Um Traço Sobre o Ser(tão): Pinturas de Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa entre as décadas de 1980 a 2000 MARIA ILKA SILVA PIMENTA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA II – CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS UM TRAÇO SOBRE O SER(TÃO): PINTURAS DE IRAN DANTAS, ASSIS MARINHO E ASSIS COSTA ENTRE AS DÉCADAS DE 1980 A 2000 Maria Ilka Silva Pimenta NATAL/RN 2016 Catalogação da publicação na fonte. P644t Pimenta, Maria Ilka Silva. Um traço sobre o Ser(tão) : Pinturas de Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa entre as décadas de 1980 a 2000. / Maria Ilka Silva Pimenta. – Natal, 2016. 229f. Orientador: Prof. Dr., Francisco das Chagas F Santiago Júnior. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2016. 1. História do Rio Grande do Norte. 2. Seridó. 3. Sertão. 4. Arte 5. Imaginário. I. Santiago Júnior, Francisco das Chagas F. II. Título. CDU 94(813.2):75.051 MARIA ILKA SILVA PIMENTA Um traço sobre o Ser(tão): pinturas de Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa entre 1980 a 2000 Dissertação apresentada como pré-requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre no curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa II – Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Professor Dr. Francisco das Chagas F. Santiago Júnior. Aprovada em: ______/_______/_______. __________________________________________________ Profº. Dr. Francisco das Chagas F. Santiago Júnior Orientador UFRN __________________________________________________ Profª. Drª. Margarida Maria Dias de Oliveira Examinador Interno UFRN __________________________________________________ Profº. Dr. Daniel de Souza Leão Vieira Examinador Externo UFPE À arte e aos artistas. AGRADECIMENTOS Ao mundo espiritual que me acolhe nessa “infância terrestre”, aos seres de luz que me guiam nos momentos efêmeros da vida, sejam de alegrias ou tristezas. À minha mãe por ser Céu e Terra em minha vida, alicerce que me constitui como ser imperfeito, galgando as ardências e a felicidade de se viver. Como pai e mãe, soube ser completa; à senhora, todo o meu amor e admiração, como mulher simples, criada no espaço seridoense e feita dele, o lugar-berço de minhas indagações acadêmicas. Ao meu esposo Assis Costa, pelo rio fluido de afetividade que desce calmo entre nós, significando o sentido de caminharmos juntos ao longo de dezoito anos de companheirismo e amor, sem falar nas outras vidas as quais cruzamos, como ruas divinamente projetadas para nos encontrar. Ao meu irmão, que da sua maneira me ajuda a crescer como pessoa. Ao Profº. Santiago pela orientação, compreensão e estímulo, minha admiração e respeito. Aos docentes do Programa de Pós-Graduação em História, especialmente à Profª. Maria Emília, pelo apoio, me fazendo acreditar que era possível. Ao Profº. Durval Muniz, inspiração para este trabalho, a quem agradeço pelas aulas prazerosas com riso e a sabedoria dos grandes mestres. Ao Profº. Muirakytan Kennedy de Macêdo, pelos livros dedicados ao sertão do Seridó, fonte que alimentou esta escrita e a imaginação. A Willian Pinheiro Galvão, pelo incentivo. É difícil nomear tantas pessoas que fizeram parte dessa trajetória árdua de aprendizado, tornando-a mais leve e dotada de outros valores que ultrapassam a dimensão formal do universo acadêmico. Porém, especialmente cito Keidy Matias, companheira de estudos antes mesmo de entrarmos na grande aventura chamada Mestrado, a quem agradeço pelas conversas despojadas e sérias, uma amizade que levo para a vida. E também a Rafaela Gomes, pela forma gentil e amiga de ser, obrigada! Agradeço, ainda, a todos os colegas, como André Nascimento, Kalidyane, Vanessa e tantos outros que contribuíram de alguma forma para o meu desenvolvimento como ser humano. Nas experiências entre mar e sertão, enfrentando desafios íntimos, nas muitas viagens do Seridó a Natal, a paisagem do lar era afago e inspiração para a pesquisa. Também encontrei leito carinhoso de amigos como Maria Aparecida e Orildo; e Maria Do Carmo, amiga de outrora e de andanças no Beco da Lama. Aos entrevistados, de forma especial aos artistas Dorian Gray Caldas, por compartilhar seus saberes e experiências ao longo dos seus 85 anos, com arte e alma. A Assis Costa e Assis Marinho. A Antônio Marques, Iaperi Araújo, Ramos do Sebo Balalaika e, especialmente, a João Quintino de Medeiros Filho e Dercílio Morais, pela recepção fraterna em São João do Sabugi/RN. À Edrisi Fernandes, pelo ensinamento constante na “ferrenha luta com a palavra”, as suas vindas ao Seridó sempre inspiradoras, com conversas sobre arte, pintura, cinema e vinho. Guardo sua amizade dentro do coração. À Aparecida Costa e a Saint-Clair. À Ana Sant’Ana, irmãzinha de outras vidas, mesmo em áreas distintas estamos unidas por ideais comuns, com sua força de mulher inteira: amável, sábia e corajosa, uma dádiva de amizade; ao recebê-la em minha casa durante esse período em que escrevia, era luz para dias melhores. Aos amigos queridos Chistiane e Neto e Caio Graco e Carol. A Daniela Steffen e Vanderlei Reidel, que mesmo distantes, no Sul do País, estavam comigo. Com vocês defendo projetos culturais e com eles levo o sentimento de que a arte ilumina as pessoas. Muito obrigada! Às minhas gatas, companheiras e amigas. Aos professores convidados para a banca, Margarida Dias e Daniel Vieira. Como diz a música de Milton Nascimento, “o trem que chega é o mesmo trem da partida [...]. A hora do encontro é também despedida”... É, pois, nas relações humanas com o espaço que os dotamos de significados e assim nos ressignificamos como sujeitos no mundo. A todos que estiveram comigo nessa travessia, marcando-me feito tatuagem, como marca d’água de vivências não encerradas.  Maria Ilka Silva Pimenta No presente a mente, o corpo é diferente E o passado é uma roupa que não nos serve mais [...] Você não sente nem vê Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo Que uma nova mudança em breve vai acontecer E o que há algum tempo era jovem, novo Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer Belchior RESUMO O presente estudo objetiva refletir sobre as construções identitárias acerca do sertão do Seridó nas obras dos artistas potiguares Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa (1980-2000). As obras serão analisadas a partir da visão empregada na História Social da Arte, a qual faz uma relação entre o artista, a obra e a sociedade tendo como contribuição os pressupostos teóricos metodológicos de Michael Baxandall, T. J. Clark, Enrico Castelnuovo e Jorge Coli. Além de utilizar-se de Stuart Hall, Albuquerque Júnior e Muirakytan K. de Macêdo na discussão sobre identidade cultural e regional. Procura-se problematizar os ícones representativos desse espaço marcado por uma construção histórica, tramada nas múltiplas dimensões do vivido humano e do cotidiano impregnado de um imaginário coletivo, que criam um sentimento de pertencimento ao lugar, fundando uma identidade espacial. Nessa perspectiva, o intuito é tecer um enredo que possa contextualizar essa arte produzida no interior do Estado do Rio Grande do Norte. No primeiro capítulo a partir dos artistas Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, abordaremos uma reflexão sobre suas obras na condição de uma iconografia construída para identificar o Estado, sedimentando um sentimento identitário, particularmente, para a cidade de Natal que também define o Seridó. A iconografia desses dois nomes se constitui como um acervo pictórico para os artistas seridoenses, como Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa, cuja as obras é investigada nos dois capítulos seguintes e elaboram um conjunto de imagens produzindo uma forma de ver seu espaço regional. O estudo propõe costurar os fios da tessitura pictórica dos referidos artistas vendo-se a arte como uma produção humana articulada com uma construção imagético-discursiva. Pode-se afirmar que o sentimento de identidade seridoense é construído por um discurso regionalista e reafirmado na produção pictórica dos artistas, que possuem suas singularidades estéticas e culturais. Palavras-chave: Seridó. Sertão. Identidade. Imaginário. Arte. ABSTRACT This study aims to reflect on the identity constructions about Seridó as portrayed in works of Potiguar artists Iran Dantas, Assis Marinho and Assis Costa (1960-2010). The works will be analyzed from vision applied in Social History of Art, which is a relationship between the artist, the work and society, based on the methodological theoretical assumptions of Michael Baxandall, T. J. Clark, Enrico Castelnuovo and Jorge Coli. In addition to referring to Stuart Hall, Albuquerque Junior and Muirakytan K. Macêdo in the discussion of cultural and regional identity. We aim to question the representative icons in this space marked by a historical construction characterized by the multiple dimensions of human experience and daily life pervaded of a collective imagination, creating a sense of belonging to the place, establishing a spatial identity. In this perspective, the aim is to develop an outline that can contextualize the art produced in the interior of Rio Grande do Norte. Starting out with the artists Newton Navarro and Dorian Gray Caldas, we discuss a reflection on their works provided, which constitute an iconography built to identify the state, solidifying some sense of identity, particularly towards the city of Natal. Thus, the iconography of these two painters provides a pictorial reference repository to Seridoense artists such as Iran Dantas, Assis Marinho and Assis Costa, who produce a set of images creating a way to see this regional space. In practical terms, the study proposes sew the threads of these artists’ pictorial fabric, full of historicity, seeing art as a human and historical production, pervades with an imagetic- discursive construction. One can say that the sense of Seridó identity is built on a regionalist discourse and reaffirmed in the pictorial production of the artists who have their aesthetic and cultural singularities. In addition, we emphasize the understanding of individual and creative universe for each of them in developing their art. Keywords: Seridó. Hinterland. Identity. Imaginary. Art. LISTA DE FIGURAS Figura 1. NAVARRO, Newton. Dom Quixote, 63 x 34 cm. Pastel Seco, 1965. ................................. 42 Figura 2. COSTA, Assis. Dom Quixote no sertão. Acrílica sobre tela, 60 x 80 cm. 2012. ................ 45 Figura 3. COSTA, Assis. Dom Quixote e Sancho no Castelo Di Bivar. Pintura sobre papel com Vinho. 2013. .......................................................................................................................................... 46 Figura 4. NAVARRO, Newton. Colheita de algodão. Nanquim e aquarela sobre papel, 50 x 68 cm, 1982. Museu Pinacoteca do Estado. ...................................................................................................... 50 Figura 5. NAVARRO, Newton. Vaqueiro com boiada. Técnica mista: Aquarela e nanquim sobre papel; 84 x 54 cm. 1985. Museu da Pinacoteca do Estado. .................................................................. 50 Figura 6 - NAVARRO, Newton. Jogadores, bico de pena, 45 x 34 cm 1988. .................................... 57 Figura 7 - NAVARRO, Newton. Cadernos de estudos. Retirado do livro: Newton Navarro – os frutos do amor amadurecem ao sol de Ângela Almeida (2015). ..................................................................... 58 Figura 8 - CALDAS, Dorian Gray. Procissão dos navegantes. Acrílica sobre compensado, 160 x 220 cm, 1983. Museu Pinacoteca do Estado. ............................................................................................... 65 Figura 9 – CALDAS, Dorian Gray. Pescadores. Acrílica sobre compensado, 160 x 120 cm, 1983. Museu Pinacoteca do Estado. ................................................................................................................ 65 Figura 10 – CALDAS, Dorian Gray. Sem título, 50 x 60 cm, 2014. ................................................... 66 Figura 11 – CALDAS, Dorian Gray. Painel do Aeroporto Augusto Severo – Natal/RN. 2000. ....... 74 Figura 12 - DANTAS, Iran. Fazenda, 40 x 70 cm, óleo sobre tela, 1995. ........................................... 83 Figura 13- DANTAS, Iran. Fazenda, óleo sobre tela, 40 x 60 cm, 2015. ............................................ 83 Figura 14 – DANTAS, Iran. Hospital Ananília Regina.S/D. .............................................................. 90 Figura 15 – DANTAS, Iran. Avenida Cel. José Bezerra. Dimensões, 1998. ..................................... 91 Figura 16 - COSTA, Assis. A índia Luiza ou as origens do Seridó, óleo sobre tela, 130 x 160 cm, 2006. ...................................................................................................................................................... 99 Figura 17 - COSTA, Assis. O abandono do corpo, 90 x 160 cm óleo s/ tela. 2006. ........................ 101 Figura 18 – COSTA, Assis. Sangue derramado, óleo sobre tela, 60 x 80 cm, 2005. ....................... 104 Figura 19 - COSTA, Assis. Paisagem em três atos, acrílica sobre tela, 60 x 150 cm, 2010. ............ 108 Figura 20 – COSTA, Assis. Colhedores de algodão, acrílica sobre tela, 80 x 90 cm, 2010. ............ 113 Figura 21– PORTINARI, Cândido. Café, óleo sobre tela, 130 x 195 cm, 1935. .............................. 116 Figura 22 – MARINHO, Assis. Algodoal, 60 x 80 cm, 1986. ............................................................ 126 Figura 23 – MARINHO, Assis. Painel da UFRN – Campus de Caicó, 1986. ................................... 129 Figura 24 – MARINHO, Assis Marinho, Retirantes, técnica mista, S/D. ......................................... 131 Figura 25 – DANTAS, Iran. Praça de Currais Novos, mista sobre tela, 100 x 200 cm, 1991. ........ 134 Figura 26 – DANTAS, Iran. Praça de Currais Novos, óleo sobre tela, 80 x 100 cm, 1995. ............ 134 Figura 27 – COSTA, Assis. Currais Novos, acrílica sobre tela, 80 x 120 cm, 2011. ........................ 140 Figura 28 – COSTA, Assis. Ceia entre dois rios, acrílica sobre tela, 60 x 200 cm, 2012. ................ 143 Figura 29 – COSTA, Assis. Procissão de Santana, 40 x 60 cm, óleo sobre tela 2009. .................... 152 Figura 30 – COSTA, Assis. Procissão de Santana em pequeno povoado do Seridó. Acrílica s/ tela, 40 x 60 cm, 2011. ................................................................................................................................ 156 Figura 31 – DANTAS, Iran. Procissão de Nossa Senhora Aparecida, óleo s/ tela, 50 x 60 cm, 2010. ............................................................................................................................................................. 161 Figura 32 – DANTAS, Iran. Procissão de Santo Antônio, óleo s/ tela 45 x 65 cm, 2005. ............... 161 Figura 33 – COSTA, Assis. Circo Avoador, 40x 60 cm, acrílica s/ tela, 2013. ................................ 166 Figura 34 – MARINHO, Assis. Sem título, técnica mista s/ papel. S/D. ........................................... 168 Figura 35 – MARINHO, Assis. Sem título, crayon s/ papel. S/D. ..................................................... 170 Figura 36 – MARINHO, Assis. Sem título, crayon s/ papel, 70 x 50 cm, 2012. ............................... 170 Figura 37– MARINHO, Assis. Forró, 60 x 90 cm, técnica mista, 1986. ........................................... 172 Figura 38– MARINHO, Assis. Sem título, crayon s/ tela, 2015. ....................................................... 173 Figura 39 – COSTA, Assis. Noite Junina, óleo s/ tela, 80 x 80 cm, 2009. ........................................ 173 Figura 40 – DANTAS, Iran. São João do arraiá, dimensão não informada. 2007. .......................... 177 Figura 41 – DANTAS, Iran. Sem título. 2011 ................................................................................... 178 Figura 42– COSTA, Assis. Boi do Trangola, 40 x 60 cm, óleo sobre tela, 2008. ............................. 179 Figura 43 – DANTAS, Iran. Sem título, dimensões desconhecidas, óleo sobre tela, S/D. ................ 183 Figura 44 – DANTAS, Iran. Vaquejada, 50 x 70 cm, óleo s/ tela, 2009. .......................................... 183 Figura 45 – DANTAS, Iran. Vaqueiros e vaquejada, dimensões não encontradas, óleo s/ tela. S/D. ............................................................................................................................................................. 184 Figura 46 – DANTAS, Iran. Feira livre de Currais Novos, 82 x 93 cm, 2000. ............................... 190 Figura 47 – DANTAS, Iran. Feira livre, dimensões não informadas. S/D. ....................................... 190 Figura 48 – MARINHO, Assis. Sem título, crayon s/ papel, 2013. ................................................... 194 Figura 49 – COSTA, Assis. Calor da minha terra, 150 x 150, acrílica s/ tela, 2010. ...................... 195 Figura 50 – MARINHO, Assis. São Francisco. Crayon s/ papel, 2013. ............................................ 199 Figura 51 – COSTA, Assis. São Francisco em flor, 60 x 46 cm, óleo s/ tela, 2009.......................... 200 Figura 52 – COSTA, Assis. Sant’Ana, 60 x 90 cm, acrílica s/ tela, 2011. ......................................... 202 Figura 53 – COSTA, Assis. Sant’Ana, 80 x 120 cm, acrílica s/ tela, 2015. ....................................... 203 SUMÁRIO 1. Introdução ....................................................................................................................................... 1 2. Capítulo I – Do Mar ao Sertão – Uma Narrativa Pictórica ........................................................... 15 2.1. Uma pintura regional moderna .............................................................................................. 17 2.2. Newton Navarro e o Sertão ................................................................................................... 34 2.3. Dorian Gray Caldas – “o senhor das águas” ......................................................................... 59 3. Capítulo II - Cultura Visual do sertão do Seridó: paisagem rural e urbana................................... 82 3.1. Cada obra: um novo olhar ..................................................................................................... 94 3.2. Olhos d’água do sertão ........................................................................................................ 118 3.3. Descrevendo a paisagem ..................................................................................................... 133 4. Capítulo III - Seridó: Espacialidade de festas e fé ...................................................................... 147 4.1. As festas: procissões, São João, forrós e vaquejadas .......................................................... 150 4.2. Lazer e cultura popular ........................................................................................................ 164 4.3. Uma festa de Boi de Reis .................................................................................................... 179 4.4. Vaqueiros e vaquejadas ....................................................................................................... 183 4.5. Cenas do cotidiano .............................................................................................................. 189 4.6. Os Santos: arte devotada ..................................................................................................... 197 5. Considerações finais .................................................................................................................... 205 6. Referências .................................................................................................................................. 208 6.1. Referências Bibliográficas .................................................................................................. 208 6.2. Fontes orais ......................................................................................................................... 217 1 1. INTRODUÇÃO O Sertão não é para qualquer vivente. Com pedra e fogo, natureza febril que se faz aurora grávida de mistérios e silêncios, o sertão, faca e bala, existe dentro do sertanejo através de alfenins, alpendres e lonjuras. O sertão somos nós: seus bichos, suas oiticicas, seus rios, seus açudes, suas mulheres, seus homens. E suas promessas de relâmpagos e trovoadas e suas promessas de horizontes e arco-íris. No inverno o cheiro da terra molhada alimenta aqui-acolá a alegria que substancializa a nossa nordestinidade. (CIRNE, 2013, p. 20) O sentimento que rege esta pesquisa é interrogar por que nos identificamos com essa imagem que nos foi posta como natural, que apresenta a paisagem e o seridoense como pertencente ao espaço conforme descrito na epígrafe1. Partindo dessa ideia, podemos refletir acerca do Sertão do Seridó2, região localizada no interior do Estado do Rio Grande do Norte, que se constituiu como espaço identitário mediante processos históricos, econômicos e políticos que deram “corpo e face” a essa região, portadora de um imaginário social e cultural que a representa de forma particular. Um sertão que é imaginado, neste caso, pela escrita poético-imagética de Moacir Cirne e de tantos outros escritores que montaram um quadro icônico e descritivo desse espaço, coroados por características da natureza que o definem e da ação cotidiana das pessoas que nele vivem, os seridoenses. Esse sertão também é tema para as artes visuais do Estado e, principalmente, para os artistas praticantes deste espaço do Sertão do Seridó, os quais vivem ou viveram na região e se impregnaram dela, construindo um acervo de imagens que sedimentam tal identidade regional, constituída historicamente, marcada pelos signos da pecuária, do algodão e da mineração, numa rede discursiva presente na escrita histórica, literária e artística. 1 Esta pesquisa surgiu do meu interesse pelas artes plásticas, o qual remonta à adolescência, quando lia sobre a história dos pintores registrada nos livros de História da Arte. No intuito de dar continuidade a uma busca por compreender como a linguagem da arte é capaz de tornar visível o que nos passa despercebido. Como pensa Certeau (1982), todo discurso emerge de uma prática que dá corpo a uma realidade social, operando um lugar de produção, de modo que, ao escrever, nos inscrevemos no espaço. Ao trazer esta discussão, o sentimento de identidade seridoense presente nas obras de artistas que o retrataram revolve a minha própria instância identitária, por ter nascido em Currais Novos/RN e por compartilhar dos valores simbólicos construídos no imaginário. Esse discurso regionalista acerca do Seridó remonta ao período colonial, com a formação das fazendas de gado nessa região e, posteriormente, na passagem do Império para a primeira república, e também pelo enriquecimento proporcionado pela economia algodoeira, criando raízes fecundas nas produções de artistas locais e de outras regiões do Estado do Rio Grande do Norte. 2 O território Seridó do Estado do Rio Grande do Norte abrange uma área de 10.954,50 Km² e é composto por 25 municípios: Acari, Bodó, Caicó, Carnaúba dos Dantas, Cerro Corá, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Florânia, Ipueira, Jardim de Piranhas, Jardim do Seridó, Jucurutu, Lagoa Nova, Ouro Branco, Parelhas, Santana do Matos, Santana do Seridó, São Fernando, São João do Sabugi, São José do Seridó, São Vicente, Serra Negra do Norte, Tenente Laurentino Cruz e Timbaúba dos Batistas. A população total do território é de 295.748 habitantes, dos quais 70.676 vivem na área rural, o que corresponde a 23,90% do total. Possui 11.266 agricultores familiares, 1.007 famílias assentadas e 3 comunidades quilombolas. Seu IDH médio é 0,69. (Fonte: Sistema de Informações Territoriais. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2016). A região do Seridó situa-se na porção centro-meridional do Rio Grande do Norte, portanto, em pleno semiárido. (MORAIS, 2005, p. 26). 2 Neste sentido, a proposta desta pesquisa é analisar as representações do sertão seridoense nas obras dos artistas potiguares Iran Dantas, Assis Costa e Assis Marinho, produzidas no período entre 1980 e 2000. Entende-se que o Seridó é uma referência pictórica e imagética fundamental em suas obras, nas quais este espaço emerge como uma produção cultural e representação social. Esta dissertação problematiza a ideia de região e toma a imagem como discurso regional, ressaltando suas dimensões espaciais históricas. As telas e quadros dos pintores citados acima, portanto, são criações humanas que realçam “cenários” historicamente construídos onde se encenam os acontecimentos humanos. O espaço é marcado pela ação humana, configurado por símbolos que procuram definir o que somos. Assim sendo, que práticas históricas fabricam uma dada imagem de sertão do Seridó? Uma resposta possível seria: por meio da construção de um conjunto sígnico que cria a face homogeneizadora de uma identidade. Este espaço delimitado e nomeado historicamente como Seridó é pensado nesta dissertação como uma produção cultural e uma representação social, que se afirma pictoricamente pela sensibilidade artística e pela visão particular de cada artista. Este, por sua vez, é composto por camadas de sentidos, como produto e produtor de um imaginário simbólico, construindo uma identidade cultural que cerca os significados cristalizados sobre uma região. Constituindo-se de uma tessitura espacial histórica que desafia a própria escrita historiográfica, como descreve Certeau (1982, p. 12), escrever é construir uma frase percorrendo um lugar supostamente em branco, a página, entendendo como história uma prática, uma realidade social (uma “disciplina”), o seu resultado (o discurso) ou a relação de ambos sob a forma de uma “produção”. Vemos como os limites postos pelo tempo, pela complexidade que envolve as fontes e a maneira subjetiva e histórica de interpretá-las sempre com o olhar do presente, fazem a página da história abrir-se a novos questionamentos. O caráter crítico proposto pela análise de discurso, o qual tenta derrubar as verdades estabelecidas, inspira a presente pesquisa, que tem como objeto de estudo a pintura sobre o sertão do Seridó. Ressalta-se que esse é o primeiro escrito sobre as artes plásticas seridoenses, procurou-se auxílio do campo da história social da arte que tece a relação entre história e arte, respeitando-se a linguagem pictórica, vislumbrando a produção de imagem como um artefato humano. De acordo com Albuquerque Júnior (2008, p. 11), o espaço é antes de tudo um conceito, criações culturais humanas e não apenas receptáculos passivos ou cenários dos acontecimentos humanos. A noção de região é, portanto, fruto de mutações históricas, uma vez que cada prática humana tem sua dimensão espacial e a ideia de identidade acaba por 3 conformar um sentido de unidade. Por identidade entende-se como um campo de observação marcado pela diferença, um conceito construído para dar sentido ao que nos parece “desordenado”, em contraposição à própria fluidez e dinamismo do vivido. Surge como um discurso instituinte de verdades, de sorte que “a tecelagem da história é vista com desconfiança”. Contudo, pautada numa história-problema, a despeito da instituição das verdades o pensamento de Michel Foucault, nos permite encontrar as novas formas de instituir os espaços orientados pelo que o filósofo chamou de heterotopia. Nesta se questiona o próprio lugar, na concepção de lugares-outros, na luta contra o lugar-comum, o status quo, o que nos leva a perceber o Seridó inserido numa categoria espacial de região que foi construído por um discurso imagético-discursivo e subjetivado historicamente. Daí a pergunta: como esse espaço se constitui como especificidade? Dessa forma, a proposta é buscar desnaturalizar o discurso regional através de elementos como a produção de memória e a paisagem cultural, cristalizando para si e para o outro uma imagem identitária. Os discursos regionalistas fabricam o espaço e surgem da perda de uma unidade, imbricados nas tensões e disputas entre grupos sociais na instituição dos espaços. A região é produção cultural surgindo de uma visibilidade, uma forma de ver o Seridó como sertão, produzindo o (ser)tão identitário (o ser seridoense que se sertaniza), que aparece como metáfora no título deste trabalho. O sentido de regionalidade que se trama nas linhas que costuram a história local, unida a uma geografia afetiva, de pertencimento ao lugar e das múltiplas espacialidades constituintes do locus norte-rio-grandense. A questão da identidade é amplamente discutida na teoria social, principalmente, a partir da segunda metade do século XX. Trata-se, sobretudo, de compreender que os antigos quadros de referência foram abalados na pós-modernidade, vista como um processo mais amplo de mudança, de fragmentação e de descentramento do sujeito moderno, unificado e calcado na razão iluminista, o qual passa a assumir diferentes identidades, variáveis e mutáveis. Para Stuart Hall (2014, p. 96), Primeiramente, a identidade não é uma essência, não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas ligações com relações de poder. 