe ao indivíduo o desenvolvimento de um conhecimento sobre as dinâmicas urbanas que envolve tanto as técnicas da arte com uma noção de espaço, como também exige saber lidar com as autoridades policiais e interagir com indivíduos diversos. Isso ocorre com estratégias de diálogo e de comportamento, que são em grande medida aprendidas no cotidiano das ruas. Sobre a violência da polícia, há um contraste interessante na experiência do KENDO ao comparar ação policial no Brasil e na França, ele que em seus vinte anos de experiência já sofreu vários constrangimentos: A violência da polícia francesa, e eu estou falando com um brasileiro, tem que ver a diferença né? Fui batido, mas eles souberam onde me bater, só pra me assustar e não quebrar meus ossos, só pra me dizer: “tu tá a fim de brigar 173 com a gente? Vou te mostrar que tu não vai brigar com a gente!”, só isso. Mas não era essa violência que tem com a PM brasileira, nada haver. Quando eu fui no Brasil eu tinha muito respeito. E na França aconteceu, mas quando tu não aceita as regras: a regra é ter que respeitar o policial, se não respeita... Se ele falar “para aqui!” e tu vai embora correndo, se ele tem que correr dois quilômetros pra te recolher, quando ele te pegar tu apanha, é normal; se tu para, ai ele vai te respeitar. Na França quando ele [o policial] fala: “para! Eu vou atirar!”, tu corre, você sabe que ele não vai atirar, depois tu vai se esconder numa casa, num jardim... eles correm atrás de você. No Brasil se ele falar “para!”, tu para, porque ele vai atirar de verdade (KENDO, entrevista concedida em 23 de novembro de 2018). Quanto às técnicas, elas vão desde o manejo do rolinho 10-15cm; da preparação do látex geralmente branco, mas não apenas; do uso do spray (de uma a três cores diferentes, para um trabalho pequeno ou mais de quinze latas se o desenho é mais ou menos grande e complexo) e seus caps (bicos). No hall das técnicas há de se incluir as técnicas corporais que reúne uma relação com o clima da cidade, já que é preciso ter em conta a forte incidência solar e do vento (no caso da França, o frio quando é inverno), bem como com os equipamentos urbanos. É preciso preparo físico para caminhar, andar de bicicleta, subir, descer, pular obstáculos e para correr, quando for o caso, como fica nítido no fragmento da entrevista. Essa experiência, à semelhança de um esporte, envolve também uma autossatisfação como explica PAZCIÊNCIA: Como eu ando muito de bicicleta, no caminho eu levo um material e faço lá para me desestressar, me sentir bem, estar vivendo. Eu acho que o mais legal dessa atividade é que a gente se esforça a experimentar a cidade sobre uma nova perspectiva. E o mais legal ainda é que essa perspectiva é sempre nova, por mais que você saia para pintar na rua um negócio hoje e amanhã saia para pintar o mesmo desenho, as situações que você pode ser inserido, são completamente diferentes: são do lugar, da situação, do momento, do material, enfim, é sempre um mistério e eu acho que isso proporciona uma aventura muito gratificante (PAZCIÊNCIA, entrevista concedida em 31 de maio de 2018). Para os artistas são as estratégias da percepção de certas dinâmicas da cidade como os fluxos de pedestres ou automóveis, a interação entre diferentes indivíduos e dos processos que os movem, que os impele a conhecer tais dinâmicas e problematiza- las com a arte. Assim, nas interações em que alguns artistas se colocam constantemente com as polícias, o conflito pode variar da abordagem padrão (onde há um diálogo em que os abordados possuem a oportunidade de explicar-se, inclusive onde a fala não seja interpretada como de desacato); e da abordagem rígida (que envolve ofensa mutua ou 174 unilateral e muitas vezes resulta em processo judicial); e, ainda não implicar em uma abordagem, como eles relatam. Figura 82. “Personas, coração e ‘Resistência’” arte de vários autores e PazCiência no bairro do Tirol. Fonte: elaborado pelo autor em julho de 2016. Como um plano interativo nessa relação complexa entre a arte, a cidade e a trajetória desses artistas, a esfera visual da cidade emerge como paisagens já estabelecidas no quadro de memórias dos citadinos. Esses artistas representam uma parcela microscópica no quadro dessa imagética da cidade e no próprio quadro da arte de rua, ambos com inúmeras manifestações de imagem, mas eles nos dão pistas valiosas dos processos sociais amplos. A cidade grafitada oferece assim uma reflexão antropológica sobre o fenômeno urbano onde as imagens são referências ontológicas, pois partilham conosco uma experiência sensível que também podemos experimentar, oferecem algo para se pensar no turbilhão de fluxos e familiarizam coisas e pessoas que até então nos pareciam estranhas ou inexistentes. 175 Figura 83. “Nós somos aqueles que sabem a verdade”, arte do Kendo na parede de sua residência em Bordeaux. Fonte: elaborado pelo autor em novembro de 2018. 176 CAPÍTULO 4 NARRATIVAS VI AIS CAPÍTULO 4 – NARRATIVAS VISUAIS 177 4.1. O GRAFAR E O ETNOGRAFAR COMO NARRATIVAS. Nesta sessão mergulharemos no processo de criação dos artistas POK, ARBUS e PAZCIÊNCIA através de narrativas fotográficas inspiradas nas pranchas de Balinese Character (BATESON e MEAD, 1942) e no trabalho Os Argonautas do Mangue (ALVES, 2004). Busco com singeleza, trazer o processo de criação do graffiti através de um modelo sequencial de apresentação das fotografias que narram as formas peculiares desse grafar. Aqui eu não busco propriamente o registro da transmissão de um ethos, mas do gesto, da técnica e da corporalidade no processo de criação. Do gesto invoco o verbo “agir” e as linhas que se formam das mãos e da variação de todo o corpo para o exercício da arte. O “mínimo gesto” e as “linhas de errância” (DELIGNY, 2015) (DELEUZE e GUATTARI, 2012) permitem pensar a prática da arte de rua em suas formas de movimento, desvio e vaga (FRANT, 2018). Da técnica tomo a ideia de “desenho”, “plano” e “projeto” a partir do qual o artista concatena o ambiente, a disponibilidade e acessibilidade dos materiais para alcançar seus objetivos (INGOLD, 2002) (MURA, 2011). Da técnica, especificamente as corporais (MAUSS, 2015), se desdobra o próprio gesto e a corporalidade. Da corporalidade busco pensar esse corpo que caminha e pinta como “base existencial da cultura” (CSORDAS, 1990) (MALUF, 2001). Como Alves (2004) em Os Argonautas do Mangue, remodelei a forma de apresentação das fotografias considerando o próprio suporte da forma final do texto, ou seja, a folha A4 com margens de aproximadamente três centímetros. As fotografias foram feitas na proporção 1:1 para o melhor aproveitamento do espaço da folha e consequente melhor apresentação. A sequência é feita em pares de fotografias numeradas que devem ser lidas da esquerda para a direita, e em alguns casos não visam preencher toda uma folha, ou seja, os espaços em branco representam uma pausa ou uma mudança de procedimento do processo registrado. Ao fim de cada processo é feita uma breve análise. São mostrados nesta sessão quatro processos de criação a fim de trazer à tona as formas do fazer dos artistas POK, ARBUS e PAZCIÊNCIA. Chamei cada sessão de “fazendo o trampo” referindo-me a essa forma peculiar que os artistas têm de referir- se ao trabalho. Trampo é uma forma para “trabalho” que o diferencia do trabalho convencional, ou seja, remunerado. A meu ver o termo busca distinguir-se também das 178 formas exaustivas, repetitivas e ausentes de criatividade que muitas vezes assume o trabalho assalariado. O trampo deve ser empolgante e criativo, e deve ter a liberdade de elaboração que a arte mesma exige enquanto o ofício que é. Dessa forma, o primeiro processo registrado e apresentado na forma sequencial é o realizado por POK em 2016 no âmbito da VII Semana Acadêmica de Design da UFRN (Debulha). Em Seguida apresento o processo “A cidade com um livro” do PAZCIÊNCIA como proposta integrante de seu projeto de pesquisa em março de 2018. Depois trago o processo de criação do ARBUS a partir de sua proposta de intervenção no bairro da Ribeira em maio de 2018. Por fim apresento outro processo do PAZCIÊNCIA com o tema do “caracol” a partir da sua proposta de intervenção em maio de 2018 no bairro da Candelária. 