UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS CRITICAL ART ENSEMBLE: A MÁQUINA DE GUERRA E OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros Natal – RN Agosto de 2019 Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros CRITICAL ART ENSEMBLE: A MÁQUINA DE GUERRA E OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do Título de Doutor em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas. Natal – RN Agosto de 2019 Capa: Sandro Freitas, sobre foto original do Critical Art Ensemble disponível no livro Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 21. Ficha Catalográfica Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN – Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA Medeiros, Lucas Fortunato Rêgo de. Critical art ensemble: a máquina de guerra e os arsenais antropotécnicos da revolta / Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros. – Natal, 2019. 334f.: il. color. Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019. Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas. 1. Critical Art Ensemble - Tese. 2. Arte-Revolta - Tese. 3. Micropolítica da Criação - Tese. 4. Arsenais Antropotécnicos - Tese. 5. Máquina de Guerra Artística - Tese. I. Dantas, Alexsandro Galeno Araújo. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.74:7 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva – CRB-15/710 Lucas Fortunato Rêgo de Medeiros CRITICAL ART ENSEMBLE: A MÁQUINA DE GUERRA E OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA Banca Examinadora: ____________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas – UFRN ____________________________________________________ Membro Interno – Prof. Dr. Fagner Torres de França – UFRN ____________________________________________________ Membro Externo – Prof. Dr. Márcio Romeu Ribas de Oliveira – UFRN ____________________________________________________ Membro Externo – Prof. Dr. Artemilson Alves de Lima – IFRN ____________________________________________________ Membro Externo – Prof. Dr. Pablo Moreno Paiva Capistrano – IFRN Natal – RN Agosto de 2019 Agradecimentos Meus sinceros agradecimentos à minha família, meu pai e minha mãe, Manoel e Cícera, por serem inspiração de humanidade, amor e dedicação. A minhas irmãs, Cecília e Sara, que me acompanharam nas aventuras da vida com carinho. Minha eterna gratidão. À Ravena, por estar a meu lado desde o início, e por guardar meu coração nos tempos de batalha. Ainda virão muitas outras vitórias. A meus amigos, todo meu apreço. Em especial, aos que estiveram mais próximos nos anos recentes, Edgard, Pedro, João, Tarcísio, Eliel, Sandro, Geyson, Geysa, Angélica, Renato, Mário, Nhauan, Gonzales, Jeffesron, Douglas, Philipe, Hugo, Rodolfo, Andreas e George. A Vantiê, Ilton, Rômulo, Geovane, Edson e Lisandro, por terem sido também meus professores. A meus amigos filósofos Alfredo, Williane e Everton. Meus sinceros agradecimentos aos professores e às professoras que contribuíram com minha formação. À minha primeira professora, Esther, ainda lembro de seu nome. À UFRN, uma escola de vida. Muito do que sou advém do que vivi aqui. Em especial, ao professor Alex Galeno, exemplo de humanidade no trato com o conhecimento e de dedicação ao trabalho intelectual. Tê-lo como orientador é uma das experiências mais valiosas. Às professoras Maria da Conceição de Almeida e Josineide Oliveira, e ao professor Orivaldo Lopes, pela parceria intelectual. Às professoras Norma Takeuti e Karyne Dias, pela contribuição no exame de qualificação. Aos professores Fagner França, Artemilson Lima, Pablo Capistrano e Márcio Oliveira, pela generosidade na leitura e nos comentários sobre esta Tese. Aos professores Alípio de Sousa Filho, Márcio Valença, Ilza Matias de Sousa, Daniel Lins e Eduardo Pellejero, pelo incentivo e pelo apoio acadêmico no início dessa jornada. Aos professores Hermano, Bosco, Edmilson, Douglas e Carlos, e às professoras Josimey, Kênia e Andressa. Aos meus colegas da pós-graduação em ciências sociais. Em especial, ao círculo de orientandos do Prof. Alex Galeno, Jadson, Raphael, Carlos, Igor e demais colegas. Aprendi muito com vocês. Agradeço ao Grupo de Pesquisa Marginália e ao Grecom, ao Departamento de Ciências Sociais e ao Instituto Humanitas. Professoras, professores, técnicos e demais pesquisadores. A toda equipe do Programa da Pós-Graduação em Ciências Sociais. Professores, técnicos administrativos, pesquisadores e pós-graduandos. A Otânio, secretário do PPGCS, em especial, por seu trabalho e dedicação. À equipe da Cooperativa Cultural do Campus – UFRN. Aos professores do IFRN, Flávio Ferreira, Avelino Neto e Alyson Freire, pela parceria intelectual e institucional. A meus alunos, que ao longo dos anos me incentivaram com gestos e palavras. Às instituições de ensino onde trabalhei, Hipócrates Colégio e Curso, Universidade Vale do Acaraú – UVA e Centro Universitário UNIFACEX. Às coordenações e aos colegas de profissão na área da educação. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, que financiou esta pesquisa. Em especial, meus agradecimentos a Steve Kurtz e ao Critical Art Ensemble, pela atenção em responder aos e-mails e pelos esclarecimentos. O CAE é uma inspiração para as novas gerações. Dedicado ao Critical Art Ensemble. A criação, a fecundidade da revolta estão nessa distorção que representa o estilo e o tom de uma obra. A arte é uma exigência de impossível à qual se deu forma. Quando o grito mais dilacerante encontra a sua linguagem mais firme, a revolta satisfaz à sua verdadeira exigência, tirando dessa fidelidade a si mesma uma força de criação. Ainda que isso entre em conflito com os preconceitos da época, o maior estilo em arte é a expressão da mais alta revolta. – Albert Camus, O Homem Revoltado. CRITICAL ART ENSEMBLE: A MÁQUINA DE GUERRA E OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA RESUMO Esta pesquisa versa sobre arte e política contemporâneas. O objeto de análise que dará acesso privilegiado às atuais relações estabelecidas entre arte e política é o coletivo Critical Art Ensemble (CAE), um grupo de artistas e ativistas dos Estados Unidos que há três décadas tem se dedicado a produzir uma arte com forte teor político. Nesta Tese, o CAE é considerado um dos expoentes da arte-revolta, conceito construído por meio de uma nomadologia da arte contemporânea que busca rastrear as experiências da revolta artística ao longo da história moderna. Segundo o argumento defendido nesta pesquisa, as vanguardas do século XX, ao se contraporem igualmente ao espetáculo e ao estado, construíram uma máquina de guerra para a qual a arte é política continuada por outros meios. Em sua rica história, as linhagens da arte-revolta inventaram diversas matrizes de ação que se oferecem às novas gerações como táticas de intervenção criativa na esfera pública normalmente dominada pelas instâncias políticas institucionais. Nas décadas recentes, a convergência das práticas artísticas com as lutas políticas desencadeou a emergência de micropolíticas da criação, assim denominadas toda sorte de ações individuais e coletivas que se ocupam deliberadamente da inovação e da invenção na arena da cultura. Por meio de mídia tática, performances, intervenções, ações diretas criativas, arte socialmente engajada, uma multiplicidade de grupos dão vida à resistência cultural no interior das sociedades capitalistas. Prolongando no presente o ímpeto da arte- revolta, o Critical Art Ensemble opera uma máquina de guerra com os arsenais antropotécnicos da revolta elaborados ao longo de sua carreira, que abrangem teoria crítica engajada, plágio utópico, teatro recombinante, estética do distúrbio, mídia tática, resistência eletrônica e biologia contestatária. Da teoria crítica à resistência aos maiores complexos tecnopolíticos da atualidade, o CAE produz sua guerrilha artística com determinação e inventividade. Com o objetivo de compreender o papel da arte-revolta no tempo presente, seus dilemas, suas táticas e possibilidades de ação, a pesquisa tomará a produção teórica e prática do Critical Art Ensemble como via de acesso e objeto de análise. Palavras-chave: Critical Art Ensemble; Arte-Revolta; Micropolítica da Criação; Arsenais Antropotécnicos; Máquina de Guerra Artística. CRITICAL ART ENSEMBLE: THE WAR MACHINE AND THE ANTHROPOTECHNICAL ARSENALS OF THE REVOLT ABSTRACT This research deals with contemporary art and politics. The object of analysis that will give privileged access to current relations between art and politics is the Critical Art Ensemble (CAE), a group of US artists and activists who for three decades has been dedicated to producing art with a strong political content. In this thesis, CAE is considered one of the exponents of revolt-art, a concept built through a contemporary art nomadology that seeks to trace the experiences of artistic revolt throughout modern history. According to the argument put forward in this research, the vanguards of the twentieth century, by contrasting equally with spectacle and the state, built a war machine for which art is politics continued by other means. In their rich history, the revolt-art lineages have invented various matrices of action that are offered to new generations as tactics for creative intervention in the public sphere usually dominated by institutional political instances. In recent decades, the convergence of artistic practices with political struggles has triggered the emergence of micropolitics of creation, so-called all sorts of individual and collective actions that deliberately engage in innovation and invention in the cultural arena. Through tactical media, performances, interventions, direct creative actions, socially engaged art, a multitude of groups bring to life cultural resistance within capitalist societies. Extending the momentum of revolt-art to the present, the Critical Art Ensemble operates a war machine with the anthropotechnical arsenals of revolt elaborated throughout its career spanning engaged critical theory, utopian plagiarism, recombinant theater, disturbance aesthetics, tactical media, electronic resistance and contestational biology. From critical theory to resistance to today’s largest technopolitical complexes, CAE embodies its artistic guerrilla with determination and inventiveness. In order to understand the role of revolt-art in the present time, its dilemmas, its tactics and possibilities of action, the research will take the theoretical and practical production of the Critical Art Ensemble as a way of access and object of analysis. Keywords: Critical Art Ensemble; Art Revolt; Micropolitics of Creation; Anthropotechnical Arsenals; Artistic War Machine. CRITICAL ART ENSEMBLE: LA MÁQUINA DE GUERRA Y LOS ARSENALES ANTROPOTÉCNICOS DE LA REVUELTA RESUMEN Esta investigación aborda el arte y la política contemporánea. El objeto de análisis que dará acceso privilegiado a las relaciones actuales entre el arte y la política es el colectivo Critical Art Ensemble (CAE), un grupo de artistas y activistas estadounidenses que durante tres décadas se ha dedicado a producir arte con un fuerte contenido político. En esta tesis, CAE es considerado uno de los exponentes del arte-revuelta, un concepto construido a través de una nomadología del arte contemporánea que busca rastrear las experiencias de la revuelta artística a lo largo de la historia moderna. Según el argumento presentado en esta investigación, las vanguardias del siglo XX, al contrastar igualmente con el espectáculo y el estado, construyeron una máquina de guerra para la cual el arte es política continuada por otros medios. En su rica historia, los linajes del arte-revuelta han inventado varias matrices de acción que se ofrecen a las nuevas generaciones como tácticas para la intervención creativa en la esfera pública, generalmente dominada por instancias políticas institucionales. En las últimas décadas, la convergencia de las prácticas artísticas con las luchas políticas ha desencadenado el surgimiento de micropolíticas de la creación, así denominadas todo tipo de acciones individuales y colectivas que deliberadamente se dedican a la innovación y la invención en el ámbito cultural. A través de medios tácticos, actuaciones, intervenciones, acciones directas creativas, arte socialmente comprometida, una multitud de grupos dan vida a la resistencia cultural dentro de las sociedades capitalistas. Extendiendo el impulso del arte-revuelta hasta el presente, el Critical Art Ensemble opera una máquina de guerra con los arsenales antropotécnicos de la revuelta elaborados a lo largo de su carrera que abarca teoría crítica comprometida, plagio utópico, teatro recombinante, estética del disturbio, medios tácticos, resistencia electrónica y bioresistencia. Desde la teoría crítica hasta la resistencia a los complejos tecnopolíticos de la actualidad, el CAE produce su guerrilla artística con determinación e creatividad. Para comprender el papel del arte-revuelta en el presente, sus dilemas, sus tácticas y posibilidades de acción, la investigación tomará la producción teórica y práctica del Critical Art Ensemble como una forma de acceso y objeto de análisis. Palabras-clave: Critical Art Ensemble; Arte-Revuelta; Micropolítica de la Creación; Arsenales Antropotécnicos; Máquina de Guerra Artística. CRITICAL ART ENSEMBLE: LA MACHINE DE GUERRE ET LES ARSENAUX ANTHROPOTECHNIQUES DE LA REVOLTE RESUME Cette recherche porte sur l’art et la politique contemporains. L’objet de l’analyse qui donnera un accès privilégié aux relations actuelles entre art et politique est le collectif Critical Art Ensemble (CAE), un groupe d’artistes et d’activistes américains qui se consacrent depuis 30 ans à la production d’art à fort contenu politique. Dans cette thèse, CAE est considéré comme l’un des représentants de l’art-révolte, un concept construit à travers une nomadologie de l’art contemporain qui cherche à retracer les expériences de la révolte artistique tout au long de l’histoire moderne. Selon l’argument avancé dans cette recherche, les avant-gardes du XXe siècle, en contrastant également avec le spectacle et l’État, ont construit une machine de guerre pour laquelle l’art est une politique poursuivie par d’autres moyens. Dans leur riche histoire, les lignées d’art révolté ont inventé diverses matrices d’action proposées aux nouvelles générations en tant que tactiques d’intervention créative dans la sphère publique généralement dominée par des instances politiques institutionnelles. Au cours des dernières décennies, la convergence des pratiques artistiques avec les luttes politiques a provoqué l’apparition d’une micropolitique de la création, appelée toutes sortes d’actions individuelles et collectives qui s’engagent délibérément dans l’innovation et l’invention dans l’arène culturelle. À travers les médias tactiques, les performances, les interventions, les actions créatrices directes, l’art socialement engagé, une multitude de groupes suscitent une résistance culturelle au sein des sociétés capitalistes. Prolongeant l’élan de la révolte jusqu’à aujourd’hui, le Critical Art Ensemble exploite une machine de guerre avec les arsenaux anthropotechniques de révolte élaborés tout au long de sa carrière, couvrant la théorie critique engagée, le plagiat utopique, le théâtre recombinant, l’esthétique des perturbations, les supports tactiques, résistance électronique et biologie contestative. De la théorie critique à la résistance aux plus grands complexes technopolitiques actuels, CAE produit sa guérilla artistique avec détermination et inventivité. Afin de comprendre le rôle de l’art-révolte dans le temps présent, ses dilemmes, sa tactique et ses possibilités d’action, la recherche prendra la production théorique et pratique de Critical Art Ensemble comme moyen d’accès et objet d’analyse. Mots-clés: Critical Art Ensemble; L’Art-Révolte; Micropolitique de la Création; Arsenaux Anthropotechniques; Machine de Guerre Artistique. Lista de Imagens Imagem 1 – Grupo de Criação e Estudos Integrados Gaya Scienza..................................19 Imagem 2 – Francisco Goya. El sueño de la razon produce monstruos............................60 Imagem 3 – Luigi Russolo. La rivolta, óleo sobre tela, 1911............................................63 Imagem 4 – Os Futuristas italianos. Paris, fevereiro de 1912...........................................64 Imagem 5 – Alfredo Ambrosi. Retrato de Benito Mussolini com uma vista de Roma ao fundo, 1930......................................................................................................................65 Imagem 6 – Raoul Hausmann. ABCD, colagem, 1923-1924...........................................68 Imagem 7 – Grupo Dadaísta.............................................................................................69 Imagem 8 – Os Surrealistas em Paris, 1933......................................................................70 Imagem 9 – Salvador Dalí. Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo, 1943.......................................................................................................................72 Imagem 10 – Johannes Baader. O grande plasto-dio-dada-drama, 1920..........................74 Imagem 11 – Raoul Hausmann. O crítico de arte, colagem, 1919/20...............................76 Imagem 12 – René Magritte. Memória, óleo sobre tela, 1954..........................................78 Imagem 13 – Eugène Delacroix. A Liberdade Guiando o Povo, 1830..............................84 Imagem 14 – Painel de Guy Debord............................. ...................................................85 Imagem 15 – Dispositivos micropolíticos situacionistas. Detalhe de panfleto da Internacional Situacionista...............................................................................................87 Imagem 16 – Membros da Internacional Situacionista na Conferência de Munich, em abril de 1959.....................................................................................................................88 Imagem 17 – Revolta micropolítica. Paris, Maio de 1968................................................90 Imagem 18 – Ação Global dos Povos, Praga, 2000..........................................................98 Imagem 19 – Critical Art Ensemble em 1987.................................................................102 Imagem 20 – Livros de autoria do CAE..........................................................................103 Imagem 21 – Machine World. Imagem do livro Flesh Machine, do CAE......................105 Imagem 22 – Uma das primeiras formações do CAE, 1986-87......................................113 Imagem 23 – Membros do Group Material em 1980, um dos coletivos de arte que inspiraram o CAE...........................................................................................................115 Imagem 24 – Frames de dois filmes produzidos pelo CAE............................................117 Imagem 25 – Programação e cartaz do evento Political Art in Florida (?).....................132 Imagem 26 – Critical Art Ensemble em ação multimídia durante a turnê Political Art in Florida (?)......................................................................................................................133 Imagem 27 – Ricardo Dominguez, do CAE, em uma performance multimídia na turnê Frontier Production, em 1988........................................................................................134 Imagem 28 – Pôster de autoria do coletivo Gran Fury, apresentado na campanha Cultural Vaccines produzida pelo CAE........................................................................................138 Imagem 29 – Premiação oferecida ao Critical Art Ensemble pela associação PoNY.....139 Imagem 30 – Hope Kurtz, integrante do CAE, durante a campanha do grupo com a associação PoNY em 1990.............................................................................................140 Imagem 31 – Steve Kurtz do CAE em ação durante uma apresentação na turnê Frontier Production.....................................................................................................................142 Imagem 32 – Hope Kurtz do CAE em ação durante uma apresentação na turnê Frontier Production.....................................................................................................................142 Imagem 33 – Artists’ Books do Critical Art Ensemble...................................................145 Imagem 34 – Exemplo de uma intervenção nômade na vida cotidiana...........................160 Imagem 35 – Dorian Burr do CAE performando uma cena do Teatro Recombinante....162 Imagem 36 – CAE, Teatro Recombinante, Culto da Nova Eva na World Information Exhibition, Bruxelas, 2000.............................................................................................164 Imagem 37 – Flesh Machine, projeto e campanha do CAE, 1997-98. Dorian Burr e Steve Kurtz..............................................................................................................................167 Imagem 38 – Apresentação do programa BioCom utilizado nas campanhas sobre biotecnologias................................................................................................................169 Imagem 39 – Uma arte do CAE usada na campanha Flesh Machine sobre biotecnologias................................................................................................................170 Imagem 40 – Dorian Burr em uma performance do CAE...............................................172 Imagem 41 – Fator-X: Matriz Conceitual do Distúrbio (elaboração do autor)................186 Imagem 42 – By any media necessary. Imagem de autoria do CAE, 1999......................193 Imagem 43 – Vista da instalação Cult of the New Eve, Museu de Arte Contemporânea, Toulouse, França, 2000..................................................................................................203 Imagem 44 – Visão da performance Cult of the New Eve, no saguão do Hospital St. Clara, em Rotterdam, 2000.......................................................................................................205 Imagem 45 – Grupo de pesquisa e desenvolvimento da campanha GenTerra no laboratório da Universidade de Pittsburgh, em 2001......................................................207 Imagem 46 – O espetacular difuso. Imagem publicada na revista da Internationale Situationniste.................................................................................................................224 Imagem 47 – Ilustração do livro Distúrbio Eletrônico, do CAE.....................................226 Imagem 48 – Imagem de autoria do CAE presente no livro The Electronic Disturbance...................................................................................................................257 Imagem 49 – Edição italiana do primeiro livro do CAE: Sabotaggio Elettronico. Il primo gruppo americano di critica e attacco ai mass media. Castelovecchi, 1995...................269 Imagem 50 – Ilustração do livro Flesh Machine, do CAE..............................................275 Imagem 51 – Capa do livro GURPS Cyberpunk, de 1990...............................................287 Imagem 52 – Ricardo Dominguez, ex-membro do CAE e integrante do Electronic Disturbance Theatre, em um protesto de rua..................................................................295 Imagem 53 – Electronic Disturbance Theatre 2.0..........................................................298 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 18 CAPÍTULO 1 NOMADOLOGIA DA ARTE-REVOLTA: A Máquina de Guerra Artística 52 CAPÍTULO 2 POR DENTRO DO CRITICAL ART ENSEMBLE: Arte e Revolta no Coração do Império 102 CAPÍTULO 3 OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA: A Estética do Distúrbio 143 CAPÍTULO 4 RESISTÊNCIA CULTURAL: Transformar o Mundo, Mudar a Vida 215 CAPÍTULO 5 SUBVERTENDO A MÁQUINA: Resistência e Desobediência Civil Eletrônica 264 CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA UMA SOCIOLOGIA DA REVOLTA 300 REFERÊNCIAS 314 APÊNDICES 327 18 INTRODUÇÃO Esta pesquisa que ora se apresenta faz parte de uma trajetória intelectual marcada igualmente pelas Ciências e pelas Artes. Desde a Graduação em Ciências Sociais que nutro um crescente interesse pela arte contemporânea, tanto que, na época, imerso na vivência universitária, a vontade de criar entre amigos deu origem a um grupo com a intenção de realizar uma série de estudos temáticos nas artes, nas ciências e na filosofia. O grupo ganhou vida e, aproveitando a verve poética de seus membros, aventurou-se também nas artes experimentais. A ideia de impulsionar a prática artística com o pensamento teórico, e vice-versa, tornou-se uma realidade coletiva desde o momento em que o grupo assumiu o desejo de se dedicar à criação em suas variadas formas, acadêmicas e estéticas.1 O nome assumido pelo coletivo reflete bem essa vontade: Grupo de Criação e Estudos Integrados Gaya Scienza, assinatura em si totalmente conceitual. No mesmo período, foram realizadas performances, publicações poéticas, apresentações musicais, instalações e exposições artísticas, bem como palestras dentro e fora da universidade. As criações e os estudos com os amigos continuaram por algum tempo e resultaram também em um amplo material escrito. Durante o Mestrado em Filosofia, enquanto cursava as disciplinas, foi o momento de editar parte do material do grupo para publicação. Em parceria com o CCHLA e a Editora da UFRN, o livro foi impresso e publicado no verão de 2010 com o título Machinapolis e a Caosmologia do Ser.2 Nele o grupo apresenta os resultados de sua experiência micropolítica com as artes e uma vasta pesquisa teórica sobre a megamáquina de guerra planetária em seus aspectos políticos, econômicos, epistêmicos e tecnológicos. Foi nessa dinâmica de pesquisa e ação que, pela primeira vez, tive contato com o Critical Art Ensemble (CAE), um coletivo formado por artistas ativistas dos Estados Unidos, que une teoria crítica, tecnologia e política radical. Na obra Distúrbio Eletrônico, publicada em português pela Conrad Editora do Brasil em 2001, as análises sociológicas e filosóficas são constantes, e além de menções a pensadores estudados na academia (Nietzsche, Foucault e Baudrillard são citados textualmente), há diversas referências a 1 Para uma pequena amostra da produção do autor e do grupo, ver Apêndice 1. 2 Lucas Fortunato; Edson Gonçalves Filho; Lisandro Loreto. Machinapolis e a Caosmologia do Ser. Natal: EDUFRN, 2010. Livro publicado nas versões impressa e digital. Disponível em https://cchla.ufrn.br/publicacoes/downloads/livro_machinapolis.pdf 19 autores outsiders (como Artaud, Debord e Hakim Bey) e movimentos artísticos (como o Dadaísmo, o Surrealismo e os Situacionistas, o Fluxus e o Living Theater), com o que se tem uma amostra da riqueza de referências trazidas à discussão contemporânea pelo grupo. Justamente, algumas das leituras que inspiravam as atividades e os estudos que realizávamos naquela época. Com tantos pontos em comum, a afinidade foi praticamente imediata, e desde então, acompanho a produção do CAE com interesse.3 Imagem 1 – Grupo de Criação e Estudos Integrados Gaya Scienza no lançamento do livro Machinapolis e a Caosmologia do Ser, em 2010. Da esquerda para a direita: Edson Gonçalves Filho, Lisandro Loreto e Lucas Fortunato. Fotografia por Verena Viana. Arquivo pessoal do autor. Meu interesse como intelectual e pesquisador sempre foi o de refletir sobre as formas de pensar e agir que expressam práticas e linguagens consideradas de resistência. A busca pela emancipação, pela autonomia e a correlata emergência de formas de viver, agir, pensar e se relacionar diferenciadas, nada mais são do que expressões de uma atitude social que se pode denominar de resistência. Na vasta linguagem teórica das ciências sociais a temática da resistência tem sido uma constante desde os movimentos sociais clássicos, inclusive, com relação à revolta que, segundo Albert Camus e Julia Kristeva, 3 No livro do Grupo Gaya Scienza, os autores tratam o Critical Art Ensemble como um “grupo de criação e estudos” que promove uma “práxis artístico-filosófica”. Cf. Machinapolis e a Caosmologia do Ser, pp. 80 e 186, respectivamente. 20 há pelo menos dois séculos tem dado o tom na história política e nas artes ocidentais. Foucault foi um dos pensadores que se debruçou sobre o problema do poder e nas suas investigações genealógicas estabeleceu referenciais para se pensar formas de resistência aos poderes que até hoje repercutem na teoria crítica e no campo dos movimentos sociais. Quando decidi cursar o Doutorado, a ocasião se mostrou ideal para reativar os contatos com a produção do Critical Art Ensemble. Enquanto elaborava o projeto, a sociedade brasileira se deparava uma vez mais com o problema da crise dos valores, que no plano sociopolítico aparece como perda de representatividade política e de legitimidade das figuras de autoridade. Para não recair na investigação de instâncias puramente institucionais optei por pensar formas criativas, positivas e afirmativas que se elaboram nesse contexto como forma de resistir aos poderes estabelecidos. Fiel à trajetória desenvolvida até então, ao invés de tratar diretamente da política institucional com seus partidos e sindicatos (geralmente focados pela ciência política), mantive meu interesse alinhado aos estudos de práticas sociais e culturais emergentes, ou mais especificamente, aquelas advindas da resistência e do dinamismo contemporâneos que não passam necessariamente ou prioritariamente pelas vias institucionalizadas. No campo da reflexão e da teoria, tenho inclinações ao pensamento crítico, sobretudo francês, produzido desde o pós-guerra, e com essa base elaborei o projeto de pesquisa para o doutorado. O pré-projeto apresentado para a seleção teve por temática a resistência artística e o cuidado de si na cibercultura. Não é de hoje que a tecnologia gera um sentimento ambíguo de fascinação e desconfiança. Historicamente, a geração da qual faço parte acompanhou de perto a entrada das sociedades em sua dinâmica maquinocêntrica, e tem, portanto, algo a dizer quanto a isso. As relações homem-máquina hoje quase onipresentes nas metrópoles tornaram-se fatalmente objeto de estudos, questionamentos e reflexões. A conjunção de vivências pessoais, acadêmicas e culturais assim apresentadas talvez explique a escolha epistemológica desta pesquisa. O certo é que nos últimos anos, a incorporação incessante de dispositivos digitais na vida cotidiana tornou evidente mudanças comportamentais, perceptivas, cognitivas e culturais, e enquanto sociólogo, quis pensar acerca de como as máquinas entram nas relações que os sujeitos estabelecem consigo para se constituírem enquanto tais valendo-se do uso das tecnologias a seu dispor. Para efeito de análise empírica então escolhi o Critical Art Ensemble, na intenção de pesquisar o uso das tecnologias nas práticas artísticas de resistência, supondo que o grupo ofereceria a oportunidade para uma análise privilegiada do fenômeno. 21 Durante o curso do doutorado a ideia inicial do projeto se modificou. Os elementos principais continuam presentes, o que mudou foi a maneira de colocar o problema. Não mais a maquínica do ser em função do sujeito, do cuidado de si, senão que em relação à arte na sua dimensão cultural e política como expressão da revolta. Como se vê, a abordagem da problemática foi modificada para abarcar uma maior amplitude de análise. A intenção passou a ser a de focar a arte-revolta do Critical Art Ensemble, articulando tematicamente a questão da tecnologia (muito presente na teoria e na prática do grupo) por um duplo viés, ao mesmo tempo como efeito de poder e meio de resistência. Assim, a questão da subjetivação maquínica, que a princípio aparecia em primeiro plano, torna- se um tema transversal que adquire seu sentido no interior da discussão sobre como a revolta atua no campo mais amplo da cultura constituindo micropolíticas da criação. A problematização da arte-revolta, que em si já implica processos de subjetivação, será remetida aos conteúdos críticos produzidos pelo CAE (a tecnologia, a arte, a ciência e o pancapitalismo), quando então a discussão sobre a resistência vem para o primeiro plano com suas táticas correspondentes ao nível tecnológico atingido pelas atuais sociedades de controle. Assim, cruzando trajetórias que acoplam as caóides do pensamento,4 esta pesquisa tematiza a arte, a revolta, a política e as tecnologias, ao vincular o pensamento contemporâneo à produção micropolítica do Critical Art Ensemble. Considerando que o doutorado é a culminância da formação acadêmica stricto sensu, a pesquisa foi pensada levando em conta ao menos três finalidades que necessariamente se articulam entre si: adquirir conhecimento aprofundado e atual sobre a temática da resistência cultural no seu sentido mais amplo (reserva cognitiva); consolidar um campo de pesquisa no interior do universo acadêmico das ciências sociais (com a abertura de uma linha de pesquisa que faz dialogar as artes, a cultura e as tecnologias); e por fim obter as credenciais que me habilitem e propiciem a orientação em trabalhos, estudos e pesquisas no campo temático das resistências, sobretudo as que se valem das artes e das tecnologias como meios de expressão de novas linguagens. 4 “Numa palavra, o caos tem três filhas segundo o plano que o recorta: são as Caóides, a arte, a ciência e a filosofia, como formas do pensamento ou da criação. Chamam-se caóides as realidades produzidas em planos que recortam o caos”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Do caos ao cérebro”, in O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, p. 267. 22 Critical Art Ensemble Dando prosseguimento a uma perspectiva sociológica adotada desde a graduação de estudar no campo social o que lhe dá movimento e renova, o que estou denominando micropolíticas da criação, compostas por práticas socioculturais emergentes – e para contemplar as investigações empíricas na pesquisa do doutorado escolhi como objeto de estudo o Critical Art Ensemble (CAE). Trata-se de um coletivo oriundo de Nova York que tem se destacado internacionalmente desde a década de 1990 devido a uma vasta produção teórica, prática, cultural e artística. O CAE elabora formas de intervenção na esfera pública por meio do que chamam social practices, formas de expressão culturais por vezes denominadas artísticas que se amparam em discussões científicas e filosóficas para problematizar questões políticas de interesse social. A abordagem do grupo se diferencia das formas de ativismo político tradicional pois não atualiza o proselitismo tão caro aos modelos de resistência clássicos. Ao invés disso, como o nome do grupo indica, ele pratica uma arte que, no contato direto com a produção cultural, coloca na esfera pública problemáticas acerca das apropriações capitalistas de tecnologias e discursos científicos que ameaçam a autonomia dos indivíduos e do pensamento ao reforçar tendências autoritárias na esfera da cultura. A fim de combater essas tendências o coletivo levanta questões políticas relevantes em torno dos mass media e do complexo biotecnológico, duas das principais linhas temáticas trabalhadas pelo grupo, tanto em performances, quanto na produção teórica (o CAE já conta com oito livros publicados e traduzidos em diversos idiomas). O meu interesse ao escolher o CAE foi o de aprofundar a discussão teórica sobre as resistências artísticas e culturais contemporâneas que se valem das artes e das tecnologias para expressar-se na arena pública. Essa abordagem assumida no doutorado tem o mérito de retomar os estudos e as pesquisas que desenvolvo desde a graduação sempre calcado na discussão teórica e na análise empírica.5 O estudo do CAE se justifica por vários motivos. Em primeiro lugar, por seu pioneirismo no tratamento crítico e político, teórico e prático, dado à arte e à tecnologia sob o viés da resistência. Os dois primeiros livros do grupo foram inteiramente dedicados a refletir sobre a resistência eletrônica quando o ciberativismo ainda parecia ficção 5 A primeira parte do livro Machinapolis e a Caosmologia do Ser é o resultado mais expressivo dessa afirmação. Cf. Lucas Fortunato, Edson Gonçalves Filho e Lisandro Loreto, “Uma nomadologia da criação poética em atos”, in Machinapolis e a Caosmologia do Ser, p. 35ss. 23 cyberpunk aos olhos da resistência tradicional (The Eletronic Disturbance foi publicado em 1994 e Eletronic Civil Disobedience em 1996). No entanto, o motivo principal é outro. O que justifica o estudo desse grupo em especial é o reconhecimento de sua trajetória que já dura mais de 30 anos inteiramente dedicados a questionar o mundo a seu redor e promover novas formas de se fazer arte, ciência e ativismo. Uma avaliação lúcida de seu legado levará qualquer crítico de arte a colocar o grupo em lugar de destaque na história da arte-revolta. As ferramentas conceituais forjadas no calor da batalha e a elaboração de métodos de ação no constante voltar-se sobre as novas condições de possibilidade (técnicas e políticas) da resistência estão entre as mais sofisticadas que se tem conhecimento no circuito da arte internacional recente. O portal Creative Capital atribui ao grupo uma série de premiações: Seu trabalho foi coberto por revistas de arte, incluindo Artforum, Kunstforum e The Drama Review. Critical Art Ensemble recebeu inúmeros prêmios, incluindo o Prêmio de Liberdade de Expressão Artística em 2007 da Fundação Andy Warhol Wynn Kramarsky, o Prêmio de Multimídia John Lansdown em 2004 e o Prêmio Leonardo New Horizons de Inovação em 2004.6 Enquanto uma miríade de artistas, grupos e bandas se lançam nas autopistas da informação de braços dados com os tentáculos do mercado espetacular sem qualquer reserva, o CAE assume uma postura crítica que o coloca no prolongamento atual das linhagens da arte-revolta que remontam às vanguardas revolucionárias do século XX, fazendo jus ao nome que escolheu para si. Mais do que um simples coletivo de artistas, o CAE se coloca em várias frentes de ação, até mesmo na produção de obras teóricas nas quais empreende um tratamento transdisciplinar aos problemas abordados. As tecnologias, por exemplo, são tematizadas pelo viés crítico, político e artístico, de forma teórica e engajada, com a mobilização de conteúdos científicos e filosóficos dos mais prestigiados na história do pensamento crítico contemporâneo. A bibliografia produzida pelo Critical Art Ensemble conta com 8 livros e diversos artigos publicados e traduzidos para vários idiomas, somando-se a uma vasta produção de vídeos (da primeira fase do grupo) e de exposições, performances e 6 Cf.: https://creative-capital.org/artists/critical-art-ensemble/steve-barnes/ Acesso 1 de julho de 2019. “O Creative Capital apoia artistas inovadores e aventureiros em todo o país com financiamento, consultoria, reuniões e serviços de desenvolvimento de carreira. O Creative Capital busca ampliar as vozes de artistas que trabalham em todas as disciplinas criativas, e catalisa conexões para ajudá-los a realizar suas visões e construir práticas sustentáveis”. Cf. https://creative-capital.org/about-us/ Acesso 1 de julho de 2019. 24 intervenções dentro e fora de museus, em galerias, nas ruas, na internet, nas Américas, na Europa e na Ásia. Por isso, ao invés de considerar o Critical Art Ensemble um coletivo de artistas, será mais adequado tratá-lo como um grupo de criação e estudos integrados, assim compreendido pois, além da criação no campo das artes, o CAE empreende estudos teóricos e pesquisas empíricas, agenciando conteúdos científicos e filosóficos. Uma produção prolífica como esta permanecerá atual por muito tempo, sem dúvida, afinal, o grupo coloca no centro de suas atenções problemas cruciais da época que estão longe de serem resolvidos, infelizmente: a tecnologia a serviço do poder e suas implicações na produção das subjetividades, no âmbito social e, mais atualmente, no campo ecológico (temática desenvolvida nas últimas produções do grupo). A criticidade do Art Ensemble tem características próprias, coloca em xeque o poder autoritário que se materializa em tecnologias de controle, em discursos de verdade, nas práticas cotidianas, nas instituições e na máquina de guerra planetária do capitalismo. Como o próprio nome do grupo indica, a inteira produção do coletivo tem uma veia crítica, o que lhe rendeu boas aventuras no coração do império. O pensamento complexo do grupo, marcadamente artístico, científico e filosófico, ao expor um forte teor crítico faz valer uma obstinação por desvelar as zonas escuras do poder onde subjaz a fragilidade das pretensas fundações ordenadoras do mundo. Tal pensamento, animado por uma verve contestadora e insurrecional, criativa e irreverente, faz explodir pelos ares os discursos normalizadores e coloca em primeiro lugar os princípios libertários que se quer expandir na esfera da cultura.7 Nesse sentido, é possível identificar com facilidade o viés contemporâneo, atual e inovador de suas obras, no sentido empregado por Giorgio Agamben:8 um pensamento que, ao se deslocar em relação às estruturas dominantes, refaz o trajeto mantendo sua diferença pela perspectiva crítica direcionada ao tempo presente, mas que, ao mesmo 7 Historicamente, o termo libertário é usado nos círculos anarquistas para designar um espectro de simpatizantes aos ideias ácratas que não se autodenominam anarquistas. De acordo com Nicolas Walter, o anarquismo possui na sua genealogia influências do socialismo e do liberalismo, que lhe antecederam. Porém, é distinto de ambos. O anarquismo possui muitas linhagens e ramificações, é portanto plural. O que há em comum nas várias linhagens é a recusa a toda forma de autoritarismo e opressão que se abate sobre o indivíduo e a sociedade. Enquanto movimento social, o anarquismo surgiu como expressão da revolta contra o capitalismo industrial, e de fato e por definição é anticapitalista até hoje. Cf. Nicolas Walter. Do anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000. O termo libertário empregado nesta Tese designa o caráter emancipatório, afirmativo da vida e do valor do ser humano em termos ecosóficos. Cf. Félix Guattari. As três ecologias. Campinas: Papirus, 2007, p. 23. O CAE não possui inclinação política definida. As inspirações do coletivo são discutidas no Capítulo 4 – Resistência Cultural: Transformar o Mundo, Mudar a Vida, mais especificamente no tópico Situações e Revolução Cultural Permanente. 8 Giorgio Agamben. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009, p. 58- 62. 25 tempo, se coloca sempre em favor de um tempo porvir. É portanto um pensamento vital, prospectivo, libertador e intempestivo como definido por Nietzsche.9 Para Agamben, “o contemporâneo é o intempestivo”, e nesse sentido, é quem mantém uma relação com o presente numa desconexão e numa dissociação, e por isso, é mais capaz do que os outros de perceber e apreender o seu tempo. Isto significa que somente quem dispõe da postura de pensamento capaz de se relacionar com o tempo sem a ele se render possui as condições adequadas para ver a época de uma perspectiva que não coincide com os discursos e as visibilidades instituídas. A contemporaneidade do pensamento é algo raro de se encontrar pois o contemporâneo estabelece uma “relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo”, o que pressupõe coragem de pensar o não pensado com uma postura singular que se coloca entre as rachaduras do que se vê e do que se diz na história. Destarte, para o contemporâneo, é necessário manter fixo o olhar no seu tempo, e perceber não as luzes, mas o escuro. Enquanto sentinela do tempo presente, o Critical Art Ensemble aposta na força do entusiasmo, no questionamento, na postura cética e no desejo por liberdade, os mesmos princípios que impulsionam as resistências antiautoritárias. Por tudo isso o CAE vem se destacando entre os coletivos praticantes da arte-revolta, e justamente por dar vida a uma arte inteiramente crítica, política e contemporânea é que se torna o objeto privilegiado nesta pesquisa. 9 Cf. Peter Pál Pelbart, “Nietzsche, pensador da cultura”, in Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 208. Ver Friedrich Nietzsche. Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p. 7: “ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro”. 26 A Tarefa do Pensamento Contemporâneo A ideia central desta pesquisa é abordar o Critical Art Ensemble e seu legado do ponto de vista artístico e político. Com esse objetivo, o propósito inicial é destacar o papel da arte do grupo na construção de matrizes teóricas e práticas, discursivas, imagéticas, estéticas e micropolíticas que se inscrevem no prolongamento histórico contemporâneo da arte-revolta. Assim, as formas de expressão artísticas e micropolíticas do grupo são tomadas no registro histórico da cultura-revolta mais ampla, das quais a resistência pode reter o exemplo e apoderar-se de possíveis contribuições oriundas da rica discussão sobre as relações da arte com a política e a cultura de seu tempo. Fazer das experiências do CAE objeto de reflexão, conhecimento e crítica, permite entender o movimento histórico de uma perspectiva privilegiada, pois o que se coloca em destaque com isso são problemáticas fundamentais da civilização mundial: a política tecnológica ou a máquina política, a revolta artística enquanto catalisadora de movimentações sociológicas na cultura. Ao lidar com o grupo, o que se pretende enfatizar nesta pesquisa são exemplos vivos e criativos do que a arte-revolta contemporânea é capaz de inventar e produzir quando assume uma postura ativa face ao mundo, ao mesmo tempo em que se evidencia o sentido da crítica às estruturas de dominação e captura há muito investidas para minar as potências da revolta e seu apelo junto às massas. Com base nisso, as problemáticas suscitadas pela retomada das vanguardas, suas possíveis superações, as contradições bem ou mal resolvidas, os impasses, mesmo as aporias, podem lançar luzes sobre a arte contemporânea e as infinitas possibilidades de ação e transformação desencadeadas pela resistência, justo no momento em que o neoliberalismo, com todas as agências do espetáculo, investe o máximo para reificar uma dominação que tenta impedir o pensamento crítico em geral e a arte-revolta em especial de realizarem-se autenticamente na época. Hoje, como há muito, a tarefa do crítico contemporâneo tem contra si uma arte neutralizada e convertida em mero entretenimento. Não bastasse o fato da arte espetacular ter sido esvaziada de suas origens críticas pela cooptação das técnicas inventadas pelas vanguardas históricas, o crítico ainda precisa lidar com a imensa profusão da cultura- entretenimento que tem desqualificado a vocação crítica das artes e do pensamento. No contexto atual do espetáculo integral, a arte-revolta que resiste encontra-se literalmente soterrada pela saturação massiva de arte espetacular que se avoluma indefinidamente. 27 O tempo presente, saturado de espetáculos e mercadorias, gadgets e simulacros, carece de um estilo de arte crítica e igualmente de um pensamento atento às proezas da revolta, uma das potências da resistência da vida às investidas do capitalismo e sua máquina de destruição incondicionada. Na concepção de Julia Kristeva, a arte e a cultura- revolta estão ameaçadas e em alguns casos até mesmo impossibilitadas: Não a arte ou a cultura-show, nem a arte ou a cultura-informação consensuais favorecidas pelas mídias, mas justamente a arte e a cultura- revolta. E quando essas se produzem, acontece que mostram formas tão insólitas e brutais que seu sentido parece perdido para o público. Com isto, cabe a nós sermos os doadores de sentido, os intérpretes.10 Nesse cenário, talvez mais do que nunca, o trabalho crítico do pensamento, como enfatiza Kristeva, precisa ser revalorizado como um dos suportes fundamentais para o universo das artes contemporâneas. Cabe aos intelectuais o papel de doadores de sentido, de intérpretes das manifestações artísticas de seu tempo, seja por meio da crítica artística, seja por meio das ciências ou da filosofia. Kristeva inclui o trabalho crítico na experiência estética contemporânea: estamos mais do que nunca diante da necessária e inevitável osmose entre realização e interpretação, o que implica também uma redefinição da distinção entre crítica, de um lado, e escritor ou artista, de outro.11 Ao crítico cabe ter a sensibilidade e a lucidez de destacar, entre tantas produções, a originalidade e a singularidade de uma obra artística, de um processo estético. Com isso, o que se pretende não é erigir monumentos, mas apropriar-se do pensamento contemporâneo, voltá-lo às práticas artísticas que se instalam nas rachaduras da época, igualmente contemporâneas no sentido empregado por Agamben, para dotá-las de sentido sensível, cognitivo e político. Em suma, a tarefa do crítico, enquanto contemporâneo, é iluminar o valor da experiência-revolta lá onde ela se manifesta criadora de novos valores e modos de pensar, sentir, imaginar, agir, ser e viver enquanto afirmações da vida. No contato com o grupo e suas produções, fundamentalmente do que se trata é de impulsionar a reflexão e o pensamento, que são levados a questionar e problematizar a pertinência dos fenômenos estudados em relação ao que se pensa e se vive no presente, 10 Julia Kristeva, “A cultura-revolta”, in Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da psicanálise I. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 24-25. 11 Julia Kristeva, Sentido e contra-senso da revolta, p. 25. 28 ou seja, como forma de auxiliar na tarefa sempre por se fazer de interpretar o atual a fim de melhor compreender os processos que fizeram o presente o que ele é, e assim, quem sabe, lançar luzes sobre aquilo que, do ponto de vista da revolta, precisa ser transformado mediante uma série de trabalhos coletivos necessariamente criativos em suas dimensões éticas e estéticas. Nesse sentido, o CAE será tomado no interior de um pensamento que fará do próprio grupo estudado um operador conceitual, cognitivo e reflexivo, um meio de contato e uma via de acesso privilegiado a problemáticas atuais mais amplas, de caráter político, cultural e, em certos casos, ecosófico, planetário, o que certamente contribuirá para a elaboração de uma ontologia do presente. A Questão da Revolta O Critical Art Ensemble ocupa um lugar de destaque na arte-revolta contemporânea tanto por sua trajetória quanto pela rica produção em torno de temas atuais. No grupo, a revolta encontra sua configuração micropolítica, sua máquina produtiva e seu canal de expressão. Convém, por isso, esclarecer a questão da revolta no contexto teórico escolhido nesta pesquisa. O significado da palavra revolta não foi o mesmo em todo momento histórico. Na realidade, tem variado conforme a época e o contexto no qual é usada. De acordo com Alex Galeno, “Kristeva recupera a plasticidade do termo e estabelece outros vínculos com o contexto histórico. Uma revolta não desconectada da realidade política e propiciadora de um novo encantamento da subjetividade dos indivíduos e da própria palavra”.12 Há portanto uma plasticidade que é preciso considerar ao tratar do sentido atribuído à expressão. A história da revolta pode ser acompanhada pela genealogia de palavras cujos significados, nos últimos séculos, modificaram-se conforme o contexto social e epistemológico.13 A palavra revolta tem uma história semântica que remete a uma linhagem de palavras durante algum tempo usadas para designar o deslocamento dos corpos celestes no espaço, significando algo parecido com a revolução dos astros em torno de si e no 12 Alex Galeno. Antonin Artaud: a revolta de um anjo terrível. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 100. 13 Acompanha-se aqui a etimologia histórica da palavra apresentada por Julia Kristeva. Cf. “A palavra ‘révolte’ [revolta]: o movimento” e “A palavra ‘révolte’: o tempo e o espaço”, in Sentido e contra-senso da revolta, p. 14-18. 29 curso de uma órbita. Semelhante sentido foi empregado no uso de palavras ligadas ao tempo para representar o fim de um ciclo e o início de outro. Em ambos os casos, rotação, ciclo e retorno estavam associados à palavra latina volvere, voltar, retornar, em sentido espacial e temporal. Transposta do contexto astronômico e astrológico, a palavra adquiriu pouco a pouco um significado estratégico, social e por fim político de mudança. Revolta só passou a significar revolução social, tal como empregada no sentido moderno hoje conhecido, na passagem do século XVII para o século XVIII, quando a expressão foi popularizada com os acontecimentos políticos aos quais era associada. Neste período, deve-se a Voltaire o emprego de révolte como guerra civil, perturbações, guerra e finalmente revolução. A revolta como fenômeno social e político de rejeição da autoridade, portanto, foi moldada na história das convulsões sociais e por isso carrega em si o sentido de uma mudança de direção, um retornar a um novo começo, pôr fim a um estado de coisas e dar início a um movimento em nova direção. Atualmente, a questão da revolta se coloca na arte e na política com igual importância. O que Kristeva diz na década de 1990 sobre a perda da força da cultura- revolta e a sua substituição quase completa pela cultura-espetáculo na Europa, também se aplica aos tempos presentes, quiçá, com maior intensidade. É verdade que o pensamento crítico e a arte-revolta conseguem criar espaços, abrir brechas, escavar túneis, atravessar o espetáculo, porém, quase sempre destinados a séquitos de extraviados. De um modo geral, o espetáculo integral abarcou a dimensão subjetiva com a interatividade generalizada tornando-se hegemônico sem qualquer força contrária capaz de lhe fazer oposição frontal. Realmente, a conjuntura não é das melhores para o pensamento crítico. No campo das artes, há muitas expressões, das mais diversas, talvez como nunca antes. Porém, se a arte-entretenimento não conta para o campo da revolta, mesmo considerando as artes de contestação, a arte-revolta tem rivalizado com o niilismo artístico que se desdobra em várias vertentes. Assim, o espetáculo e o niilismo tentam se sobrepor a toda investida da cultura-revolta, que não vê outra saída a não ser resistir. Não fosse o bastante, o tempo presente perdeu a noção de qualquer medida. Não reconhece mais a revolta nem o seu valor. Cumpre, portanto, esclarecer do que se trata quando a questão se coloca. Albert Camus pergunta na abertura de seu livro sobre o assunto: “Que é um homem revoltado?”. A resposta é dada de uma forma simples e direta: “Um homem que 30 diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento”.14 Em termos teóricos, a revolta pressupõe um tipo de atitude que é afirmativa e negativa ao mesmo tempo. Há portanto características próprias com relação às quais se pode identificá-la. Conceitualmente, não se pode falar de revolta como pura negatividade pois lhe falta o caráter criador, do mesmo modo, não se pode falar de revolta nos casos em que só há afirmação. A pura negação, por ser absoluta, recusa a parte aproveitável e positiva do mundo, enquanto a afirmação total é na realidade aceitação, o contrário da revolta, pois admite o que é intolerável do ponto de vista da vontade de transformação inerente ao ato de revoltar-se. Nos dois casos se extrapola e desvirtua o movimento da revolta por excesso, suprimindo assim a tensão pela qual se mede a vontade característica da revolta e pela qual se reconhece sua ação no mundo. A abordagem do estudo se fará por via do conceito arte-revolta inspirado na compreensão de Albert Camus e Julia Kristeva. Para Camus, a revolta se coloca no campo das lutas e dos valores éticos, e por esta via atinge a arte e a política. Kristeva, por sua vez, aproxima-se da revolta pela psicanálise e pela linguagem. Na perspectiva de Camus, a revolta tem sido uma característica das mais presentes na história moderna e está estreitamente relacionada com o fenômeno do niilismo entendido como o descrédito de todos os valores éticos ou morais. Nas sociedades ocidentais modernas, a disparidade entre a expectativa de liberdade e os constrangimentos dos poderes desencadeia uma imensa efervescência da revolta, que se projeta historicamente nas artes, na literatura, na filosofia e, claro, nas insurreições sociais que dão o tom da época. A relação da revolta com o niilismo no entanto é ambivalente, pois embora a revolta encontre no ambiente anômico do niilismo um espaço para eclodir e se desenvolver, o homem revoltado sente a necessidade de uma medida para contrapor ao poder ilimitado a que se entregam os niilistas que não reconhecem valor algum, nem divino, nem humano, ou que demonstram-se conformados definitivamente, sem qualquer reserva, ao que existe. Por isso, a revolta é, para Camus, um movimento libertário do indivíduo que reconhece o seu valor ante uma dominação considerada ilegítima, injustificável ou intolerável. 14 Albert Camus. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 25. 31 Nesse sentido, o movimento da revolta atravessa a história na incessante luta do ser contra a opressão da figura humana, com efeitos claramente discerníveis no campo político e presentes também nas artes embora nem sempre de forma evidente. Na concepção ético-filosófica que é a de Camus, portanto, o essencial é diferenciar a revolta, definida em termos libertários, da atitude niilista que não reconhece qualquer princípio ou coloca algum valor acima da vida, o que resulta em última instância na aceitação da tirania e da servidão. Em Kristeva, a questão da revolta se formula pela via da psicanálise e designa a insurgência transgressora de forças psíquicas desencadeadas pela realização do princípio de prazer. Embora seja possível conjecturar sobre a eclosão de forças inconscientes em vias de realizar-se a despeito de quaisquer parâmetros, a revolta não se define necessariamente por esta via, pois que a revolta supõe uma elaboração de sentido. O certo é que a revolta, nesta abordagem, adquire um sentido subjetivo, íntimo e por vezes inconsciente. Na dimensão psicológica a revolta pode significar a rebelião do desejo contra as imposições do princípio de realidade encrustado na individualidade, ou então contra as exigências externas demasiado opressoras da sociedade, o que pode coincidir. A instância interior é considerada importante pois se existe algum sentido profundo que desencadeia a revolta é lá que se deve procurar, ainda que seja para se deparar, se não com uma completa ausência de sentido, com a insurgência de um contra-senso crítico. Mas assim como em Camus, Kristeva distingue a revolta da postura niilista: O niilista não é um homem re-voltado no sentido que vocês agora entendem este termo aqui depois que nós desenvolvemos pacientemente o significado no ano passado. O niilista pseudo- revoltado é, de fato, um homem reconciliado na estabilidade de novos valores. E essa estabilidade ilusória revela ser mortífera, totalitária. Eu não insistirei jamais o suficiente sobre o fato de que o totalitarismo é o resultado de uma certa fixação de revolta nisso que é precisamente sua traição, ou seja, a suspensão do retorno retrospectivo – o que equivale a uma suspensão do pensamento.15 15 “Le niiliste n’est pas un homme ré-volté au sens où vous comprenez désormais ce terme, ici, depuis que nous en avons patiemment déployé la signification, l’an dernier. Le niiliste pseudo-révolté est, de fait, un homme réconcilié dans la stabilité de nouvelles valeurs. Et cette stabilité, illusoire, se révèle être mortifère, totalitaire. Je n’insisterai jamais assez sur le fait que le totalitarisme est le résultat d’une certaine fixation de la révolte dans ce que est précisément sa trahison, à savoir la suspension du retour rétrospectif – qui équivaut à une suspension de la pensée”. Julia Kristeva. La révolte intime: pouvoirs et limites de la psychanalyse II. Paris: Fayard, 1997, p. 12. Tradução livre. 32 A revolta se revela, portanto, nas experiências subjetivas nas quais o sujeito sente ao mesmo tempo as causas e os efeitos de contradições e impasses internos. Em instâncias desta natureza, a busca por um sentido ou sua negação profunda seriam formas da revolta construir por meios conscientes ou inconscientes um outro sentido para o que se passa consigo, com os outros e com o mundo. Em situações assim, as forças psíquicas desencadeiam a expansão de algum desejo ou de impulsos em vias de se realizar, mesmo que não sejam reconhecidos pelo indivíduo ou pela coletividade, adquirindo um significado singular da ordem do acontecimento para o sujeito. Kristeva propõe três figuras da revolta a partir da experiência psicanalítica: – a revolta como transgressão da proibição; – a revolta como repetição, perlaboração, elaboração; – a revolta como deslocamento, combinatórios, jogo. Independentes logicamente, nos comportamentos sociais, por exemplo, essas figuras são no entanto interdependentes na experiência psíquica, onde elas se encontram entrelaçadas (...) tanto no aparelho psíquico quanto nas obras artísticas ou literárias.16 O CAE participa enquanto agente ativo do processo mais amplo da arte-revolta e apresenta uma trajetória marcada pelas três figuras apresentadas por Kristeva. Atividades transgressoras com relação aos padrões artísticos tradicionais encontrados no campo da arte-espetáculo, as práticas de desobediência civil eletrônica e biologia contestatária; revolta como elaboração constante do sentido de suas ações no mundo; e revolta como recombinação do que existe em um jogo aberto e contínuo, artístico e micropolítico, de reinvenção de si em relação direta com o que se pretende fazer na realidade. Em todo caso, por meio das ordens intersubjetivas da literatura, da filosofia, das artes e da política a revolta atinge o campo social, desperta os ânimos coletivos e contrapõe às leis, às normas e aos constrangimentos externos a força de uma vontade livre, a emergência de um desejo revolucionário. Na vida coletiva, no contato com o outro a revolta eclode e perfura a cultura pronta para desferir seus golpes nas estruturas calcificadas pelas normas. Nas sociedades modernas e contemporâneas, a revolta encontra seu canal de expressão mais ou menos admitido nas distintas artes, na literatura, na poesia, na música, nas artes urbanas, performáticas e mesmo tecnológicas. No decorrer do século XX as artes 16 Julia Kristeva, “A cultura-revolta”, in Sentido e contra-senso da revolta, p. 37. 33 se diversificaram tanto em formas e procedimentos que hoje as resistências se valem amplamente da arte-revolta em suas táticas e estratégias. Isso se deve sobretudo à formação de uma máquina de guerra artística que encontra na revolta o impulso criador e a determinação política para fazê-lo – o que convém agora elucidar. A Máquina de Guerra Artística Na modernidade líquida, o Critical Art Ensemble desponta como uma das mais notáveis máquinas de guerra artística produzidas pela revolta, prolongando na atualidade uma história marcada por rupturas e inovações que já dura mais de um século se considerado o impulso inicial das vanguardas. A novidade que o CAE traz para a nomadologia da arte-revolta consiste, primeiro, em ter inserido as tecnologias, as ciências e a filosofia como fonte de inspiração e objeto de crítica, e em segundo lugar, em ter inventado táticas de ação inteiramente antenadas aos últimos desenvolvimentos tecnológicos e científicos. O Plágio utópico e o Teatro Recombinante que operam uma Estética do Distúrbio (ambos dispositivos criados pelo CAE), assim como a Desobediência Civil Eletrônica e a Biologia Contestatária são exemplos que confirmam a originalidade do grupo face à produção contemporânea. O argumento defendido nesta pesquisa e que lhe dá todo o seu sentido é o de que a arte-revolta, no decorrer do século XX, construiu uma autêntica máquina de guerra fundindo dispositivos estéticos e dispositivos políticos em um processo complexo que é preciso rastrear. O que hoje pode parecer comum nas artes (instalações, intervenções, performances, site specifc art, social practices, zonas autônomas temporárias, arte coletiva, guerrilha artística, terrorismo poético),17 na realidade só se tornou possível devido ao esforço e à criatividade de uma série de movimentos, grupos e artistas que romperam com padrões aceitos tornando possíveis outras formas de se conceber e se praticar arte; uma conquista que resulta de uma história que se confunde com a da própria arte-revolta, profundamente marcada por críticas, rupturas, inovações e ressonâncias transformadoras. 17 Cf. Claire Bishop, “The social turn: collaborations and its discontents”, in Artificial Hells: participatory art and the politics of spectatorship. New York: Verso, 2012. Os conceitos de zonas autônomas temporárias e terrorismo poético são construções de Hakim Bey: TAZ: zonas autônomas temporárias. São Paulo: Conrad, 2001, e Caos: terrorismo poético & outros crimes exemplares. São Paulo: Conrad, 2003. 34 A invenção de tantas formas diferentes de se conceber e se praticar arte deu-se por intermédio das vanguardas, que colocaram os universos da arte e da política em estreita relação ao aproximar os interesses artísticos dos problemas da vida, individual e coletiva, em um processo que atinge seu ápice nas primeiras décadas do pós-guerra com a criação de matrizes performáticas, que nada mais são do que matrizes artísticas operativas em termos práticos e interativos essencialmente coletivos. O Critical Art Ensemble não só é tributário desse processo, como pode ser considerado um dos expoentes mais representativos na atualidade de uma tradição insurrecional que encontra na nomadologia da arte-revolta sua linhagem poética, pois a produção do grupo, ao agenciar conteúdos críticos em suas diversas atividades culturais, torna sua arte indistintamente política. Portanto, para compreender o lugar do CAE na história da arte-revolta e avaliar assim sua singularidade, torna-se fundamental retomar os acontecimentos fundantes da arte moderna que criaram as condições de possibilidade para a prática artística nos termos micropolíticos hoje conhecidos na resistência cultural.18 O processo do qual o Critical Art Ensemble desponta como herdeiro na atualidade pode ser descrito em linhas gerais da seguinte maneira. Do século XVIII ao século XIX, as belas-artes ganharam uma considerável independência dos imperativos religiosos e escaparam do liame da nobreza, debandando para a classe burguesa em ascensão, que, às voltas com o Iluminismo, promoveu os artistas afins aos seus ideais. No século XIX, enquanto a Europa se modernizava com a revolução industrial, as contradições sociais e políticas entre o antigo regime e as repúblicas burguesas não se resolveram sem que a burguesia arregimentasse as massas para suas fileiras com o objetivo de obter maior força na derrubada dos últimos pilares do edifício feudal. Ao mesmo tempo, os artistas reivindicaram autonomia e firmaram o valor da arte livre dos imperativos políticos, muito embora pendendo para os ideais iluministas. No século XX, a pretensão de autonomia da 18 É o que fazem Gilles Deleuze e Félix Guattari com relação à “máquina de guerra mundial”, quando demonstram, em termos histórico-políticos, a virada real da fórmula de Clausewitz segundo a qual “a guerra seria a continuação da política com o acompanhamento de outros meios”: “Foi somente após a Segunda Guerra Mundial que a automatização, depois a automação da máquina de guerra, produziram seu verdadeiro efeito. Esta, em vista dos novos antagonismos que a atravessavam, não tinha mais a guerra por objeto exclusivo, mas tomava a cargo e por objeto a paz, a política, a ordem mundial, em suma, o objetivo. É aí que aparece a inversão da fórmula de Clausewitz: é a política que se torna continuação da guerra, é a paz que liberta tecnicamente o processo material ilimitado da guerra total. A guerra deixa de ser a materialização da máquina de guerra, é a máquina de guerra que se torna ela mesma guerra materializada. (...) Estávamos já na terceira guerra mundial”. Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “7000 a.C. – Aparelho de Captura”, “A potência”, in Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5). São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 169. 35 arte, interpretada como uma falácia pelas vanguardas, foi radicalmente questionada, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial, que despertou a revolta de jovens poetas e artistas contra o belicismo louvado então pelas burguesias nacionalistas. Pouco antes, no entanto, o Futurismo havia empreendido a primeira tentativa de montar uma máquina de guerra artística. Com um ímpeto radical de ruptura com o passado, colocou-se ao lado das forças modernas materializadas na indústria e nas tecnologias que prometiam transformar o mundo em um futuro finalmente redentor em termos políticos, econômicos e tecnológicos. Porém, o impulso futurista, levado às últimas consequências, fez com que o movimento compactuasse com o Fascismo italiano, o que resultou na capitulação da máquina futurista e na sua captura por parte do Estado. De imediato, o Dadaísmo desferiu um golpe com a máxima intensidade dirigindo seus ataques às ideologias burguesas dominantes, operando uma máquina de guerra contra o nacionalismo, o belicismo, a pátria e a ordem, a começar pela concepção de arte em vigor, interpretada indigna, limitada e inútil para os propósitos mais altos da vida. Em seguida veio o Surrealismo, que demoliu de vez as fronteiras que separavam a arte da vida canalizando as forças do inconsciente em prol da existência, ao mesmo tempo que inventou possibilidades de expressão artística até então inimagináveis, carregando a arte com forte apelo político. Assim, as três primeiras vanguardas artísticas que se colocaram no campo político, o Futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo, foram diretamente responsáveis pela contínua invenção de formas expressivas nos campos imagéticos, discursivos e práticos sempre permeados de teor político. Nas décadas de 1950-60, após a experiência trágica das guerras, as neovanguardas levaram às últimas consequências certas pretensões de seus antecessores e, a partir de então, a arte-revolta tornou-se constitutivamente política. A virada se deu principalmente pelo empenho da Internacional Situacionista em conectar em um só corpo teórico-prático a causa comum das vanguardas artísticas e proletárias em torno da revolução da vida cotidiana. No entanto, ao invés de colocar a arte a serviço da revolução como fizeram antes os surrealistas, desta vez os situacionistas defenderam a revolução à favor da poesia e assim se propuseram a criar uma máquina de guerra artística inteiramente operativa e livre dos imperativos espetaculares. Desta forma, o projeto situacionista de realizar a arte suprimindo-a enquanto esfera separada (fazendo da vida a matéria artística) resultou na criação de conceitos operativos e na invenção de procedimentos práticos para substituir as técnicas tradicionais herdadas da arte burguesa e já apropriadas pelo espetáculo. O conceito de situação, definido como momento vivido livremente construído por uma 36 coletividade para a realização do desejo, foi fundamental, pois, junto aos procedimentos do détournement, da deriva e da psicogeografia, demarcou uma ruptura com a arte espetacular da representação e abriu espaço para um outro paradigma no qual a vida cotidiana veio a ocupar o lugar central e o foco da criação. Com esse gesto, preparado durante anos em termos teóricos e experimentais, a arte deixou de ser considerada em termos puramente formais e tornou-se operativa, existencial e micropolítica. Da mesma forma, a arte deixou de ser uma prerrogativa de homens cultos que dominam técnicas sofisticadas e se tornou situacionista, vivencial, ou seja, da ordem do experimento existencial aberto à invenção em todos os níveis por qualquer pessoa que queira realizá- la. Enquanto Walter Benjamin antevia a democratização da arte burguesa com as técnicas de reprodução, os situacionistas, com uma visão completamente diversa, elaboraram uma teoria radical para libertar de vez a criação dos imperativos artísticos espetaculares, tornando a vida (e não a arte) a sua razão de ser. A reversão da revolução a favor da poesia ganhou sua fórmula situacionista no projeto da transformação poética da vida cotidiana para a qual devem contribuir todas as artes micropolíticas. Assim, a maior contribuição dos situacionistas para a história da arte-revolta foi ter dado um acabamento radical ao processo de fusão da política na arte e da arte na práxis (processo iniciado pelas vanguardas) inventando conceitos e procedimentos operativos que nada mais são do que dispositivos micropolíticos. Desta forma, a arte que há um século tinha pretensões vagamente políticas, desde então dispõe de várias linhagens, vertentes e formas de expressão intrinsecamente políticas. Na nomadologia da arte-revolta, portanto, é possível identificar a formulação de um outro paradigma artístico em contraposição à arte-espetáculo. Ao longo do século XX, por meio de rupturas, desvios, transformações, retomadas, prolongamentos e superações, viu-se constituir um campo de discursos e práticas para o qual a arte é a continuação da política por outros meios. Enquanto o espetáculo toma a arte em função dos poderes constituídos, a arte-revolta erige suas máquinas de guerra submetendo o campo político à sua determinação libertária primeira. No Tratado de Nomadologia, Gilles Deleuze e Félix Guattari defendem a tese de que, “do ponto de vista da história universal”,19 coube aos nômades a invenção da máquina de guerra, máquina que não tem por objeto a guerra como seu objetivo principal. 19 Deleuze e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5), p. 103. 37 “Os nômades inventam a máquina de guerra” significa que o modo de vida nômade, sua forma específica de ocupar o espaço liso, de deslocar-se nele, resulta na formação de uma máquina de guerra, que é por definição e historicamente exterior ao aparelho de Estado e distinta da instituição militar. Apesar disso, quem primeiro faz a guerra são eles próprios, os nômades, ao encontrar cidades e Estados em seus caminhos.20 A guerra, na realidade, é um objeto apenas suplementário ou sintético, que pode derivar da máquina de guerra em determinadas condições. A máquina de guerra toma a guerra por seu objeto quando o aparelho do Estado a toma para si e constitui uma instituição militar. Neste momento, a máquina de guerra muda de natureza e de função. Somente então, quando o aparelho de Estado se apropria de uma máquina de guerra, é que ela toma a guerra por objeto e que a guerra fica subordinada aos fins do Estado.21 Para melhor esclarecer, são definidos dois grandes polos da máquina de guerra. Em um polo, a máquina de guerra que tem por objeto a guerra e “forma uma linha de destruição prolongável até os limites do universo”.22 Em outro polo, “quando a máquina de guerra, com ‘quantidades’ infinitamente menores, tem por objeto não a guerra, mas o traçado de uma linha de fuga criadora, a composição de um espaço liso e o movimento dos homens nesse espaço”.23 Seria neste polo que se encontraria a “essência” de uma máquina de guerra. E é nesse polo também que se encontra a máquina de guerra artística aqui defendida.24 Deleuze e Guattari demonstram todas as proposições e axiomas que constituem a organização do Tratado de Nomadologia recorrendo a acontecimentos históricos, a argumentações demonstrativas circunscritas a uma história universal, propensão que aliás subjaz à obra Capitalismo e Esquizofrenia desde o primeiro volume, O Anti-Édipo.25 No entanto, há uma virada conceitual importante quando os autores definem o nômade por um conjunto de características que constituem a sua essência: “Não é o nômade que define esse conjunto de características, é esse conjunto que define o nômade, ao mesmo tempo em que define a essência da máquina de guerra”.26 Do mesmo modo, não é a máquina de 20 Id. Ibidem, p. 102. 21 Id. Ibidem, p. 103. 22 Id. Ibidem, p. 109. 23 Id. Ibidem, p. 103. 24 Posição identificada pela Prof. Drª Norma Takeuti em seus comentários desenvolvidos no Exame de Qualificação desta Tese, no final de 2017, sobre o conceito de máquina de guerra e sua aplicação possível ao que é defendido aqui com o conceito de “máquina de guerra artística”. 25 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari. “Selvagens, bárbaros, civilizados”, in O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 144, onde se lê: “a história universal não é apenas retrospectiva mas é também contingente, singular, irónica e crítica”. 26 Deleuze e Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5), p. 109-110. 38 guerra que define as características do conceito, são as características que definem a máquina de guerra enquanto tal. Com essa virada, é possível tratar de máquina de guerra em muitos sentidos, desde que sejam satisfeitas as características essenciais supostas do conceito. Máquina exterior e irredutível ao aparelho de captura, dotada de potência de metamorfose,27 que produz um espaço liso e uma forma turbilhonar de ocupá-lo. É nesse sentido que se pode falar de uma ciência nômade,28 por exemplo, e de uma máquina de guerra artística, como é feito nesta Tese. Há, portanto, dois planos conceituais que atravessam o Tratado de Nomadologia. O primeiro, amparado em argumentos históricos, e o segundo, que só pode ser apreendido como resultado ou conclusão do que se depreende do primeiro, histórico-nomádico: o plano essencial definidor da máquina de guerra enquanto máquina abstrata supostamente pura.29 Um preocupado com a história e outro conforme a essência. Assim, a afirmação de que os nômades não possuem o segredo da máquina de guerra adquire todo o seu sentido, e é por esse argumento que se pode ampliar e multiplicar as aplicações possíveis do conceito a vários fenômenos. Conforme a essência, “um movimento artístico, científico, ‘ideológico’, pode ser uma máquina de guerra potencial, precisamente na medida em que traça um plano de consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento, em relação com um phylum”.30 No livro Guerres et Capital, Éric Alliez e Maurizio Lazzarato reativam o conceito da máquina de guerra com a proposta de aplicá-lo a uma análise política e histórica do capitalismo. Em uma passagem em que se discute a importância do conceito para pensar a política capitalista, mundial e global atual enquanto “guerra generalizada”, “guerra civil mundial”, os autores chamam atenção para a “recepção crítica deleuziana” (feita por seus intérpretes) que se empenhou em estetizar a máquina de guerra em vez de incorporá-la nas análises políticas, econômicas, sociológicas e históricas.31 No lugar de tratar a 27 Id. Ibidem, p. 12-13. 28 Cf. Id. Ibidem. Ciência nômade “que se apresenta tanto como arte quanto como técnica” (p. 36), caracterizada pelo modelo problemático (p. 25), por ser “anexata e contudo rigorosa” (p. 33) e que segue os fluxos (p. 39). Ver também na mesma obra: “Proposição III: a exterioridade da máquina de guerra é confirmada ainda pela epistemologia, que deixa pressentir a existência e a perpetuação de uma ‘ciência menor’ ou ‘nômade’” (p. 24). 29 Id. Ibidem, p. 230. 30 Id. Ibidem, p. 109. 31 Cf. Éric Alliez e Maurizio Lazzarato. Guerres et Capital. Paris: Editions Amsterdam, 2016, p. 26: “A problematização da guerra que eles [Foucault, Deleuze e Guattari] fazem está estreitamente vinculada às mutações do capitalismo e das lutas que se lhe opuseram ao longo do dito pós-guerra, até cristalizar na estranha revolução de 1968: a ‘microfísica’ do poder avançada por Foucault é uma atualização crítica da ‘guerra civil generalizada’; enquanto a ‘micropolítica’ de Deleuze e Guattari lhe é indissociável, colada ao conceito de ‘máquina de guerra’ (a sua construção teórica não acontece sem contar com o percurso militante 39 máquina de guerra a fim de pensar as lutas concretas, vinculando as guerras que o capitalismo faz reinar em toda parte à realidade micropolítica das resistências, estetiza-se o conceito como que esterilizando-o do problema ao qual tenta responder. É assim que, do Tratado de Nomadologia, geralmente se faz uso do conceito conforme a essência e não com a preocupação política que lhe é constitutiva. Alliez e Lazzarato resgatam o conceito na sua preeminência histórico-política para demonstrar que o capitalismo opera uma máquina de guerra mundial que se volta contra a população. Segundo os autores, “o capitalismo e o liberalismo trazem a guerra em seu seio como as nuvens trazem a tempestade”.32 A história do capitalismo é, desde a origem, atravessada e constituída por uma multiplicidade de guerras: guerra de classe(s), de raça(s), de sexo(s), guerras de subjetividade(s), e guerras de civilização (escrita no singular, como se escreve História com letra maiúscula). As “guerras” e não a guerra.33 Nesta Tese, longe de estetizar o conceito de máquina de guerra, pretende-se demonstrar como a arte entra no campo das lutas constituindo para isso uma máquina de guerra artística, desde quando os sujeitos, revoltando-se contra os poderes, tornam-se deliberadamente agentes da resistência. Para que todo esse argumento adquira consistência será de suma importância uma exposição detalhada, pois em relação à máquina de guerra artística não basta repetir que tudo é político, nem que a arte sempre foi de algum modo política, sem explicar em que termos, segundo quais circunstâncias, de que modo e como tais afirmações podem ser válidas. É preciso identificar em que processos a arte, tomada pelo impulso da revolta, foi se politizando segundo parâmetros formulados no campo das lutas micropolíticas, e a partir desta virada, explicar como e em que sentido a arte-revolta se colocou em termos práticos, discursivos e expressivos no campo da resistência cultural. de um dos dois). Se isolarmos a análise das relações de poder da guerra civil generalizada, como faz a recepção crítica foucaultiana, a teoria da governamentalidade não será nada mais do que uma versão da ‘governance’ neoliberal. Se, por outro lado, nós separarmos a micropolítica da máquina de guerra, como faz a recepção crítica deleuziana (que igualmente se empenhou em estetizar a máquina de guerra), não sobrará nada a não ser ‘minorias’ impotentes diante do Capital, que por sua vez mantém a iniciativa”. Tradução da UniNômade disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/185-noticias/noticias-2016/561607- guerras-e-capital Acesso 30 de julho de 2019. 32 Éric Alliez e Maurizio Lazzarato. Guerres et Capital, p. 13. 33 “L’histoire du capitalisme est, depuis l’origine, traversée et constituée par une multiplicité de guerres: guerres de classe(s), de race(s), de sexe(s), guerres de subjectivité(s), guerres de civilisation (le singulier a donné sa capitale à l’Histoire). Les ‘guerres’ et non la guerre”. Alliez e Lazzarato, Guerres et Capital, p. 18. 40 No conceito de máquina de guerra interessa, sobretudo, a sua dimensão política, do mesmo modo como interessa à micropolítica seus efeitos transformadores no campo das lutas práticas. Na perspectiva de Alliez e Lazzarato, os dois conceitos não podem ser pensados separadamente.34 O núcleo da conceituação da máquina de guerra artística aqui desenvolvida consiste na sua relação com o espetáculo enquanto aparelho de captura da produção cultural em geral. Quando se trata da máquina de guerra artística é fundamental discernir dois polos, igualmente como fazem Deleuze e Guattari no Tratado de Nomadologia. Um polo refere-se à máquina de guerra artística operada pela arte-revolta, e um outro polo concerne ao espetáculo, que desempenha o papel de aparelho de captura. A arte, quando capturada, submete-se a fins intrínsecos ao aparelho do espetáculo, o Estado e suas microrracionalidades, que podem ser a indústria cultural, empresas, partidos, movimentos, etc., quaisquer instâncias que se apropriam da máquina de guerra artística, atribuindo-lhe outros objetos e fins. Historicamente, não é o espetáculo que faz a máquina de guerra artística. Quem deflagra a guerra artística são as vanguardas da arte-revolta, mas porque, ao mesmo tempo, criam outra coisa, que são novas éticas e estéticas. A máquina de guerra artística declara guerra a começar contra o espetáculo que tende sempre a tomar a arte em uma esfera produtiva separada da vida. As vanguardas da arte-revolta se insurgem justamente contra esse preceito ao afirmarem, cada uma à sua maneira, que a arte precisa transformar a vida por dentro, segundo preceitos irredutíveis ao que o espetáculo espera das pessoas. Esta operação é primeira, e exatamente como isto aconteceu é o que precisa ser demonstrado. No princípio, o espetáculo sequer possui máquina artística. Foi preciso capturar a máquina artística, submetê-la ao regime de produção do Capital ou do Estado e assim estetizar a guerra por lucro e dominação que impera por toda parte. A máquina de guerra artística, irredutível à forma-Estado que o espetáculo representa (seja em que regime for), ao invés de estetizar a guerra, como faz o espetáculo, opera uma arte politizada, ou uma guerrilha da qual a arte é motor, veículo e arma. Aqui reside o fundamental. A fórmula benjaminiana contemporânea das vanguardas do início do século XX (segundo a qual o fascismo e o futurismo estetizam a guerra, e em resposta os comunistas politizam a arte)35 ignora a exterioridade da máquina de guerra artística a quaisquer 34 Cf. Alliez e Lazzarato. Guerres et Capital, p. 26. 35 Cf. Walter Benjamin. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Zouk, 41 aparelhos de captura do espetáculo, sejam eles capitalistas ou soviéticos. Na realidade, a politização da arte (a deflagração da guerra artística) se fez a princípio pelas vanguardas da arte-revolta, e nos dois casos do fascismo e do comunismo, o que se deu foi a instrumentalização (captura) da máquina de guerra artística para os fins dos distintos regimes. Quem permanece politizando a arte de forma radical e implacável, sem submeter-se às formas espetaculares, são os adeptos e praticantes da arte-revolta, cuja potência e revolta encontram-se necessariamente fora do âmbito de ação dos Estados e do Capital. Em termos conceituais, a politização da arte se faz sempre que, no interior de uma micropolítica da criação, a arte compõe um meio tático da resistência. A partir do momento em que a máquina de guerra artística é capturada pelas forças do Espetáculo, do Estado ou do Capital, ela muda de natureza em função dos fins intrínsecos aos aparelhos e assim sai do plano tático micropolítico e entra nos regimes estratégicos de dominação: torna-se uma peça do aparelho, por definição, contra as revoltas libertárias que lhes são exteriores. Para se ter uma rápida ideia, em dimensões interpessoais foi o que levou Antonin Artaud a romper com André Breton quando o surrealismo aderiu ao Partido Comunista.36 As linhagens da arte-revolta mantêm-se à parte, formam grupos sujeitos, produzem rupturas, clivagens com a arte-espetáculo, e, enquanto sujeitos ativos da guerra artística, miram seus arsenais contra os aparelhos de captura da revolta artística e de sua 2012, p. 123: “‘Faça-se arte, pereça o mundo’, diz o fascismo, e espera a satisfação artística da percepção sensorial transformada pela técnica, tal como Marinetti confessa, da guerra. Isso é evidentemente a consumação da arte pela arte. A humanidade, que outrora, em Homero, foi objeto de espetáculo para os deuses olímpicos, tornou-se agora objeto de espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar sua própria destruição como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a situação da estetização da política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da arte”. 36 Em um texto de junho de 1927, Artaud responde à sua expulsão do grupo surrealista em torno de André Breton. cf. Antonin Artaud. Em plena noite ou o bluff surrealista. Lisboa: Frenesi, 2000. Os argumentos buscam a coerência da arte-revolta em sua dinâmica exterior a todo aparelhamento: “Coloco acima de qualquer necessidade real as exigências lógicas da minha própria realidade. Só esta lógica julgo aceitável, e não uma lógica superior cujas irradiações me afectam unicamente na medida em que ferem a minha sensibilidade. Não há disciplina à qual me sinta forçado a submeter-me, por mais rigoroso que seja o raciocínio apelando à minha adesão”, p. 17-18. O breve texto encerra com um arremate: “Sei que neste debate terei comigo todos os homens livres, todos os verdadeiros revolucionários que pensam ser a liberdade individual um bem superior ao de qualquer conquista obtida no plano relativo”, p. 20. Isso não significa, entretanto, que o surrealismo bretoniano tenha capitulado uma vez por todas. Mais à frente, Breton se afasta do comunismo e se inclina ao anarquismo, evidência da revolta em sua permanente perlaboração de sentido. Para maiores detalhes da relação do surrealismo com o anarquismo, ver Plínio Augusto Coelho (org.). Surrealismo e anarquismo: “Bilhetes surrealistas” de Le Libertaire. São Paulo: Imaginário, 1990. No mesmo livro há um texto que pode interessar ao leitor desta Tese. Trata-se do capítulo “O revoltado de Camus é dos nossos?”, de Georges Fontenis, uma resenha de O Homem Revoltado publicada em 1952 no Le Libertaire. Cf. p. 109-117. 42 potência libertária porque criam outra coisa e querem a liberdade para fazê-lo com autonomia. É no mesmo movimento em que a máquina de guerra politiza a arte que os sujeitos e os grupos da resistência cultural assumem um papel ativo nas lutas em curso. Ou seja, é por meio dessa tomada de posição que deixam de ser sujeitados à guerra para se tornarem sujeitos da guerra (artística). Passagem sem dúvida fundamental que escapou à compreensão de Benjamin acerca da máquina de guerra artística e as micropolíticas que lhe correspondem. A questão da máquina de guerra formada pela arte-revolta se coloca, por conseguinte, de maneira tática no campo das lutas sociais, culturais e políticas. A fim de seguir as linhas de seu aparecimento no século XX se faz necessária uma Nomadologia da Arte-Revolta, bem entendida, apta a seguir e interpretar as linhas de fuga e os acontecimentos determinantes para que a arte pudesse se tornar uma máquina de guerra operativa em termos micropolíticos tal como hoje se pratica. Em certas vertentes, a arte-revolta torna-se deliberadamente política em termos concretos, práticos, intrínsecos e extrínsecos, a tal ponto que, em muitos casos, não há como distinguir nitidamente uma dimensão (estética) da outra (política). Uma pintura pode ser carregada de sentidos políticos (como A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix, ou Guernica, de Picasso), mas não é da mesma forma que uma performance, em termos práticos, interativos, muldimensionais, em atos. A performance coloca em contato não só a visão, mas o ser inteiro em sua complexidade, sentidos corporais, sensibilidade subjetiva, universos incorpóreos, etc, que de forma ativa entram no agenciamento coletivo da performance com a participação de outras pessoas no mesmo processo, e é assim que ela é operativa e pragmática no sentido forte empregado aqui. Das belas-artes à performance, de uma arte codificada em formas clássicas, como era a arte burguesa do final do século XIX, à sua descodificação expressiva e prática empreendida pelas vanguardas artísticas, foi assim que a arte tornou-se pouco a pouco, com rupturas e saltos, retomadas e superações, uma estratégia de ação, uma tática de combate, um escudo político, uma trincheira para a resistência, em suma, uma máquina de guerra da revolta para operar dispositivos de efeitos sociais sem se prender às restrições institucionais ou mercadológicas, a qual tornou indistinta a esfera artística da atuação política, e que hoje parece ser uma das poucas formas de expressão nas quais ainda é possível resistir criativamente e experimentar novos possíveis. Nos tempos atuais, sob as aparências de uma democracia liberal, por trás das revoluções tecnológicas e do “capital artista”, os processos da arte-revolta em levante 43 contra as guerras em curso perpetradas pelo capitalismo e veladas pelo espetáculo integral, que tomam a vida por alvo e a totalidade do ser como suporte. A arte-revolta não estetiza a guerra; a revolta toma a arte como forma de politizar a cultura e a vida em suas mais diversas manifestações. Sumário Descritivo Durante a pesquisa, nas fontes consultadas, não foi encontrada referência sobre a formação da máquina de guerra artística no registro histórico tal como o fazem Deleuze e Guattari recorrendo à história universal, e Alliez e Lazzarato, à história moderna do capitalismo. Com o objetivo de lançar luz sobre esse processo, uma das contribuições da pesquisa será a de rastrear os acontecimentos e as circunstâncias determinantes para a formação da máquina de guerra artística que, no decorrer de um século, contrapôs sua revolta aos aparelhos de captura nas suas formas modernas até atingir as expressões contemporâneas. O primeiro capítulo será dedicado inteiramente a desenvolver esse argumento basilar. A importância de tratar a questão logo no início dispensa maiores justificativas por se tratar de um pesquisa que se propõe a pensar o Critical Art Ensemble como uma máquina de guerra artística. Para vincular a discussão teórica ético-filosófica da revolta com a arte torna-se providencial resgatar a guinada política na história da arte moderna como um reflexo do autoesclarecimento social da revolta artística. Nesta trajetória, a ênfase dada ao elemento político nas vanguardas do século XX se intensifica até a sua máxima expressão no pós- guerra com as neovanguardas, quando se constituem então as condições de possibilidade da arte contemporânea. Um dos críticos de arte mais destacados da atualidade, Hal Foster, defende a tese de que o desenvolvimento da arte contemporânea em toda sua diversidade se deve a uma articulação complexa iniciada pela recepção das vanguardas históricas no contexto das neovanguardas, sobretudo nas três décadas após a Segunda Guerra Mundial.37 Portanto, é imprescindível retomar esse desenvolvimento ainda que em linhas gerais, a fim de contribuir com o entendimento do fenômeno de conjunto da arte atual. 37 Cf. Hal Foster. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: UBU Editora, 2017, p. 32ss. Mais à frente, na página 46, afirma o autor: “A vanguarda histórica e a neovanguarda são constituídas de maneira semelhante, como um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos – em suma, num efeito a posteriori que descarta qualquer esquema simples de antes e depois, causa e efeito, origem e repetição”. 