4 Assim, as dimensões simbólica, discursiva e imaginativa são perspectivas de análise praticadas nesse corpo textual para refletir o processo de criação artística e o seu ambicioso resultado: aquilo que o artista considera a sua obra, assim como a cultura e a sociedade. Um quadro ou uma pintura é, então, visto como um acontecimento, pois não se trata apenas de representação, dado que possui um efeito no social, desdobrando-se numa imagem discursiva que singulariza o espaço. Nossa proposta é, portanto, realizar interpretações sobre artefatos específicos, telas pictóricas, e contextualizá-las historicamente. Realizar uma interpretação de um objeto artístico consiste em uma operação que inspira a cautela, buscando a complexa relação entre os objetivos de um indivíduo com os de sua cultura. É difícil buscar as “razões” de um quadro uma vez que elas remetem a um conjunto de possibilidades, do mecenato, das circunstâncias históricas, culturais e individuais que mobilizam o artista a pintar, o que Jorge Coli (2010) chama de o terreno delicado das representações da imagem. Segundo esse autor, num estudo de história da arte as imagens não são ilustrações destinadas a embelezar um texto, e um dos grandes prazeres dos historiadores das artes seria descobrir as imagens renascendo dentro de outras imagens, com novos sentidos e significações. A obra, nesse caso, nunca se reduz a sua materialidade, é um sujeito pensante. Considerando as distinções entre o artista e o autor, o artista produz “pensamentos” sobre o mundo, que está ligado a ele como autor, que pode carregar um conjunto de obras podendo exprimir uma dada “unidade”, constantes formais, estilísticas e de pensamento que pode ser chamada de a obra do artista. Tudo isso, porém, pode ser reelaborado conforme a bagagem cultural do observador e a do próprio artista enquanto criador a posteriori. Conforme Jorge Coli, É interessante ter certos dados biográficos do criador, por exemplo, para compreendermos a gênese da obra. Mas, passado esse ponto, a obra começa a falar por si. Ela pode mesmo negar o dado genético, ou então confirmá-lo. Mas agora isso deixa de importar, porque a obra está dizendo outra coisa, falando por si mesma (COLI, 2010, p. 283). O artista pode alterar o que já foi feito por ele um dia, e depois estará classificado em “fases” do autor. Mas se o artista pode modificar, suprimir a obra, para o historiador prevalece o método, a consciência de um pensamento objetivado numa obra e é na separação entre a autor e o artista que se garante o rigor. 5 Assis Costa, Assis Marinho e Iran Dantas são, portanto, pintores-criadores de espaço e suas telas são acontecimentos que instituem a realidade da qual se sentem habitantes e herdeiros. No atual cenário das artes plásticas do RN e do próprio Seridó, tais artistas se destacam no mercado de arte local e estadual. Trata-se de sujeitos que têm por tema o Seridó e sua identidade e fazem circular suas imagens. Sabendo-se da significativa produção artística existente na região, colocamos como um dos critérios para esta pesquisa o fato desses artistas, além de elegerem o Seridó como temática recorrente de sua arte, terem nascido e vivido em cidades do interior do Estado do Rio Grande do Norte e que pertencem à região (como Currais Novos e São João do Sabugi), e, sobretudo, serem artistas que sobrevivem exclusivamente da arte, pensando nisso como um critério de relevância histórica na trajetória artística das artes plásticas do RN. Além disso, será dedicada uma parte deste estudo aos artistas Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, na condição de produtores de uma iconografia para o Estado, especialmente para o município de Natal/RN, compondo, através de suas pinturas, distintos olhares sobre o espaço litorâneo em contraposição ao Sertão igualmente idealizado. Navarro e Caldas são antecessores de Assis Costa, Assis Marinho e Iran Dantas. Eles ajudaram a organizar iconograficamente o universo pictórico das regiões do Rio Grande do Norte. Este material é abordado da perspectiva da História Social da Arte proposta por Enrico Castelnuovo (2006, p. 141), de “fundir a história das imagens, dos clientes, dos artistas, das tradições, da cultura”, buscando os conflitos e contrastes, ainda que seu foco sejam as representações do Seridó na pintura. Em termos metodológicos, seguimos algumas considerações de Michael Baxandall (2006) sobre a explicação histórica dos quadros, ao compreender a obra de arte como uma produção que se insere em um contexto histórico e social, seu ambiente de circulação e consumo. Para Baxandall (2006), a explicação de um quadro é sempre uma representação da representação, de modo que, ao descrever a imagem, o historiador da arte produz uma construção mental sobre o objeto que analisa. Assim, nós explicamos o que pensamos sobre um quadro quando o descrevemos, expondo os desafios da linguagem verbal ante a visual. A partir disso, busca-se observar os vários ângulos possíveis de uma obra, ressaltando que a descrição e a explicação se interpenetram constantemente. Na visão de Baxandall “quadros são produtos de uma atividade humana” (BAXANDALL, 2006, p. 81). Ao tentar compreender e analisar a intenção de um quadro, descrevemos a relação de uma pintura com o contexto em que é produzida, seus problemas estéticos, formais e circunstâncias históricas. A intenção de um quadro não seria um estado de 6 espírito construído, mas uma relação entre o objeto e suas circunstâncias. Quais motivos estéticos e históricos fundam a concepção artística de um pintor e de sua obra? Mercado de arte, produção e o processo criativo, bem como os aspectos históricos e culturais inseridos nessa experiência cultural e estética da confecção de um quadro e seus espectadores são algumas perspectivas de construir uma interpretação que se torne identificável. O conceito de arte é histórico, o que nos permite entrar na seara da História da Arte, observando o percurso que a imagem adquiriu para a disciplina história. Muitos historiadores têm feito essa relação, como forma de amenizar os efeitos dessa longa ausência da imagem como objeto e prática da história. As fontes visuais são historicizadas e, segundo Menezes (2003, p. 19), muitos apontam a importância de tais fontes a partir dos anos 1960, fundamentando-se na ampliação da noção já então consolidada de documento, na abertura de novos horizontes documentais e de escrita da história. Há uma crescente discussão em torno da natureza da imagem visual, o campo da visualidade como um todo, que, ao longo das últimas décadas do século XX, se afirma como um espaço de pesquisa da cultura visual, em vários segmentos teóricos, como a Sociologia, a Antropologia, as Artes e a História. Ampliou-se a visão e passou-se a considerar a imagem não apenas como testemunho da história, mas como a própria história, a imagem como artefato humano. Com isso, procuramos apreender a discussão em torno da história da arte a partir de pensamentos que se moldaram na disciplina, passando pela reformulação de seus principais pressupostos de análise artística, praticados por teóricos como Michael Baxandall, Svetlana Alpers e Hans Belting, afirmando que “a história da arte amplia-se ainda mais, uma vez que é vista de modo bastante geral como um componente inseparável da história e da cultura, ou seja, já que não permanece mais apenas ‘em seu próprio território’” (BELTING, 2012, p. 203). Belting (2012) fala de perda de enquadramento, no sentido de que a arte, segundo o autor, “é entendida como uma imagem de um acontecimento que encontrava na história da arte o seu enquadramento adequado” (BELTING, 2012, p. 35). Refletir sobre a recorrência de uma imagem identitária do sertão do Seridó nas pinturas, tecendo um diálogo com as artes plásticas do Rio Grande do Norte, a partir dos pintores natalenses Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, mobiliza a produção de um conhecimento interpretativo, atento à produção dos espaços. Essa construção iconográfica demarca lugares de pertença tanto para o litoral do estado quanto para o interior, especificamente o Seridó, produzindo ícones identitários como a paisagem do mar, a cultura popular e o sertão. Como nos diz Paulo Knauss (2006) acerca de Michael Baxandall e W. J. T. Mitchell, o olhar é um sentido construído socialmente e historicamente demarcado, a 7 experiência visual é enriquecida pelas memórias e imagens de vários universos de nossas vidas, assim, os sentidos de toda imagem são múltiplos, podendo se recriados a cada novo olhar. Segundo tais autores, a imagem forma e cria conhecimento sobre o mundo, produz uma visibilidade sobre o espaço, contendo uma história das subjetividades e sensibilidades. As obras dos artistas Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa tomam o Seridó como temática/memória sedimentada que se expressa. Apesar de possuírem distintas visões e particularidades técnicas e estéticas, unem-se pelo sentimento identitário. Como percebe Durval Muniz Albuquerque Jr. (2008), “o estudo dos espaços exige uma mirada poética, uma visão artística, a prática de uma estética, reeducando nossos sentidos para também participarem, mais do que apenas o logos, da construção de nosso discurso de historiador” (ALBUQUERQUE JR., 2008, p. 88). O campo artístico potiguar não foi ainda abordado na perspectiva da constituição das espacialidades, o que requer uma discussão mais fecunda acerca das concepções da arte que se constituíram na história, observando os gêneros artísticos advindos de uma tradição na pintura e na história humana. Nesse sentido, elementos considerados internos e externos, quais sejam, aqueles que contextualizam as obras no momento em que elas surgiam, quem as fizeram e como as fazem, este métier tão antigo, herdado de culturas longínquas, tornam-se fundamentais, principalmente se concebermos a arte, assim como a cultura, como uma produção dinâmica, sensível ao tempo, sofrendo as mudanças na sociedade. Torna-se fundamental, nesse sentido, procurar entender estes caminhos sinuosos da história individual e coletiva dos artistas, da história regional do Sertão do Seridó, inseridos também em um panorama da arte mundial, delineadora de uma discussão sobre as artes no Estado do Rio Grande do Norte. Conforme já analisamos, segundo Paulo Knauss, A afirmação do universo do estudo da história das representações, valorizada pelos estudos da história do imaginário, da antropologia histórica e da história cultural, impôs a revisão definitiva da definição de documento e a revalorização das imagens como fontes de representações sociais e culturais. É neste sentido que a historiografia contemporânea, em certa medida, promoveu um reencontro com o estudo das imagens. (KNAUSS, 2006, p. 102) Ao traçar um diálogo entre história e arte, buscamos entender esta última como uma produção humana, sujeita às transformações do tempo. O objeto artístico não pode ser visto como algo “natural” e sua desnaturalização é um dos objetivos que norteiam esta pesquisa. 8 Além disso, consideramos um quadro como uma intervenção no mundo, pois a arte afeta a realidade; a experiência artística transforma os sujeitos e a leitura sobre esta também nunca é inocente, visto que o nosso olhar é formado culturalmente, bem como a nossa percepção. As cores e as formas têm sentido sociais. Segundo Fayga Ostrower (1978, p. 5), “o criar só pode ser visto no sentido global; como um agir integrado em um viver humano, criar e viver se interligam. A natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural”. Os processos criativos se realizam em dois níveis de existência, a saber, o nível individual e o nível cultural. O homem é, sobretudo, um ser cultural; o seu comportamento se molda pelos padrões culturais e históricos em que nasce e cresce. Sobre isso, cabe refletir: O mundo se encontra dentro e fora do artista como recorda a bela confidencia de Cézanne: um sentido agudo dos matizes me atormenta. Sinto-me colorido de todos os matizes do infinito. Nesse momento, eu e meu quadro somos um só. Somos um caos irisado. Vou ao encontro do meu motivo, perco-me nele. Na arte, a habitação do mundo percebido pelo sujeito e, em direção contrária, a presença ativa deste naquele, fazem parte de uma experiência singular e poderosa que talvez só se possa comparar a do ato amoroso. (OSTROWER, 2000, p. 41). Para tratar o debate historiográfico que pensa a construção dos espaços, problematiza-se a identidade espacial em torno do sertão seridoense, produto de uma rede de relações que demarcam e cartografam o espaço a partir de práticas e discursos. Não há identidade sem um discurso que o sustente, o qual constrói uma verdade, dado que todo espaço é uma trama, uma rede de relações entre pessoas. Dessa forma, ao analisar as representações do Seridó nas pinturas dos artistas cujas obras foram eleitas para estudo e apreciação, expomos um problema que é pensar o Seridó nas artes visuais, buscando analisar os discursos presentes nas narrativas pictóricas, trazendo a noção abordada do Seridó como uma construção imagético-discursiva sob o signo da visibilidade e da dizibilidade3, produzidos por formas de ver e dizer que se impõem instituindo histórica e culturalmente esta região. Para interpretar as obras desses autores-pintores foi utilizada a análise de discurso, a qual consiste na inserção de um dado discurso em um conjunto de enunciados que circulam no corpo social, na percepção dos enunciados recorrentes ou silenciados, com especial atenção ao discurso inscrito como pintura que constrói configurações para o espaço do 3 Tomamos como conceitos centrais de análise, aqui, as noções de visibilidade e dizibilidade construídas pelo filósofo Giles Deleuze a partir de leituras da obra de Michel Foucault. 9 Seridó, que o produz como algo singular e particular – Sertão do Seridó criado no imaginário, bordado feito pela história que não existiu desde sempre. Nesse sentido, esses três artistas – Iran Dantas, Assis Costa e Assis Marinho – foram escolhidos por representarem um sertão, aquele real e imaginário, de casas de alpendres, onde a vida passa de forma lenta e poética. O ritmo do trabalho e do descanso revela de modo sutil o cotidiano tanto no espaço rural como no urbano, em que as festas juninas falam da alegria, e flores e frutos expressam sentimentos de pertença, um retrato de pessoas comuns. Logo, o Seridó e o seridoense têm historicidades, são produções históricas. Desta forma pensaremos este espaço como físico e imaginado, sendo o objetivo central apreender o Seridó contado em imagens: toda a paisagem natural e humana, com seus rios que demarcam fronteiras, as pedras que criam formas identificativas desse espaço, sejam as da natureza ou as projetadas pelo homem, no seu ordenamento urbano; assim como as festas juninas, as procissões, os forrós nas casas do interior, o espetáculo silencioso do cotidiano que apresenta formas de ver e dizer o Seridó. Conforme argumenta Simon Schama (1996, p. 17) “o ato de identificar o local pressupõe nossa presença e, conosco, toda a pesada bagagem cultural que carregamos”. Sob esse enfoque, o autor vê o espaço a partir da categoria da “paisagem”, onde se inscrevem a memória, a natureza e a percepção humana, que são inseparáveis. Como resultado, ocorre a apropriação/produção pelo homem da paisagem, que a desenha materialmente e simbolicamente, um espaço e lugar de memória. A paisagem participa do processo de formação de uma identidade, sendo vista como espaço de significação histórica. A paisagem, ainda de acordo com Schama (1996), é obra da percepção humana, de modo que, para que haja a paisagem, faz-se necessária a atribuição de sentido. Assim, a memória teria o papel de significar a paisagem, construída sempre pela sedimentação da memória. Nessa perspectiva, o pintor Assis Marinho, nascido em 1960, configura em sua obra, de maneira particular, os signos que identificam a cultura sertaneja nordestina que constituem o arquivo de imagens sobre o Sertão do Seridó, em cuja região esse artista passou boa parte de sua infância, transfiguradas nas brincadeiras, nas festas, nos interiores das casas sertanejas pintadas. Para ele, o sertão é uma memória vivenciada na sua infância, bem como o resultado da memória cultural construída para esse espaço. Segundo Aleida Assmann (2011), o arquivo não é somente um depositório para documentos do passado, mas também um lugar onde o passado é construído e produzido. Para a autora os artistas não seriam armazenadores tecnológicos, mas sujeitos que buscam criar um glossário de sentimentos em que reconhecem uma fonte de elementos artísticos. 10 Procura-se adentrar, aqui, no universo do fazer artístico, da criatividade, das percepções estéticas configuradas em cada imagem/obra analisada: um Seridó contado em imagens pelos artistas Iran Dantas e Assis Costa, ambos da cidade de Currais Novos, que, embora separados por suas singularidades estéticas e artísticas, pintam, ao mesmo tempo, uma cartografia espacial do campo e da cidade, as relações entre a natureza e o homem, a fé como signo do sertanejo, moldando um quadro de identificações. Compreendemos que o imaginário pictórico do sertão seridoense, povoado de signos identificativos deste espaço, possui uma semântica própria, constituindo-se em um sertão de saudades, quase a-histórico. Ao mesmo tempo, é tudo aquilo que se possa nomear; para utilizar a metáfora do tecido, é tingido de nódoas de historicidade, onde se estampam as várias figuras identitárias; é construído no campo da linguagem pictórica desses artistas, os quais subjetivam toda a herança cultural que atravessa o tempo. Ressalte-se que essa herança é determinada pela atribuição de sentido de uma época e cultura; assim, o que hoje pode ter uma função e um valor extremo, amanhã pode não ter o mesmo significado, pois os sentidos das coisas são definidas pelos homens, segundo suas perspectivas históricas, mediadas por situações que levaram a isso. Seguindo o pensamento de Assmann (2011, p. 170), “agora não se considera mais a memória como vestígio e armazenamento, e sim como uma massa plástica que é sempre reformulada sob as diferentes perspectivas do presente”. Compreende-se, pois, que a memória cultural é o conjunto de símbolos acumulados de uma cultura, construindo uma identidade. As memórias culturais são lembranças objetivadas e institucionalizadas, que podem ser armazenadas e repassadas ao longo das gerações, isto é, algo que permanece, mas também é dinâmico. A partir da memória cultural é possível construir uma imagem narrativa do passado e uma imagem de identidade para nós mesmos. Dessa forma, ao realizar uma obra, o artista seleciona o seu objeto (o que pintar) segundo seu olhar direcionado, afetado pelos códigos culturais que o formaram; como sujeito social, está apresentando um mundo visual, social, cultural e imagético. Neste estudo, o Seridó se apresenta como uma produção imagética da espacialização, isto é, como essa região se legitima historicamente como espaço da tradição, perpetuando-se numa imagem que se quer preservar, de modo a observar quais os embates e questões estéticos e culturais provocadas em cada uma das pinturas analisadas. A ideia que permeia estas linhas é justamente refletir como esses artistas recriam o passado plasticamente, constituindo uma reescritura de uma identidade forjada na história, fazendo suscitar a seguinte indagação sobre esta arte: qual o sertão do Seridó para cada um desses artistas? 11 Sabemos que o espaço é entendido como uma tessitura reticular, produto de uma rede discursiva, e, uma vez que “[...] o objeto sofreu um processo de desmaterialização, tornou-se problemático, deixou de ser óbvio para ser obtuso, passou a requerer mais do que o infindável, trabalho hermenêutico da interpretação” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 49). Desse modo, as imagens possuem uma intencionalidade, ainda que seja a de contribuir para reafirmar o sentimento identitário seridoense, acomodada a uma poltrona de certezas, como verdades acabadas sobre este espaço. A imagem, assim, produz a história, agencia as sobrecamadas de sentido com pinceladas discursivas que pintam o painel geral do tempo, criando uma visibilidade. Sobretudo, busca-se entender a imagem pelo seu potencial de representação coletiva, questionar o porquê e como essas imagens são produzidas. Procuramos, aqui, pensar este espaço do sertão praticado e construído a partir do enredo pictórico, sendo enxergado como uma geografia afetiva, ligada ao sentimento de pertença que se tem com o Seridó. Nesta concepção, o espaço é um conceito, um feixe de imagens; logo, neste sertão do Seridó pintado por esses artistas, cada um, na sua forma singular de expressão, irá compor uma paisagem imaginária, configurando uma identidade espacial. Dessa forma, entende-se a arte como um discurso sobre uma dada realidade, a qual alimenta a alma dos sujeitos do seu tempo. Por meio do sujeito-artista, como fabricante do espaço, produz-se a história, instituem-se olhares. Todos os elementos cartografados na arte seridoense delineiam e reformulam formas que repercutem como ressonâncias de um tempo passado, embora se queira que essas formas continuem presentes como uma resistência à mudança. As telas apresentam vários motivos/temas pictóricos tais como o gado, o criatório, a terra e seu cultivo, a água, a família, e todos os desdobramentos destes aspectos da vida sertaneja como símbolos e códigos significativos do Seridó, que não surgem nas pinturas por acaso. Os temas pictóricos constituem, assim, a visibilidade, a forma de ver o sertão/Seridó, criando, sobretudo, uma imagem nostálgica, preenchida de saudade, que fortalece a identidade construída, unindo os fios de uma densa tessitura, que nomeia este espaço subjetivo de “Seridó”. Na arte sertaneja apresenta-se um apego, uma força telúrica atribuída à região. Seus habitantes são identificados com a terra nas pinturas, fundando, dessa forma, um espaço sentimental, o qual se soma à caracterização pela fé, principalmente na figura icônica de Santana, padroeira de vários municípios que integram o Seridó, a qual exerce um papel tanto religioso quanto político para esse espaço. Por exemplo, o locus em questão é organizado com inferências religiosas que participam dessa construção identitária seridoense, gestando uma 12 sensibilidade que demarca e institui uma unidade imagética, ligada à imagem de Santana. Neste sentido, o discurso religioso cria espaços, contribuindo, portanto, para formar a imagem do Seridó. O Seridó é um corpo metaforicamente marcado, neste texto, pela insígnia da arte. Quando os artistas revelam seus universos discursivos expostos em pintura, pensamos sobre que imagens são essas que mobilizam sentimentos tão singulares, constituindo uma afeição por essas facetas que condensam o Seridó numa imagem diferenciada, escrita, por exemplo, na poesia de Maria Maria, poeta contemporânea que respira a saudade: Há sempre um Seridó doce em meio ao sol que incendeia, ateando fogo nas serras, mas há, sobretudo, um fio de água feito beijo doce que vai – bálsamo – pela alma de quem chora a tarde. Sem receitas e sem moldes o Seridó se contorna de um verde, singularmente verde, perceptível apenas aos olhos subjetivos de quem ama. Um verde cujas nuances desconcertam o fato de que ele sempre será ocre. [...]. A terra que outrora amanhecia em desalinho, engravida-se de si mesma e faz do tempo seu aliado mais gentil. [...] Quero vinte e quatro horas de vida para nascer e morrer feito as borboletas, pois os casulos me deixam fortes e resistentes a ventanias que passeiam pelo Seridó, e onde se fazem redemoinhos. Todavia, elas são lições, ensinamentos e provas de que é possível viver nesse sertão, apesar de tudo. (MARIA MARIA, 2014, p. 20). Nesse Seridó a natureza e homem se integram a partir de sua identidade regional. Trata-se de uma imagem fabricada por um conjunto de textos e de enunciados simbólicos que historicamente fizeram do sertão um lugar particular, de comunhão com um passado que não quer passar, resistente ao flamejado tempo, entoando suas labaredas de esquecimento. Uma região configurada dentro de outra região, onde se identifica no Rio Grande do Norte um espaço dotado de valores simbólicos expressos na forma de ser seridoense, ou aquilo que foi, com o tempo, representando o ser seridoense, em que o homem, a terra e o algodão surgem como produto da identidade seridoense associada ao sertanejo. Seridó real e imaginário, sendo o sertão produzido como um conjunto de atribuições de sentido e metáfora para o Seridó, segundo Olívia Morais de Medeiros Neta (2007). Portanto, o espaço é entendido como uma polissemia de sentidos, o que gera em nós a consciência de que este traço sobre o sertão é apenas uma possível leitura diante do mar de significações que deságua nas produções artísticas contempladas por este estudo. As obras de arte são as fontes primárias utilizadas como pesquisa, e, para a análise das pinturas, buscaremos mobilizar a perspectiva da história social da arte e da análise dos quadros como discurso. Além disso, recorremos à oralidade com entrevistas feitas ao marchand de artes Antônio Marques; o sebista Severino dos Ramos Duarte do Sebo 13 Balalaica, de Natal/RN; os artistas Dorian Gray Caldas, Assis Costa e Assis Marinho; o pai do artista Iran Dantas; além de familiares e amigos que conheceram Assis Marinho no período em que viveu na cidade de São João do Sabugi/RN como João Quintino de Medeiros Filho e Dercílio Morais. Usamos como base, também, documentação escrita em impressos como jornais, matérias de revistas, folders e catálogos de exposições. No que se refere ao plano estrutural da presente dissertação, este estudo se divide em três capítulos que buscam tecer um enredo acerca da representação e identidade seridoense nas artes plásticas do Rio Grande do Norte a partir da problematização da noção de região e de identidade cultural. No primeiro capítulo, intitulado Do mar ao sertão – uma narrativa pictórica, procuramos contextualizar as artes plásticas do Rio Grande do Norte, analisando como os artistas definidores do quadro iconográfico e das artes plásticas do Estado na metade do século XX, Newton e Dorian Gray Caldas, construíram um sentimento de identidade para a região litorânea do RN, com temas como o mar e a cultura popular. Ao mesmo tempo, pensaremos em como esses artistas criaram uma iconografia sertaneja que lhe contrapunham como ícones identitários, marcando a singularidade e o sentido de regionalidade impregnado em suas produções artísticas. Nessa perspectiva, problematizaremos a ideia de identidade potiguar na arte e na história do Estado, tendo como espaço investigado a invenção imagética da cidade de Natal como contraposta e a sua relação com o sertão do Seridó. Se o primeiro capítulo é um recorte de contextualização iconográfica, os dois capítulos seguintes se dividem em explorar os motivos e temas pictóricos mais recorrentes na representação do Seridó por Assis Costa, Assis Marinho e Iran Dantas. No segundo capítulo, sob o título Cultura Visual do sertão do Seridó: paisagem rural e urbana, a construção narrativa será organizada em temas iconográficos paisagísticos, incorporando as obras dos artistas ao seu contexto estético, histórico-social e cultural. Procuraremos destacar as representações do Sertão do Seridó com as categorias paisagem rural e urbana, considerando o contexto em que as obras escolhidas para a análise terão como temas a cidade e o campo. Tentaremos compreender quem são esses profissionais da arte, seu processo criativo e os gêneros artísticos empregados em suas produções pictóricas. O intento consistirá em identificar as singularidades estéticas e os aspectos culturais e históricos da formação do espaço seridoense. Para o terceiro capítulo, que tem por título Seridó: espacialidades de festas e fé, propomos como tópicos temáticos as Festas religiosas e profanas, com destaque para os forrós, as festividades juninas e as procissões. Incorporamos o tema dos santos católicos, de forma a esboçar uma leitura estética e histórica de personagens emblemáticos como São 14 Francisco de Assis e Sant’Ana, que trazem como substrato discursivo o ideário que constrói e reforça a identidade seridoense com o olhar e as particularidades pictóricas de cada artista, ao redor do princípio de religião. Nessa leitura, privilegiamos as singularidades do métier artístico, revelando o caráter da cultura popular na pintura de cada artista, vista como uma dimensão construída historicamente, integrada ao sentido religioso, da iconografia cristã ocidental e das expressões cotidianas. 