179 4.2. FAZENDO O TRAMPO I: POK 1 2 3 4 180 5 6 7 181 8 9 10 11 12 13 182 14 15 16 17 18 19 183 20 21 22 23 24 25 184 26 27 185 Esse processo de criação do POK foi realizado durante uma vivência sobre arte urbana como experiência dentro evento VII Semana Acadêmica de Design da UFRN (Debulha) ocorrida de 12 a 17 de setembro de 2016 no Departamento de Artes. A vivência contou com aproximadamente 15 pessoas participantes do evento e, na ocasião, o artista apresentou fragmentos de vídeos sobre graffiti e pixo sobre os quais comentou e promoveu a discussão. Apresentou, ainda, uma seleção fotográfica de seus trabalhos. Na ocasião falou um pouco sobre sua trajetória no campo da arte, abrindo em seguida para questões. Ao final da vivência POK demonstrou o processo de feitura do seu trabalho numa parede reservada pela organização do evento. Havia, como dito, uma parede externa reservada e pintada na cor preta para realização do trabalho. Em termos de ferramentas, tudo começa por agitar as latas de spray, tirar o excesso de ar delas, verificar a válvula de dispersão (o cap), acioná-la para verificar sua eficácia, separá-las por cor numa ordem de uso possível. Em termos de técnica, tudo começa com um risco, um traço que será o elemento disparador para uma dezena de conjuntos de outros traços desenhados com a lata de spray e, como poderá se ver, algumas vezes, balizado por instrumentos improvisados para criar efeitos de forma e de aspecto. O que era uma linha, logo em seguida toma forma reconhecível em termos gráficos: triângulo, semicírculos, retas, curvas. Grande parte do trabalho é à spray à mão livre e o “plasmar” a imagem através do spray numa parede implica certa corporalidade, ou seja, tornar mão e braço em pincel, quiçá esquadro, quiçá compasso; mover-se de um lado ao outro, reclinar-se para frente, afastar-se, agachar-se e até acocorar-se. Nesse ínterim de movimentos corporais o plasmar da imagem se complexifica para além do triângulo e dos semicírculos: já se pode ver o que identificaríamos como a íris de um olho e sua conjuntiva (a parte branca). Do simples traço, a imagem se complexifica e bases coloridas vão surgindo no que veremos ser, em seguida, “entrelaçados” construídos a partir de semicírculos. Ao final com ajuda de uma ferramenta improvisada (um pedaço de papel mais rígido), arremata as linhas mais duras e as torna mais “harmônicas”, vê-se então vir à tona uma forma muito característica da sua arte. O olho, igualmente característico de seu trabalho também começa a ganhar “identidade”: é adornado com pequenos pontos de duas cores que lembram o cilho humano e dão, por sua vez, um aspecto particularmente interessante. 186 Arremates são feitos em preto e vermelho, inicialmente. Um círculo é desenhado com perfeição, outros arremates e contornos são feitos com cores vibrantes. Pontos, alguns maiores outros menores, são dispostos em torno do desenho principal criando uma atmosfera cósmica. O trabalho é concluído com a assinatura do artista e o Departamento de Artes tem um novo mural. 187 4.3. FAZENDO O TRAMPO II: PAZCIÊNCIA – “LIVRO ABERTO” 1 2 3 4 5 6 188 7 8 9 10 11 12 189 13 14 15 16 17 18 190 19 20 21 22 23 24 191 25 26 27 192 Esta narrativa foi montada a partir da proposta de intervenção feita pelo artista PAZCIÊNCIA no espaço “Presépio da Cidade do Natal”. O lugar foi rebatizado “Barcelona” por skatistas, patinadores e artistas, após a situação de abandono pelo qual passou. O registro do processo de criação do artista ocorreu no dia 27 de março de 2018. O local escolhido para a intervenção foi a parte posterior do monumento que abrigou até poucos meses da sua inauguração um trabalho do artista potiguar Dorian Gray. Esse espaço, originalmente branco, estava coberto por vários gêneros de graffiti. Cheguei ao local com o processo de criação já em execução. Na ocasião de uma terça-feira, por volta das 15:00 horas havia poucas pessoas no local e, até as 16:30 o fluxo começou a aumentar com skatistas, patinadores e ciclistas. O processo de criação proposto pelo artista foi parte integrante do seu projeto de mestrado que aborda a cidade grafitada como um livro a céu aberto. O processo começou com o esboço no caderno, depois a escolha do local e a preparação da base com látex na cor azul. Numa caixa organizadora há aproximadamente 30 latas de sprays de cores variadas, um recipiente com água, fita adesiva, uma espécie de régua em alumínio e água para beber. Sobre a base azul já estava o desenho de um livro aberto com o esboço de cubos que dariam lugar a pintura de prédios. O desenho também estava ladeado por esboços de círculos com um arabesco central e linhas radiantes. Essa forma tem sido particularmente recorrente em seus trabalhos. Com a ajuda da Nayara, sua esposa, após ter delineado e preenchido a figura do livro, o artista passa a reforçar o contorno de um dos círculos com spray na cor rosa. Enquanto ela preenche o primeiro círculo, ele insere uma estrada por sobre o livro e sombreia o entre páginas. Em seguida, enquanto ela preenche os demais círculos, ele detalha com spray na cor azul turquesa a parte superior do primeiro e maior círculo. O detalhe é feito com uma régua improvisada, uma espécie de cano retangular de alumínio. Um sombreamento feito com spray de tonalidade esverdeada rende ao detalhe um aspecto de iluminação e profundidade. Nessa altura, o trabalho feito a quatro mãos já está consideravelmente avançado. O artista passa então a trabalhar nos detalhes dando-lhes o acabamento. Os cubos sobre o livro são preenchidos, a face posterior na cor marrom e a parte superior com a cor lilás criando o aspecto de iluminação. Depois os arabescos, o que envolve o livro e os que delineiam o centro dos círculos, são desenhados ou reforçados. Também 193 as partes superiores dos círculos são delineados com spray na cor preta e depois preenchidos com spray nas cores azul turquesa e verde. Os cubos de diversos tamanhos ganham o aspecto de prédio quando o artista, com spray na cor amarela, insere pequenos círculos paralelos em grupos de dois e três indicando janelas de prédios, denotando quartos com luzes acesas. Outros detalhes de acabamento são inseridos, e finalmente o artista assina a obra de um lado com uma tag e do outro com uma assinatura comum margeada por um arabesco. Ainda que o trabalho tenha ficado com elementos outros a ser inseridos posteriormente, o espaço passa a ter um novo e colorido graffiti, resultado das reflexões do artista sobre a arte e a cidade problematizados em seu projeto de pesquisa. Dias depois, o artista volta ao local e finaliza o trabalho fazendo pequenos acabamentos e inserindo a frase/tema da sua pesquisa: “A cidade é um livro aberto”. 194 4.4. FAZENDO O TRAMPO III: ARBUS 1 2 3 4 5 195 6 7 8 9 10 11 196 12 13 14 15 16 17 197 18 19 20 21 22 23 198 24 25 26 27 28 29 199 30 31 32 33 34 35 200 36 37 38 39 40 41 201 42 43 202 Esta narrativa foi composta a partir da proposta de intervenção feita pelo artista ARBUS concomitantemente à entrevista concedida ao projeto de pesquisa que resultou no presente texto. O registro do processo de criação ocorreu no bairro da Ribeira, no largo da Rua Chile, no dia 23 de maio de 2018 por volta das 14:00 horas. Na ocasião de uma quarta-feira, logo após o meio dia parecia haver um movimento significativo de trabalhadores e passantes, e poucos veículos. O lugar está inserido numa mancha de lazer da cidade que compreende os bairros históricos da Cidade Alta, das Rocas e da Ribeira. Ao seguimento do lazer e da arte, a Ribeira agrega também comércios de pesca e serviços diversos, e instituições públicas. É importante destacar a presença massiva de formas variadas de arte de rua no bairro reforçando esse aspecto de mancha de lazer e da arte. O processo começa numa parede com reboco branco muito desgastado, mas que, no entanto, para o artista não é necessário aplicar base. Há em volta da parede escolhida algumas inscrições. ARBUS tem à sua escolha 12 sprays de cores diversas, tinta látex, rolinho e cap. Segundo ele mesmo explica e demonstra, tudo começa com o desenho do esquema de proporções do personagem: uma linha central, feita com uma única cor de spray vermelho, que é dividida em quatro porções para o que será depois a cabeça e o tronco. Em seguida a cabeça toma forma e os traços de um rosto são esboçados. Duas linhas paralelas delineiam um tronco, quatro pequenos círculos sugerem articulações e o acréscimo de linhas ao centro do tronco indicam uma “cintura”. Linhas paralelas à porção inferior do personagem sugerem pernas, assim como pequenos círculos em suas porções médias sugerem a articulação dos joelhos. Braços articulados são inseridos: um caído junto ao corpo e outro dobrado para cima sugerindo que a personagem segura a linha de um balão. Outros detalhes são acrescentados ou reforçados no rosto denotando orelhas, olhos e nariz. Linhas paralelas aperfeiçoam os braços, e o personagem esquemático está pronto para ser pintado. Com spray na cor amarela o rosto vai ganhando expressão pelo delineamento dos olhos, nariz, boca, cabeça e as mãos. A delimitação desses elementos permite isolá-los para preencher a cabeça deixando-os vazados. Percebe-se nesse trabalho, como em outros, que o processo de criação consiste num revezamento intencional de feitura das partes. Isso permite tanto intercalar técnicas no uso do spray quanto ter uma visão global do trabalho. Assim, o que é um tronco passa a tornar-se 203 uma camisa de mangas compridas feita com spray na cor roxa. Em seguida, com um spray na cor bege, o que são as pernas