44 Por consequência, o primeiro capítulo será dedicado a traçar uma Nomadologia da Arte-Revolta, assim denominada a tarefa do pensamento que busca rastrear as maiores criações micropolíticas da arte-revolta no curso de um século: a máquina futurista, que demarcou uma ruptura radical na experiência da temporalidade histórica; a máquina de destruição dadaísta, que liberou as forças do caos na arte; a máquina onírica-desejante do surrealismo, que liberou e canalizou as forças do inconsciente para o campo artístico e político, abrindo as portas da percepção em busca do maravilhoso e da super-realidade; e por fim, a máquina de guerra situacionista, que fundiu arte e política revolucionária a fim de transformar a vida cotidiana em torno do projeto da realização da poesia. O enfoque dado às vanguardas de início tem por função situar o Critical Art Ensemble no contexto geral da história da arte-revolta com a qual o grupo frequentemente dialoga de forma direta ou velada. Assim, será possível compreender sua singularidade e seu lugar na histórica formação da máquina de guerra artística hoje em pleno funcionamento. Depois de definir os termos e apresentar o argumento histórico-nomadológico, o passo seguinte será dedicar-se inteiramente ao Critical Art Ensemble, o coletivo estudado detidamente nesta pesquisa. O segundo capítulo, portanto, será dedicado a expor um breve histórico do grupo, com destaque para a formação dos primeiros anos e a apresentação de suas influências, características e produções que formaram seu estilo de ação. Na longa trajetória do CAE, as experiências iniciais na resistência cultural junto a artistas, ativistas e produtores serviram para a formação micropolítica do grupo. Neste capítulo será dada atenção à Micropolítica da Criação, na prática da qual se evidenciará a tomada de posição do CAE quanto às lutas em jogo e sua postura enquanto sujeito da guerrilha artística em curso, exemplarmente ilustradas na parceria junto a outros coletivos artísticos e grupos minoritários, bem como no seu engajamento nas movimentações em torno da Crise da AIDS que assolou os Estados Unidos nos anos 80. Momento importante sem dúvida para a arte-revolta, que adentrará em uma nova fase, denominada por alguns de Pós-Socialismo, com repercussões importantes para a deflagração de micropolíticas da criação somente comparável à que ocorreu nas movimentações contraculturais dos anos 60 e 70 nos Estados Unidos e no mundo. Lazzarato ilustra bem a lógica dessa movimentação pós-socialista no campo da política com o exemplo dos intermitentes da França.38 Muito do que ele demonstra com 38 Cf. Maurizio Lazzarato, “Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas”, in As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 45 relação ao que se passou na França aplica-se às micropolíticas colocadas em prática pelo Critical Art Ensemble e outros coletivos, artistas e ativistas na resistência cultural dos Estados Unidos. Basicamente, à máquina de guerra artística correspondem micropolíticas de um novo tipo, denominadas aqui de Micropolíticas da Criação. Conceitualmente toda micropolítica é de alguma forma criativa, pois na dimensão molecular das relações são produzidas e veiculadas linhas de criação e destruição que dinamizam a realidade social. Porém, isso não significa que sejam necessariamente micropolíticas da criação. Estas micropolíticas concernem a Grupos Sujeitos ou Grupos de Criação que se ocupam, deliberadamente, da invenção e da inovação na arena da cultura. Invenção e inovação enquanto exercícios de transformação micropolítica na perspectiva da resistência. O terceiro capítulo tratará detidamente sobre os Arsenais Antropotécnicos da Resistência Cultural inventados, praticados e teorizados pelo CAE. Depois de uma breve passagem pelo ativismo tradicional, o Ensemble assume de vez a micropolítica da criação em seus próprios termos. O CAE então deixa para trás a política identitária e começa a elaborar inovações nas formas de pensar, agir e interagir culturalmente. Engajado com igual interesse nas artes, na cultura e na política, começa a forjar seus arsenais antropotécnicos da resistência empreendida pelo coletivo: o Plágio Utópico, o Teatro Recombinante e a estratégia micropolítica adotada pelo coletivo denominada aqui de Estética do Distúrbio, sintetizada posteriormente na virada Mídia Tática nos anos 2000, quando então, aparecem transformados novos arsenais: as Intervenções Moleculares e os Choques Semióticos. Desde então já se pode falar de uma máquina de guerra do Critical Art Ensemble, que dinamiza uma micropolítica da criação com a finalidade de criar brechas culturais, zonas autônomas temporárias, espacialidades outras, formas diferenciadas de pensar, agir e relacionar-se, em suma, possíveis e aberturas ao novo. Mas se em suas campanhas por vezes promove guerrilhas, não é com batalhas, e sim com outros meios, que são os distúrbios, as intervenções moleculares e os choques semióticos. Esquematicamente, a máquina de guerra do CAE se efetua como Potência Destituinte, Estética do Distúrbio, Desobediência Civil Eletrônica e Biologia Contestatária ou Biorresistência. Em relação a cada um dos componentes da máquina de guerra agenciada pelo CAE são elaborados arsenais teóricos e práticos, estéticos e micropolíticos correspondentes. Enquanto potência destituinte, o CAE inventa, fabrica e produz distúrbios e choques semióticos. Em vez de buscar constituir poderes, instituições, o Ensemble promove a desarticulação das antropotécnicas hegemônicas a fim de restituir ao 46 pensamento crítico sua cidadania na esfera pública. Destituir no sentido de subtrair dos poderes seus efeitos sobre o pensamento, a cultura e a vida. A lógica da destituição é da desobediência, da subtração, porque cria alternativas que escapam às capturas. Destituir não é, portanto, atacar as instituições, mas, sim, a necessidade que se tem delas.39 Não se trata de vencer, tomar o poder, mas de superá-lo, o que se dá por super-ações que aumentam a potência de agir e a força de viver, para usar as expressões de Spinoza. Nas campanhas do Critical Art Ensemble, a estética nada mais é que o suporte expressivo e sensível dos meios táticos usados para atingir certos objetivos micropolíticos. Em determinadas situações, midiatáticas ou pedagógicas, o distúrbio e o choque incidem no processo de subjetivação de forma política. Os elementos estéticos os mais variados são combinados, agenciados e dispostos de modo a formar circuitos antropotécnicos que possibilitam exercícios éticos e de pensamento crítico. O conceito de antropotécnica tem sido desenvolvido por Peter Sloterdijk há muitos anos. A princípio, a expressão aparece em uma intervenção pública do filósofo acerca das biotecnologias de produção de seres humanos em laboratório.40 Em um estreito diálogo com Martin Heidegger, Friedrich Nietzsche e Platão, Sloterdijk defende a tese de que o ser humano é um produto tecnológico desde suas origens pré-históricas e não é de hoje que, para entendê-lo, é necessário se perguntar sobre os meios empregados para produzi-lo enquanto tal. O teorema central da antropotécnica diz que no fundo o homem é um produto e só pode ser compreendido na medida que forem identificados os procedimentos de sua produção.41 Por antropotécnica deve-se entender, portanto, as técnicas colocadas em ação para produzir o homem no curso da história e em conformidade com sua cultura. Posteriormente, o termo reaparece na obra Tens de Mudar de Vida, no entanto, em relação a outros problemas. Finalmente, a fonte do conceito é revelada. O termo foi usado pela primeira vez nos anos da Revolução Russa e pode ser encontrado no terceiro volume da Grande Enciclopédia Soviética de 1926.42 Sloterdijk se apropria da expressão e lhe atribui um estatuto filosófico próprio. 39 Cf. Comitê Invisível. Motim e destituição agora. São Paulo: N-1 Edições, 2018, p. 96. 40 Peter Sloterdijk. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. 41 Cf. Peter Sloterdijk. Règles pour le parc humain, suivi de La domestication de l’être: pour un éclaircissement de la clairière. Mille et Une Nuits, 2018, p. 86. 42 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica. Lisboa: Relógio D’Água: 2018, p. 23- 24. 47 O que interessa então é a proposição de “uma teoria global da existência como exercício”.43 Sloterdijk encontra os aportes teóricos para embasar sua proposição nos estudos culturais. Desde o século XIX tem sido uma constante a demonstração de que o homem produz de fato o homem, porém, não pelo trabalho (Marx) sobre si (Foucault), nem na interação ou comunicação, mas através da sua vida em diferentes formas de exercícios. Em diálogo com Nietzsche e Foucault, os processos de autoprodução do homem não são referidos mais a processos milenários constitutivos do homo sapiens, como na primeira formulação das Regras para o parque humano. Agora, as antropotécnicas são pensadas diretamente como exercícios, que ao serem repetidos, retroagem sobre o exercitante, formando-o com novas qualidades. À medida que interessa pensar a formação continuada e em atos do ser humano por meios técnicos, o componente conceitual das antropotécnicas torna-se o exercício definido como “qualquer operação pela qual a qualificação do agente é estabilizada ou melhorada até à execução seguinte da mesma operação, seja ela declarada ou não como exercício”.44 Torna-se possível então falar em toda sorte de antropotécnicas: místicas, religiosas, ascéticas, guerreiras, artísticas, humanistas, etc. É nesse sentido que o Critical Art Ensemble pratica, produz e promove antropotécnicas situacionistas como forma de estimular o exercício do pensamento crítico e ético com relação a problemáticas contemporâneas. As atividades do CAE e seus produtos, sobretudo o teatro recombinante e as intervenções moleculares, nas quais ocorrem interações e diálogos com os participantes, operam antropotécnicas de desinibição metanoica assistida, e enquanto tais, incidem nos processos de subjetivação liberando o pensamento crítico por meio de exercícios aqui denominados situacionistas. Metanoia significa uma mudança de pensamento fundamental pela ação do sujeito sobre si mesmo ou pela ação de outros sobre si. A desinibição refere-se ao efeito de liberação do pensamento de sua clausura doxológica. Tais antropotécnicas são assim nomeadas porque estão circunscritas no espaço-tempo fragmentário, sem linha de continuidade, mas possibilitam aos participantes das performances do CAE exercícios autoplásticos, que nada mais são do que exercícios do livre pensar, exercitações de um pensamento emergente. 43 Cf. Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 19. 44 Cf. Peter Sloterdijk, Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 16. 48 Em qualquer antropotécnica existe uma tensão vertical que indica e configura seu sentido em relação a objetivos e fins autoplásticos. Essa tensão é no mais das vezes moldada e se faz perceber pelos valores éticos, morais, religiosos, filosóficos, culturais, etc. No caso das antropotécnicas situacionistas do Critical Art Ensemble, o vetor de tensão que orienta os exercícios não é senão o pensamento crítico, caracterizado por certo ceticismo, pelo questionamento e pela suspeita. Pretende-se assim contribuir com a emergência de focos de enunciação autônomos, autoposicionados e portanto libertos das opiniões reinantes. Esta tem sido a proposta de toda atividade realmente comprometida com o pensamento e com a produção de conhecimento. Mas no caso do CAE, trata-se de um pensamento e uma sensibilidade vinculados a valores como autonomia, liberdade e justiça social que se pretendem emergir na esfera pública por meio de experimentos e interações. O pensamento crítico então é o que se pode chamar de atrator estranho45 das antropotécnicas da resistência cultural que incidem na produção das subjetividades, seja por meio de artefatos (vídeos, pôsteres, livros, imagens), seja por meio das situações construídas no Teatro Recombinante e nas Intervenções Moleculares. Depois de tratar dos arsenais antropotécnicos da resistência, o quarto capítulo prioriza a questão da Resistência Cultural tal como aparece na trajetória do Ensemble, na obra teórica do grupo e em entrevistas, sobretudo nos livros onde estão registradas suas perspectivas teóricas e táticas, as concepções analíticas do poder e as proposições para uma resistência antiautoritária. Serão discutidos os temas da resistência cultural na sociedade do espetáculo, a virada da resistência eletrônica, a concepção do CAE quanto à resistência inspirada nos situacionistas e o ideal de revolução. O quarto capítulo focará nesses termos, fenômenos e acontecimentos. Em linhas gerais, a convergência dos grupos sujeitos, de suas ações e de seus efeitos produz o que se pode chamar a Resistência Cultural, que nada mais é do que uma multiplicidade de movimentos, grupos, células e agentes de transformação no seio da vida social. Em certo sentido, as Micropolíticas da Criação efetuam uma Anarquia Orgânica46 composta por células mutantes e atratores estranhos, que processam, catalisam e 45 “O termo oriundo da Teoria do Caos a partir da análise de turbulência de fluidos. O atrator estranho se dá no gráfico como padrão não-linear, fractal, cuja relação de vários vetores aparentemente aleatórios resultam nesse padrão não-linear, cujo exemplo mais conhecido de atrator estranho é o efeito borboleta. Na filosofia de Deleuze e Guattari, foi precedido pelo conceito de máquina abstrata. Ex: nuvem de pássaros”. Verbete disponível em http://cosmoseconsciencia.blogspot.com/2010/01/atrator-estranho-verbete.html Acesso 30 de julho de 2019. 46 Termo sugerido pela Prof. Drª Maria da Conceição de Almeida na ocasião de seus comentários referentes à pré-qualificação do projeto de pesquisa na disciplina Seminário de Tese, realizada no final de 2016. 49 impulsionam a imaginação, a criatividade e a inventividade no ambiente cultural. Anarquia devido à lógica não centralizada, aberta e rizomática,47 portanto, heterogênea e transversal que lhe é característica; e orgânica pelo motivo de se viabilizar por relações solidarísticas de resistência no interior de um sistema dominante. A lógica que impera nos movimentos tradicionais é totalmente outra: busca a unidade e o consenso com seus programas, com suas plataformas e ideologias. Enquanto as micropolíticas da criação investem na inovação e na invenção, os movimentos tradicionais tendem a reproduzir e adaptar modelos considerados canônicos, devido a que, sobrecodificam iniciativas discordantes e dissidentes. É o que destaca Lazzarato: “A lógica da invenção é a da criação e efetuação de diferentes mundos em um mesmo mundo que desbasta o poder, ao mesmo tempo que permite que deixemos de obedecê-lo”.48 Por meio da criação, a micropolítica dos grupos sujeitos promove uma modalidade de resistência que se faz perceber também pela desobediência. Enquanto fenômeno cultural, a desobediência é o correlato da revolta seja individual ou coletiva. Em suma, a desobediência está implicada na revolta, e nessa articulação teórica, o quinto capítulo apresenta a temática Resistência e Desobediência Civil Eletrônicas, propostas pelo CAE na década de 1990, exatamente em resposta à abertura do ciberespaço da internet. Frédéric Gros diz que desobedecer é uma declaração de humanidade e expõe a questão. O problema da desobediência inscreve-se na perspectiva de “uma ética do político”.49 O ponto de inflexão no valor da desobediência na esfera política ocorre durante a Segunda Guerra Mundial, momento histórico crucial pois “pela primeira vez, homens foram punidos por terem obedecido”.50 A experiência do totalitarismo no século XX revela o monstruoso que advém da obediência cega. Não se trata mais do modelo da primeira modernidade segundo o qual a razão deveria se opor aos instintos primitivos. Na segunda modernidade, a oposição deixa de ser entre o homem e o animal para se tornar uma oposição entre o homem e a máquina. 47 Conceito elaborado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Introdução: rizoma”, in Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 1). Rio de Janeiro: Editora 34, 2006. 48 Maurizio Lazzarato, “Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas”, in As revoluções do capitalismo, p. 231. 49 Frédéric Gros. Desobedecer. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 33. 50 “Durante séculos, os homens foram punidos por desobedecer. Em Nuremberg [julgamento dos nazistas logo após sua derrota na Segunda Guerra Mundial], pela primeira vez, homens foram punidos por terem obedecido. As repercussões desse precedente estão começando a se fazer sentir”. Trata-se de uma nota feita por Hannah Arendt em seus diários. A frase foi copiada pela filósofa de Peter Ustinov. Cf. Frédéric Gros. Desobedecer, p. 27. 50 O homem puramente obediente nada mais é do que o correlato autômato que tem como signo a máquina mecânica. As redes hierarquizadas do poder, na divisão social do trabalho de tipo autoritário, exigem plena obediência aos comandos superiores por parte dos demais, que agem como peças do mecanismo. Na medida em que aderem aos comandos sem qualquer consideração ética, humana, agem como meros autômatos. É o que Gros denomina “a inversão das monstruosidades”.51 O monstro deixa de ser o homem submetido ao seu lado animalesco representado pelos instintos e se revela como o homem-máquina submetido aos comandos de uma razão instrumental supostamente pura e inquestionável. Esse é o perigo que todo encadeamento autoritário potencialmente alimenta. A saída do ciclo da obediência monstruosa passa pela recusa inerente ao ato de revoltar-se. Ambas têm seu lugar no interior de uma resistência cultural mais ampla, a qual será problematizada com relação à analítica do poder nômade do pancapitalismo52 proposta pelo grupo e com relação ao aparelho de captura do espetáculo tal como apresentado no primeiro capítulo. Com relação à base teórica da pesquisa, o aporte conceitual e metodológico de base é formado principalmente pelas abordagens dos seguintes autores, que ocupam a linha de frente argumentativa: Albert Camus e Julia Kristeva (a questão da revolta), Gilles Deleuze e Félix Guattari (nomadologia, máquina de guerra, micropolítica, sociedade de controle e subjetivação), Michel Foucault (microfísica do poder, resistências, sociedades disciplinares, biopolítica), Giorgio Agamben (o contemporâneo), Walter Benjamin (arte e política), Peter Sloterdijk (antropotécnica e a discussão sobre as mídias), Maurizio Lazzarato (subjetividade e máquinas) e Frédéric Gros (com o tema da desobediência). Da parte dos pesquisadores ou dos críticos que estudam o fenômeno das artes engajadas, faz- se mister elaborar um diálogo epistemológico com as fontes teóricas que inspiram os coletivos, e assim aproximar os discursos das práticas, colocando em perspectiva, sempre que possível, o contexto social do qual emergem e no qual interatuam. Por isso a aproximação das referências do CAE se dará por meio de autores comuns às perspectivas do próprio grupo, ou que o tomam como objeto de análise, como forma de ampliar e aprofundar a compreensão de suas formas de expressão textuais, imagéticas, estéticas e 51 Frédéric Gros. Desobedecer, p. 27. 52 Pancapitalismo: conceito elaborado pelo Critical Art Ensemble para designar um sistema de dominação que pode operar em bases aparentemente democráticas e ainda assim se exercer com forte teor autoritário. O conceito aparece na primeira obra teórica do coletivo em 1994, período marcado pela assunção da hegemonia capitalista em dimensões globais, após a queda do regime soviético. O pancapitalismo nada mais é do que o sistema capitalista expandido em escala planetária com todos os desenvolvimentos tecnológicos que lhe acompanham. O conceito é tratado com mais profundidade nos Capítulos 4 e 5. 51 práticas. Em segunda instância, mas com igual importância para dialogar diretamente com os referenciais do grupo estudado, as fontes são: as vanguardas históricas, Guy Debord (a sociedade do espetáculo), Hakim Bey (zonas autônomas temporárias e terrorismo poético) e os críticos de arte contemporânea Hal Foster, Nicolas Bourriaud, Nato Thompson, Gregory Sholette e Claire Bishop, entre outros. Durante todo o texto aparecerão imagens, citações e notas com o propósito de ilustrar o conteúdo abordado, indicar as fontes, ampliar a discussão e definir termos secundários. De certa forma, é possível lê-lo sem recorrer às notas, que atuam de forma complementar ao texto principal. Mas como se trata de uma pesquisa, elas demonstram as fontes da pesquisa e sugerem referências para estudos correlatos ou posteriores. Ao final da Tese encontram-se as referências bibliográficas da pesquisa aqui apresentada, bem como os apêndices com a lista dos livros publicados pelo Critical Art Ensemble e suas formações ao longo do tempo. 52 CAPÍTULO 1 NOMADOLOGIA DA ARTE-REVOLTA: A MÁQUINA DE GUERRA ARTÍSTICA Não há sujeitos fixos ou genéricos na arte política: a especificidade histórica, o posicionamento cultural é tudo aqui. Desse modo, reconsiderar o status da vanguarda não é desafiar sua eficácia crítica no passado, mas, ao contrário, ver como hoje ela pode ser reinscrita como resistente, como crítica no presente. – Hal Foster, Por um conceito político na arte contemporânea.53 Uma das principais questões, senão a mais fundamental, que a arte contemporânea coloca para a época presente é a de saber como a arte pode modificar a vida. Transposta para o plano político, a questão passa a ser como criar um novo mundo seguindo o exemplo da arte. Em um caso como no outro, entre a recusa completa e a aceitação total da realidade, vibra o impulso criador originário que anseia por realizar-se. No império do niilismo, o movimento da revolta arrasta consigo Eros e Thanatos, e para realizar a síntese que haverá de levar a civilização além de seus impasses, será necessário apropriar-se de suas forças para dissipar os enganos que levaram à tirania atual e criar enfim o que ainda hoje não possui nome, mas que é tão necessário. Não se trata de ecoar um grito insensato e sem propósitos a se perder no vazio, mas para superar a confusão que domina o tempo presente, há que se extrair um pensamento coerente da imensa energia acumulada em torno da revolta, que nas artes e na política deu o tom dos últimos dois séculos. As forças titânicas alojadas no inconsciente coletivo, sejam quais forem as suas formas, dinamizam o movimento histórico, constituem o mal-estar e a vontade de mudança que marcam de forma indelével a aurora do milênio. Em um cenário de problemáticas aparentemente insolúveis, cabe ao pensamento contemporâneo lançar luzes sobre as sombras que insistem em obliterar os sentidos criadores aí latentes. A situação não é das melhores, no entanto, um mundo que a cada dia propaga o inaceitável, por mais que queira não será capaz de conter os impulsos transformadores 53 Hal Foster, “Por um conceito do político na arte contemporânea”, in Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996, p. 199. 53 que se insurgem contra a dominação, a servidão e o conformismo, as faces mais humanas do espetáculo de horror que se instalou na história recente. Mesmo porque, se as forças da vida forem simplesmente recalcadas e reprimidas, os efeitos de retorno, imponderáveis em suas intensidades no psiquismo individual e coletivo, tornar-se-ão fatalmente devastadores. Quando os instintos não encontram uma forma adequada de se expressar na realidade, e o desejo não converte sua energia em atos, não resta outra saída: a vida se inquieta, a revolta se inflama. Se a condição for partilhada, então, a paixão se torna coletiva, as mentes conspiram revoluções intestinas e as resistências logo se organizam. As insurgências dos últimos anos, vistas em retrospecto, são a confirmação prática de que os poderes constituídos não governam sozinhos a realidade, de que a revolta tem um poder ainda desconhecido em todas as suas consequências. Que os tiranos cometam o erro de impor o peso da morte sobre a voz dos poetas, recolham os livros, fechem os teatros e interditem os palcos, desativem os sítios eletrônicos e apreendam as ferramentas artísticas, e então, mais cedo do que tarde, o espírito da revolta retornará pelo avesso como fúria incendiária, insurreição e levante popular. A arte oferece um excelente laboratório para a experiência da revolta catártica e estética. Na poesia, na literatura e nas artes em geral, as vanguardas sempre encontraram um canal de expansão da consciência e da sensibilidade. O acontecimento estético, porém, é muito mais do que isso. Nele, signos, gestos, sons e sentidos geram forças que, uma vez evocadas, despertam as mentes, agitam os corpos, devastam fronteiras e adentram uma realidade coletiva de outra forma difícil de acessar. Por isso as vanguardas exploraram também suas potencialidades no campo mais amplo da cultura, em suas dimensões políticas e sociais. Em certas manifestações artísticas contemporâneas, ao colocar em xeque o próprio princípio de realidade, o experimento torna-se o prenúncio de uma consciência estética e política, assim como no ritual mágico se evocam as forças do espírito elevado em cada um dos participantes para daí retirar um aprendizado a ser incorporado na existência. Em sintonia com essa compreensão da arte, Julia Kristeva afirma que “a noção de experiência compreende o princípio de prazer e o renascimento de um sentido para o outro, que só seria possível compreender à luz da experiência-revolta”.54 A experiência da revolta que, na sua acepção subjetiva e política de transgressão da normalidade, da 54 Julia Kristeva. Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da psicanálise I. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 24. 54 ordem, da lei, da autoridade, da tradição, deu o tom na história moderna tanto nas revoluções políticas quanto nas artes. Não é à toa que o espetáculo das indústrias culturais desempenha há muito sua função política ao domesticar as potências artísticas. O espetáculo integrou os procedimentos puramente formais e estéticos criados pelas vanguardas e transformou a arte em puro entretenimento desligado dos problemas enfrentados pelos mesmos sujeitos que a consomem no seu dia a dia. Em vez de vozes determinadas, confiantes e criadoras, reproduzem-se em escala massiva as celebridades e seus clones ávidos por visibilidade. No entanto, a arte que se instalou comodamente na vida cotidiana não deixou de sentir os choques, as distorções, as interferências e os distúrbios que são os efeitos de uma arte-revolta, a qual, apesar das dificuldades, continua a produzir suas valiosas rupturas libertárias no dia a dia, no espetáculo e em cada ocasião que se mostrar necessária. O combate que os Futuristas, os Dadaístas, os Surrealistas e os Situacionistas deflagraram na cultura criou as condições para a formação da máquina de guerra artística que ainda hoje se debate contra as tentativas de captura do espetáculo. Entre a violência e a sedução dos poderes, o abandono e o estado de exceção, a arte-revolta forja os laços, os valores e as obras que haverão de inspirar aqueles que nutrem em si a vontade de superação tão necessária a uma vida mais livre e plena. O espectro da revolta, que durante muito tempo foi o guardião dos sonhos utópicos, ronda às voltas na arte e na política contemporâneas, por vezes em silêncio, elaborando um sentido visionário capaz de inspirar outra vez o mundo. Espectros da Revolta O mundo foi transformado pela obstinação de homens e mulheres devotados a questionar e produzir conhecimento. As ciências que estão à frente dos processos civilizatórios, mercadológicos e tecnológicos há séculos surgiram de rupturas epistemológicas instauradas por mentes que se esquivaram aos poderes, quando não os combateram frontalmente em um período histórico no qual pensar era algo desafiador e muitas vezes perigoso. A coragem de inovar no pensamento, como nas artes, no passado e no presente, tem sido a marca daqueles que recusam uma parte do mundo para afirmar uma possibilidade até então insuspeitada. A criação, considerada atividade humana por excelência, sempre adiciona algo novo à realidade, e por meio dela o mundo se transforma 55 desde a aurora dos tempos. A história do pensamento e da arte moderna foi igualmente impulsionada pela vontade na direção da criação. A curiosidade, a ânsia por saber, por descobrir os segredos da natureza, o desejo de captar a beleza em uma escultura ou em uma tela, tudo o que a vontade projetou no tempo, sobre o real, contribuiu para a construção da magnífica e terrível máquina do mundo sobre a qual se debruçou Camões do alto dos montes prefigurando a visão da Terra séculos atrás.55 No entanto, as conquistas do pensamento, as inovações artísticas e as revoluções sociais que fizeram a história moderna ser o que é sofreram a influência arrebatadora da revolta como jamais acontecera, e até as figuras da loucura nas formas extremas de recusa, negação, crítica, devaneio e crueldade tiveram seu lugar na construção do mundo atual. Concretamente, não se pode falar dos grandes acontecimentos recentes na história da humanidade sem considerar as potências da revolta que os anima ao fundo. A liberdade em si tão almejada nada mais é que a inteira positividade da revolta que os iluministas, os revolucionários e depois os artistas reafirmaram no pensamento, na práxis e nas obras que hoje se conhece. Por isso, quando alguém se interroga sobre as relações da arte com a política, na revolta fatalmente se revela o elo que une uma dimensão à outra. A vontade de verdade, de saber, a vontade de poder, de transformar, de criar, destruir, todas elas estão relacionadas de alguma forma com o movimento da revolta, sobretudo na política e nas artes. A revolta é compreendida por Albert Camus como uma relação do ser com o mundo, um certo movimento interior que, face à realidade, diz sim e não, para, negando uma parte, melhor afirmar a outra. Como tal, a revolta não se compraz nem na aceitação completa nem na negação absoluta e, portanto, coloca-se a tarefa de criticar a realidade sempre em função da criação, o que significa, no campo estritamente estético, produzir uma arte que expressa e exige uma modificação da realidade, e no plano político, um compromisso ético com a transformação social a fim de valorizar e respeitar cada ser vivo enquanto tal. 55 “Digamos, para simplificar, que o desconcerto entrevisto por Camões, latente nos desvãos de um mundo que todos, então, acreditavam harmonioso e concertado, foi chegando, aos poucos, à tona das obras e consciências, no decorrer desses quatro séculos, até aflorar, em largo volume, com a grande insurreição surrealista”. Carlos Felipe Moisés. O desconcerto do mundo: do renascimento ao surrealismo. São Paulo: Escrituras Editora, 2001, p. 22. Sobre a “máquina do mundo” na poesia de Camões, ver no mesmo livro o capítulo “A máquina do mundo”, p. 23ss. 56 É possível dizer portanto que a revolta, quando desemboca na destruição, é ilógica. Ao reclamar a unidade da condição humana, ela é força de vida, não de morte. Sua lógica profunda não é a da destruição; é a da criação. Para que continue autêntica, seu movimento não deve deixar para trás nenhum dos termos da contradição que o sustenta. Ele deve ser fiel ao sim que contém, ao mesmo tempo que a esse não isolado na revolta pelas interpretações niilistas.56 Nesse sentido, a revolta desencadeia o movimento na sensibilidade, na ação e no pensamento que, na política, projeta-se historicamente nos incessantes conflitos contra o poder ilimitado, e na arte, converte-se em fonte aparentemente inesgotável de criação. Realmente, o homem moderno tem feito a si mesmo e seu mundo inspirado pela revolta, e insatisfeito ou exasperado pela urgência de realizar-se, quando não consegue fazê-lo de imediato no campo social, quando algo além de suas forças o impede de ser o que é, sublima seu mais nobre desejo na obra artística, um dos últimos redutos para a livre expressão do espírito. Nas artes revelam-se assim os estertores dos oprimidos, o gozo dos lascivos, a inocência dos apaixonados, a fúria dos traídos, o sonho dos visionários, enquanto se preparam e se acumulam as potências revolucionárias para a guinada no mundo. Aproveitando-se de tantas possibilidades, as vanguardas criaram as condições para a livre expressão da imaginação, do desejo e do inconsciente em termos estéticos além dos parâmetros tradicionais que capturavam as forças criadoras nas formas previamente admitidas, e conduziram a vontade criadora para o campo da ação e da prática por meio da invenção de matrizes performáticas. Eis o arcano que modelou as vanguardas artísticas do século XX apesar de suas diferentes formas de compreender o fenômeno da arte, sua função no mundo e as atitudes que encarnaram existencial e socialmente. Um dos maiores feitos das vanguardas foi reconverter as forças que a arte sublimava em termos psicológicos para o plano da ação, dotando de potência revolucionária as forças da criação.57 Assim, de expressão do espírito, a arte tornou-se canal do desejo e da ressurgência das imensas forças até então reprimidas que encontraram na revolta histórica sua forma mais atual de manifestação: a Arte-Revolta, que toma a revolta como princípio de criação, e a criação como princípio de ação. 56 Albert Camus. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 327. 57 Mario Perniola capta bem esse preceito implícito no projeto de superação da arte e sua correspondente realização entre os Situacionistas: “En vez de sublimarse en el arte, el deseo debe tender hacia la formulación de un proyecto que haga posible su realización”. Cf. “El concepto de ‘situación’”, in Los situacionistas: história crítica de la última vanguardia del siglo XX. Acuarela & A. Machado, 2007, p. 29. 57 Por isso, na história da arte moderna e contemporânea é possível identificar a atividade de uma série de indivíduos, movimentos, organizações e coletivos que se esforçaram por fazer da práxis artística um gesto político. Para uma gama considerável de artistas cujas linhagens remontam às vanguardas históricas, vale uma concepção de arte que está relacionada intrinsecamente à vida, às venturas e às vicissitudes que a existência comporta, o que exige ao lado da estética uma atitude correspondente no mundo. Uma forma de se portar, agir, ser. Uma arte, portanto, vivida intensamente como um componente existencial, criativo, rebelde, afirmativo e, como tal, político. O artista moderno foi moldado pela conjunção de elementos advindos de dois arquétipos históricos: o alquimista e o dândi. Na genealogia apresentada por Nicolas Bourriaud, a figura típica do artista encarna a experiência da invenção de si por meio da experimentação e da ascese, bem como, a busca por um estilo de vida autônomo, despojado dos valores dominantes.58 Tanto o alquimista quanto o dândi concebem a existência como um campo aberto à experimentação, consigo e com o mundo: O artista moderno mostra que criar não significa para ele fabricar objetos, e sim fazer avançar uma obra, mesclar produção e produto num dispositivo de existência. Unindo práxis e poiésis, ele visa a uma totalização da experiência, totalidade de que o homem foi desapossado pela civilização industrial. A arte moderna se autocritica enquanto atividade ‘separada’, em busca de uma unidade perdida.59 Durante algum tempo, esse elemento constitutivo do tipo de subjetividade artística nutriu as prerrogativas éticas, estéticas e políticas que encontraram seu canal de expressão mais radical no início do século XX, com a deflagração da guerra artística pelas vanguardas. Um século de transformações, conflitos, rupturas, inovações e lutas intestinas no universo das artes resultou profundamente revolucionário para a livre expressão do pensamento e da sensibilidade humana.60 A arte contemporânea deve muito ao impulso 58 Nicholas Bourriaud, “Uma genealogia do artista moderno”, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 39ss. 59 Nicholas Bourriaud, “O fim da arte: rumo a uma existência unificada?”, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 68. 60 “O movimento [surrealista] exerceu enorme influência sobre sucessivas gerações de artistas. Sua ênfase na coletividade e na ruptura da distinção entre o privado e o público, o artista e o espectador, voltaria à tona em outros modos de fazer arte, como, por exemplo, o situacionistmo e o movimento Fluxus. (...) Num certo sentido, toda obra de arte que toma como objeto as operações da mente ou prioriza a subjetividade pode ser vista como ‘influenciada’ pelo surrealismo. (...) O surrealismo foi um movimento internacional que espalhou sua influência mediante a imigração de seus membros e a divulgação de suas ideias. Sua rede de influência é potencialmente imensa”. Fiona Bradley, “O legado do surrealismo”, in Surrealismo. São 58 transgressor, crítico e revolucionário de indivíduos e grupos que se beneficiaram do que as vanguardas históricas das primeiras décadas do século XX produziram e deixaram para a posteridade. Portanto, na hora de fazer o balanço, o que a história da revolta atribui como legado das lutas aos movimentos sociais no campo da política, no campo cultural (das visões de mundo, dos comportamentos, dos estilos e dos modos de ser, sentir, desejar, imaginar e pensar atuais) precisa reconhecer o legado das vanguardas artísticas, que se deve sobretudo ao impulso inaugural da criação nas dimensões subjetivas que ninguém jamais pode lhes negar ter aberto para o mundo político. Afinal, se hoje o paradoxo aparentemente insolúvel colocado pela história da arte se formula nos termos “tudo pode ser arte”, sem dúvida isso se deve ao movimento da revolta que marcou igualmente as artes e a política mundial, e no interior do qual multiplicaram-se estéticas, sentidos, valores, formas diferenciadas de pensar, sentir e experimentar a vida e o mundo. Tanto que no pós-guerra, os movimentos de contracultura, o Provos, os Beatniks, os Hippies, os Punks, os ecologistas, as feministas, os movimentos negros e indígenas, juntos aos demais movimentos de experimentação e resistência que perfazem desde então as lutas libertárias, atualizaram uma vez mais a revolta mesclando os seus ideias políticos com as mais diferentes e criativas expressões estéticas.61 Foi assim que, na sua escalada histórica, o movimento da revolta conseguiu montar, com as pistas deixadas pelas vanguardas, uma autêntica máquina de guerra ao fundir os dispositivos artísticos com os dispositivos políticos, e sem que poder algum pudesse deter de todo, ainda agora, em vários recantos da Terra, uma quantidade imensa de artistas e ativistas dinamizam e dão vida às suas criações com o desejo revolucionário, passando adiante, uns aos outros, o legado de linhagens que se desdobram e constituem o assalto à cultura da arte-revolta contemporânea.62 Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 73-74. Pode-se dizer o mesmo das repercussões do dadaísmo, do futurismo e dos situacionistas, com as devidas ressalvas. 61 O Provos foi um movimento pioneiro nesse sentido contracultural. Cf. Matteo Guarnaccia. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad, 2001. 62 O que aqui se conceitua como linhagens de arte-revolta, Stewart Home denomina “corrente utópica” da arte no século XX, cuja genealogia remonta às heresias medievais: “Percebendo isso, é fácil distinguir uma tradição vinda do Livre Espírito, pelos escritos de Winstanley, Coppe, Sade, Fourier, Lautréamont, Wiliam Morris, Alfrefd Jarry, atravessando o Futurismo e o Dadá – e depois o Letrismo, via Surrealismo, continuando através dos vários movimentos situacionistas, Fluxus, Mail Art, punk rock, Neoísmo e cultos anarquistas contemporâneos”. Cf. Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti) arte do século XX. São Paulo: Conrad, 2004, p. 14-15. 59 A MÁQUINA DE GUERRA ARTÍSTICA A relação da arte com a crítica tem uma história e ela se confunde com a própria modernidade. Ao invés, porém, de relacionar unicamente a dimensão artística com a crítica, será melhor perguntar sobre os fluxos da crítica que, na arte, livre de quaisquer racionalismos, encontra seu lugar de expressão por excelência como acontecimento estético. Afinal, se a arte é o espelho no qual uma época pode se ver refletida, talvez tenhamos que nos perguntar o que aconteceu na história recente para que o Critical Art Ensemble pudesse existir. Tal pergunta lança o pensamento na busca pela nomadologia da arte que encontra na revolta seu impulso criador. A fim de melhor esclarecer as ligações da arte com a política exploradas criticamente por diversos coletivos da atualidade, em especial o Critical Art Ensemble, e de como o movimento da arte-revolta se desenvolveu até o presente, montando sua máquina de guerra, cumpre, então, realizar um breve resgate histórico dos movimentos que fizeram do gesto artístico uma reivindicação política, e da resistência uma guerrilha artística. Arte e Política A arte não é bem-vinda onde impera a tirania, a não ser para dar cores à glória dos poderes, quando então perde sua mais nobre função, que é atribuir um sentido elevado à condição humana. Realmente, a conquista da liberdade artística tem atrás de si uma longa história de silenciamentos, incompreensões e ameaças, e nos casos mais infelizes, tragicamente maculada por ostracismos, prisões e assassinatos. Se na modernidade a arte tornou-se livre, isso aconteceu devido à incessante recusa de uma legião de artistas, literatos e poetas em continuar reproduzindo com variações meramente estilísticas as mesmas tendências dominantes encontradas na esfera da cultura. Muitos tiveram que camuflar suas reais intenções, produzir pequenos desvios, ousar quase imperceptivelmente, enquanto esperavam o momento propício para a revelação completa da grande obra, que quase sempre coincidia com o calor das revoluções sociais. 60 Seguindo uma tendência desviante nas artes e nas letras, algumas subjetividades radicais iniciaram um movimento subterrâneo na cultura ocidental e deixaram suas pegadas no caminho que conduziu as artes para além de todas as fronteiras. Hoje, ao lado de personalidades eminentes que contribuíram para a liberdade de pensamento na filosofia e nas ciências, figuram artistas como Caravaggio, Goya, Poe, Baudelaire, Courbet e Dostoiévski, só para mencionar alguns nomes conhecidos de uma série histórica de gênios malditos que celebraram as saturnais da revolta. Imagem 2 – Francisco Goya. El sueño de la razon produce monstruos, 1797-1798.63 A promessa de uma arte autônoma que, no Século das Luzes, era um mero ideal, tornou-se uma realidade no século XIX. A burguesia em ascensão, perseguindo uma arte livre dos imperativos religiosos, empunhou a bandeira com o lema l’art pour l’art ao mesmo tempo em que lutava pela valorização da razão e da ciência. A consciência histórica burguesa deu provas de que a revolução haveria de ser social, política e 63 “Esta água-forte do artista adormecido, ameaçado por rostos irreais, pretendia ser a primeira obra do ciclo Caprichos”. Rose-Marie & Rainer Hagen. Francisco Goya. Taschen, 2004, p. 34. 61 ideológica, ou não seria nada. Assim, enquanto cabeças rolavam no cadafalso, com algum esforço a burguesia conseguiu libertar o gênio artístico, mas tão só para confiná-lo imediatamente ao culto de uma elite formada por ilustres mecenas, déspotas esclarecidos, eruditos, colecionadores e dândis. Depois das primeiras investidas na formação e na propagação de uma arte social, ainda no século XIX, com sua recusa da arte burguesa, tradicional e acadêmica,64 o surgimento das vanguardas artísticas na aurora do século XX deu um claro sinal de que, finalmente, a sensibilidade artística e poética havia escapado da influência aristocrática, como foi durante muito tempo. E à semelhança do que aconteceu na época do Iluminismo, que produziu artistas ousados como Goya, inspirados nos ideais revolucionários, chegou o tempo em que personalidades como Tristan Tzara e André Breton tomaram a palavra, desta vez abertamente, para declarar guerra em alto e bom som à sociedade burguesa desde dentro. A arte, que há muito expressava a revolta com estilo, tornou-se enfim eminentemente política. Acerto de Contas O século XX foi a culminância e um acerto de contas com o que o antecedeu. A modernidade atingiu seu ápice e nele se revelaram os limites e as contradições do projeto de civilização inspirado no racionalismo positivista. Não bastasse o projeto iluminista ter se desvirtuado, o romantismo foi traído nos seus mais altos ideais utópicos, artísticos e poéticos.65 Assim, o movimento romântico, que há mais de um século arrastava consigo uma sensibilidade dilacerada entre os anseios nostálgicos que se recusavam a aderir à modernidade e a esperança progressista da redenção futura, ganhou uma nova oportunidade de se manifestar na crítica do esclarecimento, da razão e da técnica, os 64 Na Belle Époque, já havia um amplo debate nos círculos anarquistas e artísticos sobre o “artista engajado” e sobre a função da “arte social”. Cf. Gaetano Mandredonia, “Arte e anarquismo na Belle Époque”, in Michel Ragon, et. at. Arte e anarquismo. São Paulo: Editora Imaginário, 2001, p. 35-60. Desde 1840, havia uma luta entre três concepções de arte disputando a hegemonia cultural na França: uma arte comercial, uma arte social, e por fim, uma arte pretensamente pura. Cf. Nildo Viana, “Bourdieu: campo artístico e fetichismo da arte”, in A esfera artística: Marx, Weber, Bourdieu e a sociologia da arte. Porto Alegre: Zouk, 2007, p. 46ss. 65 “O romantismo – e o remoinho de imaginação utópica por ele desencadeado – é aqui analisado como um movimento sociocultural profundamente enraizado na paisagem histórica europeia, entre fins do século XVIII e meados do século XIX. Movimento sociocultural complexo e de múltiplas faces que não pode ser reduzido, portanto, apenas às formas utópicas de pensamento e de criação. Em contrapartida, contudo, dificilmente se compreende a mentalidade romântica se não se analisa o enorme potencial de energia utópica por ela desencadeado”. Elias Thomé Saliba. As utopias românticas. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 14. 62 mesmos elementos que, a despeito de tudo, conseguiram transformar o mundo sem no entanto realizar os anseios humanistas.66 No auge das Guerras Mundiais as promessas iluministas colapsaram de uma só vez, e o imenso poder das ciências mostrou-se igualmente implacável e destruidor. A própria vida foi atingida em seu núcleo pelo progresso da razão. Agenciada por estados totalitários e pelas indústrias capitalistas, à época, em franco desenvolvimento, a razão técnica refez o mundo de acordo com os projetos de dominação. O processo de desencantamento do mundo não poupou nem seu mais importante bastião, pois a razão, tão logo tomou a dianteira dos rumos históricos, foi despida de seus ideais de esclarecimento, libertação e fraternidade.67 Nunca antes a razão pura esteve tão engajada em interferir no mundo prático. A rápida expansão das estruturas do estado moderno e da indústria produtivista foi acompanhada pelo sentimento de inadequação de massas inteiras de operários, pensadores, movimentos artísticos e culturais.68 O poder se espalhou de uma ponta à outra da sociedade e com ele o sentimento de revolta se intensificou. A nostalgia do passado perdido mostrou-se conservadora demais para acompanhar o ritmo histórico, enquanto parcelas consideráveis dos movimentos sociais tiveram que mostrar sua capacidade de resistir formando frontes revolucionárias, outorgando-se o direito de avaliar o legado moderno na intenção de julgar a exploração econômica e os acontecimentos das guerras. Fiel em parte ao humanismo oitocentista, o pensamento crítico fez questão de demarcar o compromisso de uma razão sensível com os ideais libertários. Na fileira formada pelos movimentos revolucionários, ao lado das linhagens anarquistas e socialistas, destacaram-se as vanguardas nas artes que, nas primeiras décadas do século XX, deram voz a um pensamento crítico baseado em uma apreensão sensível e estética do mundo. No contato com a dimensão artística, o Futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo produziram discursos, práticas e subjetividades que deram visibilidade a obras e meios de ação de teor contestatório, crítico e subversivo, fazendo 66 “O romantismo representa uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista, em nome de valores e ideais do passado (pré-capitalista, pré-moderno). Pode-se dizer que desde a sua origem o romantismo é iluminado pela dupla luz da estrela da revolta e do ‘sol negro da melancolia’ (Nerval)”. Michael Lowy e Robert Sayre. Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 38-39. 67 De acordo com Max Horkheimer e Theodor Adorno: “O racionalismo das Luzes adota a mesma atitude com relação aos objetos que o ditador com relação aos homens. Conhece-os para melhor os dominar”. Citado por Olgária Matos, “O eclipse da razão”, in A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993, p. 45. 68 Cf. Manuel Cruells. Los movimientos sociales en la era industrial. Barcelona: Editorial Labor, 1967. 63 ecoar um grito que representou, junto ao coro dos movimentos revolucionários, a mais alta expressão da revolta de seu tempo. Imagem 3 – Luigi Russolo. La rivolta, óleo sobre tela, 1911. “Nossos quadros são futuristas na medida em que são o resultado de ideias éticas, estéticas, políticas e sociais absolutamente futuristas”.69 Avant-Garde O fato agora reconhecido em todo o mundo de que a arte contesta os fundamentos da realidade, coloca em suspenso o princípio ordenador do mundo e devolve o ser à sua dimensão essencialmente criadora – desponta no fim de um processo complexo que tem uma história, necessariamente múltipla, e que no entanto se fez de alguma forma especial na vida e nos sonhos de jovens, artistas, poetas e escritores, visionários, utópicos, amantes e loucos, que dia e noite deram voz e corpo ao impulso primitivo elevado à máxima potência, como para testemunhar o crepitar da revolta ante um mundo perdido em seus próprios paradoxos. Com o Futurismo, o Dadaísmo e o Surrealismo a história da arte atingiu seu ponto crítico no qual o apelo do ser, em resposta ao clamor das massas, tingiu as pinturas e os poemas com as cores da revolta. Ao longo de um processo de amadurecimento histórico, 69Cf. Sylvia Martin. Futurismo. Madrid: Taschen, 2005, p. 38-39. 64 a sensibilidade poética, a imaginação artística e o espírito revoltado fundiram-se até que as portas da percepção foram definitivamente abertas. Pouco a pouco, a revolta tornou-se consciência poética, artística e política. A princípio, nas mentes de indivíduos animados por uma singularidade radical, depois, potencializada coletivamente nos movimentos de vanguarda, nos quais a psicoesfera artística, liberta de quaisquer constrangimentos formais ou morais, foi definitivamente lançada no espaço infinito da imaginação. Imagem 4 – Os Futuristas italianos em frente à sede do jornal Le Figaro, Paris, em fevereiro de 1912. Da esquerda para a direita: Russolo, Carrà, Marinetti, Boccioni e Severini.70 O futurismo tomou a dianteira no processo de modernização das artes, louvou a velocidade, as máquinas, colocou o homem no centro do destino e com isso afirmou seu ímpeto modernista face à tradição. Assim, foi o primeiro movimento artístico do século declaradamente político.71 No entanto, a algaravia iniciada por Marinetti, embora tenha sido compartilhada também por anarquistas, mostrou-se gradativamente comprometida com ideais belicistas mais afinados com as conquistas militares, tecnológicas e políticas do que com o espírito libertário. No Manifesto Futurista publicado em 1909 no jornal Le Figaro pode-se ler essa passagem: “Glorificamos a guerra – a única higiene do mundo –, o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutivo dos portadores da liberdade, as belas 70 Sylvia Martin. Futurismo, p. 7. 71 “A arte, ele [Marinetti] acreditava, fundira-se com a ação política”. Richard Humphreys, “‘A guerra: única higiene do mundo’”, in Futurismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 65. 65 ideias pelas quais vale a pena morrer e o desprezo pela mulher”.72 O chamado “teatro de ação” futurista apoiou o esforço de guerra estimulando os artistas a exprimir a beleza e o “esplendor da conflagração”. As inovações nas formas de manifestação artística com seu pioneirismo nas performances disruptivas73 não resultou na formação de uma resistência artística. Antes o contrário. O grupo de Marinetti revelou sua verdadeira face na idolatria do Estado e da guerra, e com isso, o impulso da revolta inicial que aparentemente estava na origem do movimento foi traído e não logrou construir algo que excedesse sua adesão ao fascismo. Imagem 5 – Alfredo Ambrosi. Retrato de Benito Mussolini com uma vista de Roma ao fundo, 1930.74 72 Cf. Richard Humphreys, “Crash: tempo, máquinas de sexo e manifesto de fundação”, in Futurismo, p. 11. 73 “In Futurism, then, performance became the privileged paradigm for artistic and political operations in the public sphere. More than painting, sculpture or literature, performance constituted a space of shared collective presence and self-representation. The Futurism desire for dynamism, activation and emotional arousal is repeated in innumerable avant-garde calls of subsequent decades, when performance was perceived as able to rouse emotion more vividly than the perusal of static objects”. Claire Bishop. Artificial Hells: participatory art and the politics of spectatorship. New York: Verso, 2012, p. 48. Para maiores detalhes, cf. “Provocation, Press and Participation”, p. 42-49. 74 Cf. Sylvia Martin. Futurismo, p. 24. 66 Seria necessário ainda encontrar as forças externas à esfera artística constituída para poder desferir o golpe contra a arte régia e libertar toda a potência criadora recalcada aí sob a égide burguesa. O futurismo, que pela primeira vez ousou montar a máquina, por mais que tenha vinculado a arte com a guerra, não conectou as peças corretamente. Ao invés de potencializar a revolta com forças capazes de liberar a máquina artística, preferiu vincular-se à violência e à guerra sob um projeto de dominação que lhe conduziu para os braços de ferro do fascismo, tornando-se assim uma arma de seu aparelho. Não demorou, Marinetti e Mussolini deram-se as mãos deixando para trás os anarcofuturistas russos.75 Já o dadaísmo, justamente por ter se colocado desde o início frontalmente contra a guerra empreendida pelos estados, não perdeu tempo e conectou a revolta, livre de todas as formas tradicionais, diretamente às potências do caos, e assim, assumindo o risco de ser tragado pelas imensas forças liberadas no processo, conseguiu montar a máquina de guerra artística com êxito. Mas isso tão só porque fez da revolta contra a guerra do Estado uma potência capaz de destruir a arte burguesa em seu núcleo, devastando o campo (com suas regras, convenções e formalidades) para dar vazão enfim à livre criação. Mais do que realmente canalizadas pelos dadaístas, as potências do caos foram liberadas ao mesmo tempo em todos os sentidos. Com esse golpe de mestre, Tristan Tzara e seus parceiros aliaram-se ao caos sem pensar duas vezes para retirar dele uma potência intempestiva e devastadora que tentaram direcionar contra os pilares da civilização, a começar pela arte. O Grito Dadaísta O supremo ato dadaísta, a completa recusa do mundo e da arte, deflagrou se não a ruína do mundo, ao menos o início de uma guerra sem fim contra todo autoritarismo, na sociedade e no espírito. O grito rebelado pelo movimento dadaísta foi uma resposta imediata à tragédia da Primeira Guerra Mundial que havia convocado a juventude para compor as fileiras de um teatro de horrores no qual desfilavam lado a lado as maravilhas do progresso e da morte. 75 Interessa neste ponto a relação do Futurismo com a máquina de guerra artística. Em termos históricos, o movimento é muito rico e variado. “O Futurismo vai além da pintura, da poesia e da música. Cria também moda e arquitetura e, talvez mais importante, uma política, que funde todas as outras atividades futuristas numa totalidade redescoberta (...). Desconsiderar a política futurista como sendo fascista é tão comum quanto incorreto. Nos seus primórdios, o Futurismo foi bastante influenciado pelos escritos de Proudhon, Bakunin, Nietzsche e, especialmente, Georges Sorel”. Stewart Home. Assalto à cultura: utopia subversão guerrilha na (anti)arte do século XX, p. 16. 67 Com esse gesto, repetido em Berlim, em Zurique, depois em Paris e em Nova Iorque, o dadaísmo colocou em funcionamento uma máquina de guerra artística com forte apelo ao choque, ao distúrbio e à confusão. Com o passar do tempo, multiplicou a crítica, a ironia e a negação de tal modo que nem a contradição, nem o paradoxo e o paroxismo mostraram-se capazes de lhe deter.76 Dada é uma tempestade que eclode sobre a arte como a guerra sobre os povos, um fogo de revolta e audácia. Ele vai opor sua loucura à desrazão universal, e desenvolver uma filosofia do não. Dada se quer simultaneamente subversivo e terrorista. Nesse período em que a civilização ocidental soçobra na carnificina e no horror da guerra, e com ela todos os valores burgueses sobre os quais ela repousa, o dadaísmo ataca os próprios fundamentos dessa sociedade. Pisoteia os valores, abole todas as concepções fundamentais de sua época, combate a lógica que permite justificar o assassínio e a mutilação de milhões de homens, ataca a ciência considerada como máquina de matar. Toma por alvo a arte, a literatura, a ideologia burguesa, questiona o conjunto da organização social, e duvida de tudo. 77 Em um mundo que reduziu a vida a nada, qualquer ato diferente estava autorizado. Seguindo a lógica da urgência, seria um direito de qualquer pessoa determinar-se a destruir um mundo doravante sem valor. Os golpes se seguiram nas artes plásticas, na poesia, na música e em cada uma das formas de expressão conhecidas e praticadas então. Uma a uma, as artes foram submetidas à decomposição, à fragmentação, à sublimação da pulsão de morte, do instinto de crueldade. A revolta fez valer sua capacidade criativa e inovadora no campo estético de maneira inusitada e radical. De certa forma, os dadaístas se sentiam sobreviventes da guerra empreendida pela civilização, perdida que estava nos labirintos da demência humana. A ruptura com as formas figurativas, a decomposição imposta às linguagens, a demolição dos fundamentos, a des/montagem do discurso, das imagens e da realidade, cada ato desses exigia uma obstinação somente comparável à de um homem que escapa de uma sessão de tortura com a ânsia de vingar-se com todas as suas forças.78 O romantismo jamais teria abrigado em seu meio uma sensibilidade tão brutal e violenta. Seria mero acaso o impulso vital eclodir com tamanha intensidade e virulência? Como explicar um acontecimento dessa magnitude? Afinal, quantas guerras não presenciaram 76 Ver Dietmar Elger e Uta Grosenick (Ed.). Dadaísmo. Taschen, 2010. 77 Dominique Berthet, “Dada, nem Deus nem Arte”, in Michel Ragon, et. at. Arte e anarquismo, p. 63-64. 78 Des/montagem, termo empregado por Norval Baitello Junior ao conceituar a atividade recorrente nos círculos dadaístas de decompor as formas culturais em suas partes elementares. Cf. Dadá-Berlim: des/montagem. São Paulo: Annablume, 1993. 68 os poetas e artistas séculos afora? E por que só então a revolta se prontificou a deflagrar, em revanche, uma guerra total no espírito da época? Não há como saber. O certo é que o grito dadaísta se fez ouvir nos quatro cantos do mundo ocidental, acompanhou as rajadas das metralhadoras com o sem sentido das glossolalias, explodiu as imagens com suas colagens, tornou o caleidoscópio feito com suas pinturas o espelho quebrado no qual a civilização se viu despida de todas as ilusões. Imagem 6 – Raoul Hausmann. ABCD, colagem, 1923-1924.79 “Não é o Dada que é absurdo – mas a essência da nossa era que é absurda”. – Os Dadaístas. Na história da arte moderna, o efeito dadaísta teve as mesmas proporções de um apocalipse, depois do qual só restaria a redenção. A intenção era reduzir tudo a nada e deliberadamente destruir os pilares da civilização, a começar pela arte, onde os homens sublimes esperavam encontrar a beleza, a eternidade, um valor superior antes acessado somente pela via divina. Contra Deus e o Homem, os dadaístas opuseram o gesto radical da negação. 79 Cf. Dietmar Elger e Uta Grosenick (Ed.). Dadaísmo, p. 41. 69 Imagem 7 – Grupo Dadaísta. Da esquerda para a direita: Paul Chadourne, Tristan Tzara, Philippe Soupault e Serge Charchoune. Na frente: Man Ray, Paul Éluard, Jacques Rigaut, Mme Soupault e Georges Ribemont-Dessaignes.80 A Super-Realidade Assim, no cenário da Primeira Guerra Mundial, foi o dadaísmo que bradou a revolta contra o belicismo na tentativa desesperada de colocar a vida em seu devido lugar. A fúria do movimento, direcionada ao mundo que reduziu o valor da vida a nada, insistiu em uma abordagem puramente negativa da arte: desfez os versos, reduziu o poema a glossolalias e palavras desconexas, rasgou os cânones literários e tornou visível a desrazão, ora nas colagens feitas por elementos encontrados ao acaso, ora nas atitudes desafiadoras do condicionamento corpóreo, no uso subversivo da voz e das palavras, e nas posturas consideradas ridículas por espectadores perplexos com as performances polemológicas dos dadaístas.81 Coube aos surrealistas, entretanto, a tarefa de atribuir um caráter positivo ao dadaísmo. Não por acaso, o movimento surrealista respondeu ao apelo que, no movimento dadaísta, apareceu de forma incompleta e inconsciente. O que o surrealismo 80 Imagem disponível em https://steemkr.com/film/@emily-cook/dada-and-film-rebellion-of-the-objects- the-curious-and-bizarre Acesso 23 de julho de 2019. 81 “Assim, enquanto outros Dadás, especialmente Paris e Zurique estiveram/estavam/estariam ocupados em ‘épater le bourgeois’ através da literatura e da arte, mesmo que explodindo seus limites, Dadá-Berlim não utiliza apenas a literatura e a arte como matéria-prima, mas a propaganda, o jornal, a notícia, a informação, as figuras políticas e a própria práxis política”. Norval Baitello Junior, “República Dadá vs. República de Weimar”, in Dadá-Berlim: des/montagem, p. 83. 70 fez, quanto a isso, foi fornecer uma consciência poética positiva ao que havia sido colocado pelos seus antecessores de forma puramente negativa e impulsiva, afinal, a exposição simples e direta ao caos nem sempre evocava uma atitude criadora, tão necessária quanto urgente para retirar a humanidade de seu estado de letargia a que a guerra havia levado. Desiludido assim pela incapacidade do dadaísmo em levar a arte a outro patamar que superasse a pura negação, o surrealismo, com Breton, logrou propor objetivos e estratégicas diferenciadas.82 Imagem 8 – Os Surrealistas em Paris, 1933. Da esquerda para a direita: Tristan Tzara, Paul Éluard, André Breton, Hans Arp, Salvador Dalí, Yves Tanguy, Max Ernst, René Crevel e Man Ray. Foto por Anna Riwkin-Brick.83 Contrapondo-se ao mundo racional, o movimento surrealista, em vez de se aferrar à negação de qualquer sentido, propôs o resgate das imensas potências arcaicas alojadas no inconsciente, com a convicção de que, uma vez libertas, poderiam dar vazão à produção do “maravilhoso”, um mundo reencantado. Na história da arte e da poesia, de 82 Depois do rompimento de Breton com Tzara, um pequeno grupo formado por artistas e escritores em torno da revista Littérature deu início a uma série de experimentos que envolviam “temporada dos sonos”, investigação sobre as potencialidade do transe e dos estados oníricos da mente, o que deu origem ao surrealismo em sua essência. “A ênfase era no experimentalismo, com a exploração sistemática de uma criatividade que pudesse oferecer alternativas ao anarquismo dadá, tão estimulante, mas em última análise destrutivo”. Fiona Bradley, “‘Como duas ondas quebrando uma na outra’. Surrealismo e Dadá”, in Surrealismo, p. 19. 83 Imagem disponível em https://www.culturabrasil.org/breton.htm Acesso 23 de julho de 2019. 71 acordo com Edgar Morin, o surrealismo encarna uma revolta que se compara ao renascimento do hiperespírito poético.84 Na leitura histórica da modernidade feita pelo surrealismo, a promessa iluminista da razão fracassou em libertar o homem, e como não bastasse, encerrou a vida em organizações sociais aparentemente inamovíveis de cujas instituições foram excluídas a poesia, a imaginação, a sensibilidade e o desejo. Justo o que, desde o romantismo, representava parte integral do sujeito definido em termos poéticos e artísticos, concepção esta resgatada pelos surrealistas. De forma semelhante à visão de mundo surrealista, Ernesto Sabato descreve a que ponto a civilização chega com a “tragédia da cultura”: Nesse empobrecimento se atrofiam as capacidades profundas da alma, tão atraentes para a vida humana quanto os afectos, a imaginação, o instinto, a intuição para desenvolver, ao extremo a inteligência operativa e as capacidades práticas utilitárias. (...) agora, diante da vulnerabilidade, ou o fracasso, da Razão, da Política e da Ciência, o ser humano oscila no vazio sem encontrar onde se enraizar no céu nem na terra, enquanto é sufocado por uma avalanche de informação que não pode digerir e da qual não recebe alimento algum.85 A humanidade teria perdido assim parte considerável de si por ter relegado a poesia e a sensibilidade ao degredo. O fato do mundo ter sido refeito pelo princípio da eficácia total, pela razão calculadora e pela vontade de poder incondicional, resultou em uma realidade sem alma, incolor, desnaturada e fria. Por um lado, a arte, separada da vida, foi reduzida a mera expressão formal, e por outro, a vida cotidiana continuava submetida aos imperativos da razão mercantil e utilitária. A conclusão vitalista de tons românticos conduziu o surrealismo à dimensão política. Seu apelo poético apostou na desrazão e colocou em cena a noção da vida como eterna aventura, sonho e jogo. A única saída para a realização da super-realidade seria a expansão do maravilhoso para além da fronteiras da razão, dentro e fora do sujeito. Daí a valorização da escrita automática, do sonho, do devaneio, do acaso, do jogo, que teriam como fonte de criação as inesgotáveis potencialidades do inconsciente. 84 Segundo Edgar Morin, houve duas revoltas históricas da poesia. A primeira foi a do romantismo, e a segundo foi a do surrealismo. Ambos movimentos insurgiram-se contra os imperativos prosaicos que sobrepuseram-se sobre a vida, deixando de lado os aspectos poéticos constitutivos da experiência humana. Cf. “A fonte de poesia”, in Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. 85 Ernesto Sabato. La resistencia. Buenos Aires: Editorial Planeta, 2000, p. 11 da segunda carta. 72 Imagem 9 – Salvador Dalí. Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo, 1943.86 A Revolta Artística Por suposto, as vanguardas artísticas haviam incorporado uma forma de arte que, comparada aos movimentos anteriores, tornou-se algo mais do que simplesmente uma expressão das inquietações sociais representadas em pinturas e livros. Realmente, com as vanguardas, no campo das belas artes e mais especificamente da pintura, o universo das artes continuou o processo de inovação nas formas de expressão e nas técnicas, dando sequência ao que o impressionismo iniciou no final do século XIX, o que sem dúvida foi fundamental na formulação imagética e portanto estética correspondente às visões de mundo que tentavam a todo custo acompanhar os ritmos dos acontecimentos históricos recentes. Na poesia, o rompimento com as formas canônicas, a abolição das rimas e dos versos métricos, por mais que pudesse parecer uma simples questão formal, na realidade 86 Gilles Néret. Dalí. Germany: Taschen, 2002, p. 57. 73 continha uma reivindicação muito mais profunda de vozes que, ao desmantelarem as estruturas da linguagem, queriam extrair da literatura e dos poemas sua potência transformadora como para realizá-la concretamente na vida cotidiana. As pretensões das vanguardas não eram modestas. Em resposta ao belicismo louvado nas guerras, o dadaísmo propôs destruir os pilares da civilização por dentro, enquanto o surrealismo, em seguida, atribuiu a si a tarefa de reconstruir o mundo a partir de seus próprios escombros. Para realizar o ato supremo da destruição, o dadaísmo expôs de uma só vez o mundo a seu absurdo a partir da liberação das forças do caos, tornando a arte o espelho quebrado no qual o sonho mau da modernidade deveria se refletir.87 O surrealismo, a fim de edificar a realidade acima da fria razão, invocou as forças criadoras da poesia e do inconsciente tornando a arte o crisol alquímico no interior do qual deveriam fundir-se todas potências do “maravilhoso”.88 Com tais objetivos, as rupturas inauguradas pelos movimentos dadaístas e surrealistas promoveram rachaduras na cultura burguesa ao direcionarem seus ataques ao princípio de realidade que sustentava a visão de mundo dominante e suas crenças progressistas, claramente falaciosas se colocadas face ao horror perpetrado pelos estados- nações nos processos de colonização e nas guerras mundiais. O movimento da revolta que animou as vanguardas foi, desde então, direcionado contra o princípio de realidade e os fundamentos ordenadores do mundo que sustentavam todo o edifício da civilização. O mundo moderno foi atacado diretamente nas suas bases ideológicas inconscientes a fim de que suas razões de ser e as regras que lhe caracterizam, colocadas ante uma indagação poética profunda, revelassem as inconsistências, as contradições e os paradoxos contidos no próprio princípio de realidade. Nada escapou ao furor da revolta artística, que começou no psiquismo individual, para, logo em seguida, se expressar no mundo cultural e político. Nem o ego e as ilusões pessoais, nem as esperanças futuristas ou revolucionárias foram poupadas. A revisão deveria ser completa e passar pelo crivo da sensibilidade poética. Os ataques que as vanguardas direcionaram contra a civilização ocidental expuseram o reino das 87 “Uma obra de caos não é certamente melhor do que uma obra de opinião, a arte não é mais feita de caos do que de opinião; mas, se ela se bate contra o caos, é para emprestar dele as armas que volta contra a opinião, para melhor vencê-la com armas provadas”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Do caos ao cérebro”, in O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, p. 263. O caos contra a opinião, mas também contra a ideologia, o princípio de realidade, os fundamentos metafísicos, sociológicos e políticos atribuídos ao ser. 88 “O período de 1922-1924 viu os membros do grupo de Littérature empreenderem uma resoluta busca do maravilhoso. Encontravam-se em cafés ou em suas casas e ateliês para escrever e falar em estado de transe”. Fiona Bradley, “A imagem surrealista automática”, in Surrealismo, p. 20. 74 representações e das ideologias a uma inquirição profunda como forma de desferir um golpe no âmago do espírito racional e sua pretensa posse da verdade última. Imagem 10 – Johannes Baader. O grande plasto-dio-dada-drama, 1920. Fotografia da "Primeira Feira Internacional Dada".89 Desde então, o esforço coletivo de incontáveis artistas fez com que o princípio da realidade explodisse por dentro (nas subjetividades) e por fora (no campo social). Uma vez aberto o campo das percepções sensíveis, a arte encontrou sua forma de se multiplicar pelo mundo – saiu dos museus, espalhou-se pelas ruas, alojou-se em pequenos aposentos e, por fim, passou a circular entre gentes simples cuja sensibilidade era mais próxima daqueles que levavam o mundo nas costas e colocavam as máquinas para funcionar, homens e mulheres, crianças, jovens e velhos que sonhavam com um trabalho digno e melhores condições de vida. Com esse ímpeto, multiplicaram-se manifestos, libelos, pinturas, poemas e performances, em suma, formas discursivas, práticas, sonoras e visuais que se disseminaram nas sociedades ocidentais. Como partículas de universos 89 Cf. Dietmar Elger e Uta Grosenick (Ed.). Dadaísmo, p. 59. 75 incorpóreos revolucionários, passaram a desafiar a noção de realidade onde quer que chegassem. Favorecendo-se dos meios técnicos de reprodução, circulação e consumo das artes, bem como das novas formas de expressão artísticas, os movimentos animados pelas vanguardas abriram espaço no campo dos possíveis históricos ao trabalharem uma nova práxis artística no campo social e político. Desregramento dos Sentidos Nesse sentido, as vanguardas marcaram a história da arte de uma maneira muito mais profunda e complexa do que uma mera análise formal e estética poderia demonstrar. O que as vanguardas colocaram em questão foi o estatuto político da arte em relação à vida social, e não em referência a questões formais ou técnicas internas à esfera da arte. O que faz toda a diferença. Assim, ao mesmo tempo em que inventavam novas formas de expressão, as vanguardas questionaram a suposta autonomia da arte de forma prática, interferindo no espaço público com reivindicações de caráter político, ainda que de uma perspectiva considerada artística. As rupturas formais, os experimentos na composição e nas técnicas artísticas, desse ponto de vista, nada mais foram do que efeitos colaterais da crítica central direcionada ao distanciamento da arte em relação à vida. Esse distanciamento se deu ao longo de um processo iniciado no século XVIII, com o ideal iluminista da autonomia da arte em relação aos imperativos religiosos, que foi desenvolvido posteriormente no século XIX com a realização do ideal l’art pour l’art, quando finalmente a arte passou a girar em torno de si mesma como uma esfera separada na qual tentava proteger-se de intromissões repressoras de sua potência criadora.90 Posteriormente, no século XX, as mutações formais e a recusa em representar a realidade que resultariam mais tarde no abstracionismo puro, confirmavam um distanciamento estético e formalista cada vez maior do modernismo em relação à realidade, sintoma de que a arte, não somente havia se isolado em uma esfera separada, como também, não nutria qualquer interesse na realidade, manifestando assim uma atitude tipicamente 90 Em um artigo, Gaetano Manfredonia apresenta um breve histórico da politização da arte na França, no período que marca a passagem do século XIX para o século XX e que antecede a emergência das vanguardas. “De fato, na virada do século, a atividade que os libertários exibem em favor da arte social vai ser orientada essencialmente em três direções que, ainda que coincidindo parcialmente, não se sobrepunham: a primeira visando a desenvolver nos meios populares toda uma série de práticas cujo objetivo era colocar a arte ao alcance de todos; a segunda preconizando o desenvolvimento de práticas artísticas no próprio seio da classe operária; a terceira, enfim, esforçando-se para valorizar formas de criações artísticas populares”. Cf. “Arte e anarquismo na França da Belle Époque (1880-1914)”, in Michel Ragon, et. at. Arte e anarquismo, p. 51. 76 evasiva e portanto infecunda. Nesse cenário, coube às vanguardas colocar em xeque a arte burguesa rompendo os limites impostos à arte como tal para, desta maneira, reaproximar a poiesis, a dimensão prática implícita na atividade estética (o seu caráter criador) da dimensão da vida cotidiana propriamente dita, premida pelos poderes constituídos. Imagem 11 – Raoul Hausmann. O crítico de arte, colagem, 1919/20.91 Com o dadaísmo, a recusa da arte burguesa tornou-se uma negação completa da arte separada da vida. A interpretação radical do movimento foi a de que não havia mais sentido fazer arte enquanto milhões de pessoas morriam nos campos de batalha ou perdiam suas vidas servindo a um mecanismo cego. Paradoxalmente, os dadaístas quiseram abolir a arte valendo-se de meios artísticos. A estratégica escolhida para demolir a arte por dentro, nas suas vertentes extremistas, foi expor as linguagens verbais, visuais e sonoras diretamente ao caos, sem no entanto mediar esse processo com algum sentido. Na operação dadaísta, o real, despido assim de seus preceitos figurativos e significantes, 91 Dietmar Elger. Dadaísmo, p. 37. 77 eclode por meio de signos e, embora possa preencher um espaço, na realidade o faz para esvaziar ou mesmo anular qualquer possibilidade de reconversão de sentido. A busca pelo sentido que está vinculado à exposição ao absurdo desta maneira é no mais das vezes reflexo, porém está fadada ao fracasso de antemão, ao menos nos termos propostos pelo procedimento. Por si só tal operação sobre o real pela via da liberação do caos na arte, ainda que possa implicar, por parte do artista e do espectador, uma atitude reativa, seja de questionamento radical, seja de repulsa ou desprezo, resulta em definitiva em pura negatividade. Por isso, o dadaísmo ficou conhecido como um movimento niilista, embora seja possível reconhecer caracteres anárquicos nele. O dadaísmo levou às últimas consequências a fórmula proferida por Rimbaud do desregramento completo de todos os sentidos. O resultado desta interpretação literal foi nada menos do que a ressurgência do instinto de morte nas artes de forma devastadora, o que lhe custou a própria desintegração como movimento artístico, pois as forças liberadas no processo voltaram-se contra si (“o dada é anti-dada!”).92 O surrealismo reconheceu o papel do dadaísmo na emancipação das artes de seus preceitos tradicionais mas não se deteve ante a função puramente destrutiva proposta e praticada pelo dadaísmo, a começar pela nova interpretação da fórmula vidente do jovem Rimbaud. Para escapar do impulso de autodestruição liberado pelo dadaísmo em resposta à guerra mundial e ao mundo burguês, o surrealismo vinculou a fórmula de Rimbaud ao princípio do prazer, e ao invés de colocar a poesia a serviço da destruição, propôs uma busca poética pela super-realidade do “maravilhoso”. Desta forma, em revanche à pura negatividade dadaísta, o surrealismo se insurgiu igualmente contra a arte tradicional burguesa mas sem preconizar o fim da arte. A busca pelo maravilhoso, na vida privada e coletiva, foi o lema surrealista para o necessário reencantamento do mundo e da vida, tão fundamental quanto urgente em um mundo administrado por burocracias e alimentado por uma forma tecnocientífica de pensamento que, da perspectiva da vida, encontrava-se comprometido com a morte. Assim, enquanto o dadaísmo propôs abolir a arte sem realizá-la, o surrealismo demarcou seu compromisso com uma estética generalizada ao propor realizar a arte sem no entanto aboli-la. O procedimento escolhido para efetuar os fins da criação de uma super-realidade foi o da 92 “Rebelião, sempre houve. Dada, mais do que o Surrealismo, radicalizou e proclamou a rebelião absoluta: ‘Os verdadeiros dadaístas são contra o Dadaísmo’, foi a conclusão a que chegou Tristan Tzara”. Carlos Felipe Moisés, “Desconcerto concertado”, in O desconcerto do mundo: do renascimento ao surrealismo, p. 330. 78 livre expressão do desejo e das forças alojadas no inconsciente, no qual residiriam potências profundas da vida humana que caberia libertar dos condicionamentos racionais e conscientes a que estariam submetidas na vida cotidiana.93 Imagem 12 – René Magritte. Memória, óleo sobre tela, 1954.94 Assim, o ideal da arte pela arte, que premia o impulso criativo no formalismo e nos referenciais canônicos da tradição, foi definitivamente superado pelas vanguardas históricas, e desde então, a arte tem sido marcada pelo movimento criativo da revolta, a um só tempo subjetiva, formal, estética e discursiva, bem como prática, social e política. A arte do século XX, ao romper com a tradição e com a arte burguesa, passou a ser um campo privilegiado de expressão da revolta que está na base do psiquismo moderno. A 93 “Em 1924, no Manifesto do Surrealismo e na revista La Révolution Surréaliste, Breton definiu o automatismo como a prática artística surrealista mais importante, o principal caminho de acesso ao maravilhoso: ‘Surrealismo. S. m. Automatismo psíquico puro, por meio do qual alguém se propõe a expressar – verbalmente, utilizando a palavra escrita, ou de qualquer outra maneira – o verdadeiro funcionamento do pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação estética ou moral’”. Fiona Bradley, “A imagem surrealista automática”, in Surrealismo, p. 20-21. 94 Capa do livro Plínio Augusto Coelho (org.). Surrealismo e anarquismo: “Bilhetes surrealistas” de Le Libertaire. São Paulo: Imaginário, 1990. 79 partir de então, tanto nos rompimentos formais e na abordagem dos conteúdos produzidos, quanto no gestos dos artistas de vanguarda, evidencia-se um forte caráter político, reafirmado na produção e na discussão em torno das artes, da vida coletiva, da cultura e até mesmo da revolução. Rebeldes e Malditos Nada disso teria como se realizar não fosse o movimento da revolta impulsionando a criação de subjetividades rebeladas, inovadoras, contestatárias e afirmativas. Numa época em que as pessoas, aos milhares, eram convocadas para lutar e morrer nos fronts de batalha para satisfazer a vontade de tiranos – quem poderia imaginar que o impulso renovador das artes nasceria nos devaneios de jovens poetas e artistas que encontraram nas artes e na vida moderna imensas potencialidades ainda pouco aproveitadas pela humanidade? Na realidade, o movimento da revolta visto nas artes tem uma história bem antiga, na qual se inserem as pinturas de Caravaggio e Goya na vertente das belas artes. Na literatura moderna, a revolta aparece na escrita de Turguêniev, de Dostoiévski e antes deles em Sade, enquanto na poesia a revolta está bem representada nas Flores do Mal, entre o romantismo e o modernismo dos Paraísos Artificiais de Baudelaire, e no simbolismo da Estadia no Inferno de Rimbaud com sua fórmula vidente do desregramento completo de todos os sentidos. Na sequência histórica, o niilismo anárquico do movimento dadaísta prolongou o legado da literatura e dos revolucionários russos, assim como o Surrealismo foi um efeito da linhagem de poetas malditos que tem Baudelaire e Lautréamont como patronos e Rimbaud como príncipe. Com uma atenção bem direcionada, não é difícil identificar e reconhecer os diversos focos de rebelião no pensamento, nas artes, na cultura e na política modernas. No rico universo das artes contemporâneas, as multiplicidades de estilos e dispositivos estéticos atualmente em uso nada mais são do que efeitos de um processo coletivo de rupturas, transformações, adaptações, críticas e experimentações em torno do princípio de prazer e da vontade de potência inerentes ao movimento da revolta. Com relação ao exemplo das vanguardas da arte-revolta, Michel Onfray diz: 80 Suas lições, sempre boas, ensinam a vontade radical de subversão, desejo do advento de um real onde os prazeres e os desejos existiriam em paz, reconciliados, onde a vida e as sensações, os sentimentos e as emoções, os impulsos, os instintos e as paixões deixariam de ser monstros a destruir para se tornar parceiros a domar. Lá onde o princípio de realidade triunfou, sustentado por Tânatos, ator da história, eles opuseram, mágico e magnífico, o princípio de prazer, turgescente de um sangue insuflado por Eros. Sua atualidade permanece.95 Estética Generalizada O cenário político montado pela arte moderna revelou-se fecundo quando as vanguardas avançaram no campo da cultura ultrapassando os limites que até então tentavam separar a esfera das artes do restante da vida. Ao enfatizar questões que colocavam a normalidade da vida dominante em um estado de perpétua crise, a arte- revolta das vanguardas deslocou o discurso para a esfera pública, tornando a palavra e o gesto artísticos potencialmente políticos. Sobre as relações estabelecidas entre a arte e a política no contexto das vanguardas, Walter Benjamin chamou de estetização da política o caso da apropriação fascista do Futurismo, e de politização das artes a resposta do Construtivismo socialista. A denominada estetização da política levada a cabo pelos futuristas aconteceu, no entanto, depois de se tornar um estandarte empunhado pelo fascismo. Na realidade, se a política institucional se apropriou da estética foi porque na arte de vanguarda o teor e as intenções das quais as obras são efeitos já haviam se tornado políticos e de interesse social. Onfray questiona a validade dessa dialética benjaminiana pois, para começar, a estética na política não é uma premissa do Fascismo e do Nazismo, haja visto que, historicamente, onde houve governos lá também encontrava-se uma estética para conferir imagens e símbolos gloriosos às vestes, aos estandartes e a todos os signos do poder. Além disso, a arte, ainda que se queira livre dos imperativos políticos, mesmo assim não deixa de ser um campo atravessado por forças culturais, necessariamente sociais e políticas. Em um caso como no outro, o que se percebe é a íntima relação que se estabelece entre a política e a estética, que no contexto do século XX, ora pende para o uso político da arte, ora para a politização realizada na “arte pela arte” de questões sociais 95 Michel Onfray, “Por uma estética generalizada”, in A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão. Rio de Janeiro: Rocco, 2001, p. 222. 81 representadas na dimensão estética. A questão, no entanto, é mais profunda, e passa por um esclarecimento teórico-político. Onfray reconhece a distinção, já feita neste trabalho, da arte-revolta, que é irredutível às ideologias, ao Estado, ao Capital. Nessa perspectiva, a tese de Benjamin “reúne, mais do que opõe, o nazismo e o bolchevismo sobre o terreno da apropriação da arte e de sua sujeição aos imperativos políticos”.96 Entretanto, o que Onfray denomina uma estética generalizada consiste exatamente na mais ampla expressão da máquina de guerra artística, que promove suas lutas por meio de criações estéticas no interior de suas micropolíticas da criação. Contra a estética particular, submetida aos imperativos separados, e com muita frequência colocados como auxiliar do poder dominante, ela [a estética generalizada] visa à ultrapassagem das oposições entre a arte e a vida, a rua e o museu, não para fazer, como ocorre frequentemente, da vida e da rua referências e critérios novos, mas para convocar a arte e o museu a uma dinâmica ascendente.97 Vista em seu conjunto, a história das vanguardas deixa entrever um processo incessante de transformações, experimentações e mudanças no sentido de uma estética generalizada que, depois de descodificar as formas de expressão das artes tradicionais, tomou a vida em sua totalidade como matéria a ser trabalhada pelo agenciamento artístico, a começar pelo modo de viver dos próprios artistas, os comportamentos, as apropriações do espaço, as relações com a realidade, as visões de mundo, para logo em seguida exceder a dimensão individual e atrair nas linhagens da arte-revolta os componentes sociais, as maneiras engajadas de se portar com relação ao que se passa no mundo, na cultura, na política, que exigem um outro código social, mais aberto à criação. É nesse sentido que a arte-revolta contribui para a formação de uma máquina de guerra libertária que faz da arte a continuação da política por outros meios. “A arte que deixou de resistir deve perecer, substituída por uma outra que, ela sim, resistirá. Nessa guerra, quando um cai, o seguinte segura a bandeira”.98 96 Michel Onfray, A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão, p. 219. 97 Michel Onfray, A política do rebelde, p. 220. 98 “L’art qui a cessé de résister doit périr, remplacé par un autre qui, lui, résistera. Dans cette guerre, quand l’un tombe, le suivant reprend le drapeau”. Michel Onfray. Politique du rebele: traité de résistance et d’insoumission. Paris: Bernard Grasset, 1997, p. 253. 82 Neovanguardas No período pós-guerra, o caráter político explicitado nas vanguardas artísticas foi retomado pelas novas gerações de artistas e ativistas de uma maneira ambivalente, por vezes crítica mas também condescendente. O momento histórico exigia uma revisão do trabalho desenvolvido até então. Os estudiosos trabalham com a ideia de que os grupos de artistas, na Europa ocidental e nas Américas, serviram-se do legado das vanguardas ora apropriando-se de seus elementos a fim de atualizá-los ao contexto histórico, ora servindo-se da originalidade crítica inerente às vanguardas históricas como prerrogativa para inovar dando mais um impulso ao movimento revolucionário das artes modernas. “Em 1955, Lionel Trilling já podia lamentar a ‘legitimação do subversivo’ numa universidade pluralista, e, em 1964, Herbert Marcuse já condenava o pluralismo como um ‘novo totalitarismo’”.99 A questão tornou-se problemática com a recepção das vanguardas na instituição artística de então sem maiores constrangimentos. A admissão do legado vanguardista no interior do establishment artístico, aparentemente um sinal de êxito de todo o esforço da geração de Marinetti, Tzara e Breton, no entanto, podia significar também uma derrota, pois a incorporação da arte vanguardista na instituição retirou-lhe o caráter transgressor, que em parte perdeu em efeito. O que a princípio era pura transgressão política ou estética, tornou-se forma institucionalizada, aceita, domesticada e, ademais, rentável economicamente. Peter Burger identifica o problema: A retomada das intenções vanguardistas com os meios do vanguardismo não pode mais, num contexto modificado, sequer alcançar o efeito limitado das vanguardas históricas. Dado que, com o tempo, os meios com os quais os vanguardistas esperavam produzir a superação da arte tenham adquirido o status de obra de arte – sua utilização não pode mais, de modo legítimo, ser associada à pretensão de uma renovação da práxis vital. Pormenorizando: a neovanguarda institucionaliza a vanguarda como arte e nega, com isso, as genuínas intenções vanguardistas.100 Isso sem dúvida foi motivo de ampla discussão entre os críticos e os artistas que viveram a transição para o contexto das neovanguardas que se formaram nas primeiras 99 Hal Foster, “Contra o pluralismo”, in Recodificação: arte, espetáculo, política cultural, p. 33ss. 100 Peter Burger, “A obra de arte de vanguarda”, in Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac & Naify, 2014, p. 109. 83 décadas do pós-guerra. Para se ter uma ideia, o caráter ideológico protofascista do Futurismo havia se esgotado nas realizações e nas desilusões desencadeadas pelas guerras mundiais; os estilos Surreal e Dadá, desvirtuados de suas origens transgressoras e críticas, foram incorporados não só pela instituição da arte, mas também pelas indústrias culturais de então, já sob a égide da sociedade do espetáculo, como forma de propaganda; e mesmo o deslumbre dos surrealistas com o comunismo foi renegado pelos dissidentes da ala bretoniana. Foi preciso esperar o surgimento das neovanguardas para que se pudesse dar início à revisão histórica do legado artístico e político das vanguardas, tarefa que foi assumida pela Internacional Situacionista, considerada a mais proeminente expressão da arte no contexto das neovanguardas, e na qual se empreendeu a elaboração de uma consciência artística que retomou a discussão proposta pelo Dadaísmo e pelo Surrealismo de forma fiel, crítica e consequente no contexto da sociedade do espetáculo.101 Em 1974, Burger afirmava que a recuperação das vanguardas pela instituição artística lançava a história da arte em uma época pós-vanguardista. O crítico de arte só não contava com as proezas da arte-revolta em se reinventar. A Realização da Arte Durante a década de 1960 a Internacional Situacionista produziu uma crítica radical à sociedade do espetáculo a partir da história da poesia e da arte modernas. Diferentemente de todas as ideologias existentes no mesmo período, a crítica situacionista foi formulada com referência às atividades das vanguardas por considerar que, no legado da arte moderna em geral e na poesia em especial, residia uma fórmula secreta a qual, se colocada em prática, serviria para a realização das mais altas aspirações humanas.102 Ao considerar o homem um ser poético e, portanto, criador por excelência, a arte moderna libertou o sujeito de todos os grilhões na expressão poética e nas artes. A questão 101 Hal Foster demonstra a “necessidade de novas genealogias da vanguarda que complexifiquem seu passado e respaldem seu futuro”, e sugere “um intercâmbio temporal entre as vanguardas históricas e as neovanguardas, uma relação complexa de antecipação e reconstrução”, o que parece ter sido feito na discussão situacionista sobre o legado da arte moderna em relação à política, sob a perspectiva da arte- revolta. Cf. Hal Foster, “Quem tem medo da neovanguardas?”, in O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu Editora, 2017, pp. 26 e 32. 102 “O ponto de partida era ‘a superação da arte’, realizável naquele momento ‘a partir da autodestruição da poesia moderna’ (...): ‘Afinal, era a poesia moderna, desde há cem anos, que nos havia levado a esse ponto. Éramos alguns que pensávamos ser necessário executar seu programa na realidade’ (...). Sem dúvida alguma, Debord permaneceu fiel a essa intenção”. Anselm Jappe, “A prática da teoria”, in Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 69. 84 a ser resolvida pelos situacionistas era a de saber como realizar concretamente na vida a imensa capacidade poética do homem que, nas artes, já havia se realizado como prenúncio revolucionário. Imagem 13 – Eugène Delacroix. A Liberdade Guiando o Povo, óleo sobre tela, 1830.103 As imagens e os versos que a revolta artística e poética do século XIX haviam plasmado nas obras legadas para a história foram recebidos pelos situacionistas de uma maneira mais exigente do que o mais sério crítico de artes poderia supor. Para eles, uma pintura como A Liberdade Guiando o Povo, na qual a revolução é representada segundo a visão do artista, impõe para as novas gerações o dever de realizá-la concretamente na práxis social, com a mesma força originária do acontecimento político que serviu de causa prima da pintura, desta vez, concretizando na prática aquilo que está representado na arte. Para os situacionistas, portanto, a questão principal que a arte e a poesia modernas colocavam para as novas gerações era a de saber como converter a potência artística- poética em força revolucionária da vida cotidiana. Para atingir tal objetivo, a ideia seria 103 Cf. Gilles Néret. Delacroix: o príncipe do romantismo. Lisboa: Taschen, 2011, p. 25. 85 transformar o projeto das vanguardas da arte-revolta em tarefa das neovanguardas, a fim de realizar os ideais poéticos e humanistas, a liberdade, a beleza e a mais sublime imagem humana, reificando todas as promessas já preconizadas pelas artes e pelas letras.104 Imagem 14 – Painel de Guy Debord.105 Assim como o jovem Marx havia afirmado a necessidade de transformar a realidade ao invés de continuar a interpretá-la filosoficamente,106 de forma análoga os situacionistas anunciaram a premência de realizar a arte transformando a vida em vez de simplesmente continuar a representá-la artisticamente. Desta maneira, os fins da arte foram interpretados de uma forma elevada e compromissada com a vida, do mesmo modo que os ideais artísticos foram elevados para além da esfera artística e colocados em função de um desejo político de transformar a realidade. O lema de Lautréamont da “poesia feita por todos”, interpretado à luz da arte-revolta, ecoava na atmosfera das vanguardas desde os surrealistas e agora ganhava uma conotação inteiramente revolucionária. 104 O texto central sobre a realização da poesia, “All the king’s men”, foi publicado na Internationale Situationniste. Bulletin central édité par les sections de L’Internationale Situationniste. Numéro 8. Paris: Janvier 1963. Para uma versão em inglês, cf. Ken Knabb (Ed.). Situationist International Anthology. Berkeley: Bureau of Public Secrets, 2006, p. 149-153. 105 Imagem disponível em https://www.revistapunkto.com/2014/11/realizar-poesia-guy-debord-e- revolucao_30.html Acesso 30 de julho de 2019. 106 “Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras; do que se trata é de transformá-lo”. Karl Marx, “Teses sobre Feuerbach”, in Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 103. 86 Para a vanguarda, essa emergência de uma estética unitária é inseparável da noção de ‘fim da arte’, ou seja, de seu desaparecimento enquanto atividade especializada. Para que essa noção de estética do comportamento e a de uma arte unitária possam adquirir uma real consistência, é preciso que, primeiro, se desenvolvam diferentes relatos do fim da arte, e que sua ‘superação’ seja teorizada. A isso iriam se dedicar o futurismo, o dadaísmo, o suprematismo, o surrealismo e muitos outros movimentos.107 Inclusive os situacionistas. Após a tentativa dadaísta de suprimir a arte sem realizá-la, e do ensaio surrealista de realizar a arte sem suprimi-la, “a posição crítica elaborada desde então pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte”.108 A tarefa revolucionária, ao mesmo tempo artística e política, tornou-se a de realizar a arte superando-a enquanto atividade especializada em uma esfera separada. Para a neovanguarda situacionista, havia chegado o momento de reverter o lugar da arte na vida cotidiana e colocar a revolução a favor da poesia.109 A práxis se introduz constantemente na poiésis, e vice-versa. Não existe liberdade efetiva que não seja também uma transformação material, que não se inscreva historicamente na exterioridade, como tampouco existe um trabalho que não seja transformação de si.110 A retomada poética da vida, no entanto, só poderia ocorrer superando a arte enquanto esfera autônoma, ou seja, ultrapassando as forças do espetáculo que convinha destruir. À luz da teoria situacionista, o espetáculo se apropriou da potência artística alienando o homem de sua atividade criadora, que agora contempla o mundo ser reificado por forças hostis das quais se separou e que operam segundo o “movimento autônomo do não-vivo” no dizer de Guy Debord.111 107 Nicholas Bourriaud, “O fim da arte: rumo a uma existência unificada?”, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 65-66. 