15 2. DO MAR AO SERTÃO – UMA NARRATIVA PICTÓRICA As imagens pertencem ao universo dos vestígios mais antigos da vida humana que chegaram até nossos dias. (...) A imagem é um componente de grande destaque, mesmo que nem sempre seja valorizada como fonte de pesquisa pelos próprios profissionais da história. (...) Portanto, a imagem pode ser caracterizada como expressão da diversidade social exibindo a pluralidade humana. (KNAUSS, 2006, p. 98) Neste capítulo, a proposta é narrar uma história ilustrada, ressaltando o poder da imagem de construir símbolos que são capazes de unir espaços territoriais como nações e regiões. Tomaremos as artes visuais para refletir sobre a formação das identidades espaciais a partir das obras dos artistas plásticos Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, responsáveis por criar uma visibilidade para a cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, e uma iconografia para o Estado na segunda metade do século XX, sendo compreendidos como intérpretes e produtores de uma dada regionalidade construída para esses espaços instituídos historicamente, principalmente porque tal produção foi pioneira na definição da visualidade do litoral e do sertão potiguares na segunda metade do século XX. Toda a obra desses emblemáticos artistas é vista como constituintes de uma memória cultural4, cujo alicerce está nos ícones da paisagem do mar, do tecido urbano de uma cidade cercada por esse mar, construída entre os símbolos da modernidade e de uma tradição herdeira do período colonial, gerando os embates de uma possível identidade potiguar, que tenta, historicamente, homogeneizar as múltiplas espacialidades existentes no Estado. Com isso, entendemos a autonomia que permeia a linguagem da arte, embora ela sempre nos permita lançar mão de um olhar singular sobre a cultura humana, haja vista que as imagens não são apenas testemunho da história, mas a própria história, sendo, portanto, partes integrantes da nossa realidade social (MENESES, 2013). Como forma de elaborar uma discussão em torno do sertão do Seridó, é importante tecermos, antes, uma análise acerca da ideia de como as artes plásticas do Estado do Rio Grande do Norte, e, em particular, na cidade de Natal/RN, buscaram criar para si uma identidade espacial, baseada na cultura popular, na paisagem do litoral, assim como na sua própria história. Vê-se como a perspectiva de região foi norteada pela noção de identidade, um discurso pautado por uma ideia de conforto ilusório, de pertencimento, quando na verdade 4 Por meio da história cultural os historiadores compreenderam o potencial da imagem como meio de acesso ao passado. A memória cultural é um construto e pode servir a um projeto identitário de um espaço territorial, agenciando formas de recordar e vivificar o passado. Para Aleida Assmann (2011, p. 238), “assim como a escrita, também a imagem é, a um só tempo, metáfora e médium da memória”. 16 a realidade é convulsionada pelo tempo, pela instabilidade. Conforme o historiador de arte Jorge Coli: [...] a palavra identidade, que, atualmente, é empregada com tanta frequência [...] adquiriu força com os Estados modernos, que buscavam – e buscam ainda – interiorizar em cada indivíduo o sentimento de pertencer ao país, a um grupo, embutindo assim o coletivo no singular. Criaram-se sensações comuns, semelhanças, criaram-se fraternidades pela raça, pela língua, pelos comportamentos, pela comida, pelas artes. É preciso, porém, ter sempre em mente que essas criações são artifícios, fabricações. Elas possuem o poder de diminuir as diferenças internas, que são indesejáveis quando se busca uma unidade coletiva (COLI, 2010, p. 339). Ao questionarmos o estereótipo do regionalismo, no estudo de identidade regional, é fundamental termos como perspectiva que a reflexão acerca da construção da identidade seridoense e da produção imagética do Rio Grande do Norte, a partir de sua capital Natal, constitui-se como parte de um projeto político de configuração da nacionalidade brasileira desde o século XIX. Para Durval Albuquerque Jr. (1999), a região Nordeste é uma construção imagética discursiva, tomada como uma invenção histórica, de práticas e discursos que criaram uma imagem de verdade sobre a região. Em outros termos, é um recorte espacial eivado de significados simbólicos cristalizados no imaginário coletivo, naturalizado por um discurso de inferioridade diante do sul, este, por sua vez, dotado de uma visão de modernidade e de progresso, numa relação de poder e de alteridade, de construção da identidade que se faz na relação com o outro. O Nordeste como região é produzido por textos e imagens, produto de uma dizibilidade e uma visibilidade; um espaço moldado pela sua paisagem física, cultural e humana, de praias, de sertão e sua vegetação símbolo, dos caracteres humanos, como a do vaqueiro, da chamada cultura popular, do maracatu, do boi de reis, do pastoril, entre outros. Um tecido bordado nos teares da história, problematizado na escrita historiográfica contemporânea de Durval Albuquerque Jr.. O discurso regionalista, ainda segundo o autor, surge na segunda metade do século XIX, quando a centralização do Império se consolidava, construindo a ideia de nação diante da dispersão do espaço nacional. Na década de 1920, opera-se num novo regionalismo, que mapeava o Brasil e suas regiões, almejando um sentido de unidade com as mudanças que ocorriam no país e que destruíam as antigas espacialidades. Naquele momento, o nacionalismo se acentuava com práticas que visavam o conhecimento do território nacional e identificava as particularidades regionais que a partir, por exemplo, das notas de viagens, publicadas na Imprensa, como no Jornal O Estado de São 17 Paulo, busca-se diferenciar as regiões e ainda produzir um discurso que tinha em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife centros irradiadores de poder, produzindo enunciados discursivos sobre as regiões. Esse pensamento demarcou as fronteiras simbólicas existentes e resistentes até hoje, que constroem o Nordeste como o lugar da tradição, do atraso econômico, “inferior por natureza”, em contraposição ao desenvolvimento industrial do Sul e os múltiplos sentidos trazidos das dimensões políticas e cultuais advindas dessas relações de força e poder constituintes desses espaços. A defesa de uma cultura genuinamente nordestina se germina nesse contexto de formação da identidade nacional. Os processos históricos e as estratégias discursivas implicados na construção da nação corroboraram o desvendamento de múltiplas identidades regionais, gestadas em diferentes temporalidades e espaços. Ao longo de todo o século XX, o regionalismo permaneceu como uma forte vertente do pensamento social de alguns estados do Norte e do Nordeste. A literatura, o folclore, a pintura, os estudos sociológicos e antropológicos detinham-se na descrição das paisagens e dos tipos regionais, reivindicando um maior índice de brasilidade do que outras regiões (ALBUQUERQUE, 2001). 2.1. UMA PINTURA REGIONAL MODERNA Faz-se necessário situar, a priori, os artistas plásticos do Rio Grande do Norte em seus contextos global e local, com o intuito de analisar as regularidades temáticas que conformam a ideia de uma pintura de caráter regional, embora a sua forma seja principalmente emprestada da estética modernista europeia, surgida na virada do século XIX para o século XX, em países como a França, Alemanha e Itália. No livro A Forma Difícil, Rodrigo Naves (1996) discute, por um lado, acerca da dificuldade da forma na arte brasileira, evocando artistas como Volpi e Guignard, que, nos seus matizes, confessam uma convivência amorosa com os seres humanos longe de quaisquer rupturas e descontinuidades, uma paisagem matizada pela harmonia entre homem e espaço: “Na ausência de uma força social poderosa que fizesse vislumbrar novas possibilidades, parece restar apenas essa utopia rememorativa e docemente anticapitalista, a única a fornecer indícios reais de um novo tipo de sociabilidade” (NAVES, 1996, p. 22). Por outro lado, Naves (1996) evidencia artistas como Iberê Camargo, Ismael Nery e Amilcar de Castro, que, nas suas tentativas plásticas de exercício artístico, traduzem o universo social brasileiro de modo particular, além de constituírem uma forma difícil, questionadora e atenta aos fluxos da própria arte. 18 Nesse sentido, utilizando-se os preceitos da História Social da Arte, que buscam relacionar a obra de arte aos grupos sociais nos quais está inserida, o historiador da arte inglês T. J. Clark (2004) nos informa que O objeto por excelência da história social da arte é o exame das condições peculiares dessa interação entre o artista e o contexto, ou melhor, o desvelar de como um conteúdo de experiência se transmuta em forma, como um dado acontecimento se congela numa imagem, de que maneira certa estrutura de sentimentos se condensa numa representação [...]. (CLARK, 2004, p. 16) Conforme observa Carlos Zílio (1997), as transformações na sociedade brasileira em âmbito nacional, com a abolição da escravatura, a proclamação da República, a imigração, o crescimento das cidades em decorrência da indústria e os novos grupos sociais advindos dessas novas relações de conflito e mudança, cria-se a necessidade de uma arte que se pretendia genuinamente nacional. Logo, “o Modernismo vai ser uma expressão deste novo Brasil. O objetivo de artistas e intelectuais será o de colocar a cultura brasileira coerente com a nova época, além de torná-la um instrumento efetivo de seu país” (ZÍLIO, 1997, p. 38). Constrói-se, assim, uma nova consciência cultural brasileira, vinculada à ideia de identidade nacional. A arte produzida na provinciana Natal, na metade do século XX, ainda se enquadrava numa visão acadêmica, presa às técnicas tradicionais de pintura. Newton Navarro foi o primeiro a realizar uma exposição de arte moderna no Estado, cujo cartaz trazia como título “Primeira Exposição de Desenho e Pintura de Newton Navarro”, passando, tempos depois, a ser reconhecida pelas pessoas como o I Salão de Arte Moderna de Natal, realizada no período de dezembro de 1948 a janeiro de 1949, na antiga Sorveteria Cruzeiro. Segundo informa Carvalho (2003), a exposição contava com cinquenta e sete obras, entre aquarelas, bicos-de- pena e estudos a nanquim, carvão a óleo, com temas diversos, como tipos humanos, motivos sacros, paisagens ou divagações metafísicas. Conforme pesquisa empreendida por Sheyla Azevedo Andrade (2013, p. 70), estes foram alguns dos títulos das obras: “As mãos suportam o silêncio”, “Se ama no Parque”, “O noturno da rosa vermelha”, “Bailarinos e músicos”, “Bêbado”, “Desespero”, “Leitura”, “Mãe”, “Sejamos pornográficos”, “Bucólica”, “Os frutos do amor amadurecido ao sol”, “Mulher-paisagem”, “Negros do cacau”, “Noturno à janela do apartamento” e “Brigue”. Cabe lembrar que o texto de apresentação da primeira exposição em Natal de Newton Navarro foi produzido por seu primo Grimaldo Ribeiro, o qual enfatizou o caráter telúrico de sua arte, lembrando, ainda segundo Andrade (2013), que o artista participava de movimentos 19 estudantis, na política e na defesa de um pensamento livre. Constituía-se, a partir de então, um discurso que tentava inserir o artista nos acontecimentos sociais e culturais na Natal do final dos anos 1940, no sentido de torná-lo integrado não apenas ao mundo da arte, como também assumindo um posicionamento social. Vinte e seis anos após a Semana de Arte de 1922, Newton Navarro trouxe a premissa de uma mentalidade modernista que vinha aos poucos romper com os cânones acadêmicos no Estado do Rio Grande do Norte, nos quais predominava uma pintura de retratos e paisagens bucólicas. A esse respeito, argumenta Sheyla A. Andrade sobre o discurso do marchand Antônio Marques: Ele diz que dos anos 1930 até final dos anos 1940 os artistas plásticos mais prestigiosos em Natal – exemplificando com Moura Rabelo, Murilo La Greca, Hostílio Dantas e Cícero Vieira – eram “indiferentes” à proposta modernista iniciada na Semana de 22, e ‘rendiam tributos, através de suas obras, ao academicismo do século 19’ (ANDRADE, 2013. p. 73). A exposição causou impacto na cidade de Natal. Um dos episódios que descrevem a visão do público diante das obras fora narrado pelo próprio artista Newton Navarro, que conta que uma senhora, na companhia de seu marido, teria indagado se aquelas figuras representadas não eram o anúncio do Circo Nerino5, comumente recebido na cidade, tamanho era o estranhamento causado por aquela forma não classicista. Ressalta-se que nesse momento, final dos anos de 1940, Natal vivenciava ainda a atmosfera pós-Segunda Guerra Mundial, com a construção da segunda Base Aérea de Parnamirim e a chegada dos norte- americanos e sua cultura dos “enlatados”, cervejas, chicletes e coca-cola, afetando todos os segmentos sociais, o comportamento e a sociabilidade local. Natal era, por assim dizer, uma cidade situada em um país que se industrializava com o apoio dos chamados países aliados durante o período de Getúlio Vargas, com uma política de governo que ressaltava o nacionalismo. A economia de caráter primário e exportador com a cana-de-açúcar, o ouro, o algodão, a borracha e o café, que construíram e solidificaram o país materialmente e de forma simbólica, desde o período colonial no século XVI, nos anos 5 O Circo Nerino foi fundado pelo casal Nerino e Armandine Avanzi, em Curitiba, no primeiro dia de 1913, e apresentou seu último espetáculo em 13 de setembro de 1964, na cidade paulista de Cruzeiro. Durante quase 52 anos percorreu todo o Brasil por diversas vezes. A equipe viajava de trem, navio, barcaça, jangada e, por fim, de caminhão, em estradas de terra que na época eram de terra mesmo. Uma das mais completas expressões de um modo de produção circense que predominou no Brasil desde o final do século XIX até os anos 60 do século seguinte, o Circo Nerino era circo-teatro, pois apresentava circo na primeira parte do espetáculo e teatro na segunda. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2015. 20 1940 teria chegado à “era industrial”, modificando no plano físico e simbólico a cidade de Natal. Contudo, o anseio por um ideal de modernidade vinha sendo instaurado desde o início do século XX, mas, no âmbito das artes, Natal ainda praticava uma pintura tradicional, distante do movimento modernista que se firmava no Brasil na década de 1920. Para nos situamos no espaço nacional, a arte moderna, a exemplo da exposição de Lasar Segall em 1913, realizada em São Paulo e Campinas, não teve uma forte repercussão, segundo aponta Carlos Zílio (1997), por ser Segall um estrangeiro, de modo que não representava nenhum “perigo” à ordem estabelecida, ao status quo da arte. Posteriormente, Anita Malfatti, em 1917, sofreria o grande impacto da crítica brasileira, principalmente da parte de Monteiro Lobato. No entanto, essa artista pôde, depois, questionar a tradição e engendrar, junto com outros artistas e poetas como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, os novos caminhos da arte brasileira em 1922. No modernismo artístico no século XX no Brasil, havia uma preocupação em edificar uma arte nacional, que criou força com a ideia de regionalismo. Antes, artistas como Jean-Baptiste Debret, francês que, com suas aquarelas, fez o registro da escravidão no Rio de Janeiro, assim como Franz Post e viajantes estrangeiros, criaram um acervo iconográfico da paisagem brasileira, embora dentro dos padrões estéticos, visuais e culturais europeus. Daniel de Souza Leão Vieira (2010), analisando a paisagem política no Brasil holandês em Franz Post a partir de uma dimensão histórica e cultural da arte, trata de uma reinterpretação que se constituiu a partir das obras do artista holandês nos anos de 1930 e que transformaram a Nova Holanda de Post em Nordeste açucareiro. Segundo o autor, cujo viés teórico se insere numa história cultural da paisagem, Post foi o primeiro pintor da escola do velho mundo a pintar o novo mundo, em dezoito obras pintadas no Brasil no século XVII. Daí porque se compreende que “a imagem não é uma evidência de uma realidade objetiva, empírica e fora da linguagem, mas é a evidência da instituição imaginária de uma realidade” (VIEIRA, 2010, p. 90). Nessa perspectiva, o autor considera que a emergência de um discurso regionalista que constrói o Nordeste como região brasileira na primeira metade do século XX, principalmente em Pernambuco, utilizou as pinturas de Franz Post como forma de constituí- las como imagens espaciais do Nordeste tropical e açucareiro, em um momento que as elites pernambucanas agenciavam simbolicamente o lugar social e político de Pernambuco no país, com o objetivo de chamar a atenção para esse espaço que vivenciava a decadência do seu principal produto econômico, o açúcar. Como bem esclarece Albuquerque Júnior (1999), 21 O Nordeste nasce da construção de uma totalidade político-cultural como reação à sensação de perda de espaços econômicos e políticos por parte dos produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos comerciantes e intelectuais a eles ligados. (ALBUQUERQUE JR., 1999, p. 67) Gilberto Freyre é tido como figura central desse processo, responsável por tecer a renda sociológica sobre o Nordeste, presente nos anos 1920 com a discussão entre o discurso do progresso e da tradição, e afirmando-se nos anos 30 como um espaço simbólico da tradição atribuído à região. Esse espaço consiste, sobretudo, em tensões e conflitos emergidos na construção da identidade nacional, em âmbito local e regional. Nesse percurso, o modernismo como estética artística empregada pelo pintor Newton Navarro na cidade de Natal em 1949 foi fruto das circunstâncias históricas e culturais brasileiras do início do século XX, de artistas que viveram na Europa, ou que tiveram acesso às transformações no mundo das artes. Tais mudanças foram promovidas por artistas empenhados em romper com as técnicas acadêmicas, substituindo-as por uma nova mentalidade impregnada de novos interesses que a modernidade operava nas relações humanas, afetando o modo como se fazia e se pensava a arte, gerando diversas formas de expressão e de liberdade artística. A concepção de arte que se anuncia em 1922, com a emblemática Semana de Arte Moderna, ganha vulto com o Manifesto Pau Brasil (1924), caracterizando uma apreensão da paisagem brasileira com a retomada da realidade local numa poesia de exportação da novidade irônica. Posteriormente, o Movimento Antropofágico (1928), organizado por Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros artistas, buscou aglutinar as influências estrangeiras às particularidades nacionais, de uma forma que se apresentava como algo espelhado nas vanguardas europeias do século XX, mas com as singularidades manifestadas nos símbolos identificativos desse espaço. Isso contribuiu para forjar um tecido cultural brasileiro fundado na ideia da nacionalidade, ancorado na noção de identidade regional, na qual a própria hibridação étnica-cultural entre negros, índios e brancos foi se constituindo como signos identitários. É interessante perceber, ao mesmo tempo, que a realidade dessa nova forma de expressão buscava uma linguagem que se emancipava da verossimilhança com o real. Kátia Canton (2002), analisando o sentido da modernidade, relata que os artistas considerados modernos buscavam acompanhar as mudanças que ocorreram no campo científico, social e econômico, e renunciar, segundo ela, em forma e conteúdo aos padrões vigentes na arte acadêmica. 22 A busca por aquilo que representa o sentimento de nacionalidade foi uma característica do modernismo no Brasil por seu legado nacionalista e romântico. A arte acadêmica, filha de uma fusão da estética neoclássica com os interesses das elites e o romantismo, estava interessada no nacionalismo. No Brasil, com a chegada da Missão Artística Francesa em 1816 e, posteriormente, com a Academia Imperial de Belas Artes, criada em 1826, é que se gera a produção de uma iconografia que buscava o sentimento de identidade nacional a fim de criar uma nova imagem para o Brasil – no ideal de civilização, sendo a temática histórica o ponto nevrálgico de atenção dessa política que contribuía para edificar ícones e um enredo da história nacional, exemplificados nas pinturas de Pedro Américo e Victor Meirelles. D. Pedro II, reconhecido como mecenas das artes por fazer uso dos talentos dos artistas brasileiros que traduziam em termos formais o neoclassicismo europeu para os trópicos, financiou um projeto de civilizar o país com os mecanismos simbólicos da arte. Então, a imagem de um espaço nacional surgida nas artes plásticas no século XIX surge nos meandros de embates regionais frente à concepção de nacionalidade. Enquanto na Europa se iniciava uma premissa de mudança estética e da mentalidade acerca do próprio artista e de sua criação, a realidade brasileira preocupava-se em formar por meio da arte ícones nacionais. No movimento modernista que se inicia a partir da década de 1920 havia a preocupação em construir uma identidade genuinamente brasileira, com as peculiaridades de cada época. A produção pictórica das décadas de 1930/40 buscava, principalmente, uma vertente de questionamento social, engendrado pelas transformações políticas no plano nacional e nas suas regiões, e as concepções de arte começam a enveredar-se pelo abstracionismo, consolidando-se na década de 1950. Contudo, artistas como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti serão a base para essas novas reformulações estéticas que se operam no país. De acordo com Carlos Zílio (1997, p. 19), Para o público, esses artistas aparecem como criadores de uma nova visão do Brasil [...]. Uma imagem tão pregnante que as figuras populares das mulatas, cangaceiros, casarios, enfim, o tema da paisagem e do homem brasileiro, tratado dentro de uma determinada maneira, funcionam para largos setores sociais como o seu próprio olhar do Brasil. Segundo Vicente Vitoriano M. Carvalho (2003), a obra de Navarro se filiava ao modernismo pictórico do início do século vinte na Europa – de Picasso, Van Gogh, Cézanne, Matisse ou Gauguin, e do eclético grupo da Escola de Paris – referenciando o modernismo da 23 Semana de 22, no Brasil e as contribuições do pensamento regionalista de Gilberto Freyre sobre o Nordeste. Estes antecedentes pesavam sobre a produção pernambucana quando Navarro esteve no Recife e ele os encontrou repercutindo em um modernismo já tardio, praticado por um pequeno grupo de artistas do qual fazia parte Vicente do Rego Monteiro, remanescente da Semana de 22. Foi neste meio, com estes antecedentes, em que Newton Navarro enraizou mais profundamente a sua arte. (CARVALHO, 2003, p. 132) Sheyla Azevedo Andrade (2013) indica que existem exemplares raros pintados a óleo na casa do médico Olímpio Maciel em Natal/RN nos quais predominam no artista Newton Navarro a técnica aquarela, sendo, inclusive, um fato que deve ser observado, pois entre 1940 a 1950 predominava a produção de pintura a óleo, enquanto Navarro, na maioria das vezes, trabalhava com tintas a base de água, inaugurando novas técnicas de pintura como as produzidas com café e chá. São quadros assinados “Di Navarro”, numa referência clara a um dos principais artistas e organizadores da Semana de Arte de 1922, Emiliano Di Cavalcanti. A forma como o público recebeu a primeira exposição de Newton Navarro em Natal, aponta divergências entre aqueles que apoiavam as ideias inovadoras e aqueles que estranharam a nova forma de representação pictórica. A crítica local, segundo Gerson Luiz (1974, in CARVALHO, p. 125), “guardadas as devidas proporções, estava repetindo ‘uma espécie de semana do modernismo’ em Natal”. A Gazeta Sonora da Rádio Tupi também ressaltava o caráter “incendiário” da exposição navarreana em tom elogioso. Em 1950, com a participação de Dorian Gray Caldas e Ivon Rodrigues, aconteceu o II Salão de Arte Moderna no casarão que ocupava a Cruz Vermelha, considerado como um impulso inicial dessa tendência estética que se apresentava de forma tardia no Estado do Rio Grande do Norte. Em nossa pesquisa sobre o espaço regional, tomamos as vozes dos agenciadores culturais como substrato discursivo a fim de refletir como a própria cultura norte-rio- grandense se vê na condição de produtora de uma realidade artística e cultural, construindo relações entre o mundo e a localidade. Alguns artistas foram considerados, no imaginário popular, como figuras representativas da cultura no Estado, destacando-se, nesse âmbito, as figuras de Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, que trouxeram, a partir da linguagem artística do modernismo, as inquietações de um mundo em transformação, inaugurando um olhar sobre a arte e sobre a realidade social e cultural no Rio Grande do Norte naquele período na cidade de Natal. De acordo com Gurgel (2001, p. 78), 24 [...] Embora tais exposições possam hoje ser consideradas anacrônicas, os quadros nelas expostos, não causaram espanto menor que dos da Malfatti e dos outros intrépidos artistas que em 22 participaram da mostra da Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo. Segundo Dorian Gray Caldas, para o II Salão de Arte de Natal, contou-se com o apoio de Câmara Cascudo, Zila Mamede, Antônio Pinto de Medeiros, Geraldo Carvalho, Luís Rabelo e Veríssimo de Melo, dentre outros. Newton Navarro expôs dez quadros, sendo duas telas de inspiração vangoghiana, e Ivon Rodrigues, por sua vez, teria apresentado trabalhos feitos a lápis comum. Convém ressaltar que este último artista ainda é pouco conhecido na historiografia local, e, segundo estudos de Vicente Vitoriano (2003), Rodrigues não teria continuado a exercer o métier artístico. Sobre Ivon Rodrigues, em entrevista, Dorian Gray Caldas o descreve: [...] Em 1950, eu, Newton e Ivon, um rapaz que tava de passagem, que trabalhava no IPASE, era amigo de Deífilo Gurgel, que Deus já levou! [...]