passa a tomar a forma de uma calça comprida. No processo de criação, na dinâmica criativa de revezamento na feitura das partes, as regiões vazadas do rosto passam a ganhar expressão com o delineamento dos olhos, nariz e boca com spray na cor laranja. Tendo preenchido quase todo o personagem com as principais cores utilizadas, ARBUS o delineia com spray na cor preta. Tendo delineado a cabeça, nariz, boca e olhos, é a vez dos pormenores do rosto: sobrancelhas, traços de expressão, boca, ouvidos e dentes. Outros detalhes passam a animar a figura: a blusa ganha listras, as mãos são delineadas, os pés até então apenas insinuados são transformados finalmente em calçados. Voltando novamente ao rosto, a inserção de olhos aumenta a expressividade do personagem. Um arremate com spray na cor branca inserido nos olhos, nariz e boca criam um aspecto de iluminação. Pequenas expressões são adicionadas, como também os cabelos. A caminho de finalizar o trabalho, o artista faz pequenos acabamentos de iluminação, detalhes na vestimenta do personagem, como a inserção de meias listradas. Um cordão é inserido no pescoço com o que sugere ser um pingente brilhante. O penúltimo elemento a ser desenvolvido era a linha sugerida na mão da figura e que havia sido feita no início do esboço. Trata-se de um balão na forma de coração pintado com spray na cor rosa cujo cordão é delineado com spray na cor preta. Um acabamento com spray de cor rosa mais escura sugere volume e iluminação. O elemento final é a assinatura do artista na forma de tag, e o largo da Rua Chile passa a ter um novo graffiti. 204 4.5. FAZENDO O TRAMPO IV: PAZCIÊNCIA – “CARACOL”. 1 2 3 4 5 205 6 7 8 9 10 206 11 12 13 14 15 207 16 17 18 208 19 20 21 22 23 209 24 25 26 27 28 29 210 30 31 32 33 34 35 211 36 37 38 39 40 41 212 42 43 213 Esta narrativa foi composta a partir da proposta de intervenção feita pelo artista PAZCIÊNCIA no espaço “Presépio da Cidade do Natal” ou “Barcelona” como já mencionado. O registro do processo de criação do artista ocorreu no dia 31 de maio de 2018. O local escolhido para a intervenção foi um muro divisor do espaço com o ginásio que lhe ladeia. Esse muro, originalmente branco, estava coberto por vários gêneros de graffiti e pixo. A ocasião de uma quinta-feira, por volta das 15 horas e 30 minutos pareceu um tanto vazio, diferente do que costuma ser um pouco mais ao final da tarde e nos finais de semana quando o espaço passa a ser apropriado e usado por diferentes atores, inclusive pelo comércio. O processo começa com a seleção do material: 4 sprays aerossóis e 1 cap. Essa é uma intervenção experimental, portanto, ele abre mão de pelos menos dois procedimentos comuns na prática do graffiti, que é o esquema desenhado no caderno e a preparação da base com látex. O primeiro traço é, então, um círculo feito com bastante precisão. Para isso o artista vale-se de seu próprio corpo como um compasso tendo como eixo central ou “pino de manejo” a articulação do seu ombro, a mão direita com o spray como “porta mina” (de grafite) e os pés fixos no chão como “ponta seca” ou perna fixa. Os passos seguintes consistem em esboçar traços dentro do círculo: primeiro uma linha reta central que divide o círculo em duas porções e serve para orientar os demais procedimentos no processo de criação. Em seguida, na porção inferior do círculo, uma linha curva semelhante a um arabesco é inserida. Depois, na parte superior dividida, uma porção de linhas curvas são inseridas da esquerda para a direita, e depois uma outra porção dessas linhas são sobrepostas no sentido oposto. Até então essas formas são traçadas com uma única cor de spray magenta. Com a mesma cor o artista reforça o “arabesco” a fim de delimitar esta região do círculo a qual será preenchida ainda com a mesma cor. O preenchimento da parte inferior do desenho é feito com um manejo minimalista do spray com a mão, como também de todo o corpo. O traçado perfeito parece ser a conjugação de vários movimentos, ou seja, da mão, do tronco e das pernas. A continuidade de um traço longo e bem executado não é possível sem um balanço dessas três dimensões corporais. O processo continua com o preenchimento de toda a parte superior do círculo com spray na cor rosa. Trata-se de uma camada fina da tinta que permite ver ainda as 214 linhas cruzadas que serão trabalhadas posteriormente. O passo seguinte é delinear a forma com spray na cor preta: primeiro o arabesco na parte inferior toma contorno novamente, depois toda a porção inferior é delineada. Em seguida as linhas cruzadas são realçadas com o mesmo spray de cor preta e, por fim, são inseridos sulcos na parte externa da porção superior do círculo. Linhas curvas na parte exterior do círculo também são inseridas na cor preta. As regiões internas dos sulcos são preenchidas com um spray na cor rosa mais clara e, com o mesmo spray os sulcos internos, formados pelo cruzamento das linhas, são realçados criando uma iluminação. Outros realces são feitos na parte inferior na forma de linhas curvas e pontos com spray na cor branca e com as cores utilizadas anteriormente. Terminado o trabalho, o artista registra a obra com seu celular e “Barcelona” tem uma nova arte. 215 CAPÍTULO 5 – IMAGENS DA DIVERSIDADE VISUAL NA ARTE DE RUA EM NATAL/RN. CAPÍTULO 5 IMAGENS DA DIVERSIDADE VISUAL NA ARTE DE RUA EM NATAL/RN 216 5.1. ALCANCE DA PESQUISA, PROTESTOS NA CIDADE E A DIVERSIDADE DA ARTE DE RUA. Depois de aproximadamente quatro anos de pesquisa havia um volume significativo de materiais e de informações, surgiram então algumas dificuldades no manejo delas. Em várias situações, até mesmo a flutuação (PETONNET, 2008) no processo de pesquisa esteve comprometida pelos imponderáveis da vida real do próprio pesquisador. Felizmente, a proposição de seguir os passos dos artistas de rua a partir dos seus trabalhos alcançou êxito através dos procedimentos propostos. Esses procedimentos, que foram num primeiro momento, andar pela cidade observando e registrando as intervenções diversas e montar a partir daí uma coleção fotográfica, permitiu-me chegar aos artistas com os quais estabeleci interlocução, como apresentado nos capítulos anteriores. Essa metodologia e os procedimentos que vieram depois, principalmente a frequência em eventos de arte, também me puseram em contato com o campo complexo da arte de rua em Natal/RN. Eu gostaria de evitar uma visão simplista dos procedimentos que me ajudaram a chegar nos resultados aqui apresentados, sugerindo em primeiro lugar que a interlocução se deu através da própria aceitação dos artistas em ter seus trabalhos abordados em uma pesquisa. Em outras palavras, a construção do diálogo se deu incondicionalmente pelo respeito à disponibilidade e a vontade do outro em ajudar o pesquisador a entender melhor o fenômeno estudado. Eu diria ainda, ao final da pesquisa, que ela não teria sido possível sem a cordialidade que os artistas tiveram a todo momento e pelo exercício de intersubjetividade que foi e que é pesquisar os “compartimentos” da cultura urbana, dos comportamentos citadinos e do lugar que você mesmo faz parte. Alguém poderia colocar a questão sobre, ao longo dos exercícios acadêmicos e não acadêmicos, sobre o corte de classe e do perfil dos interlocutores: homens brancos jovens, de classe média e com Ensino Superior. Nessa altura da discussão já está claro que esse perfil se delineou no decorrer da pesquisa, na realização dos procedimentos propostos. Mas, a meu ver, esse dado tem algo mais a dizer do que apenas a surpresa pelas características compartilhadas pelo conjunto dos artistas. Esse dado diz, por um 217 lado que esses artistas estavam, durante o período da pesquisa, em um processo intenso de ação na cidade. De toda forma, sabemos através das pesquisas anteriores que o sexo masculino é predominante na cena do graffiti e de pixo, e que situações de machismo não é incomum, sendo o espaço da rua e da cidade noturna hostis à presença feminina e de pessoas negras. Considero razoável reiterar também nessa sessão o papel da dimensão espacial para os resultados da pesquisa. Quando delimitei a região inicial para explorar através de caminhadas, tinha em mente o importante papel que determinados pedaços, trajetos e regiões no interior e nos limites dos bairros, adquiriram ao longo dos últimos anos. A história da especulação imobiliária na região do bairro de Lagoa Nova não é nova (VIDAL, 1998) e, para além da política fundiária, as mobilizações populares foram significativas na constituição simbólica dos espaços da cidade hoje. Em Natal, a história das manifestações públicas nos espaços da cidade remonta à Intentona Comunista na década de 1930 e, nos anos 1940 na Ribeira, o protesto contra o avanço dos países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial59. Nos anos 1980 uma grande concentração ocorreu na praça Gentil Ferreira no bairro do Alecrim no movimento pelas Diretas Já60. Também desde os anos 1980 as calçadas do prédio da Prefeitura Municipal na Avenida Ulisses Caldas foram e são até hoje palco de manifestações, principalmente de estudantes e servidores públicos. No início dos anos 1990 uma concentração se formava na rua João Pessoa no bairro da Cidade Alta em prol do impeachment do então presidente Fernando Collor61. No começo dos anos 2000 a insatisfação popular com o modelo econômico do então presidente Fernando Henrique Cardoso, fez estampar em muros e barricadas da avenida Senador Salgado Filho as palavras de ordem “Fora FHC” e “Fora FMI”. Por um conjunto de razões, o trecho da Avenida Salgado Filho (BR-101) entre os Shoppings Via Direta/Natal Shopping e o Shopping Midway Mall tornou-se o espaço privilegiado das grandes manifestações populares em Natal/RN a ganhar expressão com 59 “1942 - O protesto dos estudantes natalenses contra o nazismo”. . Acesso em 18/02/2019. 