108 Guy Debord, “A negação e o consumo na cultura”, in A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, § 191. “De acuerdo con el concepto hegeliano de ‘superación’, ésta tiene un doble aspecto: crítica y realización, negación y alcance de un nivel superior”. Mario Perniola, “La superación del arte”, in Los situacionistas: história crítica de la última vanguardia del siglo XX, p. 21. 109 Internationale Situationniste, “All the king’s men”, in Internationale Situationniste. Numéro 8, p. 31. 110 Étienne Balibar, citado por Nicholas Bourriaud, “O fim da arte: rumo a uma existência unificada?”, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 67. 111 Guy Debord, “A separação consumada”, in A sociedade do espetáculo, § 2 e § 31. 87 Colocando-se deliberadamente contra a sociedade espetacular, os situacionistas elaboraram uma série de procedimentos a serem praticados para a realização de uma arte revolucionária. Assim fizeram com os conceitos de urbanismo unitário, deriva e psicogeografia, que anteciparam diversas práticas artísticas urbanas. A própria noção de situação que dá nome ao grupo revela-se também inteiramente operacional: “Situação construída: Momento da vida, concreta e deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos” .112 Imagem 15 – Dispositivos micropolíticos situacionistas. “Novo teatro de operações na cultura. A dissolução das ideias antigas vai de par com a dissolução das antigas condições de existência”. Detalhe de panfleto da Internacional Situacionista.113 Contra a arte espetacular que se contenta em simplesmente representar o mundo, os situacionistas construíram uma série de conceitos operativos para munir a juventude 112 Outras definições: “Psicogeografia: Estudo dos efeitos exatos do meio geográfico, conscientemente planejado ou não, que agem diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos. Deriva: Modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas. Diz-se também, mais particularmente, para designar a duração de um exercício contínuo dessa experiência. Urbanismo unitário: Teoria do emprego conjunto de artes e técnicas que concorrem para a construção integral de um ambiente em ligação dinâmica com experiências de comportamento”. Internacional Situacionista, “Definições”, in Paola Berenstein (org.). Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 65. Sobre o pensamento urbano da Internacional Situacionista, ver Vanessa Grossman. A arquitetura e o urbanismo revisitados pela Internacional Situacionista. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2006. 113 Imagem disponível na capa do livro de Mario Perniola. Los situacionistas: história crítica de la última vanguardia del siglo XX. 88 de meios práxicos criativos capazes de revolucionar a vida cotidiana sem esperar por partidos redentores, nem lutar pela tomada do poder espetacular. Na vida cotidiana, a realização da poesia deveria se dar pela criação coletiva de situações, nas quais os integrantes, artistas micropolíticos por excelência, realizariam uma práxis sem mediação e de forma direta se tornariam capazes de revolucionar a vida. Da Internacional Situacionista derivam os conceitos-chave do movimento que posteriormente se espalharão pelo mundo: a deriva, a psicogeografia e as situações, que surgiram no contexto artístico mas já apontavam na direção de uma arte práxica, operativa, realizadora da vida cotidiana. Assim também com relação à inversão do mote surrealista “o surrealismo (e portanto a arte) a serviço da revolução”, que se tornou, com o projeto situacionista de realizar a arte suprimindo-a, o seguinte: “a revolução a favor da poesia”, poesia enquanto elemento criador de toda a arte e de toda a vida.114 Imagem 16 – Conferência da Internacional Situacionista em Munich, abril de 1959. Da esquerda para a direita: Giors Melanotte, Giuseppe Pinot-Gallizio, Hans-Peter Zimmer, Maurice Wyckaert, Asger Jorn, Gretel Stadler, Helmut Sturm, Heimrad Prem, Armando, Constant, Guy Debord e Har Oudejans.115 114 “Toute révolution a pris naissance dans la poésie, s’est faite d’abord par la force de la poésie. C’est un phénomène qui a échappé et continue d’échapper aux théoriciens de la révolution – il est vrai qu’on ne peut le comprendre si on s’accroche encore à la vieille conception de la révolution ou de la poésie –, mais qui a généralement été ressenti par les contre-révolutionnaires”. Internationale Situationniste, “All the king’s men”, in Internationale Situationniste. Numéro 8, p. 32. Tradução livre: “Toda revolução nasceu na poesia, começou por ser desencadeada pela força da poesia. Este fenômeno escapou e continua a escapar aos teóricos da revolução – é certo que ninguém pode compreendê-lo se continuar a agarrar-se à velha concepção da revolução ou da poesia – mas foi em geral sentido pelos contra-revolucionários”. 115 Imagem disponível em http://www.notbored.org/munich-1959.jpg Acesso 30 de julho de 2019. 89 Assim, em vez de alimentar a sociedade do espetáculo com mercadorias glamourizadas com o selo da arte, operações situacionistas (“uma série de métodos que visam aprimorar o cotidiano mediante a construção de situações e ambientes originais”)116 com forte teor contestatório e crítico, verdadeiramente rebeldes se projetaram internacionalmente à contragosto dos marchands e dos museus. A eterna chamada vanguardista de reaproximar a arte da vida pela via da revolta veio para ficar definitivamente marcada no imaginário artístico e político do pós-guerra. A arte, com os situacionistas, tornou-se micropolítica,117 colocou em debate a realização do desejo e com base nas experiências da revolta com fins situacionistas, inteiramente operativas, celebrou a atividade revolucionária na vida cotidiana. Com o acabamento dado ao processo de politização que a arte-revolta vinha experimentando no decorrer de 50 anos desde que os futuristas intervieram com impacto no espaço público com uma arte engajada pela primeira vez, os situacionistas conclamaram um projeto revolucionário na cultura, a um só tempo artístico e político, com o qual a arte-revolta consagrou a sua máquina de guerra contra as estruturas do espetáculo. Assim, impulsionada pela revolta, a arte tornou-se política continuada por outros meios e é somente nesse sentido que se pode falar de uma autêntica máquina de guerra artística; uma máquina que, como tal, não tem absolutamente por objeto a guerra, mas outra coisa. Uma máquina que opõe aos aparelhos do estado e do espetáculo a potência da sua revolta libertária, a força insurreta que nega o ilimitado poder afirmando uma outra medida ética e portanto micropolítica.118 É a questão historicamente variada e complexa de todas as formas de apropriação das máquinas de guerra pelos aparelhos de Estado (mas também das “máquinas de guerra” filosóficas e artísticas pelas grandes instituições, pela história da literatura, a história da arte e a história da filosofia, pelos museus ou as universidades).119 116 Nicholas Bourriaud. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 88. 117 “O situacionismo apoderou-se da ideia moderna de uma arte unitária e reverteu-a para o plano político”. Nicolas Bourriaud. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si p. 90. 118 “Para falar como Aristóteles, dir-se-ia que a guerra não é nem a condição nem o objeto da máquina de guerra, mas a acompanha ou a completa necessariamente”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “1227 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra”, in Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5). São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 102. Sobre a distinção conceitual entre guerra e guerrilha (que se propõe explicitamente à não-batalha), ver no mesmo capítulo a demonstração da Proposição IX, p. 100-101. 119 “Ces’t la question historiquement variée et complexe de toutes les formes d’appropriation des machines de guerre par les appareils d’État (mais aussi des ‘machines de guerre’ philosophiques et artistiques par les grandes institutions, par l’histoire de la littérature, l’histoire de l’art et l’histoire de la philosophie, par les musées ou les universités)”. Manola Antonioli, “Machines de guerre”, in Géophilosophie de Deleuze et Guattari. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 129. 90 Os efeitos micropolíticos da máquina de guerra artística operada pela revolta são necessariamente libertários e prospectivos. No lugar da guerra mortuária, financiada pelas instâncias autoritárias ou totalitárias, uma guerrilha multiplicada ao infinito de artes, performances, instalações, manifestos, coletivos, poesias, gestos em suma que nada mais são do que sopros, revides, espasmos, potências de um contra-senso a se gestar na confluência de subjetividades, relações e experiências que denotam a vida em seu processo contínuo de expansão. Imagem 17 – Revolta micropolítica. Paris, Maio de 1968.120 Como por efeito em cadeia, nas décadas seguintes ao Maio de 1968, uma espécie de virada situacionista se operou no universo das neovanguardas e além delas extrapolando para o campo da cultura em geral, com a ênfase cada vez maior dada às artes coletivas, às performances, aos happenings, às intervenções urbanas, às atividades com mídias, etc., todas elas formas de arte-revolta que tentam escapar à lógica espetacular da 120 Erick Corrêa e Maria Teresa Mhereb (org.). 68: como incendiar um país. São Paulo: Veneta, 2018, p. 58. 91 mercadoria e da passividade, ao mesmo tempo, inscrevendo na história da cultura e da vida cotidiana suas linhas subversivas, alternativas e contraculturais. Desde então, a máquina de guerra artística opera na multiplicidade de iniciativas que fazem valer, a cada vez de uma forma diferente, uma potência no entanto mutante, libertária e nômade, nas mais diversas matrizes performáticas inventadas e produzidas pela arte-revolta na sua incansável luta pela resistência da vida contra a morte. Reencantamento do Mundo e Espetáculo Na história da arte-revolta, o projeto surrealista de reencantar o mundo teve sua importância, primeiro, na superação da atitude negativa do dadaísmo, e em segundo lugar, como um chamado à ação na arte em sua dimensão existencial e, neste sentido, na sua dimensão política. Mais do que uma estética, o surrealismo era encarado como uma atitude, uma postura diante do mundo.121 O problema é que os surrealistas não contavam com um concorrente de maior magnitude, materializado no capitalismo pela indústria cultural. O mercado capitalista já havia notado que as mercadorias despertam o desejo não somente pelo seu valor de uso. Há algo na mercadoria que chama atenção, desperta o interesse e faz com que adquira um poder encantatório. Benjamin denominou o elemento simbólico que reveste a materialidade da mercadoria de fantasmagoria. O fetichismo da mercadoria, tratado por Marx anteriormente, foi remodelado pela sociedade espetacular para adaptá-lo às novas técnicas produtivas.122 Assim como a esfera do consumo tornou- se em si uma dimensão própria para investimento da indústria cultural, o valor de uso foi sobrepujado pelo valor estético, ou ainda, pelo valor simbólico.123 O surrealismo, em vez de se debruçar na aura das obras-primas tradicionais, direcionou suas energias artísticas na busca e na produção do maravilhoso. O capitalismo, 121 “O surrealismo representa para os seus membros tanto uma estética da existência como um espaço de criação. Pois os procedimentos inventados pelos surrealistas visam – pelo menos teoricamente – produzir certo tipo de subjetividade, para além de toda e qualquer preocupação literária”. Nicolas Bourriaud. Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 76. 122 Anselm Jappe elabora um estudo aprofundado sobre a mercadoria à luz da crítica do valor realizada pelo Grupo Krisis. Uma contribuição interessante para a discussão sobre o fetichismo aparece no capítulo “O fetichismo e a antropologia”, in As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor. Lisboa: Antígona, 2006. 123 “Nesse contexto, o aspecto sensível torna-se portador de uma função econômica: o sujeito e o objeto da fascinação economicamente funcional”. Wolfgang Fritz Haug, “A estética da mercadoria e sua origem na contradição da relação de troca”, in Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora Unesp, 1997, p. 27. Cf. também na mesma obra: “Tecnocracia da sensualidade geral”, p. 67ss. 92 de outra parte, ao se apropriar das técnicas de reprodução da arte, contribuiu para destruir a aura com que se revestiam as obras clássicas por sua natureza únicas, e ao mesmo tempo, propôs um modelo mais direto a ser oferecido na sua forma acabada como produto a ser consumido massivamente. Nem mais uma obra-prima única, mas uma massa de imagens e cópias fetichizadas envoltas de fantasmagorias sedutoras ao desejo disponível na esfera do consumo de bens estéticos e simbólicos.124 Nessa concorrência desleal, a estética surrealista foi tragada e recuperada pelo espetáculo. Tornou-se um mero estilo artístico, moderno, sem dúvida, o que fez com que chegasse às massas, deixando de ser, porém, o que os seus idealizadores tanto queriam que fosse, uma alternativa ao modo de viver dominante. Assim, de modo de viver poético e subversivo segundo os parâmetros do mundo racionalista e calculador, o surrealismo foi recebido por meio do espetáculo na sua face puramente formal, estetizada. O maravilhoso da super-realidade, destituído de seu potencial transformador, foi inscrito paradoxalmente no mundo das mercadorias como exotismo estético, imaginal e decorativo, por esse motivo caindo em desgraça aos olhos de uma geração revolucionária seguinte, os situacionistas.125 No contexto do espetáculo, a arte tornou-se um produto a ser consumido e, portanto, destituído de poder transformador. Como não bastasse, ainda serve de consolo, substituindo o espaço que seria melhor aproveitado para a vivência da liberdade, para a revolução da vida cotidiana. A forma com que os situacionistas interpretaram o projeto surrealista foi profundamente crítico. O surrealismo, por querer realizar a arte na vida sem suprimi-la no mesmo processo, deixou o seu maior projeto desprotegido e completamente à mercê do espetáculo, que logo capturou a estética na lógica fetichista da mercadoria cultural. Para os situacionistas, o projeto do reencantamento do mundo foi tomado pelo capitalismo na sua versão espetacular do surrealismo, e portanto, deveria ser alvo de uma dura crítica para, enfim, ser superado. O mundo capitalista não precisa mais ser reencantado pela arte. Isso, o espetáculo deturpou tornando-se “artístico”. Em vez de reencantar o mundo, na política da 124 A destruição da aura foi colocada e desenvolvida por Walter Benjamin no seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (primeira versão), in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996. 125 “Uma medida do sucesso e da popularidade que o surrealismo atingiu pode ser obtida verificando-se o modo como ele foi encampado pelos mundos da moda e da publicidade”. Fiona Bradley, “O legado do surrealismo”, in Surrealismo, p. 74. 93 Internacional Situacionista francesa, cumpre transformá-lo. Deste modo, os situacionistas conectaram a causa revolucionária da arte de vanguarda com a causa das vanguardas revolucionárias organizadas em torno dos movimentos operários.126 A realização da arte, sua efetiva transformação da vida, só se tornaria possível na práxis política, justamente porque revolucionária em termos práticos e não meramente estéticos. A condição para que a arte pudesse ser realizada de fato era a de desaparecer enquanto esfera separada ao fim do mesmo processo, uma vez que teria se tornado a própria vida. Não basta realizar a arte, diziam os situacionistas, é mister dar vida finalmente à poesia. Enfrentando Dilemas O dilema da arte enfrentado no período pós-guerra e que ainda hoje se coloca foi o de tentar responder em que condições se pode produzir uma arte cujo impulso criativo coincide com a revolta, no momento em que o mercado tenta englobar a produção artística neutralizando, docilizando e domesticando o impulso crítico característico dela. Do que resulta uma outra questão igualmente fundamental: de que maneira uma arte que se pretende crítica, contestatária, transgressora, pode manter-se fiel à sua revolta libertária e antiautoritária sem com isso incorrer no risco de fechar-se sobre si mesma e cair na incompreensão geral, perdendo assim a chance de fundar discursividades e incitar revoltas no âmbito social mais amplo e produzir os efeitos políticos desejados? Seja como for, o que restou no imediato pós-guerra foram os ecos da revolta artística com o absurdo do mundo convulsionado por guerras e totalitarismos, pela razão utilitária e pelas indústrias nas suas várias facetas que tornaram a vida um acessório do grande mecanismo econômico-político. Assim também, o dilema da revolta se colocou ante a captura da potência crítica e criadora no âmbito estritamente político. Enquanto o capitalismo se apropriava da imaginação para fins produtivos na indústria espetacular, no campo da política mundial a revolta libertária das bases revolucionárias foi no mais das vezes traída pelas ideologias autoritárias que se apoderaram dos órgãos de poder estatal, na Espanha, na Itália, na Alemanha, na Rússia e na China, só para mencionar os casos mais proeminentes. No modelo capitalista, o espetáculo cooptou a potência de criação separando-a da revolta, por motivos óbvios considerada prejudicial ao processo de acumulação. No modelo 126 Sobre a “teoria dos conselhos operários” desenvolvida pelos situacionistas, ver Mario Perniola, Los situacionistas: história crítica de la última vanguardia del siglo XX, p. 138ss. 94 soviético, uma vez instalada a tirania, a revolta propriamente dita foi duramente rechaçada e banida, exceto nos casos em que se submetia aos ditames impostos pelo partido, o que destituiu a revolta de seus preceitos contestadores, críticos e libertários, afogando suas forças na clandestinidade. No primeiro caso, a cooptação do impulso criador artístico pelas estratégias do espetáculo e sua cultura-entretenimento, e no segundo, a subsunção da revolta nas ideologias totalitárias. Neutralização, cooptação, recuperação, rechaço, perseguição, prisão, tortura e fuzilamento. E ainda assim, nada foi capaz de aplacar as vozes e os gestos dissidentes, insubmissos, criativos, hedonistas, refratários. Entre repúblicas desertadas pelos poetas e democracias celebradas pelos medíocres, restam figuras individuais e rebeldes, artistas cuja negação visa primeiramente à preparação do terreno para seu poder afirmativo. Se eles são amantes das potências negadoras, é para melhor deixar o campo livre à força que age em seus corpos e transbordam sua existência de modo a semear as terras onde florescem as plantas carnívoras da política. As obras daqueles que, através da história, contam os poderes e a potência de toda estética que quer a vida e escarnece a morte, se abrindo como estranhas mandrágoras desabrochadas ao pé dos cadafalsos.127 No que se refere à desintegração do sentido dadaísta e à liberação do inconsciente e do desejo empreendida pelo surrealismo, as vanguardas conseguiram produzir mudanças duradouras na história das artes e das subjetividades ocidentais. Afinal, cada uma delas realizou parcialmente seus objetivos de alguma maneira, e ainda hoje, um século depois, os artistas têm um débito enorme para com elas. Porém, mais do que as neovanguardas do pós-guerra, o capitalismo conseguiu se apropriar das imensas forças liberadas pelas vanguardas históricas, não sem antes redirecioná-las para fins de produção de mercadorias culturais a serem consumidas na escalada reprodutiva do capital na sua versão espetacular. A produção de imagens e demais mercadorias culturais capturou os dispositivos artísticos que as vanguardas se esforçaram por montar para potencializar os sujeitos e lhes atribuiu uma outra função no modo de produção espetacular.128 A intenção que estava na origem dos dispositivos artísticos das vanguardas era de contribuir com a libertação do 127 Michel Onfray. A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão, p. 210. 128 “A arte moderna, portanto, só constitui um modelo ético a partir de seus modos de produção, e não a partir de um estetismo, ou seja, de um ‘bom gosto’: ela produz possibilidades de vida, subjetividade, relações com o outro”. Nicolas Bourriaud, “Uma ética segunda a arte moderna”, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 186. 95 desejo, da imaginação e do pensamento como preparação para a realização da arte na vida cotidiana segundo uma potência que derivava da revolta uma força política de cunho libertário. Ocorre que o capitalismo cultural desvirtuou o caráter político que estava contido nas operações artísticas, neutralizando assim os efeitos da revolta e retendo para si somente uma produção ilimitada sem qualquer conteúdo político evidente. A imaginação que se desvencilhou da tradição por meio das máquinas artísticas foi rapidamente cooptada pelas indústrias culturais, que passaram a se alimentar muito cedo da potência criadora liberada pelas vanguardas, porém, separada da revolta da qual surgira historicamente. Nessa perspectiva, a história teria seguido em linhas gerais a seguinte sequência: o movimento da revolta, herdeiro em parte de uma sensibilidade revolucionária encontrada na literatura, nas artes e nos movimentos sociais do século XIX e que foi recebida pelas primeiras gerações do século XX, produziu as vanguardas artísticas, as quais, por sua vez, criaram dispositivos artísticos que, embora fossem agenciados para produzir efeitos micropolíticos de resistência no contexto da revolta histórica, tão logo foram apropriados pelo capitalismo e separados da potência política a que deviam sua existência inicial. Incapaz de ser previsto, o golpe que tornou o capitalismo o espetáculo conhecido hoje foi separar a potência criadora (que nas vanguardas, era derivada da revolta) de seu caráter contestador e portanto crítico, e torná-la, desta maneira, a principal força produtiva espetacular. Para manter-se fiel ao princípio libertário que resulta de sua origem, a revolta teve que pagar um alto preço por sua incessante busca por coerência e autonomia, pois não deixou de ser alvo de censura, perseguições e repressão. Isso tem um significado histórico importante pois como se não bastasse ter que lidar com os dilemas artísticos e políticos inerentes ao movimento da revolta, a cultura crítica e a cultura-revolta, tal como as define Kristeva, tem perdido espaço para a cultura espetacular há décadas. Entretanto, a máquina de guerra artística enquanto tal modificou-se e multiplicou as matrizes performáticas, nas intervenções, no teatro pós-dramático, nas instalações, nos contra-espetáculos, chegando até às mídias táticas e guerrilhas digitais no presente. Ademais, uma rápida retrospectiva histórica da cultura ocidental no século XX pode ilustrar que o incansável esforço da arte-revolta não foi de todo em vão. O ímpeto da revolta artística contribuiu para libertar o pensamento, o inconsciente, a imaginação e o desejo das grades a que estavam aferrados e, embora a aplicação da revolta vanguardista tenha se plasmado em inúmeras vertentes hoje exibidas em museus, o gesto existencial, 96 político, contestatório, criativo e por vezes irreverente das vanguardas ecoou nos movimentos contraculturais subsequentes, como por exemplo entre os Beatniks, Hippies e Punks, respectivamente nas décadas de 50, 60 e 70 do século XX. O surrealismo, enquanto movimento, espalhou-se pelo mundo. Na América Latina teve adeptos em diversos países e especificamente no Brasil influenciou gerações de poetas.129 Na contracultura, a Antropofagia, o Tropicalismo, a Sociedade Alternativa, foram alguns dos expoentes das gerações tupiniquins ao longo das décadas. E mesmo em Natal, capital do Rio Grande do Norte, encontram-se linhagens artísticas, poéticas e literárias inspiradas nas vanguardas e na contracultura.130 Somente o legado dos situacionistas teve uma recepção tardia, comparada com outros países como os Estados Unidos. No Brasil, por volta dos anos 2000, no auge das Ações Globais dos Povos, os livros começaram a circular em português, diferentemente de Portugal, que contou com uma tradução do livro A sociedade do espetáculo, de Debord, na sequência do Maio de 68.131 Enquanto a estética oriunda das vanguardas era cooptada pela instituição da arte, a postura existencial que a arte-revolta reclamava para si tornou-se uma miríade de estilos de vida contraculturais, dissidentes e afirmativos, em parte realizando o sonho das vanguardas de refundar uma nova vida à luz da arte e da poesia. Novas Trincheiras Sem que ninguém pudesse cogitar, as inovações artísticas do Futurismo, do Dadaísmo e do Surrealismo, e depois, marcadamente pelos Situacionistas, estabeleceram parâmetros que ainda hoje tem validado as ações de incontáveis grupos e indivíduos, jovens poetas, artistas de rua, intelectuais e críticos devotados à trabalhar a matéria estética, seja ela qual for.132 Para além das artes consagradas pela tradição, ao lado da 129 Cf. Floriano Martins. O começo da busca: o surrealismo na poesia da América Latina. São Paulo: Escrituras Editora, 2001. 130 O historiador Artemilson Lima apresenta sua pesquisa sobre a contracultura em Natal no livro Escaladas da contracultura: Natal, década de 1980. Belo Horizonte: Moinhos, 2018. 131 As tratativas para a publicação em Portugal do livro de Debord iniciam em 1971. Cf. https://www.revistapunkto.com/2014/11/realizar-poesia-guy-debord-e-revolucao_30.html Acesso 30 de julho de 2019. No Brasil, a primeira edição vem a público em 1997 pela editora Contraponto. Poucos anos depois, aparece uma coletânea com textos situacionistas na Coleção Baderna: Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad, 2002. 132 Anselm Jappe faz um balanço da atualidade dos situacionistas e da recepção contemporânea de seu legado no artigo “Os situacionistas e a superação da arte: o que resta disso após 50 anos?”. Disponível em http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/baleianarede/article/view/1767/1500 Acesso 30 de julho de 2019. 97 escultura, da pintura, do desenho, do teatro e da música clássica, para o deleite da humanidade as manifestações artísticas se multiplicaram; desde a invenção do cinema até então, o gênio artístico e as forças poéticas tem alimentado o imaginário social, os sonhos e os devaneios das mais variadas formas, com instalações, performances, intervenções urbanas, artes digitais, lançando mão de máquinas e tecnologias para produzir efeitos artísticos, estéticos e culturais ainda por serem analisados com a devida atenção. Com a queda do Muro de Berlim, no contexto pós-fordista da produção e acumulação flexíveis, o novo desafio enfrentado pela crítica, na arte, no pensamento e na política, face à hegemonia da democracia capitalista no mundo, passou a ser como atualizar a revolta, ou ainda, como erigir uma resistência artística à altura dos problemas da época e que responda coerentemente à urgência que o tempo reclama, sem perder sua vitalidade, sem renegar a esperança, sem ser tragada outra vez pela institucionalização. Nesse momento, é preciso lembrar que a globalização da economia arrastou consigo o sistema artístico e suas instituições. Assim como havia acontecido com a potência rebelde do rock, recuperada pela indústria cultural, a arte das neovanguardas encontrou seu lugar no sistema e passou a produzir muito lucro. Grandes eventos formaram o circuito internacional do mercado das artes tais como as bienais. As feiras e os festivais artísticos compuseram as agendas capitalistas, selando parcerias entre instituições de arte-cultura estatais e corporações interessadas em propagar suas marcas junto aos artistas integrados ao sistema. Entretanto, desde que a máquina de guerra artística passou a operar, onde o poder produz suas intrincadas armadilhas, as potências da arte-revolta se reinventam para encontrar formas de produzir e existir a despeito do mainstream, agenciando relações e produções autônomas. Não foi diferente durante a década de 1990, período marcado fortemente pela internet no campo das tecnologias da comunicação e informação, e também, pelos movimentos de Ação Global dos Povos: O período que vai do final dos anos 1980 até o final da década de 1990 testemunhou conjunções muito ricas da arte e as políticas da democracia, seja na forma de ação direta, pedagogia pública crítica, meditação poética e várias combinações das mesmas. No entanto, um grande divisor de águas viria com a Batalha de Seattle em 1999 e o maior ciclo de lutas alterglobalização cristalizado então.133 133 “The period stretching from the late 1980s to the late 1990s saw many rich conjunctions of art and the politics of democracy, whether in form of agitational direct action, critical public pedagogy, poetic meditation, and various combinations thereof. However, a major watershed would come with the Battle of Seattle in 1999 and the larger cycle of alterglobalization struggles it crystallized”. Yates Mackee. 98 Imagem 18 – Ação Global dos Povos, Praga, 2000.134 O Critical Art Ensemble surgiu exatamente nesse contexto. No campo artístico, o pós-modernismo problematizava a ideia de autor e a arte individual. No campo político, o liberalismo ampliava suas articulações internacionais. Enquanto isso, em resposta à crescente privatização do espaço público e da escalada do poder capitalista, um conjunto de iniciativas oriundas de um campo difuso de artistas e ativistas que começaram a criar circuitos alternativos às redes da instituição de museus e galerias formou novos fronts para a resistência cultural. Por toda parte das Américas e da Europa, a emergência de grupos sujeitos deram corpo às micropolíticas da criação que marcaram o período em mais uma metamorfose da máquina de guerra artística.135 Da avassaladora produção artística disponível desde então, uma parcela considerável se beneficia do legado das vanguardas históricas, embora nem sempre de forma direta ou consciente. Contrariando os pessimistas, a atitude que impulsionou as vanguardas, o verdadeiro gesto incorporado na máquina de guerra artística atual, continua ativo reformulando o estatuto da arte-revolta aos novos tempos, atualizando a tarefa da arte sempre por se fazer de construir o espelho no qual a época deve projetar-se. Onde for possível encontrar uma arte que coloca em questão o tempo presente, que elabora uma “Contemporary art and the politics of democracy, 1987-2011”, in Strike Art!: contemporary art and the post-Occupy condition. Brooklyn: Verso, 2016, p. 49. 134 Imagem disponível em https://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/free/pga/hallm.htm Acesso 30 de julho de 2019. 135 O Capítulo 4 – Resistência Cultural desenvolve as implicações da micropolítica da criação na máquina de guerra artística do período. 99 visão alterada e estrangeira da realidade, que faz pensar de modo distinto o fenômeno a que se chama vida na sociedade global, lá onde a força poética reivindica, enfim, seu direito de duvidar, de evocar um pouco de ar para a dignidade humana, estará a força de um pensamento autenticamente contemporâneo e por isso herdeiro de uma tradição insurrecional que encontra na genealogia da revolta sua linhagem poética. Não mais a de uma vanguarda no sentido modernista, que acreditava estar à frente de um progresso unilinear inexorável. Agora, se a noção de vanguarda ainda tem alguma importância, passa por uma ressignificação, para tornar-se necessariamente micropolítica, pois as linhas de frente do combate, os fronts da resistência cultural na aurora do milênio se multiplicam a cada vez que os poderes se infletem sobre a vida e sobre as subjetividades. Assim também tem sido a resistência da arte que encontra nas possibilidades abertas pelas máquinas um novo canal de expansão das forças da vida. Conceituando a Arte-Revolta Agora que o contexto histórico da formação da máquina de guerra artística foi apresentado em seu conjunto e se pode ter uma compreensão mais clara de suas características, cumpre estabelecer os parâmetros conceituais da arte que encontra na revolta seu impulso criador. Historicamente, a arte-revolta teve seu impulso político decisivo com as vanguardas e se caracteriza desde então por uma atitude, por um pathos mais do que por um estilo. A constante invenção de estilos, técnicas e formas de expressão proveio sempre da potência criativa da revolta, que questionou os padrões clássicos de representação artística da realidade e depois não parou de questionar a si mesma, reinventando-se continuamente. No entanto, a atitude característica da arte-revolta não se restringe a inovações formais, que é um fenômeno secundário e não define a atitude enquanto tal. A arte-revolta encarna antes de tudo uma atitude perante o mundo, uma atitude que diz ao mesmo tempo sim e não à realidade com a qual se depara na história. Assim nas artes como na micropolítica, não se nega em absoluto, como também não convém afirmar indiscriminadamente o que existe. O caráter negativo inerente à revolta, seu aspecto crítico, coloca-se em função de uma positividade primeira que define a criação artística. Ao invés de evadir-se do confronto com as contradições e os problemas da realidade, como faz normalmente a arte espetacular, a arte-revolta instala-se nas 100 rachaduras culturais, perfura o consenso, atravessa rotas sociais não traçadas, sempre de maneira diferente para que a vida reencontre sua potência afirmativa. E embora a arte- revolta não tenha programa, sua maior contribuição é liberar o pensamento, o desejo, as utopias e a vida, cumprindo assim sua função clínica, ecosófica e micropolítica a que se deve considerar e esclarecer criticamente a cada vez. A arte-revolta demonstra assim sua contemporaneidade e sua positividade ante um mundo submetido a poderes que continuam as guerras por vários meios a despeito de valores éticos, humanos e ecológicos. As micropolíticas da criação constituem o motor da máquina de guerra artística, na qual as artes, as matrizes performáticas, a linguagem, os corpos, todos os dispositivos com que se lançam na arena pública, nada mais são do que veículos táticos de lutas, as mais diversas da resistência cultural no tempo presente. Em termos teóricos, a arte-revolta não se confunde com o que alguns historiadores e críticos denominam arte social. A arte-revolta tem um viés político enquanto expressão estética, se de um indivíduo ou de um grupo é secundário. Para ser política, uma arte não precisa ser forçosamente engajada em uma causa específica e delimitada com plataforma, programa, métodos e objetivos, o que a distingue de uma resistência ideológica ou identitária. Enquanto expressão da revolta, uma arte porta em si potenciais efeitos libertários, seja na forma de apresentação, seja no conteúdo, seja nos seus efeitos. Por isso também, a chamada arte engajada não coincide sempre com a expressão da arte-revolta, como atestam os exemplos na história da arte moderna em que grupos se colocaram à disposição de ideologias para serem meros propagandistas, perdendo assim a autonomia que pressupõe o ato criador. A arte-revolta opera como potência destituinte e por isso tantos mal-entendidos têm circulado na crítica artística. É de surpreender o que se disse das vanguardas, de seus “fracassos”, da “catástrofe” decorrente de seus ataques. Dificilmente se percebeu que a arte-revolta escapou das instituições montando máquinas de guerra fora dos circuitos consagrados à arte-espetáculo e assim espalhou-se pelo mundo à sua própria maneira. Com uma obstinação própria, a arte-revolta não fixa objetivos, identidades, padrões ou referenciais uma vez por todas; seu pendor, mutante e dissidente, é mais afeito a rupturas e dissonâncias do que à adesão, ao consenso e à reprodução. Suas trilhas não passam pela institucionalização. Subtraem-se a elas. O que se produz são micropolíticas da criação, que se definem pela busca incessante e deliberada de invenção e inovação culturais. Por isso mesmo, implicada no processo de colocar o mundo em perpétuo questionamento, coloca-se igualmente em questão. Pretende ser sujeito de sua 101 enunciação, de seu modo de ser e agir na realidade. A arte-revolta, portanto, nada mais é do que a potencialização incessante da força criativa inerente ao ser humano, na dimensão individual e coletiva. Tudo considerado, nunca será demais lembrar que, na história da arte e da revolta, o impulso dado pelas vanguardas históricas e pelas neovanguardas do pós-guerra se intensificou com suas reiteradas resistências, nas modificações técnicas empregadas por incontáveis grupos, na invenção de formas de expressão adequadas à atualidade e devido à escolha dos conteúdos abordados para melhor problematizar a época. Para mencionar algumas dessas mudanças consideráveis a uma abordagem da arte contemporânea, é fundamental destacar a noção aberta do que é arte, que deixou de ser unívoca; a relativização do objetivo artístico, não restrito ao belo; a arte performática, que se desvencilhou da forma dramática e narrativa típica do teatro ocidental para tornar-se eminentemente política. Além disso, enquanto a política instituída foi tragada pelo espetáculo e capturada em suas ideologias, as artes críticas romperam com a lógica mercadológica, tornaram-se conceituais, performáticas, evadiram-se dos museus, ocuparam as ruas com seus projetos coletivos, adentraram a vida cotidiana com a criação de situações e zonas autônomas temporárias e mais recentemente iniciaram a crítica das ciências e das tecnologias, como no caso do Critical Art Ensemble, a ser tratado nesta pesquisa. Como se vê, a questão da revolta toca igualmente a arte e a sociedade, a estética e a política. Isso porque o impulso criador da época presente, livre de quaisquer imperativos, encontra no movimento da revolta uma fonte de inspiração. A superação do niilismo, nas artes como na política, passa necessariamente pelo movimento criador da revolta. Ainda que ela, em si mesma, não seja uma causa suficiente para a produção de uma civilização digna de nome, na origem de um novo horizonte histórico encontram-se os germes da revolta, que no presente têm gerado mudanças substanciais nos planos da cultura, das ideias e da ação. 102 CAPÍTULO 2 POR DENTRO DO CRITICAL ART ENSEMBLE: ARTE E REVOLTA NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO Imagem 19 – Critical Art Ensemble em 1987. Da esquerda para a direita: Steve Barnes, Ricardo Dominguez, Hope Kurtz, Steve Kurtz e Dorian Burr.136 Faz trinta e três anos desde que, pela primeira vez, estudantes de artes dos Estados Unidos utilizaram o nome Critical Art Ensemble (CAE) para designar um pequeno grupo com propósitos artísticos. Para um coletivo que começou com duas pessoas investindo no campo dos vídeos conceituais de curta duração, é de surpreender a produção prolífica e numerosa do grupo durante as últimas décadas. Formado inicialmente na cidade de Tallahassee, na Florida, o coletivo surgiu por iniciativa de Steve Kurtz e Steven Barnes. Passou por várias formações, estabeleceu parcerias e alianças com artistas, movimentos sociais, cientistas, universidades, museus e organizações internacionais mundo afora. Fez-se conhecer por suas ações, produções culturais e publicações teóricas nas intersecções entre arte, teoria crítica, tecnologia e política radical. 136 CAE, Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 20. 103 Atualmente, o portfólio do coletivo conta com a produção de curtametragens, passando por performances, obras de mídia tática, intervenções micropolíticas, páginas na internet, assim como exposições dentro e fora dos museus em diversos países. Além dessa variedade de formas de expressão, o Critical Art Ensemble também se mostra um coletivo versado na reflexão teórica-crítica e nas letras, como se pode comprovar com os escritos, ensaios e livros publicados pelo grupo no decorrer de sua carreira. Hoje a produção teórica do grupo soma ao todo oito livros, dentre os quais, sete estão inteiramente disponíveis para livre acesso na página do grupo http://critical-art.net/. Os temas abordados nas publicações são ricos em conteúdo e expressam um pensamento antenado com a atualidade no campos das artes, da política, da tecnologia, da teoria e dos movimentos sociais. Os títulos das obras resumem bem a preocupação do CAE com temas que interconectam arte, ciência, filosofia, política e tecnologias: The Eletronic Disturbance (1994), Eletronic Civil Disobedience and Other Unpopular Ideas (1996), Flesh Machine: Cyborgs, Designer Babies, and the New Eugenic Consciousness (1998), Digital Resistance: Explorations in Tactical Media (2001), The Molecular Invasion: Contestational Biology (2002), Marching Plague: Germ Warfare and Global Public Health (2006), Disturbances (2012) e, por fim, Aesthetics, Necropolitics, and Environmental Struggle (2018). Desde a publicação do primeiro título, em 1994, o grupo tem lançado livros que sintetizam as pesquisas e os aspectos teóricos sobre a temática trabalhada no momento. Imagem 20 – Livros de autoria do CAE, um deles traduzido e publicado no Brasil (imagem do autor). 104 Há mais de três décadas, portanto, o CAE tem explorado as possibilidades de uma resistência ativa no interior das democracias capitalistas. O seu histórico deixa antever uma arte engajada, desafiante e crítica. Em uma época na qual o uso da internet como ferramenta de luta política e social era ainda um prospecto de ficção científica, os membros do CAE, de forma pioneira, lançaram-se na pesquisa e nos experimentos para a formação de uma resistência eletrônica, afinada com os mais recentes desenvolvimentos tecnológicos no campo da informática e da comunicação de massas. Posteriormente, acompanharam as inovações no campo da biotecnologia. A decodificação do genoma humano, a manipulação de DNAs, a fabricação de alimentos transgênicos, também foram problematizados pelo pensamento crítico do grupo, que ousou com a arte da performance e do Teatro Recombinante levantar questões contemporâneas, sempre de forma inovadora na linha de frente da arte e da tecnologia. O CAE tem por inspiração a arte guerrilha, o intervencionismo, a mídia tática e o ativismo cultural, práticas que vão na contramão da lógica global da busca por lucro, competição e consumo. Em vez disso, sempre se engajou em atividades orientadas pelos princípios de autonomia, cooperação e prazer. Dentre as várias formas de expressão do ativismo cultural do grupo se destacam intervenções de mídia tática, performances, provocações e distúrbios com o objetivo declarado de revelar, confrontar e subverter tendências autoritárias na esfera da cultura. No mundo dominado pelo pancapitalismo, escolher o caminho aberto pela revolta requer uma obstinação e uma coragem raras, pois galgar os passos nas trilhas da autonomia exige trabalho duro para enfrentar uma série de dificuldades. Porém, todo o esforço do grupo resultou em tempo livre para pensar, interagir, escrever, pesquisar, criar, viajar e experimentar com outros grupos e ativistas engajados na resistência cultural para concretizar suas visões micropolíticas. Durante sua trajetória, é possível identificar pelo menos três grandes linhas mestras que nortearam as ações do grupo, cada uma caracterizada por uma abordagem de conjunto. A primeira marcou os anos iniciais, de 1986 até 1994 aproximadamente, o período da produção de vídeos e de eventos multimídia, no qual o CAE adquiriu ampla experiência com o ativismo artístico na esfera cultural e acumulou reflexões sobre o papel das tecnologias na resistência, a partir da produção de vídeos estilo garage quase sempre conceituais e uma série de eventos multimídia. 105 Em seguida, a produção do CAE foi marcada pela junção da teoria crítica com a práxis artística, norteada pela incorporação das tecnologias da informação e da comunicação às suas reflexões e performances, bem como ao ativismo do grupo. Em torno das tecnologias da informação e comunicação, o grupo publicou de forma pioneira seus livros teóricos que sintetizam os aspectos críticos e reflexivos basilares para o ativismo e a resistência cultural praticada por seus integrantes. Em um momento histórico no qual o ciberativismo era apenas uma possibilidade tratada como ficção científica, as obras The Eletronic Disturbance e Eletronic Civil Disobedience and Other Unpopular Ideas tiveram uma repercussão considerável. A primeira delas tornou-se uma espécie de best-seller underground entre os títulos não- ficcionais, e por conta disso, logo foi traduzido para diversos idiomas. Nessas obras, as tecnologias da informação e comunicação são investigadas na tentativa de apontar formas de usos possíveis em prol de uma resistência eletrônica, a despeito dos imperativos do empreendedorismo e do lucro geralmente associados a tais mídias. Imagem 21 – Machine World. Imagem que abre o livro Flesh Machine, do CAE.137 Por fim, a terceira linha de força temática do grupo foi a das biotecnologias, que focou nas pesquisas científicas de clonagem e decodificação do genoma humano, nas questões acerca da manipulação do DNA, da reprodução artificial da vida, assim como dos alimentos transgênicos e de questões ecológicas e ambientais. As pesquisas sobre essas temáticas resultaram na publicação de quatro obras: Flesh Machine: Cyborgs, Designer Babies and New Eugenic Consciouness, The Molecular Invasion, Marching 137 Critical Art Ensemble. Flesh Machine: cyborgs, designer babies, and new eugenic consciousness. New York: Autonomedia, 1998, p. 2. 106 Plague: Germ Warfare and Global Public Health e, por fim, o mais recente, Aesthetics, Necropolitics, and Environmental Struggle, publicado em 2018 depois de um hiato na produção teórica de mais de uma década. (Ao final do trabalho há uma sucinta apresentação das obras, ver Apêndice 2). Desta forma, o grupo tem abordado alguns dos maiores sistemas tecnopolíticos de nosso tempo: o complexo informático dos meios de comunicação e o complexo biotecnológico. Os livros que tratam dessas temáticas fazem dialogar outsiders da crítica radical com o cânone científico e filosófico do ocidente, especialmente o pensamento moderno e contemporâneo. A partir desse escopo, emerge um pensamento que funda discursividades acerca da política e das tecnologias, com uma diferença em relação à produção acadêmica, por se tratar de um pensamento engajado nas lutas. O Critical Art Ensemble pode ser considerado portanto um coletivo de criação e estudos integrados na sua acepção mais complexa, ou seja, um coletivo que se esforça por empreender pesquisas teóricas, empíricas e práticas nas intersecções entre arte, teoria crítica, tecnologia e política radical. Com muita criatividade, o grupo une as caóides do pensamento (arte, ciência e filosofia) em um agenciamento no qual política e tecnologia desempenham papeis cruciais tanto no pensamento como objeto de reflexão, quanto na prática da resistência cultural. Nessa espécie de máquina de guerra artística montada pelo grupo, a arte é praticada como tática micropolítica que se vale da ciência e da filosofia como recursos para nutrir o pensamento crítico, ao passo que a tecnologia, sempre presente, opera como meio de produção e propagação dos inventos teóricos e estéticos do grupo. O resultado desse duplo processo de pesquisa e criação é nada menos que o prenúncio de uma espécie de Universidade Experimental e Nômade,138 que tenta seguir os fluxos e as tendências da sociedade global para melhor questionar os rumos da civilização, da cultura e das instituições conectadas por altas tecnologias. Na prática de uma universidade experimental, os artistas intervêm em um campo particular de estudo (que pode ser urbanismo, informática, biotecnologia, antropologia ou ecologia, por exemplo) a fim de apresentar perspectivas críticas alternativas. Por vezes, as pesquisas conduzidas nos moldes de uma universidade experimental demonstram uma urgência que as alinham com um tipo de ativismo contemporâneo. Nela, a escolha do 138 Ver Nicholas Mirzoeff, “Anarchy in the ruins: dreaming the experimental university”, in Nato Thompson and Gregory Sholette (Ed.). The Interventionists: users’ manual for creative disruption of everyday life. Massachusetts: MASS MoCA Publications, 2004. 107 tema sempre se faz em função de um problema que emerge do presente, e a forma de colocá-lo não raro a vincula à dimensão política. Por isso, a universidade experimental pode ser responsável por colocar em prática, com soluções criativas e inovadoras, o problema político da produção especializada do conhecimento. É nesse sentido que o CAE promove uma arte crítica como expressão da revolta direcionada a questões que dizem respeito à humanidade e a cada um de nós. Sua resistência artística lança luzes sobre a problemática do novo Leviatã Tecnológico que cresce implacável acoplando organismos, subjetividades e máquinas sob a égide do pancapitalismo. Essa arte metamórfica e mutante se dirige a “corações e mentes”, a grupos e sujeitos, para desafiá-los com a instauração de espaços de questionamento. Assim, ao colocar em questão as estreitas relações da tecnologia com a ciência e o capitalismo, o CAE elabora um discurso político que expressa e produz um outro tipo de sujeito, mais propenso a experimentar éticas e estéticas libertárias. Demonstra em suas obras, portanto, que o propósito da crítica não é simplesmente seguir as pistas deixadas pelos governos, corporações, agências dos mass media e complexos militares, como se a tarefa da resistência fosse viver à sombra do poder. À revolta positiva e afirmativa cabe muito mais. A crítica, o combate, a resistência, todas essas expressões micropolíticas validam a positividade da ação e do pensamento na medida em que se colocam afirmativamente a serviço da criação de novas formas de viver, sentir, agir e pensar, portanto, em favor de novas éticas e estéticas da existência. A postura da revolta do CAE se sustenta por cultivar um ceticismo alerta e intrépido que não se deixa cair nas ilusões totalizantes ou paralisantes que plasmam as teorias e a política. Por mais que mudem as táticas e as estratégias, a revolta permanece firmemente ativa com uma determinação antiautoritária de base que está presente na história do grupo desde seu início. Por fim, cabe destacar uma característica da subjetividade do Critical Art Ensemble: sua mobilização da teoria com criatividade, ousadia, coragem e intrepidez artística que o grupo transfere para o campo da resistência micropolítica. A práxis do CAE é motivada pelo desejo de contribuir com a resistência cultural por meio de seus atos artísticos, epistemológicos e políticos, que são performados por subjetividades imbuídas de uma coragem extrema, que não retrocede nem ante a mais proeminente potência mundial. O legado que o CAE traz consigo até os dias atuais deixa entrever sua imensa capacidade criativa em condensar problemas fundamentais da época presente, ao mesmo 108 tempo que demonstra o resultado de um incansável esforço em estabelecer as condições para que os experimentos artísticos ultrapassem quaisquer fronteiras, estéticas, epistemológicas, políticas e tecnológicas, para enfim atingirem a vida cotidiana. Os Anos de Formação Um coletivo de ativistas como o Critical Art Ensemble, que possui uma trajetória de mais de três décadas, tem atrás de si necessariamente muitas histórias para contar, acontecimentos, desafios, impasses, mudanças de rumos, superações. Ainda mais quando se trata de um grupo dado à experimentação cultural, que pretende intervir na esfera pública com suas distintas formas de expressão, ensejando debates, reformulações de práticas, valores, ideias e discursos sobre capitalismo, ciência, técnica, ecologia e artes, alguns dos temas centrais para a humanidade que agora adentra o novo milênio com a tarefa de repensar seu próprio destino. Hoje considerado um dos expoentes da arte-revolta norte-americana, o CAE surge no final da década de 1980 como um pequeno grupo que fez do desejo de transformação uma fonte de criação. Nos anos iniciais de sua formação, a soma de talentos individuais com uma determinação coletiva fez do experimentalismo um meio de empregar sua revolta no campo artístico cultural, e o que é mais importante, na sua autoprodução enquanto ser-coletivo-para-a-ação. Conhecido no mundo como praticante de mídia tática, o CAE começou produzindo vídeos estilo garage, organizou eventos, happenings, exibições, fez parcerias com artistas undergrounds e ainda atuou junto a movimentos sociais minoritários à semelhança do ativismo tradicional. Vistos em retrospectiva, os primeiros anos foram definidores quanto ao estilo e às formas de ação empregadas ao longo da trajetória do grupo. A abertura para a experimentação permitiu a aquisição de conhecimento, a descoberta de vocações, o aperfeiçoamento de habilidades e técnicas que serviram de base para a constituição do que veio a ser conhecido mundo afora como o Critical Art Ensemble. O estilo de um artista surge aos poucos, precisa de tempo para amadurecer, e quando é o caso de um grupo, então, não é diferente, a experiência torna-se fundamental até que ele adquira vida própria. Em tempos de resistência, no entanto, a urgência exige uma resposta ágil, por vezes improvisada no calor das batalhas. O CAE mostrou-se apto a responder ao apelo da época com sua práxis nômade, no pensamento e na ação, porque passou pela prova dos anos iniciais com determinação e criatividade, constituindo ao 109 mesmo tempo um estilo próprio que consolidou sua carreira nos circuitos internacionais nos anos seguintes. O período inicial da trajetória do CAE foi especialmente produtivo. Nele o grupo empregou diversas formas de expressão, estabeleceu parcerias com artistas renomados na cena underground, trocou experiências com produtores da resistência, fez trabalhos junto a grupos minoritários aos moldes do ativismo tradicional e ainda reformulou a organização interna do coletivo. Toda essa abertura para o novo, uma espécie de disposição experimental, estética e micropolítica permitiu a formação de seu arsenal artístico-cultural de base, desenvolvido posteriormente de forma exemplar. Virada do Século O tempo histórico não pode ser abstratamente circunscrito. Sua realidade consiste nos acontecimentos concretos que transformam o conjunto da vida. A cronologia nada mais é do que um referencial para algo que os números jamais poderiam contar. É com essa compreensão que Eric Hobsbawm apresenta no seu livro Era dos Extremos uma perspectiva histórica interessante segundo a qual o século que teria iniciado com a Primeira Guerra Mundial havia chegado a seu termo logo após a queda do Muro de Berlim.139 Mais do que um acontecimento político, a falência do regime soviético fora interpretado como um signo entre outros para representar a fronteira de uma era, além da qual se anunciava o século vindouro por meio de uma nova hegemonia, ao mesmo tempo econômica, política e cultural.140 A predominância do capitalismo na esfera econômica, fato doravante inexorável, também teve repercussões na arena política e na cultura. Junto ao capital globalizado, a democracia burguesa e a cultura espetacular: assim dispostos, os três pilares da civilização ocidental fincaram suas raízes na entrada do novo milênio. No mesmo período que Francis Fukuyama declarava o fim da história, outras forças sociais, culturais e políticas se agitavam nas rachaduras do ocidente, disputando os mínimos espaços de resistência às tendências então dominantes. Afinal, a existência do poder pressupõe seu contrário. Aparentemente, a hegemonia capitalista havia se 139 Cf. Eric Hobsbawm. Era dos extremos: o breve século XX: 1941-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 140 Cf. Richard Gilman-Opalsky. Specters of Revolt: on the intellect of insurrection and philosophy from below. London: Repeater Boooks, 2016, p. 11. 110 desvencilhado do incômodo socialista, mas não ao ponto de conter a revolta interna que carcomia por dentro as engrenagens do império em formação com o fim da Guerra Fria. Nos Estados Unidos não foi diferente. E o Critical Art Ensemble é um exemplo vivo disso, pois formou-se exatamente no período de transição para a hegemonia do capitalismo global protagonizado pelo estado norte-americano como um de seus avatares mais destacados. Quem poderia imaginar que, no bastião econômico e militar do ocidente, o sonho de um grupo de jovens por um outro mundo possível daria vida a uma arte ousada como a do Critical Art Ensemble, capaz de desafiar o Leviatã de seu tempo? A história tem dessas surpresas, nem sempre é possível antever o que virá. Às vezes basta uma fagulha, um desejo inflamado, para que o improvável, ou até mesmo o aparentemente impossível torne-se realidade. No eterno retorno da ordem, um desvio, um pequeno distúrbio nas engrenagens do tempo, e eis que algo novo surge. Anos 80 No final dos anos 80 a administração Reagan implementava o seu projeto de resgate das raízes capitalistas dos Estados Unidos. O programa de governo, denominado Morning in America, representou uma verdadeira virada neoliberal: por um lado, com a destruição dos serviços públicos, e por outro, com isenções fiscais para os mais ricos. Ao nível internacional, seu corolário foi o intervencionismo bélico em nome da luta contra o comunismo. A polarização acirrada que alimentava o imaginário político da época ganhou novo fôlego neste período. Quando o Critical Art Ensemble ganhou forma, seu alvo macropolítico tinha contornos bem definidos. Pouco depois, a crise da AIDS despertou comoção e indignação, e teve um papel central na mobilização do coletivo.141 No campo artístico, os anos 80 tiraram do foco a arte engajada, herdeira da contracultura, enquanto artistas como Barbara Kruger, Hans Haacke, Leon Golub e Jenny Holzer se projetavam com trabalhos conceituais.142 Ao mesmo tempo, Basquiat e Schnabel, representantes do neo-expressionismo, abriam espaços nas galerias e ganhavam para si os holofotes do espetáculo com as cifras do mercado artístico ávido por novidades. 141 Cf. Steve Kurtz, in Stéphanie Lemoine e Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble. Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 146 e p. 148. 142 Cf. Nato Thompson e Gregory Sholette (Ed.). The Interventionists: users’ manual for creative disruption of everyday life, p. 13. 111 Enquanto isso, fora dos circuitos consagrados, outras expressões artísticas, desta vez, mais engajadas, viabilizavam suas produções com iniciativas coletivas, como o Group Material e o General Idea, que persistiam em seus projetos experimentais e críticos enfrentando o desafio de colocar em prática seus desejos, ante uma sociedade “alienada por sonhos fabricados pelo marketing”.143 Princípios Nesse momento histórico, enquanto as forças internacionais se rearranjavam e os Estados Unidos se projetavam globalmente, o Critical Art Ensemble surgiu com sua verve crítica, questionadora e radical. Desde então, a resistência cultural tem se beneficiado de seus produtos culturais inteiramente políticos e artísticos. Os temas escolhidos pelo grupo (capitalismo, tecnologia, poder) e as abordagens dadas a suas atividades (distúrbio, intervencionismo) são referidos sempre a uma micropolítica da criação que anseia produzir efeitos na cultura. No livro Disturbances, lançado em 2012 pela Four Corners Books de Londres, o CAE publicou pela primeira vez na forma impressa um portfólio com o vasto material produzido pelo grupo ao longo de seus 25 anos de existência. Na obra estão registradas as atividades do coletivo que marcou emblematicamente a história da arte-revolta com uma trajetória ousada e crítica.144 A coletânea Disturbances oferece também a oportunidade do CAE fazer um balanço de sua trajetória e uma chance de lançar uma nova visão sobre sua vasta obra, tanto em termos de criação quanto na dimensão política que a subjaz. No prefácio que abre o livro, o CAE define a perspectiva adotada para a edição do livro: “Nós queríamos argumentar porque uma pessoa curiosa e inventiva escolheria uma trajetória cultural que desafia ou mesmo se opõe a empresa, competição e lucro, e em vez disso se engaja com autonomia, cooperação e prazer”.145 Nesta simples afirmação fica clara a postura de resistência do coletivo. Aí estão expressos seus valores e motivos que norteiam a sua atividade: autonomia para pensar, 143 Cf. Steve Kurtz, in Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble, p. 146-147. 144 CAE. Disturbances. London: Four Corners Books, 2012. 145 “We wanted to make an argument for why an inventive, curious person would want to choose a cultural path that defies or is even hostile to enterprise, competition, and profit, and instead engages with autonomy, cooperation, and pleasure”. CAE, Disturbances, p. 9. 112 agir e criar; cooperação para produzir coletivamente, não só arte, mas relações de colaboração entre os diversos agentes da resistência cultural; e por fim, prazer como signo de satisfação, alegria e vontade de potência. Os prós e os contras relativos a essa postura são também apresentados. Como acontece com praticamente todos os grupos ou artistas que se engajam na arte-guerrilha, no intervencionismo, na mídia tática e, em suma, no ativismo cultural, dificilmente há algum retorno comercial para suas produções, por motivos óbvios. Isso significa, entre outras coisas, que, para viver enquanto ativista cultural, é necessário muito trabalho e dedicação, dentro e fora do universo da arte. Não bastasse certa repulsa pelo trabalho alienado, a postura escolhida pelo CAE desperta, por vezes, a desconfiança das agências disciplinares (do Estado, da indústria, e até mesmo do campo artístico), ainda mais quando a forma ou o conteúdo da produção do grupo demonstra o propósito de romper com o status quo ao fazer a crítica das tendências autoritárias no universo da cultura: “Desde o início, estávamos ligados por nossa crença comum na necessidade de resistência cultural às tendências autoritárias na cultura e às injustiças do capitalismo”.146 No entanto, a disposição para o desafio, para a resistência, também tem o seu lado positivo. O engajamento no ativismo micropolítico proporcionou ao CAE tempo livre para criar, viajar, pesquisar, experimentar, inventar, interagir e, claro, inquietar, provocar, romper as ideologias dominantes, os poderes disciplinares, as tecnologias de controle. E o que é mais impressionante, o CAE conseguiu convencer algumas instituições a pagar por tudo isso. O grupo resume assim o balanço geral de sua atividade ao longo das últimas décadas: Quando o processo está funcionando bem, somos capazes de nos libertar da inexorável alienação e do conflito desnecessário inerente ao impiedoso mundo da competição e da acumulação capitalista, enquanto ao mesmo tempo trabalhamos com os outros para alcançar sua visão de autonomia, cooperação e convivência.147 146 “From the beginning, we were bonded by our common belief in the necessity for cultural resistance to authoritarian tendencies in culture and to the injustices of capitalism”. CAE, Disturbances, p. 20. 147 “When the process is working well, we are able to lift ourselves out of the relentless alienation and unnecessary conflict inherent in the pitiless world of capitalist competition and accumulation, while at the same time working with others to achieve their vision of autonomy, cooperation, and conviviality”. CAE, Disturbances, p. 9. 113 Autonomia, cooperação, convivência e prazer, estas foram sempre as motivações do Critical Art Ensemble. Tendo elas em mente torna-se possível compreender a longevidade do coletivo, a opção por colocar em ação práticas e movimentos culturais que se inspiram no jogo, no bom combate, na resistência criativa, mais do que institucional, encarnando um desejo ativo e uma intrepidez artística que assume a vontade de mudança e o prazer na transformação como princípios micropolíticos norteadores de suas atividades culturais. Desde o seu surgimento, o CAE não parou de se metamorfosear. Ao longo dos anos, os integrantes mudaram, alguns saíram, outros voltaram; as formas expressivas se multiplicaram, do vídeo para a performance, da arte conceitual para os livros de ensaios; e a alternância dos focos temáticos trabalhados pelo grupo, do mesmo modo, tudo isso indica sua potência metamórfica, nômade, criativa. Imagem 22 – Uma das primeiras formações do CAE, 1986-87. Da esquerda para a direita: Steven Barnes, Claudia Bucher, George Barker, Steve Kurtz, Greg Carter e Joel Whitaker.148 Os primeiros anos foram especiais quanto a isso, pois na passagem da década de 1980 para os anos 90 o CAE experimentou diversas formas de expressão e organização, estabeleceu parcerias, trocou experiências com outros artistas e ativistas até configurar uma micropolítica interna e externa que depois marcou toda a trajetória do coletivo. 148 CAE, Disturbances, p. 22. 114 Exatamente como isso aconteceu é o que será tratado agora com uma breve retrospectiva dos acontecimentos que moldaram a trajetória, a produção e o ativismo do coletivo nos seus anos iniciais. Surgimento A história do Critical Art Ensemble começa na década de 1980, quando os futuros membros do coletivo ainda cursavam universidade. Segundo o testemunho do CAE, as origens históricas do grupo remontam aos anos de 1986 e 1987.149 Naquele período, as ideias modernistas, a valorização do expressionismo abstrato e o culto ao gênio reinavam nas abordagens acadêmicas e historiográficas das artes. A arte era tratada como expressão individual de um gênio estético que o artista supostamente trazia em si. Muito embora inseridos nos circuitos artísticos universitários, os mentores do CAE, Steven Barnes e Steve Kurtz, inspiravam-se em outras referências que se projetavam fora da história da arte modernista: O engajamento político por meio da ação cultural que víamos nos trabalhos do movimento de arte feminista, dos Situacionistas, do Living Theater, do Teatro do Oprimido, do Art Action Group e do Group Material parecia muito atraente e relevante.150 A vertente politizada da arte contemporânea, profundamente marcada pelas temáticas sociais, aparece aí representada por alguns dos seus maiores expoentes. Enquanto as artes bem comportadas animavam o espetáculo das indústrias culturais, a arte-revolta traçou suas linhas criativas, contestatárias e, por vezes, imperceptíveis, despertando o interesse de jovens em diversos países. E se ela inspirou os membros do Critical Art Ensemble na origem não foi à toa: uma sensibilidade artística, estética, social e política atenta ao mundo contemporâneo foi sempre um fator determinante para os membros fundadores do grupo, que clamavam por expressões culturais mais engajadas nos problemas históricos, nas questões pertinentes à época. O próprio nome do coletivo designa a escolha por se colocar ao lado das linhagens politizadas da arte, com as quais o coletivo pretendia colaborar doravante à sua maneira. 149 Cf. CAE, Disturbances, p. 24. 150 “Engagement with politics through cultural action that we had seen in the work of the feminist art movement, the Situationists, the Living Theater, Theater of the Oppressed, Guerilla Art Action Group, and Group Material seemed so much compelling and relevant”. CAE, Disturbances, p. 19. 115 Imagem 23 – Membros do Group Material em 1980, um dos coletivos de arte que inspiraram o CAE. Em sentido horário, a começar no alto à esquerda: Szypula, Brennan, Rollins, Ault, Lebron, Nelson, Jaker, Dones, Alderfer, Pakulsk.151 A questão do gênio, no entanto, permanecia intrigante, pois, segundo a representação do mundo da arte tradicional por vezes dá entender, somente os muito raros entre os mortais teriam a capacidade de se tornar artistas. A ideia então de montar um grupo fazia sentido para ultrapassar a concepção um tanto romântica do gênio artista e ainda proporcionaria a possibilidade de várias pessoas impulsionarem suas criações mutuamente. A resposta inicial foi um conjunto [ensemble] – nós teríamos muitas das vantagens da produção em grupo, mas ainda mantendo a expressão individual. Como um conjunto de jazz, nós escolheríamos o tema, e cada membro poderia improvisar de maneira ‘única’ usando um meio específico.152 151 Cf. Julie Ault (ed). Show and Tell: a chronicle of Group Material. London: Four Corners, 2010, p. 8. – Ao longo de seus 16 anos de atividade, o Group Material produziu mais de quarenta e cinco exposições e projetos públicos com a intenção de transformar a produção, apresentação e recontagem da cultura contemporânea, inventando novas formas de atuação em museus e nas ruas. “Group Material foi fundado por vários artistas que buscavam uma prática colaborativa na qual pudessem fundir seus interesses em arte e política. Os treze membros originais incluíam Tim Rollins, Patrick Brennan, Julie Ault, Mundy McLaughlin, Marybeth Nelson e Beth Jaker. Em 1980 e 1981, o Group Material operou no espaço de exposições da loja na East Thirteenth Street, onde realizou uma série de shows focados em temas sociais. Depois de 1981, o grupo encolheu para três membros e optou por não manter seu próprio espaço, mas criar instalações em locais já existentes (espaços de arte alternativa, galerias universitárias e museus) e projetos multiformes em público (principalmente através de intervenções que usam espaços públicos)”. Tradução do excerto originalmente publicado em obra editada por Julie Ault, membro fundadora do Group Material: Alternative Art, New York, 1965–1985: a cultural politics book for the Social Text Collective: the Drawing Center, New York. Minneapolis: University of Minnesota Press and The Drawing Center, 2002. Fragmento disponível em: http://dlib.nyu.edu/findingaids/html/fales/groupmaterial/bioghist.html Acesso 10 de abril de 2019. 152 “The initial answer was an ensemble – we would have many of the advantages of group production, but 116 Como em uma banda de jazz cada membro tem o seu momento de apresentar sua individualidade artística com solos improvisados, assim também, o Ensemble de arte crítica foi pensado originalmente para ser o suporte para a expressão individual de seus integrantes. No primeiro momento, o nome Critical Art Ensemble foi pensado para designar os trabalhos em vídeos low-tech ou de garagem produzidos por Steven Barnes e Steve Kurtz. Contrariando uma convenção comum presente no campo da produção de vídeos de assinar a autoria com nomes pessoais, Barnes e Kurtz optaram por assinar os curtametragens que eles produziam então com o nome do grupo. Embora algo aparentemente simples, a atitude de formar um conjunto artístico para atuar no campo da produção de vídeos amadores foi importante pois a partir desse impulso inicial a criatividade do grupo mostrou-se cada vez mais fecunda. Os títulos dos curtametragens realizados no início da carreira do grupo indicam algumas das influências artísticas, literárias e conceituais de então. Para mencionar alguns exemplos, eis os títulos nos quais se identifica mais diretamente as referências do CAE: Artaud’s Thoroughly Modern Express, Baudrillard’s Lasso, Crystals and Praxis, Excremental Culture, Foucault’s Paradox, Godard Revisited, Homo Duplex, Hyperbole and Insubordination, Hysterical (Re)marks, Ideological Virus, An Immortal’s Distractions, Isou’s Chisel, Less Than Utopia, Misappropriation, Sign of Desire, Speed and Violence.153 Nominalmente, aparecem Artaud, Baudrillard, Foucault, Godard e Isou (fundador da Internacional Letrista que precedeu os Situacionistas na França), e implicitamente é possível abstrair Guy Debord (na forma de composição dos vídeos), Paul Virilio (com a problemática da velocidade) e Deleuze e Guattari (que aparecerão com mais destaque em seguida). Com a produção dos vídeos, a proposta era tornar visível problemáticas tratadas no mais das vezes teoricamente nos campos especializados de conhecimento das humanidades, nos departamentos de artes e ciências sociais. Havia uma certa desconfiança por parte do CAE que as teorizações elaboradas nas universidades permaneciam muito abstratas, de difícil acesso e compreensão para a maior parte do público externo ao campo acadêmico. still maintain individual expression as well. Like a jazz ensemble, we would pick the theme, and each member could riff on it in their own ‘unique’ way using specific medium”. CAE, Disturbances, p. 20. 153 Cf. CAE, Disturbances, p. 26-29. 117 Imagem 24 – Frames de dois filmes produzidos pelo CAE.154 Os vídeos eram tentativas de traduzir o pós-estruturalismo e o pós-marxismo em algo acessível e mais próximo à realidade do público não especializado, que normalmente se mostrava reticente à postura hiperteórica que trazia consigo jargões, neologismos e ambiguidades. Ainda que os membros do grupo tenham se esforçado para aprender, compreender e aplicar nas suas artes o universo conceitual acadêmico, a situação não era fácil, pois saindo das universidades, das faculdades de artes e ciências humanas, o valor da comunicação praticamente cessava. A linguagem acadêmica permanecia pouco eficaz para a compreensão do público não-iniciado. Foi por esse motivo que o CAE investiu sua criatividade conceitual, técnica e artística na produção de 25 curtametragens até os anos 90 a fim de experimentar com a linguagem audiovisual formas de comunicação para um público amplo na esfera da cultura; uma produção, portanto, numerosa e diversificada, que demandou envolvimento e um cuidado especial por parte do coletivo. 154 CAE, Disturbances, p. 26 e p. 28. 118 Primeiros Movimentos Ainda em 1987, os membros fundadores do CAE resolveram experimentar outras formas de expressão além do vídeo, o que resultou na incorporação de novos integrantes para somar com a dupla inicial. As incursões nas atividades multimídias e os trabalhos coletivos começavam a ganhar forma. A ideia de tornar as produções do coletivo diversificadas ganhou realidade com a contribuição de diferentes especialidades no campo das técnicas artísticas que os novos membros do grupo trouxeram consigo. Depois de mais um ano, em 1988, a formação do CAE, então composta por 7 integrantes, passou por novas mudanças. Os membros fundadores, Barnes e Kurtz, permaneceram após uma rápida recomposição do grupo. Deixaram o CAE George Barker, Claudia Bucher e Jeniffer Canterberry, e entraram Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee e Ricardo Dominguez, conformando assim um grupo que se manteve coeso por mais de uma década. (Ver Apêndice 3 – Formações do CAE).155 Com as mudanças de formação iniciais, o conceito do grupo foi reformulado. Havia chegado o momento em que não fazia mais sentido tratar o Critical Art Ensemble como plataforma para expressões puramente individuais. A inserção no campo mais amplo das artes, a interação com outros grupos, o aprofundamento da reflexão, os debates que animavam as conversas certamente inspiraram perspectivas inovadoras e a ideia de agenciamento coletivo ganhou destaque nas práticas do grupo. Tamanha efervescência resultou ainda na modificação da autoimagem conceitual do CAE, que assumiu definitivamente o viés coletivo de sua produção. Tornou-se portanto um coletivo artístico propriamente dito, que opera ao mesmo tempo como catalisador e expressão de uma inteligência eminentemente coletiva. Muito embora a concepção de um grupo pequeno baseado na afinidade privilegie uma organização na qual a individualidade dos integrantes seja respeitada, o Critical Art Ensemble ganhou com tal metamorfose um estatuto próprio, singular, que não representa nenhum membro especificamente. O que poderia parecer contraditório com a proposta inicial, significa na realidade a busca pela coerência com a crítica que se faz à própria ideia de autoria vinculada ao indivíduo, concepção que está em consonância com a discussão da arte-revolta desenvolvida nas últimas décadas face ao modernismo artístico. 155 Cf. CAE, Disturbances, p. 272. 119 Diferente do que aconteceu no universo da pop art (com Andy Warhol), a feição pública do CAE não tem rosto. O que existe concretamente é uma assinatura, que vem ocupar o lugar normalmente designado ao autor. Assim, a autoria individual é superada pelo agenciamento coletivo, que nesse sentido leva a assinatura do Critical Art Ensemble, considerado entidade com existência e subjetividade próprias. Tanto é que ao longo de seus mais de 30 anos de existência houve em torno de 8 formações, com entradas e saídas de membros,156 sem que o coletivo perdesse com isso seus traços característicos, seus princípios geradores. Do mesmo modo, toda a rica produção composta por obras escritas, vídeos, exibições, performances, instalações, foi selada pela insígnia do coletivo. A questão colocada pelo CAE não é produzir de forma anônima (seus integrantes estão sempre presentes nas performances, são personagens conhecidos nos circuitos da arte-revolta), mas de reconhecer o caráter coletivo da produção artística e cultural nos termos da arte contemporânea experimentada pelo coletivo. Desde então, a nova conceituação do CAE modificou a práxis interna do grupo: cada indivíduo tem seu papel na nova dinâmica interna e passa a trabalhar em torno de conceitos e projetos agenciados coletivamente, afinal, o objetivo almejado sempre foi a cooperação e não a competição. Na prática, os projetos coletivos, agenciados mediante o modelo orgânico da interdependência entre os membros do grupo, tornaram-se a forma predominante de criação e trabalho do CAE até o presente, somando a eventuais parcerias culturais, artísticas e micropolíticas que também fazem parte da história do grupo. Dinâmica Interna Com a entrada de novos integrantes, tornou-se necessário decidir sobre o tamanho do grupo. Se o objetivo era formar um coletivo coeso e capaz de colocar em prática seus objetivos, respeitando os princípios de autonomia, amizade, cooperação, convívio e prazer, então a questão da organização interna tornava-se fundamental. Desde o princípio, o grupo se formou com base nas afinidades dos integrantes entre si. Para manter a sinergia interna funcionando bem foi preciso pensar um modelo de organização no qual as individualidades, respeitadas em si mesmas, também dessem 156 Cf. CAE, Disturbances, p. 272. 120 vida a uma vontade partilhada de produzir conjuntamente algo que fosse ao mesmo tempo relevante para o coletivo e prazeroso para o indivíduo. Pouco a pouco, a cooperação em torno de processos coletivos de criação substituiu o modelo individualista, e essa mudança por si só repercutiu na dinâmica interna do grupo, na maneira de coordenar as ações e colocar em prática os potenciais de cada integrante. Até o início dos anos 90 o modelo do conjunto (ensemble) foi perdendo espaço para a prática dos projetos coletivos (collective), nos quais as potencialidades de cada membro entram em um processo orgânico de interdependência que cria uma entidade maior do que a soma das partes. Nós reunimos membros de modo que as habilidades não se sobrepusessem. Esta solução funcionou por um curto período de tempo, mas entre os que permaneceram após o primeiro ano (dois dos sete originais), bem como entre os novos recrutas (Hope Kurtz, Dorian Burr, Ricardo Dominguez e Bervely Schlee), arraigou-se a ideia de que deveríamos ser mais um coletivo [collective] do que um conjunto [ensemble]. O individualismo tinha que ser abandonado porque criava muito atrito por meio da competição, em vez de produzir a cooperação necessária. Na prática o modelo do conjunto [ensemble] continuou com uma capacidade cada vez menor até meados dos anos 90, enquanto os projetos coletivos [collective projects] tornaram-se cada vez mais parte da nossa prática. Ao mesmo tempo, o modelo orgânico (interdependência através de especialização visando criar uma entidade maior que a soma de suas partes) continua até o presente. A tatuagem modernista foi lentamente lavada.157 A dinâmica e a dimensão do grupo foram pensadas com o intuito de possibilitar a participação direta dos integrantes nos processos de criação, em relações face a face nas quais a amizade dá o tom do convívio. Por vezes, os coletivos de artistas tem sido uma das instâncias encontradas para a vivência de relações interpessoais significativas. No contexto sociocultural capitalista, onde impera a competição desenfreada, afirmar os valores de cooperação, solidariedade, prazer e autonomia demarca uma postura de resistência. Além do mais, indica uma posição política fundamentada em uma voz de autorreferência elaborada coletivamente. 157 “We assembled members so that our skill bases did not overlap. This solution worked for a short period of time, but among those remaining after the first year (two of the original seven) as well as among the new recruits (Hope Kurtz, Dorian Burr, Ricardo Dominguez, and Bervely Schlee) the idea began to take root that we had to be more of a collective than as ensemble. The individualism had to be abandoned, because it created too much friction through competition rather than producing the needed cooperation. While in practice, the ensemble model continued in an ever-diminishing capacity into the mid-90s, collective projects became an ever-increasing part of our practice. At the same time, the organic model (interdependence through specialization aimed at creating an entity greater than the sum of its parts) continues into the present. The modernist tattoo was slowly washing off”. CAE, Disturbances, p. 20. 121 O formato celular fundamentado na afinidade opera também como uma espécie miniaturizada de sociedade contra o Estado.158 No caso do Critical Art Ensemble não existe a necessidade de um líder público, e contando com o número pequeno do grupo (que teve uma única formação de 7 membros durante toda a sua trajetória, sendo as demais formações ainda menores numericamente) a questão do poder se coloca de outra maneira. O certo é que há uma forma de organização que dispensa a figura de autoridade e se ampara na horizontalidade das relações, afastando desta forma, antecipadamente, o surgimento de qualquer autoridade separada da vontade do grupo. O tamanho do grupo por si só não explica em absoluto a ausência de autoridade ou liderança formal em um grupo, mas a dimensão do coletivo influencia nas relações de poder. Em uma organização celular, composta por um número pequeno de integrantes, diminuem as chances dos indivíduos serem anulados. Suas vozes encontram voluntariamente ressonância no grupo. O contato próximo, pessoal e amigável de uns com os outros permite uma participação direta em quase todos os processos, sem necessidade de hierarquia fundada na obediência. O agenciamento coletivo do CAE optou por se diferenciar no modelo de protagonismo dos seus membros nas atividades do grupo. Ao invés de exigir comprometimento e produtividade iguais para todos no tempo e na dedicação às suas atividades, o grupo preferiu considerar as disposições individuais, que nem sempre são as mesmas, e para respeitar as diferenças, em termos micropolíticos, optou por deixar em aberto a forma como cada membro se dedicará às atividades do coletivo. O modelo padrão da vez era o da igualdade: todos faziam a mesma quantidade de trabalho e tinham participação igual nas decisões do grupo. O CAE rejeitou esse modelo acreditando que as pessoas não são iguais na maneira como encontram prazer na produção e no serviço; as diferenças podem ser extremas. Nós acreditamos que os indivíduos tem a capacidade de se colocar no processo como uma pessoa em vez de ser reduzida a um mecanismo de trabalho cumprindo uma cota. O processo de trabalho emerge com as interações ao longo do tempo, e não através de contratos, regras e regulamentos, por mais consensuais que tais acordos possam ser.159 158 Cf. Pierre Clastres. A sociedade contra o estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 222-224. 159 “The standard model of the time was one of equality: everyone did the same amount of work, and had equal input into group decisions. CAE rejected this model, believing people are not equal in the way they find pleasure in production and service; the differences can be extreme. We believed that individuals should be able to bring themselves to the process as a person and not be reduced to a mechanism of labor fulfilling a quota. Work process had to emerge through interactions over time, rather than through contracts, rules, and regulations, however consensual such agreements might be”. CAE, Disturbances, p. 20. 122 Para o CAE, portanto, o processo de participação surge dinamicamente, nas interações, com o passar do tempo, e não segundo a fórmula contratual. Fiel a uma pragmática experimental, o agenciamento do coletivo é processual e aberto, passível de mudanças e adaptações conforme as necessidades e os desejos dos envolvidos, o que permite dinamicidade, flexibilidade e reconhecimento dos participantes do processo inteiro. Com relação à organização e à dinâmica do poder internas, o CAE decidiu assumir um modelo que comporta uma certa divisão de tarefas, muito embora modificável e meramente funcional no que se refere aos processos de criação do grupo: (...) nos quais a pessoa com mais experiência em uma determinada área teria o poder de fazer julgamentos finais sobre um projeto ou um elemento específico de um projeto. Por exemplo, o designer teria a última palavra em questões de design. Isso mantém o processo de tomada de decisão eficiente, mas sem introduzir a variedade de alienações comuns na divisão industrial e pós-industrial do trabalho.160 A divisão das tarefas responde ao princípio de respeitar as individualidades e valorizar os talentos de cada integrante. O CAE sempre se opôs ao princípio econômico da eficácia e da produtividade que normalmente opera nas indústrias culturais, a começar pela dinâmica do grupo, e se empenhou em neutralizá-lo internamente colocando em primeiro lugar os princípios da liberdade e do prazer. Ainda assim, a divisão de tarefas que subjaz à produção cultural do grupo condiz com a escolha de se valer de vários meios e técnicas de expressão em suas produções culturais, afinal, gestar projetos e processos que envolvem vídeo, performance, escrita, tecnologias, propaganda, etc., requer muitas habilidades, competências, responsabilidades e, sobretudo, pessoas comprometidas. Projetos dessa natureza são impensáveis sem colaboração e pressupõem necessariamente um trabalho em equipe. Este tem sido inclusive um desafio enfrentado pelos artistas mais convencionais, que são forçados a acumular diversas atribuições a fim de viabilizarem seus projetos. O contexto das artes na passagem do século XX para o século XXI, devido à industrialização do entretenimento, da cultura e das artes, passou a requerer cada vez mais 160 “(…) in which the person with the most expertise in a given area would have the power to make final judgments on a project or on a specific element of a project. For example, the designer would have the last word on design questions. This kept the decision-making process efficient, but without introducing the variety of alienations common in the industrial and postindustrial division of labor”. CAE, Disturbances, p. 20. 123 competências dos artistas e produtores culturais em geral, que necessitam somar diversas habilidades e técnicas para darem vida a seus projetos e se destacarem no meio cultural. Uma das respostas a tais imperativos da arte institucional, industrial e espetacular que gira em torno de museus, órgãos financiadores, estatais ou privados, foi dada pelo boom da arte coletiva, performática e social que caracterizou as últimas décadas. Tais escolhas marcam a micropolítica da criação e do convívio do CAE, que prima pela somatória das contribuições individuais para que os membros do coletivo se vejam no produto final. Do contrário, dificilmente seria possível distinguir a atividade empreendida pelos indivíduos no grupo do trabalho alienado que ocupa a vida dos indivíduos nas empresas capitalistas. Segundo a concepção clássica de Marx, o trabalho alienado promove um processo produtivo no qual o produtor não se reconhece no produto de seu trabalho. O resultado do trabalho alienado aparece ao produtor como algo que lhe é estranho. A fim de superar isso, no CAE houve sempre o cuidado de não reduzir a prática criativa à mera produtividade, nem confundir a criação com obrigação, dever, trabalho. O prazer no convívio, na inventividade, no jogo, no combate, e a satisfação na resistência cultural, nas alianças micropolíticas, nos agenciamentos coletivos, nas viagens e nos resultados nem sempre esperados, foram alguns dos princípios da dinâmica do grupo ao longo dos anos. Tudo considerado, enquanto coletivo formado por artistas engajados nas problemáticas sociais e preocupados com a criação de novos conteúdos, sua expressão pública, ao mesmo tempo estética e social, pretende ser o resultado de um processo micropolítico de tipo afirmativo e criador. Nesse sentido, o Critical Art Ensemble encarna uma micropolítica da criação por excelência, antes de tudo, de amizades, e em termos gerais, de discursividades, visibilidades e experiências partilhadas por quem mantém contato com o grupo e suas obras. Grupos de Criação Ao tratar da produção cultural é possível distinguir conceitualmente dois tipos de grupos, que Félix Guattari denomina sujeitos e sujeitados. Um grupo é considerado sujeito sempre que remete sua produção enunciativa, discursiva, prática e imagética, ao próprio desejo sem submeter-se aos imperativos sociais. Diz-se sujeitado, por sua vez, aquele grupo no qual o processo de enunciação ocorre no sentido contrário, ou seja, submetido às estruturas estabelecidas. Nas palavras do autor: 124 O grupo sujeito, ou que tem vocação para sê-lo, se esforça para ter um controle sobre sua conduta, tenta elucidar seu objeto e, nesse momento, secreta os meios desta elucidação. (...) O grupo sujeitado não se presta a tal perspectivação; ele sofre hierarquização por ocasião de seu acomodamento aos outros grupos. Poder-se-ia dizer do grupo sujeito que ele enuncia alguma coisa, enquanto que do grupo sujeitado se diria que “sua causa é ouvida”. Ouvida, aliás não se sabe onde nem por quem, numa cadeia serial indefinida. Esta distinção não é absoluta, ela constitui apenas uma primeira aproximação nos possibilitando indexar o tipo de grupo com que lidamos em nossa prática. Na realidade ela funciona à maneira de dois pólos de referência; qualquer grupo, mais especificamente os grupos sujeitos, tendem a oscilar entre estas duas posições: a de uma subjetividade com vocação a tomar a palavra, e a de uma subjetividade alienada a perder de vista na alteridade social.161 Um grupo de criação é sujeito antes de mais nada de sua própria constituição. Opera com relação a saberes e poderes de modo a retroagir sobre seu ser mesmo. Implicado nos processos ativos no mundo social, experimenta uma abertura subjetiva e, portanto, micropolítica, que se mantém em constante questionamento. No primeiro tomo da obra Capitalismo e Esquizofrenia, Deleuze e Guattari desenvolvem a distinção, que é feita nos seguintes termos: Todos os investimentos são colectivos, todos os fantasmas são fantasmas de grupo e, neste sentido, afirmação de realidade. Mas os dois tipos de investimentos [um segregativo e outro nomádico] são radicalmente distintos, porque um relaciona-se com as estruturas molares que a si subordinam as moléculas e o outro, ao contrário, relaciona-se com as multiplicidades moleculares que a si subordinam os fenómenos estruturais de massa. Um é um investimento de grupo- sujeitado tanto na forma de soberania como nas formações coloniais do conjunto gregário, que reprime e recalca o desejo das pessoas; o outro é um investimento de grupo-sujeito nas multiplicidades transversais em que o desejo é um fenómeno molecular, isto é, objectos parciais e fluxos, em oposição aos conjuntos e às pessoas”.162 O caso do Critical Art Ensemble é exemplar quanto a isso. Ao se esforçar em tornar conscientes seu desejo, os motivos de sua atividade e os pressupostos de suas ações no campo artístico e cultural, o CAE pode ser considerado um grupo sujeito e portanto de criação no sentido específico aqui empregado. Ademais, a produção de desejo inerente 161 Cf. Félix Guattari, “A transversalidade”, in Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, s/d, p. 92. 162 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Introdução à esquizo-análise”, in O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 292. Para mais referências sobre a distinção, ver Gilles Deleuze, “Três problemas de grupo [1972]”, in A ilha deserta – textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Iluminuras, 2006. 