. A gente notou que ele tinha alguma coisa de modernidade, porque ele usava umas meias estranhas, bordadas, e ele usava chinelos, ele não usava sapatos e também a gravata era diferente, era bordada. Então a gente viu nesse rapaz alguma coisa a ver com a modernidade! Justamente, ele já desenhava muito bem. E o que sabe dele é de um trabalho que ele fez sobre Rainer Maria Rilke, o jovem cavaleiro de Rainer Maria Rilke. Ele ilustrou todo esse livro, eu não sei se o texto é dele, se não for dele, também não tem problema, porque ele ilustrou muito bonito o trabalho! Ilustrado todo de lápis. Agora ele era muito econômico, ele fazia umas figuras mais no estilo de Modigliani, pescoço comprido, figuras áuricas.6 Com esse depoimento do artista de Dorian Gray Caldas, analisamos o sentido de modernidade percebida pelos artistas na arte e na personalidade do artista Ivon Rodrigues, convidado para a exposição de 1950. Buscava-se, sobretudo, uma “atitude moderna”, uma nova forma de pintar a realidade vivida por esses artistas, modificando os padrões de figuratividade, baseada nas referências do modernismo europeu e brasileiro, mas com pinceladas regionais. Ressalte-se que a prática de se realizar cópias dos artistas europeus, na época, era vista como um exercício artístico no meio. Dorian Gray Caldas teria apresentado obras de cunho mais abstracionistas naquele segundo salão. Segundo o Jornal A República, edição de 12 de março de 1950, “olhando algumas das suas composições e comparando-as com Portinari, temos a impressão que o famoso pintor moderno brasileiro, diante de Dorian Gray, é o mais acadêmico dos artistas” (CALDAS, 1989, p. 30). Segundo a resenha no jornal, e a seguir o depoimento do artista, 6 CALDAS, Dorian Gray. Entrevista realizada em 05/09/2015 em Natal – RN. 25 este tinha o intuito de romper com a sua pintura figurativa e demarcar seu espaço em Natal como pintor abstrato. Naquele contexto, segundo Caldas, a cidade não conhecia o abstracionismo: Os dois eram figurativos, tanto Newton como Ivon Rodrigues, então eu tinha que fazer uma abstração, a abstração tava em moda na França como uma das modalidades mais inteligentes, mais interessantes da modernidade na França. Ai eu conhecia bem Arp, conhecia bem Delaunay, conhecia bem alguns artistas que faziam pintura abstrata, Kandinsky, Paul Klee, Modrian, já conhecia aquilo de revistas e de ter visto quadros dele. [...] Eu fiz os lunares, que é um estudo da lua, das suas diversas fases, lua cheia, minguante. Mas não é uma coisa muito figurativa, quer dizer muito óbvia, fazia a lua, não! Eu fazia sensações de círculos lunares. Eu fazia uma coisa assim, mais ou menos assim, mas disciplinado, porque eu era um figurativo e tinha que fazer um traço mais disciplinado, círculos mais bem feitos. Mas a minha... era Delaunay, o pintor que me inspirou, ele fazia um raionismo, já é uma escola mais avançada do que a abstração, é uma coisa que vem do raio, da íris, dos olhos, ele olha e ver outras coisas, então eu fiz esse tipo de trabalho abstrato.7 Fica evidenciada a identificação na produção artística de Caldas com a arte abstrata, sobretudo, no princípio do seu trabalho como artista plástico em Natal/RN. Ao buscar construir seu lugar social, do ponto de vista estilístico, a imagem de modernidade carregada no discurso desse artista mostra-se, ainda, embalada por um sentimento que ressoa e ecoa no tempo, de uma cidade que vivia e, de certo modo, consideramos que ainda vive, a tensão entre o moderno e o tradicional. No cenário das artes no Estado é importante destacar que o modernismo operou além das artes plásticas, abrangendo também a música, a arquitetura, a crítica, o teatro, a escultura e a pintura. No caso da literatura, foi por meio do “Livro de poemas” de Jorge Fernandes (1887-1953), em 1927, que se tramaram no tecido poético os ideais expressivos da Semana de Arte de 1922. Dorian Gray Caldas relata como conheceu Newton Navarro e como a arte desse artista o afetou numa época de transição para o estilo modernista, sobressaindo na sua fala o tom provocativo da exposição: Eu conheci Navarro nos anos 48 pra 49. Ele fez uma exposição na Sorveteria Cruzeiro, que hoje é centro comercial na Grande Ponto, tinha uma sorveteria grande, enorme! Foi a época das sorveterias em Natal. [...] Ele veio do Recife e já desenhava bem, ele não era ainda um profissional, mas ele era um talento! Então o talento de Navarro era o desenho, ele tinha algumas coisas em pintura, inclusive três quadros que ficaram muito famosos na época: “Sejamos docemente pornográficos” e outro era “Os frutos do amor amadurecem ao sol”, eram quadros que não tinham nada demais, mas ele colocou um título muito provocativo. Quando eu vi a exposição de Newton Navarro e tomei conhecimento da Semana de Arte Moderna no Brasil, ele me convidou: Dorian! Vamos fazer uma exposição juntos? Eu digo: vamos! Eu disse comigo mesmo, isso é fácil! Quem fazia o clássico, pra fazer pintura moderna, é 7 Idem. 26 quase como (risos)... É quase uma aberração você fazer uma pintura de boa qualidade como era o classicismo, que eu copiava Velásquez, Michelângelo, Leonardo Da Vinci, eu copiava os clássicos e passar pra fazer pintura moderna que é de uma certa maneira uma deformação, uma tomada de novo parâmetro para com a pintura. A pintura moderna tem os seus valores, que é a criação, e além da criação, a deformação é consciente. Quase todos os pintores clássicos da época passaram pra pintura moderna, que a pintura moderna era uma nova tentativa de fazer uma pintura mais livre, menos preconceituosa, menos acadêmica. As pessoas prestavam mais atenção mais pras formas, as formas eram de frutos! Frutos da terra, né! Banana, maçã... essa coisa toda! Mas ficou muito famoso. Outras coisas que ele fazia [...] a iconografia das Igrejas do Recife. E eu me aproximei da exposição, achei a exposição linda!8 Ele testemunha as suas impressões da arte navarreana, argumentando que, ao trazer a representação dos frutos da terra, houve uma aceitação do público, mesmo com os títulos provocativos, aludindo não apenas ao rompimento estético da arte moderna, mas aos padrões culturais de comportamento. A expressão “sejamos docemente pornográficos” se mostra como uma grande ironia, de apreensão da realidade de forma desmistificada. Na segunda metade do século XVII, cria-se uma base sólida para uma teoria da arte, acrescentando todo um imaginário das narrativas de viagem e de exposições. “A par dessa consolidação dos fundamentos da apreciação, a partir de 1746 encontramos a figura nascente do crítico de arte como intermediário entre a obra exposta nos Salões e o público” (DIDEROT, 2013, p. 12). As linguagens visual e escrita estão intimamente ligadas na arte, visto que há uma procura por parte do historiador da arte de tornar legível o visível. Contudo, constrói-se um discurso sobre o objeto artístico que legitimam hierarquias e enquadramentos estilísticos. A partir daí, a proposta da nova história da arte, de caráter interdisciplinar, buscando os significados simbólicos da obra de arte, indo, porém, além, no intuito de observar a construção dos conceitos, de forma a perceber como a cultura e a sociedade se produzem historicamente e, ao mesmo tempo, modelam nosso pensamento sobre essa prática humana. Na concepção de Didi-Huberman (1998, p. 8), “a historiografia francesa da arte dos anos sessenta entrou em diálogo com as ciências humanas, a linguística, a semiologia e a psicanálise”. Esse teórico vê a iconologia (método que visa à interpretação da imagem) como uma “camisa de força”, uma forma totalizadora que sujeita o visível ao legível, propondo uma dialética do visível, problematizando a imagem, sua produção e recepção num espaço de conflitos dialéticos. Para Jorge Coli (2004), as atividades do historiador e do crítico de arte na maior parte das vezes se juntam, quando aquele analisa as obras e julga como um juiz o objeto artístico, o que geralmente não produz conhecimento teórico. Com isso, podemos dizer que a 8 Idem. 27 postura empregada por esse profissional pode instituir uma determinada visão sobre o trabalho do artista, repercutindo em todo espaço social e histórico no qual se insere a obra do pintor. Nesse percurso, cabe fazer uma distinção entre a crítica de arte configurada no século XIX em reação ao Impressionismo elaborado por artistas franceses como Manet, Monet, Renoir, Cézanne, dentre outros, e a existente hoje no mundo contemporâneo, que “teme” dizer o que não é arte, o que não seria “digno” de estar numa galeria, num salão oficial. Assim, um espaço codificado e instituído de fruição artística dita o objeto de arte, desde que Marcel Duchamp provocou a arte e a sociedade com um urinol assinado e exposto como obra de arte, fazendo, na verdade, uma espécie de antiarte, que institucionalizou esse modelo vanguardista. Para Peter Bürguer, A assinatura [...] transforma-se em signo de desprezo frente a todas as pretensões de criatividade individual. Pela provocação de Duchamp, não apenas se desmascara o mercado da arte como instituição questionável em que a assinatura conta mais do que a qualidade da obra que ela subscreve. [...] Os ready-made de Duchamp não são obras de arte, e sim manifestações (BÜRGUER, 2012, p. 100). O professor aposentado do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), crítico de arte e também marchand em Natal, Antônio Marques, nos relatou em entrevista sua experiência como profissional e amigo de vários artistas do cenário artístico do Estado. Marques nasceu em 1943 em Bom Jesus, uma cidade pequena do Rio Grande do Norte, destaca que seu interesse pelas artes começou ainda criança. O entrevistado lembra que não escolheu estudar um curso específico, mas estudou filosofia da arte, estética, teologia e história da cultura, e, como professor, sempre colocava a questão: o que era a arte? Ao lançar essa questão, procurava discutir os significados artísticos para cada cultura do mundo, mediante a subjetividade que tal questão nos impõe como seres humanos, integrados tanto social quanto culturalmente. Em 1966, viaja para a Bélgica, passando uma temporada de dez anos na Europa, onde estabelece a sua vivência nos museus, tendo feito, inclusive, estágio no Museu do Louvre em Paris. Quando retorna a Natal em 1975, funda a Galeria Conviv’art, instalada no Centro de Convivências da UFRN. Em seu depoimento, ele mostrou as dificuldades do artista local em divulgar a sua arte, bem como as minúcias do difícil processo que é consolidar espaços de arte em Natal. Podemos dizer que Antônio Marques foi responsável por criar um mercado de arte no Estado, pois também abriu, no mesmo período, a Galeria de Artes do 28 Centro de Turismo, uma construção do século XIX na qual funcionou a antiga cadeia pública de Natal/RN. O movimento modernista é central no Brasil. [...] Você tem que fazer referência sempre a 22. 1922 é a virada, é a hora que o Brasil deixa de ser neoclássico, deixa de ser aquela pintura acadêmica e passa a ser modernista [...]. Esse marco repercutiu no Brasil lentamente, então chega primeiro ao Rio, [o] que é natural, é quase concomitante, não é! Chega a Belo Horizonte, às cidades do Sul e tal, chega em Recife nos anos 40. [...] Em Natal só chega nos anos ‘49, com Newton Navarro, porque vinha de Recife, quer dizer era daqui, mas estudava em Recife. E lá ele tinha esse contato com esse pessoal, com Cícero Dias... Reinaldo Fonseca, muitos artistas que já ‘tavam imbuídos desse espírito modernista. E aí é que entra Dorian Gray, também com, com Newton, mas já nos anos 50; Newton é [de] ‘49, a primeira individual modernista, e Newton e Dorian [em ‘50] com a coletiva, e [com] um outro artista chamado Ivon Rodrigues. Aí eu acho que esse é o grande ano, é o grande ano da virada do Rio Grande do Norte. Antes disso, vamos dizer 22 já tinha repercutido, assim no final dos anos 20 com Erasmo Xavier, mas Erasmo Xavier9 era mais um chargista, era mais um caricaturista, não era um pintor propriamente [...]. Ele era mais um gráfico, que é uma coisa muito bonita, que é uma antecipação muito grande pra época [...]. Mas até essa época de 50’, eu acho que não tinha em Natal um movimento [...]. Podia ter um artista ou outro.10 A visão do depoente é que em Natal não existia um movimento de arte anterior a essas duas importantes exposições para o cenário artístico local de Newton Navarro e Dorian Gray Caldas. A “novidade” nas artes trazidas por esses artistas, portanto, tem como principal referência a Semana de Arte de 1922. Podemos compreender que a arte moderna chegou lentamente ao Rio Grande do Norte, de modo que essa mensagem modernista vinha já imbuída da lógica regional nordestina trazida por Newton Navarro no final dos anos 1940, já que em 1946 ele viajou para Recife a fim de concluir seus estudos e tentar ingressar na Faculdade de Direito. Contudo, seria frequentando os ateliers dos artistas pernambucanos Lula Cardoso Ayres, Hélio Feijó e Reinaldo Fonseca que se afirmará como artista: Dois nomes crescem em importância: o de Cícero Dias e o de Augusto Rodrigues. O primeiro, pelo impacto que causou em Recife quando, chegado de Paris, realizou 9 O depoimento de Antônio Marques revela um artista ainda pouco estudado no cenário norte-rio-grandense. Erasmo Xavier foi artista plástico, destacando-se como chargista e caricaturista. Morreu aos 25 anos de tuberculose, em 23 de abril de 1930. Segundo biografia feita por Rejane Cardoso, Xavier “tinha o ímpeto dessa gente revolucionária, que faz movimentos, provoca a ruptura” (CALDAS, 1989, p. 134). Com isso, inferimos que a tendência do modernismo nas artes no Estado foi experienciado primeiro por Erasmo Xavier, ainda nos anos 1930, mas foram Newton Navarro e Dorian Gray Caldas que realmente se tornaram, na historiografia local, os artistas precursores dessa estética que questionava a supremacia do academicismo. Acreditamos que pode ser o fato destes terem encontrado no final dos anos 1940 e início dos anos 1950 condições mais favoráveis para uma maior aceitação, além do apoio de intelectuais do Estado como Zila Mamede, Câmara Cascudo e outros. Além disso, deve-se considerar o fato de eles terem vivido mais, produzindo uma obra de grande repercussão, ainda, porém, por ser mais estudada. 10 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015 em Natal – RN. 29 uma exposição de arte abstrata na sisuda Biblioteca Pública do Recife. O segundo, por ter inaugurado a Escolinha de Arte do Brasil e, com isto, iniciado o Movimento das Escolinhas de Arte, ainda em 1948 e já no Rio de Janeiro. Depois da exposição de Cícero Dias, um grupo de artistas ativos na época organizou uma outra Mostra que é registrada como o I Salão de Arte Moderna do Recife, montada na Biblioteca da Faculdade de Direito. Newton Navarro participou desta coletiva exibindo quatro aquarelas. Vendo que havia descoberto a razão de sua existência, Newton abandona de lado as esperanças de seu pai em vê-lo advogado e retorna a Natal onde realiza sua primeira exposição individual (GERSON LUIZ, 1974 apud CARVALHO, 2003). Destarte, o nacionalismo, que desde o Romantismo se manifestava na cultura brasileira, se afirma com o Modernismo na condição de um projeto de unidade nacional, buscando consolidar a arte brasileira no mundo. Sob esse prisma, é possível dizer que artistas como Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, considerados precursores da arte moderna no Rio Grande do Norte, se apropriaram também das leituras regionalistas, tanto na poesia quanto nas artes visuais. De acordo com Vicente Vitoriano (2003, p. 58), “dentro dos ideais regionalistas, Newton Navarro preencheu sua obra com a paisagem e os tipos humanos do nosso estado e é considerado o mais perfeito tradutor visual de sua terra, particularmente Natal”. Navarro estudou em Recife, frequentou ateliers como o de Cícero Dias, e buscou em sua obra as temáticas regionalistas, como os folguedos populares, vaqueiros, pescadores, temas religiosos a exemplo daqueles ligados a Jesus Cristo e São Francisco de Assis, que se configuram, hoje, como topoi para a tradição iconográfica no Estado para os pintores Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa. Dorian Gray Caldas, acerca de quem falaremos mais adiante, além da pintura, nos anos 1970 desenvolveu trabalhos de tapeçaria, gravuras e cerâmica, tendo como temas norteadores a mitologia popular do Nordeste, as marinhas, a fauna e a flora, e os casarios antigos. Podemos citar ainda Thomé Filgueira, em cujas paisagens surgem os canaviais e engenhos de Ceará Mirim, o rio Potengi em Natal, as representações da região litoral do Estado, povoadas com paisagens bucólicas, em que se observam bois e vacas imersos em cores e pinceladas impressionistas. Desse modo, vê-se costurar a renda do grande painel artístico do Rio Grande do Norte, em que o mar, as dunas moventes quase abstratas de um Dorian Gray Caldas, os campos de algodão de Newton Navarro e os canaviais de Thomé falam sobre sua terra natal, uma Natal germinada em uma regionalidade nordestina. Como nos relata Durval Albuquerque Jr., analisando o Nordeste como uma construção imagético- discursiva a partir do conceito de região, 30 O Nordeste é gestado e instituído na obra sociológica de Gilberto Freyre, nas obras de romancistas como José Américo de Almeida, José Lins do Rêgo, Raquel de Queiroz; na obra de pintores como Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres etc. O Nordeste é gestado como o espaço da saudade dos tempos de glória, saudades do engenho, da sinhá, do sinhô, da Nega Fulô, do sertão e do sertanejo puro e natural, força telúrica da região (ALBUQUERQUE JR. 1999, p. 35). O marchand Antônio Marques, quando perguntado acerca de uma suposta identidade regional potiguar, informa que costuma enxergar o mundo com uma circularidade de ideias e de informações que impediriam a construção de um traço marcante e identitário para as artes do Rio Grande do Norte. Observa, contudo, que há uma maneira singular de representação desse espaço: Eu acho que tem uma maneira de ser potiguar na pintura, isso eu acho! E ... Assim, sobretudo esse campo [de] mais de uma pintura, vamos dizer... figurativa, eu acho que existe, assim, uma vertente nordestina, brasileira, ou melhor, potiguar. [...] Agora, de qualquer maneira [...], toda arte é contextualizada, então nossa arte tem que ser contextualizada, você vai ver que a temática, a forma de apresentar muitos temas, eu diria, é muito própria, a paisagem, a gente ‘tá diante de um quadro de Fábio Eduardo11, de repente esse quadro é fácil de dizer que foi pintado por um potiguar, porque tem uma paisagem [o Morro do Careca, em Ponta Negra, Natal/RN], porque tem uma maneira de ser potiguar, esse chorinho, essa coisa. [...] É, então eu defendo um pouco isso, sabe? Não sou radical de achar que a pintura norte-rio-grandense ‘tá muito marcada por um traço que, onde se chegar, vai se dizer: essa é norte-rio-grandense! (risos) Não, isso não! [...] Eu acho que nós temos uma arte internacional hoje; o termo que eu diria é esse, internacional. Mas com raízes, com influências locais e, eu acho que [isso] não é ruim, o que é ruim é quando você só tem o internacional! Que perdeu a raiz; tem muita gente perdendo, isso ‘tá acontecendo muito [...]. Eu acho que você corre muito o risco de você ficar centrado no que os outros países estão fazendo e perde a sua própria identidade.12 E é “nessa maneira de ser potiguar na pintura” que conforme diz Marques, não marcada por um traço próprio do ponto de vista estilístico, mas, sobretudo, por uma iconografia potiguar, num conjunto de temáticas, da paisagem, como a do Morro do Careca em Ponta Negra/RN, os artistas elaboram uma imagem para o Estado. Quando nos diz que “o que é ruim é quando você só tem o internacional! Que perdeu a raiz; tem muita gente perdendo, isso “tá acontecendo muito”, percebe-se um discurso da perda dos territórios existenciais, visto que “perder a raiz” pode ser entendido como o sentido de identidade construído para o espaço potiguar, que reclama ainda a afirmação de uma identidade ou de sua perda. Os referenciais simbólicos incutidos na ideia de “raiz” nos remetem à busca por 11 Fábio Eduardo é um artista plástico que surgiu na geração de 1980/90 em Natal e produz arte figurativa, trabalhando com óleo ou aquarela, cujas representações pictóricas bebem do “fantástico”, aludindo à escola cubista, com um traço delicado. As figuras do folclore popular nordestino são um dos temas recorrentes em sua obra, assim como a paisagem de Natal, sempre ocupada pela presença humana. 12 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015, em Natal – RN. 31 uma autenticidade cultural que se congela e passa a ser um discurso de verdade, embora haja uma aceitação da interferência externa, do mundo globalizado, de uma arte internacional, que não afete as instâncias identitárias. Ao problematizar a questão da concepção de identidade potiguar como algo não natural, e acima de tudo constantemente reclamada, João Maurício Gomes Neto (2010) tenta historicizar essa noção identitária e aborda uma potiguaridade endossada numa rede discursiva que constrói o imaginário para o Estado, que reclama sua perda ou sua inexistência. Segundo ele, nas últimas décadas do século XIX há a invenção de uma tradição potiguar, na qual se verifica a construção das identidades espaciais por meio da patrimonialização de bens culturais diversos no Estado: A emergência de núcleos praticamente autônomos no interior da capitania do Rio Grande do Norte, aliada a dificuldade de comunicação entre eles, tornou difícil a emergência de um discurso identitário homogeneizador, apesar de tentadas várias iniciativas neste sentido. Assim, acabou por se constituir no estado três núcleos regionais independentes entre si: o litoral com Natal, o oeste com Mossoró e o Seridó, capitaneado por Caicó (GOMES NETO, 2010, p. 27). Com isso, percebemos a constituição histórica dessas espacialidades, pois, apesar das tentativas unificadoras, formam-se, a partir desses núcleos de força política, espaços com discursos e práticas demarcados, reivindicando uma particularidade cultural. Contudo, ao discutir acerca de uma possível identidade para a região do sertão e para o litoral, Marques confessa não crer em uma separação, devido ao intercâmbio cultural dos artistas entre esses espaços, destacando que essas experiências são salutares para o processo criativo: Agora, o sertão e o litoral, aí eu não acho muito [distintos], não; aí acho menos. Por quê? Esse intercâmbio é muito grande! Esse intercâmbio talvez no passado fosse marcante, mas de ‘50 pra cá, que é [de] quando data realmente esse período que a gente ‘tá falando, quem nasceu em Caicó vive em Natal, quem nasceu em Natal vai a Caicó, [...] tanto que aqueles temas, de cangaço, num é? Ninguém pintou mais vaqueiro do que Newton, mas Newton não era um homem do sertão. Mas ele percorria, sabia, se informava. E eu acho que também quem ‘tá no sertão vem muito à cidade, “participa” do litoral, e se Assis [Costa] pintar uma marinha, [...] é muito bem vindo! Eu acho que isso não deve impedi-lo de ter essa vivência, até porque tem a experiência, se tem experiência, pode expressar essa experiência13. Há nesse discurso uma ressonância dessa tentativa de unidade espacial, uma identidade única para o Rio Grande do Norte, defendendo que em relação ao sertão não 13 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015, em Natal – RN. 32 existiria uma particularidade na arte. Segundo a visão de Marques, para pintar o sertão o artista não necessariamente necessita ser do sertão. No exemplo do artista Newton Navarro, percebemos que há certa ausência de especificidade potiguar no sentido de que o sertão, nesse caso, é um tópico universalizado; como também pode ser o sertão de sua infância, pois seus pais eram Celina Navarro Bilro, de Natal, e Elpídio Soares Bilro, da cidade de Angicos, região do Pico do Cabugi/RN. O “sertão” de Newton Navarro pode ser o sertão do Seridó, o qual artista Navarro realizou exposição em Caicó, em 1960. Conforme relata o Jornal Tribuna do Norte (edição de 10 de março de 1960, p. 4), “o pintor seguirá àquela cidade, com alguns companheiros de vida literária de Natal, do grupo Cactos”. Além disso, o espaço seridoense se apresenta na obra navarreana por meio dos campos de algodão, um dos símbolos da região do Seridó. Com essa ideia, Marques também desconstrói a tradicional dicotomia entre litoral e sertão; por meio dessa circulação de ideias, os artistas inscrevem em sua arte as suas experiências de vida no espaço, mas também apreendem as imagens e informações significativas do imaginário coletivo, dado que sua concepção é que para pintar o sertão não necessariamente o artista precisa ser do sertão, nascido nesse espaço. A lógica imbuída nessa discussão é de um imaginário historicamente construído para dar sentido ao lugar, reverberando no tempo em que os sujeitos participam como praticantes e caminhantes do espaço. O signo regional está apropriado como realidade efetiva/imaginária. Destaca-se ainda a ideia da convivência, de experiências vivenciadas, de ter estado no lugar e de um testemunho que fundamenta a tradução pictórica. Sobre a chegada da modernidade em Natal por meio da arte de Newton Navarro, Dorian Gray Caldas relata: Na época dele, não existia, não existia modernidade, mas já via que poderia haver uma perspectiva para a modernidade, ele disse: Ao invés de vocês estarem pintando modelos clássicos, dos gregos, dos romanos... Porque vocês não vão ver os estivadores do cais, trabalhando, levando saco na cabeça, o cotidiano do homem, aí existe arte!14 O seu olhar analisa o tempo em que viveu com o amigo e artista, revelando de modo sutil que naquele momento havia uma mudança de mentalidade que se expressava nos poros da cidade, nas reformas urbanas, nas influências das mídias como o rádio, o cinema e a 14 CALDAS, Dorian Gray. Entrevista realizada em 05/09/2015, em Natal – RN. 33 televisão, nas entrelinhas de uma voz que enuncia os sentidos evocados da vivência em Natal e os novos paradigmas como a arte moderna. Dessa forma, tais deslocamentos e descontinuidades nos revelam a problemática do presente trabalho, que traz a discussão de um sentimento identitário presente nas obras de Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa. Todavia, ao contrário do que ocorre na obra de Newton Navarro, o sertão do Seridó está claramente representado nas pinturas desses artistas, os quais nasceram nesse “ventre Seridó”, ou vivenciaram esse espaço. Ligando-se à matriz simbólica da região, ligam-se por meio da pintura dos signos religiosos, do catolicismo popular, da economia pecuarista e algodoeira que foi responsável pelo povoamento da região e enriquecimento de seus viventes (nomeados seridoenses), da paisagística árida e solar que ilumina as telas dos artistas, produzindo, sobretudo, uma visibilidade para este sertão – Seridó. Assim, um conjunto de enunciados simbólicos se mostra revelador da temática do regional, daquilo que pertence ao universo sertanejo, bem como ao mar, com suas cores tropicais, de cores puras e contrastantes. Pescadores e vaqueiros, trabalhadores populares, foram eleitos para servir como visibilidade e imagem do sertão e do mar, construindo juntos um quadro identitário arquetípico sobre o espaço. Há uma espécie de paralelo discursivo entre esses espaços que, juntos, conformam uma ideia de identidade regional para o Rio Grande do Norte. A pintura regional voltou-se para reforçar uma identidade regionalista. Essa arte produzida no Rio Grande do Norte nasce de situações sociais e históricas, mas também da experiência individual destes artistas com a sociedade que os constituem. Emergia a proposta de costurar uma trama, na qual o fio condutor fosse a imagem. Como forma de buscar sentidos, significações e ressignificações acerca do sertão do Seridó nas pinturas de Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa, neste espaço-escritura destacamos o mar e o sertão como dimensões que se aproximam e se distanciam construindo dadas espacialidades como imagens. Tanto Newton Navarro como Dorian Gray Caldas, figuras icônicas da arte potiguar, pintaram esses universos, dando-lhes rostos, figurando uma fisionomia espacial para Natal, num diálogo com o sertão situado no oposto, numa geografia imaginária e identitária. Enfatizaremos como estes artistas, também embevecidos desse terreno discursivo sobre o Nordeste, fabricaram um mundo. 34 2.2. NEWTON NAVARRO E O SERTÃO Parado morto mar de minha infância [...] Pesado mar sem gesto, mar sem ânsia, Sem praias, sem limites, sem espaços [...] Apenas mar incerto, mar brumoso Criança penetrando no mar morto Em busca de um brinquedo colorido Que julga ver no morto mar vogando [...] (MAMEDE, 1978, p. 157). A poesia “Mar morto”, de Zila Mamede, simboliza estilisticamente as próprias ondas do mar, denotadas pelo uso repetido das consoantes “m” e “n”. Zila Mamede nasceu em Nova Palmeira, na Paraíba, mas passou a sua infância na cidade de Currais Novos/RN, vivendo em Natal os seus anos de juventude. A natureza do mar e do sertão, numa mística imaginária, estava presente na poesia de Zila Mamede. Nesse poema, com o título “Bois dormindo (I)”, dedicado ao artista natalense Thomé Filgueira, os versos nos dizem: A paz dos bois dormindo era tamanha (mas grave era a tristeza de seu sono) [...] Os bois assim dormindo caminhavam Destino não de bois mas de meninos Libertos que vadiassem chão de feno [...] e ausentes de limites e porteiras ‘arquitetassem sonhos (sem currais) Nessa paz outonal de bois dormindo (Idem, 1978, p. 109) O eu lírico se transporta para os sonhos imaginados e limites impostos culturalmente. Como uma metáfora de seus questionamentos sobre si mesma e o mundo social a que pertence, imaginar a paz (triste) dos bois dormindo encerra uma ideia que pode ser interpretada como seus anseios de liberdade, de expressão da realidade feminina, com seus espaços e lugares demarcados historicamente. O referido poema, que aborda com sensibilidade uma “arquitetura dos sonhos”, projeta uma paisagem – nascida de um quadro representando uma cena pastoril, presenteado pelo seu amigo Thomé Filgueira. Dessa forma, elucidam-se as relações existentes entre artistas e poetas, desdobrando-se num movimento artístico que figura no Estado e que ganha espaço principalmente nas décadas de 1950/60. De acordo com o jornal O Poti, edição de 13 de março de 1955, na solenidade de abertura da exposição de Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, realizada no Edifício da Divina Providência, Navarro agradece e afirma: “Nosso movimento é assunto local, para 35 parodiar Charles Chaplin. A nossa luta, sua significação e sua finalidade é, meus amigos, um assunto local” (CALDAS, 1989, p. 32). O tom discursivo do artista e que se vinculava à mídia local era de um movimento de renovação das artes em Natal. Conforme Marques, Só a partir dessa exposição de Dorian, Newton e Ivon Rodrigues, que aí cria aquele clima, coletivo. Aí vem na sequência, Túlio Fernandes, Tomé, esse pessoal todo, Leopoldo Nelson [...] são os discípulos, vamos dizer da primeira hora. Então aí eu vejo que teve essa grande virada! E essa grande virada permaneceu muito forte, eu acho que até os anos 70, 80, todo mundo só fazia referência a esses artistas. E depois de 80 pra cá, o modernismo, que no mundo todo se transforma com essa coisa do pós-modernismo, com essa coisa de mais abertura, de mais informação, então a gente não pode mais dizer que a arte é tributária necessariamente desse movimento, eu acho que eles continuam influentes, mas a influência agora é menor e os artistas estão mais abertos a coisas que acontecem em outros países, em outras regiões e com outros estilos15. Ao ser entrevistado, o artista Dorian Gray Caldas reflete sobre o fato de ter havido, por parte dele e de Newton Navarro, um interesse em oferecer oficinas de arte de forma gratuita. O objetivo dessas oficinas consistia, sobretudo, no repasse de experiências aos demais artistas locais interessados na arte modernista, constituindo uma nova geração de pintores que iriam dialogar com as várias vertentes do modernismo, consolidando o campo de arte moderna na cidade de Natal. Para ele, houve um movimento que se germinava nessas ações de artistas inquietos e mobilizados em traduzir as transformações ocorridas na arte mundial para a realidade local: Gratuitamente, nós pedimos uma sala emprestada à secretaria de educação, eles nos cederam porque era altruístico, era uma atividade que não dava despesa a ninguém, nem ao Estado. E nós fizemos durante algum tempo... demos aulas aos novos artistas, Jussier, Jomar Jackson, Iaperí Araújo, Iaponí, todos, todos aqueles artistas que estavam curiosos, sabe! O que era arte moderna. Eu tinha um atelier, mas o meu atelier era pequeno, eu não podia receber as pessoas como eu gostaria de receber, meu atelier ficava na Treze de Maio, era pequeno o atelier, eu expunha alguns quadros, mas não dava pra fazer um movimento assim como eu queria. Fiz lá exposição lá de Iaperí, e fiz outras exposições [...]