60 “Comício levou 60 mil à praça Gentil Ferreira”. . Acesso em 18/02/2019. 61 “O grande momento da democracia”. . Acesso em 18/02/2019. 218 o volume que tiveram os Protestos de Junho de 2013. Não é o objetivo desse texto se aprofundar nesse quadro. Importa, no entanto, apontar para um conjunto de fatores (valorização fundiária, presença massiva de comércio, fluxo de pessoas e a “ágora” que se formou) que tornaram o bairro de Lagoa Nova um lócus prolífico para a pesquisa. Tendo caminhado pelas avenidas e ruas vicinais, encontrei o trabalho dos meus interlocutores, mas também não circunscrevi a experiência da caminhada a esse bairro. Os bairros onde estão localizadas as galerias que os artistas expuseram, a Cidade Alta e Petrópolis, também serviram como “pontos de fuga” para as caminhadas e para os achados. Também a Ribeira, como bairro que agrega uma mancha de lazer e de intervenções artísticas foi um laboratório fotográfico. Essas experiências, como afirmei anteriormente renderam uma coleção fotográfica significativa e que, em termos de autoria das artes capturadas, está para além das interlocuções anteriormente apresentadas. A opção de abordar um conjunto de bairros, implica no fato de que outras regiões da cidade não estão cobertas por esta pesquisa, mas elas representam campos valiosos para compreensão das dinâmicas e dos processos sociais urbanos e devem ser abordadas posteriormente. Ao longo dos anos, o campo da arte de rua, e as redes da qual é composto, só cresceu em Natal. Se como já foi dito, a consolidação da arte de rua na cidade em sua trajetória remonta basicamente aos humanoides encapuzados de Marcelus Bob e as marcas territoriais das torcidas organizadas, as gerações que vieram depois só cresceram e diversificaram o perfil dos autores e as fontes motivadoras. Se a primeira geração de grafiteiros foi motivada pelos dos pilares do Hip-Hop com expoentes como Miguel Carcará, Geraldo e Luciano, uma geração posterior, a exemplo de POK e FB tiveram na universidade um campo de possibilidades. O trânsito de artistas de outras cidades em Natal, como também os de Natal em outras cidades, foi um fator de diversificação da cena. Recentemente um protagonismo feminino de relevo na cidade tem colorido radicalmente os seus muros com nomes como CONSUELO, SUNSARARA, SHEEP e Dani CATÃO. Esta sessão certamente não faz completa justiça à diversidade de manifestações da arte de rua em Natal, mas mostra com isso que ela é um objeto a dizer muito sobre a cidade e precisa, portanto, de uma agenda permanente de pesquisa. Aqui também uma paleta variada do seguimento do pixo/pichação não é contemplada devido a sua 219 própria complexidade como a respeito da “barreira linguística” que impõe e do status marginal da variante que faz alguns pichadores muitas vezes evitarem o pesquisador. A diversidade das artes nas ruas da cidade é assim uma diversidade de temas, como também das pessoas que lhes elabora. Essa diversidade de traços, conteúdos e artistas nos diz ainda que há muitas vozes, muitas questões com as quais o citadino precisa pensar e dialogar hoje. O apanhado de fotografias a seguir tem o objetivo de passear pela diversidade da arte de rua na cidade do Natal. O conjunto mostra também a diversidade de temas, técnicas e intenções. Esses artistas povoam a cidade com marcas características que, por um lado, se repetem incessantemente como no “V” de Vagina ou nas frases poéticas de caligrafia bem desenhada do “AmarEloCura”. Por outro lado, encontramos marcas mais intermitentes e outras até únicas, dado seu contexto de feitura, como por alguém de passagem na cidade. Conforme já mencionado, esse aspecto de intermitência dos trabalhos de um mesmo artista está ligado a pelo menos duas “linhas”: uma costumeira, ou seja, relacionada aos trajetos cotidianos realizados pelo artista; e, uma errante, relacionada a um novo trajeto ou à possibilidade de intervir num lugar difícil ou estratégico. A diversidade das artes plásticas como o graffiti, o lambe-lambe e o estêncil, e as artes gráficas do pixo, da pichação e das tags, por exemplo fazem da cidade esse livro aberto, como afirmam os artistas pesquisadores. Na sessão a seguir apresento uma amostra fotográfica dessa diversidade florescida nos muros e equipamentos urbanos da cidade do Natal. Em três subseções trato do graffiti em muros e equipamentos urbanos diversos; do pixo, da escrita e das mensagens diversas; e, dos lugares abandonados ou esquecidos pelo poder público. A identificação dos artistas virá antecedida pela numeração da fotografia. A identificação foi feita com base nas assinaturas, na experiência da pesquisa de campo e na consulta a outros artistas detentores do conhecimento dessa rede. 220 5.2. IMAGENS DA DIVERSIDADE NA ARTE DE RUA EM NATAL/RN 5.2.1. GRAFFITI EM MUROS E EQUIPAMENTOS URBANOS DIVERSOS 1. Lucas Medeiros, “MDS”. 2. “Iluminado”. 3. “EDI”. 4. “JÃO”. 221 5. “STOMP”. 6. “BLUE”. 7. “HUGH”, “FBosmo”, “BLUEOsmo”, “POK”, “LIE”, “ARBUS” e “PAZCIÊNCIA”. 8. “SHEEP” e “CONSUELO”. 222 9. “NESK”. 10. “GAPIX”. 11. “FÉLIX”, “HUGH”, “HADES”, “OSMO” e “POK”, FDM crew. 12. “JESUS” ou “FAÍSKA”. 223 13. “POK” e “FBosmo”. 14. “SUNSARARA”. 15. “CONSUELO”. 16. Vários artistas (?), “DISCÓRDIA” (SP). 224 5.2.2. PIXO, ESCRITAS E MENSAGENS DIVERSAS 17. Não identificado. 18. Não identificado. 19. Não identificado. 20. “V” de Vagina. 225 21. Não identificado. 22. Não identificado. 23. Não identificado. 24. “STO”, BDL crew. 226 25. “V” de Vagina. 26. “CREATY”. 27. “V” de Vagina. 28. Não identificado. 227 29. Não identificado. 30. “V” de Vagina. 31. Não identificado. 32. Não identificado. 228 5.2.3. LUGARES ABANDONADOS OU ESQUECIDOS PELO PODER PÚBLICO 33. “NYAH” e “NEURA”, GDR crew. 34. “ANONIMUNDO” (SP). 35. “Dani CATÃO”. 229 36. “Daniel NEC” e “RAOM” (?). 37. Várias tags, dest. para LKS e VEP. 38. Vários Artistas. 39. Várias tags. 230 40. Não identificado. 231 CAPÍTULO 6 CAPÍTULO 6 – DISCRIÇÃO, EXTRAVAGÂNCIA E SATURAÇÃO. DIS CRIÇÃO, EXTRAVAGÂNCIA E SATURAÇÃO 232 6.1. USOS DA CIDADE NA ARTE DE RUA. No quadro de duas experiências exteriores ao Brasil, a primeira em abril de 2018 em Barcelona e em Paris; e em outubro em Bordeaux e em outras cidades francesas, propus o exercício da caminhada e do registro fotográfico naqueles contextos. Tratou- se, no primeiro momento, de uma experiência exploratória com o objetivo deliberado de conhecer duas cidades europeias com a tradição do turismo voltado ao patrimônio histórico e à arte. A segunda experiência ocorreu no quadro de cooperação internacional no acordo bilateral entre a UFRN e a Universidade de Bordeaux, experiência de intercâmbio na qual os participantes apresentaram suas pesquisas, interagiram com estudantes e professores e experimentaram a imersão na cultura e na língua francesa. Apresento neste capítulo o resultado prático dessas caminhadas exploratórias através de fotografias na proporção 3x4, 16x9 e panorâmicas. O objetivo das fotografias 3x4 é capturar e transmitir a experiência visual em detalhes, ainda que em alguns casos possa enquadrar outros elementos da paisagem, como é o caso de placas e do mobiliário urbano em geral. Com as fotografias 16x9 quero destacar objetos mais alongados. Já o objetivo das fotografias panorâmicas é capturar e transmitir uma maior porção dos espaços visitados, ou mesmo caracterizar visualmente o “habitat” dessas artes na rua. Ao final de cada conjunto de fotografias, mostro sua distribuição espacial em mapas construídos a partir da imagem de satélite das localidades. Como resultado da análise desse material etnográfico e da reflexão prévia sobre a arte de rua em Natal, pude perceber e classificar experimentalmente, dois tipos de uso do espaço feitos pelos artistas em suas intervenções: o uso discreto e o uso extravagante; e também o resultado dessas intervenções e alguns lugares da cidade como saturação. Com o uso discreto refiro-me a formas diversas da arte de rua (estêncil, tag/pixo, graffiti, lambe-lambe) que