125 ao agenciamento do coletivo, como potência afirmativa, elabora seus próprios valores, discursos e processos aos quais correspondem a atitude do grupo no mundo. Atitude esta que se reflete nas relações interpessoais, nas pragmáticas artísticas, na micropolítica da resistência e nas formas de expressão escolhidas para viabilizar sua arte crítica e torná-la conhecida. Do mesmo modo, a maneira como os integrantes se relacionam entre si, as formas como produzem e deliberam os processos criativos caracterizam uma micropolítica da criação, que surge e emana do agenciamento coletivo acionado por seus integrantes. A distinção entre grupos sujeitos (chamados neste trabalho de Grupos de Criação) e grupos sujeitados foi elaborada por Guattari no contexto da década de 1960, período que entrou para a história pela eclosão do desejo e pela multiplicação dos movimentos sociais, os mais diversos. Uma época que, animada por novos protagonistas sociais e micropolíticos, colocou em xeque as formas consolidadas de ativismo político. Na França começaram a se formar pequenos grupos que deviam sua existência a afinidades socioculturais não abarcadas no movimento operário. As condições de existência mudaram muito nos países industrializados. A juventude europeia do pós- guerra teve que reconstruir o mundo após a ruína deixada para trás pelos Nazistas. A reorganização das instituições francesas, a reestruturação do capitalismo a nível mundial, a complexificação das sociedades em termos internacionais, todos esses fatores afetaram a produção do desejo revolucionário. Havia chegado o momento histórico do surgimento de novos movimentos cujas reivindicações, agendas e bandeiras possuíam especificidades próprias. Ao lado das lutas de classes típicas do ativismo tradicional da classe trabalhadora eclodiram os movimentos feministas, a luta antipsiquiátrica, os ecologistas, o movimento gay, e mesmo o movimento estudantil desenvolveu pautas diferenciadas. Nos Estados Unidos aconteceu algo semelhante. Depois dos Beatniks, entraram em cena movimentos de luta por direitos civis. Os Black Panthers, os Hippies e toda sorte de grupos contraculturais ganharam o mundo com suas bandeiras, éticas e estéticas inovadoras. Houve, em suma, uma efervescência política e cultural importante em vários países, inclusive no Brasil, durante as décadas de 1960-70. Os protagonistas das novas reivindicações culturais e políticas vieram somar seus esforços e suas esperanças como vias alternativas aos partidos e sindicatos há muito consolidados como instâncias da luta de classes. Ocuparam a arena pública movimentos minoritários, grupúsculos de afinidade e as mais distintas agremiações com intenções 126 políticas específicas. Neste fenômeno, Guattari viu a eclosão do desejo revolucionário que não cabe em fórmulas definitivas e por isso se expressa de distintas formas no campo social, cultural e político como uma potência mutante, transformadora. Nas décadas de 1980-90 ocorreu um fenômeno semelhante no campo das artes e das resistências: uma eclosão do desejo revolucionário, mais especificamente nos circuitos da arte-revolta que tentava se reinventar para contrapor uma alternativa à cooptação da potência artística para propósitos capitalistas, espetaculares, industriais e mercadológicos. O impasse diante da apropriação espetacular das artes no contexto neoliberal obrigou a resistência cultural a desenvolver novas formas de atuação na esfera da cultura sem se submeter aos imperativos dominantes. A isso se deve a histórica tendência da arte-revolta em recorrer a formas de intervenção pragmáticas que caracterizou o período. As artes coletivas, socialmente engajadas, os grupos de criação que se organizaram em distintos países começaram a intervir em comunidades, em locais específicos, realizando um trabalho cultural de intervenção micropolítica que mais tarde culminou nas parcerias com os movimentos pela alterglobalização, e mais recentemente, no Occupy Wall Street. Pluralismo Durante os anos 80, o mundo das artes foi tragado pelos imensos aparelhos de captura do espetáculo capitalista. A indústria cultural imperava praticamente sozinha. As artes formais, o neoexpressionismo e o recrudescimento da arte pop cooptaram não só as mais distintas técnicas, concepções e estéticas outrora inovadoras, como ainda foram capazes de colocar em xeque os ícones da resistência cultural. Após tanto tempo na resistência anticapitalista e antiautoritária, a arte crítica foi convidada a ocupar um lugar modesto no palco do espetáculo capitalista. As democracias liberais haviam encontrado uma forma de neutralizar a arte-revolta, já que extingui-la parecia algo impossível. Agora que quase tudo podia ser arte, a vertente crítica tornou-se, no melhor dos casos, uma curiosidade. Visto em retrospectiva, a mistura de todos os estilos, técnicas e estéticas em um universo artístico pluralista não fez bem à arte-revolta, paradoxalmente. Pois se a fórmula niilista do “tudo é permitido” vale para o universo artístico, e qualquer coisa pode ser considerada arte, então a arte crítica é igualmente integrada como uma categoria a mais admitida no campo, e o que poderia resultar positivo, na realidade contribui para 127 neutralizar o aspecto disruptivo contido nas expressões da arte-revolta, a partir de então considerado algo normalizado, estilístico, exotismo, expressão quiçá radical de sujeitos descontentes com o mundo. Hal Foster, crítico de arte destacado no cenário contemporâneo, foi um dos primeiros a chamar a atenção para os efeitos regressivos do fenômeno. Ele defende a tese de que “num estado pluralista a arte e a crítica tendem a se dispersar e se tornar impotentes”.163 E ao contrário do que se poderia supor, o pluralismo na arte, ao invés de liberar as potências da revolta, assinala uma forma de tolerância que não ameaça o status quo, simplesmente, porque as imensas capacidades criativas que encontram na crítica e no descontentamento sua fonte de inspiração são canalizadas para a fabricação de mais representações artísticas a fim de que não se tornem combustível para rupturas políticas. Assim, não há perigo de revolta real, mas uma pálida ou estridente representação da revolta em circunstâncias controladas. A revolta corporal, que seria a mais impactante, no entanto, chega a ser admitida mediante o processo de dessublimação regressiva, ou seja, em espaços delimitados e condições circunscritas. O estado pluralista da arte tolera a crítica e a revolta enquanto tema, discurso, representação, contanto que nunca se apresentem como alternativas práticas de transformação para além das fronteiras do establishment artístico. Por outro lado, o uso de signos e imagens em um contexto cultural saturado colocou um problema a mais para os artistas, ativistas e produtores culturais da resistência. Como disputar a atenção do público sem a concorrência desleal dos produtos massivos da indústria cultural e suas microrracionalidades publicitárias, que operam um marketing quase onipresente? Que formas usar para fazer a produção cultural chegar até o público sem passar pelos meios de produção do espetáculo? De que maneira superar a arte-mercadoria? Face a tais questões, uma gama de novos agentes micropolíticos, artísticos e culturais dispuseram-se a investir em experimentos, ações e performances que jogam com o ser inteiro, seu corpo e as subjetividades, atuando junto a grupos específicos, in loco, em comunidades, no espaço urbano, como estratégia de burlar as artes da representação capturadas pelo capitalismo espetacular e, ao mesmo tempo, intervir diretamente na vida cotidiana. 163 Cf. Hal Foster, “Contra o pluralismo”, in Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996, p. 33-38. 128 O Revide da Arte-Revolta Contra o Espetáculo A arte-revolta adentrou a década de 1990 com o desafio de se reinventar. Frente à sociedade do espetáculo que torna os sujeitos passivos em relação à vida e ao mundo, a jogada dos coletivos de arte e produção cultural de resistência foi apostar nos dispositivos artísticos que possuem uma expressividade micropolítica diferenciada, focada na presença do corpo a corpo. As artes performáticas, que já tinham uma história importante, pareciam os meios de intervenção mais adequados para enfrentar o impasse da época. O pressuposto para superar o registro da representação (inscrito e mantido pelo espetáculo) era empregar novos meios de produção artísticos e culturais distintos daqueles utilizados pela indústria cultural. A carga simbólica das imagens ou os textos abertamente políticos deixavam de ser as melhores formas de comunicar em uma época na qual a pregação é vista com suspeita. Em parte pela exaustão visual provocada pelas indústrias culturais, em parte pela queda do Muro de Berlim e pela privatização do espaço visual e público, o cenário cultural dos anos 90 se transformou e impôs à resistência cultural a busca por uma resposta à altura do desafio.164 O Critical Art Ensemble desempenhou um papel de destaque neste movimento com sua práxis inventiva. O interesse em organizar exibições multimídia, ações artísticas, happenings e performances desencadeou uma metamorfose do coletivo. A produção de curtametragens, com suas filmagens, colagens e edições, por mais que fosse interessante, tornou-se limitada face à vontade de promover acontecimentos artísticos de impacto, realmente mobilizadores dos desejos, da imaginação e das subjetividades envolvidas nos processos em geral, inclusos produtores culturais, artistas e público. O elemento tecnológico, presente na produção conceitual dos vídeos, continuou desempenhando um papel importante mas tornou-se um componente, entre outros, à disposição do novo agenciamento coletivo. Do mesmo modo, a arte conceitual, a abordagem social e crítica que constituíam partes importantes na produção do grupo passaram para o primeiro plano, vindo a ocupar funções centrais para o que viria a ganhar forma logo mais. Segundo o testemunho do CAE,165 o que estava em jogo era a vontade de superar uma arte demasiado presa à representação. Agora, o grupo se movia pelo desejo de se 164 Cf. Nato Thompson, “Trespassing Relevance”, in Nato Thompson e Gregory Sholette (Ed.). The Interventionists: users’ manual for creative disruption of everyday life, p. 14. 165 Cf. CAE, Disturbances, p. 24. 129 lançar na experimentação com as tecnologias, com os corpos, nas interações vivas com as pessoas, na dimensão propriamente performática, muito mais propícia aos acontecimentos transformadores junto ao público. Concretamente, foi a entrada em cena dos corpos, a configuração de ações deliberadas em um ativismo micropolítico cultural, artístico, tecnológico e performático. Pouco a pouco, o corpo saiu da posição de manipulador das técnicas (de filmagem, edição, montagens, etc.) para ocupar ele mesmo o cenário de uma experiência estética múltipla. O CAE assume neste período uma postura ativa no campo das resistências, coloca- se à frente, estabelece alianças, amplia laços artísticos, viabiliza parcerias com outros coletivos e opera sua micropolítica da criação. A ideia motriz passava a ser intervir na cena cultural por meio de exposições, performances e instalações, as mais diversas. Tecnologias, corpos, imagens, conceitos, ações, relações, discursos, subjetividades, as ricas combinações entre os elementos agenciados deram vida ao que, posteriormente, veio a ser denominado pelo coletivo de Teatro Recombinante. Os eventos produzidos desde então materializaram no campo mais amplo da cultura o anseio de ultrapassar a mera representação artística, para dar vida a artes performáticas, relacionais, antropotecnológicas no sentido de promoverem plataformas interativas, também denominadas situações, que funcionam como catalisadoras de mudanças, sejam discursivas, subjetivas, relacionais, sociais ou mesmo antropotécnicas. Com essas práticas, o Critical Art Ensemble foi parte ativa de um processo de reconfiguração da resistência cultural desencadeada na passagem da década de 1980 para a de 1990. Para melhor compreender o lugar do CAE nas transformações mais amplas da resistência cultural é preciso considerar o fenômeno de conjunto da arte-revolta desse período, pois segundo Nato Thompson, se é possível fazer uma generalização sobre a arte política que emerge após a queda do Muro de Berlim, deverá ser a recusa quase unânime em restringir suas ações a meras representações.166 Se o espetáculo oferece uma cultura pronta e reproduzida em escala industrial para imediato consumo, então, a arte-revolta produz seus efeitos de resistência operando dispositivos micropolíticos nos quais os elementos estéticos, discursivos e performáticos são ao mesmo tempo relacionais, coletivos e micropolíticos, pois rompem com a passividade do espectador por meio do contato direto entre os produtores e o público. 166 Nato Thompson, “Trespassing Relevance” in Nato Thompson and Gregory Sholette (Ed.). The Interventionists, p. 14. 130 As artes performáticas, a tendência site specifc art, os happenings, a arte comunal, os projetos de arte social engajada, entre outras denominações, compõem desde então as nomenclaturas da nova resistência artística que se formou na contramão da ordem espetacular ganhando as formas de um movimento de tipo novo, disperso a princípio, mas concatenado em redes de compartilhamento de ideias e apoio mútuo. Enquanto o capitalismo continua investindo massivamente em artes de representação, ou em formas de recepção passivas de seus produtos, a arte-revolta, em revanche, decide por ir ter com as pessoas, estabelece plataformas interativas, inventa processos estéticos coletivos, faz valer sua potência micropolítica afetando os indivíduos diretamente, chamando-os a se expressar em conjunto, em resistência aos imperativos autoritários infiltrados no cotidiano, nas relações interpessoais, ou até mesmo nas subjetividades. Essas práticas de intervenção com teor artístico, poético e político acionadas pela resistência cultural no final do século XX não são necessariamente novas. Historicamente, é possível afirmar que elas foram inventadas pelas vanguardas do futurismo, do dadaísmo e do surrealismo, e desde então tornaram-se referenciais para as vertentes de artes performáticas, coletivas e sociais retomadas e desenvolvidas a partir da década de 1960. No sentido práxico, a arte que busca criar situações com uma estética da presença engajada na vida cotidiana, possui uma pré-história muito mais ligada aos desenvolvimentos do teatro e da performance do que à história da pintura e do ready- made, vertente esta consumada na arte de instalação.167 Com engenhosidade, os movimentos da arte-revolta do pós-guerra investiram pesado na invenção de dispositivos performáticos híbridos, em termos conceituais, teóricos e práticos, de tal modo que por vezes tornaram-se difíceis distinguir os elementos políticos de uma prática artística dos elementos estéticos de uma práxis micropolítica. Vinte anos depois, na passagem para a década de 1990, a tendência performática atinge seu grau mais difundido, justo no período em que o Critical Art Ensemble começa a despontar na resistência cultural ao apostar nas intervenções micropolíticas. 167 Claire Bishop sugere que “the pre-history of recent developments in contemporary art lies in the domain of theatre and performance rather than in histories of painting or the ready-made”. Cf. “Artificial Hells: the historic avant-garde”, in Artificial Hells: participatory art and the politics of spectatorship. New York: Verso, 2012, p. 41. 131 A crítica da arte-revolta, sobre a apropriação das estéticas outrora subversivas pela instituição da arte e pelo capitalismo espetacular, fez com que as artes performáticas se tornassem uma alternativa muito real de resistir às tendências mercadológicas e capitalistas. Enquanto as estéticas surrealista e dadaísta eram apropriadas pela cultura pop, os artistas socialmente engajados nas questões da época perceberam que uma saída para a arte-revolta conseguir manter-se livre dos imperativos capitalistas seria produzir e veicular um tipo de arte incapturável para os propósitos mercadológicos. Ao invés de fabricar bens de consumo como quadros, pinturas, objetos – contrapor-se com a invenção de experimentos, com a elaboração de intervenções no espaço social, a fim de ocupar a esfera pública por dentro, nas relações entre as pessoas. Produções Multimídias Diante dos impasses enfrentados na época, o CAE começou a organizar projetos que envolviam palestras, elaboração de roteiros, ensaios escritos, livros conceituais, vídeo-performances e intervenções que, de um modo geral, descortinavam e subvertiam as tendências autoritárias na cultura. Em uma época na qual quem pensasse que arte e política podiam andar juntas corria o risco de ser considerado um pária, o coletivo fez valer sua revolta criadora ampliando ainda mais suas formas de expressão micropolíticas por meio da arte. Colocar-se na contracorrente do que se esperava de um grupo de artistas desconhecidos oriundos da Universidade do Estado da Florida, onde o expressionismo abstrato permanecia em alta conta, significava uma postura rebelada, carregada de ousadia, criatividade e determinação nem sempre fáceis de encontrar. Os questionamentos se multiplicavam. À semelhança das preocupações do coletivo com as dinâmicas internas ao grupo, como a questão do poder inerente às relações interpessoais, havia um cuidado especial com relação à recepção do público, há muito acostumado ao papel de mero espectador. O CAE se questionava com o mesmo ímpeto: quais as melhores formas de trabalhar em grupo? Que táticas usar para ampliar as redes de colaboração dos produtores culturais no contexto da resistência? Como produzir um evento multimídia, que une performance, artes visuais, discursos e tecnologia de ponta? E o que é mais importante: como manter o questionamento crítico da política e da economia sem recorrer aos típicos métodos da propaganda ou do didatismo? 132 Imagem 25 – Programação e cartaz do evento Political Art in Florida (?).168 Com tantas ideias animadoras, faltava entretanto a experiência de como colocar tudo em prática. As primeiras incursões nos projetos coletivos serviram de aprendizado. Era preciso inventar meios de produção artísticos que proporcionassem ao público uma experiência extracotidiana, ao mesmo tempo convidativa e questionadora, sem no entanto entregar tudo pronto, aos moldes da propaganda comercial ou ideológica. Uma das primeiras ideias foi organizar um evento multimídia, que teve o nome Political Art in Florida (?). A essa altura, em 1988, o Critical Art Ensemble era um coletivo com pouca ou nenhuma projeção e dava ainda seus primeiros passos na produção cultural. Mesmo assim, convidou o coletivo de artistas Group Material a participar. Com anos de experiência e uma trajetória de certa forma consolidada na cena underground norteamericana, o Group Material enviou um representante. Dough Ashford169 168 CAE, Disturbances, p. 33. 169 “Doug Ashford é professor, artista e escritor. Ele é Professor Associado da Cooper Union para o Avanço da Ciência e da Arte, onde ministra seminários de design tridimensional, escultura, arte pública e teoria desde 1989. A principal prática visual de Ashford, de 1982 a 1996, foi a colaboração junto ao Group Material, que produziu mais de 40 exposições e projetos públicos internacionalmente. O Group Material desenvolveu exibições justapondo design e curadoria como uma locação crítica onde o público era convidado a imaginar formas democráticas. O trabalho do Group Material foi coletado no livro Show and Tell: a chronicle of Group Material (Four Corners Press, 2010) – editado pela colaboradora de longa data de Ashford, Julie Ault. Desde 1996, Ashford continua a fazer pinturas, escrever e produzir projetos em museus e espaços públicos. Seu trabalho em práticas públicas foi compilado no livro Who Cares (Creative Time, 2006), uma publicação construída a partir de uma série de conversas entre Ashford e um conjunto de 133 compareceu ao evento e abriu os trabalhos com uma palestra, atraindo curiosos e admiradores devido ao renome artístico de seu grupo. Foi uma ótima oportunidade para dialogar, aprender, trocar ideias e experiências sobre os rumos da arte engajada socialmente. O balanço do CAE foi positivo. O evento contou com uma programação diversificada: palestra, exibição de vídeos, performances, música e até poesia espacial. Esse tipo de evento, ao estilo dos happenings com várias formas de expressão, tornou-se uma inspiração para o Critical Art Ensemble. Imagem 26 – Critical Art Ensemble em ação multimídia durante a turnê Political Art in Florida (?).170 Em seguida, uma série de eventos menores foram realizados, até que o CAE sentiu a vontade de experimentar um outro tipo de ambiente, mais distante do campo acadêmico e do universo artístico. Desta vez, o lugar que abrigou a intervenção cultural foi o Pappy’s Blues Bar, em Jackson, capital do Mississippi. A escolha do local não poderia ser mais inusitada.171 O espaço era frequentado geralmente por negros com idade mais avançada do que a dos integrantes do Critical Art Ensemble, e por um público afeito ao blues e ao jazz. Mesmo assim, a interação com toda a produção multimídia preparada pelo CAE sob o título Live Art foi positiva e satisfatória, de tal maneira que o grupo se deu conta das vantagens de levar sua arte e suas produções até o público, ao invés de simplesmente outros profissionais da cultura em expressão pública, beleza e ética em 2006. A recente publicação, Writings and Interviews de Doug Ashford (Mousse Publishing e Grazer Kunstverein) foi publicada em 2013”. Cf. http://www.dougashford.info/?page_id=64 Acesso 10 de abril de 2019. 170 CAE, Disturbances, p. 33. 171 Cf. CAE, Disturbances, p. 34. 134 esperar que as pessoas viessem aos eventos. Esse foi, sem dúvida, o impulso inicial que resultou em uma certa prática de nomadismo, caracterizado não só pelo uso flexível de técnicas e formas de expressão, como ainda, na movimentação geográfica, que opera deslocamentos em busca de novos pontos de ocupação temporária para a manifestação da arte micropolítica. O próximo projeto marcante no histórico do Critical Art Ensemble foi denominado Frontier Production. O formato live com várias atrações intercalando palestra, vídeos, slides, poesia e performance, dessa vez introduziu um número de dança. O evento teve início com uma palestra proferida pelo artista e escritor Thomas Lawson,172 uma atração de renome. Entre outros colaboradores, o CAE participou com um número de poesia hipertextual, performance, vídeo e excepcionalmente uma cena de dança.173 Imagem 27 – Ricardo Dominguez, do CAE, em uma performance multimídia na turnê Frontier Production, em 1988.174 172 “Thomas Lawson (nascido em 1951, Glasgow, Escócia) é artista, escritor, editor de revista e decano da Escola de Arte do Instituto de Artes da Califórnia. Ele emergiu como uma figura central nos debates ideológicos na virada da década de 1980 sobre a viabilidade da pintura através de ensaios críticos, como ‘Last Exit: Painting’ (1981) e como um dos artistas no vagamente definido grupo ‘Pictures Generation’. Ele tem sido descrito como ‘um correspondente firmado [e] editorialista polêmico’ que articulou uma posição progressista e oposicionista para a pintura representacional dentro de um ambiente de arte e mídia cada vez mais reacionário”. Cf. https://en.wikipedia.org/wiki/Thomas_Lawson_(artist) Acesso 10 de abril de 2019. 173 Cf. CAE, Disturbances, p. 36-39. 174 CAE, Disturbances, p. 37. 135 Na sua especificidade, este projeto levou a produção multimídia para as fronteiras dos Estados Unidos. A ideia era deslocar o ativismo cultural para onde ele mais necessitava. Normalmente, as artes contemporâneas encontram seu lugar de destaque nos grandes centros urbanos, em termos gerais formando circuitos de arte institucional, um mercado cultural mais bem delineado e ainda algumas cenas undergrounds. Disso resulta uma concentração de atividades culturais, artísticas e mesmo de resistência em determinadas localidades, enquanto outras cidades carecem de algo minimamente parecido. O experimentalismo do Critical Art Ensemble adquiriu movimento, cruzou distâncias, interviu em cenas locais, colocou em prática suas discussões teóricas, e no meio do processo, ganhou aliados, promoveu sua inserção no circuito da arte engajada. De certa maneira, o projeto Frontier Production foi uma verdadeira turnê, na qual o coletivo de jovens artistas da experimentação estética redescoberta colocaram à prova tudo o que sabiam e pensavam sobre arte, crítica, tecnologia e política. Apocalipse e Utopia Um dos últimos filmes produzidos pelo CAE foi Apocalypse and Utopia (1992), uma resposta ao típico documentário que parecia dominar a cena de vídeos politizados no início dos anos 90. Em geral, um documentário dessa natureza comportava cenas de agitadores, palavras de ordem e exposição dos alvos da crítica realizada, no mais das vezes, em tom de denúncia. Isso por si só não desqualifica nenhuma produção, porém, na interpretação do CAE o formato se mostrava muito artificial e quase um clichê. Uma alternativa a esse modelo foi modificar o método em dois aspectos fundamentais. Primeiro, no lugar de focar nos pontos de crise (uma injustiça ocasional, um acontecimento de grande comoção, algo realmente excepcional), lançar luzes sobre subestruturas autoritárias latentes em fenômenos ordinários.175 Uma das vantagens de mudar o foco do acontecimento pontual para o fenômeno cotidiano, corriqueiro, é permitir uma certa aproximação do tema abordado com o universo de referências dos espectadores, facilitando assim a produção de uma percepção e um entendimento diferenciados quanto ao que é vivido. 175 Cf. CAE, Disturbances, p. 242. 136 Em segundo lugar, a mensagem do filme deveria tornar clara ao espectador a natureza subjetiva da obra, escapando à tendência hegemônica de vincular a produção de documentários à fabricação da verdade. Produzir um vídeo realmente crítico que se diferencie da competição em torno da verdade pressupõe inovar nos meios empregados para expor as ideias. A suspeita implícita a tal decisão é que o poder das mídias gira em torno da fabricação e propagação de ideologias com valor de verdades, quando o mais coerente, da perspectiva de uma arte realmente crítica, seria evidenciar o caráter construído, editável, parcial, de toda produção filmográfica. O Apocalypse and Utopia poderia ser classificado como documentário ou não- ficção, pois trata de dar voz a produtores culturais cujo trabalho é discutir e debater sobre o que é real. A reunião de várias vozes em perspectiva sobre determinados temas proporciona, além do mais, a percepção da realidade a partir de vários pontos de vista, permitindo ainda ao espectador uma oportunidade de refletir por si próprio sobre os assuntos tratados. Do vídeo participaram Arthur e Marilouise Kroker (que trabalham com teoria, tecnologia e cultura),176 Tom Kalin (do Gran Fury),177 o Coletivo Autonomedia,178 Greg Ulmer179 e o próprio Critical Art Ensemble. Entre os assuntos presentes na obra estão zonas autônomas temporárias, redesignação de gênero, sacrifício animal e corpo sem órgãos, temáticas que demonstram algumas das influências da resistência cultural norte- americana do início dos anos 90: Hakim Bey, Artaud, Deleuze e Guattari, feminismo, entre outros. 176 “Arthur e Marilouise Kroker são os hipsters da teoria da mídia canadense. A mídia os ama porque seu estilo de apresentação é urbano e sexy, suas ideias, mergulhadas em savoir-faire, cyberpunk e pomo lit crit. Os Krokers têm uma grande quantidade de textos na Web: enquanto alguns são promocionais para suas publicações sob a marca do New World Perspectives, há seleções substanciais de livros publicados, entrevistas e artigos sobre eles, e ensaios coletados no jornal on-line CTheory http://ctheory.concordia.ca/krokers/.” Cf.: https://www.media-studies.ca/articles/kroker.htm Acesso 8 de abril de 2019. 177 Gran Fury formou-se a partir do grupo de ação direta no contexto da crise da AIDS na América. O nome do grupo deriva da expressão usada para designar o automóvel usado pela política de Nova York. O grupo criou trabalhos para a esfera pública tocando em questões médicas, morais e públicas relacionadas à crise da Aids. Cf.: http://www.tomkalin.com/gran-fury Acesso 8 de abril de 2019. 178 Autonomedia se autodefine como uma zona autônoma para as artes radicais que se valem tanto de mídias antigas quanto novas. Trata-se de uma editora que durante alguns anos manteve parceria com a Semiotext(e), responsável por introduzir o pensamento francês pós-estruturalista nos Estados Unidos. Os livros publicados pelo coletivo Autonomedia versam sobre mídia radical, política e artes que se inspiram em linhagens anarquistas heterodoxas. Cf.: http://autonomedia.org/node/78 Acesso 8 de abril de 2019. 179 “Gregory Leland Ulmer (nascido em 23 de dezembro de 1944) é professor do Departamento de Inglês da Universidade da Flórida (Gainesville) e professor de Linguagem Eletrônica e Cybermedia na Escola Europeia de Pós-Graduação em Saas-Fee, Suíça”. Cf.: https://en.wikipedia.org/wiki/Gregory_Ulmer Acesso 8 de abril de 2019. 137 Segundo o CAE,180 a coleção dos discursos veiculados pelos interlocutores do filme poderia revelar uma visão geral das correntes autoritárias latentes no interior da cultura norte-americana. O tratamento conceitual do vídeo, as reflexões que ele causou, os efeitos de pensamento oriundos de sua concepção e realização, serviram para a elaboração de um ensaio que compôs o primeiro livro teórico do grupo. No processo de produção do filme, a aproximação com o Autonomedia Collective, que edita publicações com teor anarquista e crítico, mostrou-se fecunda pois a parceria se consolidou de maneira exemplar nos anos seguintes, com a edição e publicação de quase todos os títulos do Critical Art Ensemble até os tempos atuais, com exceção de um único livro, o portfólio Disturbances. Conexões com o Ativismo Tradicional O último projeto realizado em Tallahassee antes do CAE ganhar o mundo teve como tema a crise da AIDS que acometia os Estados Unidos no final de 1989. Desta vez, o evento teve o propósito de arrecadar fundos para o AIDS Support Services da cidade e formar, com as pessoas envolvidas com a crise, a primeira AIDS Coalition to Unleash Power (ACTUP) da Florida. A situação era difícil pois a discussão, à época, era guiada pela visão cristã. Então, apesar da dificuldade, mobilizar as pessoas na formação de grupos, promover reflexões e problematizar a situação dada já era algo positivo. Contribuir nesse sentido significava demonstrar que nem o Estado, nem os preconceitos, governam sozinhos a realidade. A experiência com a campanha Cultural Vaccines mostrou-se fecunda e os objetivos foram atingidos. Cartazes da campanha, elaborados em parceria com o Gran Fury, circularam nos espaços públicos da cidade, e novas alianças micropolíticas deram força para a formação da coalisão dos comitês de trabalho sobre a crise da AIDS. Pouco tempo depois, o Critical Art Ensemble se envolveu em um segundo projeto relacionado a minorias. Desta vez, as ações se desencadearam junto à organização de trabalhadoras do sexo PoNY, Prostitutas de Nova York. Nos anos 80 e 90 o clima não era dos melhores para quem oferecia seu serviço sexual nas ruas da metrópole. Havia se instalado uma política urbana para varrer a prostituição da cena pública. As mortes que noticiavam os jornais e os boatos que 180 Cf. CAE, Disturbances, p. 242. 138 circulavam no mercado pornô sobre provável envolvimento da polícia com os assassinatos indicavam a gravidade da situação. Se o próprio estado tratava a prostituição como crime, então não havia a quem recorrer. Expor o corpo a céu aberto para possíveis clientes tornara-se definitivamente uma atividade perigosa. Imagem 28 – Pôster de autoria do coletivo Gran Fury, apresentado na campanha Cultural Vaccines produzida pelo CAE.181 Da crise envolvendo a AIDS à associação das prostitutas, o CAE deu continuidade a atividades de propaganda. Aproximou-se do universo underground da prostituição, interagiu com as agentes do campo, debateu sobre uma realidade complexa e estabeleceu laços de cooperação e solidariedade. Ao mesmo tempo, o medo que pairava no ar inflamou o desejo de resistir. Com as alianças motivadas pela luta, foi organizada a exibição New Sex Experts, promovida por cartazes e pequenas panfletagens nas ruas da cidade. As imagens distribuídas passavam a mensagem do empoderamento e da resistência de quem trabalhava com o sexo. A crítica travestida de ironia e contradição deu o tom da campanha publicitária em volta da exibição e do projeto. 181 CAE, Disturbances, p. 42. 139 Imagem 29 – Premiação oferecida ao Critical Art Ensemble pela associação PoNY.182 A parceria com o movimento resultou na publicação da primeira PoNY Press: a newsletter published by and for the New York City sex-worker’s community. A exibição propriamente dita contou com a participação da modelo e correspondente de uma revista pornô, Veronica Vera, que palestrou diante de uma plateia acalorada pelos ânimos exaltados de algumas feministas anti-pornô. Além disso, as atividades do projeto se estenderam em uma instalação realizada no New Museum pelo Gran Fury, outro coletivo apresentado à organização PoNY pelo Critical Art Ensemble. Nesse ínterim, a prática social havia transformado a arte em um meio de produção da crítica, e a experiência coletiva, em um aprendizado constante. Mesmo assim, o êxito dos processos não aplacou o vontade de criação. Tendo diante de si os fatos recentes, a sensação do Critical Art Ensemble oscilava. Não havia um consenso quanto a continuar 182 CAE, Disturbances, p. 107. 140 com um trabalho da mesma natureza, colocando-se como instrumento ou porta-voz dos outros. Desde Maio de 68 que esse modelo de ativismo tradicional passava por transformações. Foucault desnudou em palavras o sentimento por vezes inconfessável de alguns que se outorgam o poder de falar pelos demais, ao invés de falar com eles. Além disso, tornar-se instrumento do que os outros fazem também não é coerente com os prospectos de uma resistência que encontra na autonomia um princípio de ação. Imagem 30 – À direita, Hope Kurtz, integrante do CAE, durante a campanha do grupo com a associação PoNY em 1990.183 De fato, haviam problemas sociais delicados e graves afetando as pessoas, e quanto mais a resistência se organizasse a fim de ajudar a quem precisava de apoio em um momento tão crítico, tanto melhor. Uma causa sem dúvida nobre. Entretanto, o sentimento do grupo apontava para caminhos diferentes. Parecia muito mais estimulante aplicar a criatividade coletiva nos seus próprios projetos, com o conhecimento adquirido em pesquisas, na troca de ideias com os amigos e parceiros da resistência artística. Colocar-se à disposição para trabalhar com uma causa específica possui seus aspectos positivos, mas o CAE havia adquirido a convicção de que poderia contribuir de maneira mais relevante para os prospectos da resistência cultural dedicando-se a seus próprios projetos. Viajando pelo mundo, ocupando museus, as ruas, o ciberespeaço, dentro e fora das instituições, na arena pública, o CAE desejava lançar sua potência criadora nos fluxos da resistência artística e cultural, com intervenções e pensamentos críticos, doravante 183 CAE. Disturbances, p. 109. 141 focando nos problemas da civilização. É o que o grupo afirma na retrospectiva de sua trajetória: Nós não queríamos nos esgotar. Queríamos um relacionamento coletivo de longo prazo. Queríamos pesquisar novas táticas e técnicas de resistência. Queríamos usar todo o espectro de nossas habilidades intelectuais e inventivas para nos tornarmos uma ala de pesquisa generalizada e produção cultural para a Esquerda.184 O coletivo ansiava desenvolver pesquisas mais amplas, concernentes a questões e problemas relativos à civilização, ao capitalismo, à produção de conhecimento e tecnologia. A verve teórica, conceitual, presente desde a formação do grupo, ganhava novos contornos, afetando sua micropolítica interna e externa (com relação aos movimentos sociais tradicionais de então). A tendência em problematizar temáticas abrangentes como a internet, a razão, a tecnologia e o capitalismo sempre de uma perspectiva crítica e engajada veio a se tornar, pouco a pouco, o modelo de atuação do CAE na esfera da cultura. Somado a isso, o emprego de vários meios de expressão como forma de intervir e ocupar temporariamente a arena pública exigia do CAE dedicação a pesquisas, estudos, criações estéticas, entre outras atividades de organização e produção culturais que tomavam quase completamente a atividade de seus integrantes. Dividir o tempo e a energia com outros processos tornava-se cada vez mais custoso. Era preciso então decidir os rumos a seguir. A escolha, quanto a isso, talvez não tenha sido tão difícil de fazer: A afiliação do CAE com o ativismo tradicional acabou. Nós nunca mais nos amarramos a um grupo específico ou a uma campanha novamente. Em 1990, nosso treinamento no trabalho também estava terminado. Sabíamos quem éramos, quais eram nossos interesses e como desenvolvê-los.185 Neste momento tem-se uma tomada de posição autorreferencial do CAE quanto à sua própria trajetória. As atividades desenvolvidas ao longo dos anos, em parceria com artistas, ativistas e minorias, todas as práticas inerentes à organizações dos eventos 184 “We didn’t want to burn out. We wanted a long-term collective relationship. We wanted to research new tactics and techniques for resistance. We wanted to use the full spectrum of our intellectual and inventive abilities in order to become a generalized research and cultural production wing for the Left”. CAE, Disturbances, p. 40. 185 “CAE’s affiliation with traditional activism was over. We never tied ourselves to a specific group or campaign again. By 1990, our on-the-job training was also over. We knew who we were, what our interests, and how to develop them”. CAE, Disturbances, p. 40. 142 multimídia, as viagens, os debates, a troca de experiências, sem dúvida geraram aprendizados somente possíveis de serem interiorizados e assimilados no interior dos movimentos. A escola da resistência se faz na prática, com engajamento nos processos inerentes às micropolíticas da criação. Doravante o CAE passará por novas transformações e emergirá para o cenário internacional, com suas performances, intervenções e livros. O que resultou desse ponto de bifurcação na trajetória do Critical Art Ensemble será assunto dos próximos capítulos. Imagem 31 – Steve Kurtz do CAE em ação durante uma apresentação na turnê Frontier Production.186 Imagem 32 – Hope Kurtz do CAE em ação durante uma apresentação na turnê Frontier Production.187 186 CAE, Disturbances, p. 36. 187 CAE, Disturbances, p. 38. 143 CAPÍTULO 3 OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA: A ESTÉTICA DO DISTÚRBIO Em toda criação existem, desde o início, iniciativas sempre singulares (sejam dos grupos ou dos indivíduos), mais ou menos diminutas, mais ou menos anônimas. Tais iniciativas provocam uma interrupção, introduzindo uma descontinuidade não apenas no exercício do poder sobre a subjetividade, mas também e sobretudo na reprodução dos hábitos mentais e corporais da multiplicidade. O ato de resistência introduz descontinuidades que são novos começos, e estes começos são, por sua vez, múltiplos, disparatados, heterogêneos. – Maurizio Lazzarato, Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas.188 Palavras e Gestos Radicais Nos anos 90 o CAE dá uma guinada na produção de teoria crítica. Depois das experiências na resistência cultural, dos eventos multimídia e da colaboração na militância junto a minorias, chegou a vez de apostar no jogo das teorias ativistas. As práticas de arte engajada, que faziam parte das atividades do grupo, comportavam também interesse pela discussão conceitual em decorrência da formação acadêmica dos membros do CAE. Steve Kurtz possui doutorado interdisciplinar em história da arte, literatura comparada e filosofia, e Steven Barnes também é professor e designer. Se por um lado os conteúdos veiculados pelas universidades mostram-se de difícil acessibilidade para os não iniciados nas elucubrações teoréticas pós-modernas, por outro, as práticas culturais, artísticas e multimídias demandam constantes reflexões sobre questões sociais, políticas e tecnológicas. Nesse cenário, os praticantes da arte-revolta tornam-se personagens híbridos. Desde a década de 1990, o ativista, o pesquisador, o produtor, o performer, o técnico, o teórico, todas essas figuras, quando não encarnam em uma só pessoa superdotada, formam redes de interações nas quais se formam outros tipos de artistas, intelectuais e ativistas. Cada vez mais, as ações artísticas envolvidas com o público pressupõem discussões teóricas. 188 Maurizio Lazzarato. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 233. 144 A insistente problemática de como tornar as ideias científicas e filosóficas de fácil apreensão necessitava de uma saída. A crítica ao modelo artístico de viés conceitual acadêmico, que acompanhava o grupo desde a sua formação, precisava ser enfrentada com criatividade. Pensando nisso, o CAE começa a produzir seus próprios ensaios teóricos como forma de embasar suas práticas e se fazer compreender. E ao se deparar com a falta de obras gestadas pelos artistas ativistas sob uma perspectiva engajada nos processos de resistência, um novo campo de atuação se descortina. Artists’ Books A princípio, a investida em publicações impressas se deu na forma de livros artísticos (artists’ books). Enquanto os modernistas se aferravam a valores como originalidade, o CAE, formado por uma geração pós-moderna no campo teórico e prático (alguns dos seus membros foram punks na adolescência e acadêmicos na juventude),189 ousou na incorporação de métodos de apropriação, recombinação, plagiarismo, détournement e remix como forma de produção poética.190 Subverter assim o princípio da “genialidade” implícito na noção de autoria tal como entendida no registro da tradição parecia fácil por se tratar de uma prática presente na história das artes. Os dadaístas com as colagens e os situacionistas com os desvios foram mestres na subversão textual e imagética. Com boa vontade, desprendimento, imaginação e veia poética, os textos fluem. O desafio a ser enfrentado pelo CAE tinha a ver com a publicação de seus escritos. A questão a ser respondida era como viabilizar suas publicações e fazê-las circular. Para determinados nichos, mesmo no campo da resistência, o livro sempre mantém o seu valor, porém, dificilmente uma editora aceita imprimir e lançar obras de artistas desconhecidos do grande público, ainda mais com textos subversivos na forma e no conteúdo. O CAE assume então diretamente a tarefa de publicar seus escritos poéticos no formato de livros artísticos, feitos sob os próprios cuidados, a começar pelo design e pela escrita, passando pela composição material e feitura até a distribuição. Para torná- los atrativos, a alternativa adotada foi fabricá-los em edições limitadas com materiais 189 Cf. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble. Mouvements, 2011/1 (nº 65), p. 143-158. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-mouvements-2011-1-page-143.html Acesso 10 de julho de 2019. 190 Cf. CAE, Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 248. 145 especiais, usando técnicas tipográficas e encadernações manuais, tudo feito com esmero para tornar os livros-objetos ainda mais atrativos esteticamente. Assim, tem-se uma ótima forma de camuflagem: com a aparência sedutora, o conteúdo provocativo circula mais facilmente. Eis como o CAE consegue superar as dificuldades e publicar seus primeiros livros impressos, fazendo com que seus escritos se insinuassem nos circuitos da impressa poética e educacional da época.191 Em formatos variados foram publicados ao menos 6 títulos no decorrer de 10 anos (1988-1998): Cronicas Brazileiras (1989, 20 p.), Texthypertext (1989, 12 leaves), Nova Text (1990), Arkaeologika (1990), Traces of the Virtual (1993) e Diseases of Consciousness (1998, 64 p.). Imagem 33 – Artists’ Books do Critical Art Ensemble.192 Hoje em dia esses livros são verdadeiras raridades. Geralmente fazem parte de coleções especiais em museus ou pertencem a colecionadores. Em uma das obras se lê uma frase que resume a concepção com a qual o CAE trabalha: “Poesia hipertextual é uma metáfora para uma constelação textual que já foi sempre nova [has aways already 191 Cf. CAE, Disturbances, p. 248-255. 192 CAE, Disturbances, p. 249. 146 gone nova]”.193 Na mesma página, onde aparecem os nomes de Lautréamont, Roland Barthes, Stewart Home, Baudelaire e Burroughs, os Neoístas e os Letristas, é possível ler uma passagem, sem qualquer referência, que no entanto revela uma das influências do grupo: “As ideias melhoram. O sentido das [Antigas e Modernas] palavras entra em jogo. O plágio é necessário. O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta”.194 Trata-se de uma citação do livro A sociedade do espetáculo, publicado em 1967 por Guy Debord. O aforismo 207 faz parte do capítulo intitulado “A negação e o consumo na cultura” e é bastante conhecido pois nele o plágio ganha seu estatuto político assumido. Na tradução brasileira: “As ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo. O plágio é necessário. O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase de um autor, serve- se de suas expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta”.195 O CAE simplesmente copiou o aforismo e inseriu as palavras [Ancients and the Moderns] para imprimir sua marca, aplicar o método e incrementar o sentido. O plágio como tática de subversão da cultura-espetáculo é uma constante na produção do CAE. O tema do Plágio Utópico, ainda insipiente, será amplamente desenvolvido em um ensaio que vem a público no primeiro livro propriamente teórico do grupo, lançado em 1994. Teoria Crítica Engajada Na trajetória do CAE, a publicação dos livros artísticos registra uma experiência poética inspirada no conceito de détournement (traduzido como desvio), procedimento inventado por Isidore Isou, mentor do Letrismo, e desenvolvido posteriormente pela Internacional Situacionista. Segundo Anselm Jappe: No letrismo de Isou já se encontra uma boa parte do espírito que, mais tarde, caracterizará Debord e os situacionistas, quer lhe permaneçam fieis ou o superem: antes de tudo, a convicção de que o mundo inteiro deve, primeiro, ser desmontado e, depois, reconstruído, não mais sob o signo da economia mas sob o da criatividade generalizada.196 193 “Hypertextual poetry is a metaphor for a textual constellation that has aways already gone nova”. CAE, Disturbances, p. 251. 194 “Ideas improve. The meaning of [Ancients and the Moderns.] words participates in the improvement. Plagiarism is necessary. Progress implies it. It embraces an author’s phrase, makes use of his expressions, erases a false idea, and replaces it with the right idea”. CAE, Disturbances, p. 251. 195 Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 134. 196 Anselm Jappe. Guy Debord. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 70. 147 As obras compostas de “poesia hipertextual” atualizam as bricolagens das vanguardas e antecipam o desdobramento posterior dado pelo CAE à própria concepção da prática, que aparece de forma amadurecida pouco depois no ensaio intitulado “Plágio utópico, hipertextualidade e produção cultural eletrônica”197. Em meio às atividades multimídia, uma mudança política interna direciona os interesses do grupo para os aspectos macropolíticos. Agir na micropolítica não deve eximir a análise macro. Com a internet e a abertura do ciberespaço, a atenção volta-se também para as tecnologias e as articulações do poder. Em meio a esse processo, começam a aparecer fragmentos de ideias, novas nomenclaturas e esboços teóricos. As leituras de autores modernos e contemporâneos, como Thoreau, Artaud, Baudrillard, Deleuze e Guattari, ganham novos sentidos à luz das produções culturais engajadas. De forma poética, a produção textual se metamorfoseia e torna-se ensaística, teórica. A criatividade começa a gestar uma teoria de tipo radical. Nem espontânea, nem livresca. Engajada. Faltava no entanto um canal de publicação. Por intermédio de um conhecido, o CAE é apresentado ao grupo editorial Autonomedia/Semiotext(e).198 Sediada em Nova York, a editora Semiotext(e) foi responsável por introduzir o pensamento francês nos Estados Unidos. Desde o final da década de 1970, por iniciativa de Sylvère Lotringer, obras seminais de autores como Baudrillard, Foucault, Lyotard, Deleuze, Guattari e Virilio, compõem um catálogo editorial cujos títulos circulam bem igualmente em circuitos universitários e redes contraculturais.199 O Autonomedia Collective, que durante certo tempo trabalha em parceria com a Semiotext(e), tem uma linha editorial mais anarquista. Ligado ao movimento sindical e militante do bairro de Brooklyn, onde o coletivo Autonomedia tem sua base, a proximidade com o universo ativista colabora para a parceria se firmar com o CAE, e em 1994, o livro The Electronic Disturbance sai da gráfica e ganha o mundo na sua versão impressa. De toda a bibliografia produzida pelo CAE, o livro Distúrbio Eletrônico é sem dúvida o livro manifesto do grupo, embora de um novo tipo se comparado com os 197 Trata-se do quarto capítulo do livro Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001. Depois o tema será retomado no capítulo “The finantial advantages of anti-copyright”, in Digital Resistance: explorations in tactical media. New York: Autonomedia, 2001. 198 Cf. CAE, Disturbances, p. 112. 199 Cf. François Cusset, “A aventura de Semiotext(e)”, in Filosofia francesa: a influência de Foucault, Derrida, Deleuze & cia. Porto Alegre: ArtMed, 2008, p. 72-76. 148 manifestos das vanguardas históricas. A elaboração ensaística que dá forma ao conteúdo da obra destoa dos manifestos futuristas por não carregar o tom laudatório, do dadaísmo pela escolha de uma escrita que busca a coerência discursiva, e do surrealismo por não divagar sobre o maravilhoso. Ainda que a verve às vezes inflamada do verbo ali materializado reverbere o tom vanguardista, a forma de expressão dos ensaios que compõem o Distúrbio Eletrônico está mais próxima dos escritos da Internacional Situacionista. Isso se deve ao fato da obra não ser inteiramente artística e poética, e porque nela se entrelaçam análises sociológicas, elucubrações filosóficas e rompantes de crítica política radical. Há claramente uma articulação teórica inventiva, mas que não se preocupa com os requisitos metodológicos acadêmicos científicos, combinação que marca o estilo do Critical Art Ensemble até os dias atuais. Diferente de outras elaborações conceituais, analíticas e interpretativas, o CAE se esmera em contribuir com teorizações surgidas no contato direto com a resistência cultural de seu tempo. Mais do que isso. Os livros do coletivo são produtos e efeitos de seus engajamentos nas lutas micropolíticas. Enquanto agente ativo no campo das resistências, o CAE nutre-se de suas experiências e reflexões e, somando à produção performática, multimídia, de suas obras estéticas, começa a municiar o campo também com ensaios, discussões, teorias e conceitos. Um antropólogo certamente diria que as teorias encontradas nos livros são teorias nativas da resistência cultural vivida e alimentada pelo CAE. Por isso também, podem ser consideradas obras vanguardistas, com a ressalva de que, enquanto os mentores dos movimentos modernos pretendiam liderar, o CAE aposta e investe na proliferação das ideias, das matrizes performáticas, dos meios de ação e intervenção, de modo que cada grupo tenha a liberdade e a autonomia de agir de acordo com seu desejo e em conformidade com a realidade enfrentada a cada vez. Mas se não se trata de uma obra acadêmica, também não se assemelha ao que fazem os críticos de arte. Na história da arte moderna o papel do crítico é contribuir com a recepção dos produtos no campo artístico cultural, no mercado e nas instituições. O crítico desempenha a função de intermediar o setor produtivo e o setor de consumo. Faz parte portanto do setor responsável pela circulação das obras nos circuitos institucionais envolvidos com produção artística e cultural. Nada comparado ao trabalho escrito que o CAE começa a desenvolver nesse período e que se tornará uma marca do grupo até os dias atuais. Nas suas obras, encontram-se ensaios breves marcados por uma elaboração teórica inventiva e aplicada a problemas identificados e percebidos da perspectiva de um pensamento engajado nas 149 lutas. São obras indistintamente teóricas, críticas e vanguardistas. Em vez de leituras comentadas, os escritos fornecem arsenais para a resistência cultural. A primeira publicação desse tipo foi o Distúrbio Eletrônico, de 1994. Nela, o problema principal refere-se a como as tecnologias digitais e a internet proporcionam a reconfiguração das relações de poder, e o que os produtores da resistência podem fazer para corresponder às exigências que as circunstâncias exigem. O CAE fura a bolha tecno-utópica hegemônica ao apontar de forma crítica, teórica e engajada uma lacuna importante na discussão sobre a internet e sobre as táticas da resistência cultural. Enquanto muitos se deixavam levar pela otimismo irrefletido com relação à internet, o CAE se coloca na contramão e propõe uma leitura crítica radical da tecnopolítica que subjaz à rede mundial de comutadores. Do mesmo modo, quando, na década de 1990, o ativismo identitário atinge seu ápice e os movimentos de rua ganham força, o CAE aposta numa abordagem macropolítica sobre o capitalismo globalizado e sugere a resistência eletrônica como campo privilegiado de ação.200 Em capítulo à parte, a temática da resistência eletrônica será tratada em detalhes. Nos ensaios de autoria do CAE estão presentes elementos epistemológicos, técnicos e práticos, teóricos e políticos, todos eles mobilizados nos demais livros do grupo. O formato compacto do livro impresso faz com que caiba na palma da mão ou no bolso de uma jaqueta. A ideia é tornar o livro uma ferramenta de uso capaz de circular facilmente de mão em mão, do mesmo modo como a forma ensaio faz no plano do pensamento, com agilidade para melhor circular entre os cérebros, as pessoas, alimentando o pensamento de formas múltiplas. Eis a concepção do grupo quanto à forma ensaística adotada em seus escritos teóricos: O CAE considera que as mais poderosas formas do plagiarismo estão intimamente ligadas à hipertextualidade: a metodologia digital encontra a tecnologia digital. (…) Nos livros, a coisa mais importante para o CAE é compensar seu emaranhado com um estilo rápido. Queremos fornecer evidências suficientes para mostrar que um dado imperativo é crível e depois passar para outra coisa. Virilio chama isso de construção de escada – um salto seguido por uma pequena explosão horizontal, repetido conforme necessário. Eu acho que é assim que a maioria das pessoas lê agora. Ninguém quer ler os grandes volumes, onde todas as evidências são exaustivamente apresentadas e dissecadas. Além disso, o CAE quer que seus textos alcancem uma audiência tão ampla quanto possível – todo mundo, desde o intelectual lumpen nos squats 200 Cf. CAE, Disturbances, p. 112. 150 [ocupações urbanas] do East Village até os que estão escondidos na torre de marfim. Você não pode ter essa apresentação não especializada se o trabalho seguir a convenção acadêmica. Essa forma transforma a escrita em discurso especializado. (...) Tentamos cercar o maior número possível de campos – gostamos de oscilar entre eles. Nós não temos que usar um estilo que tende a totalizar o trabalho em um campo ou outro, então isso nos permite uma certa mobilidade nômade, além de resistir à privatização da produção de conhecimento.201 Até o momento, o livro Distúrbio Eletrônico é o único título traduzido e publicado no Brasil. Nele, um discurso que lembra os manifestos das vanguardas históricas fornece elementos epistemológicos e práticos à resistência cultural, nesta Tese denominados de arsenais antropotécnicos da resistência. Como praticante de um ativismo pós-socialista, para usar uma expressão de Lazzarato,202 o CAE sente a necessidade de inventar formas de ativismo que não passem necessariamente pelas relações diretas com o Estado, com os sindicatos ou partidos. Guerrilha Cultural A década de 1990 foi o campo propício ao desenvolvimento de formas diferentes de atingir objetivos políticos. A convergência da arte-revolta, das tecnologias informáticas e biotecnológicas e das resistências à ascensão das políticas neoliberais desencadeia as condições de possibilidade das quais emergem outras formas de resistir até então incipientes. Curiosamente, parte da novidade micropolítica advém do campo artístico. 201 “CAE finds the strongest forms of plagiarism to be intimately linked to hypertextuality: digital methodology meets digital technology. (…) In books, the most important thing for CAE is to make up for its clunkiness with a speedy style. We want to give enough evidence to show that a given imperative is credible, and then move on to something else. Virilio calls it a staircase construction – a jump up followed by a short horizontal burst, repeat as needed. I think that’s the way most people read now. No one wants to read grand tomes where every piece of evidence is exhaustively presented and dissected. Further, CAE wants its writing to reach as broad an audience as possible – everyone from the lumpen intellectual in the squats of the East Village to those holed up in the ivory tower. You can’t have that nonspecialist presentation if the work follows academic convention. That form turns writing into specialized discourse. (…) We try and encircle as many camps as possible – we like to oscillate between them. We don’t have to use a style that tends to totalize work in one camp or another, so it does allow us a certain nomadic mobility in addition to resisting the privatization of knowledge production”. CAE, in Tactical Media Practitioners: an interview by Jon McKenzie and Rebecca Schneider. The Drama Review, 44, 4 (T168). New York: University and the Massachusetts Institute of Technology, Winter, 2000, p. 141-142. 202 Cf. Maurizio Lazzarato, “Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas”, in As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. 151 A máquina de guerra fabricada pelas vanguardas artísticas no século XX contribuiu para a conexão da arte com o ativismo crescente nas últimas décadas. A cultura até então à mercê dos investimentos da sociedade do espetáculo torna-se, assim, mais uma vez a arena política que constitui o campo de batalha a ser ocupado pelas novas resistências, artísticas, midiáticas, minoritárias, etc. É nesse cenário que o CAE toma a voz e inicia o protagonismo teórico, a começar com o livro Distúrbio Eletrônico, depois desenvolvido nas obras Electronic Civil Disobecience e Digital Resistance: Explorations in Tactical Media, respectivamente, de 1996 e 2001. A contribuição das obras vai além da fundamentação teórica. Os livros lançam as teorias que embasam o rico trabalho desenvolvido pelo CAE em seus anos de experiência. A técnica da produção hipertextual, as performances com tecnologias, o experimentalismo cultural, a resistência eletrônica, são apresentados e discutidos teoricamente como a ilustrar e exemplificar o que se pode fazer no front da resistência por vias alternativas às formas tradicionais de ocupação de prédios, passeatas nas ruas, protestos civis, propaganda partidária, etc. O curador e crítico de arte contemporânea Nato Thompson apresenta o CAE no registro micropolítico como máquina de guerra artística: Emprestando da linguagem do teórico Michel de Certeau, o coletivo de arte Critical Art Ensemble definia “mídia tática” como uma forma intervencionista de produção cultural de guerrilha que perturbaria estruturas políticas específicas. “Entre e saia” era o seu mandato. Eles viam o mundo como um complicado campo de poder, no qual artistas- ativistas intervinham: era preciso transgredir para fazer sentido. O medium não era importante ou predeterminado – em vez disso, seria determinado pela linguagem estética de um discurso particular. Se os artistas fossem abordar questões de biotecnologia, seu medium seria laboratórios e pesquisas. Seu adágio – “por qualquer meio necessário” – era uma espécie de chamado às armas para que os artistas entrassem nos campos da sociedade fora das artes e usassem todo o espectro de formas disponíveis para eles. Como uma forma radical de política, o Critical Art Ensemble encorajou a arte a fazer isso, em muitos aspectos, deixando o mundo da arte para trás.203 203 “Borrowing from the language of theorist Michel de Certeau, the art collective Critical Art Ensemble defined ‘tactical media’ as an interventionist form of guerrilla cultural production that would disturb specific political structures. ‘Get in and get out’ was their mandate. They saw the world as a complicated field of power, in which artist-activists would intervene: one had to trespass to make meaning. The medium was not important or preordained – instead, it would be determined by the aesthetic language of a particular discourse. If the artists were going to address issues of biotechnology, their medium would be laboratories and research. Their adage – ‘by any medium necessary’ – was a kind of call to arms for artists to enter into fields of society outside the arts and use the entire spectrum of forms available to them. As a radical form of politics, Critical Art Ensemble encouraged art making that, in many ways, left the art world behind”. Nato Thompson, “Cultural production makes a world, in Seeing Power: art and activism in the 21st 152 O CAE aposta em guerrilhas culturais que podem se dar pelas artes, pelo teatro, pelas mídias: guerrilhas recombinantes de fragmentos e micro-ordens culturais, que não têm por objetivo a batalha propriamente dita. São as chamadas guerras de guerrilha. Conforme a Proposição IX do Tratado de Nomadologia, de Deleuze e Guattari, a guerra não tem por objetivo necessariamente a batalha, assim como, a máquina de guerra (artística) não tem por objeto necessário a guerra, e quando guerreia o faz ao mesmo tempo que cria outra coisa.204 De acordo com Manola Antonioli, as guerrilhas se caracterizam principalmente pelos modos de organização descentrados, por uma certa fluidez de ação, por uma liberdade de manobra muito flexível ao nível local, pela dinâmica estabelecida entre batalha e não-batalha no conflito, e também por um tipo de relação política e psicológica com as demandas sociais, culturais e os desejos de quem elas exprimem as reivindicações. Por definição e de fato, a guerrilha tem maneiras particulares de se inscrever no espaço e no tempo: ela se inscreve na longa duração, não tem localização precisa e se desenvolve sobre o espaço o mais vasto possível. Suas ações, em suma, podem se produzir não importa qual lugar e não importa qual momento para fazer pesar uma ameaça permanente sobre o adversário ao qual ela impõe seus ritmos e métodos.205 Há, portanto, inúmeras formas de guerrear, de combater, de resistir, sem chegar às vias de fato como ocorre no emprego de violência física. No campo da cultura, a guerra artística adquire a forma de guerrilha pois nem sempre se propõe a batalha, e porque se multiplica e se dissemina em incontáveis iniciativas. A cultura, encarada como multiplicidade móvel, pode ser recombinada de distintas formas. É possível trabalhá-la por dentro, seja por meio da potência destituinte, minando elementos indesejáveis, efetivando o desejo em atos, seja edificando com arranjos, sentidos, imagens, práticas, relações outras, não inscritas nos códigos existentes. Uma obra com esse teor está longe de ser meramente artística, nem é unicamente crítica no sentido tradicional. Trata-se nesse caso específico de uma obra que advém de experiências nascidas no combate e que é pensada e preparada para retornar ao campo century. Brooklyn: Melville House Printing, 2015, p. 20. 204 “Proposição IX: a guerra não tem necessariamente por objeto a batalha, e, sobretudo, a máquina de guerra não tem necessariamente por objeto a guerra, ainda que a guerra e a batalha possam dela decorrer necessariamente (sob certas condições)”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, “Tratado de nomadologia: a máquina de guerra”, in Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 5). São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 100. – Na introdução desta Tese a proposição foi tratada em detalhes com relação à máquina de guerra artística. 205 Tradução e adaptação de um trecho original de Manola Antonioli, “Machines de guerre”, in Géophilosophie de Deleuze et Guattari. Paris: L’Harmattan, 2003, p. 127. 153 das lutas. Se a arte-revolta se caracteriza pela insurgência contra as guerras em curso, ao assumir um protagonismo nelas, então a proposta de uma estética do distúrbio e suas matrizes performáticas do Plágio Utópico, do Teatro Recombinante e da Resistência Eletrônica, apresentadas inicialmente no livro Distúrbio Eletrônico, compõem a contribuição do CAE para a formação dos arsenais antropotécnicos da resistência cultural encarnada e praticada pelo coletivo. Eis uma super-ação orquestrada para formar uma epistemologia e uma pedagogia das lutas. MATRIZES E FORMAS DE EXPRESSÃO Como um coletivo de artistas ativistas, o Critical Art Ensemble mobiliza uma série de meios teóricos e práticos para consolidar seu pensar e agir. Às diversas formas de expressão do grupo correspondem algumas matrizes executadas exemplarmente na elaboração de suas obras teóricas e práticas. A primeiro delas é o Plágio Utópico, que pode ser compreendido como uma espécie de colagem conceitual de ideias, imagens ou signos apropriados dos mais diversos contextos e inseridos em um novo agenciamento, discursivo, imagético ou micropolítico. Sejam quais forem os elementos apropriados (que podem ser ideias, imagens, teorias, objetos, práticas, etc.), o objetivo é produzir novos sentidos e significados com a recombinação artística deles. A segunda matriz refere-se mais às performances e intervenções do grupo. Uma das principais formas do CAE atuar no campo das artes é por meio do Teatro Recombinante. Embora seja algo semelhante a uma performance, está mais para uma intervenção. O grupo inova, no entanto, ao colocar o elemento tecnológico como um componente fundamental na prática do Teatro Recombinante. Além do corpo do performer, é comum o uso de aparelhos e dispositivos maquínicos recombinados em uma matriz performativa que une diversos elementos em seu agenciamento, sejam componentes humanos ou tecnológicos, semióticos, imagéticos ou discursivos, etc. apropriados para criar um acontecimento micropolítico de teor artístico. Para tratar das matrizes e das formas de expressão do Critical Art Ensemble será apresentada inicialmente a matriz do Plágio Utópico. 154 Arte Conceitual e Plágio Utópico Geralmente, toda arte engajada com a sociedade, a cultura e principalmente com o público, demanda uma leitura da realidade que é pelo menos parcialmente sociológica. O emprego de termos oriundos das ciências humanas tem sido uma prática comum nas artes micropolíticas do tempo presente. Além do mais, o teor da arte voltada para o contato com o público e interessada nos efeitos coletivos, sociais e culturais, exige, por parte do próprio artista, a elaboração de discursos e terminologias que remetem ao universo teórico das ciências sociais, e por isso as linguagens assim elaboradas são frequentemente carregadas de significado político. O Critical Art Ensemble assumiu esta tendência claramente ao construir um campo teórico no qual agencia um diálogo entre arte, ciência, filosofia e tecnologia. Nesse sentido, o aspecto teórico do grupo chama atenção pela criatividade conceitual. Tal inventividade nutre-se de muitas formas da filosofia, da ciência, da literatura e das artes. Não raro, o grupo se apropria de noções extraídas da história das ideias por uma espécie de afinidade eletiva para então compor o seu próprio pensamento conceitual. Atitude que remete à história da arte conceitual.206 As apropriações, porém, não pretendem captar uma ideia ou um conceito para tão somente reproduzi-lo. Para além da postura escolástica de simplesmente apresentar e reproduzir conceitos elaborados por terceiros, como também para além da técnica do decalque típico da pop art, o grupo se apropria de noções, signos e conceitos existentes como operadores cognitivos que são remodelados pelo pensamento e adquirem outros sentidos em função de novos problemas. Os sentidos e significados das palavras e das imagens são, assim, submetidos a torções e deformações pela operação artística que, a um só tempo, provoca uma mutação e uma recombinação (de signos, significantes e significados) capazes, portanto, de estimular a produção de subjetividades. Exemplos disso são os conceitos de pancapitalismo, poder nômade e mesmo plágio utópico. Ambos, construídos pela colagem e pela recombinação de conceitos e ideias pré-existentes, e que passam a compor 206 Cf. Paul Wood. Arte conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. “A arte conceitual cresceu num espaço criado pela vanguarda, e o utilizou para estruturar uma crítica aos pressupostos do modernismo artístico, em particular ao seu foco exclusivamente dirigido ao estético e às reivindicações de autonomia da arte”, p. 28. “A atitude de certa forma relaxada da contracultura mais ampla, a sua característica ligeiramente nômade, assim como a postura universal de resistência ao brilho e ao consumo, pairavam sobre muitas das manifestações conceituais”, p. 37. 155 um conteúdo modificado por serem remetidos a uma realidade distinta da que lhe deu origem a princípio. O objetivo dessa espécie de plagiarismo não é citar, comentar, inserir notas ou referências, como seria de se esperar, senão experimentar uma livre desapropriação dos mais variados elementos encontrados na cultura pop ou na alta cultura com o propósito de atualizar o alvo do plágio utópico em novos contextos e fazê-lo ressoar algo diferente em relação ao que já se produziu até então (neste registro a palavra utopia adquire um sentido semelhante a virtualidade, real porém ainda não atual). Isso se dá sobretudo com as teorias, sejam artísticas, científicas ou filosóficas, que adentram no escopo do CAE em função de problemas concretos, reportadas, portanto, a situações sociais que exigem uma reflexão profunda para melhor compreendê-las. “É aqui que o plágio progride além do niilismo. Ele não injeta somente ceticismo para ajudar a destruir sistemas totalitários que paralisam a invenção: ele participa da invenção, e dessa forma também é produtivo”.207 Esta prática de apropriação artística de ideias, conceitos, noções e teorias é denominada de Plágio Utópico pelo CAE, porém se assemelha com um tipo de atitude incorporada pelas vanguardas artísticas desde o Dadaísmo, passando pela noção de détournement da Internacional Letrista e dos Situacionistas, chegando até o tempo presente transformada com a pop art, já sem os traços críticos pelo qual era reconhecida: Readymades, colagens, found art ou found text, intertextos, combines, détournement e apropriação – todos representam incursões no plágio. De fato, esses termos não são sinônimos perfeitos, mas todos cruzam uma série de significados básicos à filosofia e à atividade de plagiar.208 No entanto, a operação do plágio utópico é mais artística do que a mera colagem, e muitas vezes, mais filosófica do que publicitária, pois supõe uma atividade intelectual crítica, intuitiva e construtivista no campo do pensamento conceitual propriamente dito. Na década de 1960 os situacionistas designaram détournement o método de desapropriar as ideias, os signos, as teorias e os conceitos de forma subversiva para incorporá-los em um contexto diferenciado. O método consiste em provocar um desvio, um deslocamento para um novo arranjo que resulta em uma torção no significado original, com o que, o objeto do détournement adquire nova vida e uma potência revigorada canalizada para propósitos de resistência. 207 CAE, “Plágio utópico, hipertextualidade e produção cultural eletrônica”, in Distúbio Eletrônico, p. 89. 208 CAE, Distúbio Eletrônico, p. 85. 156 “O plágio é necessário”, afirma Lautréamont. Os situacionistas, que o trouxeram de volta à cena da arte-revolta no pós-guerra, respondem: “O que queremos, de fato, é que as ideias voltem a ser perigosas”.209 O uso emancipatório da linguagem passa pelo uso crítico, político e engajado das palavras, dos sentidos, das significações. Por isso, o détournement é o contrário da citação, que supõe a autoridade teórica. Mais fundamentalmente, “o desvio é a linguagem fluida da antiideologia” e se coloca como um recurso ao alcance de todos para efetuar a crítica ao presente.210 O desvio atualiza uma violência ou crueldade que está na base da ação criadora, e por isso “incomoda e arrasta toda ordem existente”.211 No entanto, o desvio é subversivo somente para a ideologia burguesa, que se beneficia da ideia romantizada de autor como gênio. A genialidade metafísica é um embuste e uma barreira fácil de ser transposta quando a urgência da transformação social é o que importa. Contra a recuperação capitalista do ideal romântico do autor enquanto gerador de lucro, os situacionistas questionaram com a prática do desvio sua inutilidade para fins revolucionários. O desvio é um método revolucionário que manifesta por meio da linguagem uma potência do pensamento e uma afirmação existencial engajada no presente. A tática do desvio restitui ao sujeito uma certa ousadia micropolítica, uma inocência poética que o impulsiona ao experimentalismo expressivo, seja na linguagem, na teoria, seja nas artes visuais, no cinema. É portanto um método ágil de passar uma mensagem, de subverter uma estrutura significante, pois estimula uma atitude ativa que trai o pacto velado da sociedade espetacular de se manter passivo, enquanto espectador, diante da privatização das ideias, das imagens, dos textos – interdição primeira e última da poesia. O desvio situacionista tinha por função contribuir para a revolução da vida cotidiana, e assim adquiria o sentido revolucionário da expropriação da cultura burguesa, do uso restrito da linguagem e da expressividade codificada pelos parâmetros da propriedade intelectual, da genialidade, do artista sagrado pelo campo mercadológico. O conceito de plágio utópico, no Critical Art Ensemble, é por si só um desvio, uma atualização do détournement situacionista, pois consubstancia uma desobediência poética enquanto revolta micropolítica contra o estatuto de autoridade que se atribui à 209 “En fait, nous voulons que les idées redeviennet dangereuses”. Internationale Situationniste, “Nos buts et nos méthodes dans le scandale de Strasbourg”, in Internationale Situationniste. Bulletin central édité par les sections de l’Internationale Situationniste. Numéro 11. Paris: Octobre 1967, p. 30. Na versão brasileira, ver Internacional Situacionista, “Nossos objetivos e métodos no escândalo de Strasbourg”, in Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad, 2002, p. 72. 210 Guy Debord, “A negação e o consumo na cultura”, in A sociedade do espetáculo, § 208, p. 134. 211 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, § 209, p. 134. 157 linguagem, à imagem e às obras culturais em geral. Os situacionistas empregavam o desvio a favor da criação e do estímulo à construção de situações, momentos vividos diretamente. O CAE insere o plágio utópico como tática para a recombinação da cultura em sentido amplo e multidimensional. Nesse sentido, détournement e plágio utópico nada mais são do que formas de experimentalismo expressivo, crítico e subversivo, colocados à disposição da resistência em suas mais diversas frontes. Será que no desvio situacionista revela-se a expressão e a operatividade de uma potência destituinte? Debord concebe o método do dépaysement como duplo movimento de détournement (“desvio”) e de renversement (“desarranjamento”, “reviravolta”), colocação no “reverso” das produções da cultura moderna. Détournement e renversement são operados segundo uma compreensão crítica das condições e contradições presentes na sociedade.212 A recombinação perseguida pelo plágio utópico do CAE nada mais é do que o desvio e a reversão da linguagem, das imagens, dos sentidos, das significâncias, da cultura em seu campo máximo de intervenção. Com base nessa prática encontra-se no léxico usado pelo CAE noções pouco usuais como pancapitalismo, poder nômade, máquina de visão, matriz performativa, teatro recombinante, corpo sem órgãos, entre outras, que compõem um vocabulário rico e exótico agenciado para descrever ora os elementos da resistência cultural, ora a sociedade contemporânea. Com o Plágio Utópico vê-se a retomada do valor de uso do conhecimento no mesmo momento de sua transformação em mercadoria global. Ante a tendência de transformar as ideias em propriedade privada, as resistências da atualidade expropriam as linguagens, os significados e o conhecimento em geral, seguindo a tendência do compartilhamento de informações e arquivos na rede internacional de computadores. Pirataria contracultural nos mares da modernidade líquida. Ou como diz o CAE: É uma questão de reunir várias técnicas recortadas a fim de responder à onipresença dos transmissores que nos alimentam com seus discursos obsoletos (meios de comunicação de massa, publicidade, etc.). É uma questão de desacorrentar os códigos – não mais o sujeito – tal que alguma coisa arrebente, escape: palavras por trás de palavras, obsessões pessoais. Nasce outro tipo de palavra, que escapa do totalitarismo da mídia, mas que retém seu poder, e o volta contra seus velhos mestres.213 212 Cf. João Emiliano Fortaleza de Aquino. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza: EDUECE/Unifor, 2006, p. 173. 213 CAE, Distúbio Eletrônico, p. 88. 158 Assim, o chamado plágio estético opera entre a possibilidade dada pela autonomia do pensamento e da criatividade, de um lado, e a urgência das tarefas que a revolta se coloca ante a época, de outro, o que exige respostas rápidas e de impacto aos desafios do tempo presente. Desta forma, o CAE coloca em ação velhas ideias recolhidas do inesgotável arquivo da história com uma nova abordagem de método adaptada aos tempos atuais. Anteriormente foi mencionado que, além do plagiarismo aplicado ao universo teórico e imagético elaborado pelo CAE, existe a forma de expressão prática denominada Teatro Recombinante, uma espécie de matriz performática elaborada para a ação do grupo. Por meio de uma fusão do teatro com a performance o Critical Art Ensemble conecta os corpos, os signos e as tecnologias para criar um acontecimento micropolítico nas fronteiras da arte e da vida cotidiana. A forma de expressão práxica que compõe o teatro da resistência contemporânea agora tem seu lugar. Teatro Recombinante O CAE sempre vislumbrou uma gama de atividades artísticas com potencial para compor a resistência, e por isso se permitiu explorar livremente formas de pensar, fazer e praticar a arte, seja por que meio for. O Plágio Utópico sintetiza algumas contribuições extraídas exemplarmente da história da arte moderna, pois se nutre da colagem dadaísta, do détournement situacionista e da arte conceitual. Além desse método estético e político, segue-se o Teatro Recombinante, mais direcionado à práxis artística levada ao limiar da performance e da vida cotidiana. Ao longo de vários anos, o CAE insistiu na prática do Teatro Recombinante, que consiste em ambiências performativas nas quais os participantes podem fluir. Um desses ambientes é o teatro da vida cotidiana, que inclui o teatro de rua e os happenings (de Alan Kaprow). Porém, o teatro de rua concebido e praticado em um sentido próprio, e não como nas formas tradicionais de teatro que pressupõem a passividade do público, como uma arte espetacular a céu aberto. Em uma fórmula: “O que o CAE considera como teatro de rua são aquelas performances que inventam situações efêmeras, autônomas, das quais emergem relações públicas temporárias que podem possibilitar o diálogo crítico sobre uma determinada questão”.214 214 “What CAE does consider street theater are those performances that invent ephemeral, autonomous situations from which temporary public relationships emerge that can make possible critical dialogue on a 159 As inspirações para o tipo específico de prática de intervenção do CAE advém do ativismo do Living Theater, do Teatro do Oprimido, do Guerrilla Art Action Group, do Rebel Chicano Art Front e dos Situacionistas. Nas palavras do próprio CAE, o grupo de teatro anarquista experimental Living Theater, oriundo de Nova York, cumpriu um papel importante na história recente das artes pois realizou a proeza de destruir a distinção entre arte e vida. Assim, foi capaz de estabelecer um dos primeiros palcos recombinantes da história da arte-revolta.215 O teatro praticado pelo CAE é, portanto, uma espécie de performance com teor intervencionista. Tal concepção de teatro coloca em prática uma arte com características que remetem à performance e aos happenings. Diferente do teatro tradicional, que se orienta por uma narrativa, com personagens, tramas e clímax no qual tudo aparentemente se resolve, a performance lida com o espaço e o tempo de forma fragmentária, situacionista e efêmera. Por isso prescinde praticamente de tudo o que constitui o teatro clássico, inclusive de palco. Não que seja uma restrição. Os elementos do teatro podem compor uma performance, mas tudo se torna opcional, pois o que importa é antes de tudo o corpo do performer e os efeitos de suas ações em uma dada realidade social. Na história da arte contemporânea, a performance ocupa um lugar privilegiado pois parece expressar melhor o mundo fragmentado da modernidade líquida do que as encenações tradicionais orientadas por uma narrativa. Em uma performance, segundo uma definição histórica consagrada, o artista não precisa de um papel para interpretar, e muito menos de uma sequência de cenas encadeadas por uma linha narrativa. Mais do que isso. O performer não precisa sequer ser ator para incorporar uma série de movimentos, ações e falas. Uma pessoa comum pode muito bem performar sem remeter- se a um eu artista. Em termos corporais, então, a liberdade atinge seu nível máximo na performance. Do mesmo modo, geralmente não há local específico para realizá-las. Pode ocorrer em qualquer lugar. Na medida em que a performance constrói um acontecimento estético, dirige-se igualmente a um coletivo de sujeitos que podem ou não participar diretamente do desenrolar da ação. Nesta linha, como um desdobramento da arte performática, surgiu o intervencionismo, ainda mais irruptivo, pois tem um caráter essencialmente penetrante no que se refere à coletividade e à dinâmica da vida cotidiana. Por tudo isso, muitas given issue”. CAE, “Recombinant theater and digital resistance”, in Digital Resistance: explorations in tactical media, p. 87. 215 Cf. CAE, “Teatro recombinante e a matriz performativa”, in Distúrbio Eletrônico, p. 65. 160 performances intervencionistas levam a arte às fronteiras da vida cotidiana, produzindo, assim, um acontecimento único e irrepetível cujas repercussões são muitas vezes imprevisíveis. É o que faz o Critical Art Ensemble vez por outra. Um exemplo ajuda a ilustrar o modo intervencionista do grupo atuar. Imagem 34 – Exemplo de uma intervenção nômade na vida cotidiana.216 Em um ponto turístico bem movimentado, uma pessoa munida de alguns pequenos brinquedos, como carrinhos em miniatura e umas pistas de plásticos montáveis, ocupa um lugar próximo a uma entrada ou saída de pessoas, onde o público circula mas também com a possibilidade das pessoas pararem. Em seguida, o performer senta-se e começa a brincar com os carrinhos, oferecendo um brinquedo para quem se mostrar interessado em participar. Enquanto isso, outros integrantes do grupo podem se insinuar no jogo sem se identificar como participantes. O que acontecerá não é possível antecipar por completo. Porém, como se trata de um local turístico, qualquer alteração na dinâmica pode chamar atenção das autoridades locais. Passados alguns minutos, as pessoas se aproximam, questionam-se acerca da atitude incompreensível, outras, podem interagir, perguntar algo, ou mesmo brincar com a situação. Até que, momentos depois, seguranças ou policiais da 216 Imagem do CAE. Cf. Electronic Civil Disobedience. New York: Autonomedia, 1996, p. 54. 161 área se aproximam para saber do que se trata. É quando a situação começa a se tornar mais intensa, pois o simples ato de brincar em uma passagem pública pode despertar atitudes autoritárias. Talvez os seguranças solicitem ao performer se retirar do local alegando algum motivo. Apesar das ordens, o performer ignora tudo à sua volta e continua brincando como se ninguém estivesse ali. E assim, chega-se ao momento de tensão, quando as pessoas no entorno podem falar, intervir, concordar, discordar. Instaura-se uma zona molecular na qual o resultado das ações torna-se imprevisível: as opiniões das pessoas afloram em palavras, gestos, e em alguns casos, pode acontecer inclusive do performer ser detido fisicamente, com ou sem truculência. Por questões de segurança, é preciso identificar o momento de cessar a intervenção, antes que se chegue às vias de fato e as pessoas envolvidas, entre si e com os seguranças, agridam-se fisicamente. O importante em uma intervenção como essa é promover uma situação extracotidiana como forma de instaurar em espaço público um debate sobre o autoritarismo, a ineficácia das leis ou a realidade do poder. As conclusões a que se pode chegar são muitas e variadas, como por exemplo: brincar em determinados lugares pode despertar o despeito, a ira e a simpatia, suscitar as autoridades e até mesmo o abuso de poder. A liberdade civil não é sempre assegurada por aqueles que deveriam promover as condições para seu exercício. Uma intervenção nômade e simples semelhante a esta pode ser realizada por qualquer pessoa em praticamente toda cidade turística como forma de estimular diálogos e reflexões críticas.217 Na prática do Critical Art Ensemble, o teatro da vida cotidiana adquire outro estatuto quando incorpora as tecnologias da informação e comunicação, com seus aparelhos e usos demonstráveis rearranjados em cena. Eis o seu Teatro Recombinante, que atualiza a arte da performance em um teatro intervencionista. Com uma diferença importante, pois inova no uso deliberado que faz de equipamentos eletrônicos nas cenas performáticas. Sinteticamente, o teatro recombinante consiste em ambientes performáticos entrelaçados através dos quais os participantes podem fluir.218 Teatro invisível, teatro de rua, teatro da vida cotidiana, entre outras possibilidades, podem ser turbinados com tecnologias de vários tipos, e o experimento então ganha um novo sentido. 217 Cf. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 52-54. 218 “For the past decade, Critical Art Ensemble has repeatedly suggested that recombinant theater consists of interwoven performative environments through which participants may flow” CAE, “Recombinant theater and digital resistance”, in Digital Resistance, p. 87. 162 Imagem 35 – Dorian Burr do CAE performando uma cena do Teatro Recombinante.219 Na matriz performativa do grupo, a tecnologia compõe um elemento crucial, porém, ao mesmo tempo em que os aparelhos e as tecnologias são apropriadas pelo agenciamento, seu sentido, quando remetido ao conjunto conceitual de base, adquire um caráter crítico. O principal objetivo é claro: “O novo teatro deveria dizer ao espectador como resistir à autoridade, independentemente da sua identidade política”.220 O CAE ilustra com um breve exemplo: Considere o seguinte cenário: um hacker está no palco com um computador e um modem. Trabalhando sem limite de tempo, o hacker invade bancos de dados, acessa seus arquivos e parte para apagá-los ou manipulá-los de acordo com seus próprios desejos. A performance termina quando o computador é desligado. Essa performance, embora tão simplificada, exprime a essência do distúrbio eletrônico. Uma ação como essa percorre em espiral a rede performativa, interligando de maneira nômade o teatro da vida quotidiana, o teatro tradicional e o teatro virtual. Representações múltiplas do artista participam explicitamente desse cenário para criar uma nova hierarquia de representação.221 219 CAE, Disturbances, p. 51. 220 CAE, “Teatro recombinante e a matriz performativa”, in Distúrbio Eletrônico, p. 69. 221 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 65-66. 163 Com uma simples performance como essa é possível trazer ao debate uma série de questões. Como os dados eletrônicos de um indivíduo podem ser manipulados, distorcidos ou eliminados, ao dispor de um estranho, e a partir disso, repercutir seus efeitos na vida cotidiana, a despeito de leis. É possível discutir de uma perspectiva mais ampla, simulando, por exemplo, a invasão de um sistema de armazenamento de dados que acumula informações privadas de milhões de pessoas, mas que são agenciadas por corporações a fim de se obter lucros sem a devida autorização. Em uma cena de teatro recombinante dá para simular uma operação de disparos de e-mails tipo spams em grande quantidade, aleatoriamente, com vírus, worms ou fake news. Ou ainda, demonstrar como é relativamente fácil alterar dados e fotos digitais com o simples uso de programas de computador de modo a falsear um registro, e associar isso a um crime ou a uma situação completamente diversa. O Critical Art Ensemble trabalhou com esse tipo de teatro durante muitos anos em suas apresentações multimídias. As possibilidades são infinitas e podem ser aproveitadas para muitos propósitos de resistência. Existe até mesmo um potencial pedagógico de performances recombinantes como as esboçadas aqui rapidamente. Embora a sociedade tenha incorporado altas tecnologias, poucas pessoas têm real noção do que é possível fazer com elas quando se tem o domínio de ferramentas somente acessíveis a especialistas. Demonstrações criativas de algumas dessas habilidades, reais ou simuladas, por técnicos ou performers, e de seus efeitos na vida das pessoas na esfera pública, proporcionam grande potencial elucidativo, questionador e crítico. O debate daí advindo é um dos efeitos esperados do teatro recombinante. O CAE denomina a prática de tais performances de teatro recombinante justamente porque os elementos humanos e não-humanos, linguísticos e discursivos, bem como simbólicos, sígnicos e imagéticos, espaciais e tecnológicos, são combinados ao espaço cênico e virtual. A ideia é construir uma situação na qual a arte crítica tenha as condições de produzir seus efeitos sensíveis, estéticos e de pensamento no público. Recombinante também nos seus efeitos, ao repercutir nas subjetividades e na dinâmica da vida cotidiana, contribuindo assim para possíveis reconfigurações ideacionais, perceptivas ou mesmo micropolíticas. 164 Imagem 36 – CAE, Teatro Recombinante Cult of the New Eve. World Information Exhibition, Bruxelas, 2000.222 Esse teatro foi pensado para explorar a realidade com o mesmo ímpeto do hacker face a um sistema informático. Na perspectiva do CAE, a prática hacker é a melhor maneira de desestabilizar a realidade e a estrutura prática de todos os teatros. Pekka Himanen chama a atenção para a abertura semântica do termo: Os próprios hackers sempre admitiram essa aplicação maior de sua atuação. Seu arquivo de jargões chama a atenção sobretudo para o fato de que um hacker é, fundamentalmente, ‘um perito ou um entusiasta de qualquer área. É possível ser um hacker em astronomia, por exemplo’. Nesse sentido, é possível ser hacker sem ter nada a ver com computadores.223 O teatro recombinante, portanto, submete as tecnologias eletrônicas e virtuais a um tratamento hacker para levar ao público algum grau de questionamento acerca do que essas mesmas tecnologias desempenham na esfera social, política e cultural. Assim, as 222 Imagem disponível no endereço http://future-nonstop.org/c/e2f4036011ec400aae80fa02fcac8d41 Acesso 10 de julho de 2019. 223 Pekka Himanen. A ética dos hackers e o espírito da era da informação: a importância dos exploradores da era digital. Rio de Janeiro: Campus, 2001, p. 8. Nesta passagem há uma citação extraída do The New Hacker’s Dictionary (3rd. Ed., 1996). O verbete hacker está disponível em: http://www.catb.org/jargon/html/H/hacker.html Acesso 22 de julho de 2019. A acepção ampliada do termo aparece no item 6: “An expert or enthusiast of any kind. One might be an astronomy hacker, for example”. 165 matrizes da performance, do teatro eletrônico e da vida cotidiana se combinam para tornar patente os aspectos autoritários das tecnologias. Ora para desafiar os códigos e normatividades, ora para demonstrar os usos possíveis das tecnologias para os propósitos da resistência. Ante as infinidades de matrizes interpretativas moldadas pelo espetáculo, todas investidas do caráter de verdade, cabe à estética do distúrbio minar o império das opiniões que obstruem a construção da autonomia nas suas dimensões individuais e coletivas. A provocação, a confusão e o distúrbio são meios de que se vale o teatro da resistência para desmontar as máquinas ideológicas e revelar potenciais escolhas não previstas pela grade interpretativa dominante do espetáculo.224 Tanto no caso do plágio utópico quanto na teoria prática do teatro recombinante nota-se um teor crítico e político latente, afinal, era de se esperar que um conjunto de arte crítica elevasse a estética ao patamar da contestação. A Estética do Distúrbio Na sociedade do espetáculo, realmente, não se pode esperar que os estados ou os mercados promovam mudanças comportamentais, éticas e existenciais contrárias a seus pressupostos de controle, disciplina e consumo. Justo para fazer frente às tendências dominantes é que se formam as frentes da resistência cultural, nas quais os artistas e ativistas desempenham suas funções de revolucionários da vida cotidiana. Assim, a arte engajada, estimulada pelo ímpeto criador da revolta, pode contribuir com a tarefa de injetar novo ânimo na cultura. O Critical Art Ensemble tem sua própria maneira de praticar a resistência. Há duas formas de atuação que se complementam no amplo espectro de ação do grupo. A primeira, direcionada à teoria crítica, funda discursividades a partir da arte conceitual e do plágio utópico. Trata-se de uma forma de expressão de tipo racional, que articula discursos a fim de problematizar temáticas contemporâneas. Além desta forma de intervenção na esfera epistemológica, existe a matriz performática do teatro recombinante, que une diversos registros performáticos tais como teatro da vida cotidiana, teatro de rua e teatro eletrônico. Por meio de performances, instalações, contraespetáculos e intervenções, as formas de expressão do grupo 224 “Deve-se buscar uma estética da confusão que revele potenciais escolhas, fazendo dessa forma a estética burguesa da eficiência entrar em colapso”. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 69. 166 ultrapassam os limites da racionalidade e do senso comum com técnicas lúdicas, desviantes e mesmo improvisadas capazes de afetar a imaginação e os sentidos do público. Nesse caso, tem-se uma forma de expressão irracional, com proeminência estética, simbólica, metafórica, em suma, poética. Em ambos os casos, na teoria e na prática, os materiais manipulados pelo agenciamento do grupo são recombinados para fins transformadores, seja no plano do pensamento, seja no campo do imaginário e das sensibilidades coletivas e individuais. Ao unir arte e conceitos, recombinados pela revolta bem direcionada, a resistência cultural do CAE torna-se extremamente poderosa, e consegue, assim, experimentar todo o seu potencial libertário junto às subjetividades tocadas pelos efeitos transformativos da arte. No caso da sociedade do espetáculo, fica a questão de saber qual a efetividade de uma resistência que encontra no distúrbio sua estratégia de ação. Como Debord demonstrou, o espetáculo atua sobre as subjetividades para além dos limites da razão e da consciência, mirando sobretudo a dimensão inconsciente do imaginário e do desejo. Contrapor-se a essa tendência com meios inteiramente racionais dificilmente surtirá os efeitos desejados. Primeiro, porque o ser humano não é somente racional. E segundo, porque a imaginação e a sensibilidade são mais propensas aos efeitos estéticos das artes. Portanto, o paradigma estético da resistência artística e cultural que se vale da força criativa do distúrbio parece ser, senão o único, muitas vezes o mais apropriado para fazer frente ao poder de captura do desejo e das subjetividades na sociedade do espetáculo. Uma resistência antenada com o contemporâneo precisa compreender a política dos afetos, do desejo e do irracional, para, a partir dessa apreensão, poder atuar de forma efetiva. No século XIX, Charles Baudelaire afirmou que toda arte choca, embora nem tudo que choca seja considerado arte.225 Ao que parece o Critical Art Ensemble levou a sério a afirmação do poeta, pois tirou da fórmula todas as suas consequências. Na resistência artística não importa diferenciar uma coisa da outra. A partir desta premissa, a conclusão lógica a que chega o grupo é primorosa: para despertar a passividade do espectador, nada melhor do que uma fórmula de impacto. Na resistência ao espetáculo, a arte crítica reconhece o valor e a pertinência do imperativo estético do choque.226 Em um mundo cujas sensibilidades são amortecidas e 225 Ver o comentário de Teixeira Coelho sobre a concepção do belo, da arte e do choque em Baudelaire e Valéry, in Charles Baudelaire. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 17. 