. Newton com a palavra dele, que era eloquente, Newton falava muito bem! Tinha um poder de persuasão muito grande e tinha uma maneira de falar muito, muito... carinhosa, a cor da voz dele era também, era muito bonita! Se diferenciava de mim, porque eu falava muito pouco, hoje eu falo muito [...].16 Além desse aspecto da movimentação em torno do clima de modernidade que se manifestava nas artes, havia também o intercâmbio de ideias, que faziam de artistas e de poetas como Dorian Gray e Newton Navarro aclamados pintores. Nesse circuito das artes, a 15 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015, em Natal – RN. 16 Idem. 36 própria Zila Mamede teria feito o texto de apresentação da primeira exposição de Assis Marinho em Natal. A produção artística negava as fronteiras, pintava e poetizava o espaço norte-rio- grandense, instituindo, dessa forma, uma visibilidade regional. Conforme Michel de Certeau, “o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida por um urbanista é transformada em espaços pelos pedestres. Do mesmo modo, a leitura é o espaço produzido pela prática do lugar, constituído por um sistema de signos – um escrito” (CERTEAU, 1994, p. 202). A leitura consiste numa inscrição no espaço; assim, a forma como descrevemos e interpretamos uma imagem ou texto é também uma prática do lugar. As imagens do mar e do sertão presentes na poesia de Zila Mamede prefiguram um sentimento de que esses espaços são produzidos pelas sensibilidades artísticas tanto no campo da literatura como nas artes plásticas, sendo entendidos como um construto de afetos, de sensibilidades que enredam os sentidos, como chama atenção Michel de Certeau (1994). O mar de Zila Mamede é o de infância, perdido em memórias, em fragilidades e mistérios íntimos exemplificados pela imensidão; mas também é um mar vivido, praticado, da Natal em que a poetisa se desenvolveu profissionalmente e se fixou, e em cujo mar ela partiu da vida17. Vicente Vitoriano Marques Carvalho (2003) analisa a figura de Newton Navarro e o identifica como um flâneur, alguém que observa e participa da vida cultural, deslocando-se no espaço citadino, revolvendo este com a sua arte, também assumindo diferentes posicionamentos nos contextos político e social que dão forma ao seu próprio personagem. Desde criança Newton Navarro Bilro demonstrava interesse pelo desenho, rabiscava com giz as calçadas, segundo Sheyla Andrade (2013). Navarro nasceu em 08 de outubro de 1928, em Natal, na Avenida Rio Branco. Na adolescência passava férias nas casas dos tios na Redinha, lugar expresso na sua arte. Segundo Andrade (2013), o pai, Elpídio Soares Filho, era natural de Jardim de Angicos, um agricultor que veio a se tornar um classificador de algodão e que, nas horas vagas, praticava o ofício de artesão, esculpindo em madeira. Sobre seu pai, Newton Navarro afirmou: “Quando ele via um desenho meu, chorava. Papai era filho de vaqueiros. E às vezes dizia: ‘eu devia ter ficado aboiando gado’ [...]. Era do sertão, tinha um pedacinho de terra por herança, perto (da Serra) do Cabugi” (ANDRADE, 2013, p. 37). Esse era um índice importante da vida do referido artista, que contribuiu para pensarmos como o sertão e as praias de Natal foram significativas na sua produção artística. 17 Zila Mamede, considerada uma das maiores poetas no Estado do Rio Grande do Norte e do Brasil, morreu afogada na Praia do Meio, próxima ao Forte dos Reis Magos, em 1985. 37 Newton Navarro saiu de Natal para Recife/PE no segundo semestre de 1945, com o intuito de concluir o curso colegial, o científico, no Colégio Marista. Todavia, por não ter suportado o rigor da escola, transferiu-se para o Colégio Joaquim Nabuco; depois, tentou cursar Direito, conforme queriam seus pais. Ainda consta ter passado nos exames de seleção, mas não seguiu o curso. Algum tempo depois, procurou a Faculdade de Arquitetura, onde encontrou o professor Lula Cardoso Ayres, que iria ministrar um curso livre de pintura na Escola de Belas Artes; porém, o período de inscrição já havia passado. Por meio de Odilon Ribeiro Coutinho, Navarro conseguiu convencer Gilberto Freyre, recentemente empossado como Deputado Federal constituinte, a redigir de próprio punho uma carta de apresentação para Lula Cardoso Ayres (CARVALHO, 2003). Além disso, frequentou os ateliers de artistas como Reinaldo Fonseca e Hélio Feijó, proporcionando um estudo que estava além de uma escola de arte como instituição. A vivência com os outros artistas que já trilhavam uma carreira consolidada favoreceu um mundo de conhecimentos, vivências e experimentações que afetaram a produção de Newton Navarro de forma indelével. Para Carvalho (2003, p. 23) “Navarro fora a Recife já, muito certamente, em busca de empreender uma carreira ligada às artes visuais”. Àquela época, a cidade de Recife vivia um movimento intelectual, literário e artístico que nutriu de forma intensa a obra de Navarro. Conforme ele mesmo cita: Era o Recife... e eu não me cansava de senti-lo. Tocando-o com mãos de desejo. [...] Vendo-o nas suas cores mais belas. Cores que somente mestres como Lula, Cícero, Aluízio sabem guardar em telas. [...] Era o Recife, ali, me envolvendo de lembranças... Os seus pátios, seus becos, suas varandas. O estendido das suas avenidas novas. [...] Uma cidade que sabe nos prender entre um braço de mar e um braço de rio, com verdes canaviais ao longe, e cantigas de marinheiros sentados em velhas barcaças... (NAVARRO [1981] apud CARVALHO, 2003, p. 117). O fato de ter-se deparado com a exposição de Cícero Dias, pintor radicado há muitos anos em Paris e um dos poucos brasileiros a ter contato com Pablo Picasso, gerou na arte de Navarro um forte impacto. “A exposição de Cícero Dias, nas palavras do próprio Newton, ‘abalou’ a capital pernambucana por se tratar de uma mostra – talvez a primeira – que remontou ao abstrato na arte e, portanto, ao modernismo” (ANDRADE, 2013, p. 30). Nesse ambiente de grandes transformações nas artes no mundo e no Brasil, além da experiência em Pernambuco, Newton Navarro foi também escritor e poeta. Fez desenho e pintura com André Lhote, artista e crítico francês da escola cubista. No Rio de Janeiro, estudou gravura com Oswaldo Goeldi. A esse respeito, relata em entrevista do Museu da Imagem e do Som da USP: 38 Houve um tempo na minha vida, não vou negar, tanto no Recife como depois, no Rio de Janeiro, de exposição que eu fiz apresentando a influência dos traços do Aldemir Martins, porque é um nordestino como eu. [...] Eu sei que cangaceiro não privilégio só de Aldemir Martins, como a rendeira também, cada um pode pintar uma rendeira a sua maneira (ANDRADE, 2013, p. 82). Recife ocupava um papel central na fabricação da identidade nordestina. Conforme já discutimos, no início do século XX dois movimentos são importantes para compreender a produção dos espaços como projetos de nação, de região e de localidade: de um lado, estava o modernismo paulista, que delineava uma produção artística que buscava renovar as linguagens da arte incorporando o modernismo europeu, com ideais futuristas, ao mesmo tempo em que trazia o tema da paisagem brasileira e de ícones rurais cruzando com o universo urbano que se desenvolvia no país. Exemplos disso são as diversas pinturas de Tarsila do Amaral que tratam dessa “antropofagia” da forma “estrangeira” com a temática que indicava um sentimento de brasilidade. Por outro lado, essas ideias se contrapunham ao saudosismo e tradicionalismo que impregnavam os discursos do regionalismo nortista/nordestino, voltado para a manutenção de uma tradição que permaneceria intacta contra qualquer ventania que corroesse as estruturas sólidas desse espaço regional nordestino, reforçando, ao longo dos anos 1930, toda essa concepção nas artes, na literatura e nas artes plásticas. Gilberto Freyre foi quem liderou o movimento regionalista-tradicionalista de 1926, reivindicando um maior índice de brasilidade para o Nordeste, naturalizando a visão de que os ex-escravos foram acolhidos pelos coronéis nos engenhos de cana-de-açúcar, enquanto nas regiões Sul e Sudeste a mão de obra foi substituída por imigrantes europeus, fugitivos das guerras e da fome que assolava o continente. Newton Navarro foi, então, lido em sua cidade como um artista que soube homenagear a sua terra, pintar e traçar, como um exímio desenhista da paisagem física e humana de Natal. Segundo Ângela Almeida: Foi assim um homem do mundo e da sua terra [...]. Foi amigo de Câmara Cascudo, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Jorge Amado, Lula Cardoso Ayres, Oswaldo Goeldi, André Lhote, Pancetti, John dos Passos, Érico Veríssimo, entre outros [...]. Newton conviveu com cada um, às vezes de modo mais íntimo, outras vezes mais formalmente. (ALMEIDA, 2015, p. 182) Esse artista visitou museus e instituições culturais em Buenos Aires no ano de 1951 e esteve em diversas cidades da Europa em 1964 e em 1966. Desta última viagem, porém, 39 existem poucos registros. Realizou, ainda, diversas exposições coletivas e individuais, em Natal, Recife, João Pessoa, Fortaleza, Salvador, Lisboa, Madri e em Paris. Além de pintor, foi escritor, poeta e dramaturgo, tendo ilustrado os cadernos do Diário de Pernambuco. Na Academia Norte-riograndense de Letras ocupou a cadeira do poeta Jorge Fernandes e criou a Escolinha de Arte Cândido Portinari (EACP) em 1962, introduzindo o ensino de arte moderna no Estado potiguar. É importante enfatizar que a EACP Contou com total apoio do então governador Aluízio Alves, o qual assumiu o Governo do Rio Grande do Norte em 1961, derrotando nas urnas o governador da época, Dinarte Mariz. Grimaldo Ribeiro, primo de Newton, era o líder da campanha de Aluízio, denominada “Cruzada da Esperança” [...]. Provavelmente, Grimaldi Ribeiro, que veio a se tornar secretário de Educação do Estado, incentivou esse projeto de Newton Navarro. E Aluízio Alves abraçou a ideia, sem olhar pelo retrovisor para as ligações políticas de Newton Navarro com forças antagônicas, como o prefeito de Natal, Djalma Maranhão. (ANDRADE, 2013, p. 90) Vê-se, mediante o exposto, como os arranjos familiares e políticos no Estado estão relacionados à produção artística, sendo utilizados sobremaneira para garantir a manutenção do poder estabelecido. É importante frisar a participação de Newton Navarro no governo de Djalma Maranhão18 em Natal: no início dos anos de 1960, ele foi assistente na Secretaria de Educação e Cultura, dirigida por Moacyr de Góis. Ao lado de Mailde Pinto, que ocupou vários cargos públicos na cidade, instalou três bibliotecas de empréstimos de livros, nos bairros das Rocas e nas Quintas em Natal. À frente da Diretoria de Documentação e Cultura (DDC), sob a administração de ambos, foi erguida na Praça André de Albuquerque, no centro da cidade, a Galeria de Arte Cândido Portinari, uma Concha Acústica e uma Biblioteca Popular intitulada Biblioteca José de Alencar. A Galeria de Arte foi inaugurada em 08 de março de 1963, com uma mostra do pintor Francisco Brennand. A Galeria era aberta ao público natalense diariamente, com mostras de arte popular, fotografia, pintura, desenho, cerâmica. Havia uma exposição permanente de Chico Santeiro, artista local que trabalhava com escultura em madeira. Havia também exposições de caráter didático-pedagógico com reproduções de artistas famosos, como a de Picasso, por exemplo (RIBEIRO, 2007, p. 03). Do lado externo da Galeria de Arte 18 Djalma Maranhão, principal liderança política da esquerda em 1960, administrou a cidade de Natal por duas vezes, sendo a primeira administração compreendida no período de 1956 a 1959 e a segunda entre 1961 e 1964. Em 31 de março de 1964 afirmou solidariedade ao Presidente da República, Dr. João Goulart. Deposto, exilou-se no Uruguai, onde veio a falecer em 30 de julho de 1971. Transportado em avião da VASP, com as despesas pagas pela família e com autorização concedida, através da interferência do Senador Dinarte Mariz junto ao Ministro do Exército, General Orlando Geisel, foi sepultado em Natal, no cemitério do Alecrim, acompanhado por uma imensa multidão. (Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/potiguariana/djalma_discursos/ 12_djalma_maranhao_dados_biograficos.htm. Acesso em: 01 mar. 2016). 40 havia um painel de Newton Navarro, em estilo afresco, que tinha como temática o Boi de Reis e seus principais personagens. A Galeria de Arte foi completamente destruída no período da Ditadura Militar e Mailde Pinto foi presa e considerada subversiva pelo regime militar (ANDRADE, 2013). Djalma Maranhão ficou conhecido pela campanha de alfabetização intitulada “De pé no chão também se aprende a ler” e pelas políticas de incentivo à cultura com as Praças de Cultura distribuídas em vários pontos da cidade. Nas várias facetas de Navarro, “ele circulou por várias frentes políticas, inclusive antagônicas. No entanto, jamais as portas lhe foram fechadas” (ANDRADE, 2013, p. 129). Pode-se verificar a rede de apadrinhamento que circulava no Rio Grande do Norte em torno das artes, principalmente em relação a Newton Navarro, o qual representava em pintura os ícones regionais do Estado, favorecendo a perspectivas políticas diversas. Dorian Gray Caldas, em entrevista à equipe da DHNET realizada em 02 de agosto de 2015, lembra a importância que teve a ação política do então prefeito de Natal, Djalma Maranhão, para o desenvolvimento cultural da cidade, considerando que houve de fato um momento de promoção da cultura. Especialmente sobre a Praça de Cultura instalada na praça Albuquerque Maranhão, Dorian recorda a rede de sociabilidade que se gestava naquele âmbito artístico, dado que havia um encontro com as manifestações artísticas da época, os artesãos, as apresentações folclóricas com “Os Congos”, a “criatividade anônima”, no dizer desse artista, representando algo que estaria expresso em sua obra. Nesse contexto, Câmara Cascudo teria aberto as portas para a história do folclore, os autos da cidade, de modo a expressar um discurso que enaltecia uma autenticidade atribuída à cultura local, ora redescoberta pelo literato. Fica subentendido que o interesse maior dessa política pública era demarcar uma identidade norte-rio-grandense com uma repercussão na mídia nacional. Sendo visto como uma prática cultural que envolvia toda a geração artística da época reunidos na praça, expondo na Galeria, debatendo poesia, literatura, artes plásticas, cultura popular que tinha como intuito criar uma visibilidade e uma autenticidade da cultura do estado. A aproximação que Navarro possuía com o poder instituído no caso de Djalma Maranhão e Aluísio Alves, demonstra a sua capacidade de se adaptar as circunstâncias políticas do momento, usufruindo de uma posição social e de um reconhecimento do seu trabalho na sociedade natalense. Como já dito, a primeira Exposição de Desenhos e Pinturas de Newton Navarro, então com 20 anos de idade, aconteceu entre dezembro de 1948 e janeiro de 1949 no salão contíguo à Sorveteria Cruzeiro, no “Grande Ponto” da capital. A exposição estava composta 41 de cinquenta e sete trabalhos, entre aquarelas, bicos de pena e estudos a nanquim, carvão e óleo. Segundo Vicente Vitoriano, Navarro não obteve nenhum apoio nem estímulo e assistência institucional; teria contado com um carpinteiro que lhe ofereceu madeira e trabalho. Tais acontecimentos como os dois Salões de arte Moderna de 1949 e 1950 marcaram a vida cultural da cidade, deixando marcas da expectativa de modernidade no imaginário coletivo na capital Natal – e do próprio estado – registrando que de modo contraditório os dois artistas tornaram-se referencias nas artes plásticas do estado do Rio Grande do Norte. Apesar da pintura não ser uma arte popular e que circulava demasiadamente no meio intelectual, no campo de atuação dos artistas, marchands, galerias e público consumidor, Newton Navarro e Dorian Gray Caldas tornaram-se patrimônio cultural do estado, ainda que a grande maioria das pessoas ainda não os conheça. A obra de Newton Navarro e as artes do Rio Grande do Norte sofrem de carência de um estudo mais profícuo, diante da diversidade de produções nas últimas décadas. Essa obra é, sobretudo, em nossa compreensão, um relato, uma narrativa pictórica de uma região, uma arqueologia dos sentimentos de afeto, de relação do homem com o meio que o codifica socialmente e culturalmente. Segundo Ângela Almeida, Navarro desenhou, pintou a representação mais autêntica da vida nordestina, isto é, vaqueiros, cangaceiros, pescadores, rendeira. Como ele mesmo disse: “Minha temática é o Nordeste. Mesmo quando pinto Dom Quixote (pinto-o) vestido de vaqueiro, com traços característicos do homem nordestino”. (ALMEIDA et al, 2001, p. 114). 42 Figura 1. NAVARRO, Newton. Dom Quixote, 63 x 34 cm. Pastel Seco, 1965. Na técnica de “pastel seco”, uma obra navarreana datada de 1965 (Fig.1) apresenta um Dom Quixote e seu cavalo Rocinante pintados com traços estilizados, trazendo um colorido sóbrio e equilibrado, dominado pelos ocres, vermelhos e verdes, com contornos que lembram a arte oriental: as gravuras japonesas. Um sol que marca o sertão simbolicamente ilumina todo o espaço pictórico, ao passo que seu cavaleiro lembra as armaduras medievais, fonte de inquietação do personagem Quixote de Miguel de Cervantes. Uma simplificação de elementos que carrega força e simbologia, a figura frágil por trás da armadura ergue-se como uma escultura sobre seu cavalo não menos frágil, gerando uma sensação de tensão, de 43 desproteção. O sol que acende a tela pode ser visto como a luz que ver na cidade que vive Natal, ou o sol de suas lembranças de infância vividas no sertão. Newton Navarro passava as férias escolares, geralmente na fazenda dos tios, irmãos do seu pai. Eram as fazendas Bo’Água, em Baixa Verde, que ainda pertenciam ao atual município de Angicos e depois Bela Vista, segundo informa Carvalho: Estas imagens também iriam preencher suas memórias, atestando como foram tocantes para ele as conformações geológicas, a variedade cromática dos vegetais, o movimento e os sons dos animais e toda a complexidade do universo humano, particularmente [...]. O sertão e as praias foram ambientes percorridos na infância que se tornariam referências determinantes, respectivamente, das obras literárias e visuais de Navarro (CARVALHO, 2003, p. 102). Considerar esses aspectos discursivos do próprio artista ao descrever seu universo de criação prescreve uma maneira de olhar, nutrida de uma regionalidade, desenhada pelo acontecimento do modernismo na arte brasileira. Newton Navarro visitou a Espanha, conheceu a cidade de Mancha e segundo afirma em entrevista catalogada no livro de Ângela Almeida (2015, p. 177), sentiu a necessidade de transportar o ambiente daquela região, “fazer um Dom Quixote plantando a aridez do nosso sertão. Através de um traço seco de nanquim”. Na pintura do artista plástico Assis Costa, que será discutida nos próximos capítulos, verificamos essa identificação com o universo temático navarreano. Contudo, Costa nos confirmou em entrevistas19 ter tido pouco acesso à arte de Navarro, em termos de um maior conhecimento sobre a sua trajetória artística, além de nunca ter viajado para outros países, como o fez Newton Navarro. No entanto, esse imaginário do sertão está representado na obra desses dois artistas, uma vez que ambos são afetados por uma construção imagético- discursiva acerca do Nordeste, por uma rede de saber e poder que fabrica a ideia de região. Vejamos duas obras de Assis Costa que exemplificam essa visão sobre as figuras de Dom Quixote e Sancho associadas ao imaginário sertanejo. Ressalta-se que os personagens principais da obra de Cervantes (1605) possuem uma rica tradição na história da arte, principalmente nas gravuras do francês Gustave Doré, produzidas no século XIX, e na arte brasileira por meio de Cândido Portinari, numa série de gravuras e pinturas iniciada em 1956. No Rio Grande do Norte, Newton Navarro pintou o cavaleiro Dom Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança; deste legado iconográfico, Assis Costa e Assis Marinho, assim como outros artistas potiguares como Fábio Eduardo e Marcelus Bob, realizaram suas leituras e 19 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 44 reelaborações sobre a obra literária mais local e universal do mundo, que na concepção de Schopenhauer (2001, p. 89) “é uma alegoria a vida de todo homem”. Na tela Dom Quixote no sertão (Fig. 02), uma obra de Assis Costa produzida em 2012, a qual fez parte da exposição “Seridós”, realizada na Pinacoteca do estado do Rio Grande do Norte nesse mesmo ano, o homem destemido que imagina enfrentar gigantes em forma de moinhos olha para o céu vendo nuvens em forma de dragões. Em postura desafiadora, conjectura seu tempo e o tempo cíclico da natureza. O Dom Quixote-vaqueiro de Assis Costa veste seu gibão de couro ricamente adornado como a simples armadura de Dom Quixote, um sonhador de invernos para o sertão. A obra realiza uma estilização dos principais ícones identificativos desta paisagem, a vegetação na base do primeiro plano, composta de macambiras, as pedras e as cabras faz-se como uma arquitetura construída para simbolizar a região. As cabras são como signos de resistência às secas, elas são personagens centrais nesse jogo de composição, que indica movimento, na direção de suas cabeças e de seus olhares. Uma das cabras, de cor branca, possivelmente está grávida e é a única a olhar para o espectador. De um alto, Dom Quixote, caracterizado de vaqueiro, confabula com o céu. Toda a paisagem criada pelo artista parte de signos reais, como as serras e os casarios antigos do Seridó, porém é por meio da imaginação, que este suposto real torna-se uma imagem identitária. 45 Figura 2. COSTA, Assis. Dom Quixote no sertão. Acrílica sobre tela, 60 x 80 cm. 2012. Coleção Particular. 46 Figura 3. COSTA, Assis. Dom Quixote e Sancho no Castelo Di Bivar. Pintura sobre papel com Vinho. 2013. Coleção particular. A segunda representação, a pintura Dom Quixote e Sancho no Castelo Di Bivar (Fig. 03), executada com a técnica que o artista intitula “vinarela” (neologismo criado para designar a técnica “aquarela pintada a vinho”), foi uma das vinte e seis obras da exposição “Dom Quixote de La Manchas de Vinho” ocorrida na Livraria Saraiva, Midway Mall-Natal, de 20/06 a 19/07/2013. A paisagem da região se dilui num líquido “estrangeiro” (o vinho), apontando um caminho para o Castelo de Bivar20, no meio da vegetação de cardeiros e xique- xiques. Quatro personagens de Cervantes (o Quixote, Sancho, o cavalo Rocinante e o jumento Ruço) encarnam o ideal de sertanejo guerreiro, que enfrenta as intempéries climáticas e se constrói em relação à natureza ácida/árida do sertão. O que identifica o sertão do Seridó nessa pintura é a representação do Castelo localizado no município de Carnaúba dos Dantas pertencente à região. O artista atualiza o tema adaptando a iconografia de Dom Quixote ao espaço sertanejo, abordando o próprio universo de imaginação quixotesca, da sua suposta 20O “Castelo Di Bivar” foi erguido em 1984, em pleno sertão, no município de Carnaúba dos Dantas, região do Seridó, e fica a 219 km da capital Natal. 47 “insanidade” à imagem também inesperada de um castelo em estilo medieval edificado no sertão. Depois dessa breve iniciação à obra de Assis Costa, um dos artistas contemplados na presente pesquisa, voltemos ao artista Newton Navarro. Conta-nos Elizete Vasconcelos Arantes Filho (2004) que Newton Navarro pintava os cenários de Natal, como o Farol de Mãe Luiza, do Porto, das praias e barcos, também pintou o sertão, onde suas tecelãs fiam numa paisagem ensolarada, de cactos e algodões. Primava mais pela linha do que pela cor (um elemento de destaque na obra de Dorian Gray). Desempenhou em sua arte diversas técnicas: aquarela, nanquim, pastel, guache, acrílica, óleo, além de ter experimentado técnicas inovadoras como borra de café e chá. Como suportes principais, papel e tela, e, ao lado de Dorian Gray, produziu inúmeros murais na cidade de Natal, adotando principalmente a técnica giz de cera e acrílica (chamada de técnica mista). Embora tenha estado em grandes centros do mundo, o cosmopolitismo de Navarro era mesmo intelectual ou literário e, como Cascudo, ele era “um provinciano incurável”. Amava a mobilidade sem nunca desobedecer ao chamamento telúrico de sua Natal [...]. O sertão e as praias foram determinantes, respectivamente, das obras literárias e visuais de Navarro. Daí, há sempre um lirismo embalando a memória navarreana no registro de imagens sertanejas em sua obra literária. Por outro lado, a presença do mar e do rio, especialmente a Redinha e o Potengi, que muito identificam a Cidade do Natal na sua obra, tem maior ênfase nos trabalhos de artes visuais. (CARVALHO, 2003, p. 2-3) Para Isaías da Silva Ribeiro (2011), isso seria uma especificidade da produção muralista local, na qual teria mantido diálogo com o moderno mural brasileiro, tendo como referenciais o edifício do MÊS (RJ) e a Igreja da Pampulha (MG) incorporando as obras parietais (Murais, azulejaria e relevos) na arquitetura parietal da cidade de Natal. Artistas como Newton Navarro, Dorian Gray Caldas e Marlene Galvão dentre outros, se referenciavam nas pinturas de Cândido Portinari, Emiliano Di Cavalcanti e Aldemir Martins. “A narrativa visual veiculada nos murais locais evocou as figuras dos pescadores, vaqueiros e agricultores como símbolos das atividades econômicas” (RIBEIRO, 2011, p. 145). Elementos como o sol, o mar e a caatinga surgem nas imagens pictóricas de Navarro para identificar o Rio Grande do Norte. Na obra de Navarro é, sobretudo o desenho e o seu movimento que desperta maior atenção. Na análise de Vicente Vitoriano, prevalece um enaltecimento do artista, imbuído por um sentimento de pertencimento e de identidade: 48 Navarro mostra todo o vigor de um grafismo próprio, não obstante sermos compulsoriamente levados a comparar o seu trabalho, com o de outros muralistas brasileiros, particularmente Portinari, apesar mesmo da falta de cor. Mas Navarro reserva as suas peculiaridades, como a capacidade de mostrar movimento e leveza em seus esquemas, que tendendo ao geométrico e abusando das retas, também remetem ao cubismo, fonte formal indiscutível de muitos artistas modernistas brasileiros (CARVALHO, 2003 apud RIBEIRO, 2004, p. 114). De modo geral, mesmo absorvendo a simplificação geometrizante (de Portinari, por exemplo) e todo o contexto da arte moderna, postulou em sua estética artística e na mensagem intrínseca da obra a sua forma de ver o homem sertanejo. O homem nordestino de Portinari é corroído pela seca; para Durval Albuquerque Jr., a pintura portinariana “é a expressão mais acabada da tentativa de conciliação entre uma visibilidade clássica e uma visibilidade moderna” (ALBUQUERQUE JR. 1999, p. 249). Entretanto, compreende-se que a versão de Navarro sobre o sertanejo nordestino é impregnada da mentalidade que se desenha para a região do Seridó, como um povo forte, resistente – uma massa de corpos musculosos a se poetizar numa imagem símbolo do sertão. Isso é significativo para compreendermos uma fusão da visibilidade moderna e regionalista, quando o conteúdo intrínseco da obra permanece clássico e a sua forma adquire traços modernistas, criando uma tensão e ao mesmo tempo conciliação entre os ideais conservadores do regionalismo e o modernismo. No caso de Portinari, principalmente na década de 1930, se caracteriza principalmente uma memória de infância, exemplificada na série os “meninos de Brodósqui”, nos espantalhos e nas festas populares. A arte como uma comunicação de uma ação social, ao retratar os camponeses, retratou a sua própria história, como descendente de imigrantes italianos que vieram trabalhar nas lavouras de café. Conhecido na história da arte brasileiro como pintor social, especialmente pela série dos Retirantes tendo como fulcro discurso as secas ocorridas no Nordeste no início do século XX. O ideal que norteia a arte do chamado pintor social, é que ele crer ser um interprete do povo, com isso entende-se que não há arte neutra, o quadro sempre indica um sentido social. Portinari diz em vários documentários que acreditava ter pintado o mundo que o rodeava. Havia experimentado toda a sorte de tendências, espantalho, autorretratos, todas as coisas frágeis e pobres se pareciam com ele. “Picasso, Picasso fulmina-me!” Já nos anos de 1940 há uma maior politização da sua obra, com as referências ao muralismo mexicano21 e a sua cooptação do Estado, sendo considerado pintor oficial do 21 Os muralistas constituíram o grupo mais atuante e criativo que formava a vanguarda cultural revolucionária do México, com forte sentido do valor social de sua arte [...]