são inseridos por seus autores em “detalhes do espaço”, platibandas, muretas, degraus, almofadas de portas ou paredes, algumas vezes em contextos intersticiais, ou onde a imaginação alcançar. Trata-se de uma prática criativa de interagir com o espaço e com as pessoas. Como prática, é um exercício de percepção dos espaços da cidade a fim de deixar no “lugar certo” uma marca de si ou uma mensagem, um compartilhamento sensível (RANCIÈRE, 2005). A discrição dessa forma 233 pode se dar como uma “serendipidade” sensivelmente partilhada, como uma técnica de intervir rapidamente e não ser pego. Com o uso extravagante também se tem uma prática de interagir com o espaço e as pessoas, além de ser também um exercício de percepção da cidade e partilha do sensível. No entanto estamos diante de uma prática que, diferente da anterior, não reside na sutileza, mas numa “deselegância voluntária”. A extravagância pode residir em diferentes intenções como em “fazer o nome” pelo tamanho do mural, atacar deliberadamente a propriedade privada ou questionar o estatuto da institucionalidade da arte. Como se pode ver, essas categorias experimentais não reduzem o fenômeno a um binômio conceitual, mas ajudam a perceber que, por razões variadas, se intervém desta ou daquela forma nos espaços da cidade. No conjunto de fotografias que seguem agrupadas por categorias, é possível perceber as duas formas de uso tanto em Barcelona, Paris e Bordeaux, como em outras cidades francesas. No caso destas, em relação ao uso discreto, percebe-se que um número significativo de artistas se vale de detalhes da arquitetura dos prédios como portas de madeira, portões de ferro e portas de rolo (clássicas na prática da tag e do graffiti), de peças do mobiliário urbano como barricadas de concreto, tubos de escoamento de águas pluviais e caixas de terminais elétricos. Em relação ao uso extravagante, a categoria que parece predominar nessa forma é o bomb, muito embora as frases políticas e o graffiti estejam no páreo. Várias tags, bombs e mesmo cartazes lambe-lambe, podem ocupar uma porta, uma parede ou um equipamento utilizado pelos artistas. Vale ressaltar, no entanto, que fora os murais feitos em mutirão, a ideia de “uso” que estou utilizando diz respeito à prática de um indivíduo que passa por um local, analisa-o, e finalmente insere ali o seu trabalho. No uso de um mesmo espaço por diferentes artistas, tornando o lugar cheio de diferentes escritas, técnicas e sobreposições, poderíamos classificar experimentalmente como uma “saturação”, ou seja, existe ali uma grande quantidade de traços, formas e cores (em relação à monocromia do espaço ou do objeto em questão, por exemplo, uma parede branca, uma barricada cinza). Nas cidades europeias como no Brasil, esses usos podem ser largamente observados. Essa sessão é uma proposta comparativa na qual é possível observar semelhanças e singularidades onde as fotografias estão agrupadas por subtemas a partir do que emergiu durantes as caminhadas exploratórias. Vale ressaltar que a “saturação” de alguns espaços da cidade, 234 bem como a captura desses pela fotografia devem ser entendidos na perspectiva em que o tecido urbano se apresenta dinâmico e está em constante negociação dos artistas entre si, e com as diversas esferas de poder da cidade, como a prefeitura municipal. 6.2. CAMINHANDO PELAS CIDADES E PELAS ARTES. Tendo passado por oito cidades diferentes, Barcelona, Paris, Toulouse, Foix, Bordeaux, La Rochelle, Nantes e Tours, a impressão mais marcante é sobre a quantidade e a diversidade das artes deixadas na cidade por grafiteiros, designers, taggers, writers, artistas de rua. As três formas classificadas experimentalmente afloram nessas localidades permitindo que o olhar se perca por um momento e se encontre em fitar uma e outra obra. Tags, bombs e throw-ups parecem dominar os cenários da paisagem urbana inseridos desde muros e telhados, mas também em molduras e outros equipamentos urbanos, apresentando-se como itens quase obrigatórios para o imaginário e para a imagética da cidade, pelo menos nas suas regiões centrais e de grandes fluxos. Trarei nesta sessão imagens dessas cidades, e abordarei as referências de três delas, Barcelona, Paris e Bordeaux, enquanto apresento as imagens das demais, a fim de “passear” pela sua diversidade de cores, formas e manifestações da arte da e na rua. Essas categorias, predominantemente gráficas, trazem consigo geralmente siglas que rementem a pseudônimos de artistas e grupos, as crews ou aos coletivos. Essas grafias são constituintes da paisagem urbana nas cidades visitadas, como são na cidade do Natal e em outras regiões centrais de cidades do mundo. Para o pesquisador, em seus primeiros passos, num terreno linguístico que ele desconhece, como pode parecer também aos demais citadinos, essas escritas apresentam-se algumas vezes como ilegíveis. O exercício de observá-las, registrá-las, observá-las novamente e, casualmente encontrar de alguma forma seus autores, é um treino que permite “decifrá-las”. Assim como ocorreu durante o processo de pesquisa em Natal, percebi a repetição de algumas daquelas marcas em diferentes lugares da cidade, resultado da prática de seus autores de deixá-las, ou em lugares estratégicos, ou no maior número 235 possível de lugares. GFM62 (fotos 2 e 7) e FYL63 (foto 3), são exemplos de crews cujas tags podem ser encontradas em Barcelona, assim como PACHE64 (foto 17), WESH (de Bordeaux; foto 8), TREMO e GUZCK (fotos 23 e 25) são artistas atuando em sua esfera visual. A identidade da maioria desses artistas não está disponível, dado a natureza ilegal da tagging, mas consegue-se chegar a alguns deles, seja pela divulgação que o mesmo faz em redes sociais, seja pelos sites e blogs de divulgação ou catalogação da arte de rua. Dessa forma, mesmo com poucas informações, sabe-se por exemplo que os artistas circulam, deixando suas marcas durante o período de estada na cidade como foi o caso do artista PACHE65, um grafiteiro luso-francês que chegou a arte de rua através do hip- hop. Ele estudou em Barcelona tendo deixado por lá sua marca, vivendo momentos de glória, mas tendo sofrido também com o constrangimento policial. Na faixa dos trinta anos de idade, o artista faz atualmente mais trabalhos de estúdio do que na rua e trabalha, aparentemente para o seguimento da moda na personalização de acessórios66. A experiência em Barcelona demonstra também como a esfera visual da cidade é apropriada por diferentes indivíduos, portanto, com diferentes formas e intenções. Esse uso relativo, peculiar, no entanto reflete uma generalidade que é a do próprio uso da cidade, que qualquer um pode fazer, seja em escrevê-la, pintá-la (de forma autorizada ou não), seja em lê-la ou contemplá-la. Assim são os escritos SINPAPELES67 que foram espalhados durante todo o ano de 2018 em Barcelona. A ação, inicialmente anônima, refere-se aos mais de vinte mil migrantes e refugiados vivendo em situação irregular na cidade. A autoria é de um latino-americano vivendo há mais de dez anos na cidade, que tem o objetivo de tocar as consciências quanto à situação migrante. Ele afirma ser um artista e não um vândalo. 62 “GFM (Barcelona) versus ‘GEISHA VIOLET’ Hardcore 2” por Montana Colors TV. . Acesso em 15/03/2019. 63 “‘Go fast or go home’: FYL CREW” por Montana Colors TV. . Acesso em 15/03/2019. 64 “PACHE” por Intergraff . Acesso em 15/03/2019. 65 “Pache R2 – Goodbye” por System Boys. . Acesso em 15/03/2018. 66 “Graffiti spuiten op een Hermès? Maak kennis met Pache!” por Tine Stoop para Marie Claire . Acesso em 15/03/2018. 67 “Sinpapeles”, el Banksy de Barcelona” por Anna Custodi para The Creative. . Acesso em 15/03/2018. 236 Keith Haring e Jean-Michel Basquiat certamente são nomes conhecidos e influências marcantes nas trajetórias de artistas atuando nas ruas em todo mundo. Suas lembranças como uma forma de reconhecimento e veneração, e as marcas deixadas por eles também habitam a esfera visual das cidades. Em Barcelona há o mural executado por Haring no ano de 1989 (fotos 27 e 28) e uma lembrança de Basquiat (foto 29). O mural de Haring68, tendo quase se desintegrado, foi restaurado e conservado em meados de 1990 pelo Museu de Arte Contemporânea da cidade (MACBA), reavivando- o no bairro do Raval. O conteúdo desse trabalho, uma narrativa que traz o uso de drogas, a doença e a morte em interação com criaturas que mesclam aspectos humanos e preservativos, marcam um período de alastramento do vírus HIV no “Barrio del Chino”69. A principal mensagem da obra é, traduzida para o português, “Todos juntos podemos parar a AIDS”. Outros artistas estabelecidos também povoam a cidade e seus lugares com a arte. Assim é o El Xupete Negre, artista atuante desde 1985 quando começou nas ruas de Barcelona atraído pela cultura hip hop70. A tag “elxupetenegre” foi criada em 1987. Tendo estudado desenho gráfico quando já pintava com spray, denomina seu trabalho como “logo-arte” e o seu estilo ganhou o mundo. Atuando fortemente nas ruas, realizou uma grande exposição no ano 2000 e depois disso passou a participar de várias outras exposições individuais e coletivas. Também em Paris os grafismos das tags, bombs, trow-ups e outras formas não classificadas de escrita emergem em todos os cantos da cidade, da Île de la Cité à banlieue. São formas bastante coloridas, algumas em duas ou três cores, outras com sombreados. Destacam geralmente na parte inferior da tag o nome da crew e o ano de feitura, destacando também às vezes os nomes de outros membros do grupo. São inseridos em múltiplos suportes: paredes/muros públicos e privados, telhados, vans e equipamentos urbanos diversos. É impossível identificar o gênero, idade, classe social, ou traçar o perfil desses artistas apenas com base em suas evidências gráficas. 