226 “Muitas pessoas dizem que a estética do choque se foi, e em termos de choque através da transgressão 167 embotadas pela entropia de estímulos, a estética do distúrbio assume sua função como uma arte provocativa assumidamente impactante. Ao propor o distúrbio como tática da resistência artística, o choque torna-se um dos objetivos das intervenções do teatro recombinante e desempenha a mesma função que o distúrbio das ações de resistência eletrônica no ciberespaço. Face aos códigos e enclaves culturais, o artista e o ativista fazem o papel do hacker: furam barreiras ideacionais, subvertem lógicas, decodificam normalidades, descriptografam ideologias e assim por diante, sempre no interesse de liberar um elemento fechado em um dado sistema. Imagem 37 – Flesh Machine, projeto e campanha do CAE, 1997-98. Dorian Burr e Steve Kurtz.227 Por meio de suas produções, que podem ser artefatos ou performances, o CAE incide nos processos de subjetivação do público a fim de estimular rupturas e a ultrapassagem das fronteiras ideológicas de uma dada ordem simbólica, na tentativa de proporcionar a emergência de focos autônomos de subjetivação: “O trabalho juvenil (bad grrrl, estética bad boy), isso é provavelmente verdade. No entanto, se você ajudar alguém a experimentar a face do capital removendo a máscara do estado de bem-estar e mostrar sua desumanidade predatória de maneiras não concebidas pelo espectador (representações de guerra, mulheres espancadas ou crianças famintas não farão isso), você descobrirá que a estética do choque ainda existe”. CAE, in Tactical Media Practitioners: an interview. Jon McKenzie and Rebecca Schneider. The Drama Review, p. 143. 227 Imagem disponível em http://critical-art.net/flesh-machine-1997-98/ Acesso 31 de julho de 2019. A descrição que segue é baseada no texto original, que foi traduzido e adaptado. 168 verdadeiramente perturbador (que para o CAE não significa ‘chocante’) de representação cultural ajudará cada indivíduo a progredir em direção a uma subjetividade mais completa – ele/ela será capaz de separar a si mesmo da objetividade da máquina”.228 Essa é uma das principais funções políticas da subjetivação provocada pelas ações do Critical Art Ensemble: trabalhar para a emergência de subjetividades autônomas, críticas, autoposicionadas. Um exemplo ajuda e entender a estética do distúrbio na prática. No projeto Flesh Machine, de 1997, o CAE abordou em uma performance ao vivo o tema da reprodução humana em laboratório e as aplicações econômicas no campo da manipulação de DNA. Tecnologias, laboratórios, empresas, cientistas, todos esses elementos estavam representados no projeto de forma estética. As pessoas eram convidadas a participar da performance como se o CAE fosse uma empresa representante de uma corporação biotecnológica. Ao testar a adequação dos participantes para passar seus genes através de um programa de doadores, foi possível revelar o aspecto latente da eugenia no mercado de fertilização artificial. Além de problematizar a eugenia implícita nas biotecnologias de reprodução humana artificial e de manipulação de DNAs, o projeto Flesh Machine trouxe para o domínio público os processos científicos da tecnologia reprodutiva. Em Viena, os visitantes do projeto usaram o CD-ROM da BioCom, nome fantasia de uma suposta empresa, com um programa previamente planejado para a campanha. Tudo criação do CAE. No computador, os participantes tinham acesso a alguns dados sobre o tratamento de fertilização in vitro, novos métodos de reprodução assistida, perfis de doadores de óvulos e espermatozoides. Enquanto tomavam conhecimento sobre o assunto, alguns participantes eram convidados a fazer um teste de triagem para doação. O voluntário então preenchia formulários com seus dados, as informações eram coletadas e processadas pelo próprio programa de computador e o resultado era, enfim, emitido. Implicitamente, a performance veiculava um subtexto crítico destinado a direcionar o participante a formar uma visão mais cética com relação à apresentação acrítica disseminada pelos meios de comunicação, no mais das vezes financiada por corporações interessadas em investir na economia biotecnológica. Os participantes que se habilitavam 228 “The truly disturbing (by which CAE does not mean ‘shocking’) work of cultural representation will help each individual progress toward a more complete subjecthood – s/he will be able to separate him- herself from the objecthood of the machine”. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 39. 169 a fazer a triagem eram então examinados, primeiro, pelo programa do computador, e depois por técnicos da área da saúde que acompanhavam os integrantes do CAE.229 Quem passava pela triagem era solicitado a doar sangue para extração do DNA em um laboratório montado no mesmo local. No laboratório de criopreservação, amostras de células eram coletadas para congelamento rápido. Um perfil de mídia cruzada das representações genéticas de um indivíduo então era construído (consistindo de amostras de células, de DNA, um teste de perfil de doador e uma fotografia). Ao final, os participantes podiam avaliar o valor potencial de seus corpos como commodities e, portanto, seu lugar na nova economia genética de mercado. Imagem 38 - Apresentação do programa BioCom utilizado nas campanhas sobre biotecnologias.230 229 O questionário respondido pelos voluntários está disponível em http://critical-art.net/Original/biocom/biocomWeb/form.html Acesso 3 de agosto de 2019. 230 O programa encontra-se disponível online no endereço: http://critical-art.net/Original/biocom/biocomWeb/ Acesso 3 de agosto de 2019. 170 Os casos mais interessantes aconteciam com os voluntários que não passavam na triagem para doação. As pessoas ficavam chateadas e logo questionavam porque foram rejeitadas. Geralmente, o motivo era bem evidente como o uso de drogas ou o histórico familiar com doenças graves. Nas conversas que se seguiam, as questões em torno da seleção e da comercialização do material biológico humano eram questionadas e refletidas. Questões éticas sobre que parâmetros seriam ou deveriam ser usados para a alteração de DNAs humanos logo tornavam-se focos de discussão. É possível entender o que se passa nessa performance com a terminologia conceitual de Sloterdijk. A performance em si, com os aparatos tecnológicos, estéticos, textuais e semióticos, fornece as condições de emergência de circuitos antropotécnicos situacionistas que induzem os participantes a exercitarem a reflexão, o pensamento e o julgamento ético sobre a problemática tratada no projeto. O contato com textos informativos, artigos e definições científicas no software BioCom exerce a função de qualificar os participantes para uma reflexão informada sobre o assunto. Imagem 39 – Uma arte do CAE usada na campanha Flesh Machine sobre biotecnologias. 231 231 CAE, Disturbances, p. 57. 171 Em si mesmo, a performance como um todo, é um dispositivo antropotécnico na medida em que coloca em jogo, para apreciação dos participantes, um conhecimento especializado que exige dos participantes um tipo de exercício intelectual, cognitivo e epistemológico. No entanto, a leitura textual e imagética que enseja o desenrolar da performance tem a função de preparar o participante para exercícios metanoicos mais sofisticados nos quais será exigido até mesmo um juízo crítico sobre o conteúdo abordado nos textos, nas imagens, nas conversas e com relação à toda experiência vivida. O pensamento, a sensibilidade, o diálogo e a reflexão são ativados pela operação como um todo. No contato com os materiais informativos, com a estética e com os demais produtores, técnicos e participantes formam-se circuitos antropotécnicos extracotidianos que exigem uma atitude reflexiva dos observadores e participantes. Nesse sentido, o CAE compõe uma situação com todo o aparato estético construído para ser o suporte de exercícios metanoicos sobre os conteúdos propostos. Na abordagem crítica do coletivo, os participantes são convidados a refletirem por si mesmos sobre os conteúdos veiculados, segundo seus próprios julgamentos, em diálogo com os produtores e técnicos, e nesse sentido, trata-se de um exercício de autonomia. De forma semelhante, no que se refere às apreciações de valor. Dificilmente, alguém sai da experiência sem buscar ou expressar um sentido valorativo sobre a experiência, o conhecimento e as tecnologias que foram o foco da performance. No conjunto, a performance efetua as condições pedagógicas propícias à reflexão crítica e a apreciações éticas, e pode ser considerada, portanto, uma operação metanoica em seus participantes. Com razão pode-se comparar a estética do distúrbio ao Teatro da Crueldade concebido por Artaud, que fez da força vital um ímpeto transformador da cultura: “Do ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta”.232 O teatro artaudiano foi pensado para despertar o corpo e o espírito da passividade e da letargia, ao passo que a matriz performática do teatro recombinante agencia as forças da crueldade artística e instala uma zona autônoma temporária no campo social, no imaginário e na ordem simbólica: Em nosso trabalho público, o CAE sempre tentou inventar maneiras de falar o indizível e revelar o invisível, seja a invisibilidade das margens, as alavancas ocultas de controle ou as ameaças e forças latentes que fundamentam a complacência normativa.233 232 Antonin Artaud, “Cartas sobre a crueldade”, in O teatro e seu duplo. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 131-132. 233 “In our public work, CAE has always tried to invent ways to speak the unspeakable and reveal the 172 Lá onde impera a certeza, o distúrbio leva a dúvida, o questionamento, o ceticismo que varre as opiniões; onde reina a eficácia, o controle, a disciplina e a repressão, provoca o entrechoque das partículas imagéticas e comportamentais para promover um salto quântico, um corpo sem órgãos, uma visão intempestiva sobre a vida, livre e aberta à criação. Trata-se, portanto, de um teatro micropolítico e tático que devasta ideologias sem recorrer a propaganda panfletária. É por isso uma arte micropolítica sagaz que se insinua, na perspectiva do CAE, nas mentes e nos corações dos participantes para injetar ânimo nas forças latentes da crítica e da revolta, no inconsciente individual e coletivo. Imagem 40 – Dorian Burr em uma performance do CAE.234 invisible, whether it is the invisibility of the margins, the hidden levers of control, or the latent threats and forces that underlie normative compliance”. CAE, Disturbances, p. 134. 234 CAE, Disturbances, p. 50. 173 A resistência ao poder nômade, tal como promulga o CAE, adquire assim um caráter destituinte, ao invés de instituinte. Aqui encontra-se a categoria de negação da negação como tática de que se vale a resistência cultural para abrir o campo de possíveis na história sem recorrer necessariamente a imagens pré-estabelecidas a serem impostas ao conjunto da sociedade. A recusa do proselitismo ou a recusa de encarnar o modelo das vanguardas tradicionais que levavam a boa nova às massas, adquire seu sentido à medida que o CAE e as resistências culturais se permitem afirmar a vida em sua multiplicidade, e garantir a autonomia dos sujeitos históricos, individuais e coletivos. Não cabe mais às vanguardas contemporâneas guiar as massas rumo à instauração de um modelo de sociedade idealizado, senão que, mais apropriadamente, desfazer entraves, desestabilizar e desmantelar as redes de poder para abrir caminhos possíveis e virtuais, contribuindo com bifurcações criativas nas dimensões da cultura e de tudo o que comporta a vida cotidiana. Intervindo na ordem simbólica e nos regimes semióticos, a estética do distúrbio praticada pelo CAE tem, por isso, o propósito de desafiar o poder e provocar panes, falhas e avarias na funcionalidade reprodutiva do sistema. Assim, é possível colapsar as estruturas autoritárias e fazer crescer, por meio de uma bifurcação nos rumos históricos, nem que sejam vacúolos e vazios plenos de virtualidades, tanto nos processos subjetivos, epistemológicos e tecnológicos, quanto nas dimensões existenciais, no imaginário e nos modos de pensar, sentir, fazer e viver. Realmente, trata-se de uma aposta nas táticas do distúrbio para abrir brechas no entrecruzamento dos campos cultural, subjetivo, artístico e político. Mesmo o caos, outrora compreendido como ausência de ordem, propicia a criatividade, e a complexidade, seja em qual sistema for, promove novos arranjos e patamares de reorganização.235 Para manter o princípio da revolta aceso, sem que as potências sociais se percam na reencarnação do poder, o Critical Art Ensemble faz valer sua tática na estética do distúrbio, aparentemente a melhor alternativa da potência destituinte de que lança mão. A arte-revolta aposta suas fichas no jogo da resistência libertária – no campo macropolítico, face ao Leviatã Tecnológico, e no campo cultural, contra o espetáculo – agenciando, para tanto, dispositivos e matrizes performáticas a fim de colapsar os circuitos do pancapitalismo por dentro com os distúrbios e choques bem direcionados. 235 “Nas ciências naturais, o ideal tradicional era alcançar a certeza associada a uma descrição determinista, tanto que até a mecânica quântica persegue esse ideal. Ao contrário, as noções de incerteza, de escolha e de risco dominam as ciências humanas, quer se trate de economia, quer de sociologia”. Ilya Prigogine, As leis do caos. São Paulo: UNESP, 2002, p. 13. 174 Conceituando o Distúrbio No livro Distúrbio Eletrônico, o CAE projeta-se como coletivo de artistas ativistas com a missão de fornecer subsídios teóricos e matrizes performativas que municiam os arsenais antropotécnicos da resistência cultural na idade do pancapitalismo, com suas tecnologias da informação e comunicação. O título que estampa a capa do livro anuncia a aposta na estética intervencionista do distúrbio. Distúrbio significa pane, defeito, desajuste, alguma falha cujo efeito é atrapalhar, interromper, cessar, romper o encadeamento de um processo, fenômeno ou acontecimento qualquer. A palavra tem sido usada comumente para designar distúrbios sociais, urbanos, civis, e nesse registro sociológico carrega consigo alguma valência política. Com a proposta da estética do distúrbio, o CAE dirige-se aos produtores culturais, ativistas e artistas conclamando-os a se lançarem na resistência cultural de forma a interferir na ação dos poderes e saberes que se pretendem autoritários, por identificar nessas instâncias tendências que colocam em risco a soberania individual e coletiva. A expressão conceitual elaborada pelo CAE aparece a princípio na discussão sobre a necessidade de montar a resistência eletrônica, entretanto, a noção tem seu uso aplicado a várias instâncias. O distúrbio eletrônico, especificamente (tratado no Capítulo 5 – Subvertendo a Máquina), refere-se ao curto-circuito tecnológico que pode ocorrer na dimensão informática e comunicacional entre componentes maquínicos quaisquer. Movimentar-se no tanque de poder líquido não precisa ser necessariamente um ato de aquiescência e cumplicidade. A despeito de sua situação difícil, o ativista político e o ativista cultural (anacronicamente conhecido como artista) ainda podem produzir distúrbios. Embora tal movimento possa assemelhar-se mais aos gestos de quem se afoga, e não esteja claro exatamente o que está sendo perturbado, nesta situação o lance do dado pós-moderno favorece o ato de distúrbio.236 A conceituação de distúrbio elaborada pelo CAE entrelaça duas outras categorias: o cínico e o utópico, palavras que, por si mesmas, dão muito o que pensar (“o peculiar entrelaçamento do cínico e do utópico no conceito de distúrbio”).237 Historicamente, o 236 CAE, “Poder nômade e resistência cultural”, in Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001, p. 21- 22. 237 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 22. 175 cinismo remete a uma vertente filosófica grega, que se origina com Antístenes, discípulo direto de Sócrates, e tem na figura de Diógenes, o cão, um de seus mais conhecidos adeptos. O termo cinismo advém de kynos, palavra que em grego significa cão, cachorro. Nos primórdios, o termo surge em decorrência do estilo de vida adotado pelos adeptos do cinismo enquanto filosofia de vida caracterizada por uma existência frugal, afeita ao naturalismo, despojada dos pudores culturais e que, portanto, faz pouco caso das convenções sociais. A postura típica do filósofo cínico é frequentemente associada à impiedade, ao falar francamente (parresía) e ao desprezo altivo com relação aos valores sociais ancorados na vaidade humana. A coragem, a intrepidez e o ar provocativo são também signos característicos do cinismo filosófico. Foucault dedicou um curso inteiro no Collège de France para pensar a parresía, o discurso da veridicção, o falar francamente, e toma a filosofia cínica como objeto privilegiado de estudo.238 Fora da filosofia, existe outro significado atribuído ao cínico. No registro contemporâneo a expressão aplica-se a pessoas sem escrúpulos, que fazem de tudo para atingirem seus objetivos. Essa interpretação faz sentido no horizonte do niilismo moderno, fenômeno que se propaga desde ao menos o século XIX pela Europa e que hoje ganha contornos quase mundiais. Por niilismo pode-se entender a queda e o descrédito dos valores outrora considerados supremos. Com esse significado, cínico nada mais é que um indivíduo sem valores que se outorga agir a seu bel-prazer, mesmo que isso implique o mal de alguém; uma atitude que ignora, portanto, toda alteridade. Não é nesse cinismo niilista que o CAE se inspira para elaborar o conceito de distúrbio. No campo mais amplo da resistência cultural, o distúrbio representa o colapso, a falência, a quebra de uma cadeia de procedimentos, de um dado sistema. Produzir um distúrbio, causar uma pane, interromper um determinado processo, são efeitos desencadeados por uma ação destemida, desafiadora, astuciosa e necessariamente provocativa. Por isso, o elemento cínico, quando associado ao conceito de distúrbio, refere-se à postura combativa assumida pelos ativistas culturais frente aos poderes constituídos, postura similar a dos filósofos, motivada por determinados valores que orientam suas ações. Frequentemente algumas características do cinismo filosófico repercutem no ativismo contemporâneo, por exemplo, nas investidas contra tendências culturais que se pretendem inquestionáveis, padrões de consumo, comodismo político e modas estéticas. 238 Cf. Michel Foucault. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II: curso no Collège de France (1983-1984). São Paulo: Martins Fontes, 2011. 176 A noção de distúrbio (“disturbance” no original) carrega o significado de perturbação, cujo sentido proposto pelo CAE indica uma ação provocativa que tem por efeito intervir em um dado âmbito da realidade, seja social, geográfico, institucional, cultural, etc., sempre com o intuito de desvelar as semióticas e os discursos que tentam a todo custo legitimar ordens, leis e padrões considerados questionáveis do ponto de vista do ativismo. Mas além do aspecto combativo, a atitude cínica demonstra uma certa intrepidez que desestabiliza os poderes quando assume a missão de desafiar as regras, as convenções, as leis, as ideias, os comportamentos e os hábitos arraigados em um dado estrato cultural pelas vias sarcásticas, irônicas, bem humoradas e lúdicas. Atitudes como as desencadeadas pela seção dadaísta de Zurique, no Cabaré Voltaire, com sua metodologia de produção aleatória, e sobretudo, as investidas do dadaísmo berlinense, com suas guerrilhas culturais que faziam a arte desaparecer na ação política.239 Ambos reconhecidos pelo CAE como precursores do distúrbio.240 O duplo aspecto do Dadaísmo é identificado por Peter Sloterdijk: O ataque Dada possui dois aspectos: um kynikos e outro cínico. A atmosfera do primeiro aspecto é brincalhona e produtiva, pueril e infantil, sábia, generosa, irônica, soberana, inatacavelmente realista; o segundo aspecto mostra fortes tensões destrutivas, ódio e reações de defesa arrogantes contra o fetiche burguês interiorizado, muita projeção e uma dinâmica afetiva marcada por desprezo e desilusão, autoenrijecimento e perda da ironia. Não é simples cindir esses dois aspectos; eles transformam o fenômeno Dada como um todo em um complexo brilhante (...).241 Além do cínico, o outro componente do conceito de distúrbio elaborado pelo CAE é a utopia. A palavra tornou-se conhecida com a divulgação da obra homônima de Thomas More, publicada no século XVI. A etimologia da palavra refere-se a uma realidade geográfica, topos, em grego, que é precedida de uma partícula negativa, o que explica a recepção do termo na sua acepção de não-lugar, ou de um lugar que não existe. Mais tarde, com o avanço da modernidade europeia, o significado de utopia foi reinterpretado à luz do progresso e adquiriu um sentido histórico mais proeminente. Utopia então como ideal de perfeição que inspira mudanças históricas em sua direção, 239Cf. Norval Baitello, “República Dadá vs. República de Weimar”, in Dadá-Berlim: des/montagem. São Paulo: Annablume, 1993, p. 83. 240 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 23. 241 Peter Sloterdijk, “Caotologia dadaísta. Cinismos semânticos”, in Crítica da razão cínica. São Paulo: Estação Liberdade, 2012, p. 526. 177 um lugar que ainda não existe mas que pode ser construído. No século XIX aparece uma nova acepção quando Marx se apropria da palavra para desvincular suas ideias dos primeiros socialistas franceses, denominados então de utópicos. Na rede conceitual do CAE, quando a utopia aparece junto à noção de cinismo para qualificar o distúrbio, o sentido geográfico é retomado e a noção subverte o que havia estabelecido o socialismo científico. Utopia passa a ser um lugar do que ainda não existe, mas que pode ser concretizado, espaço portanto aberto à realização pela criação. Como o CAE não trabalha em prol de uma revolução nos termos burgueses, comunistas ou anarquistas tradicionais, o que interessa na utopia é a sua realidade potencial enquanto catalisadora dos acontecimentos, ou o campo espaço-temporal da experiência criadora no qual já trabalhavam os situacionistas na década de 1960. O elemento utópico do distúrbio representa, portanto, o objeto do desejo na realidade psicogeográfica (termo situacionista) que precisa ser construído na relação direta com o presente em toda sua multiplicidade. É justamente a utopia que se pretende invocar desde já, na realidade imediata produzida pelas forças libertas pelo distúrbio dos poderes, das ideologias, do princípio de realidade que, por distintos meios, tentam impedir a transformação da realidade ordinária. É por via do princípio utópico que o aparentemente inexistente exige seu espaço no mundo, e o que de outra forma talvez fosse impossível de se realizar finalmente se dignifica a existir por força da criação individual e coletiva. Os atos de distúrbios são também jogos de azar.242 A concepção de resistência cultural proposta pelo CAE no seu livro-manifesto passa pela consideração de uma micropolítica da aposta, que se vincula à ideia de utopia. Um dos aspectos do distúrbio remete-se a uma aposta utópica de que a resistência cultural, desprovida de um projeto ou modelo de sociedade, pode desferir golpes de sorte na história e contribuir criativamente na abertura de situações possíveis, com a expansão dos espaços de liberdade e autonomia. Se uma revolução em larga escala, em termos sociológicos globais, não parece factível aos contemporâneos do colapso soviético, como é o caso do CAE, então faz sentido investir na construção de alternativas anticapitalistas no interior das democracias liberais. Nada melhor do que o jogo, a ludicidade e o entusiasmo para inspirar uma micropolítica artística. Aliás, esse é um dos aspectos positivos da revolta e da desobediência encarnadas pelo coletivo e que transparece no humor de algumas obras. “Apesar de tudo, há um espaço decisivo para a comédia e o humor como meio de resistência. Talvez esta seja a 242 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 117. 178 maior contribuição da Internacional Situacionista à estética pós-moderna”, diz o CAE.243 A resistência não se faz unicamente em resposta ao sofrimento. A combinação de uma potência elevada com a imaginação radical basta para inspirar os ânimos, e uma vez direcionados à política, a reação tende a ser contagiante. A aposta no distúrbio como meio de ação da resistência significa um otimismo prático. Mas nem tudo são jogos. Confusão, ceticismo e pânico são algumas das palavras que aparecem quando a resistência ao poder nômade do pancapitalismo é conclamada a investir na estética e na micropolítica do distúrbio. Estética artística e cultural da confusão, micropolítica enquanto prática de “liquidação de estruturas”.244 Há uma combinação de sentimentos e convicções paradoxais que permeiam os capítulos do Distúrbio Eletrônico. Se a noção de distúrbio por si só causa espanto, por vezes o que se propõe com a convocação ao distúrbio é a confusão como “uma estética aceitável”: “o momento de confusão é a precondição para o ceticismo necessário ao surgimento do pensamento radical”.245 Ceticismo concebido como postura ativa do pensamento diante das aparências, dos emaranhados de crenças e verdades, das capturas do poder, da sedução do espetáculo. O método paranoico-crítico de Salvador Dalí, que se propunha a projetar alucinações despertas no mundo cotidiano, anunciou uma nova antropotécnica artística- existencial de tipo intervencionista. Embora uma atividade perseguida pelo indivíduo, seus efeitos possuem uma potencialidade social e situacionista: “Através de um processo de cunho paranoico e ativo do pensamento, será possível (simultaneamente ao automatismo e outros estados passivos) sistematizar a confusão”. Era o que fazia Dalí com frequência em suas performances extravagantes, que, com criatividade estética, tornava-se capaz de criar o pânico no cotidiano.246 Na concepção de resistência do CAE, a noção de aposta supõe um construtivismo radical inerente à realidade, individual e social, cognitiva e imaginal, que é preciso liberar por força da inventividade artística. Por isso, o investimento na desmontagem das ordens, no desarranjo dos sistemas, no embaralhamento dos códigos, como tática propícia a uma 243 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 29. 244 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 57, onde se lê: “É o distúrbio por meio da liquidação dessas estruturas o que a mídia nômade da resistência tenta conseguir. Isso não pode ser feito produzindo-se mais monumentos eletrônicos, mas, pelo contrário, por uma intervenção imaginativa e uma reflexão crítica libertadas em um momento eletrônico incerto e não resolvido”. 245 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 56. 246 Cf. Nicolas Bourriaud, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 77-78. 179 recombinação diferencial, libertária, propensa à manifestação da autonomia por meio do experimentalismo generalizado: As ideias, as artes e a paixão podem florescer igualmente bem, se não melhor, em um ambiente de desordem. A estética da ineficiência, das apostas desesperadas, de incomensuráveis suposições, de interrupções insuportáveis, fazem parte da soberania do indivíduo. Estas são situações nas quais ocorre a invenção.247 Em situações extracotidianas, quando os indivíduos se deparam com o inesperado e o imprevisível lhes salta aos olhos, não há como escapar ao peso da realidade que lhes cai sobre a cabeça. É preciso agir, nem que seja improvisar alguma reação, com o que se cumpre a função relacional do distúrbio e da confusão. Imersos em uma realidade espaço- temporal desconfigurada, de uma forma ou de outra os indivíduos são chamados à ação. A eles, torna-se premente entrar no modo ativo de intervir na sua própria existência, em relação ao que experienciam, percebem, sentem e pensam. A confusão, vivenciada assim, não raro reflete-se em choque de realidade e impõe um estado de alerta de outra forma adormecido. O CAE indica o motivo profundo de sua aposta na confusão: Como afirma Baudrillard: “A despeito de si mesmo, o esquizofrênico está aberto a tudo e vive na mais extrema confusão. O esquizofrênico não se caracteriza, como geralmente se afirma, por sua perda de contato com a realidade, mas por uma absoluta proximidade e total instantaneidade com as coisas, uma superexposição à transparência do mundo”.248 A mistura de sentimentos de atração e repulsa, o estranhamento decorrente de uma experiência impactante, que causa espanto, coloca em dúvida, perfaz um ceticismo, toda sorte de questionamento mais profundo sobre qualquer coisa, tudo isso de alguma forma se assemelha a uma experiência esquizofrênica no sentido apresentado acima de contato mais imediato e portanto instantâneo, sem mediações, com a realidade, que se descortina em suas articulações até então imperceptíveis, invisibilisadas, não pensadas. Nesse sentido, o que se pretende com a estética da confusão nada mais é do que a produção artística de experiências esquizofrênicas minimalistas em instâncias antropológicas circunscritas, mas que, em dimensões culturais determinadas, no melhor dos casos, carrega a possibilidade de se tornar uma esquizofrenia anticapitalista. 247 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 134. 248 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 71. 180 Como se não bastasse, na lógica paroxística do CAE o ápice da estética do distúrbio, que busca forjar instâncias de abertura à reconfiguração necessariamente prefigurada pela confusão, não pode ser mais do que o pânico. O poder nômade criou o pânico nas ruas com suas mitologias de subversão política, deterioração econômica e infecção biológica, o que por sua vez produz uma ideologia de fortificação, e consequentemente uma demanda por casamatas [bunkers, no original]. Agora é necessário levar pânico à casamata, perturbando desta forma a ilusão de segurança e não deixando nenhum lugar para se esconderem. O jogo pós-moderno consiste no incitamento ao pânico em toda parte.249 Uma afirmação como essa não deixa de causar espanto. Afinal, que tipo de ativismo é esse que ao invés de reivindicar direitos, razão democrática, participação política, perturba a ordem existente, impele à confusão, exalta o pânico? É preciso esmiuçar essa questão intrincada para evitar mal-entendidos. Primeiro, trata-se de levar o pânico para dentro das fortificações do poder, seus bunkers, que se pretendem seguros e firmes para agir sobre, e às vezes contra, a soberania dos indivíduos. De acordo com o CAE, bunkers podem ser físicos, arquitetônicos, eletrônicos, virtuais, mas também, ideacionais, semióticos. O princípio da fortificação muda conforme as configurações históricas e por vezes se sofistica em termos sociológicos ao ponto de não aparecer ao público como o que é. O caso da ideologia, tal como definida por Marx, é exemplar quanto a isso: por meio de um discurso social, a dominação e a exploração são mascaradas aos olhos de quem sofre com elas, de modo que não sejam reconhecidas enquanto tais.250 Em termos materiais, um castelo, um forte, um quartel, são claramente bunkers. Mas a burocracia moderna também pode ser considerada um bunker, que tem a capacidade de resistir a guerras, revoluções e catástrofes naturais. Indústrias, escolas, centros informáticos, cada um à sua maneira são bunkers que produzem e promovem as estruturas sociais necessárias ao funcionamento do pancapitalismo com seus imperativos ao trabalho e ao consumo como modelo de vida dominante. Mais recentemente, a 249 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 37. 250 A ideologia enquanto produtora de falsa consciência. Cf. Karl Marx e Friedrich Engels. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Para um estudo aprofundado do fenômeno da ideologia em seus aspectos sociológicos, antropológicos, políticos, epistemológicos e psicológicos, ver Alípio DeSousa Filho, “A ideologia, o discurso ideológico e de poder e sua desconstrução”, in Tudo é construído! Tudo é revogável! A teoria construcionista crítica nas ciências humanas. São Paulo: Cortez Editora, 2017. 181 sociedade do espetáculo passou a contar com o mass media como um bunker dos mais formidáveis: Neste caso, o bunker é material e ideacional. Por um lado, serve como uma guarnição de concreto onde as imagens (tropas) residem. Por outro lado, confirma a realidade patrocinada pelo Estado, consolidando para sempre as noções reificadas de classe, raça e gênero. Bunkers em sua totalidade como espetáculo colonizam a mente e constroem o micro- bunker da reificação, que por sua vez é o mais difícil de todos para penetrar e destruir.251 Os bunkers nada mais são do que configurações de saber-poder situadas no espaço-tempo social. Desafiá-los com o distúrbio significa desmontá-los em seus efeitos sociais, que nos indivíduos se convertem em conformismo, temor, sectarismo e dogmatismo. Assim como é possível atuar nos bunkers materiais (com a desobediência civil tradicional e suas ocupações pacíficas) e nos bunkers eletrônico e virtual (com a prática da desobediência civil eletrônica), agir sobre as fortificações ideacionais disseminadas na sociedade e instaladas nos indivíduos é uma premissa da resistência cultural contemporânea. Uma forma de tocar os micro-bunkers alojados nas subjetividades é direcionar os esforços do distúrbio estético ao imaginário social e às representações hegemônicas assentadas em opiniões de todo tipo, que o CAE denomina, em geral, de ordem simbólica. E aqui é preciso elucidar um outro ponto importante quando se trata de causar pânico por meio da estética do distúrbio. No Segundo Manifesto Surrealista há uma passagem que ainda hoje causa polêmica devido à imagem empregada por André Breton: “O ato surrealista mais banal consiste em sair correndo pelas ruas, com uma arma em punho, atirando às cegas na multidão, apertando o gatilho o mais rápido possível”.252 Um desavisado, que não conhece minimamente a história da arte moderna, reprovaria peremptoriamente tal afirmação. Aqui é fundamental lembrar que o Surrealismo, enquanto estética da existência, anseia restituir ao ser humano sua capacidade imaginativa, resgatar as forças inconscientes do espírito poético, para que, enfim, a super-realidade do maravilhoso se manifeste, a começar pelo deslumbramento do ser com a vida e o mundo. 251 “In this case, the bunker is both material and ideational. On one hand, it serves as a concrete garrison where images (troops) reside. On the other hand, it confirms state-sponsored reality, by forever solidifying the reified notions of class, race, and gender. Bunkers in their totality as spectacle colonize the mind, and construct the micro-bunker of reification, which in turn is the most difficult of all to penetrate and destroy”. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 37. 252 Citado por Fiona Bradley, in Surrealismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 11. 182 A imagem de um jovem em meio à multidão com arma em punho, desferindo tiros a esmo, remete a uma anedota sobre o filósofo Diógenes, o Cínico, que em pleno meio- dia, conta-se, ao caminhar em uma feira de Atenas com um lanterna acesa, perguntava aos passantes: “Um homem, onde posso encontrar um homem verdadeiro?”. É preciso visualizar o jovem surrealista com efeito deliberadamente performático, mirando os transeuntes como a lhes provocar uma reação pelo choque da situação inusitada, disparando não projéteis (não há munições), mas proporcionando-lhes, por meio de gestos, uma experiência com sensações, espasmos, surpresas, fúria, risos, vexames, revoltas, quem sabe, até desmaios, de modo a não saírem incólumes do momento. Espera- se assim que a performance surrealista retire o ser de seu estado inerte com relação à vida, depois de uma experiência na qual as sensações remetem à morte. O pânico do CAE nada mais é que uma versão do cínico que indaga seus interlocutores incitando-os a pensar, e uma versão política do ato surrealista de provocar um choque nas pessoas a fim de que despertem para a verdadeira vida das sensações. Durante todo o século XX, nas mais diferentes vertentes, é possível encontrar esse apelo à estética do choque. Antes dos surrealistas, essa já era a atitude do Dadaísmo. Walter Benjamin, no clássico ensaio sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, trata da estética do choque, justamente quando menciona o Dadaísmo: “De espetáculo atraente aos olhos, a obra de arte, com o dadaísmo, fez-se choque. Ela confrontou o espectador ou o ouvinte. Adquiriu um poder traumatizante”.253 O que Benjamin identifica de forma mais evidente nos dadaístas, aparece entre os futuristas e surrealistas. Ambos buscam chocar os observadores nas performances que realizam. O CAE confere aos escândalos, às algazarras e aos choques provocados pelas vanguardas um novo significado, desta vez, deliberadamente político. É nesse sentido que a estética do distúrbio pode ser compreendida como uma micropolítica. Porém, mais do que chocar os indivíduos, a ideia da estética do distúrbio é perturbar a ordem simbólica fortificada (ideológica) dos bunkers, sejam eles materiais, ideacionais, eletrônicos ou virtuais. O que se pretende com isso é liberar espaços-tempos de autonomia, sensibilidades reflexivas, pensamentos críticos. O alvo privilegiado para se atingir tais objetivos não é senão o regime semiótico que flui na cultura dominante de um bunker a outro. 253 Citado por Nicolas Bourriaud, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 34. 183 Perturbar a ordem simbólica dos bunkers, das fortificações sociais, é uma antiga técnica de contestação social. De acordo com o Critical Art Ensemble há dois modelos- chave de distúrbio: o modelo sedentário, que produz contra-espetáculos para rivalizar com as produções simbólicas hegemônicas e dominantes, e o modelo nômade, que busca minar a ordem simbólica com métodos efêmeros e processuais. Ambos correspondem ao que Thompson denomina estética social e mídia tática. Nos dois casos, o que há em comum é o elemento pedagógico.254 Na ação cultural nomádica é possível identificar um tipo performativo orientado por processos que estimulam o diálogo. Este tipo abrange teatro de rua, performances, intervenções moleculares, site specific art, entre outras possibilidades. Um outro tipo de atuação nomádica produz arsenais os mais variados na forma de produtos, imagens, pôsteres, histórias em quadrinhos, vídeos, projeções multimídias, etc., preparados para intervir em áreas específicas. O objetivo almejado com a criação de tais produtos é provocar no observador questionamentos, um certo grau de ceticismo com relação a problemáticas do âmbito social. O termo mídia tática atualiza em um só conceito esses tipos de ação cultural nomádica, adaptáveis e mutantes no plano micropolítico. De acordo com o CAE, na era do supergerenciamento as ações nomádicas são as únicas táticas viáveis por meio das quais qualquer tipo de participação cultural democrática pode ser alcançada.255 Com uma certa liberdade de interpretação, as fórmulas revolucionárias das vanguardas artísticas são assim atualizadas pelo CAE em um outro plano conceitual e pragmático correspondente ao contemporâneo: a utopia representa o maravilhoso tão almejado pelos surrealistas, a atitude cínica, cara aos dadaístas, um meio de injetar ceticismo e provocar o campo da cultura, e por fim, o distúrbio, a investida micropolítica de que se valem os ativistas como meio tático de catalisar super-ações no seio do ordinário, finalmente liberto dos grilhões na forma de crenças ideológicas, dogmas, poderes repressivos e subjetividades capturadas nos sistemas de disciplina e controle. Enquanto tática política ofensiva, o distúrbio, na perspectiva do CAE, traz em seu conceito uma potência guerreira que é direcionada aos poderes, aos saberes, ao Estado, às tendências autoritárias na cultura e aos imperativos predatórios do pancapitalismo. Em determinadas circunstâncias, o distúrbio resulta em choques, rupturas, clivagens, cisões. Nesse sentido, produz-se um distúrbio pelos procedimentos de uma máquina de guerra. O agenciamento máquina de guerra ocupa o espaço sem medir e produz dois tipos de 254 Cf. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 38-39. 255 Cf. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 49. 184 linhas, uma linha de fuga sobre a qual a invenção e a criação se atualizam, e uma linha de destruição que resvala detritos, restos e decomposição. Entre uma e outra, a passagem de uma à outra, não há certeza nem controle, senão a presença imanente do caos. Historicamente, a noção de caos tem seu lugar na resistência artística como aposta desde ao menos o dadaísmo, ainda que apareça em outros termos. As teorias na termodinâmica desenvolvidas no século XX reconhecem que a entropia de um sistema promove sempre, em condições muito variadas, o rearranjo de seus elementos e a reorganização de seu conjunto. Disso se pode concluir que o caos não é necessariamente o contrário da ordem, pois é possível conceber um sistema caótico ou entrópico repleto de organizações complexas, do mesmo modo que as ordens complexas comportam elementos entrópicos que põem em movimento as organizações e dinamizam a vida. Com o desenvolvimento da biologia e da física, a teoria da evolução e a teoria termodinâmica, afirma Ilya Prigogine, o caos adentrou no núcleo da cosmologia atual e passou a ser a noção central para compreender os fenômenos da natureza, da sociedade e do cosmos, a partir de categorias como probabilidade e irreversibilidade.256 “A reconsideração do ‘caos’ leva também a uma nova coerência, a uma ciência que não fala apenas de leis, mas também de eventos, a qual não está condenada a negar o surgimento do novo, que comportaria uma recusa da sua própria atividade criadora”.257 Em termos conceituais e factuais o caos possui um significado ambivalente. Pode ser pensado em sentido criador, mas também destruidor. Caos, portanto, enquanto possibilidade de transformação. Na história da arte-revolta, a aposta dadaísta no caos encontrou novas bases entre os situacionistas. A princípio sem qualquer preocupação com efeitos e fins, torna-se estratégia política dotada de sentido. Debord, nas suas teses sobre a revolução cultural, em 1958, defende a desordem como estímulo da transformação: Os que querem superar, em todos os aspectos, a antiga ordem estabelecida não se podem ater à presente desordem, nem mesmo na esfera da cultura. É preciso lutar sem delongas, e também na cultura, para o aparecimento concreto da ordem movente do futuro. É sua possibilidade, já presente entre nós, que desvaloriza qualquer forma de expressão cultural conhecida. É necessário levar à total destruição todas as formas de pseudocomunicação, a fim de chegar um dia a uma comunicação real direta (em nossa hipótese de utilização de meios culturais superiores: a situação construída). A vitória caberá a quem souber fazer a desordem sem compactuar com ela.258 256 Cf. Ilya Prigogine, As leis do caos, p. 16. 257 Ilya Prigogine, As leis do caos, p. 8. 258 Guy Debord, “Teses sobre a revolução cultural”, in Paola Berenstein Jaques (org.). Apologia da deriva: 185 Desordem provocada pela exposição dos elementos negados ao caos desintegrador, enquanto prefiguração de uma tomada de consistência a partir de eventos desencadeados pelas situações construídas. Ao apresentar a postura antissistemática de Georges Bataille, Bourriaud conclui: “Nessa luta contra o esqueleto arquitetônico, os artistas são precursores: abrem caminho para uma ‘monstruosidade bestial’, a única coisa capaz de nos fazer reaprender a pensar”.259 A aposta na estética do distúrbio como produção de uma máquina de guerra supõe um risco que é inerente a todo jogo. A arte luta com o caos mas para combater outra coisa, que são as opiniões, exatamente as opiniões que pretendem aprisionar o pensamento e a vida com seus valores de verdades absolutas, ou com as convicções petrificadas uma vez por todas. Libertar a vida, é sempre disso que se trata quando a arte se põe a rasgar o reino das opiniões, ideologias, comunicações para trazer um pouco do caos tempestuoso ao mundo. É o que dizem Deleuze e Guattari: Num texto violentamente poético, Lawrence descreve o que a poesia faz: os homens não deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções, suas opiniões; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga até o firmamento, para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca, uma visão que aparece através da fenda, primavera de Wordsworth ou maçã de Cézanne, silhueta de Macbeth ou de Ahab. Então, segue a massa dos imitadores, que remendam o guarda-sol, com uma peça que parece vagamente com a visão; e a massa dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões: comunicação. Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas, operar as necessárias destruições, talvez cada vez maiores, e restituir assim, a seus predecessores, a incomunicável novidade que não mais se podia ver. Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos (que ele invoca em todos os seus votos, de uma certa maneira), que contra os “clichês” da opinião.260 Chamam-se caóides as realidades produzidas em planos que recortam o caos. Por meio da criação de uma zona caóide temporária (a confusão produzida pelo distúrbio), os indivíduos são expostos às velocidades infinitas do caos que atravessa o reino das opiniões. Nesse cenário, o pânico representa um dos efeitos colaterais possíveis da exposição das subjetividades à revelação do caos. Assim, tem-se uma linha composta por choque semiológico, esquizofrenia minimalista taticamente induzida e lapso de escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 72-73 259 Nicolas Bourriaud, in Formas de vida: a arte moderna e a invenção de si, p. 117. 260 Gilles Deleuze e Félix Guattari. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, p. 261-262. 186 pensamento descomprimido. Não à toa, dizem Deleuze e Guattari, é preciso prudência. Prudência que não se confunde com precaução, porque da ordem do acontecimento. Trata-se, em linguagem comum, de assumir os riscos. O CAE não teme surfar no caos. Distúrbio, por tudo o que foi dito, nada mais é do que um dos efeitos provocados pelas pragmáticas culturais de que se podem valer os mais variados produtores, ativistas, artistas e militantes como forma de desarticular poderes, dispositivos, ordenamentos funcionais e ideologias dominantes. Enquanto conceito operativo, adquire consistência na conjunção de duas dimensões aparentemente indiscerníveis que somam quatro elementos: uma dimensão estética, lúdica e utópica, e uma dimensão micropolítica, cínica e tática (guerreira). Imagem 41 – Fator-X: Matriz Conceitual do Distúrbio. Conceito do autor, arte de Sandro Freitas. Considerado uma forma de se concretizar super-ações, o distúrbio tem a potencialidade de se efetuar segundo matrizes micropolíticas variantes (teatro da vida cotidiana, teatro recombinante, teatro eletrônico, resistência eletrônica), que se atualizam conforme o desejo dos praticantes, as intenções envolvidas, os objetivos almejados e a reação desencadeada pelas interações com o público, com as instituições e a cultura mais ampla. Vista em retrospectiva, a estética do distúrbio se desenvolve paralelamente aos movimentos de mídia tática surgidos nos anos 90, prolonga as linhagens performáticas da arte-revolta e se lança com prodigalidade no século XXI. 187 EXPLORAÇÕES EM MÍDIA TÁTICA No campo das artes, o século XX começou com o Futurismo. A transição para o século XXI que, segundo Hobsbawm, coincide com o fim da Guerra Fria e com a queda do Muro de Berlim, viu a ascensão de uma miríade de práticas artísticas inovadoras sobretudo ao assumirem um caráter coletivo e performático. O CAE foi parte integrante desse movimento difuso no campo das artes que se misturou com a política e com a sociedade de forma direta ao longo dos anos 90. O CAE é herdeiro das vanguardas históricas do século XX, mas se faz órfão pois não pretende reproduzir o legado moderno: vai além e supera as ilusões e os valores que mobilizaram as gerações anteriores. Por exemplo, com relação aos vínculos que as vanguardas mantinham com os partidos políticos. O Futurismo e o Surrealismo são exemplos claros das ligações que os movimentos artísticos de vanguarda mantinham com os movimentos políticos no campo institucional. O CAE traça uma via transversal a essa tendência e se afirma enquanto um coletivo autônomo em relação a partidos políticos ou ideologias, assumindo assim uma postura independente. No fim do século XX, a arte revolucionária das vanguardas havia cumprido o seu papel histórico e explorado quase todas as possibilidades técnicas até então desenvolvidas, sobretudo com o impulso renovado dado pelos Situacionistas franceses no campo da arte-revolta. A sociedade do espetáculo, por sua vez, incorporou e domesticou como pôde as estéticas criadas pelos inventores de estilos e expressividades das vanguardas. Segundo uma fórmula consagrada, a resposta à estetização da política sempre foi a politização das artes. Com relação a isso, a saída encontrada pelo CAE foi relacionar-se com a arte mantendo uma movimentação de distanciamento e aproximação, entre adesão e crítica às convenções, regras, instituições e concepções típicas do campo artístico. Fazendo arte ou não, entre o campo artístico e a arena da cultura, o CAE antecipa algumas das maiores tendências do século XXI. O grupo deu origem e forma a maneiras artísticas e estéticas de atuar na cultura que se mostraram à altura de seu tempo. As práticas de intervenção do coletivo por meio tecnológicos, os mais variados, tornaram-se uma de suas marcas distintivas. No entanto, foi necessária uma movimentação internacional para que algumas práticas já em uso adquirissem o estatuto hoje conhecido como Tactical Media. As atividades que ficaram assim conhecidas na virada do milênio repercutiram mesmo antes de terem adquirido um conceito próprio. Na 188 realidade, suas raízes remontam às práticas das vanguardas modernas, e muito embora os dadaístas, futuristas, surrealistas e situacionistas tenham interferido, com suas práticas na dinâmica cultural de uma maneira nova, com o corpo, apelando para escândalos, agitações performáticas e guerrilhas artísticas, tais práticas permaneceram durante todo esse tempo sem qualquer definição conceitual que abarcasse todas elas sob uma só designação. Foi somente na década de 1990, já passando para os anos 2000, que, nas discussões sobre os usos das tecnologias e mídias para efeitos culturais e artísticos com forte teor intervencionista, que o conceito de Tactical Media finalmente veio à tona e passou a ser empregado nos circuitos da resistência cultural. Desde então, sempre que se trata de nomear, caracterizar, distinguir, descrever práticas culturais com forte apelo micropolítico, o termo mídia tática sobrevém. Contexto Histórico O surgimento da mídia tática ocorre na culminância do desenvolvimento das tecnologias da informação e a subsequente explosão comunicacional desencadeada pela internet, período marcado pela guerra contra o terrorismo, pela expansão do capitalismo financeiro à escala global e por uma intensificada implementação das políticas neoliberais nos anos imediatamente após o fim da Guerra Fria. Gradativamente a mídia tática constitui um conjunto de discursos, práticas e estéticas críticas que emergem no interior desses processos, e em resposta a eles. A entrada das sociedade ocidentais na situação pós-industrial e a globalização neoliberal foram acompanhadas pela emergência de um conjunto de práticas artísticas e ativistas mais fluidas, extensivas e potencialmente poderosas do que aquelas até então conhecidas.261 A globalização do capitalismo fez crescer também a resistência a seus imperativos por dentro, e a circulação de meios tecnológicos de comunicação e informação, como a internet e os celulares, permitiu a formação de redes de ativistas para além das fronteiras locais, regionais e nacionais. Durante a década de 1990 um dos lemas das resistências anticapitalistas tornou-se “Pensar globalmente, agir localmente”. As práticas de mídia tática representam em termos artísticos e micropolíticos exatamente essa assertiva da resistência alterglobalização da época. 261 Cf. Rita Raley. Tactical Media. London: University of Minnesota Press, 2009, p. 3. 189 A economia da informação alçada a uma magnitude então inédita produz o que o CAE denomina a inteligência tecnocrática, formada por corpos de especialistas no uso das tecnologias de ponta no campo da comunicação e da informação. Desde a década de 1970 pelo menos, a tecnologia tem sido acompanhada pelos ativistas, produtores culturais e artistas com igual interesse. O desenvolvimento de tecnologias para uso pessoal, como câmeras fotográficas e cinegrafistas amadoras, bem como o empreendimento de rádios comunitárias, provocaram deslocamentos e transformações importantes na produção estética, comunicacional e informacional da cultura de massas. Embora a indústria tenha direcionado as aplicações para propósitos mercadológicos, e os governos, para fins políticos-ideológicos, no campo mais aberto da cultura inúmeros agentes sociais, entre eles, os produtores amadores e os ativistas, alimentaram a imaginação tecnológica, artística e micropolítica com muito empenho e criatividade. Efetivamente, no período pós-guerra algumas linhagens das vanguardas modernas nas artes e na política encontraram-se com toda uma multiplicidade de amadores e profissionais do campo publicitário e jornalístico que ensaiavam apropriações inovadoras das tecnologias da comunicação e informação: movimentos sociais, associações civis, ativistas, artistas, militantes, sindicalistas, repórteres, intelectuais, entre outros agentes sociais. A série é longa e flexível, entretanto a confluência do interesse artístico-estético e do interesse comunicativo-político com as mídias na sociedade pós-industrial promoveu um cenário propenso a uma produção midiática descentralizada, logo apropriada pela resistência em suas redes de produção cultural. O termo Tactical Media começou a circular em 1993, quando um conjunto de grupos europeus e norte-americanos envolvidos com produção de vídeos organizou o evento Next 5 Minutes (N5M) em Amsterdam com o tema Tactical Television. Os tópicos discutidos no evento giravam em torno do uso tático da produção visual, da vídeo cultura, modelos alternativos de produção e distribuição de curtas, documentários amadores, sempre visando a uma produção engajada politicamente. O termo tática aparece na primeira edição do evento inspirada no trabalho de Michel de Certeau (A invenção do cotidiano), direcionado especificamente à televisão.262 Outros produtores culturais estavam experimentando no mesmo período mídias diferentes para intervir na cultura e essa tendência repercutiu no escopo da discussão, que 262 Cf. Michel de Certeau. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 46-48, 97- 102. 190 logo se abriu para abranger toda sorte de mídias, de tal maneira que, nos anos de 1996 e 1999, o tema do Next 5 Minutes foi diretamente Tactical Media, direcionado às mídias eletrônicas então vigentes como rádio, TV e internet.263 Os organizadores do N5M propuseram uma definição básica da terminologia com a seguinte fórmula: O termo “mídia tática” se refere à utilização crítica e à teorização de práticas de mídia que recorrem a todas as formas, antigas e novas, lúcidas e sofisticadas, dos media para a realização de diversos objetivos não comerciais, e que impulsionam todos os tipos de questões políticas potencialmente subversivas.264 Definição Ativista Geralmente referido a práticas muito diversas como engenharia reversa, hacktivismo, robótica contestatária, software cooperativo, tecnologia com código livre, o termo mídia tática tem um sentido aberto e maleável que pode ser aplicado a vários processos, com ou sem uso de aparatos tecnológicos. Em um arquivo que atesta a origem do conceito, The ABC of Tactical Media, a ideia central é assim apresentada por David Garcia e Geert Lovink, em 1997: Mídia tática acontece quando as mídias baratas “faça você mesmo”, possibilitadas pela revolução na eletrônica de consumo e pelas formas expandidas de distribuição (do acesso público à internet) são exploradas por grupos e indivíduos que se sentem lesados ou excluídos pela cultura mais ampla.265 A mídia tática não se limita a relatar eventos. O princípio do it yourself (faça você mesmo) oriundo do movimento punk supõe a participação efetiva dos praticantes e produtores que se valem da mídia tática, e isso, mais do que qualquer coisa, os separa da 263 Cf. CAE. Digital resistance: explorations in tactical media, p. 4-5. 264 “The term ‘tactical media’ refers to a critical usage and theorization practices that draw on all forms of old and new, both lucid and sophisticated media, for achieving a variety of specific noncommercial goals and pushing all kinds of potentially subversive political issues”. Citado por CAE, in Digital Resistance, p. 5. 265 “Tactical Media are what happens when the cheap ‘do it yourself’ media, made possible by the revolution in consumer electronics and expanded forms of distribution (from public access cable to the internet) are exploited by groups and individuals who feel aggrieved by or excluded from the wider culture. Tactical media do not just report events, as they are never impartial they always participate and it is this that more than anything separates them from mainstream media”. David Garcia e Geert Lovink, The ABC of Tactical Media. Texto completo disponível no seguinte endereço: https://www.nettime.org/Lists-Archives/nettime- l-9705/msg00096.html Acesso 4 de agosto de 2019. 191 mídia tradicional. Na realidade, o termo mídia tem a função de valorizar os meios colocados em prática pelos midiativistas, que se valem de uma miríade de processos para atingirem seus fins, sejam eles culturais ou políticos. No mesmo artigo, The ABC of Tactical Media, isso fica muito claro. Após tratar os praticantes de mídia tática como ativistas, “nomadic media warriors”, hackers, rappers das ruas, existe uma passagem relevadora que às vezes passa despercebida: as atividades de mídia tática colocam em ação formas híbridas, performativas e pragmáticas, sempre provisórias, e estabelecem conexões temporárias instaladas no “aqui e agora” de situações polimórficas, seja recorrendo a aparatos eletrônicos, como TVs, novas e velhas mídias (o texto é de 1997), mas que podem ser também “teatro, demonstrações de rua, filmes experimentais, literatura, fotografia”. A mídia que aparece na assinatura do conceito deve ser entendida, portanto, como um meio qualquer usado de forma tática, ou seja, para efeitos de resistência micropolítica. Eric Kluitenberg identifica o mesmo sentido incorporado na prática do CAE: O Critical Art Ensemble entende a Mídia Tática primeiro como uma forma de intervencionismo digital. No entanto, eles não querem limitar o escopo da Mídia Tática à tecnologia digital: “‘digital’ para o CAE significa que a mídia tática é sobre copiar, re-combinar e re-apresentar, e não que isso só pode ser feito com a tecnologia digital”. Para o Critical Art Ensemble, a prática política emergente da Mídia Tática existe principalmente como a apropriação de qualquer tipo de meio, qualquer forma de conhecimento ou produção visual, e qualquer processo político ou social, que desafie hierarquias e falsas dicotomias à medida que avança.266 Nesse sentido, mídia tática é mais do que simplesmente ativismo tecnológico, como poderia dar a entender uma primeira aproximação, e vai além do intervencionismo técnico: o termo, no design elaborado pelos organizadores do N5M, designa uma estética aberta e, portanto, amorfa ou mutante, que serve como uma pragmática para a crítica política. A fórmula-chave que condensa a mídia tática pode ser assim enunciada: amorfa no design e mutante nas formas encarnadas que o conceito abarca. Dada a abrangência de 266 “Critical Art Ensemble understand Tactical Media first as a form of digital interventionism. However, they do not want to limit the scope of Tactical Media to digital technology: ‘By ‘digital’ CAE means that tactical media is about copying, re-combining, and re-presenting, and not that it can only be done with digital technology’. For Critical Art Ensemble the emerging political practice of Tactical Media exists foremost as the appropriation of any kind of medium, any form of knowledge or visual production, and any social or political process, challenging hierarchies and false dichotomies as it goes along”. Eric Kluitenberg. Legacies of Tactical Media. Amsterdam: Institute of Network Cultures, 2011, p. 13. Cf. CAE, Digital Resistance, p. 7. 192 sentido, fica difícil definir a expressão para algum tipo de prática específica. Na realidade, essa é uma das vantagens da definição. A inovação promovida pelas recentes gerações de produtores culturais colocou uma nova dificuldade da qual os ativistas retiram alguma vantagem. Ao imergir as práticas de intervenção na esfera da vida cotidiana, de formas muito variadas, os praticantes de mídia tática dificilmente se enquadram inteiramente nos estereótipos de artistas ou de militantes, o que, por si só, lhes confere maior liberdade de ação. Por um lado, os midiativistas não se consideram artistas no sentido tradicional do termo, pois não produzem necessariamente produtos vendáveis, e por outro, também não se apresentam como militantes no sentido histórico clássico, pois se recusam a permanecer no embate racional reativo. Ao invés disso, lançam mão de outros meios de intervenção direta no campo cultural sem defenderem uma ideologia política específica.267 O ativismo paradigmático da mídia tática desenvolve uma nova postura. Nele, o ativista assume as atribuições de um inventor, ou de um experimentador, porque também ele precisa escapar, para que sua ação seja eficaz, à cadeia de hábitos e imitações do ambiente que codifica o espaço da ação política. Em geral, no ativismo contemporâneo da arte-revolta, a dimensão contestatária e guerreira transforma-se em força-invenção, em potência de criação e realização dos agenciamentos antropotécnicos, no sentido ao mesmo tempo organizacional e midiático aqui aplicado. O ativista deixa de ser um condutor ideológico, como a noção de “intelectual orgânico” (de Gramsci) poder aludir, e torna-se micromecânico, aquele que agencia os mais distintos elementos maquínicos, sejam discursivos, tecnológicos, imagéticos, antropológicos, estéticos em um campo micropolítico transversal, heterogêneo e aberto às multiplicidades recombináveis. Para o ativista, o experimentador e o criador, a crítica e a criação, a destruição e a invenção, o ceticismo e a aposta coexistem e se retroalimentam reciprocamente; e se o movimento que promove é prospectivo, sempre ocorre em função de algo novo, positivo. Isso significa que a crítica e a destruição não se perdem no vazio: são momentos de uma experimentação e de uma criação mais fundamentais. Assim, a postura ética do ativista, por definição, pro-move a resistência inserindo uma ação inovadora no campo de atuação. Ao abordar os movimentos políticos nas sociedades neoliberais, Lazzarato descreve os “movimentos pós-socialistas” que emergem em decorrência de mudanças políticas, econômicas e tecnológicas no contexto da produção pós-fordista.268 267 Cf. CAE, Digital Resistance, p. 3-4. 268 Maurizio Lazzarato, “Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas”, in As revoluções do 193 Imagem 42 – Imagem de autoria do CAE, de 1999, que ilustra a introdução do livro Digital Resistance: Explorations in Tactical Media, publicado em 2001.269 O modo de produção taylorista, marcado pela flexibilização das funções e pelo trabalho cognitivo e social (mais do que propriamente material e fabril), gera no campo das resistências o que pode ser considerado seu correlato, dado o desenvolvimento das condições sociais e tecnológicas até então incipientes. A multiplicação de agendas micropolíticas, na sequência do que Maio de 68 tornou visível, e o desenvolvimento tecnológico atingido nas sociedades afluentes do capitalismo, fomentaram uma gama de novas formas de organização e atuação no espaço público. Municiados de pautas identitárias, de gênero, étnicas, anticoloniais, ecológicas e minoritárias, os ativismos que as décadas recentes viram surgir, apostam, cada vez mais de forma explícita, nas multiplicidades micropolíticas e nas mídias táticas. O fato é que a experiência social e a capitalismo. 269 CAE, Digital Resistance, p. 2. 194 comunicação em massa decentralizada pelas mídias miniaturizadas e de fácil acesso contribuem para a multiplicação dos grupos e das coalizões formadas por dissidentes e recalcitrantes em vários campos culturais, e por isso a importância dos elementos tecnológicos e organizacionais não pode ser minimizada quando se pretende analisar os movimentos sociais pós-socialistas. Não raro, quem se envolve com mídia tática possui características que faz com que se assemelhe a artistas, cientistas, técnicos, artesãos, teóricos, ativistas, etc. Um praticante de mídia tática é, portanto, um agente híbrido em uma cultura encarada como campo de experimentação, e portanto, prestes a ser recombinada. Com tantos aparelhos eletrônicos domésticos à disposição, multiplicam-se possíveis formas de ação, comunicação e intervenção de acordo com a criatividade individual e coletiva. A sociedade do conhecimento, que gera seus corpos de especialistas nas universidades e nas corporações, também abre a cultura para a experimentação tecnológica dos mais diversos produtores culturais, amadores, ativistas e inventores em geral. O que poderia significar uma desvantagem, em sociedades submetidas aos imperativos neoliberais de flexibilização, produtividade e inovação, a maleabilidade implícita na definição e na prática da mídia tática demonstra todo o seu potencial na resistência, que, para ser eficaz em seus prospectos, precisa ser moldável aos contextos onde aplica suas táticas. Lazzarato, em seu livro As revoluções do capitalismo, ao tratar da resistência e dos movimentos pós-socialistas, assim denominados os movimentos micropolíticos herdeiros do Maio de 68, identifica uma relação histórica entre o modo de produção flexível tipicamente neoliberal e o surgimento de novos modos de resistência: Às desregulações da economia, do trabalho e dos direitos sociais, contrapõe-se uma desregulamentação do conflito, que persegue a organização do poder até as redes de comunicação, nas máquinas de expressão (com a interrupção das emissões de televisão, apropriação de espaços publicitários, intervenções nas redações de jornais).270 Assim como o modo de produção pós-fordista incorporou as tecnologias da inteligência na idade informática, desestruturando as relações de produção até então predominantes, sucede com as resistências no campo estratégico e tático. Os modos codificados como a resistência típica do capitalismo fordista praticava entram em choque com as realidades econômico-políticas que o neoliberalismo traz consigo. Ao mesmo 270 Maurizio Lazzarato, As revoluções do capitalismo, p. 221. 195 tempo em que se diversificavam em multiplicidades micropolíticas, as resistências inovavam nos meios de ação, ora redirecionando os usos tecnológicos à disposição, ora inventando formas disruptivas de intervenção no espaço social, cultural e político. No seio da cultura-revolta do norte ocidental forma-se, assim, pouco a pouco, uma resistência antropotécnica correspondente ao nível tecnológico nas sociedades de controle, e que alimenta as práticas dos mais distintos coletivos com uma imaginação tática, ao mesmo tempo social, tecnológica e política. A vaga definição da mídia tática expressa a potência de metamorfose das práticas que podem se realizar sob sua insígnia. O certo é que uma das únicas funções que talvez permita sintetizar em uma categoria o sentido da mídia tática talvez seja o distúrbio. Ao menos esta é a compreensão de Rita Raley: Se houvesse uma função ou lógica crítica que produzisse um senso de unidade categórica, seria o distúrbio [disturbance]. Em sua articulação mais expansiva, a mídia tática significa a intervenção e a perturbação [disruption] de um regime semiótico dominante, a criação temporária de uma situação na qual signos, mensagens e narrativas são colocadas em jogo e o pensamento crítico torna-se possível. A mídia tática opera no campo do simbólico, o lugar do poder na sociedade pós-industrial.271 Segundo Kluitenberg, Raley discute a mídia tática engajada como uma micropolítica do distúrbio, com intervenção e educação.272 Muito provavelmente por isso o Critical Art Ensemble tenha adotado para si, como expressão definidora do próprio grupo, a alcunha de praticante de mídia tática. Ademais, enquanto praticante de mídia tática, o CAE tornou-se uma referência das mais conhecidas no campo da resistência cultural dos Estados Unidos e do mundo, e isso repercutiu na produção teórica também. Como isso aconteceu é o que será tratado a seguir. 271 “If there were one function or critical rationale that would produce a sense of categorical unity, it would be disturbance. In its most expansive articulation, tactical media signifies the intervention and disruption of a dominant semiotic regime, the temporary creation of a situation in which signs, messages, and narratives are set into play and critical thinking becomes possible. Tactical media operates in the field of the symbolic, the site of power in the postindustrial society”. Rita Raley, Tactical Media, p. 7. 272 “Os projetos de Mídia Tática que Raley discute se engajam em micropolíticas do distúrbio, intervenção e educação” (“The Tactical Media projects Raley discusses engage in a micropolitics of disruption, intervention, and education”). Cf. Eric Kluitenberg, Legacies of Tactical Media, p. 22. 196 Praticando Mídia Tática O Critical Art Ensemble funda uma nova modalidade da arte-revolta que não faz distinção entre arte, ciência, filosofia, tecnologia, política e cultura. Na realidade, foi necessário inventar os meios de produção da arte-revolta com a experimentação dos meios tecnológicos à disposição, e até mesmo criá-los, a fim de superar as mídias humanistas (textuais, escritas) e os meios espetaculares de produção cultural. Pois assim, no contexto das sociedades do conhecimento e da informação, a revolta artística, estética e micropolítica tem chances de interferir e modificar o campo de atuação onde incidem suas intervenções. A expressão Tactical Media aparece pela primeira vez na trajetória do Critical Art Ensemble em uma entrevista realizada por Jon McKenzie e Rebecca Schneider em 1999 (publicada posteriormente em 2000), quando o CAE se define categoricamente como um coletivo de artistas de mídia tática.273 A essa altura de sua trajetória, o coletivo tinha um histórico de 12 anos de existência, vasta produção cultural e ampla experiência no campo das resistências. Depois de organização de eventos, happenings, agit props (agitações e propaganda), exposições, performances, ativismo nos movimentos sociais, o grupo trabalhava sobre grandes temas como resistência cultural e desobediência civil eletrônica e havia se projetado na cena internacional como uma neovanguarda da arte-revolta na idade da informática. Antes disso, o conceito mídia tática não aparece. No livro Distúrbio Eletrônico, de 1994, encontra-se a expressão “mídia nômade de resistência” no contexto da discussão sobre a estética do distúrbio, justamente no capítulo intitulado Vídeo e Resistência. Durante anos, a CAE elabora suas matrizes performativas como o Teatro Recombinante e o Teatro Eletrônico nos quais o elemento tecnológico desempenha um papel importante e sempre orientado a provocar distúrbios nas zonas de poder autoritário no interior da cultura. O distúrbio inclusive se consolidou como um conceito central para a atividade do coletivo desde muito cedo. Entretanto, a noção de mídia tática começa a fazer parte de seu repertório teórico e pragmático aos poucos, com o passar do tempo, quando o grupo expande mais contatos nas redes de resistência, nas interseções estabelecidas entre norte-americanos e europeus. 273 Cf. Jon McKenzie e Rebecca Schneider. Tactical Media Practitioners: an interview. The Drama Review, 44, 4 (T168). New York: University and the Massachusetts Institute of Technology Winter, 2000. 197 A mídia tática tornou-se então um elemento definidor, empírico e conceitual do CAE, e em 2001, o livro Digital Resistance, publicado pela editora anarquista norte- americana Autonomedia, trouxe em seu subtítulo a expressão: Explorations in Tactical Media. A essa altura, o CAE se configura como uma neovanguarda que expande o campo da arte-revolta para as mídias táticas. Com a decadência das utopias revolucionárias, as micropolíticas da resistência cultural vêm ocupar o lugar de destaque onde antes os sindicatos e partidos políticos desempenhavam a função de agenciar as ações coletivas da resistência. A conceituação das práticas de mídia tática caiu como uma luva para o CAE. A criatividade do grupo, expressa em seus múltiplos meios de produção culturais e que de certa forma faz escapar a definições rigorosas, encontrou as palavras mais adequadas para sintetizar em uma fórmula sua práxis cultural. Uma micropolítica de novo tipo: a mídia como arte, a arte como meio e a tática como prática de resistência. Nos termos do Critical Art Ensemble: Mídia Tática é situacional, efêmera e auto-finalizadora. Ela encoraja o uso de qualquer mídia que se engaje em um contexto sociopolítico específico a fim de criar intervenções moleculares e choques semióticos que contribuam para a negação da crescente intensificação da cultura autoritária.274 As práticas da mídia tática valem-se de intervenção e distúrbios em vários âmbitos culturais ao criar situações temporárias nas quais signos, mensagens, tecnologias e narrativas são recombinadas de forma a tornar o pensamento crítico possível. O propósito das intervenções midiatáticas não é impor uma mensagem pronta e definitiva. Não se pretende ser um apelo à verdade última. A intenção é provocar e revelar, desfamiliarizar e criticar aspectos até então impensados, imperceptíveis, invisibilizados. O campo de atuação por excelência de tais táticas torna-se a cultura. De acordo com o CAE, Cultura é uma palavra diplomática para a ordem simbólica ou para regimes semióticos. O período militar da globalização (colonização) está fundamentalmente terminado. Agora, a dominação é exercida predominantemente por mecanismos de mercado global interconectados com um aparato global de comunicação e informação. 274 “Tactical Media is situational, ephemeral, and self-terminating. It encourages the use of any media that will engage a particular sociopolitical context in order to create molecular interventions and semiotic shocks that contribute to the negation of the rising intensity of authoritarian culture”. CAE, in Nato Thompson e Gregory Sholette (Ed.). The Interventionists: user’s manual for the creative disruption of everyday life. London: MIT Press, 2004, p. 115. 198 Qualquer tipo de produção da resistência com relação à representação intervém por meio de engenharia reversa nos displays, software e hardware deste aparato.275 Se a ordem simbólica participa dos processos de dominação e corroboram com a instauração de injustiças e autoritarismos nas sociedades atuais, aí está um dos alvos privilegiados pelos midiativistas. Não é à toa que a mídia tática intervém nos regimes semióticos constitutivos das ordens simbólicas do poder nas sociedades pós-industriais. A resistência cultural promove um campo fecundo para a proliferação de intervenções táticas. Os midiativistas desafiam regimes semióticos dominantes impondo-lhes um tratamento crítico por meio de um processo de reconfiguração no qual operam signos, discursos e ações alternativas a um dado âmbito. Esse processo de intervenção pode ser tratado como uma espécie de engenharia reversa que atua nos softwares e hardwares dos mais diversos aparatos, sejam culturais, sociais, econômicos, políticos, arquitetônicos, tecnológicos, virtuais, digitais, etc. Por engenharia reversa deve-se entender os procedimentos de investigação e análise que tem por objetivo descobrir como um dado processo tecnológico ocorre, quais são seus componentes estruturais, suas funções e seus modos operacionais de produzir determinados efeitos. Enquanto a engenharia comumente produz a tecnologia a começar por suas bases estruturais mais elementares até chegar ao resultado final, a engenharia reversa toma uma tecnologia pronta e se põe a desmontá-la para analisar sua forma de funcionamento a partir do seu estado finalizado. Somente conhecendo como um processo funciona é que se torna possível modificá-lo tecnologicamente, intervindo no modo como ele opera em seus meios e fins. A mídia tática, que com frequência pressupõe esse trabalho de reversão, é um meio de intervir em uma realidade situada no espaço-tempo social a fim de recombiná-la de maneira crítica. Nas situações podem se dar meios racionais e não-racionais de interação, e ambos podem ser valiosos a depender da proposta. O que importa é o caráter necessariamente experimental dos processos, que deixa em aberto os resultados e carrega consigo o aspecto lúdico do jogo, pois não há desfecho inteiramente previsível. O risco, que para 275 “Culture is a diplomatic word for the symbolic order or for semiotic regimes. The military period of globalization (colonization) is fundamentally over. Now domination is predominantly exercised through global market mechanisms interconnected with a global communications and information apparatus. Any type of resistant production of representation intervenes and reverse-engineers the displays, software, and hardware of this apparatus”. CAE, in Jon McKenzie and Rebecca Schneider. Tactical Media Practitioners: an interview. The Drama Review, p. 137. 199 alguns pode ser um empecilho a ser evitado, é na realidade encarado pelo CAE como inerente ao processo e uma aposta que é preciso fazer, sob pena de fechar a experiência para os acontecimentos e devires. Os intervencionistas, ainda que possam exercer um papel pedagógico, estão mais para instigadores do processo, e qualquer discrepância entre produtores e público se dilui nas interações gerativas de experiências extracotidianas, o que por si só estimula questionamentos, reflexões e mudanças de perspectivas. O CAE recomenda aos produtores culturais, artistas e ativistas, a aproximação com a vida cotidiana das pessoas. Se a tática empregada adquire as características de uma situação pedagógica, então nada melhor do que a experiência dos indivíduos nessas situações. Sejam os temas como exploração, preconceito, ciência, tecnologia, os elementos que constituem os fenômenos, os discursos, as práticas incorporadas sem reflexão, podem ser a matéria-prima a ser trabalhada inventivamente e de forma crítica. O Critical Art Ensemble tem insistido que a mídia tática põe em prática distintas formas de intervenção a fim de provocar distúrbios, sempre com uma abordagem crítica: performances e ações que precisam ser reconfiguradas constantemente em resposta às demandas sociais locais. A mídia tática provê sua capacidade de resistência à arte-espetáculo (que retêm a passividade das pessoas) por ser forjada no estreito contato dos ativistas com o campo onde irão atuar. Existe a preocupação de buscar uma correspondência entre as demandas locais e os meios táticos que irão operar in loco. Por isso, não raro, a mídia tática tem sido associada às práticas da site-specific art, que a precedeu em algumas décadas. Essa relação estreita entre o meio de intervenção e o campo de atuação exige, por parte dos intervencionistas, uma atitude investigativa, inquiridora. Destoa das práticas de mídia tática elaborar uma forma de intervenção sem conhecer minimamente as características do lugar considerado. No caso de atuações em campos culturais, por sua própria natureza social, a relação com o alvo pressupõe algo semelhante a uma pesquisa de campo antropológica. A propósito, o teor antropológico das artes coletivas, das práticas sociais, das intervenções de mídia tática, já foi identificado por alguns críticos da arte contemporânea, como Hal Foster, que denominou o fenômeno de “virada etnográfica” no campo das artes.276 276 Cf. Hal Foster, “O artista como etnógrafo”, in O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 159 ss. 200 A esse respeito, o CAE apresenta algumas ideias mestras que orientam as etapas do trabalho criativo que empreende. De um modo geral, o CAE escolhe um assunto, coloca-o em um pretendido contexto, relaciona com uma audiência particular e, com base nesses elementos, tenta construir um trabalho significativo em relação ao contexto selecionado. O CAE começa, portanto, questionando um dado território, ou um estrato social, para melhor compreendê-lo. Pretende, assim, adequar os meios de ação à especificidade do lugar da intervenção. De forma crítica, então, tenta expor um estrato ideológico escondido ou transparente, que por algum motivo não possui visibilidade, ou não é objeto para o discurso onde se faz realidade.277 Com este procedimento, o coletivo atua em contextos culturais, públicos, educacionais, acadêmicos e artísticos, com um trabalho que se esmera em desmistificar discursos, práticas, saberes, ideologias e instituições que operam nas sociedades capitalistas seus programas culturais por vezes economicistas, impositivos e autoritários. O elemento tático das ações refere-se também a um processo relacional das práticas de intervenção e distúrbio levadas a termo pelos produtores culturais do CAE. Para os defensores do status quo, a resistência pode não parecer um processo amigável pois na realidade pressupõe, em suas formas de combate inventivos, algo como uma violência simbólica, que no entanto, não é nem deve ser um fim em si mesmo. Espera-se com a mídia tática manter campos que já existem abertos e, no melhor dos casos, expandir os espaços de liberdade (no pensar, no agir, no sentir e coexistir) contribuindo para prolongá-los no tempo. Os praticantes de mídia tática promovem processos sociais participativos por meio dos quais a percepção sobre o sistema social e os papeis que as pessoas e as instituições desempenham nele se modificam, sofrem alterações com relação à percepção normalizada dos mesmos fenômenos considerados. Trata-se de colocar em xeque – para usar a expressão enxadrista – os códigos do jogo social, econômico, institucional, perceptivo e discursivo, em primeiro lugar no que eles têm de automatizados e não refletidos, e ademais, no que possuem de potencialmente autoritário e invisibilizado, quando os códigos até então transparentes tornam-se opacos e perceptíveis aos participantes. Nesse sentido, as práticas culturais participativas são o coração das performances. 277 CAE, in Jon McKenzie and Rebecca Schneider. Tactical Media Practitioners: an interview. The Drama Review, p. 136-138. 201 O CAE dá ênfase aos eventos diretos com a noção experiencial, inventando formas de envolver as pessoas em situações explicitamente experienciais nas quais os participantes percebem, vivenciam e comprovam por si mesmos que as ideias, os discursos, os valores, os costumes e os poderes (nem sempre perceptíveis) produzem efeitos concretos e práticos. E mais do que isso, que podem ser modificados desde as ínfimas ações cotidianas. Mas se a situação extracotidiana vivenciada assim promove uma sensação de perplexidade nos participantes, produz ao mesmo tempo determinadas condições potencialmente emancipatórias. A socialidade e a cooperação entre os agentes dessa experiência coletiva geram novas condições de possibilidade facilitadoras para a emergência de um campo existencial outro: pensar o não-pensado, perceber o não- percebido, sentir diferentemente as circunstâncias, o acontecimento, o devir. Todo esse trabalho incide nos processos de subjetivação que a intervenção molecular possibilita, enquanto modalidade de mídia tática participativa. Intervenção Molecular No início dos anos 2000, com o lançamento do quarto livro do grupo, o CAE começa a trabalhar com um outro conceito, desta vez mais abrangente. Com a experiência adquirida ao longo de sua trajetória, as formas de expressão se diversificam e os conceitos igualmente se multiplicam. Depois do teatro recombinante, do teatro eletrônico e da estética do distúrbio, chega a vez das chamadas Intervenções Moleculares,278 que abarcam uma diversidade imensa de possíveis formas de ação no campo da cultura e são assim denominadas pois tomam como cenário a vida cotidiana dos indivíduos para projetar na arena da cultura, problemáticas de interesse público. Após anos focados no complexo tecnopolítico da internet, o CAE direciona suas investigações em torno das biotecnologias. As campanhas sobre o poder materializado no complexo biotecnológico promoveram uma metamorfose na abordagem do coletivo. Em vez de buscar a estética da confusão ou do pânico, uma forma de intervenção molecular com caráter pedagógico. No apêndice do livro The Molecular Invasion, publicado em 2002, o CAE faz uma retrospectiva de suas intervenções na esfera pública: 278 CAE, Digital Resistance, p. 6 e 10. 202 Nos últimos seis anos, o trabalho do Critical Art Ensemble se concentrou no vasto campo da biotecnologia. O grupo tentou identificar as questões problemáticas centrais, inspirar e enfocar o discurso público em um esforço para explorar o atual vácuo de autoridade. Enquanto praticante de mídia tática, o grupo concluiu cinco grandes projetos de teatro participativo que examinam aspectos particulares da biotecnologia. Esses projetos identificam áreas problemáticas extremas no campo, na representação associada a ele e nas políticas sociais que orientam o desenvolvimento e a implantação de suas aplicações. Esses trabalhos levantam questões que concernem a (1) vestígios eugênicos em tecnologia de reprodução assistida (Flesh Machine); (2) intervenção médica extrema na reprodução e a morte da sexualidade (Society for Reproductive Anachronisms); (3) aquisição de materiais biogenéticos (Intelligent Sperm On-line); (4) a retórica utópica que gira em torno do Projeto Genoma Humano (Cult of the New Eve); e (5) manejo de recursos ambientais transgênicos e biológicos e sua relação com a ideologia do medo (GenTerra). Por meio de atividades coletivas, os membros esperam substituir um medo geral por ferramentas críticas e substituir a impotência pública por ferramentas de ação direta.279 Tem-se aqui o plano geral das campanhas desenvolvidas e colocadas em ação pelo coletivo ao longo dos anos. Em suas performances, o CAE cria várias identidades performativas. Ora aparece como um grupo de cientistas, ora se reveste da identidade visual de uma corporação. Para representar o maquinário de alta tecnologia, o coletivo usa com criatividade equipamentos de laboratório de ensino médio, suprimentos domésticos e mantimentos. Essa escolha é baseada nas limitações econômicas do grupo, e reflete sua opção pelo nomadismo, mas também reduz a sofisticação científica a um nível de compreensão mais acessível ao público, que pode então entender e se envolver com as performances. O estilo lúdico das performances, no entanto, é muito diferente dos conteúdos presentes nos livros e manifestos publicados pelo coletivo, que têm um foco analítico e crítico. 279 “For the past six years Critical Art Ensemble’s work has focused on the vast field of biotechnology. The group has tried to identify key problematic issues and inspire and focus public discourse in an effort to exploit the current vacuum of authority. As tactical mediaists, the group has completed five major participatory theater projects that examine particular aspects of biotechnology. These projects pinpoint extreme problem areas in the field, in associated representation, and in the social policies guiding application development and deployment. These works raise questions concerning (1) eugenic traces in assisted reproductive technology (Flesh Machine); (2) extreme medical intervention in reproduction and the death of sexuality (Society for Reproductive Anachronisms); (3) flesh materials acquisition (Intelligent Sperm On-line); (4) the utopian rhetoric spinning off of the Human Genome Project (Cult of the New Eve); and (5) transgenics and biological environmental resource management and its relationship to the ideology of fear (GenTerra). Through the collective’s activity, members hope to replace a general fear with critical tools and replace public impotence with tools for direct action”. CAE. The Molecular Invasion. New York: Autonomedia, 2002, p. 139-140. 203 Imagem 43 – Vista da instalação Cult of the New Eve, Museu de Arte Contemporânea, Toulouse, França, 2000. Este projeto examinou a apropriação da retórica cristã por especialistas industriais e científicos, a fim de persuadir o público sobre a natureza utópica da nova biotecnologia. O CAE / Vanouse / Wilding moveu essa retórica do contexto das constelações socioeconômicas mais legítimas e autorizadas e colocou-a no contexto da menos legítima de todas as constelações sociais – um culto – para dar ao público uma nova percepção desta tensão peculiar de representação social.280 280 Cf. CAE, Disturbances, p. 266. Descrição disponível na página do CAE: http://critical-art.net/cult-of-the-new-eve-1999-2000-cae-paul-vanouse-and-faith-wilding/ Acesso 4 de agosto de 2019. 204 Um trabalho como esse que exige muita pesquisa e determinação para fazê-lo. As intervenções são dotadas de conteúdo pedagógico (disponibilizado ao público participante), tratamento conceitual, sofisticação epistemológica e desenvoltura educacional. Além disso, as intervenções possuem um acabamento estético igualmente atraente, o que requer criatividade, competência técnica para trabalhar design, semiótica, materiais científicos e tecnologias, tudo junto. Como se não bastasse, os resultados das pesquisas são publicados na forma de livros. Nesses casos, trata-se de um tipo de prática social e cultural engajada politicamente, que se insinua na esfera pública valendo-se das vantagens estéticas para captar a atenção das pessoas, das instituições, do público. O que se pretende é colocar uma problemática, que pode ser política, social, cultural, ética ou ecológica, para ser pensada publicamente. Por exemplo, a questão da eugenia com relação às biotecnologias de manipulação de DNAs. Para fazer o discurso emergir de forma qualificada, com conhecimento, é necessário pesquisar os discursos científicos da área, os dispositivos tecnológicos empregados, as corporações envolvidas no processo de financiamento e comércio dos produtos, e por trás de tudo, investigar os interesses governamentais, econômicos e políticos envolvidos. Paralelamente, é preciso ainda intuir, criar, maquinar uma matriz performativa adequada ao caso, que seja economicamente viável, com estética atraente, conteúdo pedagógico e efeito performático. Neste período, o CAE atinge o ápice de sua inventividade enquanto grupo de criação e estudos integrados. Considerando o período relatado, foram realizadas pelo menos cinco campanhas (com diversas exibições, intervenções e performances) e publicados três livros: Flesh Machine, Digital Resistance e The Molecular Invasion. Momento fecundo no qual entra em curso uma mudança importante na concepção e na prática que o CAE começa a nutrir em relação a seu papel na arena pública. A chamada para a estética do distúrbio como prática micropolítica de resistência metamorfoseia-se em bases mais dialógicas do que as sugestões do livro Distúrbio Eletrônico davam a entender. O lado experimental do grupo junto à resistência cultural e ao público surtiu efeito sobre a subjetividade de seus integrantes e uma nova mutação se deu. A partir de então, efetivamente, passa a existir uma dimensão educacional nos processos de intervenção cultural colocados em prática pelo CAE: “Participação, processo, pedagogia e experimentação são os componentes chaves para uma 205 recombinação adicional que vem do teatro da vida cotidiana”.281 Não há como dissociar esse aspecto educacional das experiências de Steve Kurtz como professor de artes na Universidade de Buffalo em Nova York.282 Imagem 44 – Visão da performance Cult of the New Eve, no saguão do Hospital St. Clara, em Rotterdam, 2000. Os participantes acessam informações do projeto e conversam com os artistas (de vermelho) sobre questões relacionadas às biotecnologias. Conceitualmente, as intervenções moleculares colocadas em práticas então são modelos de participação cultural estabelecidos em um espaço pedagógico efêmero. Em uma zona espaço-temporal momentânea, a matriz performativa criada pelos ativistas promove a interação do público com os produtores por meio de diálogos temáticos. A situação geralmente é pensada como ocasião para problematizar algum assunto, e as relações extracotidianas estabelecidas pelos participantes abarcam algum tipo de reflexão crítica, o que constitui um espaço de aprendizado. Há um diferencial importante com relação a outras práticas do coletivo, que faz questão de esclarecer: 281 “Participation, process, pedagogy, and experimentation are the keys components for further recombination that come from the theater of everyday life”. CAE, Digital Resistance, p. 88. 282 Cf. Gregory Sholette. Dark Matter: art and politics in the age of enterprise culture. London: Plutopress, 2011, p. 139. 206 Aqui é onde fazemos uma distinção entre o político e o pedagógico. Algumas atividades, embora sejam performadas, não são performativas. São atividades que intervêm diretamente na distribuição do poder em nível macro. Uma forma estratégica é a construção e a reforma políticas; uma forma tática é a desobediência civil eletrônica. Esses tipos de atividades o CAE considera políticas. A outra forma de intervenção consiste na mudança de percepções por meio do intercâmbio representacional. Os praticantes da mídia tática iniciam processos sociais que ajudam as pessoas a perceber um sistema social e seus papéis nele de uma maneira diferente da percepção normalizada desses fenômenos. Esse tipo de ação é pedagógica, e a performatividade desempenha um papel fundamental para que esses processos funcionem.283 Em determinados casos, trata-se realmente de uma situação pedagógica não institucional e portanto aberta, dialógica e efêmera, muito distinta do tipo de educação bancária, para usar uma expressão de Paulo Freire, citado pelo CAE.284 A construção de um público temporário, por meio de um campo performático aberto às interações, pretende possibilitar relações horizontais que efetuam uma espécie de pedagogia produtiva, ao invés de se confundir com didatismo unilateral que algumas artes reativas por vezes tentam empreender para convencer as pessoas com ideias prontas. Nas suas pesquisas, o CAE percebe que os temas e assuntos relacionados às biotecnologias que tocam a reprodução humana artificial, os projetos que envolvem manipulação de DNA e os alimentos transgênicos, todos eles são de difícil acesso ao público leigo, muito embora os elementos inerentes às biotecnologias tenham um caráter político com o potencial de incidir na vida das pessoas e até mesmo no destino da espécie humana. Por vezes, o debate escapa completamente ao senso comum, e mesmo as pessoas informadas, não raro, sentem dificuldades em acessar adequadamente as discussões políticas que envolvem ciências aplicadas em tecnologias biológicas. 283 “Here’s where we make a distinction between the political and the pedagogical. Some activities, though they are performed, are not performative. These are activities that directly intervene in the distribution of power on a macro level. A strategic form is policy construction and reform; a tactical form is electronic civil disobedience. These types of activities CAE considers political. The other form of intervention is in changing perceptions through representational exchange. Tactical media practitioners initiate social processes that aid people in perceiving a social system and their roles within in it in a manner that is different from the normalized perception of these phenomena. This type of action is pedagogical, and performativity plays a key role in making these processes function”. CAE, in Jon McKenzie and Rebecca Schneider. Tactical Media Practitioners: an interview. The Drama Review, p. 142. 