. A posse do primeiro líder revolucionário, Alvaro 49 Estado Novo. É nesse contexto que “é escolhido a elaborar grandes painéis voltados para a exaltação da nação, do trabalho, da harmonia cultural e racial do país” (ALBUQUERQUE JR., 1999, p. 248). Como um artista que ajudou a construir uma visibilidade para o Brasil, filiado ao partido comunista, sua obra foi utilizada na estratégia de divulgação da política populista de Getúlio Vargas por tratar as dimensões de nação e de povo, produzindo figuras símbolos com os traços de uma nação que se modernizava. Assim, “a pintura de Portinari é a expressão mais acabada da tentativa de conciliação entre uma visibilidade tradicional, clássica, e uma visibilidade moderna” (ALBUQUERQUE JR, 1999, p. 249). Sob essas discussões, busca-se uma visibilidade para o país baseada do trabalho, na terra, criando a imagem do homem brasileiro. Para Lucien Lehmkuhl (2011), que analisa a partir da Exposição do Mundo Português, em 1940, a exibição do quadro Café de Cândido Portinari como um acontecimento visual, na ideia de mostrar o Brasil moderno. A realidade social brasileira condensada em signos iconográficos, como os símbolos rurais, a paisagem e o produto do trabalho, a autora diz que: O novo Estado brasileiro estava definindo sua imagem juntamente com a ampliação de seus limites na sociedade. Os anos 30 representaram que esta escalada rumo à constituição de um Estado unificado, total, que estivesse em consonância com os demais Estados nacionais que se fortificaram no período entre guerras. Coerentemente, o Estado brasileiro investiu na sua solidificação e projetou esta imagem ao lançar mão de uma visualidade correspondente à visualidade utilizada nos demais países (LEHMKUHL, 2011, p. 230). Enquanto no espaço nacional as artes plásticas eram apreendidas pelo poder instituído para compor um conjunto de imagens símbolos do país entre as décadas de 1930 e 1940 no Rio Grande do Norte, a pintura de Newton Navarro também estava imersa nesse projeto de definir uma regionalidade para o estado, uma identidade que seria projetada no imaginário nacional, revelando-se, sobretudo, uma espécie de “pintor da cidade de Natal” nas décadas que seguem a sua primeira exposição de pinturas e desenhos de 1949. Contudo para definir essa cidade, foi fundamental criar seu outro potiguar, o sertão e o sertanejo. Obregón, no cargo de presidente, em 1920, iniciou um período de esperança e otimismo durante o qual nasceria o movimento muralista (ADES, 1997, p. 151). 50 Figura 4. NAVARRO, Newton. Colheita de algodão. Nanquim e aquarela sobre papel, 50 x 68 cm, 1982. Museu Pinacoteca do Estado. Fonte da imagem: http://artedomundopotiguar.blogspot.com.br/2011/07/newton-navarro-bilro.html Figura 5. NAVARRO, Newton. Vaqueiro com boiada. Técnica mista: Aquarela e nanquim sobre papel; 84 x 54 cm. 1985. Museu da Pinacoteca do Estado. (Foto: acervo da pesquisa). 51 Nas telas Colheita de algodão e Vaqueiro com boiada, temos duas representações do sertão do artista Newton Navarro. A primeira (Fig. 04), produzida a partir de uma técnica mista (aquarela e nanquim), nos mostra a paisagem de um campo de algodão com trabalhadores ao sol, homens e mulheres com vestes coloridas, que criam força e movimento, recebendo pontos de luz (como flocos de algodão) em seus corpos circundados por uma aura verde, criando sobreplanos, em contraste com um cintilante branco que compõe o fundo, singelamente quebrado pelos contornos da serra azul, criando uma profundidade espacial. O sol não poderia deixar de ser notado; ele já nasceu em sua plenitude! De forma simplificada, em cor alaranjada ele bronzeia a pele dos trabalhadores rurais, mestiços, brasileiros, norte-rio-grandenses, simbolizando a relação íntima do homem e a terra, hibridando-se numa composição simples e direta, de traços elegantes e precisos. Isso evidencia o modo de fazer navarreano, como se num único movimento do pincel suas figuras aparecessem, como numa mágica do artista, surgindo sonhos, recriações do real, através da palheta de cores, aquareladas, densas do nanquim, que contorna e dá forma aos fragmentos de uma cultura visual nordestina, herdeira dos relevos culturais como a cristalização no imaginário coletivo de uma paisagem sempre árida, ensejando um modo de ver a região. Sua simplificação estilística, marca de seu traço, constrói características únicas para seus personagens; seus corpos são um misto de rígidos e dóceis, obedecem a uma elasticidade provocada pelo artista, o qual desafia o olhar do espectador, diante de uma imagem símbolo do regional, transmitindo, sobretudo um conjunto de sentimentos: força, coragem e fé. Como signos naturalmente pertencentes a este espaço e as pessoas que vivem nele, criando uma identidade espacial, sedimentada em imagens sínteses. Estes significados atribuídos ao homem simples, ao sertanejo, ao vaqueiro, ao trabalhador da salinas, são figuras de destaque na obra de Newton Navarro. Cabe lembrar que o corpo humano representado na arte moderna, principalmente pelas tendências estéticas francesas no período da Segunda Guerra Mundial, é aquele do imaginário de um corpo despedaçado, fragmentado, revelando, sobretudo a crise do humanismo ocidental, simbolizando a desintegração de uma ordem existente, expressa em produções artísticas da época (MORAIS, 2002). Nas telas Newton Navarro, o corpo estava inteiro demonstrando solidez, numa imbricação entre terra e homem, sendo agigantado, mas permanecendo arquitetural. Destaca-se que ele pintava na época do abandono da forma figurada pelo neoconcretismo no Brasil, uma arte-objectual e não figurativa, que se desenvolvia num contexto desenvolvimentista, de industrialização e crença na ideia de progresso. Ferreira 52 Gullar que não foi apenas teórico, mas também praticante desta tendência artística que se manifesta no início dos anos de 1950. Analisando posteriormente esse movimento disse: Já muitos anos antes, havia afirmado que a arte neoconcreta levara a experiência da expressão artística a um tal radicalismo que, a partir dali, só restava retornar ao leito anterior, recuperar a linguagem desintegrada e voltar a criar obras que em função mesmo daquela descida aos infernos, tornar-se-iam mais ricas (GULLAR, 2003, p. 08). Navarro parece não ter “desintegrado” sua forma. A colheita de algodão é uma obra pintada em 1982 e mantém a estética originária dos primeiros anos do modernismo no Brasil. Resiste ao imperativo do despedaçamento, das figuras fragmentadas do cubismo, do surrealismo de Dalí ou de Joan Miró e usa alguns expedientes da quebra do naturalismo ilusionismo a favor de um realismo estilizado. Embora haja esse suposto “anacronismo”, a arte não pode se entendida numa perspectiva evolucionista, num encadeamento de etapas; se para Navarro o rompimento com a figuração e com a temática regional eram inoperantes, pois se considerava um “cosmopolita-provinciano”, sua arte expressava, sobretudo, um pertencimento a Natal, constituído a partir dos ícones regionais norte-rio-grandenses. “O sertão do sol e das caatingas foi construído pelo boi e o algodão” (ARAÚJO, 2005, p. 12). A região do sertão seridoense ganha visibilidade com o desenvolvimento da cotonicultura na passagem do Império e início do período republicano, “o ouro branco” como era chamado o algodão, superava o gado e o açúcar como um produto de destaque da economia estadual. As elites dessa região, filhos dos grandes fazendeiros que tiveram acesso aos estudos na faculdade de Direito em Recife traziam incutidos os ideais republicanos, sobretudo interessavam em criar um discurso que sedimentasse uma força política a região do Seridó, encontrado no algodão a maneira de expandir esse imaginário de força e coragem como arquétipos do sertanejo, sendo o algodão Mocó, reconhecido pela excelência de seus fios, com destino a exportação e a confecção de tecidos finos22. Nesse sentido, o Seridó será desenhado pela riqueza trazida pela cotonicultura, o algodão tornou-se, portanto elemento identitário seridoense, permanecendo no imaginário histórico e cultural do estado mesmo após o seu declínio. Nessa outra obra de Newton Navarro (Fig. 05), em primeiro plano, o vaqueiro e cavalo, contorcidos diante do sol, apresentam-se vivos, coloridos; surgem como aparições dentro de uma paisagem monocromática, cinza, composta da vegetação típica da caatinga, 22 Ver MACÊDO, M. K. de (1998). O algodão na economia seridoense. História do RN n@ WEB [On-line]. Available from World Wide Web: . Acesso em: 01 mar. 2016. 53 rasteira, um verdadeiro glossário do mundo vegetal sertanejo – cardeiros, xique-xiques, coroas-de-frade e outras cactáceas espinhosas – feito para o homem forte do sertão, representando um ideal de resistência ao espaço, sujeito a longos períodos de seca, como a se metamorfosear nessa natureza de difícil convivência humana. Trata-se de um lugar inóspito, habitado apenas por um único homem, o vaqueiro e o seu cavalo, que supostamente, na visão construída imagético-discursiva, é quem pode suportar as agruras desse território seco, semelhante aos cactos que sobrevivem nele. Esse lugar que ocupa a imagem do sertanejo como forte e resistente se codifica nas práticas culturais e sociopolíticas do estado, para (in)formar a região do Seridó. São discursos que circulam no corpo social, com seus dispositivos de poder que instauram certa visibilidade a este território real e simbólico. Muirakytan Kennedy de Macêdo (1998) problematizou o momento de criação desse imaginário de resistência do homem sertanejo, construído pelas elites políticas quando das disputas eleitorais no Segundo Império, entre representantes do litoral e do sertão, que procuraram se afirmar politicamente em seus territórios. Para isso, Macêdo analisou crônicas e jornais da época, como O Povo no pleito eleitoral de 07/09/1889. Nesse sentido, utilizou-se dos bens simbólicos presentes no imaginário social para mostrar o poder de superação do homem sertanejo às ameaças climáticas ou às divergências políticas. “Elaborou-se a imagem do homem sertanejo cuja temperança ‘enérgica’ e ‘firme’ era moldada pelo meio. Segundo esse raciocínio, conseguindo resistir à natureza rude, ele não esmoreceria diante de qualquer ameaça” (MACÊDO, 2012, p. 139). Com essa premissa, essa insígnia histórica acerca do sertão e do Nordeste é compreendida como um discurso que se legitima historicamente pelas vozes dominantes, principalmente na década de 1930, quando há a produção de uma literatura regionalista. A identidade cultural nordestina debatida por Albuquerque Jr. é construída por uma rede discursiva que funda esse espaço como região; assim, a historiografia de Gilberto Freyre, os romances de Raquel de Queiroz, de José Lins do Rêgo, assim como as artes plásticas regionais, serão vistos como partícipes de uma dizibilidade e visibilidade sobre o Nordeste. O regionalismo surge como uma arma contra os excessos centralizadores políticos e econômicos e como certa resistência ao universalismo (ou “descentralismo”) representado pelo desenvolvimento capitalista. Assim, nesse ambiente de mudanças de mentalidades, haurido da vivência em Recife, a obra de Newton Navarro se configura com forte expressividade através dos temas, 54 das cores e traços empregados, retratando a paisagem interior desse Nordeste, que se constituía, embevecida, como um espaço afetivo, de saudade. O Recife de sua memória não se apaga. A faculdade de Direito da época do pós- guerra fervilhava de heróis, uma tomada de posição, uma nova visão do mundo, de estar no mundo. A consciência nordestina. Poetas boêmios escrevem discursos, belos discursos, em mesa de bar. (AGUIAR, 1974, p. 09). Nesse contexto, a pintura do artista Newton Navarro está mergulhada neste caldo cultural discursivo, de embates políticos, conflitos regionais, que se consolidam a partir de práticas e discursos. As fronteiras simbólicas se estabelecem como forma de construir uma identidade cultural. Neste âmbito, é crucial compreender que o artista absorveu em Recife na década de 1940, a atmosfera de um sentimento regionalista que se gestava desde 1924, com a fundação do Centro Regionalista do Nordeste em 1924, se afirmando com o Congresso Regionalista ocorrido em 1926. Há uma existência de um confronto regional entre regionalistas e modernistas, conforme nos diz Durval Muniz, tanto José Lins do Rêgo como Gilberto Freyre “Denunciam o caráter centralizador que o marco Semana de Arte Moderna ocupava na história da cultura brasileira” (ALBUQUERQUE JR., 1999, p. 88). Assim, os pernambucanos reivindicam para o Nordeste uma suposta essência do nacional a partir da sua regionalidade, modelada historicamente como o lugar da tradição, nutrida de uma imagem de verdade, a qual carregava em seu íntimo a noção da brasilidade, não contaminada pelos processos de industrialização e modernização que o país vivia. Defendia-se a ideia de moderno, associada com a valorização da tradição, mas não modernista, uma vez que as visões modernistas eram vistas na perspectiva freyreana como desnacionalizadoras. De acordo com Albuquerque Jr; O discurso regionalista surge na segunda metade do século XIX, à medida que se dava a construção da nação e que a centralização política do Império ia conseguindo se impor sobre a dispersão anterior [...] a década de vinte é a culminância da emergência de um novo regionalismo[...]. Freyre considera o seu regionalismo moderno, mas não modernista [...] para ele, moderno era apenas mudança de forma, embora defendesse a manutenção dos mesmos conteúdos (ALBUQUERQUE JR. 1999, pp. 47, 89): O regionalismo tenta criar as identidades pernambucana, cearense e paraibana, pensando o Nordeste enquanto espaço regional. Constroem-se universos simbólicos para a região, e uma necessidade de reforçar as expressões artísticas, literatura, artesanato, pintura, elementos característicos dessa regionalidade. 55 Pode-se dizer que há um tipo de modernismo impregnado de uma regionalidade nordestina que se transfere para as letras e para as artes plásticas do Rio Grande do Norte. Dessa forma, o pensamento plástico e estético de Newton Navarro e Dorian Gray Caldas é movido pelo movimento moderno que traz intrínsecos os modelos europeus em termos formais, mas com conteúdo voltado para certo imaginário popular idealizado como próprio da região, para aquilo que o representava e ao Brasil. Natal se encontra como capital do Estado, enquanto receptora da cultura pernambucana, com uma mentalidade imersa nas tendências modernistas da arte, como, por exemplo, em Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres, contudo ancorados nas ideias nativistas de Gilberto Freyre na busca por criar símbolos regionais, associado a uma cultura patriarcalista e rural. O modernismo que se estabelece nas artes visuais no estado do Rio Grande do Norte modifica a forma tradicional de representação, a forma, mas não o conteúdo, participando das construções históricas e da formação das identidades regionais. Neste sentido, as transformações estéticas artísticas locais estão ligadas aos interesses de intelectuais, de uma elite brasileira em edificar uma paisagem cultural para a região do Nordeste e no caso também para o Rio Grande do Norte, se compreendermos que a pintura de Newton Navarro e Dorian Gray Caldas busca enaltecer uma paisagística de Natal, reunindo particularidades culturais, das festas populares, como boi de reis, o rio Potengi e a praia da Redinha, que integram uma busca maior por uma identidade potiguar. De acordo com o artista: Eu não acho cidade mais bonita que Natal, nem rio mais bonito que o meu rio. Eu vi uma vez o Sena23. Achei uma porcaria. Vi também o Tejo24 e achei também uma porcaria. Mas o Potengi não. Que azul! E os morros que protegem a cidade? E as madrugadas? E as estrelas da manhã? Só em Natal tem essas coisas. A estrela repetida no forte da pedra... Uma cidade coberta de Elíseos, embalada pela canção dos pescadores, enfeitada de um lado e de outro, rio e mar, pelos azuis e verdes e pelas jangadas. Que cidade maior e melhor? Não existe. Nenhuma (NAVARRO, 1974 apud ALMDEIDA, 2015, p. 179). Esse texto reproduz o sentimento de apego ao lugar, pois o rio Potengi é mais azul que o azul do Sena e do rio Tejo em Portugal, os morros e as madrugadas, muito visitadas pelo artista nas noites de boêmia, e as “estrelas da manhã”, afirma, “só em Natal” existem. 23 O rio Sena é situado ao Norte de Paris e corta a capital francesa ao meio até desaguar no Canal da Mancha, no Oceano Atlântico (ANDRADE, 2013, p. 102). 24 O Tejo é rio mais extenso da Península Ibérica. Nasce na Espanha e deságua no oceano Atlântico, banhando Lisboa. 56 Trata-se de um lugar particular, vivido, experienciado pelo pintor que se contrapõe ao universo “outro”, como uma resistência ao moderno, entendido como estrangeiro. Portanto, podemos ver que o discurso visual de Newton Navarro consolida e reafirma uma visão sobre o Rio Grande do Norte, destacando-se Natal por esta ser a sua aldeia afetiva na qual nasceu e à qual dedicou boa parte de suas criações artísticas. Navarro foi um artista que fez uso do imaginário simbólico sobre o sertão e do mar, com temas da cultura popular, como bumba meu boi (na versão potiguar do Boi Calemba), as festas populares, como também com as paisagens do sertão, vaqueiros, pescadores e o futebol. De acordo com Vicente Vitoriano, Navarro fica preso à premência de retratar o Nordeste, por uma herança ou contaminação do ideário modernista brasileiro. Navarro fazia pesquisa formal para melhor desincumbir-se da tarefa de realizar esse registro visual [...]. É tanto que em 1992, ao categorizar as fases pelas quais teria passado em sua arte, ele salientou os temas em detrimento de aspectos formais, em geral tomados como definidores de etapas na obra de um artista. Não obstante ter listado uma fase “abstrata”, uma categorização formal, Navarro disse ter produzido depois de uma fase “telúrica” e, por fim estava vivendo naquele momento uma fase “dos tipos populares”, nesta em que chegaria à plena realização técnica de seu trabalho (CARVALHO, 2003 apud RIBEIRO, 2011, p. 128). Nesse texto de Vicente Vitoriano fica evidenciado como as temáticas das paisagens de Natal, inclusive realizando uma pintura de 1968 sobre a Fundação de Natal, foram vistas pelo artista como uma questão cerne no conjunto da sua obra, assim como o sertão (por meio do seu pai originário de Angicos, no interior do estado), e principalmente em razão da tessitura histórica que está enredada a sua arte, dos significativos simbólicos presentes na sua produção pictórica. Por último, a tela Os Jogadores de Newton Navarro. 57 Figura 6 - NAVARRO, Newton. Jogadores, bico de pena, 45 x 34 cm 1988. Acervo do SESC. Cinco foram os quadros que Cézanne pintou com o tema dos jogadores de cartas, após diversos desenhos preparatórios, e outras telas nas quais aparecem os futuros protagonistas do jogo [...]. Finalmente prescindiu de todo acessório e colocou exclusivamente os dois homens frente a frente, lado a lado da mesa, absortos no jogo e inexpressivos, quase sem nenhum elemento de situação (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007, p. 72) A descrição verbal do quadro Os Jogadores de Cartas de Cézanne criado entre 1890- 1892, substituiu a imagem, para nos concentrarmos nos jogadores de Navarro de 1988. Foi escolhida para compor essa escrita iconográfica por representar a relação do artista norte-rio- grandense com a arte francesa do final do século XIX e pela sua reinvenção a partir da tradição pictórica, pois consiste em dois jogadores de cartas, vestidos com roupas de couro, vestimenta característica do vaqueiro. O cenário é produzido por poucos elementos, porém identificam o interior de uma casa sertaneja; a rede é o descanso desses homens, assim como os Jogadores de Cézanne concentram-se no jogo, é o momento que o trabalhador exerce sua capacidade de pensar, montar uma estratégia de jogo, sente-se com o poder de gerar uma situação de conforto, ao mesmo tempo ele pode ganhar ou perder, é tensão. É a vida que pede descanso. Nesse sentido, os jogadores de Cézanne e de Newton Navarro são distanciados pelo tempo, um pertencente a cultura europeia, que frequenta os bares e desfruta desse espaço de sociabilidade, enquanto os homens identificados como sertanejos ocupam o espaço da casa, do privado. O artista mobiliza um tema da arte moderna para dialogar com as suas referências culturais, na condição de pintor norte-rio-grandense que, através de sua arte, solidifica um imaginário do sertão. 58 Conhecedor da cidade, das ruas, dos becos da cidade de Natal, da Ribeira e da Redinha, Navarro fez versos e plasmou imagens em papel e em telas. Morreu em 18 de março de 1992, na casa de Saúde São Lucas, em Natal. Em 20 de novembro de 2007, no governo de Wilma de Faria, foi edificada “A ponte de todos” Newton Navarro, com o incentivo de amigos e intelectuais como Vicente Serejo, e, posteriormente da Academia Norte- riograndense de Letras, do Conselho Estadual de Cultura, o depoimento da viúva Salete Navarro no Diário de Natal, de 18 de março de 2006 ajudou a reforçar o coro que solicitava para que a nova ponte que liga a Zona leste a Zona Norte, a “Ponte Forte-Redinha”, recebesse o nome do emblemático artista potiguar Newton Navarro (ANDRADE, 2013). Figura 7 - NAVARRO, Newton. Cadernos de estudos. Retirado do livro: Newton Navarro – os frutos do amor amadurecem ao sol de Ângela Almeida (2015). 59 Medir, analisar, interpretar a extensão a obra de um artista é sempre uma tarefa árdua para qualquer pesquisador ou o historiador da arte que trabalha numa perspectiva histórica cultural, os cadernos de estudos, papéis soltos na gaveta do ateliê, esboços, projetos inacabados fazem parte do fazer artístico, pois nem sempre “terminar”, ou dizer o fim de uma obra é uma satisfação para o artista. Diante dessa problemática, a imagem nos oferece uma cartografia esboçada da cidade de Natal produzida por Newton Navarro, caminhos que percorreu, lugares afetivos que estão em suas obras, como a Redinha e a Ribeira, mapeando os bairros antigos como a Ribeira e o jovem Alecrim, uma Natal imaginada e projetada pelo artista Newton Navarro, desenhada e entrecortada pelo mar e pelo rio, uma imagem em construção. 2.3. DORIAN GRAY CALDAS – “O SENHOR DAS ÁGUAS” Eu sou autodidata! Eu comecei a trabalhar com desenho eu tinha 10 anos, no tempo da guerra, em ’45, eu comecei... De 40 até 45. Nós morávamos na Felipe Camarão, uma rua que existe ainda hoje, mas na minha época, na época da guerra, eles chamavam a rua dos Judeus, porque era uma quantidade de enorme de Judeus que moravam, se concentravam na rua Felipe Camarão e eu conheci a guerra de perto por conta deles, porque quando a Polônia foi invadida, eles mostravam retratos, mostravam revistas que vinham lá na Polônia, alguns familiares que morreram; quer dizer, era um clamor! Né! E eu tomei a ideia da guerra já muito cedo e já naquela época, aos 10 anos eu já desenhava bem, eu digo que eu desenhava bem, porque eu copiava artistas do cinema, figuras dos meus livros escolares e quadrinhos também, eu lia muito quadrinhos.25 Nesta escritura, voltaremos o olhar para a obra de Dorian Gray Caldas, artista que pintou a sua cidade Natal com a visão da modernidade. As principais transformações estéticas e culturais do século XX podem ser vistas na forma e nos conteúdos de sua pintura, cujos temas orbitam entre marinhas, casarios antigos e a cultura popular, uma paisagem cultural do Rio Grande do Norte produzida por uma regionalidade nordestina. Caldas é um artista que viveu durante toda a sua vida em Natal, nasceu em 1930 e hoje com 85 anos de idade, sua obra mobiliza-nos a refletir sobre os movimentos da arte e a tensão existente entre uma necessidade de modernizar a arte brasileira influenciada pelos novos padrões vigentes do mundo, que desconstruíam a maneira acadêmica de representação artística e a produção de uma visibilidade norte-rio-grandense baseada nos símbolos de identidade cultural construídos na história do Estado. 25 CALDAS, Dorian Gray. Entrevista realizada em 05/09/2015, em Natal – RN. 60 O artista Dorian Gray Caldas inicia a sua história de vida na pintura, falando da rua onde viveu a sua infância, o impacto que a Segunda Guerra Mundial teve no seu imaginário de criança, pois essa rua era conhecida como a “rua dos judeus” devido à presença de judeus que viviam nessa região da cidade. As fotografias de familiares falecidas na guerra, revistas que vinham da Polônia com as notícias da Europa foram experiências trazidas por esses vizinhos judeus que, segundo o artista, teriam deixado as marcas do horror do que foi a guerra, sentida por uma criança que esboçava seus primeiros desenhos. Já no período da adolescência, em torno dos quinze anos de idade, a literatura clássica, o cinema norte- americano, a leitura dos quadrinhos compunham o universo plural de referências imagéticas e intelectuais para o artista aprendiz. Assim, as cópias dos retratos de artistas do cinema norte-americano, como Charles Boyer, Ann Sheridan, Linda Darnell, foram seus primeiros exercícios de desenho clássico que eram orientados pelo seu tio Moura Rabelo26, pintor de orientação classicista no Estado. Ele copiava as imagens dos artistas, mas na época não existia uma compreensão de que havia uma política de expansão das imagens dos artistas norte-americanos. Inclusive algumas pessoas solicitavam postais e retratos sendo enviados pelo governo, produzidos pelos melhores fotógrafos da época, os quais criavam a imagem de perfeição desses personagens da indústria cinematográfica dos Estados Unidos, como uma forma de alimentar uma visão associada à beleza e ao sucesso. No contexto do pós-guerra de propaganda política na guerra fria entre as forças imperialistas antagônicas entre os Estados Unidos e a União Soviética essa política cultural norte-americana chegava ao Brasil como ressonância do acordo de alinhamento do governo brasileiro aos chamados países aliados na Segunda Guerra Mundial. Dorian Gray Caldas era amigo de Newton Navarro e seu parceiro na vida artística, é um artista plástico, tapeceiro, escultor, poeta, operando desta forma nas várias dimensões da arte, inclusive em gravura e cerâmica. Esse artista ao lado de Newton Navarro e Ivon Rodrigues, na Exposição de 1950, no Antigo Casarão ocupado pela Cruz Vermelha, deu os primeiros passos no movimento modernista no estado, como já foi discutido anteriormente. Em depoimento a Isaias da Silva Ribeiro (2011) relata: “O Newton, com trabalhos figurativos, na linha da pintura europeia, com tendência ao estilo picassiano e eu, com trabalhos abstratos, fazendo uma pintura já influenciada por Kandinsky, Paul Klee e Mondrian”. 26 Manoel de Moura Rabelo (1859-1979) é caracterizado, no livro-catálogo de Artes Plásticas do Rio Grande do Norte (1989) de autoria de Dorian Gray Caldas, como um artista que construiu uma obra de caráter documental, retratando principalmente vultos do cenário político e social do Estado e do Brasil, como retratos do Padre João Maria, Ferreira Itajubá, General João Varela e Getúlio Vargas, primando por uma arte academicista. 61 O seu testemunho elucida-nos a erudição de uma artista que se nomeia autodidata, que teve acesso à literatura desde muito jovem por meio da biblioteca do seu pai, que havia sido contador da Firma Alves Brito há quarenta anos, mas que por motivos de rumos da empresa, que passou a ser investidor de edifícios, segundo Dorian Gray Caldas o seu pai veio a sofrer abalos financeiros decorrentes deste fato, sendo assim, o teria impossibilitado de ter estudado fora de Natal. Livros de escritores como Machado de Assis, José de Alencar e Humberto de Campos, não teriam lhe causado o mesmo encantamento que os autores da Literatura de renome mundial, como Victor Hugo, Charles Dickens, Homero e os quadrinhos. Dorian diz que por volta dos 20 anos, foi muito importante a colaboração de um amigo chamado Geraldo Carvalho, médico pediatra, pertencente a uma família tradicional de Goianinha/RN. Era um crítico de cinema, colecionador de antiguidades como moedas, livros e Revistas. Segundo Dorian Gray Caldas ele lia muito bem francês e emprestava os “Cahiers de l’art, o qual conseguia compreender apesar de não ter estudado francês. O intelectual tinha correspondência com a França e a Inglaterra, tendo fundado uma Revista Literária em Natal e o convidou para fazer a capa da Revista. Para Dorian Gray Caldas foi por meio dessa amizade que ele passou a ter conhecimento da arte moderna, do que acontecia no mundo das artes e da cultura. Nesse contexto, nos anos de 1950, a arte europeia já tinha se desdobrado nos vários “ismos”, tendências que “superavam” o impressionismo como um momento de cisão entre a arte clássica e a moderna. Como ele mesmo cita: Eu tive a sorte de conviver com a arte internacional nos anos 50, sorte! Porque esse companheiro meu, que era escritor, ele era contista, ele lia no original, ele lia muito bem francês e inglês. Ora, ele trazia livros dos Estados Unidos, eu tomei conhecimento de Hemingway, de escritores americanos e ingleses, Tomas Hard, lindo! [...]