68 “Barcelona Mural, 1989” por The Keith Haring Foundation. . Acesso em 16/03/2019. 69 “Blood lines” por Will Shank para Barcela Metropolitan. . Acesso em 16/03/2019. 70 “Historia” por El xupete negre bcn. . Acesso em 16/03/2019. 237 REAN e IAZE (foto 37), membros da crew parisiense AOC71 são nomes encontrados na cidade de Paris. São inúmeras as tags que fazem referência a writers e crews, como são PULS72 (foto 39), VAPSKY73 (fotos 207 e 2014), SHEAT74, DOKIS (fotos 213 e 227); e, SALAM75 (foto 37), YKS76 (fotos 40 e 204, crew pariense composta no começo dos anos 2000), NWS77 (foto 43) e FLM78 (“Fout La Merd”, fotos 50 e 212). Essas tags muitas vezes se alinham, superpõem-se e sobrepõem-se a outros trabalhos de propaganda ou não como no throw-up sobre o trabalho a artista Caroline Laguerre79 nas fotos 39 e 40. Compondo essa “estampa” urbana, outras escritas aparecem como é o caso da “Jésus Sauve80” (foto 203), aparentemente um coletivo de indivíduos cristãos espalhando mais intensamente a tag, em português “Jesus Salva”, por toda a Paris em novembro de 2018. Da mesma forma, “Clitorisity81” (foto 61) parece ser o exemplar de um movimento coletivo de representação do clitóris e reivindicação da estética feminina para a arte de rua semelhante ao “V” de Vagina em Natal/RN. O graffiti também compõe o cenário parisiense e lá encontramos as assinaturas dos grafiteiros HOBZ82 (foto 227) das crews MCT, 2BK, TD, 92EDF; REGIS-R83 (foto 229), artista visual parisiense viajando entre Paris, Ouagadougou (Burkina Faso) e México; e 71 “AOC” por Maquis Art. . Acesso em 17/03/19. 72 “PULS” por Maquis Art. . Acesso em 17/03/19. 73 “VAPSKI” por Maquis Art. . Acesso em 17/03/19. 74 “SHEAT” por Maquis Art. . Acesso em 17/03/19. 75 “SALAM” por Maquis Art. . Acesso em 17/03/19. 76 “YKS” por All City blog. . Acesso em 17/03/19. 77 “NWS” por Maquis Art. . Acesso em 17/03/19. 78 “FLM” por Maquis Art. . Acesso em 17/03/19. 79 “Caroline Laguere”. . Acesso em 17/03/19. 80 “Jésus Sauve” por Newsflare. . Acesso em 17/03/19. 81 “CLITOROSITY: Quand le street art revendique le féminin dans l’espace urbain” por Radar. . Acesso em 17/03/19. 82 “HOBZ” por Maquis Art. . Acesso em 17/03/19. 83 “REGIS-R” . Acesso em 17/03/19. 238 “NASCIO” (fotos 230 e 231). Esse cenário abarca ainda cartazes lambe-lambe e sitckers, que não são menos expressivos que as tags. A autoria de alguns deles são impossíveis de identificar, mas muitos se dão identidade pelo próprio conteúdo da arte, pela tag/assinatura ou pelo endereço eletrônico. Esses trabalhos nem sempre são de artistas atuando estritamente na rua, mas que usam esse espaço para estender a ação e o alcance das suas artes. Há em Paris, trabalhos de “Zelda Bomba84” (foto 216 e 197 [Tours]), uma artista que, depois de alguns anos vivendo na Itália, estabeleceu-se em Paris. Sua arte abarca uma série de retratos, em sua maioria de mulheres, uma visitação constante à questão da identidade. Ela atua na rua com o objetivo de se comunicar criativamente com o espaço público e alterar algumas marcas e publicidades. “Krotalon85” (foto 220), pseudônimo de Gilberto G. Sánchez, é um ilustrador, desenhista e restaurador de arte. Natural da cidade do México estudou desenho e comunicação visual, hoje é especialista em ilustração, técnicas tradicionais e meios digitais. Realizou diversas exposições, tendo publicado livros e trabalhado como diretor de arte. COMBO CK86 ou COMBO Culture Kidnapper (foto 223), é um artista parisiense que manipula e ressignifica marcas visuais conhecidas dos quadrinhos e videogames lhes alterando o sentido. A tônica de seu trabalho é a interação da imagem com a rua e os citadinos. Com o uso de signos da cultura pop, o artista busca trazer à tona as injustiças sociais, oferecendo uma leitura subversiva da realidade. Artistas parisienses e artistas estrangeiros habitando em Paris dividem os espaços, entrâncias e interstícios da cidade, inserindo essas marcas carregadas de signos. Essas imagens compartilham uma mensagem colocando questões para se pensar, como autoria, conteúdo e significado. Assim é o trabalho de Konny Steding87, uma artista de rua alemã, nascida em 1963. Com a tônica ativista no meio urbano, e tendo feito sua primeira mostra pessoal nos anos 2000 em Paris, as suas obras já foram a leilão várias vezes, com a venda de uma obra avaliada em mais de três mil dólares. 84 “Zelda Bomba”. . Acesso em 17/03/2019. 85 “Krotalon”. . Acesso em 17/03/2019. 86 “COMBO CK”. . Acesso em 17/03/2019. 87 “Konny Steding” por Widewalls. ; e, “Konny Steding” por Mutual Art. . Acesso em 17/03/2019. 239 Também KASHINK, artista de origem eslava e hispânica, cria personagens coloridos que estão em vários lugares da cidade. Uma arte que revisita aparentemente as caveiras mexicanas, traz cabeças e personagens mascarados, algumas vezes com vários olhos. KASHINK é uma artista muito atuante na arte na arte de rua, e a sua obra parece questionar certos códigos estéticos, seja na busca por exprimir a diversidade cultural, seja pelo confronto que suas formas oferecem aos receptores. A ressignificação de uma antiga forma de decorar e ladrilhar edifícios, o mosaico, compõe ainda a diversidade da arte de rua em Paris. Esses mosaicos foram realizados (em sua totalidade ou sua maioria) pelo autointitulado “Invader88”, graduado pela Escola de Belas Artes de Paris e pela Sorbonne. Artista Livre Não-Identificado (UFA) busca, com esse trabalho, liberar sua arte das pressões institucionais dos museus. Ele procura explorar os espaços urbanos em torno do mundo utilizando ponto nevrálgicos da cidade para povoa-la com seus “invasores”. Para o artista, sua arte é um misto de arte contemporânea, “game” e arte de rua. Tags e Bombs também compõem a paisagem urbana da cidade de Bordeaux na França. FIVE (foto 100), YLAR (foto 100 [?] 109 e 119) e BENS89 (foto 109) são tags de grafiteiros encontradas na cidade; e as crews IVRS90 (foto 100), NFNL91 (foto 107), RAVERZ e T75 (foto 109) de Bordeaux e outras cidades francesas. No graffiti, encontramos as assinaturas de MÖKA ou MÖKA 18792 (fotos 114, 115 e 117), um artista independente e grafiteiro, bretão/chileno habitando em Bordeaux, membro dos coletivos Le Grand Cru e VEC. Há também NERONE93 (fotos 124 e 125), um artista de rua e designer gráfico que passou por Bordeaux, Paris e habita em Londres, e faz parte do coletivo Le Coktail. Há ainda o EPIS94 (fotos 124 e 125) um artista habitando em Bordeaux e trabalhando com graffiti e design gráfico, também é membro do coletivo Le Coktail. Os coletivos têm um papel importante, como por exemplo na realização de 88 “Space Invaders”. . Acesso em 17/03/2019. 89 “BENS” por Maquis Art. . Acesso em 18/03/2019. 90 “IVRS” por Maquis Art. . Acesso em 18/03/2019. 91 “NFNL” por All City Blog. . Acesso em 18/03/2019. 92 “MÖKA”. . Acesso em 18/03/2019. 93 “NERONE”. . Acesso em 18/03/2019. 94 “EPIS”. . Acesso em 18/03/2019. 240 eventos, como é o caso do TR4NSFERT ou EXPO TR4NSFERT (fotos 102, 112 e 121), um evento de arte de rua que ocorre anualmente na cidade de Bordeaux reunindo artistas e coletivos de arte. A diversidade de formas da arte de rua também encontra lugar em Bordeaux. Assim, entre variados cartazes lambe-lambe, encontramos a assinatura de NASTI95 (fotos 130, 137 e 139), um artista de Bordeaux que começou na arte de rua por volta de 2016. Além de artista de rua, é pintor e escultor transitando entre as cidades de Bordeaux, Paris, Estrasburgo e Marrocos. Outros cartazes lambe-lambe (fotos de 148 a 152) são encontrados na cidade sem assinatura, mas com mensagens que provavelmente referem-se à questão migrante, à gentrificação na cidade e à especulação imobiliária. Outro cartaz, dessa vez do SHAZ96, artista de 28 anos de idade que vive em Bordeaux, traz a imagem do jogador Kylian Mbappé (foto 141) da seleção francesa de futebol. Também o AGRUME97, artista francês que, nos seus 25 anos de idade é autodidata, pinta, desenha e escreve, tem seu trabalho nos muros da cidade (foto 136). Ele teve sua primeira exposição individual em janeiro de 2018 e a segunda em abril de 2019. No meio dessa diversidade, os stickers são incontáveis, possuem diversos temas, frases e estéticas, sendo alguns de ordem política (foto 140) e contra o fascismo (fotos 144 e 145). Como ocorreu no processo da pesquisa em Natal, em que segui os trabalhos que mais se repetiam, ou seja, cujos autores estavam em plena verve e em plena disposição de espalhar sua produção na cidade, também em Bordeaux dois artistas se destacaram durante o período que realizei as caminhadas exploratórias. Um deles é o ALBER98, um prolífico artista de rua que vive em Bordeaux há quase dez anos. Com 33 anos de idade, possui inúmeras obras espalhadas pela cidade (fotos 153 a 160) e trabalha também sobre a tela. Também SELOR, um “escritor de rua” como se define, é um artista que vive em Bordeaux e espalha pela cidade uma persona chamada “Mimil”, que é a mistura de 95 “Le Street Art À Bordeaux: 4 Artistes À Découvrir” por Le blog de Bordeaux Visite. . Acesso em 18/03/2019. 