284 “Como Paulo Freire apontou, o ‘método bancário’ da educação é de uso modesto no aumento da consciência crítica, porque não está fundamentado nas estruturas significativas da vida cotidiana”. CAE, Digital Resistance, p. 99. No original: “As Paolo Freire has pointed out, the ‘banking method’ of education is of modest use in raising critical consciousness because it is not grounded in the meaningful structures of everyday life”. 207 Eis um problema epistemológico crucial que atravessa a política na democracia contemporânea: à medida que os discursos científicos tornam-se cada vez mais especializados e o domínio de certos campos do conhecimento se retrai para o âmbito econômico, o debate de interesse público fica restrito a especialistas. O resultado é que o biopoder ligado à manipulação e modulação dos elementos da vida fica nas mãos de burocratas, de agências reguladoras e de especialistas, fora portanto dos procedimentos minimamente democráticos.285 Imagem 45 – Grupo de pesquisa e desenvolvimento da campanha GenTerra no laboratório da Universidade de Pittsburgh, em 2001. Os membros do CAE, Dorian Burr, Hope Kurtz, Steve Kurtz e Steven Barnes com Beatriz da Costa e outros colaboradores.286 Pensando nisso, o CAE elabora um plano de ação para intervir no debate público. Na época em que o poder toma a vida por objeto, a resistência torna-se a própria vida. Depois da Resistência Eletrônica, chegou o momento da Biologia Contestatária. No livro The Molecular Invasion são apresentados sete pontos que compõem o plano da biorresistência: 285 CAE, The Molecular Invasion, p. 65. 286 Imagem disponível na página do CAE: http://critical-art.net/genterra-2001-03-critical-art-ensemble- and-beatriz-da-costa/ Acesso 4 de agosto de 2019. 208 1. Desmistificar a produção e os produtos transgênicos. 2. Neutralizar o medo público. 3. Promover o pensamento crítico. 4. Debilitar e atacar a retórica utópica edênica. 5. Abrir as portas da ciências. 6. Dissolver as fronteiras culturais da especialização. 7. Construir o respeito ao amadorismo.287 Assim, os objetivos da resistência recaem na educação uma vez mais. No teatro recombinante a ideia era demonstrar usos libertários das tecnologias, denunciar usos autoritários por meio de uma estética do distúrbio, fomentar, em suma, uma reflexão crítica sobre as tecnologias eletrônicas da informática. Agora, com relação às biotecnologias e seus usos potenciais, trata-se de promover, por meio de intervenções moleculares, campanhas, ações, performances, teatro participativo, uma série de situações com o objetivo de instruir minimamente as pessoas e alertar sobre a importância do debate público qualificado quanto aos desenvolvimentos tecnológicos contemporâneos. De acordo com o CAE, “o objetivo da resistência cultural é a criação de um espaço público temporário no qual se possa ter lugar uma educação e um intercâmbio cultural”. Para isso, “abrir os bancos de dados e dissolver as fronteiras da especialização é um objetivo primordial”.288 É preciso desmistificar os assuntos por meio de informação de qualidade, complexa mas acessível. O que vem ao primeiro plano é fomentar a tomada de consciência do que as biotecnologias têm feito da vida. Em vez de ignorar ou mistificar, conhecer: A tomada de consciência no campo das biotecnologias erradica o medo pela realização da agência individual e do poder coletivo. A capacidade das pessoas de compreender, e assim, afetar as situações, permite a participação individual na formulação de políticas, leis, produtos, etc. no campo biotecnológico. No processo pedagógico, apenas o medo se dissipa, a dúvida permanece.289 287 “1. Demystify transgenic production and products. 2. Neutralize public fear. 3. Promote critical thinking. 4. Undermine and attack Edenic utopian rhetoric. 5. Open the halls of science. 6. Dissolve cultural boundaries of specialization. 7. Build respect for amateurism”. CAE, “Transgenic production and cultural resistance: a seven-point plan”, in The Molecular Invasion, p. 59. 288 “The goal for cultural resistance is to create temporary public space where education and intersubcultural labor exchange can occur. Opening the knowledge bases and dissolving boundaries of specialization is a primary goal”. CAE, The Molecular Invasion, p. 65. Tradução compatível com a versão espanhola. Cf. CAE. La Invasión Molecular: biotecnologías: teoría y prácticas de resistencia. Madrid: Enclave de Libros, 2013, p. 114. 289 “Consciousness raising, on the other hand, removes fear through the realization of individual agency and collective power – the ability of people to understand and thereby affect situations allows individual participation in shaping the policies, laws, products, etc., concerning the biotechnological. In the pedagogical process, only the fear dissipates, the doubt remains”. CAE, The Molecular Invasion, p. 61. 209 Mais do que isso. Para que as pessoas possam fazer as próprias perguntas, é fundamental que cada indivíduo saiba exatamente contra o que está resistindo. O problema do conhecimento é também uma problemática que implica a linguagem. Sem os conceitos, as teorias, os modelos interpretativos adequados, como diagnosticar um caso, analisar um fenômeno, dispor de questões relevantes em correspondência com a realidade? Não se trata, porém, de simplesmente informar o que a ciência diz sobre o que faz. A construção de linguagens acessíveis que descrevam adequadamente quais são os problemas de uma posição minoritária é uma necessidade. O banco de dados da ciência régia precisa ser aberto e acessível ao público, de uma vez por todas. A caixa-preta científica gerada em corporações privadas, por empresas que buscam tão só lucros, ou por governos e instituições sem qualquer regulação com participação da sociedade, torna- se fatalmente uma máquina de poder, uma incubadora de projetos suspeitos e autoritários. O risco é muito grande. A história mostrou o que a internet é capaz de fazer com as democracias quando o ciberpoder circula sem transparência. O que dizer do complexo tecnopolítico que toma a vida, os alimentos, a reprodução artificial e a manipulação genética a seu dispor, sem qualquer debate público sério e qualificado sobre o assunto? Ignorância, mistificação, opiniões, moralismos, não ajudam a resolver o problema. São partes dele. Neste ponto, percebe-se as relações intrínsecas da intervenção molecular enquanto arsenal antropotécnico da resistência e a elaboração teórica crítica que politiza os temas a serem tratados nas ações culturais. Articulam-se a teoria crítica engajada e a matriz performativa em uma micropolítica da criação que age, ao mesmo tempo, nas dimensões prática, semiótica, discursiva e política. A máquina de guerra artística sofistica-se a esse patamar de complexidade quando os ativistas, em contraposição aos especialistas privados, tornam-se amadores de determinados campos do conhecimento científico para agirem na esfera pública como catalisadores discursivos ou operadores antropotécnicos que incidem na produção discursiva a fim de promover alguma alteração metanoica na cultura.290 Ao lançarem mão de intervenções de caráter pedagógico, incidem diretamente nos processos de subjetivação. 290 Claire Pentecost discute a bioarte e o papel desempenhado pelos ativistas em se apropriar do conhecimento científico especializado para compartilhá-lo na esfera pública, colocando assim o conhecimento à disposição das pessoas de forma politizada. Steve Kurtz do CAE é citado como um exemplo pela autora no artigo “Outfitting the laboratory of the symbolic: toward a critical inventory of bioart”, in Beatriz da Costa & Kavita Philip (Ed.). Tactical biopolitics: art, activism, and technoscience. London: The MIT Press, 2008, p. 112. 210 Subjetivação Política A resistência que as micropolíticas da criação produzem, seja com artivismo, mídia tática, social practices, teatro, performances, veiculam signos, símbolos e imagéticas, discursos e práticas que, combinados, dinamizam a vida cultural. Mas como nem sempre se trata de tomar as instituições por alvo, nem de confrontá-las diretamente (como nas ações de desobediência civil), as micropolíticas se interpõem na produção das subjetividades. Por serem criativas, as micropolíticas artísticas que emergem nos anos 90 não respondem a um sujeito de classe, nem são simplesmente formas multiplicadas de criticar a representação. Elas procedem diretamente sobre os modos de subjetivação, ora desafiando os modelos hegemônicos, ora produzindo seus próprios meios. Essa é a linha de frente da potência destituinte encarnada na resistência cultural. Interessam as ideias, crenças e opiniões, assim como a sensibilidade, as socialidades, as formas de vida, seus modos de ser, raramente levados em conta nos movimentos sociais do século XX que acompanharam o taylorismo e o fordismo. Algo muito distinto do que os movimentos pós-Maio de 68 e contraculturais tomaram para si, de atuar por dentro na cultura, como para dissolver e destituir as formas padronizadas de subjetivação em suas criações existenciais, vitalistas, moleculares.291 O protagonismo das micropolíticas da criação que a geração emergente nos anos 90 desempenha no histórico da arte-revolta expõe por si só um sintoma, uma fragilidade da subjetivação proposta pelo neoliberalismo. Lacuna que revela também uma dimensão aberta, passível de ser ativada e que tem sido criativamente explorada pelas mais variadas micropolíticas quando elas se propõem a inventar seus próprios meios de subjetivação. Por isso não é de surpreender que nos países capitalistas mais proeminentes a resistência cultural seja tão atuante. A interpretação contrária é mais otimista e coerente em termos teóricos com a abordagem que Deleuze e Guattari emprestam a suas análises micropolíticas. A fragilidade, a ineficiência e a incapacidade do neoliberalismo em dar um arremate à crise na produção da subjetividade podem ser interpretadas como efeitos das inúmeras 291 Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 3). Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, p. 94-95: “Maio de 68 na França era molecular, e suas condições ainda mais imperceptíveis do ponto de vista da macropolítica. (...) todos aqueles que julgavam em termos de macropolítica nada compreenderam do acontecimento, porque algo de inassimilável escapava. Os homens políticos, os partidos, os sindicatos, muitos homens de esquerda, ficaram com raiva; eles ficavam lembrando sem parar que as ‘condições’ não estavam dadas. É como se tivessem sido destituídos provisoriamente de toda a máquina dual que fazia deles interlocutores válidos”. 211 iniciativas, por vezes improvisadas, deliberadas, das pessoas e dos agrupamentos em se reinventarem às expensas dos padrões oferecidos pelo espetáculo. Uma virada na produção das subjetividades talvez esteja em vias de acontecer. Pode-se inclusive trabalhar para sua precipitação. Essa é a aposta da resistência cultural e das micropolíticas da arte-revolta que aqui se tenta evidenciar. O projeto central da política do capitalismo contemporâneo consiste na articulação de fluxos econômicos, tecnológicos e sociais com a produção de subjetividade. Não há como o capitalismo se sustentar sem uma economia subjetiva correspondente à economia política. Esse é o núcleo da crise que o neoliberalismo vem arrastando nas últimas décadas, e também, seu ponto fraco. Afinal, como manter as classes, os grupos, os indivíduos, na cifra dos milhões, conformados a um modelo econômico que lhes reduzem a seres endividados?292 Esse fenômeno crítico enfrentado pelo neoliberalismo nada mais é do que a atualização de uma problemática política antiga, que acompanha a modernização do ocidente, de fundar uma sociedade conforme aos imperativos governamentais e que, em outros momentos históricos, tentou-se resolver por via das artes de bem governar (Maquiavel), pelo modelo absolutista (Hobbes), ou mais recentemente, na modernidade, por meio da formação dos indivíduos por aparelhos disciplinares e das massas por biopolíticas (como demonstrado por Foucault).293 Atualmente, os processos que tentam viabilizar os modelos de subjetividades conformados ao sistema valem-se de todo tipo de maquinismos, os quais ultrapassam os limites propriamente tecnológicos e mesmo institucionais, pois são compostos de máquinas semióticas, estéticas, produtivas, subjetivas, midiáticas, culturais, etc., que atravessam transversalmente o corpo social. O fato da vida ter se tornado maquinocêntrica exprime a objetivação de meios tecnológicos que ampliam os efeitos sociais, econômicos e políticos que a sociedade produz. Não bastasse as mutações resultantes de processos multifários presentes no socius contemporâneo, o capitalismo, para se sustentar, tenta se impor por modos de subjetivação que se fazem sentir negativamente. Como a crise não se resolve, novos dispositivos autoritários estão se intensificando face ao impasse, ao mesmo tempo que a subjetivação promovida pelo capitalismo mundial integrado tende a se tornar negativa, 292 Cf. Maurizio Lazzarato. O governo do homem endividado. São Paulo: N-1 Edições, 2017. 293 Problema que Michel Foucault tratou como o da governamentalidade. Cf. Michel Foucault. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015, p. 407ss. 212 repressiva e regressiva.294 O que ajuda a explicar a relação do liberalismo econômico com regimes políticos de tendências autoritárias. A noção de produção de subjetividade, ou melhor, de processos de subjetivação, provém das pesquisas de Guattari no âmbito de experiências psi mas que não se limitam aos aportes psicoanalíticos. O autor propõe pensar uma subjetividade aberta e processual que se produz no entrecruzamento de vários regimes, semióticos, imagéticos, sensíveis, existenciais, maquínicos, cósmicos, etc. No seu paradigma estético, não há qualquer predominância que se possa afirmar de antemão de um regime sobre outro. A subjetividade é plural e polifônica, “não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca”.295 A dimensão discursiva, durante muito tempo considerada determinante, como o modelo estruturalista ou a linguística dão a entender, entretém relações plurívocas e heterogêneas com a dimensão não-discursiva. E entre uma e outra, ou atravessada por ambas, encontra- se um elemento existencial inapreensível que, em determinadas situações, uma vez ativado, duplica as relações de poder e de saber a fim de desafiá-las. Uma força de autoafecção, autoafirmação e autoposicionamento capaz de se desvencilhar das determinações a que até então se encontrava submetida. É nesse confronto entre um tipo de saber com outro, entre os poderes e outras forças, que se estabelece as condições de uma subjetivação política. Por subjetivação política deve-se entender toda e qualquer subjetivação que acarreta algum tipo de mutação existencial, que opera sobre o elemento existencial do sujeito repercutindo sobre sua forma de ser, sentir, pensar e agir no mundo. Processo em suma que implica uma reconversão da subjetividade que afeta assim a existência. Trata- se portanto de um processo de modificação ocasionado pela eclosão de forças irredutíveis à linguagem, ao discurso dos saberes e aos efeitos de poder, e que corresponde à emergência de focos existenciais outros, autoposicionados. Aqui reside o Fator-X, ou melhor dizendo, a matéria plástica ou caosmológica da qual provém isso que se pode chamar indeterminação irredutível do existencial vivido. A ativação dessa matéria plástica fornece as condições para os processos de subjetivação política propriamente dita que propicia alterações, rupturas e mutações existenciais. 294 Cf. Maurizio Lazzarato. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: Edições Sesc: N-1 Edições, 2014, p. 14-15. 295 Félix Guattari, “Heterogênese”, “Da produção da subjetividade”, in Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 2006, p. 11ss. 213 O CAE e outros coletivos da arte-revolta contemporânea se insinuam no entrecruzamento dos modelos dominantes de subjetivação obediente alimentados pelo espetáculo e pela arte-entretenimento. Pretendem, com suas intervenções moleculares na esfera pública, produzir distúrbios, interrupções nos processos de subjetivação estabelecidos pela maquinaria capitalista e industrial, com o fim de possibilitar experiências nas quais as significações dominantes sejam suspensas e destituídas de seus efeitos de verdade sobre as pessoas. Esse tipo de intervenção cultural, por mais simples que seja, promove situações nas quais se opera uma subjetivação política. Questões pouco refletidas, no mais das vezes sob a ótica interessada do marketing, são problematizadas para que o ceticismo desperte as condições do pensamento eclodir e recombinar os elementos semióticos, discursivos e epistemológicos sobre o assunto. Para que possa ocorrer, a subjetivação política deve necessariamente atravessar esses momentos nos quais as significações dominantes são suspensas.296 Aqui, não são as subjetividades imaculadas e virginais que aparecem, mas, sim, os pontos focais, as emergências, os começos de subjetivação cuja atualização e proliferação dependem do processo construtivo que deve articular a relação entre “produção” e “subjetivação” de uma nova maneira.297 Embora o CAE afirme que produz choques semióticos, o que efetivamente se produz, com suas matrizes performativas, são circunstâncias em que a produção de subjetividade é ativada. A estética previamente preparada pelo coletivo serve como suporte para a entrada em cena de antropotécnicas situacionistas que, enquanto tais, incidem na subjetivação dos participantes. As intervenções moleculares do CAE operam uma maquinaria semiótica, artística, social e micropolítica que interfere nas significações dominantes porque são elas que codificam a visão cultural. Os choques então ocorrem entre os códigos culturais existentes e o conteúdo intervencionista que se lança para destituí-los de seus efeitos nas subjetividades. O principal, no entanto, é o estímulo ao debate, ao exercício do pensamento, individual e coletivo. Não se trata de destruir os discursos veiculados na sociedade, mas de colocá-los em perspectiva, a fim de observá-los de outro ângulo possível. Assim, o pensamento não-pensado emerge nas interações entre os elementos em jogo. A participação do público nas performances e nas intervenções, por isso, é um 296 Cf. Maurizio Lazzarato. Signos, máquinas, subjetividades, p. 21. 297 Cf. Maurizio Lazzarato. Signos, máquinas, subjetividades, p. 22. 214 elemento fundamental, pois por meio dela o Fator-X da mutação (metanoica, sensível e ética) tem a possibilidade de se atualizar. Guattari, que acompanhou com interesse a história da arte contemporânea, reconhece a importância que a criação estética desempenha na produção de subjetividades: “É evidente que a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidade de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas”.298 As intervenções moleculares, as performances, as situações extracotidianas nas quais entram em ação os produtores culturais, artistas e ativistas, promovem condições de possibilidade para a emergência de novas ideias, questionamentos, sensibilidades, relações outras. “Como em toda criação (não importa se artística, científica ou social), a suspensão do curso habitual das coisas afeta antes de tudo a subjetividade e suas formas de expressão ao criar as condições para uma nova subjetivação, cujo processo deve ser problematizado”.299 O modelo de problematização praticado pelo CAE junto ao público desempenha a função de colocar em xeque as opiniões, as crenças, os códigos culturais que dão suporte ao conformismo tácito ou implícito na conduta habitual das pessoas nas atuais sociedades de controle. Mas proporciona sobretudo a problematização política de assuntos contemporâneos que causam impacto na vida individual e social. 298 Félix Guattari, “O novo paradigma estético”, in Caosmose: um novo paradigma estético, p. 135. 299 Cf. Maurizio Lazzarato. Signos, máquinas, subjetividades, p. 23. 215 CAPÍTULO 4 RESISTÊNCIA CULTURAL: TRANSFORMAR O MUNDO, MUDAR A VIDA Resistência é a categoria geral para qualquer manifestação material ou imaterial, ativa ou passiva que entra em conflito de alguma maneira com as exigências dos poderes de dominação. Intervenções são uma subcategoria da resistência. Crítica é uma análise sistemática de um objeto ou sistema que pode ser usada para informar estratégias ou táticas de resistência. – Steve Kurtz, integrante fundador do Critical Art Ensemble.300 Ecos da Arte-Revolta O Critical Art Ensemble tem atrás de si o legado oriundo da história das artes modernas. Nos capítulos anteriores, foram apontadas algumas dessas características que tocam os aspectos teóricos e práticos do grupo. O plágio utópico e o teatro recombinante, a mídia tática e a estética do distúrbio atualizam alguns conteúdos extraídos de grupos e vanguardas que precederam o mundo atual e imprimem a marca da novidade por meio da recombinação contemporânea. Assim, o CAE faz com desenvoltura e criatividade o seu trabalho de resgatar e atualizar alguns elementos do passado ao contemporâneo. Para um estudioso das artes, não será difícil reconhecer outras reminiscências das vanguardas no grupo que pratica a arte crítica. Entretanto, há algo que ainda não foi desenvolvido com a devida atenção. As reminiscências do passado aqui mencionadas são eletivas e, ao invés de buscar puras semelhanças, a ideia é apontar o que o CAE resgata para se lançar adiante na tarefa de recombinar com atualidade as obras artísticas que tiveram na revolta sua mais profunda inspiração. 300 “Resistance is the general category for any material or immaterial, active or passive manifestation that conflicts in some manner with the demands of the powers of domination. Interventions are a subcategory of resistance. Critique is a systematic analysis of an object or system that can be used to inform strategies or tactics of resistance”. Steve Kurtz, in “Digital resistance in digital cultures: an interview with Steve Kurtz by Martina Leeker”, in Howard Caygill; Martina Leeker; Tobias Schulze (Ed.). Interventions in digital cultures. Meson Press, 2017, p. 110. 216 A arte moderna foi profundamente marcada por transformações de ordem técnica e expressiva, mas também pela postura contestatária, inicialmente em relação aos padrões clássicos de forma e conteúdo, com o impulso dado ainda no século XIX pelo impressionismo. Com o tempo, porém, a crítica e o questionamento afetaram a própria definição do que é arte e de sua função, como no caso paradigmático do dadaísmo. Em um ambiente social propenso a transformações de toda sorte como foi o início do século XX, não demorou para que se formassem vanguardas artísticas inspiradas pelo espírito da revolta que grassava nos países industriais ante a exploração dos primeiros capitalismos e a eclosão das grandes guerras mundiais. No mesmo período, ocorreu na história da arte moderna uma verdadeira virada social na abordagem das formas de expressão e conteúdo. O universo da arte aberto pelas vanguardas artísticas como o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo alargou as possibilidades de expressão estética com teor claramente social, contestatório, político, experimental e crítico. Essa tendência da arte em incorporar o universo social, por outro lado, foi agenciada no campo cultural com propósitos políticos. Desde então, a ambição de expressar a revolta face ao tempo tem sido uma característica marcante da arte engajada. Com base no impulso inicial dado pelos futuristas, dadaístas e surrealistas, nos pós-guerra as artes da performance, conjugadas com a arte conceitual, puderam se somar dando origem a um tipo de arte crítica profundamente revolucionária quando aplicada a temáticas que tocam aspectos da vida cotidiana. A associação da arte com a dimensão política da experiência que se acentuou nas últimas décadas trouxe para o primeiro plano, na crítica, na análise e na ação, os efeitos das ciências e filosofias apropriadas pelo agenciamento artístico, atingindo por meio desse entrecruzamento amplos efeitos, sobretudo subjetivos e políticos. Pouco a pouco, as artes performáticas, os happenings, as intervenções e mesmo o teatro, incorporaram discursos oriundos de outros campos disciplinares, como se fez com o marxismo, a psicanálise e a linguística durante a década de 1970. De fato hoje é comum o uso nas artes de concepções oriundas da filosofia política, da arquitetura, da história do teatro, das engenharias, da cibernética e da biotecnologia. A própria noção do que é arte tem se modificado para se tornar marcadamente transdisciplinar e multimídia. Tanto é que a outrora chamada arte pura veio a se tornar um tipo de arte entre outros. Assim, quando inserimos o Critical Art Ensemble na história da arte moderna, vê- se claramente que o grupo faz parte desta tendência artística que remonta às vanguardas 217 do século XX, principalmente no que se refere à aproximação da arte à vida cotidiana, a criação artística unida à experimentação do desejo no campo social e político. Sem dúvida, o aspecto político que as vanguardas empregaram às artes atravessa as práticas e formas de expressão do CAE e perfaz toda a carreira do grupo. Não é difícil identificar reminiscências futuristas, dadaístas, surrealistas e, sobretudo, situacionistas na teoria e na prática do coletivo (por exemplo, a importância atribuída à tecnologia do futurismo italiano, a técnica da colagem dadaísta, a ênfase na revolução da vida cotidiana e a noção de espetáculo dos situacionistas, etc.). Com muita criatividade o CAE contribui para o desdobramento da arte-revolta na virada do milênio, ao unir arte, teoria, política e tecnologia, agenciando de maneira transdisciplinar um tipo de resistência cultural que pauta sua práxis encrustada na vida cotidiana e baseada nos princípios de autonomia e cooperação. Ao unir essas características às tecnologias da informação e da comunicação agenciadas como mídias táticas, a fusão da arte e da tecnologia gera uma gama de discursos e regimes de visibilidades marcados claramente por uma visão política contestatória sobre a realidade. Na história da arte, a singularidade do Critical Art Ensemble consiste em prolongar o ímpeto das vanguardas com inovação, atualizando-o ao contemporâneo. Ao unir arte, teoria e política com tecnologias, produz uma resistência multimídia e transdisciplinar atenta à vida cotidiana e lança luz sobre os desenvolvimentos da macropolítica global. Micropolíticas da Criação O engajamento da arte-revolta em problemáticas da ordem social, cultural ou política converge mais claramente com as críticas sociais e com os movimentos políticos em certos momentos históricos, como foi apontado no primeiro capítulo Nomadologia da Arte-Revolta, ao traçar os movimentos que culminaram na montagem da máquina de guerra artística: por exemplo, no período do Fascismo, na Revolução Russa, durante as Guerras Mundiais e em Maio de 68. Na década de 1990, com o protagonismo dos movimentos políticos pós- socialistas, de tendências autonomistas e com forte teor libertário, ocorre uma nova convergência da arte com a política, desta vez com uma multiplicidade de grupos sujeitos oriundos da arte-revolta que alimentam com suas micropolíticas da criação uma ampla resistência cultural aos ditames do espetáculo capitalista no Ocidente. Micropolíticas da 218 criação em que se misturam arte e política de forma intrínseca, as quais culminaram nos Dias de Ação Global.301 Nesse cenário, segundo Nato Thompson, “protesto, anarquista, e práticas de arte-ativista convergiram em uma forma nova e excitante”.302 Este período é caracterizado pelas intervenções estéticas, culture jamming, e sobretudo, pelas abordagens neossituacionistas de mídia tática, que logo se tornaram a linguagem visual do movimento dos protestos globais.303 O que parece novo nesse momento histórico é a importante influência da resistência cultural para a formação de coalizões micropolíticas em um vasto espectro ativista. O livro Urgência das Ruas, lançado no Brasil, compila documentos, relatos e reportagens dos Dias de Ação Global que aconteceram na virada do século. Nesses eventos de rua, a emergência de grupos de afinidade libertários, que atuam de forma autogestionária, não-hierárquica, autônoma e criativa, foi a tônica micropolítica da vez.304 As manifestações no J18 (junho de 1999), que prepararam a Batalha de Seattle, ocorreram em mais de 40 países e 120 cidades. Em Londres, por exemplo, mais de quarenta grupos participaram organizando atividades e formando uma rede onde a autonomia e a liberdade de cada grupo foram sempre mantidas (...) dando um caráter libertário desde a forma de organização, passando pela consciência política (radical) dos grupos, até o desenrolar dos eventos em si. (...) O dia começou com um Critical Mass de manhã cedo – as bicicletas tomando as ruas – e se estendeu com música, dança nas ruas, performances, marchas, numa espécie de carnaval politizado.305 Talvez se possa falar de uma renovação da resistência pelo papel desempenhado por grupos e iniciativas desencadeadas no campo da cultura pela ala das artes engajadas, 301 “O fenômenos das manifestações-bloqueio em encontros dos gestores do capitalismo internacional, ou mais genericamente Dias de Ação Global, que têm impedido e perturbado as reuniões de instituições reguladoras do capitalismo global”. Cf. “Antes de mais nada...”, in Ned Ludd (org.). Urgências das ruas: Black Block, Reclaim The Streets e os Dias de Ação Global. São Paulo: Conrad, 2002, p. 9. 302 Cf. Nato Thompson, “Of relations and tactics”, in Seeing Power: art and activism in the 21st century. Brooklyn: Melville House Printing, 2015, p. 23. 303 Cf. Nato Thompson, Seeing Power: art and activism in the 21st century, p. 22. 304 “A Ação Global dos Povos (AGP) é uma rede mundial de movimentos sociais, responsável pela invenção dos “dias de ação global”. Foi criada para combater o livre-comércio e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Não é uma organização formal, com sócios, membros regulares ou porta-vozes oficiais, mas uma rede de comunicação e coordenação de lutas em escala global, baseada apenas em princípios comuns: a rejeição ao capitalismo e a todas as formas de dominação e opressão. Tem uma filosofia organizacional fundamentada na descentralização, na autonomia, na desobediência civil e na ação direta”. Martín Bergel e Pablo Ortellado. Verbete disponível em http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/agp Acesso 31 de julho de 2019. 305 Cf. Ned Ludd (org.). Urgências das ruas: Black Block, Reclaim The Streets e os Dias de Ação Global, p. 28ss. 219 e não o inverso, como até então parece ter sido a tendência mais evidente (apropriação política das artes). Ao tratar do coletivismo na arte-revolta contemporânea, Blake Stimson e Gregory Sholette dizem: Em outras palavras, o que foi apenas muito recentemente uma batalha cultural primariamente travada por modos de representação, manifestações de identidade e até escolhas de estilo de vida transformou-se abruptamente em um confronto cada vez mais direto que, como Brian Holmes argumenta, é constituído por “ação coletiva descentralizada que se propaga por todos os meios: boca-a-boca, rumores, comunicação entre grupos políticos, reuniões de movimentos sociais e transmissões através de meios de comunicação especializados e de massa – sobretudo a Internet”.306 Não à toa, a emergência das micropolíticas da criação neste período está na origem do que o antropólogo David Graeber descreve como New Anarchism. A chave do fenômeno é a “ação direta criativa”, entendida como uma ação autônoma que se realiza sem qualquer poder mediador – como partidos ou instituições artísticas – e na qual a ordem dominante é desafiada à medida que um novo mundo é “prefigurado” em ação, ou seja, na ação mesma. Nesse sentido, resistência cultural e invenção coletiva são inseparáveis, e são nessas situações construídas coletivamente que as formas sensíveis e as visões imaginativas da arte por si são liberadas da clausura institucional para participar na construção de novas formas de vida em comum, maneiras de ser, relacionar-se, agir, sentir, fazer, viver.307 O movimento alterglobalização que se forma durante a década de 1990 recrutou artistas e ativistas a trabalhar lado a lado, formando redes de compartilhamento de ideias, projetos, iniciativas inovadoras e experimentais que deram forma às novas micropolíticas da criação.308 O CAE não teve um papel nas manifestações de rua típicas do período. Seu ativismo passou ao largo das movimentações que acompanhavam as reuniões dos órgãos 306 “In other words, what was only very recently a primarily cultural battlefield waged over modes of representation, manifestations of identity, and even choices of lifestyle has abruptly shifted into increasingly direct confrontation that, as Brian Holmes argues, is constituted by ‘decentralized collective action that propagates itself via every means: word-of-mouth and rumor, communication between political groups, meetings of social movements, and broadcasts over specialized and mass media – above all the Internet’”. Blake Stimson e Gregory Sholette, “Introduction: Periodizing Collectivism”, in Blake Stimson e Gregory Sholette (Ed.). Collectivism after modernism: the art of social imagination after 1945. London: University of Minessota Press, 2007, p. 12. 307 Cf. Yates MacKee. Strike Art!: contemporary art and the post-Occupy condition. Brooklyn: Verso, 2016, p. 16. 308 Cf. Nato Thompson, Seeing Power: art and activism in the 21st century, p. 21. 220 internacionais do capitalismo. Na realidade, o grupo apostava pelo menos em dois frontes de atuação: no espaço cibernético, por meio do apoio e da promoção da resistência hacker e da desobediência civil eletrônica (objeto do próximo capítulo), e em segundo lugar, no campo das práticas artísticas socialmente engajadas diretamente no meio cultural que o grupo materializou com a biologia contestatária. Em termos práticos, não há evidências de que o coletivo tenha se envolvido diretamente com atividades hackers no ciberespaço. A micropolítica do CAE ficou conhecida na experimentação artística e cultural junto ao público. Em particular, duas vertentes de produção artística se destacam como importantes precedentes na informação do trabalho da arte e da política nesse período e que marcará os desenvolvimentos posteriores na virada do século: estética social e mídia tática.309 De certa maneira, o Critical Art Ensemble se inscreve nas duas. A estética social foca nas pessoas (e enquanto tal, possui seu caráter político), ao passo que a mídia tática estabelece uma relação diferenciada com a arte, pois a considera uma ferramenta, entre outras, para perturbar o poder, desafiá-lo, expô-lo em sua nudez. Thompson diferencia uma da outra pelo fato de que a mídia tática possui uma ligação constitutiva com o ativismo, enquanto a estética social possui uma relação menos óbvia e direta com o ativismo, e tem uma mobilidade mais fluida com as instituições artísticas. Na perspectiva histórica da arte engajada do século XX, as vanguardas da arte- revolta pleiteiam a necessidade de ativar, despertar, incitar a ação e a participação da audiência para romper com a ordem espetacular (que requer a passividade) e emancipá- la do estado de alienação induzido pela ordem ideológica dominante, não importa se em um contexto capitalista, totalitário ou ditatorial. A arte participativa pretende, por meios inovadores, restaurar e realizar um espaço comunal, coletivo de engajamento social compartilhado, nem que seja em uma situação construída.310 Há pelo menos duas formas de intervenção, segundo Claire Bishop: uma afirmativa, de caráter utópico, e outra, negativa, de feições niilistas. Nos processos em que se recusa as injustiças do mundo por meio de gestos construtivos, a afirmação se faz perceber pela proposição de alternativas, enquanto a recusa niilista se projeta na cena artística pública com críticas radicais às alienações em seus próprios termos, que podem variar mas possuem em comum a fórmula da “negação da negação”. 309 Cf. Nato Thompson, Seeing Power, p. 17. 310 Claire Bishop, “Participation and spectacle: where are we now?”, in Nato Thompson (Ed.). Living as Form: socially engaged art from 1991-2011. New York: Creative Time Books, 2017, p. 36-37. 221 O Critical Art Ensemble oscila entre um polo e outro, dada sua ampla e rica produção, que é marcada por uma verve teórica “pessimista”, segundo o próprio coletivo, embora o esforço seja muito mais direcionado à invenção de projetos que propõem alternativas a um dado problema colocado e enfrentado pelo coletivo (seu aspecto “otimista”). É o caso das propostas do plágio utópico, do teatro recombinante, da resistência eletrônica e das intervenções moleculares (estas, munidas até mesmo de elementos pedagógicos, tais como as campanhas Flesh Machine, Cult of the New Eve, GenTerra, Free Range Grain, entre outras). Resistência Cultural na Sociedade do Espetáculo Atualmente, a resistência encontra um campo privilegiado de atuação na cultura, pois segundo a aposta da arte-revolta, é na esfera cultural que se pode estimular e extrair as potências sociais transformadoras. No entanto, o problema já identificado pelos ativistas com relação à cultura é que muito tem se investido por parte do poder econômico e político para moldar os valores, os comportamentos e as subjetividades aos imperativos econômicos. Historicamente, na passagem do século XIX para o século XX o ocidente viu o surgimento das indústrias culturais que se apropriaram de setores mercadológicos criados pelo próprio estilo de vida urbano e metropolitano, carente de lazer e diversão.311 As sociedades industriais expandiram seus negócios para se ocupar da esfera cultural, ampliando assim o campo de atuação econômico com bens simbólicos. As tecnologias agenciadas por tais indústrias se estruturaram conformando a base material e sociotécnica para a ascensão da sociedade do espetáculo. Como meio de reprodução social, a cultura tem sido usada para manter e expandir a influência do espetáculo capitalista na conformação dos sujeitos às estruturas de domínio e exploração. Desde então, as mídias formam uma parte crucial de como o mundo contemporâneo funciona e opera. Inclusive, a política tem se modificado devido ao poder estratégico que as mídias desempenham no contexto atual. 311 “Esse estágio ‘espetacular’ do desenvolvimento capitalista se impôs progressivamente a partir da década de [19]20 e se fortaleceu após a Segunda Guerra Mundial. (...) todos os sistemas sócio-políticos do mundo participam do reino da mercadoria e do espetáculo. Do mesmo modo que no interior de uma sociedade, o espetáculo é uma totalidade em escala mundial”. Anselm Jappe. Guy Debord. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 22-23. 222 Assim também, as artes sofreram os efeitos da apropriação econômica e política. Por meio da literatura e das artes visuais, a indústria cultural tem acessado o inconsciente coletivo e modulado os recônditos subjetivos, com o que a vida cotidiana adquire contornos em conformidade com imperativos econômicos como o consumismo e a docilidade política face ao status quo. Na história da arte contemporânea, o espetáculo é uma das palavras-chaves usadas pelos artistas engajados para designar a entidade contra a qual suas matrizes performáticas de intervenção social se opõem. Isso se explica pelo fato de que o conceito de espetáculo, tal como empregado no léxico da arte-revolta desde os situacionistas, representa o tipo de sociedade na qual os sujeitos, submetidos aos poderes espetaculares, tornam-se passivos não só diante da política institucional, como também face à vida cotidiana, que levam sem qualquer aspiração criativa.312 Spectacle é uma palavra francesa que vem do spectare e do speculare latinos, verbos que remetem às noções de contemplação, observação, de acompanhamento passivo de algo exterior pela visão. Estes verbos estão também na raiz de speculatio, spéculation, Spekulation.313 Enquanto elaboração teórica, o espetáculo tem como um de seus componentes o personagem conceitual do espectador. No sentido tradicional, espectador significa aquele que usufrui das formas estéticas por meio da contemplação. Transposto para o plano político, refere-se a quem simplesmente observa o que se passa, inerte, sem qualquer participação no desenrolar dos fatos, como se estivesse diante de uma tela, ou de uma encenação teatral. É portanto alguém que se contenta com seu papel passivo de mero espectador face à realidade, realidade esta que, na dimensão histórica, é fabricada pelas forças políticas, econômicas e sociais. A noção de espetáculo, tal como foi elaborada no contexto da Internacional Situacionista, não caracteriza um trabalho artístico. Refere-se a um modo de definir as relações sociais mediadas por imagens, no momento histórico em que o desenvolvimento 312 Claire Bishop, “Participation and spectacle: where are we now?”, in Nato Thompson (Ed.). Living as Form: socially engaged art from 1991-2011, p. 35. 313 Cf. João Emiliano Fortaleza de Aquino. Reificação e linguagem em Guy Debord. Fortaleza: EDUECE/Unifor, 2006, p. 73: “Como ‘especulação’ materializada, fundada na ‘contemplação’, ‘o espetáculo’, segundo Debord, ‘filosofiza a realidade’, sendo, nisto mesmo, ‘o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental que foi uma compreensão da atividade, dominada pelas categorias do ver (...) É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo”. Trata-se de uma citação do aforismo 19 de A sociedade do espetáculo, de Guy Debord. A tradução de Stela dos Santos Abreu, para a Editora Contraponto, está melhor. 223 do capitalismo atinge o seu ápice e tudo adquire valor de troca. Guy Debord, um dos expoentes situacionistas, deu um acabamento filosófico político ao conceito da seguinte forma: “O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação”.314 A sociedade mesma é o espetáculo à medida que ela se impõe aos sujeitos históricos como algo concreto; é uma parte da sociedade porque existe uma divisão entre o trabalho vivo e o trabalho morto; e um instrumento de unificação que organiza todo o campo da visibilidade a fim de unir os indivíduos enquanto seres separados. Do ponto de vista histórico, o modelo produtivo que sintetizou o fordismo e o toyotismo foi uma prévia do que estava por vir com a sociedade do espetáculo integral,315 na qual o espectador acredita se beneficiar da interatividade, quando, na realidade, participa plenamente e em tempo integral da reprodução ampliada do capital. Na maioria dos casos, as massas se submetem espontaneamente ao espetáculo e se engajam na sua manutenção pagando o tributo que lhes é exigido na forma dupla de trabalho e consumo, convertida na alienação da vida cotidiana. Com base em uma nova plataforma maquínica surge um tipo de poder autoritário que se espalha pelo campo social e floresce na ausência, contando ainda com a adesão das massas aos efeitos especiais do espetáculo integral e suas promessas de felicidade atrelada ao habitus do hiperconsumismo de informações, imagens e toda sorte de bens, materiais e simbólicos, pré-fabricados como veículos da forma-valor. O poder nômade do pancapitalismo se proliferou tanto que fica difícil reverter o jogo das forças políticas, ainda mais se levarmos em conta o dinamismo e a velocidade com que os regimes políticos silenciam, derrotam ou cooptam as forças contrárias das resistências. O CAE percebeu muito bem o sentido que Debord atribuiu ao último modelo do poder espetacular integral: a síntese do poder sedentário e do poder nômade em uma sociedade espetacular integrada. Durante a Guerra Fria as duas grandes potências políticas internacionais, os Estados Unidos e a União Soviética, sob os signos do Capitalismo e do Socialismo, foram os países pivôs de dois modelos de sociedade espetaculares: um de tipo difuso e outro de tipo concentrado. O concentrado foi assim denominado o espetáculo dos estados fascista 314 Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 14. 315 Nos “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”, Guy Debord identifica o “espetacular integrado” como uma terceira forma do “poder espetacular”. Cf. A sociedade do espetáculo, p. 172. Aqui o termo é empregado com uma sutil diferença. O espetáculo torna-se integral no interior do pancapitalismo. 224 e stalinista, cujo olhar voltava-se para cultuar a personalidade do ditador, enquanto o difuso representava o grau máximo de desenvolvimento do capital, caracterizado sobretudo pelas indústrias de imagens que moldam o desejo na forma da mercadoria. Com a queda do Muro de Berlim, o mundo viu gradativamente a expansão planetária do capitalismo se valer dos dois tipos de técnicas espetaculares de reprodução social, cuja síntese deu origem ao denominado espetáculo integrado. A sociedade do espetáculo integrado faz coexistir o espetáculo concentrado, típico dos regimes totalitários, e o espetáculo difuso, cujo poder fracionado nas corporações impele a sociedade a reproduzir a dinâmica de sua própria perpetuação econômica e política. A superfície do espetáculo integral aparenta ser difuso, porém em seu interior, e de forma cada vez mais paradoxal, forma-se uma espécie de estado oculto que impera e parece escapar à consideração até mesmo dos governantes, colocando em risco por vezes a própria governabilidade. Nos termos de Debord: “A sociedade modernizada até o estágio do espetacular integrado se caracteriza pela combinação de cinco aspectos principais: a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo”.316 Imagem 46 – O espetacular difuso, no qual tudo se torna mercadoria. Imagem publicada na revista Internationale Situationniste.317 316 Guy Debord, “Comentários sobre a sociedade do espetáculo”, in A sociedade do espetáculo, p. 175. 317 Internationale Situationniste. Bulletin central édité par les sections de L’Internationale Situationniste. Numéro 10. Paris: Mars 1966, p. 45. 225 Infelizmente Debord não viveu para ver a fase mais tardia do espetáculo, justo agora quando o espetáculo integral forma as novas gerações de espectadores que, doravante, vangloriam-se de sua integração no sistema de consumo via interatividade programada por altas tecnologias, capazes, inclusive, de modular as subjetividades em tempo real. À medida que o poder espetacular penetra a vida cotidiana, as subjetividades são produzidas em conformidade com os imperativos mercadológicos, ao passo que o poder nômade, propiciado pela combinação da eletrônica, da informática e da cibernética, sucede o poder sedentário, englobando o corpo social de uma ponta à outra. E nesse cenário, mesmo o capital torna-se artista, na visão de alguns analistas.318 Um dos efeitos mais notáveis do espetáculo é a sua imensa capacidade de manipulação midiática, que afeta diretamente a percepção pública e o reino das opiniões. Paul Virilio faz uma arqueologia do complexo dos meios de comunicação, na qual demonstra o que denomina golpe de Estado informacional do quarto poder: Se as leis, como previa Montaigne, são ditadas por usos que aceitam indiferentemente o que quer que seja e nascem do mar flutuante das opiniões de um povo ou de um príncipe, os mass media que dispõem do poder de gerar a informação e portanto de agitar o mar flutuante da opinião pública deveriam fatalmente apoderar-se dos usos e dos costumes, através deste conjunto indefinido de regras e proibições que fundam uma legislação da qual eles se tornaram, com o passar dos anos, os ocultos inventores – isto ocorrendo independentemente do regime econômico e político.319 Aproveitando-se dessa situação há quase um século, o espetáculo tem investido em uma série de inovações técnicas para propagar efeitos comunicativos e assim legitimar a si mesmo. A máquina de visão emprega torrentes de imagens para produzir o fetichismo espetacular, o fascínio e a sedução como forma de angariar adesão dos sujeitos ao movimento e ao ciclo reprodutivo da mercadoria. As antigas formas de pilhagem hostis se sofisticaram e agora são formatadas em um modelo de pilhagem amistosa conduzida de modo sedutor, por vezes participativa, conexionista e inclusiva.320 318 É o caso de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Os autores acertam quando defendem a tese de que o capitalismo transestético, ao se apropriar da criatividade artística em seu complexo econômico-estético, opera uma estetização do mundo. O que fazem as vanguardas da arte-revolta é o procedimento contrário: politizam a arte, a cultura e tudo o mais. 319 Paul Virilio. A arte do motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 12. 320 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001, p. 24. 226 Segundo Debord, o espetáculo veicula um modelo ideológico que tende a reificar a realidade pela adesão dos indivíduos aos pressupostos de interpretação da realidade promulgados pelas indústrias socioculturais.321 Na realidade social, os indivíduos agem como receptores/transmissores das imagens e dos discursos de verdade produzidos industrialmente pelo espetáculo. Parece que a saturação de explicações e justificativas do status quo corresponde a uma carência inconsciente das massas em consumir discursos prontos que venham a neutralizar a ameaça da angústia que seria viver sem explicações o absurdo que se tornou a existência da vida cotidiana nas sociedades atuais. Imagem 47 – Ilustração do livro Distúrbio Eletrônico, do CAE.322 321 “O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real”. Guy Debord. A sociedade do espetáculo, p. 138. E também, p. 40-41: “Como vedete, o agente do espetáculo levado à cena é o oposto do indivíduo, é o inimigo do indivíduo nele mesmo tão evidentemente como nos outros. Aparecendo no espetáculo como modelo de identificação, ele renunciou a toda qualidade autônoma para identificar-se com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas”. 322 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 108. 227 Na sociedade do espetáculo, o valor de verdade dos discursos e das imagens produz efeitos de poder que tendem a se sobrepor às subjetividades por ação coletiva, individual e institucional, contornando inclusive o questionamento, a crítica e as atitudes rebeldes com formas de adesão e inclusão pseudovoluntárias ao “movimento autônomo do não-vivo” perpetuado pelo espetáculo.323 Na produção subjetiva, o choque entre universos incorpóreos, sonhos, desejos, crenças, opiniões e ideais coletivos que se vê hoje em dia deixou para trás a predominância das relações de corpos sobre corpos vivos interatuando uns sobre os outros; o teatro das carnes foi tomado por uma dinâmica sociotécnica na qual as máquinas e os dispositivos desempenham um papel crucial e muitas vezes preponderante. Com isso, as estruturas antropotécnicas tradicionais e modernas se desarticulam; a conexão dos corpos aos aparatos cibernéticos opera uma quase completa fusão de homens e máquinas que resulta na formação de antropotécnicas de um outro tipo, por vezes improvisadas e precárias. Com relação às tendências contrárias, a situação não é das melhores. Enquanto nas atuais economias proliferam os figurantes e as vedetes do espetáculo como prestadores de serviços e profissionais liberais, a revolta dos insatisfeitos e rebeldes, que rejeitam os papéis pré-estabelecidos de meros espectadores, assim como a indisposição em contribuir com as tendências do poder, são canalizadas para a burocracia ou ainda para a luta partidária no campo institucionalizado, desviando assim as divergências, a revolta e o antagonismo para longe do campo da resistência cultural. Tal estratégia coopta igualmente a potência da revolta, que poderia levar a uma ruptura radical, para os canais regrados pelo Estado, sempre vigilante contra os arrivistas e revolucionários. Talvez por isso a resistência tradicional, sobretudo o movimento operário clássico, partidário e sindical, durante muito tempo interpretou a cultura como algo secundário em relação à economia, assim como propôs sempre políticas racionais e reformistas com pouco apelo a dimensões não racionais, afetivas e estéticas. Na contramão dessa interpretação de teor marxista, Max Weber e Walter Benjamin explicitamente rejeitaram a tese do determinismo econômico e promulgaram, cada um à sua maneira, a concepção segundo a qual a cultura possui um grau de independência causal relativamente às estruturas econômicas.324 Nos termos de 323 “O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo”. Guy Debord, Ibidem, p. 13. 324 Diz Walter Benjamin: “. Cf. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, in Magia e 228 Benjamin: “A dialética dessas tendências [as tendências evolutivas da arte, nas atuais condições produtivas] não é menos visível na superestrutura que na economia. Seria, portanto, falso subestimar o valor dessas teses para o combate político”. De acordo com Hal Foster: “Os historiadores e antropólogos argumentaram também que o modelo base/superestrutura é historicamente limitado – outros períodos e culturas não podem ser adequadamente medidos por ele”.325 A possibilidade de uma “comutação do cultural e do econômico” coloca uma problemática política à resistência cultural. Na discussão apresentada por Foster, há duas posições quanto ao lugar da cultura no interior das lutas políticas.326 A primeira defende a ideia de que o cultural é um lugar de contestação, e não mero efeito econômico ou reflexo ideológico. Existe enquanto dimensão transversal que atravessa as instituições, as classes e os mais diversos grupos sociais. Abre-se portanto como uma arena, uma dimensão onde distintas forças disputam a hegemonia dos valores, das ideias, das práticas e das subjetividades inerentes a um dado âmbito social. A estratégia de luta na cultura que se segue com essa concepção é de resistência ou de interferência neo-gramsciana no código hegemônico materializado nas representações, nos valores, nos modos de viver, relacionar-se, organizar-se, etc. Outra posição quanto à comutação do cultural e do econômico sofre uma influência pessimista de tons niilistas. Com uma visão totalizante do social a resistência torna-se pífia, por mais que insista, pois de um lado o cultural torna-se uma mercadoria entre outras, talvez até mais importante do que as demais (sobretudo nos países em que há relativo bem estar-social), e por outro, o econômico se apropria da produção simbólica para fins de autorreprodução do sistema como um todo. A totalidade do social e portanto da cultura passa pelo econômico, assim como a cultura torna-se produto selado pelas indústrias capitalistas. Em um modelo assim fechado em si mesmo, no qual cada segmento reproduz a lógica total em cada uma de suas partes de forma inapelável, fica difícil pensar o papel da resistência. Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 166. A tese de Max Weber defendida na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (São Paulo: Martin Claret, 2003) refere-se à influência que fatores culturais exercem sobre o desenvolvimento econômico. No livro A Jaula de Aço: Max Weber e o Marxismo Weberiano (São Paulo: Boitempo, 2014), Michael Lowy apresenta um estudo minucioso do debate implícito entre as teses culturalistas de Weber e as teses econômicas de Marx. 325 Hal Foster, “Por um conceito do político na arte contemporânea”, in Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996, p. 194. 326 Cf. Hal Foster, Ibidem, p. 195-196. 229 As práticas do Critical Art Ensemble se inscrevem com mais coerência na primeira posição. Suas atividades incidem na cultura hegemônica, interferem nos códigos dominantes, direta ou indiretamente, abrindo brechas, catalizando inovações, fomentando contra-sentidos em práticas experimentais. E ainda que a segunda posição estivesse correta na sua leitura da realidade, os arsenais antropotécnicos que o Ensemble agencia (Teatro Recombinante, Intervenções Moleculares, Situações, Distúrbios, Desobediência Civil Eletrônica, Biologia Contestatária) operam seus efeitos destituintes na cultura totalizante, perturbando as dinâmicas ideológicas, cindindo as conexões cibernéticas, desmantelando em suma as maquinarias do sistema que tenta se fechar. De uma forma ou de outra, a estética do distúrbio desempenha sua função de desfazer os poderes instituídos na cultura, liberando espaços em zonas autônomas temporárias, nas situações construídas coletivamente, em atividades que destituem os artifícios implicados nos regimes de poderes e saberes dominantes. Historicamente, a tese que reverte ou coloca em suspenso o primado econômico foi revigorada com o surgimento dos movimentos contraculturais no pós-guerra, que demonstraram na prática o potencial da cultura na mudança dos rumos sociais como um todo. Inclusive, o movimento Provos de Amsterdam e os Situacionistas franceses se valeram desta tese com propósitos revolucionários.327 Com o tempo, diversos artistas, coletivos, produtores culturais e ativistas engajados na micropolítica da vida cotidiana contestaram o aparentemente determinismo econômico afirmando que o primado pode ser revertido desde o campo cultural. Steve Kurtz diz textualmente: Os elementos da sociedade que antes eram considerados abstrações superestruturais da economia que não importavam, realmente importam. Eles têm um impacto causal na determinação de como vivemos, como nos comportamos e qual será a estrutura da sociedade em geral. Então, a cultura torna-se uma grande frente de batalha adicional.328 327 Cf. Matteo Guarnaccia. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad, 2001. Ver também as “Teses sobre a Revolução Cultural” apresentadas por Guy Debord no primeiro número da revista homônima da Internacional Situacionista, de 1958. Cf. Paola Berenstein Jacques (org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. 328 “Those elements of society that were once considered superstructural abstractions of the economy that didn’t matter, actually do matter. They have causal impact in determining how we live, how we behave, and what the structure of society will be in general. So culture becomes an additional major battlefront”. Steve Kurtz, in Konrad Becker e Jim Fleming (Eds.). Critical strategies in art and media: perspectives on new cultural practices. New York: Autonomedia, 2010. Disponível em http://criticalstrategies.t0.or.at/txt?tid=6292cf62466279d6fedff591331f5538 Acesso 15 de julho de 2019. 230 Para além do modelo marxista que correlaciona as forças políticas, sociais e culturais em termos superestruturais, circunscritos portanto pelas estruturas produtivas consideradas determinantes das relações sociais, o CAE se esforça por pensar a resistência na sua dimensão cultural, isto é, em seus caracteres éticos, epistemológicos, estéticos, semióticos e tecnológicos. Trata-se, por conseguinte, de abrir a noção de resistência para uma concepção cultural, na qual as micropolíticas da criação desempenham seu papel sem unificação forçada de objetivos, táticas, estratégias, formas de expressão e organização. Manter a resistência aberta à invenção e à inovação é um princípio basilar que define as micropolíticas da criação. Como anti-autoritários, estamos sempre em posição minoritária, nossas políticas nunca são as políticas dominantes, elas são sempre uma forma de resistência, e quando estamos nessa posição minoritária, acho que nos convém sermos bastante tolerantes com pessoas que tentam várias formas de resistência em níveis muito diferentes de intensidade. Eu não acho que nos ajuda tanto dizer: “Estou desenhando a linha aqui, qualquer pessoa do outro lado dessa linha é parte do problema!” Eu não posso realmente viver com isso. Mas isso também não quer dizer que a crítica séria de se localizar em certo ponto ao longo do continuum da resistência e não em outro não seja valiosa.329 A própria noção de vanguarda se modifica no contexto contemporâneo. Inicialmente, as vanguardas da arte-revolta avançaram até os limites da transgressão em suas variadas formas em relação a normas, códigos e valores; trataram as antropotécnicas existentes com desdém, inventaram seus próprios meios alargando assim o conceito de arte. Posteriormente, com a esfera artística liberada, as neovanguardas deixam de compor o setor avançado na transgressão para se tornar cada vez mais coalizões que se posicionam na linha de frente da resistência cultural, sempre que se afirmam, em atos, agentes catalisadores de formas de vida outras, de maneiras de pensar, sentir, agir, relacionar-se, organizar-se e viver autoposicionadas por potências irredutíveis aos aparelhos de captura, aos efeitos sobrecodificadores que insistem em reificar, muitas vezes inutilmente, uma realidade inapreensível, vibrátil, mutante e indeterminável. 329 “As anti-authoritarians we are always in the minority position, our politics are never the dominant politics, they are always a form of resistance, and when we are in that minority position I think it behooves us to be fairly tolerant of people trying various forms of resistance at very different levels of intensity. I don’t think it helps us all that much to say, ‘I am drawing the line here, anyone on the other side of that line is part of the problem!’ I can’t really live with that. But this is also not to say that serious criticism of locating oneself at a certain point along the continuum of resistance and not another is not valuable”. Steve Kurtz, in Konrad Becker e Jim Fleming (Eds.). Critical strategies in art and media: perspectives on new cultural practices. 231 Mas como então se pode resistir ao espetáculo na dimensão cultural? No contexto da arte-revolta, sobretudo pós-situacionista, não faz mais sentido produzir arte se não for para transformar a realidade. O adágio situacionista mais complacente era o de que a arte deveria ser usada para fins situacionistas. A participação que se exige nas investidas artísticas, desde então, possui um caráter ativador das relações sociais. Eis o principal motivo de colocar o público no centro das experiências artísticas: restituir-lhe seu papel humano ativo. No fundo, haveria algo profundamente existencialista nessa concepção de arte-revolta, não fosse o componente sociológico que lhe é intrínseco. Jacques Rancière reconhece a importância do conceito crítico elaborado pelos situacionistas na história da arte-revolta contemporânea ao afirmar que “a ‘crítica do espetáculo’ permanece muitas vezes o alfa e o ômega das ‘políticas da arte’”.330 O significado da resistência ao espetáculo na sua acepção crítica, quando aplicado especificamente ao universo da arte, pode ser compreendido com os aportes de Benjamin, constantemente mobilizados por grupos da arte-revolta contemporânea. No ensaio “O autor como produtor”, Benjamin propõe pensar a produção literária, teatral e, portanto, artística no interior de uma teorização marxista mais ampla que vincula a discussão da arte com a luta de classes. Há pelo menos dois pontos importantes que vale mencionar: a do artista operador e a refuncionalização dos meios. Primeiro, a distinção feita por Tretiakov entre o escritor operativo e o informativo. “A missão do primeiro não é relatar, mas combater, não ser espectador, mas participante ativo”.331 O escritor pode muito bem representar o artista em geral que, ao invés de simplesmente oferecer sua arte, age como um produtor do mundo real, por meio de ações engajadas nos acontecimentos políticos. O próprio Tretiakov ilustra sua atividade enquanto produtor, diz Benjamin: Quando na época da coletivização total da agricultura, em 1928, foi anunciada a palavra de ordem: “Escritores aos colcoses!”, ele viajou para a comuna Farol Comunista e em duas longas estadias realizou os seguintes trabalhos: convocação de comícios populares, coleta de fundos para a aquisição de tratores, tentativas de convencer os camponeses individuais a aderirem aos colcoses, inspeção de salas de leituras, criação de jornais murais e direção do jornal colcós, reportagens em jornais de Moscou, introdução de rádios e de cinemas itinerantes, etc.332 330 “The ‘critique of the spectacle’ often remains the alpha and omega of the ‘politics of art’”. Citado por Claire Bishop, “Participation and spectacle: where are we now?”, in Nato Thompson (Ed.). Living as Form: socially engaged art from 1991-2011, p. 35. 331 Walter Benjamin, “O autor como produtor”, in Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, p. 123. 332 Walter Benjamin, Ibidem, p. 123. 232 A simples descrição das atividades de Tretiakov colide com o que se espera de um escritor burguês, o gênio das palavras inspiradas. Um escritor, enquanto produtor, além de escrever, participa ativamente do ambiente político, produzindo junto aos demais uma realidade social, cultural, outra. Deixando de lado o teor claramente marxista do ensaio, o autor enquanto produtor nada mais é do que o artista engajado nas lutas práticas que lhe concernem politicamente. Bertolt Brecht também é citado no mesmo ensaio. É dele a criação do conceito de “refuncionalização” para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista.333 A exigência fundamental passa a ser “não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar”. O que se pretende com isso não é senão tornar o artista (autor) um agente de transformação, a começar pelos meios técnicos cujos fins cabe modificar. Para Brecht, trata-se de buscar fins socialistas, mas no que se refere à discussão sobre a resistência cultural e suas micropolíticas da criação no âmbito da sociedade do espetáculo, isso significa que não cabe ao artista produtor alimentar indiscriminadamente o aparelho espetacular, que se nutre de toda e qualquer produção meramente artística para lucrar. Do ponto de vista da arte-revolta, comprometida portanto com a transformação social, por menor que seja, convém imprimir um valor de uso revolucionário àquilo que se produz, e com esse objetivo o meio de produção cultural torna-se uma máquina de guerra artística. Nesta perspectiva engajada, é preciso refuncionalizar os meios de produção culturais e artísticos em função do desmantelamento, da destituição dos meios culturais autoritários e dos meios econômicos predatórios capitalistas. Benjamin ilustra essa refuncionalização com os dadaístas, que inventaram os gestos radicais determinantes de quase toda a história da arte moderna posterior. O exemplo mobilizado por Benjamin, no entanto, está circunscrito a uma questão estética secundária e tem pouca importância se comparada ao gesto radical que funda o movimento e demarca um antes e depois na história da arte, o primeiro ato autenticamente revolucionário advindo do campo das artes. Em uma fórmula: a expropriação da arte. Os dadaístas demoliram as barreiras que separavam a arte da vida, atacando a própria noção burguesa de arte tradicional. Esse gesto, que hoje pode parecer trivial para alguns, foi da maior importância. No início, a pretensão era destruir a arte por dentro e por fora, mas o que aconteceu em decorrência do supremo ato dadaísta foi algo ainda 333 Id. Ibidem, p. 127. 233 mais visceral. Na ânsia de destruir, o dadaísmo declarou guerra à arte e libertou a atividade criativa das fortificações ideológicas burguesas (e suas limitações institucionais) que se amparavam nas definições de arte e artista de feições românticas. Com esse gesto destruidor, as antropotécnicas artísticas burguesas foram desmanteladas em atos: o campo da arte, tomado de assalto, alargou-se e se expandiu para incorporar novas antropotécnicas experimentais de toda ordem: colagens, garatujas, técnicas simplórias de pinturas, primitivismo, performances, agitações, etc., compuseram então os arsenais da arte-revolta. Assim, fazer arte deixou de ser atividade especializada de virtuoses técnicos. Tornou-se possível para qualquer pessoa comum tomar parte ativa na guerra artística deflagrada pelo grito dadaísta. Todos os meios de produzir arte-revolta tornaram-se válidos e com isso as armas culturais se multiplicaram. Com a descodificação dadaísta dos meios de produção ético- estéticos das artes, em tese qualquer indivíduo está apto a assumir seu papel ativo na guerra artística. E em decorrência do mesmo ato, a máquina de guerra artística multiplicou seus meios de ação. Numa leitura retrospectiva, a arte tornou-se mídia tática disponível socialmente e imediatamente apropriável por qualquer pessoa. Enquanto o paradigma estetizante, desde o fascismo, submete a arte a propósitos de propaganda e dominação, o ato dadaísta instaura o paradigma da arte-revolta que desencadeia a expropriação dos meios de produção artísticos e sua infinita multiplicação para fins de resistência.334 Peter Sloterdijk nomeia o acontecimento e seus desdobramentos na arte moderna como a “catástrofe da arte”.335 Interpreta o fenômeno à luz da maestria técnica perseguida pela arte tradicional que até o início do século XX reinava praticamente sozinha como arte bela. O autor afirma que, ao longo de cem anos, as três gerações de artistas das artes visuais (de 1910 a 1945, de 1945 a 1980 e de 1980 a 2015) “alargaram o âmbito do seu ofício lançando-se numa busca vertiginosa de novas maneiras de fazer”.336 Os artistas modernos abandonaram a ideia de prosseguir a corrente de imitações temáticas, técnicas e formais, e se dispuseram a experimentar sem limites. O que é denominado de catástrofe, no entanto, nada mais é do que efeito da recusa em continuar o trabalho da mimesis nos temas, nas formas expressivas e nas técnicas já conhecidas, e 334 A estetização se dá em função dos poderes constituídos, que instrumentalizam as artes (é a captura). A politização da arte (que Benjamin identifica com o uso comunista) se faz pela arte-revolta e tem como paradigma histórico a deflagração da guerra dadaísta. 335 Cf. Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica. Lisboa: Relógio D’Água, 2018, p. 532ss. 336 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 531. 234 uma afirmação da busca por outras formas de exprimir o conteúdo artístico sem passar pelo crivo da maestria e da tradição. Sloterdijk identifica um dos fatores dessa mudança em decorrência do deslocamento do poder de produção (as antropotécnicas da maestria) para a o poder da exibição (arte para efeitos de consumo massivo). Quem primeiro mostrou a passagem da obra de arte de seu ambiente ritual aurático, na qual a obra se presta à contemplação, para a esfera pública aberta na qual o poder de exposição prepondera, foi Benjamin no seu clássico ensaio sobre a obra de arte. Na passagem do culto à obra para a arte na dimensão política, Sloterdijk diagnostica a degradação das formas tradicionais de se produzir artes visuais. Diz ele, com o deslocamento da arte como poder de produção (...) para a arte como poder de exibição (...), a forma de imitação que se torna dominante [a busca vertiginosa por novas formas expressão] é a que vira as costas ao ateliê para colocar o lugar da apresentação no centro dos acontecimentos.337 No entanto, é preciso distinguir a arte-revolta do que se tornou o modernismo. De fato, a revolta estava na fonte do modernismo,338 mas o que se viu desenvolver entre os modernistas foi uma linha evolutiva de experimentações formais e técnicas circunscritas ao campo artístico. Algo muito diferente ocorre na arte-revolta, pois o ímpeto inflamado pelas vanguardas clama pela imersão da arte nos problemas da vida. Se havia um projeto implícito nas vanguardas era o de fazer a arte desaparecer na vida e portanto na política (“superação da arte na práxis de vida”, ou ainda, “superação da instituição arte, união de arte e vida”, nas formulações de Peter Burger).339 O modernismo fez o contrário, refugiou-se na esfera artística. Historicamente, enquanto o modernismo montava seu teatro de operações nas galerias, entre críticos de arte, curadores, marchands e investidores, a arte-revolta rebelou-se contra todos os bunkers artísticos, ateliês, museus, galerias, contra o campo artístico em suma, porque eles estariam muito distantes da vida que era preciso 337 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 532. 338 “Segue-se daí que, enquanto uma forma de arte pode ser identificada como moderna com base unicamente em seu estilo, chamar de modernista uma obra de arte é estabelecer uma distinção mais sutil. É registrar o seu surgimento como indicativo de certos posicionamentos e atitudes críticos adotados pelo artista em relação tanto à cultura mais ampla do presente quanto à arte do passado recente”. Charles Harrison, “O que é o modernismo”, in Modernismo. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 14. 339 Cf. Peter Burger. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac & Naify, 2014, p. 17 e p. 108 respectivamente. 235 transformar. No formalismo moderno, o que se revelou com o abandono das técnicas artísticas tradicionais foi o surgimento de um sistema artístico autocentrado cuja maior característica seria a sua perda de contato com o mundo. Sloterdijk diz então que na terceira geração da imitação-selfishness cega (o modernismo levado aos extremos), tem tudo, exceto uma relação explícita com o mundo. Se a obra de arte, como dizia Heidegger, dis-põe um mundo carregado de sentido, a arte autorreferencial que circula nos museus autocentrados exibe muitas vezes obras carentes de sentido, vazias de mundo porque estéticas supostamente puras. “O que dis-põe, é o seu corte manifesto com tudo o que se situa no exterior da sua própria esfera”.340 A arte-revolta, pelo contrário, surgiu do ímpeto em tornar a arte um meio de interferir na vida, não para efeitos “artísticos”, mas para efeitos concretos, culturais, comportamentais, metanoicos, políticos. A máquina de guerra dadaísta demoliu as fronteiras entre a arte e a vida com esse propósito. O que o modernismo fez, na busca incessante e autorreferencial, foi afastar-se cada vez mais, isolando-se em seu universo à parte. A divisa l’art pour l’art tornou-se the art system for the art system, diz Sloterdijk.341 Enquanto a arte-revolta luta para realizar as potencialidades da arte na vida, o modernismo pôs em marcha sua própria catástrofe, hoje reconhecida nos bunkers da arte- selfishness. Essa já era a crítica feita pelos dadaístas e situacionistas. Essa foi a crítica realizada por Camus na obra O Homem Revoltado quanto à arte puramente formal que perde qualquer contato com o mundo.342 Esta é ainda a crítica dirigida pelos grupos da arte-revolta do presente à arte-espetáculo. Por motivos muito diferentes dos que parecem animar Sloterdijk. Na crítica do espetáculo, o artista enquanto produtor, no sentido benjaminiano, opera mudanças significativas no meio de produção, a partir do momento em que se recusa a simplesmente alimentar o aparelho, produzindo, por exemplo, meros objetos estéticos consumíveis, para, em vez disso, investir em matrizes performativas que rompem com a passividade generalizada que o mundo consumista típico do capitalismo reproduz. Que o espetáculo induza a passividade pela fruição estética de modas cíclicas, isso não impede que a arte-revolta refuncionalize os meios de produção artísticos existentes em um sentido crítico (é o que faz a mídia tática), porém, o mais importante é 340 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 533. 341 Peter Sloterdijk. Tens de mudar de vida: sobre antropotécnica, p. 534. 342 A crítica feita ao formalismo (sua recusa total da realidade) é dirigida também ao realismo pelo motivo inverso (sua adesão completa ou irrefletida ao que supostamente existe). Cf. Albert Camus, “Revolta e estilo”, in O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 307ss. 236 a modificação ou mesmo invenção do meio de produção, que pode se tornar então ativador da participação dos indivíduos e grupos nas lutas em curso. Por isso, a resistência cultural contra a sociedade espetacular que tem se destacado desde Maio de 68 aposta em artes participativas, coletivas, relacionais, comunitárias, situacionistas e mídia táticas. Suas matrizes performativas de ação e produção culturais ultrapassam os meios produtivos do espetáculo ao exigirem uma outra postura do público, e ao mesmo tempo, por promoverem engajamentos de todos aqueles a quem tocam de alguma forma. Assim, espera-se que os sujeitos se posicionem de outra maneira na realidade: que renunciem à passividade que lhes mantém na condição de sujeitados e assumam seu lugar ativo nas lutas de seu tempo. A resistência cultural de que trata o Critical Art Ensemble não é do mesmo tipo que se denominou uma resistência de classe como no modelo marxista. A chamada resistência cultural, mais do que ser exatamente uma resistência específica (classista, étnica ou de gênero, por exemplo), ou ainda institucional, configura-se como uma multiplicidade de micropolíticas da criação que atuam nos mais diversos campos da cultura, em termos estéticos, performáticos e tecnológicos que afetam os aspectos comportamentais, éticos, políticos e antropotécnicos da cultura. Face ao poder dominante que molda a cultura, caracteriza-se por uma postura ativa de autodeterminação que tem seu fundamento na afirmação de uma contracultura e do modo de ser daqueles que resistem. Por isso também, talvez não seja a melhor forma falar de uma cultura da resistência unívoca, senão que, mais propriamente, de processos de resistência contraculturais ante os poderes e seus modelos de vida dominantes que a todo custo tentam se impor às singularidades. O campo dessa resistência necessariamente plural comporta, portanto, diversas frontes de atuação, maneiras distintas de se autoafirmar e se contrapor no campo social e político. Na realidade da vida cotidiana, cabe a cada sujeito, a cada grupo ou coletivo colocar em prática seu modo particular de resistir à dominação que constrange a autonomia e a liberdade. Essa é a novidade da micropolítica da criação trazida pela máquina de guerra artística. O ponto em comum capaz de aproximar as formas de resistência cultural díspares é, na perspectiva do CAE, a luta contra as tendências autoritárias na esfera da cultura, ou seja, a luta que rejeita, a um só tempo, a cega obediência ou a leniente aceitação das forças que pretendem imperar sem apelos sobre os indivíduos, grupos, povos e instituições, e igualmente atacar o poder nômade do pancapitalismo nas suas formas de se reproduzir na 237 cultura e na vida cotidiana. A médio prazo, o resultado da convergência das diversas formas de resistência pode ser um impulso eficiente no desenvolvimento de uma espécie de cultura libertária, por princípio aberta, fluida, complexa e metamórfica. A questão fundamental passa a ser então saber quais são os impactos que um experimento cultural dessa natureza podem desencadear na política global, nas relações micropolíticas da existência e no palco da vida cotidiana. Situações e Revolução Cultural Permanente Nos primórdios de sua trajetória, o CAE investia muita energia na produção de eventos. Tudo era planejado, projetado e executado por seus membros. Os meios empregados para se expressar eram muito variados, no mais das vezes, as atividades eram elaboradas em conformidade com o local, a instância e o espaço em questão. Não à toa, o grupo é referido aos artistas que praticam site-specific art, uma modalidade de intervenção artística que se molda ao lugar de atuação, que implementa projetos específicos ao local, seja em termos geográficos, arquitetônicos, comunitários, sociais, antropológicos ou simplesmente ambientais.343 Os meios expressivos sempre variaram: arte comunal, instalação em museus, exibições em galerias, ações de telepresença, projeção de slides, performances, entre outros. Tudo combinado com abordagens ora mais intelectuais, como palestras, obras conceituais, ora mais práticas, como trabalhos estilo arte-guerrilha nas ruas. Quando o computador tornou-se um equipamento comum, logo foi incorporado como uma das ferramentas importantes para a elaboração de projetos e intervenções, sobretudo depois que a internet foi popularizada. No entanto, mesmo com tantas possibilidades de ação, o CAE sempre priorizou um aspecto em especial: o engajamento no imediato. Ao invés de produzir artes para o mercado, a primazia na experiência, na experimentação. É o que afirma o CAE em uma entrevista de 1997: Nós tínhamos atividades que engajavam no imediato. Geralmente, tais ocorrências não emergem da arte. Elas vêm de outras maneiras. Gostamos do aforismo de André Breton: “A beleza será convulsiva ou não será”. A arte tem poucas características convulsivas. Ir a uma galeria é mais como ir à igreja, já que é um ambiente repressivo. Agora há muitas atividades no mundo que têm a ver com imediatismo, 343 Cf. Miwon Kwon. One place after another: site-specific art and locational identity. London: Mit Press, 2002, p. 7, p. 151-152. 238 sensualidade direta e pedagogia extrema; infelizmente, a maioria dessas atividades, especialmente nos EUA, é ilegal. A pergunta do CAE era: como criar situações através do uso de produção cultural que, de alguma forma, tornasse a atividade cultural excitante e divertida, ao mesmo tempo em que provocaria uma perspectiva política radical? É claro que em nosso caminho estão as estruturas autoritárias da cultura. Esse bloqueio levou a um corpo de trabalho destinado a expor ou interromper essas estruturas, e à criação de ambientes ou situações em que o poder autoritário (dominação) seria diminuído. Então, em um sentido geral, nossa missão permaneceu a mesma. Em um sentido particular, questões específicas mudam à medida que a cultura muda.344 Eis a principal linha de ação do Critical Art Ensemble: criar situações, que sejam excitantes, envolventes e divertidas para o grupo e os demais participantes, e que ao mesmo tempo instiguem a eclosão de perspectivas políticas radicais. A dimensão do desafio torna-se perceptível pois as situações esbarram nas estruturas autoritárias da cultura, que tentam impedir ou dificultar a experimentação para além de seus limites artificiais pretensamente universais e inamovíveis. Em um contexto com essas características, restam ao menos duas alternativas: criar e promover situações por meio das quais as estruturas de poder são expostas, reveladas e por fim perturbadas em suas normalidades, ou então, aprofundar os efeitos libertários das situações vividas, criando ambientes, instâncias, relações, zonas espaço- temporais de autonomia nas quais o poder é destituído de seus efeitos reificadores. Assim, os poderes autoritários inscritos na cultura, que não admitem a experimentação do desejo, do livre pensar, de formas de vida diferenciadas, são desafiados onde eles mesmos tentam se manter e se reproduzir, nas instituições, nas relações, nas representações discursivas, nos comportamentos irrefletidos. Digno de nota também é a apropriação que o CAE faz da definição de beleza como algo convulsivo, concepção que reverbera na estética do distúrbio. 344 “We were activities that engaged the immediate. Generally, such occurrences do not emerge out of art. They come out in other ways. We like Andre Breton’s aphorism: ‘Beauty will be convulsive or not at all’. Art has very few characteristics that are convulsive. Going to a gallery is more like going to church, since it’s such a repressive environment. Now there are plenty of activities in the world that have to do with immediacy, direct sensuality, and extreme pedagogy; unfortunately, most of these activities, particularly in the US, are illegal. CAE’s question was, how do we create situations through the use of cultural production that would somehow make cultural activity exciting and fun, while at the same intiating a radical political perspective? Of course standing in our way are the authoritarian structures of culture. This blockage led to a body of work aimed at either exposing or disrupting these structures, and to the creation of environments or situations in which authoritarian power (domination) would be diminished. So in a general sense, our mission has remained the same. In a particular sense, specific issues change as culture changes”. CAE, Interview, Nettime.org, 1997, Part 1. Disponível em http://amsterdam.nettime.org/Lists-Archives/nettime- l-9708/msg00102.html Acesso 10 de julho de 2019. 239 Nas últimas décadas, o conceito de situação tornou-se central para uma parte considerável da arte-revolta, incluindo o CAE, sobretudo nas vertentes performáticas. No resgate que Yates McKee faz da história da arte contemporânea nas suas relações com as políticas da democracia, o Critical Art Ensemble é tratado como um coletivo neossituacionista.345 A trincheira política dos situacionistas deslocou o universo da arte para o espaço público, e a revolução para o campo da cultura. O urbanismo unitário e a psicogeografia situacionistas prefiguraram distintas apropriações criativas dos espaços sociais urbanos, nas ruas, nas paredes, nas passagens, nos equipamentos sociais. As pichações, o stencil, alguns esportes radicais urbanos, como o parkour e o skate, entre outras formas de ação micropolíticas, tornaram-se práticas juvenis importantes nas décadas seguintes, antes das ruas serem tomadas pela violência. Os situacionistas conclamavam os revolucionários profissionais a atuarem na cultura, promovendo desvios, projetos coletivos, intervenções diretas sobre o espaço urbano e social, de modo a remodelarem a vida cotidiana sem intermediações. O conceito- chave que deu nome ao grupo é assim definido: “Situação construída: Momento da vida concreta deliberadamente construído pela organização coletiva de uma ambiência unitária e de um jogo de acontecimentos”.346 Os situacionistas promulgavam a seguinte concepção de resistência cultural: A orientação realmente experimental da atividade situacionista consiste em estabelecer, a partir dos desejos reconhecidos com maior ou menor clareza, um campo de atividade temporária favorável a esses desejos. Só o seu estabelecimento pode esclarecer os desejos primitivos e o aparecimento confuso de novos desejos cuja raiz material será a nova realidade constituída pelas construções situacionistas.347 Os situacionistas tornaram-se conhecidos por suas teses em defesa da revolução cultural que influenciaram o Maio de 68. Surgida do campo artístico, a Internacional Situacionista ampliou suas frontes de batalha para a esfera da cultura e trouxe a discussão política radical para a vida cotidiana, na qual se formulam e materializam os desejos, a imaginação, o prazer, a revolta. Assim, a luta revolucionária deixa de ser unicamente 345 Cf. Yates McKee. Strike art! contemporary art and post-Occupy condition, p. 50-51. 346 Internacional Situacionista, “Definições”, in Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 65. 347 Internacional Situacionista, “Questões preliminares à construção de uma situação”, in Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade, p. 62. 240 contra a economia política e torna-se cultural. Ao mesmo tempo, dirige seus arsenais contra as representações políticas das democracias burguesas e desfere golpes implacáveis na forma de críticas radicais ao regime soviético, considerado equivocado e falsamente socialista. As fórmulas do dadaísmo e do surrealismo são atualizadas ao contexto do pós- guerra no conceito operativo de situação e desde então a fórmula situacionista inspira coletivos, artistas e produtores da resistência nos mais variados cenários culturais. Ao considerar a difusão das artes performáticas nos anos 70, engajadas no imediato das relações sociais vivas, e o sucesso das zonas autônomas temporárias nos anos 80, que atualiza os situacionistas para as novas gerações sobretudo na cultura-revolta norte-americana, não será exagero afirmar que o conceito de situação, enquanto ambiência coletiva criada pelo desejo, pode ser considerado uma das invenções mais proeminentes da história da arte-revolta do século XX. Nele se consubstancia um significado prático mobilizador de relações e experiências coletivas, ou para usar uma linguagem contemporânea, um dispositivo pragmático, social e micropolítico, que de certa maneira atualiza o anseio legado pelas vanguardas históricas de unir arte e vida diretamente. Transformar o mundo (Marx) e mudar a vida (Rimbaud) tornam-se uma só fórmula entre os situacionistas. Inspirado no situacionistas, o Critical Art Ensemble prolonga a resistência na cultura por considerá-la uma dimensão fundamental da vida política. Embora não trabalhe com a noção tradicional de revolução, o grupo incorpora como sua palavra de ordem a “revolução cultural permanente” e investe seus esforços na criação de situações e ambiências coletivas desafiadoras, a fim de contribuir com a reconfiguração da cultura em seus diversos registros, simbólicos, imagéticos, comportamentais, reflexivos e tecnológicos. Mais do que limitar a cultura a suas expressões artísticas, como música e literatura, a cultura, segundo o CAE, deve ser entendida em um sentido mais amplo: A cultura é a soma total de componentes sociais ideacionais e materiais, como valores, normas, linguagem e artefatos. Infelizmente, formas específicas dessas categorias se tornam hegemônicas. Por sua vez, outras categorias são marginalizadas ou eliminadas (...) Para o CAE, a cultura é um termo amplo que abrange tudo, do social ao político e ao econômico.348 348 “Culture is the sum total of ideational and material social components such as values, norms, language, and artifacts. Unfortunately, specific forms of these categories become hegemonic. In turn, other categories are marginalized or eliminated (…) For CAE, culture is a grand term that encompasses everything from the social to the political to the economic”. CAE, Interview, Nettime.org, 1997, Part 1. 241 As intervenções do CAE são dirigidas diretamente à cultura ao invés de insistir na arena política institucionalizada (da política Estatal) ou na esfera econômica (por meio do sindicalismo). O que se pretende com isso não é evadir-se das lutas, ou recusar as possibilidades inerentes a outras frentes políticas, mas atuar na dimensão onde rumos existenciais igualmente importantes se decidem, no interior da vida cotidiana, diretamente sobre as pessoas, nos espaços de interação, ao estilo situacionista, sempre com o fito de reconfigurar a cultura. A estratégia da resistência cultural permanente tem como premissa a ideia de que a cultura é uma variável com potencial de transformação real sobre a vida, e pode até mesmo, em determinadas circunstâncias, sobrepor suas tendências às reificações econômicas, estatais ou institucionais hegemônicas. O CAE atribui aos situacionistas franceses uma ideia essencial para a resistência cultural: Eles [os situacionistas] nos ensinaram que a batalha cultural é uma batalha em si e que nenhuma luta política pode ter sucesso a menos que seja acompanhada pela produção de uma contracultura, tanto uma cultura de resistência quanto uma cultura resistente.349 Coube aos movimentos contraculturais dos anos 60 demonstrar a força da cultura de resistência face aos imperativos econômicos e políticos de então. Na França, os situacionistas tinham como lema uma frase curiosa: “Não queremos morrer de tédio”. O capitalismo pode assumir a forma do wellfare state, mas se mostra incapaz de conter o descontentamento, a revolta e a potência criadora do desejo que não se pode realizar segundo a lógica puramente capitalista. A contracultura norte-americana é a prova histórica de que a revolta e a contestação são movimentos afirmativos, pró-ativos, criadores e não meramente reativos. A revolta não surge como efeito simples do poder, da opressão, da miséria. Ela eclode muitas vezes como vontade de potência, desejo de inovação, força experimental que se projeta no mundo, salta das subjetividades e adentra no cenário social da cultura como fenômeno vivo. O movimento pelos direitos civis, os panteras negras, o movimento 349 “Ils nous ont appris que la bataille culturelle est une bataille en soi et qu’aucune lutte politique ne peut aboutir si elle n’est pas accompagnée par la production d’une contre-culture, à la fois culture de la résistance et culture résistante”. Cf. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble, Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 148-149. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-mouvements-2011-1-page-143.htm Acesso 10 de julho de 2019. 242 antibelicista, os ambientalistas e os hippies são exemplos de como as formas de vida culturais que não passam pela instituição política oficial, nem tem apelos diretamente econômicos, operam efeitos nas mais distintas dimensões da vida social. Ainda que a cultura tenha sido capturada pelas indústrias de entretenimento, enquanto fenômeno vital, a cultura emana de outras fontes. A cultura-revolta que resiste nos interstícios das instituições hegemônicas da cultura-espetáculo produz, fabrica e agencia uma máquina de guerra que propulsiona os desejos libertários. A escolha pela aplicação de uma micropolítica da criação e, portanto, sem mediações de qualquer tipo, evidencia a afinidade das pragmáticas do CAE com o princípio do it yourself do movimento punk, propagado no cenário underground Hardcore nos Estados Unidos e demais países industrializados na década de 1980. Segundo o testemunho de Steve Kurtz, os membros fundadores do CAE passaram pelo movimento punk quando eram jovens,350 o que talvez explique certo ceticismo do grupo quanto às utopias. Afinal, foi o movimento punk que, no final da década de 1970, fez ecoar de forma radical a revolta de jovens desiludidos com o mundo destinado a eles pelo modelo de vida capitalista. Depois do dadaísmo, o grito punk – No future!– reativou uma recusa quase absoluta que por vezes beirou o niilismo.351 Nos ensaios que compõem seus livros, o coletivo dialoga com a esquerda tradicional e o marxismo teórico, porém, por recusar que a produção seja a regra da organização social e da vida como um todo, o CAE se aproxima da postura situacionista (e sua crítica do trabalho e da produção como valores em si) e explica a desconfiança face ao marxismo (que organiza seu pensamento e sua luta em torno da questão da produção e da produtividade). Quanto às posições mais gerais, “elles étaient clairement du côté de la pensée anarchiste”, estão claramente do lado do pensamento anarquista.352 Realmente, não se pode negar a influência das ideias e dos ideais ácratas sobre a prática e o estilo adotados pelo grupo ao longo de sua trajetória. A aposta na formação de grupos de afinidades, ao invés de se vincular a partidos, e a preferência por coalisões 350 “M.: La culture punk a donc été importante pour les membres du groupe?. – Steve Kurtz: Oui, clairement, nous avions tous été punks dans l’adolescence. Nous avions tous cet ethos expressionniste caractéristique du punk”. Cf. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble, Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 143-158. 351 Para maiores detalhes sobre o movimento punk, suas apropriações e transformações nas décadas recentes, ver o estudo do pedagogo e cientista social Vantiê Clínio C. de Oliveira. O movimento anarcopunk: a identidade e a autonomia nas produções e nas vivências de uma tribo urbana juvenil. Natal: Edição do Autor, 2008. 352 Cf. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble, Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 148. 