. Eu tomei conhecimento também da modernidade na França, André Gilles, Jean Cocteau, Sartre [...]. Então, havia a facilidade de fazer a leitura e principalmente de ver a pintura que se fazia no mundo inteiro na naquela época. Foi uma coisa assim, que aconteceu, ele não emprestava livro para todo mundo, emprestava para mim porque era amigo dele e eu tive acesso a esse manancial de cultura muito cedo. Além dos livros nossos né! Hoje os livros brasileiros, os livros natalenses, a obra de Cascudo, que eu li toda. Os poetas do Rio Grande do Norte, eu li também todos, Ferreira Itajubá, naquela época [...] 27. Após a exposição de 1950, ele torna-se professor, já almejando conquistar independência financeira com o intuito de casar-se com Wanda Dione Caldas, sua esposa até hoje. Ele relata das viagens que realizou com a família ao Rio de janeiro, as cidades históricas de Minas Gerais, como São João Del Rei e Congonhas, e à Brasília, quando da sua exposição 27 CALDAS, Dorian Gray. Entrevista realizada em 05/09/2015, em Natal – RN. 62 a convite de Oswaldino Marques, poeta, escritor e membro do Conselho de Cultura de Brasília. Sobre essa viagem, afirma que, apesar de ter recebido passagens de avião, preferiu viajar em um carro modelo fusca tendo em vista o propósito de “ir conhecendo o país”. Destacou-se em funções públicas de caráter cultural como Assessor da Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte, da Fundação José Augusto, Conselheiro e Membro do Conselho Estadual de Cultural, Diretor do Teatro Alberto Maranhão e da Escolinha Cândido Portinari, que passou a ser chamada “Escolinha de Arte Newton Navarro”, dois anos após a morte de seu idealizador, numa iniciativa do então presidente da Fundação José Augusto, Iaperi Araújo, em 1994 (ANDRADE, 2013). Em entrevista a Elizete Arantes (2008) confessa que nunca pleiteou conseguir tais cargos. Realizou exposições coletivas nas cidades de Mossoró, Rio de janeiro, São Paulo, Recife, Fortaleza, Goiânia, Buenos Aires e Washington. Fundou a arte de tapeçaria no estado em 1970, com a exposição na Biblioteca Pública Câmara Cascudo – Natal. Quanto às individuais registra-se as que foram realizadas, em Olinda, no Estado de Pernambuco, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Brasília e em Natal. Recebeu prêmios importantes como a medalha de ouro no Grand Prix da Bélgica, em 1971. Conforme Antônio Marques, Dorian Gray sempre soube cultivar simultaneamente a gravura, a escultura, a tapeçaria, além do jornalismo, do ensaio e da poesia, mas afirma que houve de 1950 a 1970, uma predominância da produção pictorial (CALDAS, 1989). Faz uso de variadas técnicas, como óleo, aquarela, grafite, bico de pena e acrílica, produzindo ainda hoje, aos 85 anos, em seu atelier, pinturas, gravuras e ilustrações para livros de sua autoria e de outros autores locais. A tapeçaria na obra de Dorian Gray se realiza nas décadas de 1970/80; mais de duas mil peças foram produzidas, conforme relata em entrevista a Elizete Arantes (2008) com a ajuda de 40 bordadeiras, pois ele desenhava e depois as mulheres preenchiam, caracterizando- se suas tapeçarias, sobretudo pelas cores intensas, tendo a flora e a fauna locais como temas. As vendas o teriam impulsionado a continuar, tendo contrato com o Banco do Brasil e Banco do Nordeste; vendia para empresas, e ao próprio Roberto Marinho, fundador da Rede Globo, a políticos, ao governo estadual, destacando o período em que Cortez Pereira governou (1971/75), ao qual fornecia obras constantemente. Existem tapetes assinados por Dorian Gray Caldas em todo o estado, nas repartições públicas, em vários estados do Brasil e no exterior, tendo exportado para o Canadá, Alemanha e conseguido um prêmio na França com a tapeçaria. Vários intelectuais do Brasil, incluindo escritores como Gilberto Freyre, teriam adquirido tapetes do artista. 63 O artista diz que quando visitou a exposição dos artistas modernistas, Le Corbusier, Matisse, viu os tapetes de Genaro de Carvalho, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, fato que lhe causou grande entusiasmo para experimentar essa arte artesanal milenar originária da Índia. Afirma que construiu sua vida, em termos de patrimônio, com a tapeçaria, mas que depois de vinte anos ininterruptos teria ficado insatisfeito, sentindo necessidade de novas criações na pintura e na literatura. Seu universo temático dispõe de marinhas, folguedos, casarios, lendas e mitos do folclore brasileiro, além dos painéis em pintura que narram acontecimentos históricos do Rio Grande do Norte. O crítico de arte Antônio Bento reflete que “nas paisagens campestres como nas cenas das praias natalenses e em composições diversas, Dorian Gray Caldas tenta fixar a atmosfera e o caráter de sua terra, através de formas e cores, de incontestável valor telúrico ou nativo” (CALDAS, 1989, p. 115). Após o diálogo com a pintura abstrata é que viria a sua aproximação e opção pela pintura figurativa nos moldes de Portinari, Di Cavalcanti e José Pancetti (RIBEIRO, 2013). O aspecto telúrico de sua pintura é notado pelo crítico Antônio Bento, que destaca tratar-se de cenários da cidade de Natal, sua urbanidade, sua natureza, uma representação espacial ligada ao sentimento de identidade que se busca construir e reafirmar. Dorian Gray Caldas é um homem erudito, de personalidade serena e tímida para seus amigos, como nos diz o marchand Antônio Marques, ao contrário de Newton Navarro, o qual relata ter sido extremamente orador e popular. Marques traça um perfil do mercado de arte no Estado, isto é, quem procurava adquirir obras desses artistas e como as pessoas viam o artista na época, um trabalho de divulgação realizado por ele a fim de possibilitar um circuito comercial de obras de artistas potiguares tanto em contexto interno como externo. Com isso, contribuiu para fortalecer a imagem do Rio Grande do Norte a partir da sua produção de seus artistas, incentivando as temáticas que definiria a região, como a paisagem da cidade de Natal e as manifestações culturais populares, como Boi de Reis e o Pastoril. Um homem extremamente popular, [Navarro] aberto, gostava de dialogar, conversar, contar histórias, era brilhante na conversa! Brilhante! Dorian não, [...] sempre foi, assim... mais individualmente, assim... aquele temperamento mais reservado, mas também muito amigo, muito... Eu digo muito assim, eu acho que esse temperamento muito reservado de Dorian até trouxe uma certa dificuldade pra ele, isso você pode dizer: qual foi a dificuldade? A dificuldade é que Natal conhecia Newton Navarro de uma maneira assim, vamos dizer, intensa! Newton era um herói dentro da cidade. Dorian apesar de grande artista e ser reconhecido, mas o pessoal tinha um pouco de medo de Dorian e é tanto que Newton o povo comprava Newton, os professores compravam Newton, quem tinha dinheiro comprava Newton. Quando eu chego em 75, é que eu consigo conversar com Dorian e dizer a ele, Dorian vamos vender seus quadros! Eu vou começar a vender seus quadros. Aí por isso que você viu na galeria muitos quadros de Dorian, porque eu realmente divulguei e mostrei 64 para a população, [...] mostrei que Dorian não era um artista assim, tão distante e tão caro quanto as pessoas pensavam, era um artista tão acessível quanto Newton.28 Torna-se importante observar essas questões de cunho mais biográfico e da situação social e cultural na qual está inserido o artista, e atentar ao embrionário mercado para as artes plásticas do Rio Grande do Norte, especificamente Natal. Desenvolvia-se um interesse no consumo desta arte, que falava dos temas regionais nordestinos, demarcando também a paisagem potiguar, sendo o litoral um dos principais motivos da obra de Dorian Gray Caldas, tendo as marinhas como marca de seu trabalho, e enquanto o sertão apresentava-se com mais ênfase na arte de Newton Navarro. Assim, tratar das circunstâncias sociais históricas e culturais que participam das produções artísticas é algo que, na história da arte, foi trazido pelo historiador alemão Aby Warburg, que percebeu que as obras de arte deveriam ser abordadas em seus diferentes aspectos e na diversidade de seus componentes artísticos, iconográficos, históricos e sociais (CASTELNUOVO, 2006). Enrico Castelnuovo, nos alerta que as obras de arte, têm na realidade além dos valores estéticos, também as dimensões sociais, culturais e políticas e é tarefa do historiador da arte lê-las em sua complexidade. Posto isto, esboçaremos uma narrativa que tenta escavar as camadas de sentidos, acumuladas e sedimentadas historicamente sobre a região do Seridó, e para isso, a arte produzida em Natal, por artistas emblemáticos como Dorian Gray Caldas e Newton Navarro, vistos como referenciais na história das artes plásticas no Estado, forma um painel visual de memórias acerca desse espaço. Contudo, ressalto que as pretensas definições de uma obra não esgotam seus significados, pois de acordo com Jorge Coli “diante de qualquer obra, o olhar que interroga é sempre mais fecundo do que o conceito que define” (2005, p. 11). Observamos as seguintes pinturas de Dorian Gray: 28 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015, em Natal – RN. 65 Figura 8 - CALDAS, Dorian Gray. Procissão dos navegantes. Acrílica sobre compensado, 160 x 220 cm, 1983. Museu Pinacoteca do Estado. Fonte: http://galeriaifrn.blogspot.com.br/2014/02/caminhos-da-modernidade-dorian-gray.htm. Figura 9 – CALDAS, Dorian Gray. Pescadores. Acrílica sobre compensado, 160 x 120 cm, 1983. Museu Pinacoteca do Estado. Fonte: http://galeriaifrn.blogspot.com.br/2014/02/caminhos-da-modernidade-dorian-gray.html. 66 Figura 10 – CALDAS, Dorian Gray. Sem título, 50 x 60 cm, 2014. Fonte: http://galeriaifrn.blogspot.com.br/2014/02/caminhos-da-modernidade-dorian-gray.html. Sejam em telas, em desenhos em Bico de Pena, nas suas tapeçarias “fauves” (nas palavras de Antônio Marques, em referência às cores intensas utilizada pelo grupo de artistas franceses que fundaram o “Fouvismo”)29, os mitos, as lendas potiguares narradas por Câmara Cascudo, aparecem na arte de Dorian Gray Caldas. A sua forma de pintar os símbolos culturais do Rio Grande do Norte já deixou marcas no espaço norte-rio-grandense, uma iconografia construída há mais de 60 anos, pois ainda continua atuante, pintando em sua casa- ateliê e realizando exposições. Na primeira obra (Fig. 08), identificamos pescadores de corpos azuis, travestidos do próprio mar, do lugar que tira seu sustento e os tenta definir. Vestidos de branco, prática peculiar aos devotos dos cultos afro-brasileiros, equilibram o colorido vibrante de verdes, ocres, vermelhos; possivelmente uma festa no mar - a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes, que possui uma procissão fluvial, sendo o ponto mais significativo da festa popular. Um outro índice a ser percebido é a imagem da santa no barco criada por Dorian 29 Essa história começa um pouco antes de 1905, um grupo de artistas formados por Matisse, Vlaminck, Manguin, Valtat, Guérin, Puy e Vuillard resolveram pintar paisagens, em pequenas cidades de praia da costa francesa. A ideia era pintar sem se preocupar com temas grandiosos – uma praia, uma janela, um barquinho [...]. Também abandonaram a necessidade de fazer contornos das formas. Desejavam pintar diretamente com a cor [...]. Esses artistas assumiram sua atração pelas massas de cor, em suas diversidades de tons e intensidades (CANTON, 2002, p. 40). 67 Gray, a qual apresenta-se diferente da tradicional Maria com o menino Jesus, aqui recriada pelo artista, em uma espécie de adequação estética. No mesmo quadro, está o culto a Iemanjá, revelando os processos híbridos da cultura brasileira, unindo os rituais católicos a o culto de matriz africana. Há em Dorian Gray Caldas uma representação de um elemento do sincretismo, que valoriza esse (tropo) sincretismo, como forma de compreensão e criação da brasilidade. No caso de Nossa Senhora dos Navegantes, a comparação com Iemanjá deu-se pela forma como aquela santa é representada – sempre com o mar ao fundo, pescadores em alto mar, e ainda aparecendo com um barco aos pés. O sincretismo entre Iemanjá e Nossa Senhora (da Conceição; da Glória; dos Navegantes) não aparece em todas as regiões do Brasil, sendo mais comum no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Em geral, segundo os estudiosos das religiões afro-brasileiras, aceita-se mais o sincretismo com Nossa Senhora dos Navegantes. Iemanjá é uma divindade cultuada no Daomé, atual Benin. A tradução do seu nome é “mãe cujos filhos são peixes”. Esse é mais um elemento na representação pictórica do artista que mostrando seus estudos sobre a cultura brasileira é também autor de livros de poesia; entre outros livros publicou, em 1983, “Feiras e Feirantes” e em 1989 “Artes Plásticas do Rio Grande do Norte”. Diz em entrevistas que sempre gostou de literatura estrangeira e brasileira, sendo leitor e amigo de Câmara Cascudo, citando os livros “Dicionário do Folclore”, “Vaqueiros e cantadores”, “Jangada” e “Prelúdio da cachaça”. Neste sentido, apresentam-se na pintura as duas divindades celebradas por esses grupos de homens que mostram trabalho e devoção, podendo ser interpretados como devotos das religiões afro-brasileiras ou do catolicismo. As casas a beira mar são características da comunidade de pescadores, assim como os casarões que lembram a Cidade Alta e o Tirol, bairros antigos de Natal. Tem-se assim um composto discursivo sobre a imagem do popular como ícone identificativo da cultura potiguar. Uma obra de 1983, que hoje pertence ao acervo da Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte, significando com isso que houve por parte dos governantes do Estado tomar as imagens produzidas sobre Natal, suas paisagens rurais e urbanas como um discurso imagético que tinha como objetivo criar uma visibilidade e uma identidade para cidade. Nessa obra Dorian Gray Caldas expõe o imaginário de lendas, de estudos sobre a própria obra literária de Câmara Cascudo, embevecido dessa escrita que inscreve a cultura popular no estado, ele pinta com o seu olhar de artista que estuda o moderno nas artes, aquilo que 68 configura-se como o povo, as tradições, os mitos que unem os povos e lhe dão o sentido de existência para significar essa região, torná-la visível. Na segunda obra (Fig. 07), os espaços bidimensionais divididos em múltiplos planos, ao estilo cubista unido a um expressionismo, apreendem-se as formas de composição portinariana, principalmente em seus murais. Também possui cores e geometrismos da pintura de Alfred Volpi30, conhecido pelas bandeirinhas de São João, o qual empregava essa tradição popular de comemoração aos santos católicos de origem lusitana, sobretudo para simbolizar o Brasil, com a preocupação estética da forma e da cor. Pode-se dizer que essas pesquisas formais na busca das formas geométricas nos objetos e no espaço, foram preconizadas pelo artista francês Paul Cézanne, numa perspectiva “pré-cubista”, pois este estava mergulhada na atmosfera impressionista e expressionista que se realizava na Europa do final do século XIX e início do século XX. Considera-se que a obra “Pescadores” de Dorian Gray Caldas, de 1983, situa-se como filha dessas gerações de artistas posteriores à Semana de arte de 1922. Precisamente, os anos de 1940, a imprensa e o rádio ganham expressividade no cotidiano; em 1950 e 1960, a televisão, os vários meios de comunicação, afetam os momentos cruciais de mudança de mentalidade no mundo e no Brasil. O mundo cultural entra em ebulição; na música, com a Bossa Nova, o Jazz, o movimento hippie; a liberação sexual e a busca por uma simbiose cultural tornam-se uma realidade expandida para regiões afastadas dos grandes centros do país, como Rio de Janeiro e São Paulo. A procura por uma modernidade figurada no Brasil principalmente no governo de Juscelino Kubitschek constituía-se como promessa de mudança de um imaginário rural atribuído ao país para uma visão urbana e industrial. Desta forma, verificamos alguns elementos iconográficos de Dorian Gray Caldas, que incorporam a perspectiva de Volpi, sem perder a figuração e os significados constituintes de uma regionalidade, no caso a construída para o Rio Grande do Norte. “Pescadores” divide- se em dois grupos temáticos; à esquerda podemos visualizar predominantemente a terra e no outro extremo, o mar. Cajus, algas, jangadas, fazem base do primeiro plano, sendo os cajus a fruta símbolo do Rio Grande do Norte, presente no artesanato e em tema principal de outro artista natalense, Vatenor, contemporâneo de Navarro e Dorian Gray Caldas. No lado terra 30 Volpi inicia sua carreira na década de 1920, e da pintura figurativa passa a um naturalismo, quando realiza junto ao grupo Santa Helena pinturas ao ar livre, chegando nas décadas de 1950/60 ao chamado abstracionismo geométrico, sendo um dos precursores da arte concreta no Brasil, nos anos 1950. O grupo Santa Helena teve se desenvolvimento na década de 1940 em São Paulo. Autodenominado Família Artística Paulistana era formado por artistas descendentes de italianos, de origem humilde. Durante o dia, ganhavam a vida com profissões como pintor de parede, bordador, açougueiro, ferroviário e até jogador de futebol. À noite e nos finais de semana, pintavam ao ar livre, retratando cenas do cotidiano da paisagem urbana (CANTON, 2002). 69 está o campo, povoado pelo gado e pelo homem rural, um campo vasto podendo significar o sertão. No centro da composição, personagens do Boi de Reis, os galantes, preparam-se para mais uma apresentação, cuidam de adereços. Ali está uma lamparina, utilizada pelo Boi Calemba, manifestação popular como é conhecida do Rio Grande do Norte. No lado oposto, o mar, segue seu movimento, os homens, tentando domar sua força, se impõem com suas redes em busca dos peixes, da sobrevivência, mas também do próprio sentido de vida. O artista referencia este mundo como uma homenagem ao povo, ao espaço social e cultural que também que lhe dá o sustento. Essa pintura retrata uma paisagem povoada de elementos simbólicos, de espacialidades demarcadas, os pescadores no mar, os peixes e crustáceos, e a dança folclórica do boi de reis, movimentam-se seguindo o ritmo do traçado do artista na tela, reforçando uma ideia de identidade potiguar. O rebanho de gado representado na obra de Dorian Gray Caldas alude ao poder simbólico que este animal possui na história do Rio Grande do Norte; o campo aberto que faz respirar o espaço da tela, destaca o homem e o gado. No período colonial, quando o Nordeste, especialmente Pernambuco é tomado por vastos campos de cana de açúcar, o litoral do Rio Grande do Norte também procurará se inserir no circuito do mercantilismo europeu, com a alta valorização desse produto comercial. O gado fornecia a carne e a força motriz para os engenhos, contudo: A convivência da produção açucareira com a pecuária tornou-se antieconômica, a ponto de ser objeto de preocupação da Carta Régia de 1701, que proibia o criatório a menos de 10 léguas do litoral. Configurou-se dessa forma, a necessidade de separação entre a monocultura da cana e a pecuária, ensejando nos sertões um espaço diferenciado do açucareiro (MACÊDO, 2012, p. 30). Segundo Câmara Cascudo o Boi de Reis no Rio Grande do Norte foi constituído nas últimas décadas do século XVII, tendo como ambiente o litoral, nos engenhos de cana de açúcar e nas fazendas de gado, depois irradiando-se pelo interior. A representação do Boi de Reis tem como fulcro dramático a morte e a ressurreição do Boi, numa relação direta com o cristianismo trazido pelos portugueses no Brasil; o espetáculo adquire formas e significados em cada região do país, de acordo com as singularidades culturais regionais. Os personagens são dançarinos, galantes, músicos, divididos em categorias como humanos, animais e seres fantásticos. 70 Para Deífilo Gurgel (2008, p. 104), a versão potiguar do Bumba-meu-boi nordestino é o Boi Calemba, expressão registrada por diversos folcloristas, Cascudo, Mário de Andrade31 e outros mais, desde o começo do século XX. São 17 figurantes, incluídos os músicos, enfeitados e mascarados, Mestre, Galantes, seis ou oito e damas (dois meninos travestidos de mulher). No Livro, Manual do Boi Calemba (1985), foram objetos de seus estudos os grupos de Mestre Pedro Guajiru, de São Gonçalo do Amarante, e de Mestre Manuel Marinheiro, de Natal. Nesse sentido, a criação do gado é considerada no Rio Grande do Norte um elemento identitário, tanto pela sua força econômica como pelos valores simbólicos subjetivados culturalmente a partir dessas singularidades culturais apreendidas e construídas pelo discurso do folclorista, que fabrica o conceito de cultura popular e constantemente impõe a ideia de que essa cultura manifestada pelo povo, nas comunidades, está ilesa às transformações do tempo e a dinâmica da história. É possível dizer que o artista Dorian Gray Caldas sedimentou a sua obra telúrica na leitura e interpretação das narrativas historiográficas e estudos da cultura popular propostas por Câmara Cascudo, criando ao mesmo tempo uma estética muito própria de representar o seu espaço, com cores que sintetizam a sua forma de vê-lo, traduzindo o lugar, que bebe de sua história, eternizando uma imagem folclórica e saudosa de uma Natal que não existia mais no contexto em que o artista cria na década de 1980. “Os pescadores” é uma obra que agrupa na verdade três espaços temáticos dentro da obra, os próprios pescadores, a natureza com o mar e os seus frutos, a terra arada e transformada pelo homem, lhe fornecendo o sustento e os sonhos por meio da manifestação popular do Boi de Reis. Diz-nos Dorian Gray Caldas: Eu não pinto Natal só por pintar Natal, eu pinto Natal como um tema recorrente, eu pinto o casario, o casario quase sempre é de Natal, eu vou pintar o casario francês, (risos) nem italiano! Nem o barroco renascentista. Pinto as coisas que são da minha identidade com a cidade. Então eu pinto muito as periferias, [...] se eu fosse um pintor social, um pintor de crítica social, eu pintaria as madames, os supérfluos, as rendas, as joias né, das senhoras ricas, os modismos de uma sociedade, mas isso não me interessa. Qual o interesse que eu tenho de criticar, fulano, fulano, fulano! O que me interessa é a periferia, porque eu encontro uma identidade humana, eu encontro crianças precisando de um amparo, da minha mão, do meu pincel, então eu pinto os olhos das crianças pobres, aqueles olhos lindos né! As vezes chorosos, eu pinto os galantes nas suas fantasias de serem reis, as figuras de congos, de serem embaixadores. Você já pensou o que é um rei de congo? Vestido de embaixador, ou de saiote fazendo às vezes de um embaixador ou um rei de Congo fazendo às vezes 31 “Em 1938, quando se tornou o primeiro diretor cultural da cidade de São Paulo, Mário realizou a Missão de pesquisas folclóricas, que colocou técnicas e os mais diversos equipamentos em campo para traçar um mapa da música e da dança das regiões Norte e Nordeste, que se suponham ameaçados (grifo do autor) pelos processos de urbanização”. (REVISTA DA CULTURA. Edição 50. Setembro de 2011. Publicação da Livraria Cultura. Calderão Cultural - Representação legitima do povo, o folclore integra, mistura e transforma a arte erudita). 71 de um rei de verdade? Ou o rei do maracatu com a sua esposa em cortejo, negrão! Bonito! E tal, como se fosse um rei de Portugal, um rei de Espanha. Acho isso engraçadíssimo, além de ter uma carga emocional muito grande, porque transfiro pra eles aquele reinado, enquanto dura um dia, dois dias. De uma festa dos altos da cidade, eu transfiro aquela emoção todinha pra recuperar um pouco da dignidade perdida do homem do campo, do homem que trabalha o dia a dia nas feiras, os feirantes, nas mulheres que trabalham também nas casas de família e outras que são lavadeiras, bordadeiras. Eu procuro dá a elas a dignidade das artesãs de antigamente, do status que elas poderiam ter se fossem madames né, mas não são32. A obra de arte é um artefato humano, o artista racionaliza a sua obra, ele pensa as cores, os traços que estarão sobre aquela superfície plana, como pode ser entendida como um produto de sua vivência, de sua bagagem cultural, das memórias sedimentadas e petrificadas no imaginário coletivo, decorrentes de processos históricos podendo serem representadas numa pintura. Também revela seus sentimentos, principalmente quando consiste num trabalho de livre criação. É uma mistura complexa que não pode ser dita como uma verdade única, está sempre aberta a novos olhares. Com isso, Dorian Gray Caldas é consciente que constrói imagens para Natal, que é alimentado também discursivamente por um legado imagético discursivo produzido sobre a regionalidade nordestina que agencia a produção do espaço norte-rio-grandense, tendo as artes plásticas um palco de atuação de uma busca por uma identidade local e regional. Sua temática pode não ser uma crítica social, mas é uma forma de homenagear o humano e os seus rastros no espaço. A terceira obra analisada (Fig. 08), pertencente a uma das últimas exposições do artista, intitulada Caminhos da modernidade, realizada na Galeria de Arte do IFRN, Natal, em 2014 é composta de pinturas realizadas pelo artista durante o ano de 2013. Com mais de 60 anos dedicados às artes, Dorian Gray Caldas preserva a temática que o consagrou como artista potiguar que traça de forma moderna a tradição, configurada na paisagem cultural do Estado e especificamente de Natal. Apresenta uma cidadezinha litorânea, com Igreja e futebol na praia – vida em movimento, cores “tropicais”, primárias e contrastantes, como o azul e o amarelo, um jogo de cores utilizado por Vincent van Gogh na sua pincelada expressionista, em um verdadeiro quadro dos principais temas eleitos por Dorian Gray para representar seu espaço, Natal. Trata-se, nessas imagens, de um mundo que revela uma urbanidade, uma Natal representada pelo ícone da Igreja Católica, por uma arquitetura colonial; uma imagem de um “paraíso” local, onde as relações sociais se mantém apaziguadas numa lembrança de um 32 CALDAS, Dorian Gray. Entrevista realizada em 05/09/2015, em Natal – RN. 72 passado, matriz de sua expressividade artística. Uma pintura que congela o tempo, que mostra em cores vibrantes uma representação espacial do litoral, pois o que interessa ao artista enquanto temática e como expressividade criativa baseia-se numa paisagem-marinha, em que as figuras humanas praticam esse espaço enquanto atores principais de um enredo pictórico, criado para lembrar memórias apaziguadoras, de pessoas que rejeitam a noção de modernidade. Uma obra que traz o universo urbano, da cidade litorânea, ao contrário da (Fig. 07), mas que, sobretudo consiste numa região identificada pelo mar, de todos os tons, porém produzida para dizer e ver esse espaço. Newton Navarro, em uma de suas crônicas em homenagem a Dorian Gray, escreve: “Quantas vezes diante do mar o seu pincel descobre matizes que facilmente outro pintor não descobrira! Pinta e o mar passa inteiro para suas telas” (CALDAS, 1989, p. 115). Trata-se de um mar sempre presente, suas figuras humanas são pescadores, camponeses, os trabalhadores das feiras livres e os brincantes dos folguedos populares. Este elege também os canaviais como tema de suas obras, o mundo rural, as vilas populares e os casarios antigos. Pode-se dizer que o mar, ao qual representa repetidamente em suas produções artísticas, consiste em um mar universal? Segundo o próprio Dorian Gray: “O meu mar nunca está em primeiro plano, mas à distância, como se eu estivesse em terra firme, procurando uma fuga. E esse sentimento não é exclusivo do mar daqui, é de todos os mares” (ALMEIDA et al, 2001, p. 119). O mar ao qual pinta possui uma identidade, o mar que viveu desde a infância na cidade de Natal, subjetivado culturalmente. Assim, torna-se impossível uma dissociação entre o artista a obra e seu contexto, ou seja, a arte não se faz sozinha, e esta precisa de um mundo externo para acontecer, tanto individual como coletivo. Neste sentido, há que se considerar a erudição do artista Dorian Gray, os livros, o acesso a uma cultura visual do mundo, metaforicamente representando o mar universal, navegado pela humanidade, seja através dos barcos reais ou pelas imagens mentais construídas pela imaginação a partir de leituras escritas, de imagens pictóricas ou cinematográficas. Dorian Gray Caldas assistiu ao crescimento urbano e populacional da cidade de Natal e prescreveu em pintura a sua maneira de ver essa realidade imbuída de nostalgia, de um sentimento de regresso a um tempo que não existe mais, uma Natal antiga que foi sufocada pelos arranhas céus e pelo sentido de mudança que caracteriza a modernidade, essa mesma que o artista procura expressar de forma plástica e formal. Wesley Garcia Ribeiro Silva (2011) analisou a partir dos Planos urbanísticos constituídos para Natal na década de 1960, como a cidade foi idealizada com o ideal de 73 modernidade e progresso. Segundo o autor, Câmara Cascudo tornou-se, com o livro A história da cidade de Natal, o seu historiador oficial, uma obra escrita em 1946 como uma encomenda municipal. O autor observa que o Plano urbanístico e de desenvolvimento para Natal entre as décadas de 1950 e 1970 era uma tentativa do estado de manter o controle sobre a paisagem da cidade, devido ao crescimento urbano após a Segunda Guerra Mundial. Com isso saberes são agenciados para modelar na urbanidade uma feição moderna, regular e higiênica. Segundo Silva havia um discurso ambivalente nos jornais, marcado pelo saudosismo e pela modernidade, que construía a imagem da cidade: “as questões do plano iam além da esfera urbanística e se ligavam também as questões administrativas, econômicas e socioculturais, numa clara referência ao ideário desenvolvimentista hegemônico no período” (SILVA RIBEIRO, 2011, p. 173). Portanto, a construção das identidades baseia-se na diferença, em termos de delimitação de lugares sociais de uma elite e de outros grupos sociais desprestigiados. Foram demarcados bairros tradicionais como Cidade Alta, Ribeira, Petrópolis e Tirol e o bairros suburbanos formados no período do pós- Segunda Guerra Mundial. Na década de 1960 havia, conforme Silva, uma hierarquização dos espaços, dividindo-se em bairros centrais, ligado as atividades comerciais e a moradia da classe alta e os suburbanos, onde habitava as pessoas de baixa renda. Nessa compreensão, não há diferença entre materialidade e o simbólico, as representações sobre o espaço são múltiplas, o artista Dorian Gray Caldas ao produzir a sua obra, interpreta o vivido e apresenta uma dada imagem sobre o espaço natalense, que imbrica essas contradições de um passado colonial, exemplificadas nessa pintura pelos casarios, por uma urbe romântica, de relações gentis atravessadas por serenas paisagens do mar e a imagem não visível, que parece não ter a beleza plástica almejada pelo artista. Sua arte é um elogio à cidade de Natal ainda não “corrompida” pela pluralidade que apresenta o mundo contemporâneo. 