96 “Kylian Mbappé s'affiche dans les rues de Bordeaux après le titre de champion du monde” por France Bleu. . Acesso em 24/03/2019. 97 “AGRUME”. . Acesso em 18/03/2019. 98 “Street art à bordeaux: portrait d’Alber” por My Bordeaux City Guide. . Acesso em 18/03/2019. 241 lobo, cachorro, humano, em várias das situações da vida cotidiana e do comportamento humano, acompanhada de frases reflexivas. A caminhada exploratória pelas ruas dessas e outras cidades permitiu, portanto, chegar a esses trabalhos e ver, talvez, um pouco mais do que um morador ou um turista veria imersos em suas dinâmicas e interesses. O conjunto das fotografias a seguir são o registro dessa experiência na qual caminhar é notar (PRANAL e SALMONA, 2018). 242 BARCELONA BARCELONA – ABRIL DE 2018 ABRIL DE 2018 243 TAGS E BOMBS 1 2 3 4 5 244 6 7 8 9 10 245 SINPAPELES 11 12 13 14 246 MOLDURAS E EQUIPAMENTOS 15 16 17 18 247 19 20 21 22 248 23 24 25 26 249 MESTRES 27 28 29 250 EL XUPETE NEGRE 30 31 32 251 MAPA 1. LIMITE OESTE DA CIDADE DE BARCELONA. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019) E DADOS DA PREFEITURA DE BARCELONA. 252 MAPA 2. REGIÃO SUL DE BARCEONA COM DESTAQUE PARA OS BAIRROS EL RAVAL E EL GOTIC. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019) E DADOS DA PREFEITURA DE BARCELONA. 253 MAPA 3. REGIÃO CENTRAL DE BARCELONA COM DESTAQUE PARA O BAIRRO DA SAGRADA FAMÍLIA. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019) E DADOS DA PREFEITURA DE BARCELONA. 254 PARIS PARIS – ABRIL DE 2018 ABRIL DE 2018 255 TAGS E BOMBS 33 34 35 36 256 37 38 39 40 257 41 42 43 44 45 258 MOLDURAS E EQUIPAMENTOS 46 47 48 49 259 50 51 52 53 260 MOSAICOS 54 55 56 57 261 KONNY STEDING 58 59 60 262 POLÍTICA NO RIO SENA 61 62 63 64 263 MAPA 4. PARIS COM DESTAQUE PARA O 4º E 12º DISTRITOS. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 264 MAPA 5. PARIS COM DESTAQUE PARA O 18º DISTRITO. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 265 MAPA 6. PARIS COM DESTAQUE PARA O 16º DISTRITO. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 266 TOULOUSE TOULOUSE – OUTUBRO/NOVEMBRO DE 2018O UTUBRO DE 2018 267 TAGS, BOMBS, MOLDURAS E EQUIPAMENTOS 65 66 67 68 69 268 70 71 72 269 CARTAZES LAMBE-LAMBE E STICKERS 73 74 75 76 270 GRAFFITI 77 78 79 80 271 RUE GRAMAT, RUA DO GRAFFITI 81 82 83 84 272 85 86 87 88 273 89 90 91 274 MAPA 7. TOULOUSE COM DESTAQUE PARA O BAIRRO DO CAPITOLE. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 275 MAPA 8. TOULOUSE COM DESTAQUE PARA O BAIRRO LE MIRAIL. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 276 MAPA 9. TOULOUSE COM DESTAQUE PARA O BAIRRO RANGUEIL FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 277 FOIX OUTUBRO DE 2018 FOIX – OUTUBRO/NOVEMBRO DE 2018 278 92 93 94 95 279 96 97 98 99 280 MAPA 10. FOIX COM DESTAQUE PARA A REGIÃO NORTE DA CIDADE. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 281 BORDEAUX BORDEAUX – OUTUBRO/NOVEOMBUROT DEU 20B18R O/NOVEMBR O DE 2018 282 TAGS E BOMBS 100 101 102 103 283 104 105 106 107 284 108 109 110 111 285 GRAFFITI 112 113 114 115 286 116 117 118 119 287 120 121 122 123 288 124 125 126 127 289 ESTÊNCIL 128 129 130 131 290 CARTAZES LAMBE-LAMBE E STICKERS 132 133 134 135 291 136 137 138 139 292 140 141 142 143 293 144 145 146 147 294 CARTAZES 148 149 150 151 295 152 296 ALBER 153 154 155 156 297 157 158 159 298 160 299 SELOR 161 162 163 164 300 165 166 167 301 168 169 170 171 302 TUDO BEM 172 173 174 175 303 MAPA 11. BORDEAUX COM DESTAQUE PARA AOS BAIRROS GRAND PARC E CHARTRONS. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 304 MAPA 12. BORDEAUX COM DESTAQUE PARA A REGIÃO CENTRAL DA CIDADE. FONTE: ELABORADO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 305 MAPA 13. BORDEAUX COM DESTAQUE PARA A REGIÃO FRONTEIRIÇA SUL DA CIDADE. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 306 LA ROCHELLE NOVEMBRO DE 2018 LA ROCHELLE – OUTUBRO/NOVEMBRO DE 2018 307 176 177 178 179 308 180 181 182 309 MAPA 14. LA ROCHELLE COM DESTAQUE PARA O BAIRRO CENTRE-VILLE. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 310 NANTES NANTES – OUTUBRO/NOVEMBRO DE 2018 NOVEMBRO DE 2018 311 183 184 185 186 312 187 188 189 190 191 313 MAPA 15. NANTES COM DESTAQUE PARA O BAIRRO CENTRE VILLE. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 314 TOURS TOURS – OUTUBRO/NOVEMBRO DE 2018 NOVEMBRO DE 2018 315 192 193 194 195 316 196 197 198 199 317 200 201 202 318 MAPA 16. TOURS COM DESTAQUE PARA O CENTRO DA CIDADE. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019) E PREFEITURA DE TOURS. 319 MAPA 17. TOURS COM DESTAQUE PARA O LIMITE ENTRES O BAIRROS GIRAUDEAU E L. STRASBOURG. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019) E PREFEITURA DE TOURS. 320 PARIS PARIS – OUTUBRO/NOVEMBRO DE 2018 NOVEMBRO DE 2018 321 TAGS E BOMBS 203 204 205 206 322 207 208 209 210 211 212 213 214 323 CARTAZES LAMBE-LAMBE E STICKERS 215 216 217 218 324 219 220 221 222 325 223 224 225 226 326 GRAFFITI 227 228 229 327 230 231 328 MOSAICOS 232 233 234 329 ST. OUEN 235 236 237 330 238 239 240 241 331 KASHINK 242 243 332 244 245 246 333 247 334 MAPA 18. PARIS COM DESTAQUE PARA O 18º DISTRITO. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 335 MAPA 19. PARIS COM DESTAQUE PARA O LIMITE ENTRE 18º DISTRITO E A COMUNA SAINT-OUEN. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 336 MAPA 20. PARIS COM DESTAQUE PARA A REGIÃO CENTRAL DA CIDADE. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 337 MAPA 21. PARIS COM DESTAQUE PARA O LIMITE ENTRE O 20º DISTRITO E A COMUNA BAGNOLET. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 338 MAPA 22. PARIS COM DESTAQUE PARA O LIMITE ENTRE OS 13º E 12º DISTRITOS E A COMUNA CHARENTON-LE-PONT. FONTE: ELABORADO PELO AUTOR COM BASE EM IMAGEM DE SATÉLITE DO GOOGLE (2019). 339 CONSIDERAÇÕES FINAIS CONSIDERAÇÕES FINAIS 340 Ao longo desta tese, busquei apresentar os resultados do projeto pesquisa apresentado ao PPGAS da UFRN, que teve como objetivo principal estudar a cidade do Natal abordando a visão e a experiência dos artistas atuando principalmente na rua. A questão motivadora abrangente era saber qual a relação das imagens que constituem a arte de rua com a cidade. A partir daí, no curso da pesquisa, outra questão se colocou para a reflexão: qual o papel da cidade na produção dessas imagens? Procurando responder essas questões através dos procedimentos metodológicos propostos, realizei tanto o experimento de imergir no campo de pesquisa, quanto o movimento de registrar a experiência através da fotografia e do texto. A reflexão sobre os experimentos e o registro levaram-me a considerar a existência de um processo cidade e imagem. Abordar esse processo implicou, por conseguinte, questionar como se dava a produção dessa arte da imagem produzida na rua, ou seja, importava saber o “quem”, o “como” e o “por que”. Tendo estabelecido uma dinâmica de pesquisa baseada em múltiplos procedimentos: a caminhada pela cidade, a pesquisa na literatura e nos jornais, o registro fotográfico, a frequência em eventos, e o estabelecimento de uma interlocução, passei a seguir a arte e os artistas, alcançando objetivos, respondendo as perguntas e elaborando uma hipótese. Uma última questão, que serviu como um lembrete constante da proposta de abordar a visão e a experiência dos artistas, foi qual era o sentido dessa produção imagética? Como hipótese, após “olhar, ouvir e escrever” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996), conforme apresentei anteriormente, considerei haver uma relação dinâmica entre a arte de rua e a cidade. Essa relação é marcada por processos de produção simbólica e por uma reciprocidade, ou seja, a arte traçada nos muros é produto da vida social que retorna como sínteses de experiências vividas e visões formadas do mundo. Ao decidir interferir na esfera visual da cidade, os artistas vivem o espaço urbano