243 descentralizadas que primam pela autonomia dos participantes, indicam uma postura política alinhada aos princípios de organização anarquistas. Entre influências e inspirações situacionistas, punks e anarquistas, o CAE elabora sua própria coerência política vinculada à resistência cultural. Esses elementos culturais constituem parte importante da cultura-revolta que atravessou a segunda metade do século XX, e da década de 1990 em diante tem desempenhado um papel importante nos movimentos de contestação sociais heterodoxos pós-industriais. A noção de situação e a pragmática das zonas autônomas temporárias, que fazem sucesso nas linhagens da arte- revolta e nos movimentos sociais contemporâneos, estão em pleno acordo com o princípio punk do it yourself, bem como a ação direta e a recusa a toda forma de autoritarismo presentes no anarquismo histórico.353 É o que se comprova, afinal, com a declaração do coletivo: “Agir como agentes da anarquia cultural (isto é, diversidade máxima) é outro objetivo do CAE. Nós queremos revelar e promover perspectivas alternativas ou produzir uma situação na qual elas possam se revelar”.354 A escolha pela resistência artística, midiática, micropolítica, intervencionista na cultura fundamenta-se na convicção de que os regimes semióticos são tão importantes quanto os regimes materiais e econômicos. A luta cultural é transversal a todo o campo social, perpassa os registros político, econômico, subjetivo, discursivo, imagético, conceitual e afetivo. Paralela a outras lutas progressistas, a revolução cultural permanente oferece a sua contribuição para os movimentos contemporâneos de resistência. Resistência, Revolução e Destituição Em um cenário político tomado de forma quase completa pelo poder, uma efetiva revolução, nos termos modernos, parece improvável, para não dizer impossível, pois as pessoas estão engajadas (desde dentro pelo desejo, e por fora nos processos de reificação) nos processos de dominação. A única alternativa realista é a expressão da revolta que impulsiona a resistência em suas várias formas de ação afirmativas; afinal, se o poder se instalou em cada ponto da sociedade e fez valer seus efeitos criando uma dimensão virtual para acessar qualquer lugar a todo momento, então tudo indica que a saída será resistir a 353 Para uma breve apresentação do anarquismo, suas origens e características, ver Nicolas Walter. Do anarquismo. São Paulo: Imaginário, 2000. 354 “To act as agents for cultural anarchy (that is, maximum diversity) is another CAE goal. We want to either reveal and promote alternative perspectives or to produce a situation in which they can reveal themselves”. CAE, Interview, Nettime.org, 1997, Part 1. 244 ele igualmente em cada ponto se apropriando das ferramentas tecnológicas para virá-las contra ele. A análise política da resistência e do poder contemporâneos proposta pelo CAE por vezes manifesta um viés cético, para não dizer pessimista, face à titanomaquia com que se reveste o pancapitalismo. Ademais, o grupo faz uma leitura histórica das revoluções sem qualquer nostalgia, como quando afirma que as revoluções, ainda que pareçam vitoriosas, findam substituídas por um novo regime de poder instalado para obliterar as forças da revolta, e o que resta dos acontecimentos revolucionários são os lapsos históricos liberados temporariamente dos grilhões institucionais opressores. Nesse sentido, o ideal de revolução precisa ser despido de seu fetichismo teleológico ou metafísico, para dar vez a uma noção mais próxima da realidade da vida cotidiana. Dessa forma, a resistência deixa de ser considerada um meio de preparação para a revolução por vir, e torna-se um fim digno de ser praticado a partir da existência coletiva e individual na esfera da cultura. Ao adotar essa perspectiva, o próprio caráter da resistência muda, pois desloca a visão de conjunto sobre como prover a existência de autonomia desde já, sem recorrer a promessas vindouras em um futuro idealizado. Como a revolução não é uma opção viável, a negação da negação é o único curso de ação realista. Após dois séculos de revolução e quase revolução, uma lição histórica aparece continuamente – a estrutura autoritária não pode ser destruída; só pode ser resistida. Toda vez que abrimos nossos olhos depois de percorrer o caminho brilhante de uma revolução gloriosa, descobrimos que a burocracia ainda está de pé. Encontramos a Coca-Cola saindo e deixando a Pepsi-Cola em seu lugar – parece diferente, mas tem o mesmo gosto. É por isso que não há necessidade de temer que um dia nós iremos acordar e encontraremos a civilização destruída por anarquistas loucos. Essa ficção mítica se origina no estado de segurança para incutir no público um medo de ação efetiva.355 À medida em que o ciberespaço se torna um lugar privilegiado para as interações sociais, rivalizando com as até então antropotécnicas cosmológicas, cabe à resistência cultural atuar nesse campo antes que tudo esteja perdido. Do mesmo modo que o 355 “Since revolution is not a viable option, the negation of negation is the only realistic course of action. After two centuries of revolution and near revolution, one historical lesson continually appears – authoritarian structure cannot be smashed; it can only be resisted. Every time we have opened our eyes after wandering the shining path of a glorious revolution, we find that the bureaucracy is still standing. We find Coca-Cola gone and Pepsi-Cola in its place – looks different, tastes the same. This is why there is no need to fear that we will one day wake up and find civilization destroyed by mad anarchists. This mythic fiction is one that originates in the security state to instill in the public a fear of effective action”. CAE, Electronic Civil Disobedience. New York: Autonomedia, 1997, p. 24. 245 capitalismo penetrou o universo da cultura, adentrou as subjetividades para formá-las em benefício de opiniões, crenças e desejos moldados estatisticamente pelo complexo midiático. Para além dos benefícios que a internet parece ter trazido, os sujeitos se veem tomados por fora e por dentro pelos imperativos econômicos dominantes, que investem igualmente pesado no sistema informático e na produção subjetiva. Afinal, é preciso abastecer a economia da acumulação com consumismo, com a adesão dos sujeitos considerados clientes e catalogados em conjuntos de dados processados por programas e algoritmos fabricados com o objetivo de aumentar a eficácia a seu patamar máximo, ao final, nunca alcançado. Que o ideal de revolução tenha se desfeito aos olhos dos pós-modernos não significa necessariamente abandono dos propósitos libertários implícitos nas utopias políticas que animaram os séculos passados. O aparente pessimismo teórico do CAE nada mais é que um dos aspectos inscritos na crítica do capitalismo e das formas autoritárias inerentes à cultura, cujo correlato prático, ou seja, seu pressuposto micropolítico, é reconhecido em sua atitude positiva, prospectiva e afirmativa de resistência. Bem compreendido, o ímpeto do CAE projeta-se com ceticismo no plano teórico e com otimismo na dimensão prática. Seu objetivo maior é propagar com atos exemplares os efeitos libertários das mais variadas formas de resistência, e com isso, alargar o campo dos possíveis. De certa forma, esta já era a atitude dadaísta, que, na sua concepção do tempo histórico não-linear e caótico, dadas as possibilidades não inscritas nas estruturas históricas, rompia com as ideias de determinismo teleológico e linearidade dialética, quase unânimes nas correntes do marxismo e nas leituras progressistas da história. Franco Berardi, ao discutir a questão do tempo nas vanguardas, afirma: Se não há consequencialidade obrigatória entre o presente e o futuro, na realidade não está implícita uma única possibilidade, mas muitas. “Ampliar a área do possível” é a mensagem que anima a contracultura e o antiautoritarismo dos anos 1960. Allen Ginsberg diz “Ampliar a área da consciência”. Entre as duas frases não há muita diferença.356 O CAE, em sua resistência antiautoritária, retém inspirações dos movimentos contraculturais e promove com seu exemplo uma postura crítica de caráter não-futurista, que aposta na criação de possibilidades desde o presente. A lição situacionista é 356 Franco Berardi. Depois do futuro. São Paulo: Ubu, 2019, p. 80. 246 incorporada sem o viés utópico característico dos movimentos revolucionários. O CAE prima pelas táticas, pela micropolítica das aberturas, das destituições, das eclosões de possíveis. Este é o real significado do experimental da arte-revolta que opta pelas pragmáticas ao invés de simples representações. A lógica constituinte exige emparelhamento dialético com o poder, com o Estado. Foi sempre nessa direção que os revolucionários fizeram história. A lógica destituinte anseia outros meios. “Destituere significa, em latim: colocar em pé à parte, erigir isoladamente; abandonar; pôr de lado, deixar cair, suprimir; decepcionar, enganar”.357 Em vez de combater frontalmente o poder e as instituições, a lógica destituinte busca realizar o que se pretende sem recorrer a eles nem mesmo para destruí-los. Mais importante do que isso, trata-se de tornar as instituições inúteis por efeito das ações criativas, pela efetivação do que faz valer com o desejo. No contexto da resistência, implica desligamento, procura de vias alternativas que não passam pelas instituições estabelecidas. Isso não significa, no entanto, renúncia à luta. A lógica das ações muda, as táticas são direcionadas à potência e não ao poder. Trata-se então de vincular-se às próprias capacidades, no sentido de assumir a tarefa radical de produzir o que se quer, diretamente, com os meios disponíveis e a se construir, ainda que se torne necessário inventar o que se precisa para realizar a vontade coletiva. Erigindo projetos ao lado, entre, para além e aquém das instituições, ou mesmo dentro delas deslizando possibilidades insuspeitas, o que acontece em decorrência dessa potência primeira é que as instituições tornam-se fatalmente inúteis, disfuncionais. No melhor dos casos, perdem sua razão de ser, tornam- se desnecessárias. A potência destituinte, em vez de alimentar a luta pelo poder, vincula-se à sua própria potência a fim de torná-la uma realidade efetiva, o quanto antes. É um tipo de bricolagem maquínica que inventa com o que tem a satisfação das necessidades e dos desejos envolvidos. Quando se trata das micropolíticas, mesmo o termo destituição é imperfeito, porque ele é, conceitualmente, resultado, efeito de uma criação primeira. A fórmula destituinte pode então ser proferida com maior precisão: quanto mais se cria, mais se resiste; quanto mais se resiste, mais se ganha em potência. Em decorrência do aumento da potência, os poderes são subtraídos em seus efeitos. O círculo virtuoso da potência destituinte promove um tipo de arte marcial micropolítica que encontra os meios 357 Comitê Invisível, “Destituamos o mundo”, in Motim e destituição agora. São Paulo: N-1 Edições, 2017, p. 94. 247 de realizar super-ações, no sentido de aumentar a potência à medida que se realiza. Não se trata de vencer, mas de superar. Não a vitória sobre, mas a super-ação, o aumento da potência. Um combate nômade, uma aritmética política na qual somas e subtrações se fazem em função da mais otimizada forma de viver e resistir. A revolução cultural permanente é, além disso, uma máquina de guerra turbinada pela teoria do caos. No interior das estruturas de controle e dominação, a potência destituinte da máquina de guerra artística promove distúrbios na ordem estabelecida, não para disseminar o caos pura e simplesmente, como anseiam alguns niilistas de plantão. Enquanto demonstram fascínio pela destruição, ignoram os efeitos contraproducentes de mencionada atitude. O intuito prático da resistência cultural defendida pelo Critical Art Ensemble é possibilitar o rearranjo dos elementos em jogo, a reorganização da vida cotidiana diretamente por quem está implicado nela. No lugar da revolução como ideal de construção do futuro, a aposta na resistência que trata a luta política como um jogo propenso a desafios, altos e baixos, vitórias e desenlaces probabilísticos. Por meio de seus arsenais antropotécnicos, propaga seus produtos e dá vida às artes relacionais, mesmo pedagógicas, com o que, o pensamento crítico, uma outra sensibilidade, a revolta, enfim, espalham-se como por contágio. Que o CAE aposte no distúrbio como estética política de resistência não significa uma postura negativa. Antes, na medida em que o grupo mira na criação de zonas autônomas temporárias, a potência destituinte se coloca como um meio de afirmar algo ainda mais fundamental para o grupo. É portanto sinal de que existe uma concepção de sociedade e sujeito político dotados de funções e propriedades auto-organizativas. A resistência do CAE se apresenta como uma espécie de engenharia reversa que atua destituindo os poderes instituídos como um meio de consecução de algo mais importante, que é a livre expressão do desejo, a realização das potências da vida em experiências de liberdade e autonomia. A estética do distúrbio não quer o caos absoluto, mas uma reorganização da vida sobre bases mais livres. A estética do distúrbio opera, por meio das mais criativas táticas de intervenção (no espaço público, nas instituições, no campo das ideias, nos processos de produção das subjetividades, em toda sorte de maquinismos), autênticas máquinas de guerra que não querem nem produzem a guerra, mas potências destituintes, porque nômades. Os distúrbios são formas práticas, discursivas, corporais, imagéticas, artísticas, de desestabilizar os fundamentos da normalidade, os pressupostos pré-conscientes do poder, os efeitos inibidores dos regimes da verdade. 248 A Teoria do Caos abriu para a resistência micropolítica a possibilidade de trabalhar positivamente com as intervenções sem ter que justificar a luta por alguma ideia de futuro. Primeiro, porque o futuro, nesta perspectiva, escapa a qualquer vontade unívoca e não pode ser predeterminado, mas tão só pensado como uma noção espaço-temporal aberta de probabilidades, para as quais se pode no máximo contribuir para que se atualizem. E em segundo lugar, a suposta ausência de um projeto utópico delineado previamente, ao invés de indicar niilismo, falta de responsabilidade, afirma um compromisso ético ainda mais profundo da revolta com sua dimensão coletiva no processo de transformação da realidade, que abre mão da autoridade do ideal, para se fazer partícipe de um movimento necessariamente coletivo da construção da vida em sociedade. Trata-se de uma postura radical, porque afirma a política como construção direta do ser-no-mundo. Encontra-se aí seu aspecto necessariamente agonístico. A resistência na cultura, assim definida pelo Critical Art Ensemble, abre-se como um campo de inúmeras possibilidades a serem exploradas. Cabe aos produtores culturais, entendidos como os agentes micropolíticos da resistência (os mais diferentes artistas, escritores, roteiristas, livre pensadores, ativistas não-convencionais, curadores, cineastas, atores, agentes comunitários, terapeutas, professores, etc.) a tarefa de inventar formas de intervir no espaço público para abrir a cultura por dentro e libertá-la, seja produzindo brechas, rachaduras nas instituições, seja forjando fissuras ou portais, justo onde a experiência da autonomia, a princípio escondida por debaixo das normalidades cotidianas, parecia difícil eclodir, mas onde a vida pode enfim, com o emprego dos meios da resistência bem direcionados, expandir-se para além das estruturas calcificadas que tentam, em vão, a todo custo, embrutecer, alienar e apropriar-se da potência criativa das subjetividades, individuais e coletivas. Entendida desta maneira, a resistência cultural desempenha uma função libertária, existencial, micropolítica, atualizando um dos desejos mais antigos da humanidade de liberar a vida por meio de ações inspiradas no exercício do livre pensar, desta vez, colocando em prática, diretamente, nas relações sociais dos seres uns com os outros, e naquilo que produzem, um construtivismo estético, artístico, cultural, que tem seu fundamento de ser na partilha do sensível. 249 Tecnologia, Poder Nômade e Pancapitalismo Na visão do Critical Art Ensemble, a estrutura social contemporânea tornou-se um campo difuso de poder sem localização e uma máquina de ver como espetáculo: “a primeira prerrogativa abre caminho ao aparecimento da economia global, enquanto a segunda age como uma guarnição militar em vários territórios, mantendo a ordem da mercadoria com uma ideologia específica a cada área”.358 O CAE acompanha com atenção a passagem de um espaço de poder sedentário para um modelo contemporâneo de poder nômade que conta com o suporte de uma rede eletrônica. Desde que a internet e os computadores são disponibilizados para a sociedade civil, sua popularização desencadeia efeitos políticos, econômicos e culturais que ainda hoje precisam ser analisados. Antes das populações terem acesso à rede mundial de computadores, a incorporação de toda a tecnologia digital aos dispositivos econômicos e políticos reconfigurou quase completamente o campo do poder, tanto na esfera do Estado quanto nas redes de mercados interconectados, dando origem ao que se denomina ciberpoder. Coincidência ou não, a internet e o ciberespaço vieram a público no período após a derrocada da Cortina de Ferro, acontecimento marcante de uma era cujo significado tem sido interpretado como a vitória do sistema capitalista em dimensões planetárias. O que se viu desde então foi a expansão aterradora do capitalismo a despeito de hecatombes, genocídios e violações ao patrimônio das humanidades, transplantando modelos dominantes e autoritários dos países ultradesenvolvidos para regiões e continentes tratados como neocolônias do capital desterritorializado e suas ondas de poder devastador. Esse mesmo poder cujos signos se desmaterializaram é denominado criativamente pelo CAE de poder nômade, característico do mais sofisticado modelo do capital, o pancapitalismo. Durante muito tempo a sede do poder parecia facilmente identificável. Embora tenha se multiplicado com as burocracias, era possível definir locais estratégicos nos quais as resistências podiam atuar para combater o poder. Porém, no final do século XX, o poder sedentário montou uma estrutura para atuar de forma quase completamente desmaterializada. O dispositivo que emana o poder, desde então, reside na geografia virtual mantida por processadores computacionais, bancos de dados e fluxos de 358 Cf. CAE, “Poder nômade e resistência cultural”, in Distúrbio Eletrônico, p. 25. 250 informação. Seguindo a mesma lógica, o dinheiro tem migrado seu valor para bites demonstrando que as elites encontraram um campo de atuação que escapa às formas de resistência tradicionais típicas dos movimentos operários e trabalhistas, assim como dos movimentos sociais que surgiram com a contracultura. A arquitetura do poder migrou para o espaço virtual, cujas condições de possibilidade as tecnologias da informática criaram. Por isso, a resistência cultural, artística e política precisam rever seus postulados e estratégias. Para o CAE, a tática da ocupação de prédios e ruas não surte os mesmos efeitos de outrora, a menos que seja articulada à atuação no ciberespaço. Afinal, do que serve ocupar um prédio estatal se o governo pode operar até fora da geografia física, agenciando um não-lugar pelas tecnologias virtuais? O que realmente adianta atacar estabelecimentos multinacionais se eles podem muito bem se recompor em outro lugar sem maiores problemas? Aliás, essa realidade é cada vez mais perceptível pois as tendências do mercado tem incentivado as empresas a migrarem para o comércio virtual, o que tem tornado opcional o estabelecimento de sedes arquitetônicas. O poder não se restringe à dimensão física, sua eficácia não depende de materialização em monumentos arquitetônicos. Na realidade, prescinde da fixação espacial. O que um dia foi sinal de poder real, sua constituição arquitetônica correspondente, hoje tornou-se uma mera representação facilmente substituível. Com ou sem fortificação arquitetônica, o poder nômade não cessa de modular mercados globalizados, logísticas políticas, bolsas de valores, economias inteiras de capitais internacionais, inteligências coletivas agenciadas para a produção industrial desmaterializada, etc. No caso de seus mecanismos de poder serem desafiados de alguma forma em um espaço determinado, eles movem-se para outro lugar, com rapidez quase instantânea, deslocam-se com maior ou menor eficácia, simplesmente porque a agência que opera a máquina do poder não é fixa, estável nem visível. A elite planetária desaparece atrás das tecnologias de ponta. Em 1994, a análise que o CAE faz da nova estrutura de poder leva-o a concluir que as ruas não são mais lugares tão importantes para atuar pois a elite do poder nem o capital se interessam mais por elas. Na realidade as cidades e suas ruas são abandonadas à própria sorte. O desprezo do estado e do capital pelo espaço público faz com que as ruas sejam invadidas pelo crime e pelas enfermidades, como uma clara demonstração de que não possuem mais valor para os agentes estatais ou corporativos. Se elas fossem realmente importantes, então não estariam em tão péssimas condições. 251 Parece que essa tendência tem sido assumida pelas elites e pelas frações de classe que operam o poder estatal. Nas metrópoles, as ruas e os espaços públicos são relegados à criminalidade e à insegurança, e em seu lugar, prosperam os bunkers do pancapitalismo: shoppings centers, condomínios fechados e demais espaços privados que oferecem um simulacro de segurança e familiaridade em troca da autonomia e da liberdade dos indivíduos. O modelo contemporâneo de poder nômade conseguiu atualizar uma estratégia antiga colocada em prática pelo Império dos Citas. O CAE desenvolve uma argumentação baseada na obra As Guerras Pérsicas de Heródoto.359 Os citas conseguiram resistir à colonização principalmente pela forma de vida nômade de suas hordas. Sem cidades ou territórios fixos para manter e desenvolver, esse povo não podia ser localizado facilmente, tanto por seu estilo de vida nômade, quanto devido à geografia que habitavam, a zona inóspita e de difícil acesso ao norte do Mar Negro, com um clima igualmente desafiante. Além de conseguir manter sua autonomia por meio do movimento, antes mesmo de serem encontrados, os citas frequentemente empreendiam ofensivas militares valendo- se da vantagem da surpresa sobre seus oponentes. Com isso, uma zona flutuante, sem fronteiras estabelecidas, era mantida em torno de pontos de atuação das hordas, garantindo assim sua autonomia. Os citas não faziam da ocupação espacial sua estratégia de poder, pois para eles o poder não era uma questão de ocupação, mas de movimento. Por isso, vagavam de um ponto a outro pilhando, cobrando impostos e fugindo antes de uma reação se formar, para logo depois desaparecerem no horizonte sem pistas, deixando atrás de si o espectro do temor e a amostra de seu poder. Assim, conta-se, os citas construíram um império invisível que se espalhou pela Ásia e se estendeu até o Egito por cerca de 27 anos. O preço para manter esse império era não estabelecer guarnições ou posses territoriais fixas. O que era uma vantagem, por outro lado, mostrou-se o ponto fraco dos citas, pois seu império logo tornou-se insustentável. No entanto, o modelo arcaico de poder nômade conseguiu evoluir para um meio sustentável na atualidade pois encontrou nas tecnologias eletrônicas e digitais seus dispositivos para distribuir os efeitos de poder em praticamente qualquer lugar. Desta forma, o modelo arcaico de distribuição de poder foi de certa maneira atualizado pelas 359 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 23-24. 252 elites do poder nômade, valendo-se de aparatos tecnológicos produzidos e apropriados a objetivos praticamente idênticos aos dos citas. Fortemente influenciado pelas teorias de Foucault e Deleuze, o CAE percebe o poder operando anonimamente no ambiente pós-industrial em parte considerável do mundo.360 Enquanto o poder é pensado na filosofia política moderna segundo um modelo jurídico ou econômico, em termos de soberania, direito ou posse, a analítica conduzida por Foucault demarca uma definição distinta e trata o poder como tecnologia. A analítica do poder demonstra que o poder funciona e se exerce a despeito dos limites jurídicos, é da ordem pragmática das relações e não uma coisa ou algo que se possui, porque, concretamente, se exerce em atos, e como não está na posse de alguém em especial ou de um grupo privilegiado, o poder é anônimo e circula entre os sujeitos, as instituições e os saberes e se espraia por todo o campo social de uma ponta à outra em virtude de seu caráter penetrante, dispersivo e capilar.361 A microfísica do poder de Foucault enfatiza com originalidade o caráter produtor e positivo das tecnologias e dos dispositivos de poder. Para ele, indo além de uma concepção puramente negativa, o poder possui uma natureza produtora mais do que propriamente repressiva. Na realidade, o poder produz, induz, incita, fabrica, e mediante relações de poder perpetuadas pelos sujeitos implicados nos processos, constitui o próprio indivíduo. Nessa perspectiva, o poder apresenta um aspecto produtor de realidades, no sentido da fabricação de corpos, comportamentos, identidades e desejos dos sujeitos; assim como das discursividades e estratégias de dominação segundo determinadas instituições estabelecidas; mas que também fomenta reações, recusas, resistências e tudo o mais que se pode depreender de um campo complexo de estratégias, no qual o que está em jogo são relações de forças, disputas, conflitos e lutas.362 As genealogias da modernidade europeia empreendidas por Foucault identificam, a partir da análise microfísica dos poderes, a coexistência de dois dispositivos de saber- poder que, embora não se encontrem no mesmo nível, enredam o sujeito para produzi-lo 360 Cf. Gregory Sholette, “Disciplining the avant-garde: the United States versus The Critical Art Ensemble”, p. 4. Trata-se de um ensaio que apareceu primeiramente em 2005 no jornal CIRCA: Contemporary Visual Culture in Ireland. Circa. No. 112 (Summer, 2005), pp. 50-59. Disponível em: http://www.neme.org/texts/disciplining-the-avant-garde Acesso 18 de julho de 2019. 361 As noções de microfísica do poder, anátomo-política, mecânica e máquina do poder são aplicadas por Michel Foucault ao poder disciplinar, e podem ser encontradas no final do primeiro capítulo da obra Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 26ss. 362 Cf. Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes: 1999, p. 32-40. 253 no campo de forças das sociedades disciplinares.363 Primeiro, o dispositivo disciplinar, que se desenvolve no século XVIII nas escolas, nas prisões, nos hospitais e nos quartéis, voltado para o indivíduo, com suas técnicas de fabricação normativa dos corpos em termos de utilidades produtivas e efeitos de vigilância sob regimes panópticos de visibilidade (anátomo-política do tempo e do espaço, lógica dos corpos em confinamento, individualizados). E em segundo lugar, o dispositivo do biopoder, que surge no final do mesmo século (época da emergência capitalista) e investe sobre o corpo vital da população tomado como fenômeno de massa (regulação populacional, regência numérica e estatística de grandes massas humanas, controle de natalidade e mortalidade, políticas sanitárias, gestão da vida, etc.).364 A modernidade europeia foi moldada pelo desenvolvimento de tecnologias e dispositivos que tomam os corpos individual e social como alvos de saber e poder. No decorrer do século XX, no entanto, o modelo disciplinar nas sociedades ocidentais passa por dificuldades e entra em crise. Foucault é o primeiro a alertar: A disciplina, que era eficaz para manter o poder, perdeu uma parte de sua eficácia. Nos países industrializados, as disciplinas entram em crise. (...) Nos últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos também; eles são cada vez mais diversos, diferentes e independentes. Há cada vez mais categorias de pessoas que não estão submetidas à disciplina, de tal forma que somos obrigados a pensar o desenvolvimento de uma sociedade sem disciplina.365 Essa constatação é crucial pois, a partir dela, começa-se a pensar que dispositivo de poder entra em cena nas sociedades cujas instituições disciplinares se enfraquecem, ou ainda, qual lógica se impõe desde então. Coube a Deleuze anunciar de forma pioneira a passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle, caracterizadas por novas tecnologias de poder que tratam o indivíduo como alvo micropolítico segundo uma reconfiguração dos dispositivos de saber-poder.366 363 Para uma introdução às genealogias empreendidas por Foucault, ver Roberto Machado, “Por uma genealogia do poder”, in Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. 364 No curso do Collège de France (1975-1976), Foucault apresenta uma síntese de suas pesquisas genealógicas na qual identifica e distingue dois tipos de poderes, o disciplinar, descoberto nas pesquisas sobre a história das prisões, e o poder biopolítico, uma “biopolítica da espécie humana” colocada em prática por instituições estatais e governos que tomam por alvo de seus investimentos as populações. Cf. “Aula de 17 de março de 1976”, in Em defesa da sociedade, p. 289. 365 Michel Foucault. Ditos & escritos IV: estratégia, poder, saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 268. 366 Cf. Gilles Deleuze. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2008, p. 219-226. 254 Após a Segunda Guerra Mundial, as técnicas disciplinares e biopolíticas se desenvolvem com maior intensidade, reativando dispositivos de aprisionamento e gestão da vida: proliferação de prisões, manicômios, asilos, e também, desenvolvimento de políticas estatais sanitárias e demográficas de caráter eugenista, etc. Contudo, ao mesmo tempo em que se intensificam, sofrem o impacto de novas forças no interior das quais as antigas técnicas de poder se acoplam cada vez mais a outro dispositivo que se vai montando nesse período. A partir daí surge uma tensão entre o modelo disciplinar e o de controle que se prolifera pouco a pouco no campo social. Na realidade, os modos de sujeição das sociedades de controle se superpõem às técnicas disciplinares e passam a coexistir no campo social de modo que as redes de poder e assujeitamento se tornam cada vez mais invasivas. As sociedades de controle anunciadas por Deleuze compõem com as antigas técnicas de poder um novo dispositivo com o qual o controle dos corpos se dá de maneira contínua e não mais localizada no interior das instituições. Nesse novo dispositivo, já não se passa de um seguimento a outro – família, escola, exército, hospital, fábrica, prisão – como outrora, segundo o princípio do molde. Nas sociedades de controle, a lógica é tal que os espaços de poder parecem se confundir e as funções sociais que exigem adesões dos sujeitos não são mais localizadas nem fixas. Concretamente, o controle se dá mediante uma modulação reiterada e contínua em todo o campo social: trabalho em casa, escola na empresa, policiamento e vigilância ostensivos dentro e fora das instituições, nas ruas, nas mídias de massa, etc. Na lógica do controle não interessa confinar para disciplinar, mas sobretudo modular, seja onde for: a atenção, o comportamento, os afetos, os papeis e o sujeito – a cada instante, mesmo em trânsito, nos deslocamentos e sempre que possível em tempo real. Portanto, a nova lógica do poder não é mais fixa, senão que dinâmica, dada a quantidade e a mobilidade das tecnologias difundidas na vida cotidiana.367 As próprias tecnologias humanas cresceram em número e se complexificaram com seus exércitos de técnicos voltados para a vigilância contínua. Nos ambientes econômico, industrial e empresarial, uma reformulação da divisão social do trabalho passou a exigir técnicos com novas especialidades, da segurança do trabalho até gerentes de controle de qualidade e seus séquitos de supervisores, a fim de aumentar a produtividade, a qualidade, a eficiência e o regime de velocidade ao nível máximo. Ao mesmo tempo, o modelo produtivo correspondente das novas formas de empreendimento capitalistas passou a ser 367 Cf Gilles Deleuze, Conversações, p. 220-224. 255 a empresa com seus agenciamentos flexíveis, o que gerou mudanças consideráveis no modo como os funcionários devem se portar desde então. Por outra parte, no âmbito das ruas, no trânsito das avenidas, nos centros comerciais, nas paragens públicas, a vigilância ganhou destaque crescente junto com os agentes que materializam as tecnologias de poder como policiais, seguranças e agentes secretos, vigilantes, guarda-costas, detetives, etc. No pós-guerra, todas as tecnologias humanas e seus agentes foram acoplados a novos dispositivos que propiciaram um incremento de poder e possibilidades de controle e vigilância nunca antes vistas. Socialmente, o fenômeno da vigilância tornou-se uma questão prática a ser tratada na sua dimensão política e econômica por governos, instituições, empresas e até homens comuns, que desde então contam com diversos aparelhos tecnológicos para esse fim. Com eficácia, o avanço tecnológico nos mais variados campos, da guerra aos laboratórios, das mídias aos registros burocráticos, dos sistemas computacionais à ciência cibernética, contribuiu fortemente com a fabricação de um novo dispositivo maquínico que se pode denominar ciberpoder. Esse dispositivo produz um novo regime de dominação que se vale de aparatos maquínicos tais como os meios de comunicação de massa, rádio, televisão e cinema, assim como, na sua versão mais atual, bancos de dados, computadores, internet, celulares e demais derivados que integram e colocam em circuito os corpos, as mentes, os discursos, as imagens, os seres e as coisas. O agenciamento de todos esses componentes conectados resulta na transformação das antigas instituições, organizações e relações, dando origem a um novo regime de dominação que vem afetando com pungência tanto a produção das subjetividades quanto as formas de administração e controle internos às nações sobre a própria população. Com efeito, a nova maquínica do ser passa a operar mediante uma tecnologia de poder em que os circuitos pressupõem subjetividades conectadas em redes, criando assim um fenômeno recursivo: o produto do ciberpoder, o sujeito equipado e inserido nos sistemas homens-máquinas, é o que confere ao poder sua efetiva existência, encarnada e maquínica, com a complicação, porém, de que a própria subjetividade pode se apropriar das maquinarias, em tempo real e de forma remota, para inumeráveis fins, inclusive, subversivos e de resistência. É no entrecruzamento das tecnologias eletrônicas e digitais com a revolta que emergem os agentes da resistência como o Critical Art Ensemble. Doravante, novas tecnologias da vigilância e do poder se desenvolvem fora do eixo das prisões e das instituições fechadas em si mesmas que erigiam dispositivos disciplinares para atuarem sobre os indivíduos com fins de incitar determinadas formas 256 de comportamento, seja nas fábricas, nas escolas, nos asilos, nos quarteis militares. Além da manutenção dos panópticos nos espaços fechados e disciplinares que sobrevivem reconfigurados, outras formas de vigilância se adaptam ao mundo da mobilidade e das altas tecnologias com suas câmeras e drones que podem estar em qualquer lugar. Deleuze diz que “o estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia”.368 Ainda que as máquinas não sejam determinantes, elas exprimem as formas sociais capazes de lhes dar nascimento e utilizá-las. Depois das sociedades de soberania, com suas máquinas simples, alavancas, roldanas e relógios, as sociedades disciplinares do capitalismo industrial deram origem às máquinas energéticas. O século XX viu nascer gradativamente uma terceira geração de máquinas técnicas, desta vez, da ordem informática e computacional, compondo a nova maquínica do ser que deu origem à cibercultura. O que se vê com isso é o processo de fabricação de uma composição maquínica que se desenvolve junto a uma produção vertiginosa de práticas discursivas (técnicas, tecnológicas, científicas, informacionais e cibernéticas), o que resulta na transformação das antigas instituições, organizações e relações, dando origem um novo regime de dominação. O ciberespaço produziu uma nova dimensão virtual na qual os mundos subjetivos fluem em uma trama de manipulação, incitação e capturas, formando e modulando subjetividades alimentadas com furor pelas indústrias socioculturais dinâmicas e suas microrracionalidades que operam a lógica da acumulação de capitais em todas as suas formas: financeiro, econômico, político, tecnológico, epistemológico, imagético e subjetivo. Assim, a metamorfose do poder sedentário, baseado na ação de corpos sobre corpos (típico das sociedades disciplinares), em poder nômade, mediado por altas tecnologias provenientes da revolução informacional-digital, proporcionou uma estrutura cibernética para as elites atuarem em um outro tipo de espaço liso de âmbito transnacional, ou mesmo anacional, rompendo fronteiras geográficas e políticas até então fortemente controladas pelos Estados-Nações. A própria ideia de vigilância se transforma tornando-se mais suave no momento da desestruturação das instituições sólidas.369 Valendo-se de meios sofisticados de 368 Cf. Gilles Deleuze. Conversações, p. 225. 369 Parte da argumentação apresentada aqui teve seu primeiro formato no artigo “Civilização, tecnologia e poder na modernidade líquida”, de Lucas Fortunato e Alexsandro Galeno, publicado no Dossiê “Educação, 257 tecnologia, na realidade, quanto menos a vigilância se mostra, mais pretende prender e fisgar para o controle, como a imagem de uma teia de aranha pode aludir. Décadas atrás, Bertolt Brecht escreveu um poema para os revolucionários não deixarem pegadas nem pistas em seu caminho como forma de evitar perseguições. Hoje em dia tornou-se muito complicado passar despercebido aos olhos biônicos do ciberpoder, que registra cada detalhe, ainda mais quando os sujeitos contribuem voluntariamente (por vezes sem consciência de que o fazem) com o sistema de controle. Imagem 48 – Imagem do CAE que abre o capítulo “Nomadic power and cultural resistance” do livro The Electronic Disturbance.370 Artes e Tecnologia” na Revista Inter-Legere – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, v. 1, n. 23, jul/dez 2018, p. 94-114. Disponível em https://periodicos.ufrn.br/interlegere/article/view/15878 Acesso 1 de agosto de 2019. 370 CAE. The Electronic Disturbance. New York: Autonomedia, 1994, p. 10. 258 Na perspectiva de Zygmunt Bauman, agora é a vez da era pós-pan-óptico, com uma tecnologia móvel, dinâmica, adaptativa, modular e recombinante, pois, com esses caracteres, torna-se mais capilar e capaz de penetrar no tecido social como nunca antes, de forma suave e mesmo imperceptível.371 O que se vê é o desenvolvimento de tecnologias limpas, miniaturizadas e automáticas que multiplicam os campos de visibilidade e registros para a atuação do poder, como smartphones, câmeras, drones, gravadores, etc. O questionável de tudo isso é que, no labirinto formado pela cidade equipada, o poder penetra de tal maneira na dimensão cotidiana, in e outdoors, que ameaça a esfera privada e íntima. Com a miniaturização dos dispositivos, no caso das microcâmeras e dos drones, a situação se agrava ainda mais pois as condições técnicas dadas possibilitam a invasão praticamente imperceptível de espaços outrora reservados tão só ao âmbito privado. Os drones são um caso à parte, pois estão se miniaturizando até o limite de se tornarem invisíveis, ao passo que podem captar informações de outra forma impossível de conseguir. No pior dos casos, podem ser projetados para decidirem autonomamente sobre o que fazer em determinadas circunstâncias. Não bastasse isso, no campo social em que impera o modelo administrativo das empresas flexíveis, uma nova espécie de panoptismo pessoal se desenvolve junto com a lógica da formação profissional contínua, que exige do sujeito uma consciência voltada sobre si mesma para autovigiar-se mediante o imperativo do it yourself. Ademais, a quase onipresença das câmeras e sistemas de vigilância pode gerar nos sujeitos uma paranoia reativa que aloja na consciência o correlato de um drone no plano psíquico, a saber, um superego que corresponde, na psique, à tecnologia panóptica externa, algo como um drone imaginário produzido pela inserção do sujeito no labirinto da arquitetura moral tomada pela vigilância líquida e descentralizada. É o que o CAE denomina o micro-bunker da reificação que se instala na subjetividade.372 Ao mesmo tempo, além da esfera pública ser invadida pelos dispositivos de poder panópticos, a dimensão íntima é capturada nas redes sociais que, no ciberespaço, por vezes ganha prevalência sobre a dimensão comum. O contraste da vigilância encontra aqui seu aspecto mais inquietante, contando com a conivência dos próprios sujeitos: a vigilância que adentra a esfera privada com os sistemas de informação, e a dimensão 371 Cf. Zygmunt Bauman, “A vigilância líquida como pós-pan-óptico”, in Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2014. 372 Cf. CAE, “Resisting the bunker”, in Electronic Civil Disobedience, p. 37 259 íntima que se abre ao campo público por meio das redes sociais e dos blogs, somam-se a uma superexposição produzida pelo próprio sujeito. Curiosamente, com a adesão massiva às redes sociais há indícios de que o medo da humilhação diante da possibilidade de ser esquecido e colocado de lado dos laços sociais repercute à sua maneira nas novas mídias e nos relacionamentos virtuais. O narcisismo gregário parece combinar muito bem com o fenômeno da vaidade egóica que sente necessidade de reconhecimento. Um sinal disso, as redes sociais produziram um lugar por vezes apropriado pelos usuários como verdadeiros confessionários pós- modernos, que substituem a figura do confessor pessoal, religioso ou psicanalista, para se estender ao circuito de todos os perfis conectados. Disso resulta a hiperconectividade e a superexposição a que aderem milhões de indivíduos ávidos por visibilidade, atenção, reconhecimento, notoriedade e admiração, compondo um sistema de autoexposição no qual os próprios sujeitos se vigiam mutuamente mediante uma servidão voluntária, e onde as esferas privadas e públicas se confundem ou se tornam indiscerníveis. Assim, o poder se sofistica ao ponto de se realizar em cada indivíduo sem recorrer necessariamente à coerção, pois apela para artifícios que seduzem, encantam, dirigem-se à curiosidade, ao desejo e ao entretenimento no palco das imagens veiculadas pelas antenas e ondas cibernéticas, resultando em impulsos e subjetividades engrenadas nos circuitos do ciberpoder. Com a implantação dos sistemas informacionais que são a estrutura maquínica do ciberespaço, e na medida da conexão com eles, quanto mais os sujeitos se movimentam, mais rastros são deixados. Assim, os indivíduos tornam-se vulneráveis aos poderes de cibervigilância ainda que não queiram, o que pode ocorrer mesmo nos campos do consumo, do entretenimento e da diversão. Quando a vigilância é incorporada como algo normal, de alguma maneira torna-se sedutora, prazerosa, por isso a entrega de bom grado aos sistemas de informação, segurança e controle. Inclusive, há todo um discurso que afirma a positividade de se adaptar ao jogo da vigilância consentida, sempre com justificativas de possíveis ganhos para o sujeito ou para a sociedade. Entretanto, quanto mais são categorizados ou tomados em dispositivos de poder, os indivíduos tornam-se menos singulares e humanos e são manipuláveis como dados estatísticos apropriados por corporações estatais e privadas. Nos sistemas de informação, como em uma esteira que se estende virtualmente a todo o campo social, os indivíduos são vigiados, checados, registrados e controlados sucessivamente. Quando fazem compras on line, transações bancárias, respondem a questionários, disponibilizam seus 260 dados, fornecem senhas, registram passos, deixam pistas em históricos armazenamos por empresas privadas e assim por diante. Eis que a máxima de Pierre-Joseph Proudhon atualiza-se em bases tecnológicas inimagináveis no século XIX: “Ser governado é ser, em cada operação, em cada transação, em cada movimento, notado, registrado, arrolado, tarifado, timbrado, medido, taxado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, admoestado, estorvado, emendado, endireitado, corrigido”.373 O indivíduo, mais do que nunca implicado nos poderes anônimos e automatizados, governado em seus mínimos detalhes. Porém, do mesmo modo como as conexões se fazem, de maneira banal, as desconexões também. Nas sociedades com relações densas e estreitas é difícil se infiltrar porque as pessoas estabelecem vínculos duráveis com significações profundas, ao passo que no mundo líquido, os elos são frágeis e fragmentários. Na medida em que as relações são consideradas intercambiáveis do ponto de vista virtual, a conexão e a desconexão tornam-se o modelo mais fácil para lidar com as mudanças e a superficialidade dos laços sociais. Tudo se passa como se a lógica da mercadoria praticada nas redes sociais virtuais (a da utilidade, da aparência e do fetiche) repercutisse de forma análoga na esfera das relações pessoais. Do mesmo modo que as mercadorias são descartáveis, as relações com os outros adquirem valores de uso e de troca, tornando-se, em decorrência disso, igualmente permutáveis. Com efeito, das sociedades marcadamente disciplinares e portanto panópticas, as atuais sociedades tornam-se pós-panópticas com o surgimento de outros dispositivos de poder como o sinóptico, que modifica os papeis dos agentes: enquanto no dispositivo panóptico poucos vigiam muitos, no sinópticos muitos vigiam poucos. A lógica típica da sociedade espetacular, portanto, inverte-se. Devido aos meios de comunicação de massa e ao patamar de desenvolvimento do aparato maquínico nas sociedades líquidas, milhões de pessoas que compõem as massas de expectadores prestam-se ao papel de seguir virtualmente personalidades midiáticas, políticos, artistas e celebridades do momento, personagens que se destacam no espetáculo produzido para as massas cênicas midiatizadas. 373 Cf. Pierre-Joseph Proudhon, in Proudhon (textos escolhidos). Daniel Guérin (seleção e notas). Porto Alegre: L&PM, 1983, p. 79: “É, sob pretexto de utilidade pública, e em nome do interesse geral, ser pedido emprestado, adestrado, espoliado, explorado, monopolizado, concussionado, pressionado, mistificado, roubado; depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, corrigido, vilipendiado, vexado, perseguido, injuriado, espancado, desarmado, estrangulado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, para não faltar nada, ridicularizado, zombado, ultrajado, desonrado”. 261 No livro Vigilância líquida Bauman ainda trata de um outro dispositivo que se apropria do poder panóptico para voltá-lo a grupos específicos. O dispositivo assim denominado banóptico está ligado à noção de insegurança e não de disciplina. O banóptico fabrica um olhar que discerne, seleciona, categoriza e estigmatiza, segundo critérios estabelecidos, um determinado grupo arquetípico para melhor excluí-lo. Como tal, esse dispositivo nada mais é do que uma especialização do panóptico, que direciona o poder e a vigilância a um conjunto considerado refugo humano a ser isolado e mantido sob controle. O banóptico vem satisfazer a um anseio ainda mais penetrante da vontade de controle, ao operar um dispositivo de vigilância que se pretende preventivo em relação às possibilidades do que pode vir a acontecer. Dado o contexto, determinados perfis são elaborados para isolar indivíduos tratados como potencialmente perigosos e suspeitos, como ocorreu imediatamente após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos. Na medida em que a vigilância de prevenção se materializa em uma antecipação logística do campo possível de acontecimentos, o banóptico opera com filtragens baseadas em características previamente programadas e que podem ser estéticas, étnicas, comportamentais, culturais, etc., características estas que são computadas como variáveis a serem isoladas do conjunto mais amplo vigiado a fim de que o controle no espaço e no tempo seja otimizado ao máximo. Para tanto, são criados perfis aplicáveis a determinados grupos, por vezes, minoritários considerados marginais, como forma de, em seguida, a partir de categorias de exceção, executar o banimento que isola, ostraciza e exclui os indesejados. Com relação ao problema das imigrações, por exemplo, o banóptico funciona de uma forma mais aberta e perceptível nas zonas fronteiriças, afinal, o controle do tráfego de pessoas e mercadorias pressupõe uma vigilância permanente, e o dispositivo banóptico desempenha uma função importante quanto a isso. Uma outra questão crucial que se percebe na modernidade líquida é a separação, identificada por Bauman, entre poder e política. Como um anel recursivo, a vigilância líquida estimula a disjunção entre a esfera política e os poderes: quanto mais os poderes se proliferam com a produção de novos dispositivos por instituições, empresas e megacorporações, mais se produz realidades a despeito de quaisquer considerações políticas. O poder separado da política se exerce na dimensão global, e como se infiltra na vida cotidiana com os fluxos mercadológicos, comunicacionais e informáticos em escala planetária não há para ele fronteiras bem definidas. Nem há também qualquer tipo de regulação minimamente democrática sobre a produção tecnológica. Ao passo que a 262 política propriamente dita limita-se cada vez mais aos ditames do mercado glocal que ameaça toda soberania, fragilizada pelas constantes interferências dos fluxos e das produções planetárias que se revelam desde dentro até fora. Tudo se passa como se a política tivesse que lidar com uma profusão de fluxos e tecnologias que escapam aos códigos jurídicos e exercem assim uma pressão sobre as esferas políticas da sociedade civil, sobre os aparatos estatais e mesmo militares. Dadas as atuais condições sociotécnicas da informática e da comunicação nas sociedades de controle, há um tipo de poder que opera de maneira desterritorializada, ou seja, sem território físico do qual dependa ou que tenha a necessidade de defender. Dificilmente os centros de tal poder podem ser identificados, se é que existem de fato geograficamente. Trata-se de uma realidade que, como o capital, no seu conjunto é abstrata para o pensamento. Não se presta a análises totalizantes. Opera de tal forma a se fazer perceber em seus efeitos, eis tudo. Ao mesmo tempo, as técnicas de vigilância privadas proliferam o poder de visibilidade; as máquinas de visão eletrônica instalam o olho biônico dos poderes em cada esquina bem movimentada, nos estabelecimentos comerciais, nas agências públicas e nas residências fortificadas. Com isso, o poder autoritário reforça a si mesmo com o espectro da insegurança e da criminalidade. A façanha do poder na idade da técnica planetária é fazer com que os sujeitos desejem o poder em suas vidas e nos mínimos detalhes, conformando uma verdadeira servidão maquínica voluntária, para lembrar a fórmula de La Boétie.374 A questão se torna mais complexa quando se tenta identificar quem está por trás dos poderes econômicos e políticos. Embora seja possível apontar pessoas à frente de nações, estadistas, parlamentares, gestores de grandes corporações, o macropoder não possui rosto e se torna conhecido por meios de representações que no fundo nada mais são do que especulações. Ainda que pudessem ser nomeados, a situação é tal que seria vã qualquer tentativa de responsabilizar indivíduos por um fenômeno cuja realidade e função autonomizadas escapam à agência humana. Sua realidade pode ser no máximo diagnosticada em suas repercussões no mundo prático, porém, em termos concretos, realiza-se para as pessoas em efeitos cujas causas primeiras e últimas escapam à compreensão. O que Marx havia identificado com relação à mercadoria, acomete o poder nômade: sua realidade adquire uma forma fantasmática em decorrência mesma da 374 Étienne de La Boétie. Discurso sobre a servidão voluntária. São Paulo: Edipro, 2017. 263 complexidade e da velocidade com que se realiza, muito além da frágil compreensão das pessoas. No campo especulativo assim aberto, reinam as opiniões conspiratórias, os delírios paranoicos, as hipóteses hiperbólicas. Ou no caso da filosofia, das ciências sociais e políticas que tentam acompanhar as metamorfoses do mundo hodierno, cartografias, modelos de interpretação aproximativos, conceitualizações parciais, sempre feitos com a urgência que a época reclama. No curso de um século de capitalismo internacionalizado tudo o que era sólido se desfez. A estrutura do poder nômade identificada pelo CAE na década de 1990 é o resultado da ascensão da economia capitalista globalizada. Desde então, os estados nacionais, quase sempre, perdem sua soberania face aos processos econômicos de que necessitam para prover a subsistência de seus quadros populacionais. Bauman identifica a causa desse fenômeno na separação cada vez mais evidente entre a política e o poder. Enquanto a política diminui sua eficácia na direção dos fluxos e agenciamentos sócio- políticos devido à expansão do poder econômico, o poder ganha em autonomização face à gerência humana, adquirindo movimento, destinação e eficácia próprias, a despeito da consideração política. Rompida a fronteira física e geográfica, o poder nômade floresce na ausência e os monumentos do poder estatal e corporativo, facilmente identificáveis outrora, veem-se tomados e atravessados pelas autopistas da informação desmaterializada que torna o poder, a eficácia e o funcionamento de economias inteiras uma questão tecnológica de altíssima complexidade. Doravante, ao invés de cérebros humanos, um cibercérebro composto de algoritmos e microprocessadores opera a máquina pura do pancapitalismo. No decorrer do processo de globalização do capitalismo, com a divisão internacional da produção, o poder também se espalhou ocupando de distintas formas os mais diversos espaços geográficos, urbanos, sociais e também tecnológicos. A expansão capitalista suplantou primeiro as distâncias geográficas, ultrapassando fronteiras políticas e comerciais, instalando seus meios de capitalização material, financeiro, bancário, cultural em cada recanto onde algum lucro se mostrasse viável. Os Estados nacionais tiveram que lidar com as pressões do poder econômico transnacional, e junto da expansão do capital, o poder se descentralizou. Assim, o capital tornou qualquer tentativa de mudança radical das estruturas algo ainda mais difícil, dado o intrincado mecanismo econômico, político e tecnológico constituído então. Tornou-se uma tarefa quase impossível desmontar um mecanismo tão sofisticado do qual derivam, paradoxalmente, a vida e a sobrevivência de bilhões de seres humanos na escala mundial 264 CAPÍTULO 5 SUBVERTENDO A MÁQUINA: RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL ELETRÔNICA A Arte Crítica na Era Digital O CAE projeta-se nos circuitos da arte e do ativismo norte-americano e internacionais justo no período que, segundo Suely Rolnik,375 o universo da arte é agitado por uma tendência crítica em resposta à política instalada no globo desde a década de 1970 e que rege ainda neste período, duas décadas depois, os processos de subjetivação. A passagem da década de 1980 para a de 1990 viu se multiplicar os coletivos de arte, as investidas da arte engajada politicamente na cultura, experimentando, reinventando, multifacetadas formas de expressão. No mesmo período, o advento da internet e o ciberespaço, o computador e as tecnologias correlatas colocaram ao campo artístico e ao campo cultural uma série de novas perguntas. Isso ocorre sempre que novos problemas surgem em dada realidade. Os corpos e o pensamento são afetados pelo que lhes ultrapassa e então surgem questionamentos, dúvidas, impasses, cujas respostas escapam ao universo de referência atual, exigindo desta forma a criação de sentidos adequados às questões e aos problemas do presente. Frank Popper expõe a recepção artística desencadeada pelos desdobramentos tecnológicos e científicos desse período: A tomada de consciência desse fenômeno por jovens artistas, mas também por artistas engajados há muito tempo na valorização de técnicas para fins estéticos é o ponto essencial nesse desenvolvimento. É a partir desse momento que se pode falar de uma arte da tecnociência, de uma arte em que intenções estéticas e pesquisas tecnológicas fundadas cientificamente parecem ligadas indissoluvelmente e, em todo caso, se influenciam reciprocamente. No plano mais geral, a invasão das novas tecnologias em todas as regiões da vida social, com seus efeitos benéficos, seus sérios perigos e suas enormes possibilidades, leva cada um de nós a se confrontar com problemas cuja solução não se acha mais nas lições a tirar das experiências anteriores. Os artistas, 375 Suely Rolnik, Geopolítica da cafetinagem, 2006. Disponível em https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Geopolitica.pdf Acesso 12 de julho de 2019. 265 nessa nova conjuntura, se veem investidos de uma nova responsabilidade; buscam desenvolver propostas visuais que fazem surgir relações significativas entre as experiências humanas fundamentais – físicas, psicológicas ou mentais – e as novas técnicas com seu fundo de pensamento científico.376 O resultado do acontecimento advém não raro de uma crise provocadora de processos regressivos e criativos. Por vezes, a inspiração traz de volta o legado histórico à luz da urgência que o presente exige. Eventualmente, as rupturas se dão prontamente dada a radicalidade com que se formulam as tentativas de produção de sentido. Nas artes, as respostas são ensaiadas em diversos registros. Podem advir na literatura, nas artes visuais e plásticas, no cinema, no teatro. E assim também no campo do pensamento filosófico, ou no âmbito existencial. Fenômenos como esses não podem ser tratados simplesmente como uma tendência no sentido midiático. Rolnik insiste neste ponto para enfatizar que o processo de criação, seja nas artes, seja no pensamento, sempre está vinculado às mudanças ou a algo de outra natureza que força a inventar o que auxiliará a dar conta do real. Enquanto a filosofia tende a elaborar repertórios conceituais e discursivos na tentativa de contribuir com o entendimento do atual, as artes contemporâneas, sobretudo as vertentes engajadas diretamente nos campos social, cultural e político, desempenham a importante função de inventar possíveis existenciais, pragmáticos, sensíveis, expressivos, discursivos, semióticos, visuais, epistemológicos, etc. A realidade tal como se apresenta impulsiona o pensamento, e a arte desafia a mesma realidade com sua potência criativa que demove os padrões para dar passagens a outros possíveis, no imaginário, nas condutas, nas formas de sentir, agir, pensar, relacionar-se e habitar o mundo. Esse foi um dos desafios encarados pelo CAE, que acompanhou de perto, com atenção, ceticismo e curiosidade, os desenvolvimentos tecnológicos e científicos de seu tempo. Com o diferencial de que as questões e os problemas colocados no contato com as tecnologias se inserem em um questionamento político mais amplo. Para o Ensemble, não se trata apenas de experimentar as tecnologias esteticamente. A estética é uma das formas de expressão de algo considerado mais importante, e que passa, primeiro, pela análise política, sociológica e ética de uma dada realidade, e em segundo lugar, pelos usos possíveis de todos os meios à disposição da resistência cultural e eletrônica. 376 Frank Popper, “As imagens artísticas e a tecnociência (1967-1987)”, in André Parente (org.). Imagem- máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011, p. 203. 266 Resistência Eletrônica Ao longo da década de 1990, no momento em que o Brave New World mostra-se em todo o seu potencial, o CAE se envolve diretamente com o debate sobre a resistência eletrônica suscitado pela instauração da internet. O Ensemble posiciona-se à frente na reflexão acerca da resistência eletrônica e propõe uma análise acurada do fenômeno. Assim, o grupo projeta-se internacionalmente como um dos primeiros coletivos de artistas ativistas a tomar a palavra sobre o assunto de maneira lúcida, crítica e prospectiva. Os dois primeiros livros de autoria do CAE, The Electronic Disturbance (1994) e Electronic Civil Disobedience (1996), publicados pela editora anarquista Autonomedia, tocam em pontos cruciais sobre o tema, e delineiam em parte a discussão sobre o ativismo na internet e no ciberespaço em uma época na qual falar de invasão de sistemas informacionais, sequestro de dados ou desobediência civil eletrônica parecia mais ficção científica no melhor estilo cyberpunk do que uma realidade de fato. Mas há um motivo sociológico e uma inspiração literária para isso. O fato do CAE atuar nos Estados Unidos, um dos primeiros países a liberar a internet para a sociedade civil, responde ao primeiro. A inspiração no imaginário cyberpunk, a segunda. Desencadeado na cultura pop na década de 1980, o imaginário cyberpunk pode ser lido como um alerta do que as sociedades ocidentais estavam em vias de se tornar. Megacorporações transnacionais, tráfico de órgãos, pirataria de dados, sabotagens industriais, decadência do Estado, falência da política, corrupção das relações humanas submetidas aos imperativos do capital, tecnologia usada para controle e repressão: são apenas alguns dos fenômenos sociológicos amplamente figurados na literatura de ficção científica do período, denominada pela alcunha de cyberpunk. Adriana Amaral expõe o surgimento da expressão: Se pensarmos em termos de uma “árvore genealógica” do cyberpunk, temos basicamente três polos geradores: a literatura, as teorias sociais e a cultura pop. Forças e poderes que interagem e influenciam uma à outra. A literatura em um ramo que vai do romantismo ao chamado movimento “cyberpunk” em si, rotulado pelos jornalistas na década de 80; as chamadas teorias da pós-modernidade; e por fim, a aqui denominada cultura pop através de seus ícones estéticos da cultura jovem como o rock (em especial, o movimento punk) e a própria cultura do computador.377 377 Para um estudo pormenorizado sobre o assunto, ver Adriana Amaral. Visões perigosas: uma arque- genealogia do cyberpunk. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 74. 267 O elemento cyber advém da cibernética, ramo da ciência da comunicação aplicada às relações de homens e máquinas conjugados em sistemas input-output. Punk: insígnia do movimento contracultural surgido no final da década de 1970 na Inglaterra, um dos países considerados mais prósperos, como expressão da revolta juvenil contra os imperativos práticos impostos aos indivíduos e às classes pelo capitalismo de seu tempo, de tons neoliberais. Nesse cenário, o punk designa a postura de negação e combate daqueles a quem o mundo impõe-se sem apelos, quando então o que lhes motiva é a revolta acima de tudo. O imaginário cyberpunk, nesse sentido, adquire um teor incontestavelmente político. Nas suas produções, mesmo os problemas do indivíduo são diretamente coletivos, sociais, econômicos, políticos. As realidades ficcionais são elaboradas de uma percpectiva micropolítica, de forma que os problemas mais cotidianos adquirem um significado intrigante no interior de uma trama de dimensões grandiosas e mesmo labirínticas. A literatura com tais inspirações pode ser caracterizada, portanto, como uma literatura menor, no sentido apreciado por Deleuze e Guattari.378 Autores como Philip K. Dick e William Gibson já haviam formulado em suas obras um cenário sociológico rico em detalhes, sombrio, repleto de becos sem saídas, túneis virtuais, armas lasers e tramas soturnas, com violência, autoritarismo e sangue derramado em uma terra sem lei, na qual computadores, inteligência artificial, androides, ciborgues, homens e máquinas compõem um jogo mortal somente vencido pelos menos escrupulosos. O lema implícito no universo cyberpunk é “salve-se quem puder”. A política das máquinas dirigida aos investimentos tecnológicos salta no cenário distópico e adquire realidade material, virtual, complexa e assustadora, sob os auspícios de governos corruptos e autoritários.379 Cada livro, cada conto, cada filme de ficção científica que projeta o futuro social com a medida da distopia traz em si algo que a verve cyberpunk delineou muito bem constituindo seu próprio estilo. Há certamente um tom niilista, desencantado, crítico e até mesmo acusador na produção cyberpunk, que desde os anos 80 inspira escritores, artistas, intelectuais, cineastas, produtores culturais e ativistas a lançarem mão do imaginário distópico para 378 Cf, Gilles Deleuze e Félix Guattari, “A literatura menor”, in Kafka ou por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977. “As três características da literatura menor são de desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato-político, o agenciamento coletivo de enunciação. Vale dizer que ‘menor’ não qualifica mais certas literaturas, mas as condições revolucionárias de toda literatura no seio daquela que chamamos de grande (ou estabelecida)”, p. 28. 379 Cf. Fábio Oliveira Nunes, “Cyberpunks”, in Crtl+Art+Del: distúrbios em arte e tecnologia. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 162. 268 advertir, denunciar e dar visibilidade aos problemas existentes no mundo, mas que nem sempre aparecem para as pessoas e o público como o que realmente são. Quando motivados pelo senso crítico, os pensadores, artistas, intelectuais, jornalistas e escritores, tornam-se muitas vezes os porta-vozes da época, os sonâmbulos ou insones que não se deixam tomar pelos sonhos fabricados nas ilusões hodiernas que servem para manter a apatia generalizada, ou a alienação reinante nas sociedades do espetáculo. Despertos ante um mundo dominado por forças tirânicas e instituições decadentes, eles prefiguram a criação necessariamente múltipla de um pensamento vivo contemporâneo e portanto questionador, inquieto, às vezes inflamado, que levanta a voz para acordar os vivos ante a insanidade que se apodera da história recente nas atuais sociedades de controle. É o que tenta fazer o Critical Art Ensemble nas suas publicações, ao exercitar a reflexão crítica com relação ao mundo em que vive e no qual identifica problemas políticos intrigantes. Quase de imediato, o primeiro título do CAE obtém sucesso no campo progressista crítico internacional e é traduzido para outros idiomas. A versão italiana traz estampado na capa um subtítulo indicativo de como a Europa recebe a obra: Sabotagem Eletrônica: o primeiro grupo americano de crítica e ataque ao mass media. Com todas as dificuldades que as acontecimentos tecnológicos em torno da internet e do ciberespaço impuseram à resistência tradicional, a resistência cultural conta com a contribuição do Critical Art Ensemble. Quando ocorre a liberação do ciberespaço para a sociedade civil, os membros do grupo estão em plena atividade produzindo suas artes críticas. Sem qualquer base sólida na qual se apoiar, dada a novidade, eles acompanham o momento com ceticismo, curiosidade e coragem, exatamente o que se espera de quem se inspira no imaginário cyberpunk. Para não ficar para trás frente ao desenvolvimento tecnológico, o CAE assume então o desafio de pensar e experimentar os novos dispositivos comunicacionais com uma postura reflexiva, ao mesmo tempo cética e crítica. Enquanto a mídia dissemina em tons laudatórios uma imagem inteiramente positiva do fenômeno, o grupo, tocado pelo imaginário distópico da rica produção cyberpunk da época, identifica na geografia virtual um novo campo político de ação, e por isso destaca a importância da resistência ocupar seu lugar no cenário virtual. O debate gira em torno da legitimidade e da vantagem de lançar mão de estratégias de desobediência civil eletrônica, por meio de táticas hackers que miram sistemas informacionais estatais e corporativos, para de alguma forma perturbar, bloquear, reter, 269 redirecionar, atrapalhar, sabotar empreendimentos e instituições que, por via eletrônica, digital, tecnológica, tenham efeitos autoritários sobre a vida de indivíduos e grupos nas sociedades de controle. Trata-se de um debate proposto pelo CAE que é, a um só tempo, teórico e político, com implicações conceituais e práticas para os prospectos da resistência no campo mais amplo da cultura e, mais especificamente, da resistência eletrônica. Imagem 49 – Edição italiana do primeiro livro do CAE: Sabotaggio Elettronico. Il primo gruppo americano di critica e attacco ai mass media. Castelovecchi, 1995.380 Na analítica do poder empreendida pelo CAE, o elemento tecnológico, profundamente questionado pelos cyberpunks, desempenha um fator importante e integra em uma só análise o poder difuso e a máquina de ver do espetáculo.381 Os dois primeiros livros de autoria do grupo, The Electronic Disturbance e Electronic Civil Disobedience, são verdadeiros trunfos colocados na mesa para apreciação no jogo da resistência, uma 380 Imagem disponível em http://libridicasamia.com/upload/articoli/Sabotaggio_Elettronico__Il_primo_gruppo_americano_di_critic a_e_attacco_ai_Mass_Media_1870.jpg Acesso 27 de julho de 2019. 381 Cf. CAE, Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001, p. 25. 270 chamada para os rumos futuros da resistência cultural e artística na idade da reprodutibilidade informática, cibernética e virtual das artes e da cultura como um todo. Afinal, qualquer reflexão acerca da capacidade contemporânea de resistir ao poder precisa considerar a questão da tecnologia da resistência, e em particular a contribuição da tecnologia digital. A questão da relação da resistência com a tecnologia, embora hoje seja quase onipresente, com raras exceções foi colocada de modo explícito e direto como fez o CAE de forma pioneira na década de 1990. A eclosão de acontecimentos políticos como a Primavera Árabe e o Occupy Wall Street chama a atenção para as estreitas relações da resistência com as tecnologias digitais.382 Abordar essa estreita conexão nos tempos atuais como uma temática fundamental leva a considerar a importância de compreender o fenômeno a fim de melhor avaliar o estado contemporâneo, a capacidade global de resistir e seus possíveis desdobramentos. Na perspectiva do CAE, a esquerda continua praticando a desobediência civil ao modo antigo, dirigindo a força coletiva para determinadas instituições representativas do poder, e ao fazer isso, comete um erro de análise da estrutura do poder contemporâneo, que não pode ser mais identificado aos locais físicos, aos prédios, que outrora abrigavam as autoridades constituídas. Na idade do pancapitalismo, sucedâneo planetário do capitalismo pós-Guerra Fria, o poder volatiliza-se, converte-se em uma realidade ubíqua e torna-se finalmente nômade. Embora concreto, o poder nômade quase se desmaterializa à medida que sua estrutura se transforma. Conforme torna-se nômade, fica cada vez mais difícil de ser localizado. Em 1994, o CAE vê com certo ceticismo as típicas manifestações de rua, e aposta suas fichas na resistência eletrônica, que mostra seus primeiros sinais. Nesse momento, o raciocínio defendido pelo CAE é formulado claramente. O ativismo tradicional da esquerda precisa atualizar sua estratégia a fim de se adaptar às mudanças, tirar proveito das circunstâncias e assim superar as táticas consagradas. Em parte isso se explica pela presença, na década de 1990, de quadros de ativistas da chamada “nova esquerda” que tiveram algum êxito no passado e por isso insistem em atuar de forma semelhante a como agiram outrora. A crítica que o CAE faz à esquerda é incisiva: a falta de imaginação para inventar novas táticas de atuação na esfera política parece um efeito de algo mais profundo, um erro de análise da conjuntura. Embora o campo progressista e mais especificamente esquerdista insista na necessidade de se 382 Cf. Howard Caygill, “The technology of resistance”, in On resistance: a philosophy of defiance. London: Bloomsbury Publishing, 2015, p. 199ss. 271 produzir teoria vinculada à prática, ou seja, produzir análises, modelos de interpretação, conceituações, em estreita ligação com a realidade dada na vida política, econômica e cultural, ao que parece, em dado momento o vínculo entre pensamento e ação se perdeu, ou então foi superado pela realidade dos acontecimentos. Como atuantes da resistência cultural libertária, o CAE não nega os ganhos históricos, políticos e culturais conseguidos por meio da desobediência civil organizada. A suspeita é que o ativismo dos anos 1990 tenha pouco efeito sobre a política militar e corporativa, se continua a investir tão só na ocupação das ruas. Com uma forma que pode lembrar a atitude da vanguarda futurista na sua versão anarquista, clamando pela inteira adesão ao desenvolvimento das máquinas, o CAE convoca as artes e as resistências para montar seu teatro de operações no campo de batalha eletrônico por considerá-lo um lugar estratégico onde os rumos da política e da cultura parecem se decidir. A verdade é que, de futurista, o CAE não tem quase nada. O fato de trabalhar a tecnologia, de incorporar a máquina, não implica adesão irrefletida. A crítica não poupa os aparelhos, seus usos e efeitos, nem as implicações e apropriações políticas. Do mesmo modo como se fez ao longo do século XX na Teoria Crítica com relação à razão e o projeto iluminista,383 o CAE se põe a fazer com a tecnologia e a ciência, porém, à sua maneira, ou seja, de uma perspectiva engajada. A primeira obra do CAE, Distúrbio Eletrônico, além do que foi dito com relação aos arsenais antropotécnicos da resistência, é um autêntico manifesto da resistência eletrônica. Nela, o grupo demonstra como as tecnologias eletrônicas reconfiguram as relações de poder, e como os produtores culturais, artistas e ativistas podem lançar mão das mesmas tecnologias para propósitos de resistência. O livro toca em temas com uma abordagem profundamente atual mas não é muito bem recebido por parte da resistência tradicional, em parte porque, nos Estados Unidos, a década de 1990 vive o ápice das políticas identitárias, e há uma revalorização das ações de rua decorrente de toda a movimentação da crise envolvendo a AIDS (da qual o CAE participa, para, logo em seguida, mudar seus rumos políticos). Isso faz com que os muitos vejam com reserva o chamado às armas eletrônicas.384 383 Olgária Matos afirma: “A razão ocidental configura-se, na crítica feita por Adorno e Horkheimer, como razão de dominação, de controle da natureza exterior e interior, de renúncia e ascetismo”. Cf. “O eclipse da razão”, in A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993, p. 48. Ver a obra original: Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. 384 Cf. CAE, Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 112. 272 Nesse cenário, um dos principais desejos do grupo é alertar a vanguarda tecnocrática (formada pelos especialistas da informática, programadores, hackers em potencial), bem como a resistência cultural em geral, sobre a tarefa histórica de corresponder, de maneira criativa, às forças produtivas disponibilizadas pelos aparatos e dispositivos que vieram em conjunto formatar a nova estrutura maquínica do ser no mesmo período. Assim como a cada desenvolvimento das forças produtivas correspondem necessariamente mudanças nas relações de produção, as tecnologias digitais (informáticas e comunicacionais, os processadores de texto, som e imagem, etc.) criaram outras relações de poder e consequentemente de resistência que precisam ser atualizadas o quanto antes. O CAE abre assim seu livro Distúrbio Eletrônico: As regras da resistência cultural e política mudaram radicalmente. A revolução tecnológica causada pelo rápido desenvolvimento do computador e do vídeo criou uma nova geografia das relações de poder. Uma nova ordem que há cerca de vinte anos só poderia existir na imaginação: as pessoas estão reduzidas a dados, a vigilância ocorre em escala global, as mentes estão dissolvidas na realidade da tela. Surge um poder autoritário que floresce na ausência. A nova geografia é uma geografia virtual, e o núcleo da resistência política e cultural deve se afirmar neste espaço eletrônico.385 Tudo indica que a resistência ouve o chamado do grupo materializado nos primeiros livros publicados pelo coletivo, pois, com o tempo, diversos artistas e grupos de ativistas logo se prontificam a montar um teatro de operações no campo virtual com relação ao qual os rumos da civilização tem se processado desde então. Por força das circunstâncias, não demora para que as formas de resistência cultural se transformem radicalmente acompanhando o desenvolvimento da internet e das tecnologias afins. Hackers, programadores, fotógrafos, designers, jornalistas, escritores e toda sorte de produtores culturais passam a produzir sites e mídia tática para formar uma resistência eletrônica. Agenciando as redes de conexões às suas necessidades, a resistência aos ditames do capital e de toda forma de autoritarismo adentra o universo das novas mídias do espetáculo, a internet e o ciberespaço, voltando contra a máquina política dominante suas armas eletrônicas e culturais. Com base nas possibilidades materiais e tecnológicas, a resistência eletrônica ganha em possibilidades de ação, pois uma vez apropriados, os dispositivos podem ser revirados contra o poder mesmo que os criou, desta vez, dando voz e visibilidade à revolta contra a máquina autoritária que opera sob a 385 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 11. 273 lógica do capital planetário. Aliás, colocando em questão a tecnologia, a ciência e o capitalismo, a arte crítica do CAE forja com astúcia uma práxis correspondente às forças produtivas que resultaram na formação da cibercultura. Afinal, para que os artistas, ativistas e produtores culturais acompanhem os avanços da civilização planetária sem cair nas armadilhas do passadismo, torna-se fundamental assumir as tecnologias como forças produtivas da resistência nas mais diversas linhas de ação contra projetos de dominação e tendências autoritárias na esfera da cultura. Eis o motivo do chamado feito pelo CAE para a formação de uma resistência eletrônica: a apropriação artística e política das tecnologias da informática e da comunicação com fins de resistência cultural. Por outro lado, quando o poder nômade se desmaterializa, desvincula-se de locais claramente identificáveis, e assim, fica ainda por saber o que ou quem a resistência deve combater. O CAE aposta no combate a tendências e não figuras de poder. A situação não é nada simples. O poder autoritário se espalha pelo corpo social mesmo nas sociedades ditas democráticas. O inimigo, se é que faz sentido ainda trabalhar com essa noção, prescinde da presença física e por isso não pode ser localizado. Sem uma figura como alvo, resta ao menos resistir aos autoritarismos e às forças opressoras. Mas claro, resistir a essas tendências significa, além de combatê-las, fazer valer um contrapoder ou uma potência libertária, seja subvertendo as forças dominantes, seja causando distúrbios e panes nos sistemas. Assim, torna-se possível provocar danos ao princípio de eficiência de agências econômicas e políticas que operam a máquina de guerra planetária. Brian Holmes, na introdução ao livro Disturbances, estabelece relações da analítica do CAE com o conceito de dominação de Sheldon S. Wolin em seu livro Democracy Incorporated: Managed Democracy and the Specter of Inverted Totalitarianism, de 2008, segundo o qual uma sociedade nominalmente democrática, tal como os Estados Unidos, pode desenvolver níveis quase totalitários de controle sem um líder todo poderoso, um aparato formal de censura, uma polícia secreta onipresente ou uma mobilização ideológica constante dos cidadãos em blitz, buscas, revistas militares, etc. Em vez disso, o efeito é conseguido por meio de subordinação dos governos aos imperativos das corporações, com a expansão da soberania a dimensões globais que são inacessíveis a um público não iniciado, com a proliferação de burocracias secretas e estados de exceção, bem como, por meio de uma arte de construção de opinião que combina tecnologia avançada, ciência social acadêmica, contratos governamentais e subsídios corporativos – conjunção geradora de um superpoder que se prolifera através 274 da contínua expansão econômica, não importa a que custos humanos e ecológicos. Protestos podem ocupar as ruas, mas indivíduos e grupos indesejáveis podem ser silenciados economicamente, legalmente ou por força, do mesmo modo, as eleições, que podem ser aparelhadas, guerras falsas agenciadas como um meio extremo de conseguir suporte de uma suposta maioria. O pancapitalismo é isso, à escala mundial.386 Lidar com o poder nômade que flui nas autopistas do ciberespaço requer formas de resistência que sejam capazes de escapar dos efeitos de poder igualmente eficazes na maneira de combater as tendências antiautoritárias. Ao invés de ficar na defensiva, ou buscar no escapismo ou no conformismo uma desculpa para a inércia, o CAE aposta no ataque eletrônico como tática de ação resistente. A lógica é ofensiva: não se pode baixar a guarda, nem permanecer na defensiva o tempo inteiro, do contrário, o autoritarismo tende a crescer e se intensificar. Afinal, contra o poder nômade, somente uma resistência nomádica pode fazer frente, ou seja, uma resistência que se organize e opere mediante estratégias e táticas não sedentárias facilmente localizáveis. Para o CAE, o campo dessa resistência é precisamente o ciberespaço, a dimensão informacional que se propaga em seu próprio plano, paralelo à geografia física dos materiais: uma geografia abstrata e virtual dos fluxos e dados informacionais: A resistência ao poder nômade deve se dar no ciberespaço e não no espaço físico. O jogador pós-moderno é um jogador eletrônico. Um pequeno mas coordenado grupo de hackers poderia introduzir vírus e bombas eletrônicas em bancos de dados, programas e redes de autoridade, colocando a força destrutiva da inércia contra o domínio nômade. A inércia prolongada se iguala ao colapso da autoridade nômade em nível global. Tal estratégia não requer uma ação unificada de classe, e nem uma ação simultânea em várias áreas geográficas. Os menos niilistas poderiam ressuscitar a estratégia da ocupação mantendo como reféns dados em vez de propriedades.387 Às resistências cibernéticas cabe a provocação de distúrbios que tenham a capacidade de causar uma pane no modo normal de funcionamento de um dado sistema. A tática da resistência nômade capaz de fazer frente ao poder nômade é uma tática que busca na prática do distúrbio estético, político e eletrônico a forma eficiente de ativismo no presente. 386 Cf. Brian Holmes, “Three keys and no exit: a brief introduction to Critical Art Ensemble”, in CAE, Disturbances, p. 15-16. Trecho traduzido e adaptado. 387 CAE, Distúrbio Eletrônico, p. 33. 275 Toda essa abordagem crítica promulgada pelo CAE funda um discurso político sobre a tecnologia e a artes e, ao mesmo tempo, produz um tipo específico de conhecimento sobre o atual. A crítica engajada demonstra, afinal, que uma das melhores formas de agir passa pelo direcionamento do esforço da resistência cultural no sentido de encontrar os recursos necessários para resistir às normas sociais, perseguindo uma linha de questionamento, ao mesmo tempo que desenvolve uma posição autônoma. A questão fundamental passa a ser, então, saber quais são os impactos que um experimento cultural pode ter na política global e nas relações micropolíticas da existência da vida cotidiana.388 Subvertendo a Máquina Imagem 50 – Ilustração do livro Flesh Machine, do CAE.389 O CAE defende a ideia de que a desobediência civil na sociedade de controle alimentada pelos complexos informáticos, comunicacionais e de vigilância necessita atuar na dimensão eletrônica do ciberespaço. Em determinadas realidades sociais é praticamente impossível desvincular-se dos efeitos do ciberpoder. Cada indivíduo, cada cidadão está conectado aos sistemas de informação e controle, a despeito do que pense a respeito. A vida normal de um cidadão típico das metrópoles na virada do século pressupõe sua conexão ao aparato cibertecnológico do poder nômade. Nesse sentido, se a reivindicação é por liberdade, 388 O tópico “Resistência, Revolução e Destituição”, do Capítulo 4 – Resistência Cultural, pode ser lido como uma resposta a esta questão. 389 CAE. Flesh Machine: cyborgs, designer babies, and new eugenic consciousness. New York: Autonomedia, 1998, p. 2. 276 contra o exercício do poder sobre a vida das pessoas, então a luta passa também pelas instâncias eletrônicas, tecnológicas, cibernéticas, informacionais. Além do mais, as máquinas externas tem como aliadas as máquinas internas, semióticas, a-significantes, que compõem os sistemas maquinocêntricos do pancapitalismo. O funcionamento das instituições estatais e corporativas pressupõem, dado o grau de complexidade de suas operações, dependência quase total de interconectividade informacional e comunicativa em redes e circuitos sociotécnicos nos quais circulam fluxos e dados muito variados. Por isso mesmo, desde cedo formaram-se sistemas de defesa e vigilância com a função de garantir o bom funcionamento de suas operações sem perturbações externas a seus sistemas. A criação de departamentos de serviço secreto específicos, polícias virtuais, agências de segurança privada, com fins de vigiar e ordenar o ciberespaço se deve à exposição a que estão submetidos tanto organismos estatais e governamentais, como privados, corporativos, empresariais e bancários nas autopistas da rede internacional de computadores. O uso da internet e do ciberespaço implica riscos. Para o bem e para o mal, da perspectiva da resistência, há pontos fracos que podem ser atacados. Foi com base nesse raciocínio que os primeiros hackers começaram a mirar determinados alvos, conglomerados de empresas, departamentos governamentais, centros de dados bancários. Os objetivos dos ataques quase sempre são a obstrução dos fluxos, o bloqueio ao acesso às informações, a invasão de sistemas, o sequestro de dados e, nos casos extremos, com o emprego de violência eletrônica, a destruição de centros de armazenamento de dados, a derrubada de portais, a manipulação de dados bancários, entre outras formas de atacar empresas, corporações, instituições e até mesmo pessoas. A lógica que Paul Virilio emprega para chamar atenção sobre os aspectos não- refletidos ou não-planejados inerentes a quaisquer inventos humanos, sobretudo, tecnológicos, aplica-se perfeitamente à internet: Criação e queda, o acidente é um obra inconsciente, uma invenção no sentido de descobrir o que estava oculto – esperando para acontecer em plena luz do dia. Ao contrário do acidente natural, o acidente artificial resulta da inovação de uma máquina ou de um material substancial.390 390 “Création et chute, l’accident est une oeuvre inconsciente, une invention au sens de découvrir ce qui était caché – en attente de se produire au grand jour. A la différence de l’accident naturel, l’accident artificiel résulte de l’innovation d’un engin ou d’une matière substantielle”. Cf. Paul Virilo, “L’invention des accidents”, in Paul Virilio: la pensée exposée (textes et entretiens). Paris: Foundation Cartier pour l’art contemporain, 2012, p. 77ss. 277 A cada invenção humana, surge um acidente correspondente, como um aspecto inerente à tecnologia em questão. A invenção dos trens criou os descarrilamentos, a invenção da navegação com navios, o naufrágio, e assim por diante. Qualquer máquina traz em si o acidente que lhe corresponde, pois a máquina, por definição e de fato só funciona se avariando. Entretanto, a questão é ainda mais profunda. Antes mesmo de pensar sobre os acidentes, é fundamental analisar os usos possíveis dos dispositivos e das máquinas. No caso da internet, a tecnologia de compartilhamento, comunicação e difusão de dados e informações traz consigo o risco e a possibilidade de difusão de falsas notícias, de vazamento de dados e uma série de efeitos colaterais como roubo e sequestro de dados, extorsões relacionadas às informações assim apropriadas, imagens, vídeos e toda sorte de gravações captadas na rede de forma não autorizada, para mencionar apenas alguns exemplos. As sociedades de controle, que, segundo Deleuze, sucedem as sociedades disciplinares, são impensáveis sem os sistemas informáticos e comunicacionais providos de altas tecnologias.391 O controle se faz valer com elas, e na realidade, operam por meio delas. Ademais, como dito anteriormente, as tecnologias informacionais surgiram no contexto da Guerra Fria e foram desenvolvidas pelos militares com propósitos estratégicos. Somente depois que deram origem à internet tornaram-se disponíveis para uso civil comum. Tudo isto para enfatizar elementos intrínsecos às tecnologias que, no mais das vezes, não são pensados com a devida atenção. Há uma espécie de magnetismo tecnológico (dada sua existência em âmbito social) que reveste as máquinas e seus produtos do que Walter Benjamin denomina fantasmagoria, seguindo o conceito de fetichismo primeiramente aplicado por Marx às mercadorias.392 Nas sociedades atuais, o 391 Cf. Gilles Deleuze, “Post-scriptum: sobre as sociedades de controle”, in Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2008. 392 Em um estudo sobre a filosofia de Walter Benjamin, Rainer Rochlitz trata do conceito de fantasmagoria: “Se o desenvolvimento técnico não é suficiente para enfraquecer o reino das fantasmagorias, todo o problema é saber como trabalhar com o despertar suscetível de nos libertar delas. As técnicas têm uma função subversiva que a sociedade deve saber captar para deixar de ser prisioneira do mito. A técnica despoja o mundo de seus sonhos ilusórios; o desenvolvimento do mercado, em compensação – perpetuação da ordem social ‘antiga’ – favorece a fantasmagoria”. Rainer Rochlitz. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. Bauru: Edusc, 2003, p. 231. A recuperação do surrealismo no âmbito da sociedade do espetáculo foi evidenciado no capítulo Nomadologia da Arte-Revolta. Tal fenômeno é um claro exemplo de como o capitalismo se apropria da potência artística para fabricar fantasmagorias. E de como é capaz de esterilizar a arte-revolta de seus princípios críticos. Hoje em dia, a palavra surrealismo foi inteiramente devassada. Seu uso comum remete a quaisquer atos ou fenômenos absurdos, sem sentido e, portanto, nulos de valor. Exatamente o contrário do que significa para os autênticos surrealistas. 278 fetichismo das máquinas, sejam elas externas ou internas, tende a se impor por meio de discursos que beiram o ufanismo tecnológico. Pouco se fala na esfera pública sobre os aspectos negativos, não planejados, das tecnologias, que compõem necessariamente um campo de contra-finalidade, a despeito da suposta racionalidade que elas possuem em um nível superficial de análise. A produção discursiva gira em torno dos efeitos especiais tecnológicos segundo uma perspectiva utilitarista e mercadológica que se projeta sobre os inventos para que sejam incorporados sem quaisquer questionamentos críticos ou éticos. A indução ao erro consiste em concentrar-se exclusivamente nos aspectos supostamente positivos, desprezando as análises sobre os efeitos negativos ou danosos das tecnologias que necessariamente as acompanham como possibilidade ou virtualidade. Impossível eliminar por completo esses aspectos, sem dúvida. O que Virilio defende, e que o CAE coloca em prática nas suas abordagens da internet, é a necessidade de se analisar os dispositivos em seus mais distintos aspectos, usos, potencialidades, etc., para que, assim, não se reproduza nem se aceite tudo sem consciência, sem discussão, sem esclarecimento. Condição primeira de autonomia individual e coletiva.393 Internet e Poder A crítica que o CAE elabora sobre o complexo tecnopolítico da internet não pretende ser expressão neoluddita, que nega a priori a tecnologia.394 Diferente dos neoprimitivistas, que identificam na tecnologia um grande mal, o CAE reconhece o valor das técnicas aplicadas, tanto que faz uso delas sempre que necessário. Mas isso não deve impedir o exercício do pensamento crítico, que tem a função de pensar os problemas em toda sua complexidade. Para fazer jus ao pensamento radical é mister ultrapassar as aparências dos fenômenos em busca dos fundamentos do que acontece e constitui uma dada realidade. O ceticismo do grupo com relação à internet é embasado em argumentos sociológicos: “A internet não existe no vácuo. Está intimamente relacionada com todo tipo de estruturas sociais e dinâmicas históricas”.395 Assim como a Escola de Frankfurt demonstrou os usos 393 Steve Kurtz afirma que o CAE produz uma crítica da alienação tecnológica. Cf. Pour une résistance culturelle permanente. Entretien avec Steve Kurtz du Critical Art Ensemble. Stéphanie Lemoine, Samira Ouardi. Mouvements, 2011/1 (n° 65), p. 151. 394 Cf. CAE, “Utopian promises – net realities”, in Flesh Machine, p. 139. 395 “The internet does not exist in a vacuum. It is intimately related to all kind of social structures and historical dynamics”. CAE, Flesh Machine, p. 153. 279 políticos e sociais da razão tecnocientífica nos processos totalitários e nas indústrias culturais, o CAE faz com a rede internacional de computadores. Com o objetivo de esclarecer as relações da internet com o estado, a ciência e o capitalismo, o grupo retoma em linhas gerais a origem histórica da internet, e assim fazendo, traça um diagrama no qual a World Wide Web aparece enredada nos interesses sociais, governamentais e mercadológicos. A tese defendida aparece assim formulada no apêndice do livro Flesh Machine: Existe uma zona livre eletrônica (o agregado de domínios que têm características resistentes ao pancapitalismo), mas, do ponto de vista do CAE, trata-se apenas de um desenvolvimento modesto, na melhor das hipóteses. De longe, o uso mais significativo do aparato eletrônico é manter a ordem, replicar a ideologia pancapitalista dominante e desenvolver novos mercados.396 Os motivos das reservas que o CAE apresenta com relação à internet podem ser encontrados na histórica formação da rede de computadores e nas contradições identificadas entre a retórica deslumbrada sobre os supostos benefícios trazidos por ela e os argumentos céticos elaborados pelo CAE e outros críticos da tecnologia informática. As origens da internet remetem ao contexto da Guerra Fria, quando os militares sentiram a necessidade de elaborar um meio de preservar a estrutura de comando no caso de um ataque nuclear. Era preciso se precaver e inventar meios logísticos de garantir a comunicação entre os destacamentos e os alto-comandos, requisito de qualquer campanha estratégica. Depois dos militares, os cientistas foram os próximos a dispor da internet. Financiados pelo Estado, que nutria grande interesse em ganhos teóricos e epistemológicos, e por corporações que investiam nas pesquisas com fins de reter conhecimento com potencial de desenvolvimento econômico, os cientistas contribuíram à sua maneira com a viabilização tecnológica da internet. As corporações e demais investidores das pesquisas logo demandaram participação no empreendimento com vistas a abrir o ciberespaço para seus negócios. Com o aperfeiçoamento do sistema adiantado, outros agentes entraram no filão com a expectativa de que dali surgiria um ramo industrial promissor, tanto com relação ao hardware, o aparato tecnológico de base física, quanto à dimensão abstrata, virtual, dos softwares, inerente ao ciberespaço que a infraestrutura 396 “There is an electronic free zone (the aggregate of domains that have characteristics resistant to pancapitalism), but from CAE’s perspective, it is only a modest development at best. By far the most significant use of the electronic apparatus is to keep order, to replicate dominant pancapitalist ideology, and to develop new markets”. CAE, Flesh Machine, p. 141. 