de forma que constroem um conhecimento e desenvolvem um saber-fazer sobre essa esfera que é realizado pela prática estética do caminhar. Os sentidos dessas interferências são variados, mas se expressam em formas, frases e personagens que partilham uma forma de ver e de agir no mundo. As intervenções da arte de rua expressam visões críticas sobre a vida social e sobre outros processos em curso na cidade. Ao construir esse conhecimento “sobre” a cidade, fazem da mesma um objeto de reflexão e, ao utilizarem-na como meio e suporte para intervenção visual, inscrevem no tecido urbano 341 suas experiências vividas geralmente durante uma trajetória, um período de suas vidas atuando intensamente na rua, nos pedaços e trajetos da cidade. Curiosamente, esse processo entre a cidade e a arte de rua, não atua unilateralmente um sobre o outro, ou seja, a cidade não permanece “passiva” enquanto é pintada, mas ela também se inscreve nas trajetórias individuais desses artistas. Ela também se inscreve nas trajetórias das pessoas comuns? A própria arte de rua pode responder a essa questão. A sua inserção na paisagem urbana, mostrou-se elemento sem o qual um quadro da cidade, hoje, pareceria incompleto. Essa imanência do graffiti, do pixo/pichação/tag/writing, do cartaz lambe-lambe e do sticker na cidade ampliou-se de tal forma que os encontramos em rodovias, pequenas cidades, áreas rurais e na floresta. Também na fotografia, no cinema e nos jogos de vídeo game, que tem a cidade como plano de fundo, a arte emerge. Essa dupla característica, ou seja, da composição da paisagem urbana e da arte feita na rua, implica numa mudança de mentalidade sobre as razões e os usos da cidade. Para alcançar os objetivos propostos e elaborar essa antropologia da cidade grafitada, foi preciso, portanto, seguir a arte e os artistas de rua. A prática da caminhada como forma exploratória da cidade trouxe outras consequências, para além do resultado do levantamento fotográfico. A ideia do caminhar se ampliou para uma troca de sentidos entre a prática etnográfica e a prática artística. Esse movimento mostrou-se ser tanto o da caminhada a pé por regiões centrais adentrando os interstícios urbanos, de ônibus de um ponto a outro; quanto a caminhada mental, fosse retornando nesses lugares por exercício de memória e da revisitação pela fotografia, fosse passeando pelos textos, pela história, pelas galerias e pelas obras de arte (INGOLD, 2015). Seguir os artistas pela via primeira de seguir a arte teve suas exigências e suas consequências. Observar e consequentemente ler a arte nos muros da cidade exigiu um exercício de aprender os aspectos de uma linguagem, um sistema simbólico (FAVRET-SAADA, 2009). Assim o estranhamento que as formas gráficas podem causar em alguns citadinos que se apavoram com a incapacidade de lê-las ou pelo que possam significar, ocorreram comigo não pelo pavor, mas pela curiosidade e pelo ímpeto de lhes dissecar a anatomia e de identificar o que lhes dava vida. As formas mais plásticas dessa arte não foram por isso mais “fáceis” de abordar, mas a manipulação de símbolos com a qual a arte trabalha pode, para além do estranhamento e da curiosidade, gerar outro sentimento no 342 citadino: uma ativação de sentidos cuja melhor tradução teórica é a da partilha do sensível e das relações que se estabelecem entre a arte e os dilemas da vida cotidiana (RANCIÈRE, 2005). Nesta altura em que é necessário fechar o ciclo da pesquisa e da escrita, a sensação de incompletude não é menos distante. O exercício etnográfico foi aqui duplamente: a) o da realização da pesquisa, e da escrita e teorização antropológica; e, b) o aprendizado de códigos e saberes específicos que permitiram a construção da presente tese e os quais levarei como aprendizado para toda a vida. Fazer essa afirmação é reconhecer que o objeto perseguido implica também num exercício de memória sobre os lugares da cidade e sobre as nossas idiossincrasias que ondulam no tempo e no espaço nesse conhecimento do mundo e de si (ROCHA e ECKERT, 2000). Essa incompletude, poderia ser dita da pluralidade que o objeto mesmo da pesquisa está constituído, não esgotando o campo e colocando sempre novas questões. No entanto, a efemeridade da arte de rua pode ser um indicativo dessa sensação, que não é necessariamente uma “falta” na elaboração do texto, mas uma percepção mesma das vibrações do fenômeno urbano. A decisão de pesquisar a cidade do Natal partiu, no entanto, da constatação de uma “falta” ou mesmo de uma “recusa” que vem a ser preenchida pela arte de rua. Também o artista de rua, num sentimento dessa falta e mesmo da precariedade percebida sobre os lugares da cidade, os equipamentos urbanos, os prédios e os espaços públicos, vêm ocupar esses lugares para visibiliza-los, visibilizar-se e para torna-los outra coisa. Esse movimento que termina por escrever biografias com imagens e grafitas em muros, o biograffiti, poetiza e politiza a esfera visual da cidade, nos espaços dos sonhares (GLOWCZEWSKI, 2015) que criam, no curso de fluxos e dos devires que oscilam entre a pulsação e a letargia da cidade. De maneira inversa, ou como resultado mesmo da pesquisa, a busca por encontrar a vida na produção imagética da arte de rua, revelou a vivificação dos espaços da cidade e a revitalização de outros, como foi o caso saliente da mancha de lazer do Beco da Lama em março de 2019 em Natal. Também a rua Gramat, ou a “Rua do Graffiti” em Toulouse na França, demonstra essa vivificação dos espaços da cidade, em uma rua dedicada a ser uma espécie de galeria de arte a céu aberto. A arte de rua mostrou-se também ser geradora de sentido para vida de seus autores na medida que lhes motiva, cria uma solidariedade de grupo e, no caso dos interlocutores desta pesquisa, lhes abre 343 um campo de possibilidades com realizações profissionais e pessoais. Enquanto oferecem uma dádiva à cidade, esta lhes recebe em suas ruas e muros, e retribui com experiências urbanas, como mostrei, de diversas ordens. O gesto da dádiva é observado no trabalho desses artistas, como em outros que povoam a cidade com uma diversidade de cores e formas. Esses trabalhos fazem da esfera visual da cidade um tecido esplêndido. Esse tecido é constituído diariamente na ousadia que muitos têm em interferir na dureza dos prédios, muros e equipamentos, nos fluxos que lhes permeiam, algumas vezes lavrados por desigualdades pungentes. A variedade e a variação das formas da arte e mesmo das formas de interferir na cidade formando imagens, constituindo paisagens, seja de forma discreta, extravagante ou saturando-a de assinaturas e formas alguns pedaços da cidade, é uma realidade partilhada em outros lugares do mundo. Guardadas suas especificidades, os artistas partilham de experiências semelhantes na trajetória na escrita e na pintura das ruas. Seja no Brasil, na Espanha ou na França, durante um período de intensa atuação nas ruas, deixam suas marcas em diversos lugares da cidade. Em algum ponto de desenvolvimento da maturidade reconduzem suas carreiras e motivações para fora das ruas. Como mencionei anteriormente, na dialética bio, etno, gráfica, vive-se a vida enquanto a trajetória é constituída e, nesse movimento, a cidade viabiliza um campo de possibilidades e se transforma. Nos trajetos e pedaços ao longo dos caminhos vive-se um sem número de emoções que vão desde a verve da criação artística, passando pela busca do reconhecimento e pelos riscos de “subverter a ordem”, até o prazer de ver a obra acabada e assinada, em diferentes lugares da cidade. Da mesma forma que o âmbito da pessoa se estende para além da circunscrição de seu corpo, ou seja, não está limitado pela pele, e a cidade se estende para além de seus limites imediatos; a arte de rua vai além de sua inscrição em muros e equipamentos urbanos invadindo vidas e mentalidades. Assim, trajetórias, grafias e arte de rua na cidade do Natal, essas linhas deambulatórias, oferecem algo para ver, pensar e viver, colocando-nos diante da imagem, quando esta mesma também nos olha e nos desafia. 344 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, R. C.; CARADE, H. O. S. "Nós por nós": visibilidade e politização entre a juventude da periferia de Salvador. Plural. Revista de Ciências Sociais., São Paulo, n. 25, 2018. ALVES, A. G. Os argonautas do mangue. Precedido de Balinese Character (re)visitado (Etienne Samain). São Paulo: Editora UNICAMP e Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2004. ALVES, G. D. O. A. A arte rupestre como expressão comunicativa da cultura. Natal/RN: IFRN, 2010. 159 p. APPADURAI, A. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niteroi/RJ.: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008. AZEVEDO, P. V. F. A cidade como um livro aberto: caligrafias urbanas nas ruas de Natal/RN. Natal: PPGCS/UFRN, 2018. (Dissertação). 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