280 material origina. Assim, não demorou, a dimensão virtual aberta tornou-se realidade, e os investidores perceberam nela um mecanismo a ser explorado com fins comerciais.397 Em poucas linhas, o diagrama histórico-sociológico da internet traçado pelo CAE ganha contornos: surge como tecnologia de guerra, torna-se objeto da razão financiada por governos e corporações, e finalmente se consolida como tecnologia para uso massivo à disposição tanto do Estado (aplicada nos campos militar, burocrático e policial) como do mercado (como um espaço virtual de livre comércio). Estado, razão e capital (controle, ciência e mercado), combinação que gerou um complexo tecnopolítico da mais alta complexidade com o poder de revolucionar as sociedades contemporâneas em termos políticos, econômicos e culturais. “Assim nasceu o aparato repressivo de maior sucesso de todos os tempos; e ainda assim foi (e ainda é) representado com sucesso sob o signo da liberação”.398 Nesse ponto, surgiu um paradoxo peculiar: o capitalismo de livre mercado entrou em conflito com o desejo conservador por ordem. Tornou-se aparente que, para que essa nova possibilidade de mercado atingisse todo o seu potencial, as autoridades teriam que tolerar um certo grau de caos. Isso era necessário para seduzir as classes mais ricas a usar a rede como local de consumo e entretenimento, e, em segundo lugar, para oferecer a rede como um álibi para a ilusão da liberdade social. Embora o controle totalizador das comunicações tenha sido perdido, o custo total desse desenvolvimento para governos e corporações era mínimo e, na verdade, o custo não era nada comparado ao que foi ganho.399 O CAE, com seu ceticismo, insiste ainda em outro aspecto do ciberespaço e da internet, divergindo da retórica que trata as tecnologias da comunicação e da informação como parte de uma tecnorrevolução radicalizada. Não se pode a ignorar a expansão da internet e das tecnologias digitais como extensão do território da tecnocracia pancapitalista.400 397 Cf. CAE, Flesh Machine, p. 142-144. 398 “Thus was born the most successful repressive apparatus of all time; and yet it was (and still is) successfully represented under the sign of liberation”. CAE, Flesh Machine, p. 143. 399 “At this point, a peculiar paradox came into being: Free market capitalism came into conflict with the conservative desire for order. It became apparent that for this new market possibility to reach its full potential, authorities would have to tolerate a degree of chaos. This was necessary to seduce the wealthier classes into using the Net as site of consumption and entertainment, and second, to offer the Net as an alibi for the illusion of social freedom. Although totalizing control of communications was lost, the overall cost of this development to governments and corporations was minimal, and in actuality, the cost was nothing compared to what was gained”. CAE, Flesh Machine, p. 143. 400 Cf. CAE, Tactical Media Practitioners: an interview. Jon McKenzie and Rebecca Schneider. The Drama Review, 44, 4 (T168). New York: University and the Massachusetts Institute of Technology Winter, 2000, p. 148. 281 O poder nômade se sustenta em redes sociotécnicas ramificadas em diversos países. A lógica pós-sedentária do poder é informacional, comunicacional. Pressupõe continuidade de fluxos para manter as estruturas econômicas, políticas, institucionais e militares funcionando. Desde que a informática foi incorporada às instituições, o funcionamento do sistema capitalista, das burocracias estatais e dos sistemas de reprodução de conhecimento depende da conexão com as redes de computadores. Exatamente nessas complexas redes de conexão repousa um dos alvos que podem servir para os propósitos da resistência. Nos anos iniciais de sua instauração a internet parecia uma utopia realizada. A ela estavam ligados sentimentos de deslumbramento e esperança com relação aos usos que possibilitaria. O compartilhamento de conhecimento, o livre acesso à informação, maior participação política da sociedade civil organizada nos processos decisórios, o encurtamento das distâncias entre as pessoas de distintos lugares, a conectividade, o incremento de eficiência a vários processos (sociais, econômicos e políticos), entre outras ideias vinculadas à noção geral de progresso circulavam na opinião pública. Essa coleção de truísmos retóricos alimentou a imagem da internet como algo inteiramente positivo.401 Entretanto, o advento da internet foi recebido com desconfiança pelo pensamento crítico. Enquanto no mainstream filosófico autores como Paul Virilio e Jean Baudrillard debatiam, na contramão do que professava Pierre Lévy, as reviravoltas que a internet e o ciberespaço trouxeram ao campo da cultura e da política – na cena underground norte- americana, diversos autores (como Pit Schultz, Geert Lovink, Richard Barbrook, Konrad Becker, Lev Manovich, Inke Arns, Oliver Marchart, Matt Fuller, Mark Dery e o próprio Critical Art Ensenble) formaram uma frente de desmistificação dentro da resistência, preocupados com questões políticas práticas que tocavam à existência de movimentos concretos de resistência. Eles se esforçaram para esvaziar as promessas dos marketeiros em seus muitos disfarces, para revelar a infra-estrutura ideológica da tecnologia e sua representação, e para demonstrar que mesmo a menor possibilidade utópica contida na retórica provavelmente não seria em geral realizada pela maioria da população mundial.402 401 Cf. CAE, “The promissory rhetoric of biotechnology in the public sphere”, in Digital Resistance: explorations in tactical media. New York: Autonomedia, 2001. p. 42-43. 402 “They have endeavored to deflate the promises of marketers in their many guises, to reveal the ideological infrastructure of the technology and its representation, and to demonstrate that even the smallest utopian possibility contained in the rhetoric would probably not be generally realized by most of the world’s population”. CAE, Digital Resistance, p. 42. 282 Para além do deslumbramento, que cabia desmitificar, havia desde o início um lado escuro, um ponto cego das tecnologias da informática e da comunicação que abriram caminho para a internet e o ciberespaço. Era preciso maquinar um trabalho coletivo de difusão das perspectivas críticas junto à opinião pública, e esses autores se propuseram a ser porta-vozes de um pensamento cético, questionador e crítico, capaz de alertar sobre os aspectos que não estavam claros por trás dos disfarces retóricos propagados pelos meios de comunicação de massa. O poder que um dia foi sedentário fez-se poder cibernético, informático, comunicacional, fabricando para si seu próprio espaço onde circular de forma desterritorializada: o ciberespaço da rede mundial de computadores. A internet se instalou, pouco a pouco, alimentada inicialmente por fibras óticas, depois por satélites e toda sorte de aparatos, com e sem fios, e ao invés de servir a propósitos democráticos, apresentou-se como um espaço colonizado pelos imperativos do comércio internacional e pela inteligência secreta da classe militar. Os imensos potenciais mercadológicos, financeiros, publicitários, mostraram-se predominantes desde o princípio. Por trás das aparências civis, não há como negar correlações entre parcelas da classe capitalista com setores governamentais civis e militares com interesse na expansão da internet, que antes de ser aberta para a sociedade civil fora uma tecnologia militar. A Escola de Frankfurt já havia alertado sobre as estreitas relações da ciência e da tecnologia com os aparatos totalitários, e sobre a íntima relação delas, desde as origens da indústria moderna, com as demandas do capital.403 A ciência dos iluministas, quando começou a gozar de reconhecimento perante a sociedade, tornou-se uma das maiores fontes produtivas para a economia capitalista, que soube muito bem apropriar-se de seus imensos potenciais, investindo somas suntuosas de recursos em pesquisas voltadas para produtos e conhecimentos úteis e, sobretudo, rentáveis. Universidades, centros de pesquisa, agências privadas, institutos corporativos, polos de invenção e desenvolvimento tecnológico tornaram-se ótimos negócios para governos, estados, complexos militares e corporações capitalistas. Essa tendência histórica foi acentuada ao longo do século XX durante a Guerra Fria com a Corrida Espacial e culminou com a internet, resultado e síntese de investimentos multilaterais em tecnologias aplicadas a interesses voltados a princípio para a guerra. A suspeita com que a resistência recebeu a abertura da internet e do ciberespaço 403 Cf. Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Dialética do esclarecimento. 283 considerou todos esses fatores. Por isso mesmo desenvolveu toda uma argumentação sobre a necessidade de se organizar uma resistência eletrônica acoplada intimamente aos processos tecnológicos da internet e do ciberespaço. Em um mundo tomado por aparelhos informacionais, a resistência será cibernética ou não será. Eis a divisa do Critical Art Ensemble em meados dos anos 90. Uma das formas de ação propostas pelo CAE à resistência cultural foi denominada Desobediência Civil Eletrônica. Desobediência Civil Eletrônica O pano de fundo em questão na abordagem do CAE à resistência eletrônica é uma discussão mais ampla em torno da necessidade de se articular uma resistência cultural antiautoritária na esfera pública. Cético quanto ao ideal de revolução, o Ensemble aposta na promulgação de uma resistência plural, baseada em uma política das diferenças, que faz valer uma práxis criadora e promotora de instâncias de autonomia, individuais e coletivas. No quadro de análise assim exposto, a defesa da desobediência civil eletrônica aparece como uma ideia, entre outras, de valorização de novos e variados meios de produção (mídias táticas) a serem empregados pela resistência a fim de conter os avanços autoritários na esfera da cultura e frear a velocidade da economia política capitalista. As propostas de ação para a resistência cultural apresentadas pelo CAE não são poucas, afinal, a produção de resistência pode se dar de múltiplas formas: vídeos, livros, exibições, performances, intervenções, teatro recombinante, teatro eletrônico, plágio utópico, mídias táticas, instalações, poesia, palestras, todas elas, formas praticadas pelo coletivo ao longo de sua trajetória, e servem como exemplo para que outros grupos inventem suas próprias formas de expressão micropolíticas. Com relação às ideias e as recomendações do grupo sobre a desobediência civil eletrônica, pesam sempre argumentos sérios e um raciocínio sóbrio que pretendem evitar deslizes niilistas ou contraproducentes, um pensamento autenticamente crítico em suma, preocupado com os aspectos éticos, sociais e políticos que lhe são intrínsecos. Por isso, opta por falar somente em termos gerais e sobre casos hipotéticos, por acreditar que a resistência eletrônica eficaz é a que ocorre no anonimato necessariamente underground.404 404 Cf. CAE, “Electronic civil disobedience, simulation, and the public sphere”, in Digital Resistance, p. 26-27. 284 Com ousadia, no coração dos Estados Unidos, o CAE defende a legitimidade de práticas de desobediência civil eletrônica como forma da resistência viabilizar suas pautas e reconfigurar a correlação de forças na idade do pancapitalismo, sempre com vistas a barrar a expansão dos poderes econômicos e políticos autoritários. No geral, trata-se de prover a resistência com estratégias e táticas capazes de mobilizar as potências inerentes à resistência que se anuncia com a constituição do ciberespaço. O argumento de que, para cada estratégia, existe em potencial uma contra- estratégia correspondente (que cabe à resistência descobrir ou inventar), é capaz de convencer até os mais céticos.405 Em cada regime de dominação germinam forças contraditórias que carregam em si, segundo o raciocínio dialético, possibilidades de superação. A ideia então consiste em despertar, suscitar, promover, estimular a eclosão de tais forças, e ao mesmo tempo, usar os pontos fracos do adversário, e o seu peso, contra ele, revirando assim o jogo das forças em contradição, com o que se pretende direcionar os resultados para outros fins. Essa lógica teórica tem fundamento nas estratégias de guerra e foi mobilizada na sua versão dialética no clássico Manifesto do Partido Comunista, no qual a classe proletária é identificada como a força revolucionária nascida no seio do próprio capitalismo. Eis uma passagem que dá uma amostra da forma e do tom usados no texto: As armas com que a burguesia derrubou o feudalismo viram-se agora contra a própria burguesia. Mas a burguesia não forjou somente as armas que lhe trazem a morte; também gerou os homens que vão usar essas armas – os operários modernos, os proletários.406 Esta citação do manifesto contém, virtualmente, o raciocínio defendido pelo CAE. Ao aplicar a técnica situacionista de détournement ao texto, ou o plágio utópico que o coletivo emprega, substituindo algumas palavras pelos conceitos mobilizados na discussão da resistência eletrônica, é possível conceber, com certa liberdade, a seguinte afirmação: as tecnologias com que a elite pancapitalista superou o poder sedentário viram-se agora contra a própria elite. Mas a elite pancapitalista não forjou somente as tecnologias que lhe trazem a morte; também gerou os homens que vão usar essas tecnologias – os hackers pós-modernos, a classe tecnocrática. 405 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience and others unpopular ideias. New York: Autonomedia, 1996, p. 29. 406 Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do Partido Comunista. Edições Progresso: Impresso na URSS, 1987, p. 40. 285 O discurso do CAE desvela as estratégias do poder, revelando usos subversivos a serem atualizados na resistência. O efeito é duplo: desmascara o poder e fornece subsídios para a resistência. O capitalismo que projetou o ciberespaço com a intenção de ampliar e expandir seus mercados terá que enfrentar sua própria nêmesis representada pela ameaça da resistência eletrônica, que tem o papel histórico de inventar seu modus operandi, suas estratégias e táticas correspondentes aos níveis tecnológicos desenvolvidos até então, forjando, nas lutas concretas e virtuais, os meios tecnológicos para resistir, e não deixar o adversário reinar em paz como em terra conquistada. Se o pancapitalismo inventou o ciberespaço, a vanguarda tecnocrática de que fala o CAE se utilizará do mesmo espaço a fim de minar o capitalismo digital por dentro, ademais, com as máquinas que ele mesmo forneceu. Porém, a temática da desobediência civil eletrônica coloca em debate a problemática relação das atividades de resistência eletrônica e o ativismo tradicional no campo da formação. A resistência eletrônica requer conhecimento técnico especializado em informática, linguagem de programação, algoritmo, sistemas de segurança, etc. Os hackers possuem a formação técnica e são mais capacitados tecnologicamente em relação aos ativistas tradicionais. Porém, como regra, falta aos primeiros a teoria, a consciência e a prática política igualmente necessárias para bem direcionar o ativismo. Assim, o CAE identifica um problema que precisa ser pensado e, se possível, resolvido: a falta de formação política dos hackers, de um lado, e a ausência de capacitação técnica dos ativistas, de outro. Enquanto um tipo possui o preparo técnico, o outro é dotado do saber político prático. A problemática assim diagnosticada pelo CAE na década de 1990 leva à seguinte questão: como tornar a resistência eletrônica algo efetivo, concreto? Uma forma de superar esse impasse é formar coletivos que, a exemplo do próprio CAE, unam pessoas com distintas formações e especialidades. Desta forma, as limitações individuais são compensadas pelas competências dos demais integrantes do grupo. Paranoia Em meados de 1990, quando o CAE lançou seus primeiros livros nos quais trata da temática da resistência eletrônica, o problema já era real. Quem fosse pego adentrando sistemas sem autorização seria tratado pelas autoridades constituídas como criminoso. Ainda no início do fenômeno, a atividade dos hackers começa a ser tratada como criminosa a despeito das diferentes práticas e dos distintos objetivos com que os primeiros 286 invasores atuavam. De um modo público, os hackers se defendiam afirmando que agiam com ética, e se adentravam bancos de dados abrindo brechas nos sistemas de segurança, assim faziam para mostrar onde haviam falhas. Nos casos em que as ações eram movidas por um propósito maior, a argumentação girava em prol de alguns princípios básicos, dentre os quais a defesa da liberdade de informação e o acesso livre à rede e ao conhecimento nela disponibilizado. No entanto, os agentes do estado não pensavam da mesma maneira. Havia um clima tenso que permeava o sistema de inteligência dos Estados Unidos. Instituições como Computer Emergency Response Team, o Serviço Secreto e a repartição Squad Crime Computer National do FBI – Federal Bureau of Investigation, trabalhavam com a ideia de que estratégias e táticas nômades estavam sendo empregadas por grupos e indivíduos contestatários.407 A situação, na realidade, já vinha se arrastando há alguns anos. Em 1990, para se ter uma ideia, houve um caso curioso. O Serviço Secreto dos Estados Unidos apreendeu os computadores de uma conhecida empresa fabricante de Role Playing Games sob a suspeita de que uma das equipes da organização trabalhava em um manual sobre invasões de sistemas de segurança informáticos. Na realidade, a equipe de designers estava escrevendo simplesmente um livro de ambientação ficcional intitulado Cyberpunk: High Tech Low Life Roleplaying Sourcebook para o jogo GURPS – Generical Universal Role-Playing System. O que o Serviço Secreto considerava um “handbook for computer crime” era uma obra inspirada no subgênero de ficção científica de mesmo nome bastante difundido na década de 1980, no qual uma das temáticas centrais, as relações do homem com as máquinas (informacionais e biotecnológicas) em um contexto econômico político decadente haviam alterado o conjunto da vida social, cultural e política em um cenário futurista totalmente distópico. O caso é relatado em detalhes na abertura do livro, que foi reescrito e publicado depois do incidente.408 407 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 29. 408 Cf. Loyd Blankenship, GURPS Cyberpunk: high tech low life roleplaying sourcebook. Steve Jackson Games, 1990, p. 4-5. 287 Imagem 51 – Capa do livro GURPS Cyberpunk, de 1990.409 Em 1994, a descoberta de programas de captura de senhas com propósitos desconhecidos levantou a suspeita imediata de que se tratava de ações criminosas. As autoridades estavam convencidas de que alguns jovens hackers, a princípio simples curiosos, estavam envolvidos em crimes informacionais. No entanto, algo de maior importância estava dando seus primeiros sinais. Na leitura do CAE: O terror do poder nômade está sendo exposto. A elite global está tendo que olhar no espelho e ver suas estratégias voltadas contra ela – o terror refletindo sobre si mesmo. A ameaça é virtual. Poderia haver uma célula de crackers pairando sem ser vista, mas pronta para um ataque coordenado na rede – não para atacar uma instituição em particular, mas para atacar a rede em si (o que significa dizer, o mundo). Um ataque coordenado aos roteadores poderia derrubar todo o aparato de poder eletrônico.410 409 Loyd Blankenship. GURPS Cyberpunk: high tech low life roleplaying sourcebook. Steve Jackson Games, 1990. 410 “The terror of nomadic power is being exposed. The global elite are having to look into the mirror and see their strategies turned against them – terror reflecting back on itself. The threat is a virtual one. There 288 Uma vez que a vulnerabilidade do aparato cibernético tornava-se conhecida, o sinal de uma catástrofe virtual torturava aqueles que o haviam criado, e a ideia mesma gerava uma resposta persecutória ante qualquer movimento minimamente ofensivo. O investimento em segurança eletrônica e virtual no ciberespaço demonstrava também a importância do que estava acontecendo no novo espaço virtual. Tamanha era a paranoia com a segurança do ciberespaço, que bastava uma pessoa entrar sem autorização em um dado sítio virtual para ser enquadrado lado a lado com gente do tráfico de drogas, ou com pessoas perigosas. As campanhas jornalísticas apresentavam a atividade hacker como uma ameaça social, a fim de formar uma opinião pública contrária ao movimento que poderia se expandir a partir de então. Segundo o CAE, o problema é que a criminalização desse tipo de ação na internet abre brechas para o Estado ameaçar os direitos individuais ou mesmo prender dissidentes políticos.411 Nesse contexto, tornava-se fundamental distinguir o crime computacional da desobediência civil eletrônica. Algumas perguntas são levantadas então: em que sentido é legítimo praticar desobediência civil eletrônica, segundo que parâmetros, com relação a que preceitos e fins? Em Defesa da Desobediência Civil Eletrônica Assim posta, a problemática lança luzes sobre um tema importante para a resistência eletrônica que se forma na virada do século. O maior risco da identificação da desobediência civil eletrônica (doravante, DCE) com atos criminosos, ou até com terrorismo, é permitir ao Estado impedir, por meio de leis autoritárias, sistemas punitivos severos e pesados, qualquer atividade de resistência política por vias eletrônicas, digitais e cibernéticas.412 Uma forma de barrar a priori todo meio de DCE na sua origem e tornar o ciberespaço um ambiente esterilizado de quaisquer formas de resistência. A preocupação do Critical Art Ensemble tem um fundamento político importante. Do ponto de vista da resistência antiautoritária, não se pode aceitar simplesmente as could be cell of crackers hovering unseen, yet poised for a coordinated attack on the net – not to attack a particular institution, but to attack the net itself (which is to say, the world). A coordinated attack on the routers could bring down the whole electronic power apparatus”. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 30. 411 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 17. 412 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 17. 289 designações estatais jurídicas que tentam proibir qualquer atitude política de contestação no espaço virtual, sob o risco da resistência perder um relevante campo de atuação. Se perdermos o direito de protestar no ciberespaço na era do capital da informação, perderemos a maior parte de nossa soberania individual. Precisamos exigir mais do que o direito de falar; devemos exigir o direito de agir no “mundo conectado” em nome de nossas próprias consciências e de boa vontade para todos.413 A defesa não é pela liberdade de expressão na internet. Falar, dizer, parece pouco para quem pretende empregar os meios tecnológicos como modalidade de ação direta. O jornalismo, em tese, tem garantida a liberdade de expressão e nem por isso funciona sempre como agência da resistência. Pelo contrário. Debord denunciava nos anos 60 e 70 que a crítica havia sido incorporada nos mass media, mas apenas como crítica discursiva, portanto, domesticada no espaço das palavras. Fundamental mesmo, para o CAE, é garantir o direito à ação no mundo plugado, sem que isso se converta em perda da soberania individual com as taxações estatais de criminalidade. A ação política no ciberespaço, em suma, deve ser um direito civil à desobediência eletrônica. O principal argumento em defesa da DCE insiste na necessidade de se distinguir as intenções dos atos no ciberespaço. Em termos gerais, o CAE propõe tratar do assunto diferenciando o criminoso do praticante de DCE, a começar, pelo objetivo almejado. Enquanto o primeiro busca proveito próprio com ações que prejudicam um indivíduo, a pessoa implicada na resistência eletrônica só ataca instituições, ademais, na tentativa de colocar a informação a serviço do interesse público, evitando seu uso exclusivo por parte de determinadas instituições. Conceituação A desobediência civil, enquanto forma de ação política, tem uma história intrigante. Ao longo do tempo, os mais distintos movimentos sociais recorreram a práticas de resistência assim denominadas, até mesmo de espectros políticos discordantes entre si, como o liberalismo, o socialismo e o anarquismo. Geralmente, a origem do termo é 413 “If we lose the right to protest in cyberspace in the era of information capital, we have lost the greater part of our individual sovereignty. We must demand more than the right to speak; we must demand the right to act in the ‘wired world’ on behalf of our own consciences and out of goodwill for all”. CAE, “The mythology of terrorism on the net”, in Digital Resistance, p. 37. 290 associada a Henry David Thoreau, que em resposta a uma experiência na qual foi detido pelas autoridades por se recusar a pagar impostos, escreveu o texto conhecido como “Da desobediência civil”.414 Na realidade, as circunstâncias levaram-no a se pronunciar em uma conferência sobre o ocorrido, o que lhe propiciou a oportunidade para tratar de assuntos importantes como o governo, a escravidão e as guerras, e de como agir em relação a eles de uma perspectiva libertária. O título original que o autor atribuiu à palestra proferida em 1848 foi “Resistance to civil government”. O título mais conhecido foi modificado somente após a morte do autor, na ocasião da publicação de suas obras completas, em 1866.415 Portanto, quando o assunto é desobediência civil, torna-se preciso esclarecer alguns pontos iniciais. Primeiro, a atitude de se negar a obedecer a leis consideradas injustas foi denominada por Thoreau de resistência. A desobediência, como ato político consciente, não é senão um ato de resistência a poderes considerados injustos. Segundo, o ato isolado de se negar a obedecer por questões de princípios éticos, como no caso de Thoreau ao se recusar a pagar impostos, caracteriza-se muito mais como objeção de consciência do que como desobediência civil.416 A estratégia da desobediência civil, em termos gerais, corresponde a práticas de insubordinação empregadas por grupos ou massas de cidadãos em um contexto político considerado inaceitável. Historicamente, as práticas de desobediência civil demonstraram um caráter pacífico. O objetivo das ações assim denominadas consiste no mais das vezes em pressionar um dado poder constituído e, em determinados casos, questioná-lo em sua legitimidade. Em outras circunstâncias, face a forças políticas totalitárias, a desobediência orquestrada ou espontânea demonstra que muitos não reconhecem tamanha pretensão de poder. Para atingir tal fim, os desobedientes tentam interferir no funcionamento de determinadas instituições, ou então nos modos normalizados de agir no campo político. Agindo assim, pretendem reconfigurar uma relação de forças políticas em torno da criação de novas condições que sejam mais propensas às mudanças e reivindicações desejadas por aqueles que acionam a potência da revolta coletiva. Por isso, algumas vezes a tática visa a impor uma situação aos poderes constituídos que se negam a considerar os apelos contraditórios, a fim de que eles se disponham a negociar nos termos dos insubordinados. A ação da desobediência se assemelha à prática da objeção de 414 Henry David Thoreau. Desobediência civil. São Paulo: Edipro, 2016. 415 Cf. Frédéric Gros. Desobedecer. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 148. 416 “Isso porque a desobediência civil tem uma dimensão pública e, como tal, uma implicação política bem mais evidente”. Comentário de Pablo Capistrano. 291 consciência, com a diferença de que a primeira possui um caráter coletivo, e como vontade social, é imediatamente política. Frédéric Gros sintetiza a questão: A desobediência civil designa o movimento estruturado de um grupo, e não uma contestação pessoal. Supõe a organização de um coletivo estruturado por regras determinadas de resistência, um credo comum, ordenado para um objetivo político preciso: em geral, a revogação de uma lei ou de um decreto considerados escandalosos, injustos, intoleráveis. Em contrapartida, falar-se-á de dissidência ou de objeção de consciência quando um indivíduo isolado (por exemplo, o “lançador de alertas”) assume o risco de denunciar as falhas de uma instituição, a ignomínia de um sistema. A desobediência civil supõe, ao contrário, um “desobedecer juntos” que faz o coração do contrato social bater, dá corpo, por ocasião de uma contestação comum, ao projeto de “fazer- sociedade”, para além das instituições que se empenham, sobretudo, em perpetuar a si mesmas e a perenizar o conforto de uma elite. A contestação comum projeta a sombra do pacto originário numa dimensão do futuro: viver juntos, mas sobre novas bases, não se deixar governar assim, não aceitar o inaceitável, reinventar o futuro. O que embasa o viver-juntos é um projeto comum de futuro.417 As práticas de desobediência civil possuem um caráter imediatamente social. Os motivos que as animam e lhes dão legitimidade enquanto tais são sociais e nunca simplesmente individuais. As lutas civis diferem conceitualmente dos atos de objeção de consciência. O objetivo das intervenções denominadas por desobediência civil, sejam tradicionais, sejam eletrônicas, é sempre pressionar autoridades, instituições, poderes constituídos ou forças políticas conflitantes a reverem determinados posicionamentos, ou ainda, forçar um rearranjo na correlação de forças em jogo, de modo a causar mudanças em dada constelação social. Enquanto tal, as práticas da desobediência civil são da ordem social, coletiva, concernem a realidades e interesses compartilhados por grupos da sociedade civil, que podem ser minoritários ou majoritários. A estratégia e a tática da DCE são as mesmas da desobediência civil tradicional: uma atividade não-violenta, posto que as forças em oposição nunca se enfrentam fisicamente.418 O fim almejado não impera sobre o meio a ser empregado. Segundo a lógica da desobediência civil historicamente conhecida, os praticantes precisam considerar determinados princípios se se pretende agir em conformidade com esse tipo de ação política. Infiltração e bloqueio são táticas típicas reconhecidamente empregadas 417 Frédéric Gros, Desobedecer, p. 149. 418 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 18. Convém destacar que, no caso específico do movimento negro estadunidense da década de 1960, houve sérios episódios de violência, mesmo com a prática da desobediência civil. Comentário de Artemilson Lima. 292 pelos praticantes de desobediência civil. Entrada e ocupação, sem autorização, em espaços e prédios públicos ou privados, obstrução de passagens, intervenções no funcionamento das instituições, atitudes contrárias a regimentos ou leis consideradas injustas e inaceitáveis, são outros exemplos de desobediência civil tradicional. No caso da DCE, a lógica intrínseca se mantém, somente alterada com relação ao espaço onde se aplica e os meios tecnológicos acionados: o ciberespaço da internet via meios tecnológicos informáticos e comunicacionais, o que implica algumas vantagens: Saídas, entradas, condutos e outros espaços-chave devem ser ocupados pela força contestatória, a fim de pressionar as instituições legitimadas que estejam envolvidas em ações antiéticas ou criminais. O bloqueio de condutos de informação é análogo ao bloqueio de locais físicos; no entanto, o bloqueio eletrônico pode causar estresse financeiro que o bloqueio físico não pode, e pode ser usado além do nível local. DCE [desobediência civil eletrônica] é a DC [desobediência civil] revigorada. O que a DC [desobediência civil] foi um dia, a DCE [desobediência civil eletrônica] é agora.419 A prática da DCE tem uma série de vantagens em relação às formas tradicionais de DC. A primeira delas é que os riscos inerentes aos conflitos físicos não existem. Os ativistas eletrônicos operam suas ações no ciberespaço por meio de equipamentos tecnológicos. Uma vez escolhido o alvo, em termos táticos, a resistência eletrônica incide diretamente sobre algo de valor para a organização que é alvo da ação. Uma corporação, por exemplo, que esteja envolvida em crimes ambientais, ou uma empresa multinacional que se utilize de trabalho escravo na sua linha de produção globalizada, podem ter seus portais virtuais invadidos, retirados do ar, sabotados, ou ainda ter seus bancos de dados capturados ou publicizados a fim de que modifiquem tais atitudes. A pressão causada pelas ações de DCE tem potencialmente impactos diretos sobre os alvos, inclusive, de ordem econômica. Seja com campanhas de críticas direcionadas, seja com distúrbios eletrônicos, de uma forma ou de outra, a DCE pode resultar em perdas financeiras para as corporações que agem a despeito de quaisquer éticas sociais ou ambientais. Ao ter em mente casos como esses, o CAE faz questão de elencar uma série de cuidados a serem considerados pelos ciberativistas. Antes de tudo é importante distinguir 419 “Exits, entrances, conduits, and other key spaces must be occupied by the contestational force in order to bring pressure on legitimized institutions engaged in unethical or criminal actions. Blocking information conduits is analogous to blocking physical locations; however, electronic blockage can cause financial stress that physical blockage cannot, and it can be used beyond the local level. ECD [electronic civil disobedience] is CD [civil disobedience] reinvigorated. What CD once was, ECD is now”. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 18. 293 a DCE com relação às práticas comuns de DC, pois as práticas hackers, pelo que elas pretendem, precisam ser necessariamente anônimas. Enquanto a DC tem o propósito de mobilizar as pessoas e a sociedade civil organizada em ações de caráter público, com a intenção de promover comoções sociais em apoio à causa, a DCE opera em segredo, é uma atividade underground, sob pena de ser interceptada pelas autoridades. Deve, portanto, permanecer à margem da esfera pública ou popular.420 Além de evitar riscos desnecessários, é preciso por outro lado evitar abusos. A revolta que mobiliza a DCE é, por definição, de tipo altruísta, tem por princípio valores sociais a defender, e por isso não deve ser orientada por interesses meramente individuais. Nessa problemática posta pelo grupo acentuam-se discussões e argumentos em torno de uma ética da resistência eletrônica. Primeiro, os alvos dos ataques devem ser escolhidos com cautela, sejam eles estatais ou corporativos. O princípio segundo o qual é preciso respeitar sítios e sistemas virtuais que possam ter funções humanitárias dá o tom das advertências éticas. De modo geral, não se pode colocar em risco o funcionamento ou a operacionalidade de sistemas dos quais dependem a vida humana das pessoas, como hospitais, por exemplo. Nos casos de sistemas informáticos invadidos, os dados ora capturados não devem ser destruídos nem danificados. Se o propósito é conseguir algum ganho político com a negociação dos dados coletados por meio de ações de DCE, é importante resguardar o material em questão por questões éticas. Outro princípio fundamental defendido pelo CAE é nunca atacar indivíduos, sejam eles dirigentes ou trabalhadores de uma corporação qualquer. É preciso resguardar as pessoas e mirar as instituições que se valem delas para funcionar. Atacar contas bancárias ou sistemas de armazenamento de determinados indivíduos não garante nenhum efeito sobre a política econômica ou governamental.421 Entretanto, não estão excluídas táticas destrutivas, para os casos mais hediondos de uso da internet para fins não-éticos, que podem afrontar os princípios defendidos ferrenhamente pela resistência cultural e eletrônica. Em determinados casos, o CAE admite o uso de violência. A destruição deve pairar sobre meios produtivos virtuais, eletrônicos, que tenham operacionalidade política autoritária e que violem a dignidade e a liberdade das pessoas, ou expressem o desprezo pela vida em geral, incluindo a natureza. No entanto, a estrutura material pode ser preservada para outros usos possíveis. “O CAE 420 Cf. CAE, “Electronic civil disobedience, simulation, and the public sphere”, in Digital Resistance, p. 14. 421 Cf. CAE, Electronic Civil Disobedience, p. 19. 294 ainda insiste que desafiar produtivamente as instituições não ocorrerá com gestos niilistas, mas sim forçando mudanças no regime semiótico em uma infraestrutura mantida intacta para reinscrição”.422 Sem maiores pretensões, o CAE se lança na esfera pública como a insígnia de um autor que não possui rosto, posto que é um coletivo, mas que funda discursividades em torno de temas contemporâneos, à maneira de autores consagrados nas esferas acadêmicas e universitárias. Com a diferença de que suas obras e ideias pretendem circular de forma mais aberta e acessível possível, dada a forma como os conceitos, os modelos teóricos e a argumentação escrita se apresentam: no conteúdo, uma linguagem fluida que se aproxima do universo do leitor em potencial sem perder consistência, e na matéria acabada da obra, na versão impressa, em pequeno formato que cabe no bolso, o mais próximo que se pode chegar da versão digital que circula na internet, disponibilizada para livre download. A discussão sobre a internet, o poder nômade e, mais especificamente, sobre a desobediência civil eletrônica encabeçada pelo CAE durante os anos de 1994 até os anos 2000 (com a publicação do livro Digital Resistance: Explorations in Tactical Media) prenunciou uma histórica guerra informática que se prolonga até os tempos atuais. Não há qualquer evidência de que o CAE tenha atuado diretamente em ações hackers. O coletivo fez amplo uso de computadores, produz sítios na internet, programas em suas performances, trabalhou em parceria com dois institutos para produzir tecnologia contestatária (The Institute for Applied Autonomy para construir um robô, e The Carbon Defense League para reprogramar um video game),423 mas não se pode afirmar nada de alguma atividade por conta própria na resistência eletrônica de tipo hacker preconizada nos seu livros em torno da DCE. A menos que tenha sido em total segredo, como o próprio coletivo recomenda. 422 “CAE still insists that productively challenging institutions will not occur through nihilistic gestures, but instead through forcing changes in the semiotic regime on an infrastructure intact for reinscription”. CAE, Digital Resistance, p. 23. 423 Cf. CAE, “Contestational robotics” e “Children as tactical media participants”, in Digital Resistance. 295 Electronic Dirturbance Theatre Com relação à resistência eletrônica, a contribuição do Critical Art Ensemble teve um impacto histórico no debate desencadeado então, porém, foi mais teórica do que propriamente prática. Ricardo Dominguez, integrante do CAE de 1988 até 1994, após sair do grupo montou outro coletivo de ativistas. A máquina de guerra do Critical Art Ensemble desmembrou-se. Mas foi logo replicada. Assim, surgiu outra potência da resistência, o Electronic Disturbance Theatre – EDT, que à sua maneira deu continuidade às teorizações, às práticas e aos experimentos com as tecnologias informacionais. Enquanto o CAE aderia à Biologia Contestatária para lidar com a problemática do complexo biotecnológico, investigando reprodução humana artificial, manipulação de DNAs, organismos transgênicos, uso militar de armas bacteriológicas, agrotóxicos, entre outros temas correlatos, o Electronic Disturbance Theatre aprofundou-se na prática da resistência eletrônica desenvolvendo ciberativismo e novos arsenais antropotécnicos da revolta. Imagem 52 - Ricardo Dominguez, ex-membro do CAE e integrante do Electronic Disturbance Theatre, em um protesto de rua.424 424 Ricardo Dominguez é co-fundador do Electronic Disturbance Theatre, com Carmin Karasic, Brett Stalbaum e Stefan Wray, co-diretor do THING (bbs.thing. net) um ISP para artista e ativista, ex-membro do Critical Art Ensemble e membro dos zapatistas de Nova York desde 1º de janeiro de 1994. Suas performances foram apresentadas em museus, galerias, festivais de teatro, reuniões de hackers, eventos de mídia tática e como ações diretas nas ruas e ao redor do mundo. Para mais informações sobre o Electronic Disturbance Theatre, ver www.thing.net/~rdom/ecd/ecd.html Acesso 4 de agosto de 2019. Imagem disponível em https://rhizome.org/static-media/uploads/professor-ricardo-dominguez-defended- by-his-students-1.png Acesso 27 de julho de 2019. 296 A conjuntura tornou cada vez mais difícil as ações ofensivas do tipo DCE da resistência. Não por motivos técnicos, mas por questões legais. Nos Estados Unidos, atividades hackers foram tipificadas juridicamente como atos criminosos, e em determinados casos podem ser enquadradas como terrorismo, com implicações legais, penais e criminais pesadas. Em resposta à criminalização das práticas hackers, a DCE se metamorfoseou em Transparent and Civil Act of Disobedience, ato de desobediência civil transparente, que recolocou o elemento público característico da desobediência civil histórica de volta à cena, desta vez no espaço da internet. A publicização dos atos cibernéticos de resistência serve como forma de angariar legitimidade política perante a sociedade e uma maneira de se proteger de falsas acusações por parte das autoridades constituídas ou das corporações privadas. Essa foi uma forma de superar o impasse da resistência eletrônica quanto à sua forma de ativismo sem correr o risco de ser dizimada por perseguições das autoridades estatais. Nesse cenário, o Electronic Disturbance Theatre continuou suas explorações em tecnologia informática e comunicacional para propósitos de resistência, caminhando na linha tênue da legalidade e da DCE, e assim proveu as lutas de seu tempo com alguns projetos interessantes em termos teóricos críticos, como também, com ferramentas e softwares diretamente aplicáveis aos atos resistentes. Dentre os projetos do Electronic Disturbance Theater, pode-se mencionar um programa de computadores para ataques cibernéticos chamado FloodNet, que foi desenvolvido durante a emergência do Movimento Zapatista na rede mundial de computadores em meados dos anos 90. Questionado sobre o que eram as ações que envolviam o FloodNet, o EDT responde com peito aberto: “É um Protesto. FloodNet não é um jogo”. Rita Raley comenta: Na verdade não é um jogo, mas de fato a arma primária no arsenal do EDT, que ao longo do tempo tomou como alvo várias instituições e símbolos do neoliberalismo mexicano, NAFTA, CAFTA, a Escola para as Américas, o Departamento de Defesa dos EUA, Samuel Huntington, Representant Sensenbrenner e outros.425 425 Cf. Rita Raley, “Border hacks: electronic civil disobedience and the politics of immigration”, in Tactical Media. London: University of Minnesota Press, 2009, p. 40ss. No original: “EDT [Electronic Disturbance Theater] is adamant: ‘This is a Protest. FloodNet is not a game’. It is indeed not a game but in fact the primary weapon in EDT’s arsenal, over time targeting various institutions and symbols of Mexican neoliberalism, NAFTA, CAFTA, the School for the Americas, the U.S. Defense Department, Samuel Huntington, Representative Sensenbrenner, and others”. 297 Um dos ataques desencadeados pelo EDT ocorreu em resposta ao assassinato político do professor zapatista José Luis Solís López. Em ações orquestradas em vários domínios cibernéticos, os navegadores do EDT e de aliados enviaram grandes quantidades de pedidos de páginas ao servidor do Presidente mexicano Enrique Peña Nieto, preenchendo seus registros de erros com linhas de textos extraídas de Dom Quixote, comunicados das comunidades zapatistas e de escritos do Critical Art Ensemble.426 Outro projeto envolveu um programa chamado Transborder Immigrant Tool, desenvolvido já nos anos 2000 para operar em celulares com GPS a fim de auxiliar imigrantes na sua localização e na busca de recursos por sobrevivência em áreas remotas ou desertas, como nas zonas fronteiriças do México com os Estados Unidos. De forma semelhante ao que aconteceu com Steve Kurtz do Critical Art Ensemble, que enfrentou uma batalha jurídica de quatro anos para provar sua inocência contra falsas acusações por parte do governo,427 Ricardo Dominguez teve que lidar com algumas ofensivas ao longo de sua trajetória. Mas nada disso foi capaz de deter o ativismo de ambos, que continuam em plena atividade na resistência cultural de seu tempo. Atualmente, Steve Kurtz é Professor Emérito de Artes vinculado à University at Buffalo – The State University of New York, e Ricardo Dominguez trabalha como Professor Assistente de Artes Visuais no California Institute for Telecommunications and Information Technology. O Critical Art Ensemble desenvolve suas atividades com mais três integrantes, Steven Barnes (membro fundador do coletivo), Beverly Schlee e Lucia Sommer, e o Electronic Disturbance Theatre está na sua segunda formação, o EDT 2.0.428 Os desenvolvimentos do ciberativismo nas décadas recentes levaram ao surgimento de movimentos internacionais que não se contentam em permanecer na defensiva. Os Centros de Mídias Independentes emergiram junto às movimentações da 426 Há muito material sobre o Electronic Disturbance Theatre disponível na internet. Por si só, o coletivo merece um trabalho de pesquisa à parte, dado seu histórico, sua produção e o impacto produzido na resistência de seu tempo. Uma breve apresentação pode ser lida em: http://artaspoliticalchange.blogspot.com/2017/02/ricardo-dominguez-floodnet-electronic.html Acesso 27 de julho de 2019. 427 O caso de Steve Kurtz ficou internacionalmente conhecido. Após um trágico incidente, relatado em detalhes no documentário Strange Culture (ver referências), uma ampla rede internacional de apoiadores se mobilizou para denunciar as falsas acusações do governo e arrecadar fundos para a defesa judicial do integrante do CAE. Depois de um julgamento que durou quatro anos, finalmente Steve Kurtz foi inocentado. Cf. Gregory Sholette, “Disciplining the avant-garde: the United States versus the Critical Art Ensemble”, in CIRCA: Contemporary Visual Culture in Ireland. No. 112. Summer, 2005, p. 50-59. Disponível em http://www.neme.org/texts/disciplining-the-avant-garde Acesso 27 de julho de 2019. 428 Sítio profissional de Ricardo Dominguez: http://www.calit2.net/people/detail.php?id=465 Acesso 27de julho de 2019. Para mais informações sobre as atividades do EDT, ver a entrevista: https://rhizome.org/editorial/2016/jan/26/interview-with-ricardo-dominguez/ Acesso 27 de julho de 2019. 298 alterglobalização na virada do milênio junto ao ativismo de rua, e em seguida, o Anonymous e o WikiLeaks vieram à tona para demonstrar o que a desobediência civil eletrônica é capaz de fazer quando fabrica uma máquina de guerra cibernética, anônima, invisível e por vezes incapturável pelos radares dos sistemas oficiais de inteligência governamentais. Imagem 53 – Electronic Disturbance Theatre 2.0.429 Neovanguardas Contemporâneas O Critical Art Ensemble e o Electronic Disturbance Theater entrarão para a história da arte-revolta como pioneiros no desenvolvimento de máquinas de guerra artísticas, culturais, eletrônicas e cibernéticas. Eles e muitos outros grupos que dão vida às micropolíticas da criação contemporâneas formam, em conjunto, as neovanguardas da resistência. O papel que desempenham ao fundar discursividades críticas, promover ações contestatárias, dotar de sentido político suas práticas no interior do pancapitalismo, tudo isso os coloca na linha de frente dos processos de transformação experimentados nos anos 429 Imagem disponível no endereço https://en.wikipedia.org/wiki/Electronic_Disturbance_Theater#/media/File:Electronic-disturbance- theater.jpg Acesso 27 de julho de 2019. 299 recentes. Mas existe um detalhe. O conceito de neovanguarda não se refere a quem está à frente de seu tempo, mas àqueles que, imersos no contemporâneo, arrastam consigo um mundo em transformação. São atratores estranhos e catalisadores de mudanças. A vanguarda modernista era filha do progresso, acreditava na linearidade histórica e fabricava para si uma quimera de que a vanguarda artística estava à frente para guiar a marcha da história. Imagem reflexa das vanguardas revolucionárias. Era preciso confrontar o poder frontalmente, tomá-lo de assalto, constituir uma nova instituição. E o círculo fatalmente recomeçava. As ideologias políticas clássicas desempenhavam nesse modelo seu papel programático. No entanto, suas palavras de ordem caíram em desuso uma após a outra, caladas pelo poder novamente instalado. Tragadas por Cronos, as insígnias revolucionárias tradicionais sentem dificuldades em acompanhar as radicais mudanças do tempo. Alguns ideais, traídos, mancharam a história, outros perderam-se pelo caminho. Ainda resistem, tentam se infiltrar nas sendas traçadas pela revolta contemporânea, e do cruzamento com as sensibilidades e os clamores presentes haverão de inspirar outra vez o mundo. Enquanto isso, a revolta continua a nutrir a resistência com formas diversificadas de lutar pela vida, por liberdade e justiça. Enquanto alguns tentam constituir um novo poder, outros se lançam nas campanhas pela destituição, em fuga criativa, precipitando mudanças umas após as outras, com a sensação de que a resistência será sempre um destino da revolta. O brado lançado na história pela arte-revolta ecoa, e o que outrora constituía expressão de um movimento, com seus axiomas e programas políticos, tornou-se uma multidão de vozes e gestos em profusão como para fundir corpos, desejos, espíritos e sonhos, e assim, abrir passagens a realidades até então inimagináveis. As neovanguardas não possuem nome próprio, não têm rosto, nem são propriamente um movimento orquestrado, dirigível por agentes ou representantes. Ao invés de firmar um legado, reinscrevem suas ações criando a cada vez novos mundos possíveis, prefigurados nos atos mesmos que dão nascimento, nas relações, em coletivos, coalisões, com tecnologias, discursos, estéticas, que encarnam formas de vida sem qualquer ensaio e, portanto, necessariamente emergentes. Por isso mesmo, será mais adequado tratá-las como pura multiplicidade, que, se bem os coletivos, artistas e produtores culturais encarnem seus personagens conceituais, em sinuosos e ágeis contornos, em toda singularidade eles nada mais são do que os operadores, entre muitos outros, que lutam criativamente, sem cessar, a fim de incrementar a dimensão social, imaginal, relacional, afetiva e ecológica com os toques do único e irrepetível. 300 CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde seu surgimento, o Critical Art Ensemble aposta suas fichas no jogo pós- moderno em prol da autonomia e contra as tendências autoritárias na esfera da cultura, investindo sua criatividade em práticas de resistência. Para fazer frente ao poder nômade do pancapitalismo, elabora uma crítica radical aos dois maiores complexos tecnopolíticos da atualidade, a informática e a biotecnologia, sem recusar, no entanto, o papel das tecnologias na luta contra a opressão. Por isso, ao mesmo tempo, promove ricas pesquisas sobre as aplicações possíveis dos conhecimentos e das tecnologias em sentido diverso ao colocado em prática pelas indústrias e pelos estados. Dessa forma, a fim de combater o controle e a vigilância, o CAE convoca a resistência a apropriar-se das tecnologias com propósitos libertários. O CAE sintetiza a realização da arte engajada no contemporâneo, pois une arte, tecnologia e pesquisas acadêmicas fundindo-as em um todo coerente. Como dito nesta pesquisa, o grupo é concretamente um grupo de criação e estudos integrados (no sentido excepcional aqui empregado) pois agencia a imaginação e a criatividade típicas das artes com os estudos e as pesquisas pertinentes à tarefa da crítica. O grupo consegue, assim, orientar o potencial da revolta para o aspecto crítico e inventivo da resistência artística como forma de problematizar temáticas contemporâneas. Com esse objetivo, elabora teorias e linguagens argumentativas nos livros e manifestos, bem como linguagens imagéticas, simbólicas e não-racionais direcionadas à dimensão dos sentidos, dos afetos e desejos. Para manter o princípio da revolta aceso, o CAE faz valer uma potência destituinte na estética do distúrbio, aparentemente a melhor alternativa para combater o espetáculo integral do pancapitalismo. A estética do distúrbio favorece a criação de possibilidades nos campos do pensamento e da ação, e em última análise, abre o campo ontológico para a criação de universos incorpóreos, performáticos, empíricos, capazes de se materializar nas subjetividades, na vida cotidiana e na cultura. Por meio de antropotécnicas situacionistas, o grupo estimula exercícios metanoicos naqueles que tomam contato com suas produções. Sem dúvida, a prática da resistência cultural e artística contribui para a propagação da própria resistência como um todo sempre que, de forma exemplar, surgem novas identificações com a práxis libertária e com os efeitos emancipatórios que ela 301 desencadeia. O legado do CAE deixa entrever, com singularidade, que a melhor forma de manter e sofisticar a capacidade de resistir é criar as condições de possibilidade para a expressão da revolta em processos libertários. Ainda que a era da reprodutibilidade técnica da arte inaugurada pela fotografia tenha alcançado o patamar da realidade virtual, a técnica por si mesma jamais plasmará o maior projeto das vanguardas artísticas do século XX: a realização da arte e da poesia, quando, finalmente, a arte transformará a vida por completo, a começar pela própria noção de vida que se tem hoje. Entretanto, a história da arte contemporânea mostra o ímpeto de inúmeros artistas e coletivos em estreitar as conexões entre a esfera estética do campo artístico e a dimensão micropolítica da vida cotidiana, até o ponto de fazerem-nas coincidir na arte existencial ou na experiência da vida como acontecimento estético e portanto criador. A tese inicial desta pesquisa era a de que o CAE, na história da arte contemporânea, desponta como uma das mais expressivas máquinas de guerra da resistência cultural do presente. E que o paradigma estético da resistência artística e cultural que se vale da força criativa do distúrbio parecia ser, senão o único, muitas vezes o mais apropriado para fazer frente ao poder de captura do desejo e das subjetividades na sociedade do espetáculo. A ideia de que o CAE consiste em uma neovanguarda da resistência cultural encontrou evidências nos estudos de críticos de arte contemporânea. Hal Foster identifica uma mudança conceitual e prática importante no sentido histórico das vanguardas. Aquelas que deflagaram a máquina de guerra há um século eram consideradas vanguardas pelo seu ímpeto transgressor, dos limites, das formas, das convenções institucionais. No contexto do pós-guerra, quando o universo das artes incorpora o legado dos transgressores na instituição, só faz sentido falar de vanguarda enquanto resistência. De vanguarda transgressora, a arte-revolta torna-se resistência. A máquina de guerra, enquanto conceito político, mostrou-se igualmente eficaz no tratamento crítico dado ao CAE. Diversos autores concordam no caráter combativo do coletivo, inclusive Nato Thompson, curador e crítico de arte intervencionista, que descreve as atividades do Critical Art Ensemble usando a expressão guerrilha cultural. Quanto à hipótese de que a estética do distúrbio é uma das formas mais eficazes da resistência atual aos imperativos do espetáculo capitalista, acumularam-se evidências que a confirmam. Nas atuais sociedades pós-fordistas, os processos de subjetivação são diretamente industriais, e em um ambiente social atomizado, tornam-se fundamentais 302 para produzir subjetividades conformes à normalidade exigida das pessoas. Os arsenais antropotécnicos formulados pelo CAE, o teatro recombinante, a mídia tática, a resistência eletrônica, a estética do distúrbio, as intervenções moleculares e a biologia contestatária, consistem em formas de intervenção social que incidem justamente nos processos de subjetivação. O entrecruzamento da estética do distúrbio com os processos de subjetivação negativas típicos do pancapitalismo produz um choque e desmantela, ainda que temporariamente, a reprodução das opiniões e ideologias dominantes. Por meio de um ativismo antropotécnico, artístico, midiático, cultural e micropolítico, o CAE formula as condições de possibilidade para uma subjetivação política, no sentido que Lazzarato atribui à expressão. As experiências e os produtos produzidos pelo CAE podem ser considerados, portanto, atratores estranhos e catalisadores de processos de subjetivação outros, críticos, questionadores, reflexivos, que remetem a uma outra forma de ser e existir. PARA UMA SOCIOLOGIA DA REVOLTA Do ponto de vista científico, esta Tese pode ser lida como um capítulo da obra em curso e a se fazer continuamente de uma Sociologia da Revolta. O estudo do Critical Art Ensemble ilustra e exemplifica o que pode ser realizado nesse campo da sociologia contemporânea. Aqui, o destaque recai sobre a arte como expressão cultural da revolta, e a micropolítica como campo de formulação coletiva de um sentimento que mobiliza indivíduos, grupos, classes e massas há pelo menos dois séculos. Os objetos de estudos, no entanto, podem variar, afinal, enquanto fenômeno social, a revolta adquire vários formatos, em movimentos sociais e políticos, mas também artísticos e culturais. Uma época como a que vivemos, de acirramento dos conflitos sociais, culturais e políticos, não se pode perder de vista o sentido ético da revolta que Albert Camus soube muito bem legar para a posteridade. Em um diálogo com a obra do autor, inspiração de primeira magnitude desta pesquisa, proponho nestas considerações finais contribuir para a elaboração de uma tipologia sociológica da revolta. Na obra O Mito de Sísifo, sob o tema do absurdo, Camus tenta expor uma saída ao problema da falta de sentido da existência. No tempo em que as guerras e o terrorismo de Estado estavam na ordem do dia, quando a ciência tornava-se um tentáculo da máquina de guerra mundial e a existência perdia seu sentido, a pergunta filosófica central, “afinal, a que se destina viver?”, adquire os contornos radicais que sua filosofia primeira expressa. 303 Lutando contra os muros do absurdo edificados no interior da civilização pretensamente racional, Camus propõe uma escolha trágica ao encarar a face mais terrível do niilismo, espelho interior no qual se refletem, numa fusão irracional, desilusão, angústia, náusea e desespero humanos. A pergunta é formulada no início do livro: Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa resposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito.430 O tema não aparece claramente, mas visto em retrospectiva, a obra O Mito de Sísifo é uma primeira elaboração da revolta no pensamento de Camus. Trata-se, neste momento, de uma revolta egoísta, enclausurada nos muros do absurdo interior. Diz ele: “Sempre se tratou o suicídio apenas como um fenômeno social. Aqui, pelo contrário, trata-se, para começar, da relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto desses se prepara no silêncio do coração, da mesma maneira que uma grande obra”.431 Posteriormente, com a experiência das guerras amadurecida, a revolta contra o absurdo passa por um novo tratamento na obra O Homem Revoltado, desta vez, com caracteres éticos e políticos. Da leitura de O Mito de Sísifo para O Homem Revoltado, percebe-se uma mudança de sentido da revolta tal como a sente e compreende Camus. A questão deixa de ser se a vida vale ou não a pena ser vivida. Mas por que vida vale lutar. A fórmula torna-se “revolto-me, logo existimos”,432 fórmula que expressa a passagem de uma revolta de tipo egoísta para uma revolta altruísta, com caracteres claramente sociais. Enquanto o suicídio responde a uma recusa absoluta a continuar vivendo, a revolta elabora uma recusa circunscrita à existência. Em vez de absoluta, a recusa da revolta é relativizada.433 Trata- se de continuar a viver, mas negando-se a aceitar a totalidade da vida como ela é (ou parece ser ao revoltado). 430 Albert Camus. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 17. 431 Albert Camus, O Mito de Sísifo, p. 18. 432 Albert Camus. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 35. 433 A revolta só visa ao relativo e só pode prometer uma dignidade certa combinada com uma justiça relativa. Ela toma o partido de um limite no qual se estabelece a comunidade humana. O seu universo é o universo do relativo”. Albert Camus, O Homem Revoltado, p. 333. 304 A disparidade entre o que se sente e pensa, e o mundo no qual se vive, exige uma resposta para além da negatividade, que precisa ser de alguma forma afirmativa. Eis a resposta tal como é formulada em O Mito de Sísifo. A consciência absurda se instala na fenda aberta pelo divórcio do ser com o mundo e, embora sem resolver o dilema, decide- se pela negação do suicídio, ainda que por motivos unicamente individuais. Entre a vida e a morte, entre a renúncia absoluta à continuidade da vida, e a possibilidade de viver outra realidade, no primeiro momento da obra de Camus, a revolta afirma-se em sua condição existencial. Em O Homem Revoltado, o problema (individual) do suicídio é transposto para uma problemática política mais ampla, na qual se insere a discussão da revolta. De negação absoluta, a resposta, ao mesmo tempo ética e política, formula-se na afirmação paradoxal da dinâmica da vida. Assim fazendo, as figuras da revolta elaboradas interiormente, tal como apresentadas por Kristeva, externalizam-se ora como transgressão social, política, cultural, ora como perlaboração de significados e sentidos, ou então como jogo, combinatória, possibilidade de transformação.434 O ciclo se completa quando, na mesma obra, a conceituação filosófica contrapõe a revolta às figuras do niilismo em suas diversas facetas históricas modernas. Em determinado nível de análise, o tratamento filosófico que Camus dá ao tema da revolta tem um tom nietzscheano, principalmente porque a temática está articulada ao fenômeno do niilismo, ou seja, à queda dos fundamentos metafísicos e morais do mundo e a correspondente ausência de sentido da existência que o acontecimento implica na história da subjetividade moderna.435 O tema do niilismo, em toda sua complexidade, por si só merece um trabalho inteiro à parte. Para o que interessa nesta discussão, basta sintetizar na forma como Jean Granier arremata a definição: O termo “niilismo”, que já se encontra em Jacobi, Ivan Turguêniev, Dostoiévski, os anarquistas russos, e que Nietzsche toma a Paul Bourget, serve para designar, em Nietzsche, a essência da crise mortal que acomete o mundo moderno: a desvalorização universal dos valores, que mergulha a humanidade na angústia do absurdo, impondo- lhe a certeza desesperadora de que nada mais tem sentido.436 434 Julia Kristeva. Sentido e contra-senso da revolta: poderes e limites da psicanálise I. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 37. 435 Friedrich Nietzsche foi o primeiro a elaborar uma problematização filosófica do tema. O niilismo aparece na Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Nas obras póstumas, a temática aparece compilada em A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. Para uma visão geral do tema, cf. Franco Volpi. O niilismo. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 436 Cf. Jean Granier. Nietzsche. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 31. Para uma abordagem contemporânea do niilismo, ver Peter Pál Pelbart. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 305 Como no ambiente cultural do niilismo os valores se depreciam, falta uma fonte de valores que sirva de referência para hierarquizar as atitudes individuais e coletivas. No campo político, o núcleo do niilismo revela-se para Camus na falta de quaisquer critérios para a ação política, nem humanos, nem éticos. A revolta, no horizonte do niilismo, corre o sério risco de se degradar em seu avesso, tirania, autoritarismo, sede de vingança, políticas da morte, microfascismos, entre outras figuras deturpadas. O que tenta Camus com relação ao problema da revolta é politizá-lo em termos filosóficos e éticos, e assim o faz passando a limpo a história moderna da revolta como sintoma e possível superação do niilismo. De uma perspectiva sociológica, nos últimos dois séculos, sentimentos de inadequação, incômodo e inadaptabilidade deram a tônica aos afetos coletivos desencadeados pelas transformações nas estruturas das sociedades ocidentais. Enquanto o mundo pré-moderno desmoronava com a ruína das ordens feudais e a queda dos valores tradicionais, o mundo industrial se impôs de forma implacável, sem, no entanto, fornecer substratos psíquicos ou sociais capazes de conter o estranhamento, a recusa, a indignação e o ressentimento, que logo encontraram seus canais de expressão nas rebeliões individuais e coletivas. Em um ambiente conturbado pela transição de um mundo antigo para uma realidade inteiramente nova, entre uma tradição que perdia sua força, de um lado, e o poder moderno materializado na indústria e nos Estados, de outro, as figuras de autoridade e os códigos de valores caíram fatalmente em descrédito. Com a sensibilidade assim inflamada, nada mais foi capaz de deter a revolta no seu afã de impulsionar a formação de práticas e discursos claramente revolucionários como expressão de uma profunda recusa face a sistemas de governo, políticas estatais e regimes de poderes opressores, que sofreram com os revides dos movimentos de contestação dos trabalhadores, de estudantes e de vilipendiados na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Rússia e nos Estados Unidos. Desde então, a legitimidade do poder tem que lidar com a fúria e a insatisfação das massas. Em uma história marcada por levantes, insurreições, traições e corpos rebelados, a estaca da revolta moderna foi cravada definitivamente no âmago do poder. O homem revoltado expôs sua face distorcida no curso da história. Entre sangue, suor e lágrimas, a modernidade foi convulsionada por lutas as quais jamais cessaram de colocar em xeque Edições, 2016. 306 os poderes. Todo regime político, desde então, encontra-se permanentemente abalado em seu núcleo pelas forças insurretas da revolta. A genealogia moderna traçada por Camus mostra que o movimento da revolta na história carece muitas vezes de uma consciência sensível à condição humana. Os totalitarismos do século XX ilustram o pesadelo niilista a ser afastado por todos os que anseiam manter de pé a figura do homem revoltado. Os regimes autoritários, cada um à sua maneira – o nazismo com a ideia de raça, o fascismo com o ideal de nação, e o comunismo com a foice e o martelo do partido –, reduziram o valor da vida e da liberdade humanas a nada, à medida que outorgavam o assassinato sob o julgo da razão de Estado. O império da força suplantou qualquer noção de limite face à dignidade humana, valendo- se, para isso, de justificativas ideológicas que retiravam dos imperativos dos fins sua razão de ser. Contra todos os apelos em contrário, a razão da raça, da nação e do partido forjaram de punhos armados a legitimação da tirania absoluta sobre a vida da mais frágil figura da história, o indivíduo. Num caso como no outro, a revolta que aparentemente estava na origem da paixão pela mudança, da busca pela justiça e por uma ordem superior, foi tragicamente tragada por forças que escaparam à consideração humana. Enquanto isso, nas vanguardas artísticas do mesmo período, a revolta fez sua própria história. Hoje não se pode falar da história da arte moderna sem remetê-la à Sociologia da Revolta, a tal ponto da linha genealógica de uma confundir-se com a da outra. Desde antes, já no impressionismo, e depois, com o futurismo, o dadaísmo, o surrealismo, etc., os experimentos com as antropotécnicas formais e expressivas nas artes remodelaram o cenário artístico do Ocidente. As belas-artes, que durante séculos reinaram impávidas sob o manto da nobreza e das aristocracias, foram alvo de intelectuais, poetas, artistas e escritores que colocaram em marcha a potência poética da revolta, alargando as fronteiras do campo artístico, dinamizando as formas de expressão e os conteúdos trabalhados esteticamente, o que, ademais, estreitou os laços da arte com os problemas e as venturas da vida. Em linhas rápidas, tem-se assim uma breve retrospectiva histórica que revela a plasticidade da revolta em suas várias expressões sociais, nenhuma das quais mostrou-se capaz de aplacar o mal-estar na civilização nem a crueldade impingida ao coração humano. Ao submeter as expressões da revolta ao escrutínio ético-político, o pensamento de Camus representa o ponto alto da consciência revoltada, pois nele o exame histórico da revolta e do niilismo resulta em uma avaliação que sintetiza, com lucidez e coerência 307 inigualáveis, o legado, os acertos e os equívocos em torno da revolta no decorrer dos últimos séculos, tornando claro inclusive o parâmetro para a avaliação do valor da revolta. Neste sentido, O Homem Revoltado pode ser lido como uma genealogia na qual a história da revolta se faz em função de uma avaliação do valor da revolta mesma, com a diferença de que, ao fim e ao cabo, o que Camus coloca em primeiro plano é o valor positivo da revolta (seu sentido filosófico, ético-político), que serve como parâmetro para avaliar qualquer acontecimento no qual a revolta esteja implicada, enfatizando sobretudo seu caráter libertário e transformador. A revolta ética, portanto, busca esclarecer seu sentido histórico perante si mesma, e ao fazê-lo, desmonta as falsas revoltas, as rebeliões traídas, que muitas vezes dão origem a indivíduos totalitários, e que na dimensão social, política, originam projetos de dominação, políticas de extermínio. O niilismo, que se reveste das qualidade da revolta, não passa pelo teste ético a que submete Camus, artistas, escritores e filósofos, e sobretudo, as ideologias dominantes em seu tempo.437 As revoluções, a pretexto de realizarem os sonhos de libertação oriundos da revolta, não raro tem erigido regimes monstruosos, nos quais os que se acreditavam imbuídos da revolta, capitulam ante a ascensão dos poderes constituintes e sucumbem nos braços de ferro dos governos. Há sempre o risco do ciclo negativo inerente à revolta se fechar e acabar no niilismo, na negação da vida e da liberdade a que se deve a legitimidade da revolta enquanto fenômeno ético-político. É nesse sentido que a obra O Homem Revoltado expressa de forma exemplar uma consciência histórica, e deve ser lida como o autoesclarecimento mais bem elaborado da revolta em bases humanistas. Da revolta egoísta com a qual se lança no Mito de Sísifo, à revolta ética e política da obra O Homem Revoltado, vê-se a passagem de um tipo de revolta egoísta para um tipo de revolta altruísta. Decidido a viver entre pares, o homem revoltado adquire a consciência e a sensibilidade que lhe vinculam aos demais membros da humanidade, à comunidade política e à natureza de onde tudo advém e para onde tudo retorna. E assim o faz contrapondo-se ao niilismo, que nada mais é do que efeito de uma revolta traída em seus pressupostos, resultado não esclarecido, vazio de significado ético, revolta incipiente que se mostrou equívoca na superação da confusão que o mal-estar gera. 437 O que lhe custou caro em termos políticos e pessoais. Sobre a repercussão da obra O Homem Revoltado, cf. Ronald Aronson. Camus e Sartre: o polêmico fim de uma amizade no pós-guerra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. 308 Na ausência de um sentido ético-político capaz de equilibrar o aspecto negativo que lhe é intrínseco, a revolta muda de natureza e se torna seu contrário. Em termos conceituais, a revolta é negação, mas antes de tudo, afirmação. Essa foi, sem dúvida, a maior lição que Camus deixou para as gerações que lhe sucederam. No discurso que profere ao receber o Prêmio Nobel, Camus dá seu testemunho que ecoa até hoje, e no qual se depreende o sentido engajado que sua elaboração da revolta implica: Ninguém, suponho, lhes pode exigir que sejam otimistas. E sou mesmo da opinião que devemos compreender, sem cessar de combatê-los, os erros daqueles que, por um lance do desespero, têm reivindicado o direito à desonra e se precipitam no niilismo da época. Mas a verdade é que a maioria de nós, em meu país e na Europa, tem recusado esse niilismo e já se colocou em busca de uma legitimidade. Foi preciso desenvolver uma arte de viver para esses tempos de catástrofe, para nascer uma segunda vez e, em seguida, lutar francamente contra o instinto de morte na obra da nossa história.438 O instinto de morte, quando se apodera da revolta, gera os efeitos contrários, diretos ou colaterais, das tensões suicidárias, do ultimato assassino, do terrorismo e do totalitarismo. Mas não se trata mais de revolta, conceitualmente falando, nem talvez de rebeldia. Na revolta convergem forças vitais, existenciais, que anseiam se expandir, e se revoltam-se, é porque uma forma de vida decretou para si mesma, antes de mais nada, seu direito à existência, ou então, deve-se a seu desacordo com circunstâncias que deseja superar para melhor viver, o que dá no mesmo. A revolta visa a uma afirmação superior da existência, é libertária por princípio e não se confunde com ressentimento nem vingança. É a conclusão a que chega Camus no final de sua obra: A revolta prova que ela é o próprio movimento da vida e que não se pode negá-la sem renunciar à vida. Seu grito mais puro, a cada vez, faz com que um ser se revolte. Portanto, ela é amor e fecundidade ou então não é nada. A revolução sem honra, a revolução do cálculo, que, ao preferir o homem abstrato ao homem de carne e osso, nega a existência tantas vezes quanto necessário, coloca o ressentimento no lugar do amor. Tão logo a revolta, esquecida de suas origens generosas, deixa- se contaminar pelo ressentimento, ela nega a vida, correndo para a destruição, fazendo sublevar-se a turba zombeteira de pequenos rebeldes, embriões de escravos, que acabam se oferecendo hoje, em todos os mercados da Europa, a qualquer servidão. Ela não é mais revolta nem revolução, mas rancor e tirania. Então, quando a revolução, em nome do poder e da história, torna-se esta mecânica assassina e desmedida, uma nova revolta é consagrada, em nome da moderação e 438 Albert Camus, “Discours de Suède, 10 décembre 1957”, in Oeuvres. Imprimé en France: Gallimard, 2013, p. 81. 309 da vida. Estamos neste extremo. No fim destas trevas, é inevitável, no entanto, uma luz, que já se adivinha – basta lutar para que ela exista. Para além do niilismo, todos nós, em meio aos escombros, preparamos um renascimento. Mas poucos sabem disso.439 Uma obra que começa com a questão da revolta termina com o amor, sentimento pródigo capaz de fazer o homem nascer de novo em vida. Uma outra vida que emerge necessariamente de uma profunda metamorfose antropológica. Assim como a revolta lança o homem no campo da política, o amor abraça valores que vinculam os seres entre si e os conecta pelo sentimento ao mundo e à experiência da vida em comum. É possível pensar então uma antropolítica a partir da revolta, como faz Edgar Morin a começar com o amor. Uma antropolítica que, nas relações entre as pessoas, opera criações, saídas, acordos e mesmo rupturas, por vias pacíficas, solidárias, que preservam os ganhos da história humana. Ao tratar o amor como uma categoria política, é possível pensá-lo como disposição para a mudança, efusão revolucionária que está na origem de todo processo de transformação social profundo, quando a revolta e o amor, aflorados e intensificados em meio aos movimentos da vida, tornam-se fonte de criação e ganham o mundo para fazerem dele uma nova realidade. É o que Alex Galeno diz quanto ao poder de transformação do amor, que “nos leva a um exercício de alteridade no qual nos obrigamos a ser parte do outro” (a exemplo de como dizia Rimbaud, o eu é um outro), mas que também, expande seus efeitos nas experiências da vida em comum: o amor à humanidade, à vida, à natureza, aos cosmos.440 Na obra filosófica de Camus, portanto, é possível identificar a trajetória de um homem que por amor se insurge contra o mundo, ou melhor dizendo, contra a parte reprovável da realidade, não para negá-la em bloco, mas para melhor afirmar a vida pela via de uma determinação transfiguradora do real. Ao homem revoltado, real e realidade não se confundem. A realidade é tão só uma figuração provisória do real, que de fato e por definição é infinitamente plástico e aberto à criação. A matéria sobre a qual se debruça a revolta emana da colisão do real com a realidade que o martelo criador de valores revela ao dilapidar o destino ainda sem formas. Assim fazendo, imprime sua vontade na sucessão histórica dos acontecimentos que haverão de consubstanciar as forças do por vir. 439 Albert Camus. O Homem Revoltado, p. 349. 440 Cf. Alex Galeno, texto inédito intitulado “Edgar Morin: um pensador legislador”, escrito para o evento Jornadas Edgar Morin promovido pelo SESC-SP em 2019. 310 O tema da revolta tratado filosoficamente por Camus presta-se ainda a uma interpretação sociológica, assim como em Nietzsche, o tema do niilismo. As análises, as cadeias explicativas, as ordens das razões, quando se considera o fenômeno, são imediatamente sociológicas, pois se articulam na intersecção entre o psiquismo individual, a consciência coletiva e os acontecimentos políticos que se encadeiam na história. A combinação de tais elementos torna possível considerar, a princípio, três tipos de revolta abstraídos da obra de Camus em uma leitura sociológica: uma revolta egoísta, uma revolta altruísta e uma revolta anômica, a exemplo do que faz Durkheim ao tratar o suicídio enquanto fato social. A revolta egoísta tem por sentido motivações estritamente individuais. É a revolta típica da modernidade e das sociedades altamente individualizadas. A revolta altruísta tem por motivação sentidos e valores sociais. Geralmente associada a movimentos políticos e sociais, a revolta altruísta alçou a outras formações micropolíticas nos movimentos pós-socialistas, neoanarquistas tratados nesta pesquisa. E por fim, a revolta anômica, que ocorre em momentos de crise de legitimidade das instituições e dos poderes, quando os sentimentos de base sociais são convulsionados e, no lugar do conformismo, instala-se uma insatisfação generalizada, crônica ou patológica. Em um ambiente social assim caracterizado, a revolta tende a se espalhar, e em determinado grau de intensidade, a despeito de quaisquer poderes, pode culminar em conflitos, levantes, insurreições ou mesmo revoluções. Os três tipos de revolta assim definidos têm a potencialidade de se degradar em niilismo, desde quando relegam o elemento libertário e voltam-se contra sua fonte de origem.441 Mas possuem também um imenso potencial solidário, com suas inclinações coletivas que emanam das lutas populares, pela sobrevivência, pelos modos de vida comuns, pelas causas religiosas, espirituais, ecológicas, culturais.442 A história moderna é rica em exemplos das duas tendências. 441 Nietzsche e Stirner são exemplos analisados por Camus de revoltas egoístas que cedem ao ultimato niilista. O marxismo revolucionário, um caso entre outros de revolta histórica que, a pretexto de fundar uma sociedade em um ideal de justiça terrena, recai no niilismo estatal em que tudo é admitido em prol da causa, inclusive o assassinato. 442 Cf. Michel Foucault. O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. São Paulo: N-1 Edições, 2019. Ao ensaiar análises sobre o caso iraniano no final da década de 1970, Foucault vincula o tema da espiritualidade à política. Em determinados casos, existe uma dimensão espiritual na revolta, desde que se compreenda a espiritualidade como a experiência por meio da qual é possível modificar-se a si mesmo, tornar-se outro em relação ao que se é, ao que se foi. Ato de revoltar-se que manifesta uma mudança, ao mesmo tempo, um recusa e uma abertura de sentido. O tema da espiritualidade e sua relação com a verdade, com o cuidado de si e os saberes será retomado e desenvolvido amplamente nos cursos do Collège de France, especialmente em 1981-1982. Cf. Michel Foucault. A hermenêutica do sujeito: curso no Collège de France (1981-1982). São Paulo: Martins Fontes, 2010. 311 Em definitiva, a tensão que a revolta carrega consigo, interiormente e com relação ao exterior, é constitutiva de um afeto complexo no qual estão implicados condicionantes individuais, sociais, políticos, culturais e históricos muito variados, ainda mais nas atuais sociedades hipercomplexas em que os afetos sociais são submetidos a imperativos e mudanças intermitentes. Entretanto, uma tipologia da revolta está longe de se exaurir. Esse é tão só um ponto inicial. Uma demarcação de partida que enseja todo o trabalho posterior. O próprio Camus apresenta sua tipologia na genealogia do niilismo moderno. Os exemplos se multiplicam: revolta metafísica, revolta romântica, revolta histórica, revolta artística.443 Será sempre necessário elaborar uma e outra tipologia em contato com os fenômenos emergentes das forças históricas que é preciso a cada vez considerar. Nesse plano conceitual, o Critical Art Ensemble, objeto central desta Tese, expressa e promove uma revolta de tipo altruísta, pois, como visto, seus propósitos e valores são claramente sociais. Pode-se notar a diferença da revolta altruísta do CAE, comparativamente a outros movimentos históricos tradicionais, a começar pelos seus valores sociais, que não coincidem com os valores promovidos por sistemas ideológicos. Trata-se de um coletivo que expressa bem o sentido da revolta ética-política abordada por Camus e descrita por Kristeva, atravessado pelas dinâmicas históricas, autorreflexivo e aberto às combinações criativas que as mutações da realidade exigem. Ao promover uma micropolítica da criação, está em constante autoprodução. Suas atitudes e ideias-força, seus projetos, as implicações sociais, culturais e políticas de seus atos, encontram-se em contínua reflexão. A transgressão, o jogo, a elaboração dos sentidos que o movem, perfazem as ações do coletivo desde o princípio de sua trajetória. Enquanto grupo de criação, o CAE vincula a dimensão cultural da arte com o campo de forças na política por meio de uma revolta afirmativa que recorre ao experimentalismo contemporâneo com suas estéticas, matrizes performáticas e arsenais antropotécnicos. A máquina de guerra artística agenciada pelo coletivo inventa, recombina, desafia, provoca e destitui com produtos e vivências algumas tendências 443 Michael Lowy e Robert Sayre dedicam uma obra inteira a rastrear as origens românticas da revolta e seus desdobramentos históricos. A obra delimita o resgate histórico pelo recorte marxista, deixando de lado outras linhagens, mas faz bem o que se propõe e chega até os tempos recentes. Menciona o surrealismo, a obra de Guy Debord, o Maio de 68 e sinaliza algo sobre os “novos movimentos sociais”, embora feche a obra sem considerar a emergência das micropolíticas da criação que marcaram a virada do século XXI. Cf. Revolta e Melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015. 312 autoritárias presentes em seu tempo. Seu ativismo característico, também encontrado em diversos grupos de criação, denominados artistas ou não, desde ao menos a década de 1990 – culminância da virada social nas artes e nas práticas culturais de resistência –, demonstra o que uma revolta esclarecida, astuta, imaginativa e inventiva é capaz de realizar. Os estudos e as investigações inerentes à Sociologia da Revolta comportam investimentos epistemológicos em pesquisas sobre movimentos sociais, políticos, culturais e artísticos variados, fenômenos como resistências, desobediência civil, levantes, insurreições, revoluções, conflitos pacíficos ou beligerantes no âmbito da cultura enquanto realidade de manifestação social e política da revolta. Em correspondência com os fenômenos em foco, trata-se de uma sociologia em perpétuo estado de alerta aos movimentos que impulsionam e desafiam a imagem do mundo e o princípio de realidade constituído. Nesse sentido, a Sociologia da Revolta tem como dimensão privilegiada de estudo, não as instituições, mas as micropolíticas, pois são nelas que se formulam e adquirem realidade social as produções da revolta. As instituições, pelo contrário, tendem a ser confrontadas pela revolta social, direta ou indiretamente. Na micropolítica, segundo Deleuze e Guattari, ocorrem as mudanças significativas no interior das sociedades. Aliás, as sociedades se definem pelas mutações que ocorrem no âmbito micropolítico. Quando se trata de dinâmica social, a micropolítica é primeira, e é justamente por isso que os poderes tentam reagir sobre ela, por dentro e por fora. Diz-se erroneamente (sobretudo no marxismo) que uma sociedade se define por suas contradições. Mas isso só é verdade em grande escala. Do ponto de vista micropolítico, uma sociedade se define por suas linhas de fuga, que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação: aquilo que se atribui a uma “evolução dos costumes”, os jovens, as mulheres, os loucos, etc.444 Microssociologia das revoltas cotidianas, micropolíticas da revolta nas artes, no pensamento, na cultura, nos movimentos, nas redes sociais. São muitas possibilidades. O que se tentou evidenciar durante toda a pesquisa foi justamente a dimensão criativa, afirmativa e prospectiva de mudanças provenientes das micropolíticas da resistência 444 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (vol. 3). Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004, p. 94. 313 artística ao longo do século XX, e, mais especificamente, no decorrer das três décadas recentes, período que perfaz a longa trajetória do Critical Art Ensemble. 314 REFERÊNCIAS LIVROS DO CRITICAL ART ENSEMBLE Distúrbio Eletrônico. São Paulo: Conrad, 2001. La Invasión Molecular: biotecnologías: teoria y prácticas de resistencia. Madrid: Enclave de Libros, 2013. The Electronic Disturbance. New York: Autonomedia, 1994. Eletronic Civil Disobedience and other unpopular ideas. New York: Autonomedia, 1996. Flesh Machine: cyborgs, designer babies, and new eugenic consciousness. New York: Autonomedia, 1998. Digital Resistance: explorations in tactical media. New York: Autonomedia, 2001. 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The spetacle of disintegration: situationist passages out of the 20th century. New York: Verso, 2013. 327 APÊNDICE 1 PRODUÇÕES DO GRUPO DE CRIAÇÃO E ESTUDOS INTEGRADOS GAYA SCIENZA E DO EXPERIMENTO FLUXUS Experimento Fluxus, grupo poético-musical, em 2007. Geovane Almeida, Lucas Fortunato e Edson Gonçalves Filho. Machinapolis e a Caosmologia do Ser. Livro de autoria do Grupo de Criação e Estudos Integrados Gaya Scienza, formado por Lucas Fortunato, Edson Gonçalves Filho e Lisandro Loreto, com a colaboração de Geovane Almeida e Robson Duarte. Formados em ciências sociais, os autores têm desenvolvido pesquisas no âmbito do pensamento contemporâneo. O livro, escrito em meio a práticas de teor poético (no sentido excepcional atribuído ao termo pelos autores), trata de questões atuais segundo perspectivas filosóficas, científicas e artísticas. Nele, o grupo apresenta os resultados de sua experiência micropolítica com as artes e uma vasta pesquisa teórica sobre a megamáquina de guerra planetária, em seus aspectos políticos, econômicos, epistêmicos e tecnológicos. Disponível em versão digital. Natal: EDUFRN, 2010, 312 p. 328 Pinturas de Lucas Fortunato. Óleo sobre tela. Instalações de Lucas Fortunato e Geovane Almeida, respectivamente. 329 Instalação psicogeográfica Labirintos, 2005, UFRN. Lucas Fortunato, Edson Gonçalves Filho e Geovane Almeida. 330 APÊNDICE 2 Os livros do Critical Art Ensemble tratam da replicação profundamente enraizada do capitalismo nas fronteiras da ciência e da tecnologia. Seja discutindo robótica, tecnologias da informação ou ciências biológicas, o CAE habilmente expõe as agendas ocultas que estão na base da vida do século 21 e sugere intervenções e choques semióticos com o potencial de negar coletivamente a crescente intensificação da cultura autoritária. The Electronic Disturbance é a primeira coleção de ensaios e peças curtas do CAE a explicar a natureza do poder nômade e da resistência na era do virtual. Até o momento, este é o único título vertido para o português. No Brasil, veio a público em 2001 na Coleção Baderna, coordenada e lançada pela editora Conrad. “A atual revolução tecnológica criou uma nova geografia das relações de poder - como dados, os seres humanos enfrentam um impulso autoritário que prospera na ausência. Assim como uma geografia virtual de conhecimento e ação, a resistência deve se afirmar no espaço eletrônico”. Autonomedia, 1994, 156 p. O livro Electronic Civil Disobedience continua onde The Electronic Disturbance termina, sugerindo estratégias de resistência ao poder nômade e investigando táticas de não racionalidade para chegar ao cerne da autonomia. Fundindo um conceito de arte contestatária influenciado pelos situacionistas, uma compreensão da natureza paralela da ação cultural e política emprestada de Gramsci e a compreensão de um hacker de como funciona a nova tecnologia, o Electronic Civil Disobedience refina a compreensão da natureza do poder e da resistência na era da informação. Autonomedia, 1996, 144 p. Digital Resistance: Explorations in Tactical Media completa um tríptico sobre a teoria e a prática da oposição nômade ao Poder. Começando com uma discussão sobre “mídia tática” como um modo de oposição criativa fora do ativismo político tradicional, o livro apresenta oito ensaios ilustrando a amplitude de oportunidades que a mídia tática torna possível. Autonomedia, 2001, 192 p. Em Flesh Machine: Cyborgs, Designer Babies e New Eugenic Consciousness, o Critical Art Ensemble concentra suas atenções na nova fronteira do pancapitalismo – o desenvolvimento político e econômico de produtos e serviços que afetam a reprodução humana. O CAE inicia o mapeamento desse desenvolvimento examinando o uso de tecnologias reprodutivas para alcançar um grau de controle intensificado sobre o trabalhador e o cidadão-consumidor. Este livro visa a estabelecer uma contra-narrativa sobre as promessas espetaculares das indústrias. Autonomedia, 1998, 156 p. 331 Molecular Invasion dá continuidade aos estudos iniciados no livro Flesh Machine. Articulando a política dos transgênicos, desenvolve um modelo para a criação de uma biologia contestatária e fornece táticas intervencionistas diretas destinadas a interromper este ataque ao reino orgânico. Inclui os ensaios “Sabotagem Biológica Fuzzy” e “Produção Transgênica e Resistência Cultural: Um Plano em Sete Pontos”. Autonomedia, 2002, 140 p. Marching Plague examina as evidências científicas e a retórica em torno da guerra biológica, e apresenta um forte argumento contra a probabilidade de tais armas serem usadas em uma situação terrorista. Estudando a história e a ciência militares, o CAE conclui que, por razões de precisão e potência, as armas biológicas carecem da eficiência necessária para produzir a devastação generalizada tipicamente associada ao bioterrorismo. “Por que a urgência pública em torno da guerra biológica, então, e por que canalizar enormes recursos em pesquisa e desenvolvimento de ferramentas para combater uma ameaça imaginária? Esse é o foco real do livro: a desconstrução de uma economia política do medo extremamente complexa, principalmente por apoiar o desenvolvimento da guerra biotecnológica e a militarização da esfera pública”. Autonomedia, 2006, 152 p. Aesthetics, Necropolitics, and Environmental Struggle é o mais recente livro publicado pelo CAE. “Com o típico sangue-frio, o CAE disseca a besta de nossa própria criação: o Antropoceno. Esclarecendo as raízes filosóficas da confusão euro-americana sobre a natureza, este texto oferece uma medicina severa e essencial para chegar a um acordo com a nossa situação ecológica”. Claire Pentecost, Professora do Instituto de Arte de Chicago. Alguns temas abordados na obra: “Antropocentrismo reconsiderado”, “Táticas: reinvenção da precariedade”, “Antissistemas, indeterminação e práticas culturais experimentais”. Autonomedia, 2018, 168 p. Disturbances compila a vasta produção do Critical Art Ensemble em um álbum ricamente ilustrado. Em comemoração aos seus 25 anos, a obra permite ao coletivo fazer uma autoavaliação de sua história, examinando os temas ambientais, políticos e biotecnológicos de suas várias iniciativas. Os projetos selecionados vão desde as primeiras produções multimídia ao vivo, passando pelo desenvolvimento de modelos de desobediência civil eletrônica, resistência digital, biologia contestatária e ecologia, até chegar aos seus mais recentes projetos de mídia tática. Critical Art Ensemble: Disturbances. Introdução por Brian Holmes. London: Four Corners Books, 2012, 272 p. Ilustrado. 332 APÊNDICE 3 FORMAÇÕES DO CRITICAL ART ENSEMBLE 1986 Steve Kurtz, Steven Barnes (produção de vídeos); Steve Kurtz, Steven Barnes, George Barker, Claudia Bucher, Greg Carter, Joel Whitaker 1988 Steve Kurtz, Steven Barnes, George Barker, Claudia Bucher, Hope Kurtz, Dorian Burr, Jennifer Canterberry 1988-1989 Steve Kurtz, Steven Barnes, Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee, Ricardo Dominguez 1990 Steve Kurtz, Steven Barnes, Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee, Ricardo Dominguez, Phil Gelb 1990-1993 Steve Kurtz, Steven Barnes, Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee, Ricardo Dominguez 1993-2001 Steve Kurtz, Steven Barnes, Hope Kurtz, Dorian Burr, Beverly Schlee 2004 Steve Kurtz, Steven Barnes, Beverly Schlee 2005-Presente Steve Kurtz, Steven Barnes, Beverly Schlee, Lucia Sommer445 445 Cf. CAE, Disturbances. London: Four Corners Books, 2012, p. 272. 333 ÍNDICE INTRODUÇÃO 18 Critical Art Ensemble 22 A Tarefa do Pensamento Contemporâneo 26 A Questão da Revolta 28 A Máquina de Guerra Artística 33 Sumário Descritivo 43 CAPÍTULO 1 NOMADOLOGIA DA ARTE-REVOLTA: A MÁQUINA DE GUERRA ARTÍSTICA 52 Espectros da Revolta 54 A Máquina de Guerra Artística 59 Arte e Política 59 Acerto de Contas 61 Avant-Garde 63 O Grito Dadaísta 66 A Super-Realidade 69 A Revolta Artística 72 Desregramento dos Sentidos 75 Rebeldes e Malditos 79 Estetização Generalizada 80 Neovanguardas 82 A Realização da Arte 83 Reencantamento do Mundo e Espetáculo 91 Enfrentando Dilemas 93 Novas Trincheiras 96 Conceituando Arte-Revolta 99 CAPÍTULO 2 POR DENTRO DO CRITICAL ART ENSEMBLE: ARTE E REVOLTA NO CORAÇÃO DO IMPÉRIO 102 Os Anos de Formação 108 Virada do Século 109 Anos 80 110 Princípios 111 Surgimento 114 Os Primeiros Movimentos 118 Dinâmica Interna 119 Grupos de Criação 123 Pluralismo 126 O Revide da Arte-Revolta Contra o Espetáculo 128 Produções Multimídias 131 Apocalipse e Utopia 135 Conexões com o Ativismo Tradicional 137 334 CAPÍTULO 3 OS ARSENAIS ANTROPOTÉCNICOS DA REVOLTA: A ESTÉTICA DO DISTÚRBIO 143 Palavras e Gestos Radicais 143 Artists’ Books 144 Teoria Crítica Engajada 146 Guerrilha Cultural 150 Matrizes e Formas de Expressão 153 Arte Conceitual e Plágio Utópico 154 Teatro Recombinante 158 A Estética do Distúrbio 165 Conceituando o Distúrbio 174 Explorações em Mídia Tática 187 Contexto Histórico 188 Definição Ativista 190 Praticando Mídia Tática 196 Intervenção Molecular 201 Subjetivação Política 210 CAPÍTULO 4 RESISTÊNCIA CULTURAL: TRANSFORMAR O MUNDO, MUDAR A VIDA 215 Ecos da Arte-Revolta 215 Micropolíticas da Criação 217 Resistência Cultural na Sociedade do Espetáculo 221 Situações e Revolução Cultural Permanente 237 Resistência, Revolução e Destituição 243 Tecnologia, Poder Nômade e Pancapitalismo 249 CAPÍTULO 5 SUBVERTENDO A MÁQUINA: RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL ELETRÔNICA 264 A Arte Critica na Era Digital 264 Resistência Eletrônica 266 Subvertendo a Máquina 275 Internet e Poder 278 Desobediência Civil Eletrônica 283 Paranoia 285 Em Defesa da Desobediência Civil Eletrônica 288 Conceituação 289 Electronic Disturbance Theatre 295 Neovanguardas Contemporâneas 298 CONDIDERAÇÕES FINAIS 300 PARA UMA SOCIOLOGIA DA REVOLTA 302 335 REFERÊNCIAS 314 Livros do CAE 314 Entrevistas com o CAE 315 Documentário 315 Obras Citadas 316 Obras Consultadas 324 APÊNDICES 327 Apêndice 1 – Produções do Grupo Gaya Scienza 327 Apêndice 2 – Livros do CAE 330 Apêndice 3 – Formações do CAE 332 Índice 333