74 Figura 11 – CALDAS, Dorian Gray. Painel do Aeroporto Augusto Severo – Natal/RN. 2000. Foto: arquivo da pesquisa. Isso pode ser percebido na produção de Caldas para o painel (Fig. 11) encontrado no rol do Aeroporto Internacional Augusto Severo, em Natal, possivelmente confeccionado em placas de compensado, com temas da cultura popular e da paisagem potiguar, assinado por Dorian Gray Caldas. De modo geral tal obra utiliza cores e formas cubo-expressionistas que apresenta uma natureza singular da cultura do Estado, que tem o intuito de construir uma visibilidade. Essa obra é uma pintura que denota um interesse das elites do estado, seja em âmbito público ou privado, para reforçar uma particularidade cultural potiguar. A iconografia produzida para representar o estado produz uma visibilidade e um valor identitário espacializante, pois quem chegava a Natal por meio do Aeroporto Augusto Severo encontrava o painel de Dorian Gray, uma “colcha de retalhos culturais” que significam uma imagem para o Rio Grande do Norte. A obra é uma pintura mural que tem como temas delineadores da cultura popular do RN, o Boi de Reis, o Pastoril, os Congos, a roda de músicos na praia e a fé católica. Na parte superior do painel, destacam-se as Igrejas em estilo colonial, lembrando a presença 75 portuguesa nessa região do país, pois segundo a narrativa historiográfica de Câmara Cascudo, o nascimento de Natal em 1599 e a construção da Fortaleza dos Reis Magos no final do século XVI são considerados os primeiros marcos da colonização na Capitania do Rio Grande. Segundo João Maurício Gomes Neto (2010, p. 88), havia dois desafios para a presença portuguesa no espaço que hoje se nomeia Rio Grande do Norte, quais sejam, tornar Natal sede administrativa e colonizar o sertão, e o sertão era como o colonizador definia todo o espaço desconhecido no interior da capitania. Para o referido autor, que problematiza a escrita historiográfica cascudiana, a presença norte-americana em Natal é tecida nas linhas de Câmara Cascudo como um princípio de perda dos referenciais imagéticos do potiguar. Por outro lado, esse fato acentuaria um suposto cosmopolitismo, uma visão de adesão ao moderno, para o potiguar as marcas do “estrangeiro”, sejam franceses, holandeses ou americanos, deixam novos sentidos na construção das identidades espaciais, o discurso de uma Natal que não possui uma identidade fechada é projetada na contemporaneidade para o turista. Toda a estrutura do último plano são os casarios, as Igrejas, a antiga ponte de Igapó no Rio Potengi e no lado direito está o Morro do Careca na praia de ponta Negra, unindo a paisagem natural à paisagem que foi naturalizada culturalmente. O centro do painel está as manifestações populares entrecruzadas com os detalhes de portões de arabescos, criando fundos de grades delicadas e imaginárias para essa mescla visual de euforia popular, uma alegoria da alegria. Uma fusão de elementos identitários ao lado das brincadeiras infantis que fazem a base do primeiro plano, suavizando a presença dos adultos, da perspectiva do racional, numa clara referência ao pintor brasileiro Cândido Portinari quando pintou a sua infância vivida na cidade de Brodowski no interior de São Paulo. Natal é pintada por Dorian Gray Caldas como uma espacialidade conquistada historicamente como centro do estado, construída na visão dessa hibridação cultural, do catolicismo e da fé afro descendente, representado na pintura do artista por meio dos Congos, das cores da pele de seus personagens, valorizando o saber sobre o povo, a figura do intelectual que congrega num conceito o que são as coisas do povo. Estamos observando, portanto, o fato do artista admirar o “mestre” Câmara Cascudo, como ficou conhecido, e ter interiorizado esse construto imagético discursivo e o representado com maestria, tornando-se um símbolo das artes plásticas do Rio Grande do Norte. Sobre o regionalismo ressaltado em sua produção pictórica, o artista o vê como um meio de pintar aquilo que está ao seu redor. Trata-se, evidentemente, de um homem que naturalizou a ideia de nordestinidade. 76 O mar representa na minha arte é o homem, o homem brasileiro e o homem nordestino. Embora hoje eu ache que arte não se vincule não somente ao homem nordestino ou ao regionalismo. O regionalismo é um meio de você pintar as coisas que você conhece, mas você tem que dotar essa sua visão regionalística a uma arte internacional. Há uma linguagem técnica artística que pode chegar a qualquer país e (...) eu digo sempre qualquer um brasileiro, qualquer um pode ser internacional ou pode ser uma celebridade, depende das circunstâncias. Aí que cito Ortega Gasset, ‘Nós somos nós e nossas circunstâncias’, eu sei que é difícil! É difícil um artista brasileiro chegar a ser notado, a ser celebridade noutro país.33 A construção de uma identidade cultural para o Rio Grande do Norte a partir da região litorânea do Estado fomentou uma rede discursiva que se penetrou no imaginário coletivo como forma de criar uma imagem símbolo para o Estado. Ângela Almeida diz acerca de Dorian Gray “é que ninguém melhor que ele para expressar através das cores e das formas, nossa paisagem física, humana e social” (2001, p. 115). Sob essa compreensão, a paisagem cultural do estado possui uma identidade. Suas formas de expressão artísticas compõem cenários imaginários, sendo uma representação, mas também um acontecimento, no sentido de que a forma do artista ver o mundo e representá-lo interfere e afeta o real. Nasce, sobretudo, de um laço que se faz num processo histórico, de construção das identidades espaciais. Segundo alguns comentaristas da época da exposição de 1950, Dorian Gray Caldas teria enveredado sua carreira seguindo inicialmente uma linha abstracionista; contudo, foi o figurativismo, que busca explorar a mitologia popular do nordeste (CARVALHO, 2003), com obras fortemente coloridas, características de uma ideia de brasilidade, que determina a marca do pintor. É possível dizer que o contato com Newton Navarro e as ideias regionalistas de Gilberto Freyre, afetaram a produção pictórica de Dorian Gray Caldas nas suas representações do litoral norte-rio-grandense. O traço de Dorian Gray é modernista, no sentido de que este não exercita uma forma clássica de pintar e sim incorpora a estética do modernismo do início do século XX no Brasil, com a Semana de Arte de 1922. Investiga as tradições populares, as lendas, as cores “tropicais” de sua pintura que descrevem uma Natal para quem chega à cidade, e para quem vive a cidade. A regionalidade nordestina enquanto uma construção discursiva no nascente século XX incide sobre as artes plásticas, num universo de apropriações da música brasileira que exibem em ritmos, letras e sons uma imagem para esse espaço vinculado a ideia de uma “tropicalidade”. 33 Idem. 77 Uma cidade feita de um tempo congelado, uma paisagem sempre de sol, desenhada no imaginário coletivo como lugar de “férias” e ao mesmo tempo ameaçada pelas forças indiferentes do capitalismo, que padroniza arquitetura, gostos e sentidos sociais. Um rosto para Natal é retratado na arte de Dorian Gray Caldas, com cores e traços particulares. Conforme nos diz: Criei identidade com minha cidade e meus prazeres [...]. Acompanhei a contemporaneidade de Natal junto com outros artistas que fizeram essa contemporaneidade. Antigamente tínhamos a influência do impressionismo francês. Hoje há uma visão macro, pois a arte chega pelas mídias [...]. Essa coisa do tropicalismo - trazida por Gilberto Freyre e por nosso Cascudo; [...] essa diferenciação da cor local e universal é muito importante. A cor de Natal é diferente. O mar, os paredões das casas antigas, as fitas dos conguistas dos autos, os festivos dos brincantes do folclore dão matizes diferenciadas até dos sulistas. Nossas cores são mais tropicais (Entrevista, VILAR, 2010). Com isso, Dorian Gray Caldas tece um relato das suas impressões sobre o poder que as ideias regionalistas de Gilberto Freyre e Câmara Cascudo exerceram sobre a sua arte. Nesse sentido, “O folclorista tende a apresentar, inclusive, como representante de sua região, como um defensor de seu espaço, [...] como aquele que encarna não só em seu trabalho, mas no seu próprio corpo [...] a região a que pertence” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 52). Isso permite pensar que um processo análogo parece ocorrer com alguns artistas, que são construtores também de uma dada realidade espacial. Desta forma, o artista imprime em sua fala, o seu olhar sobre o espaço local, tingindo o tecido imagético acerca da cidade de Natal/RN. Para Albuquerque Jr. (1999, p. 78), “Esta construção do Nordeste será feita por vários intelectuais e artistas em épocas também as mais variadas”. Neste sentido, para pensarmos a receptividade desse discurso imagético-discursivo que chega ao Rio Grande do Norte nas artes visuais via o paradigma modernista da Semana de Arte de 1922, temos que problematizar, sobretudo a apropriação dos ideais regionalistas nordestinos na tentativa de formação de uma identidade potiguar. Também devemos analisar os contornos estéticos na obra de Dorian Gray a partir de artistas brasileiros, como Cândido Portinari, o qual busca falar dos dramas sociais do país incorporados a uma poética particular de expressão do cotidiano. Portinari preocupava-se em revelar a alma nacional num momento em que o Brasil se impunha no mundo enquanto uma nação que se modernizava sem perder a sua “essência”, centrada na sua história de lutas, no trabalhador nos campos de café, com corpos de pés e mãos agigantados. 78 Com isso, o artista exaltava o homem brasileiro, mesmo quando mostrava a dor e a miséria na série dos retirantes, “quando o drama regional da seca nordestina é elevado à condição de símbolos das injustiças sociais e da necessidade de construção de um novo mundo” (ALBUQUERQUE, 1999, p. 250). Nos anos de 1930, ocorreu uma simbiose simbólica entre a literatura e as artes plásticas: Portinari colocou o homem e criou o seu destino. Bem ou mal, na mais angustiante condição da fome dos flagelos da seca ou nas colheitas dos cafezais das terras generosas dos paulistas, fez a sua pintura. O homem brasileiro [...]. Esta obra tem a força das obras que resistem ao tempo. (CALDAS, 1993, p. 119). Desse modo, confirma-se a admiração pelo artista Dorian Gray Caldas; vemos sua arte voltada para os temas regionais nordestinos com o intuito de apontar um sentimento identitário para o Rio Grande do Norte, que se desejava pertencente a este universo da arte e político no país, já que Portinari, artista de grande sensibilidade, será o que melhor condensará a busca por uma modernidade para a nação, obtendo apoio do governo durante o regime do Estado Novo, assim como posteriormente com Juscelino Kubitschek e a construção de Brasília, com Niemeyer e Lúcio Costa. Convém refletir que as referências de Dorian Gray Caldas ao artista Portinari pertencem à dimensão plástica, purificando-o do aspecto densamente político da arte portinariana. Na pintura de Dorian Gray Caldas há a referência a arte do muralismo mexicano, com Diego Rivera, Orozco e Siqueiros, de forte conteúdo político; contudo, há uma adaptação na forma como interpreta visualmente esta arte, já que a postura contestadora dos muralistas mexicanos, a crítica social que se afirma poeticamente em suas formas, não se apresenta na obra do artista natalense. No livro a Feira dos Mitos, a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste 1920-1950) (2013), Albuquerque Jr. discute a fabricação da cultura nordestina por meio da análise de um conjunto de enunciados simbólicos, de uma tessitura discursiva que gera mitos de origem para o Nordeste, questionando os usos e abusos deste imaginário, que faz ver e dizer essa região, e apresenta uma face única deste espaço. Com isso, há uma (des)naturalização dos conceitos construídos historicamente para o Nordeste, na qual as escritas de antropólogos, folcloristas, orquestram esse “pluri-universo” de estratégias discursivas. Deste modo, interpreta-se o mundo da representação da pintura enquanto uma imagem de verdade sobre a região se busca eternizar imagens sintéticas, isto é, a paisagem 79 colorida de um passado que se quer presente, espaço harmonioso, de barcos, jangadas, pescadores que, ao fim do dia, buscam nas danças e folguedos populares o seu refúgio, o encontro com as tradições, originárias de um movimento dinâmico, histórico de várias nações e povos, constituindo o que seria uma identidade nacional e regional nordestina. E este espaço regional como último reduto desta tradição, que se manteve protegido das mudanças da modernidade, “a nostalgia pelo retorno a essa ordem partilhada por setores das camadas populares e das elites letradas, o que contribui para o encontro entre eles e com a emergência da ideia de folclore ou de cultura popular” (ALBUQUERQUE JR. 2013, p. 44). Nessa concepção, a linguagem artística é tomada como discurso do regional, pois não apenas representa o real, mas institui realidades. Confirma-se enquanto imagem simbólica, pela repetição de determinados enunciados. Como, então, pode-se dizer a região pela sua natureza, entendendo a cultura como particular, e o que a torna singular? Uma das questões suscitadas para debate com o marchand Antônio Marques foi a literatura de Câmara Cascudo; como esta pode ser apreendida na pintura dos artistas norte-rio- grandenses. Ele nos diz: [...] Câmara Cascudo foi um grande incentivador, mas ao mesmo tempo, eu diria que Câmara Cascudo era um homem muito voltado para literatura, menos para as artes plásticas. Mas quando o movimento eclodiu em ‘50, Câmara tava lá, pra dá apoio e tal! Agora indiretamente ele influenciou no sentido que ele escreveu muito sobre o folclore, essa coisa dos grupos, dos Congos de Calçola, dos Bois de reis, tudo isso; essa descrição desses autos, que Câmara fez muito bem! Newton certamente absorveu! Newton certamente leu, Dorian também! E além de observarem. Agora, é preciso dizer também que teve uma influencia muito grande... Assis [Marinho] já não acho que venha direto de Câmara Cascudo, entende? Mas Assis ele sabe que esses grupos folclóricos, ele é de uma época que se tinha uma ideia do valor desses grupos, da cultura popular, então ele já tinha vivido tudo isso. Ele já traz dentro dele tudo isso, e ver a valorização na cidade, e aquilo se volta com força pra esse tipo de coisa. Agora, quem foi muito influente nessa questão da cultura popular, [...] é nos anos 60, Djalma Maranhão. Um prefeito voltado para as cenas populares, trouxe todos esses Autos. Se Câmara Cascudo escreveu, Djalma mostrou, e isso foi muito importante. Newton foi assessor de Djalma Maranhão34. Todos os artistas, de forma direta ou indireta acabaram apreendendo a literatura de Câmara Cascudo. Em cada realidade temporal distinta, de Newton Navarro, Dorian Gray Caldas a Assis Marinho, a cultura popular será interpretada segundo a compreensão artística de cada um dos pintores, porém usando certa matriz discursiva, que instituía uma ideia de identidade potiguar: uma expressão do “povo”, das raízes originais culturais do país, que simboliza o regional e serve à noção de nacionalidade. 34 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015, em Natal – RN. 80 De acordo com Durval Muniz, Câmara Cascudo (2013) se filia a uma tradição eivada de uma cultura popular, e dessa tradição são construtores; uma noção de folclore de que este está constantemente ameaçado pelo cosmopolitismo, assim, “a ideia de região Nordeste surgiu entre as elites intelectuais e políticas que estavam ligadas por motivos econômicos, políticos, culturais e até por laços familiares à cidade de Recife” (ALBUQUERQUE JR. 2013, p. 124). No caso de Câmara Cascudo, Julie Cavignac (2008), em seus estudos, reflete como o folclorista, de renome internacional, com uma obra marcada principalmente entre o final do século XX e a década de 1940, estabeleceu relações, trocas de correspondências com o modernista de Mário de Andrade, e como este exerceu forte influência sobre a sua obra, desenvolvendo uma espécie de antropologia nativa, um saber (estudos do folclore) que se constituía ainda marginal no espaço das ciências sociais e humanas. Assim, a ocorrência da perspectiva folclórica nas regiões periféricas do país apontaria para a formação de diferentes tradições intelectuais entre, de um lado, os “filhos” de um poder econômico e político decadente e, de outro, os “arautos” do progresso e da modernização político-cultural da nação (CAVIGNAC, 2008, p. 8). A autora aponta duas grandes referências na produção intelectual cascudiana: o modernismo paulista, na figura de Mário de Andrade, e o movimento regionalista de Gilberto Freyre em Pernambuco. Nesse sentido, há a defesa de uma “verdade” sobre a nação, que gera esse sentimento de identidade ancorado na cultura popular, com o papel das elites intelectuais pernambucanos estando aliado ao sentido de nacionalidade que se gestava nos modernistas paulistas, e ecoava no Rio Grande do Norte através de Câmara Cascudo. Além disso, Antônio Marques nos lembra do incentivo às práticas culturais do governo de Djalma Maranhão na cidade de Natal, de 1956 a 1964, que se enquadrava fora do contexto das oligarquias que dirigiam o poder estadual. A política pública cultural implantada na cidade de Natal com a campanha de alfabetização baseada nos ideais de Paulo Freyre, De pé no Chão também se Aprende a Ler, era inspirada no movimento de cultura popular (MCP) de Pernambuco fundado em 1960, destacando-se a instalação de Praças de Cultura, da Galeria de arte e das bibliotecas populares (RIBEIRO, 2008), como já foi abordado na primeira parte desse capítulo. Os artistas Newton Navarro e Dorian Gray Caldas imprimem uma dada visão sobre a região do Rio Grande do Norte. E Natal é este espaço de vivência individual e coletiva, que abriga estes sentidos culturais e sociais. Não se está afirmando que por representar figuras populares, como pescadores, vaqueiros, rendeiras, brincantes do Boi de Reis, os artistas que 81 elegem como temática norteadora de suas obras a cultura popular, sejam vistos como exercendo uma ação de denúncia social, mas que tal imaginário que circunda o corpo social se fixa em suas produções, que continuam como uma prática que se reverbera no tempo. A concepção que nutre a nossa escrita é saber que não existem verdades absolutas, e que o discurso historiográfico produz e é instituinte de um modo de dizer e ver. Contudo, nessa trama espacial que se desdobra no Rio Grande do Norte e que tem como objeto as pinturas de Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa (1980-2000), no espaço seridoense, a imagem (pintura) é um discurso historicamente construído, habitando as vivências desses sujeitos no espaço, seja o litoral ou sertão, pois aquelas se interligam, se construindo como territórios de afeto (do mar, do sertão). Destarte, tais realidades culturais distintas a cada região, embora se tramam numa rede de palavras e imagens, de práticas e discursos, evidenciando relações dinâmicas, de mútuas trocas culturais, de experiências de aprendizado artístico com os artistas, o público e os consumidores desta arte. Evidencia-se com esse universo social, de deslocamentos e sensibilidades históricas, a construção de uma imagética espacial para o Rio Grande do Norte e, por conseguinte, fincam-se as bases de um sentido identitário para a região do Seridó. 82 3. CULTURA VISUAL DO SERTÃO DO SERIDÓ: PAISAGEM RURAL E URBANA Se queremos uma cultura que preserve a ideia de paz, necessitamos de um comportamento mental sempre em guerra, em guerra consigo mesmo, em guerra contra as certezas, em guerra contra as verdades, duvidando das convicções, interrogando, sem abdicar nunca, e sabendo que as respostas nunca virão de modo definitivo. (COLI, 2010, p. 343). Este pensamento do filósofo e historiador da arte Jorge Coli provoca-nos um olhar sempre investigador, entendendo a obra de arte, o objeto de arte como um sujeito pensante, um pensamento materializado no mundo, um acontecimento que fabrica uma visualidade acerca do sertão seridoense. Nesta concepção, busca-se interrogar as obras a partir dos seus sentidos históricos, culturais e sociais, como um discurso visual que pertence ao campo das artes, imerso em subjetividades. Toda a leitura sobre uma imagem é problemática e se reverbera no tempo traduzindo seu caráter polissêmico, plural, disseminador de novos olhares. Tendo como objetivo um Seridó composto por uma paisagística definida culturalmente, que arranjos pictóricos presentes nas pinturas dos artistas, Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa identificam a região do Seridó? O que é a região do Seridó nessas produções artísticas? Como se constituiu uma identidade seridoense nas artes visuais praticadas, exercida nesse lugar, nomeado Seridó? Segundo o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior as obras de arte são discursos instituidores de uma dada realidade sobre o Nordeste. Autores e artistas como José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, Cândido Portinari e Di Cavalcanti, por ele analisados, são concebidos como emissores de signos que deram textos e imagens à região. A pintura realiza plasticamente uma visibilidade do Nordeste, cristalizando “imagens típicas da região”, uma vez que o artista intervém na realidade quando produz a sua obra. Deste modo, tentaremos analisar a trama que constitui o imaginário seridoense, a ideia de pertencimento a esse recorte espacial historicamente delimitado como Seridó, uma região dotada de sentidos e significações, configuradas numa paisagem urbana e rural. Nossa metodologia não tem a pretensão de realizar uma análise fechada dos quadros. Procura-se problematizar a própria escrita verbal diante da linguagem visual. Michael Baxandall alerta que “a descrição [de um quadro] é antes uma representação do que pensamos sobre a obra do que a representação dela” (BAXANDALL, 2006, p. 10). Ao descrevermos um quadro, a imagem jamais irá reconstituir a obra original. O historiador, segundo Baxandall 83 reconstitui em palavras o ambiente social e histórico em que as obras foram produzidas, levantando aspectos do processo criativo e do fazer artístico. Nossa proposta, portanto, está relacionada ao momento em que o Seridó se forma como território geográfico e imagético quando este se torna tema pictórico da produção de artistas plásticos. A atenção ao ambiente social e cultural, as imagens consolidadas na história cultural do Seridó como seus marcadores, será um recurso heurístico na interpretação dos quadros. Com esse desafio, somos convidados a observar alguns elementos presentes nas obras-fontes desses artistas, salientando suas singularidades históricas, estéticas e artísticas. Figura 12 - DANTAS, Iran. Fazenda, 40 x 70 cm, óleo sobre tela, 1995. Figura 13- DANTAS, Iran. Fazenda, óleo sobre tela, 40 x 60 cm, 2015. 84 As duas obras acima reproduzidas representam uma mesma ideia de paisagem: o Seridó, pintado pelo artista Iran Dantas35. Obras de épocas distintas, vinte anos as separam e nos permitem analisar as mudanças operadas no tempo na forma de representação da paisagem, da criação artística. Dantas costumeiramente costuma escolher lugares reais como temática em muitas de suas obras, contudo as telas acima parecem ser resultado de uma criação livre ligada ao imaginário constituído sobre esse espaço, a partir das percepções acumuladas, configurando uma memória cultural36. A estética de Iran Dantas está intrinsecamente relacionada à sua experiência própria no Seridó, exercendo seu métier artístico como autodidata. Sua pintura claramente possui referências da estética modernista do final século XIX, com o Impressionismo francês, que rompia, naquela realidade com os cânones da arte estabelecida. O artista toma de empréstimo não apenas os recursos técnicos do modernismo europeu, mas também (conforme relatos) a prática, inaugurada pelos impressionistas, de pintar ao ar livre. Na primeira obra (Fig. 12), veem-se o céu e as serras na perspectiva de fundo, em tons de azuis, rosas e lilases. Casas e roçados, mangueiras e coqueiros integram-se ao relevo geográfico da região, no segundo plano, formando um espaço de continuidade de nossa visão. No primeiro plano, o gado está sendo guiado por dois homens precedidos por um cachorro em direção ao açude que se encontra na lateral direita do quadro. O trecho de uma cerca de madeira, pedras, cabras e um grande cacto constitui a base do primeiro plano. No segundo plano, à direita, identifica-se uma casa grande; um homem no cavalo conversa com a pessoa que está em frente à casa; à esquerda da casa, veem-se galinhas no terreiro. Com um jogo cromático mais tênue, entre ocres, verdes e espaços vazios, a pintura revela um espaço contingente, intimidado pelas fronteiras da tela, onde a natureza é a protagonista de um cenário rural, pouco habitado por figuras humanas, que cumprem suas tarefas cotidianas, seu labor diário, acordando para mais um dia de trabalho no campo, revelando-nos uma dinâmica social. O mundo do sertão pintado por Iran Dantas nesta obra se mostra orquestrado pelos elementos bucólicos da vida rural; sua paisagem mostra a vida no campo como emblema do sertão, sobrevivendo às intempéries do tempo. 35 Dantas, em sua carreira, já assinou suas telas com diferentes assinaturas, como Veetmohi ou apenas Veet. 36 Memória cultural é uma categoria elaborada por Jan e Aleida Assmann. Esta última investiga como a memória possui um papel central na formação das identidades, vendo como os modos de recordar são definidos culturalmente ao longo do tempo, sofrendo perenes reformulações: “A memória artística não funciona como armazenador, mas estimula os armazenadores, ao tematizar os processos de lembrar e esquecer. Para os artistas não se trata de armazenadores tecnológicos, eles buscam sim um glossário de sentimentos, em que reconhecem uma fonte de elementos artísticos” (2011, p. 26). 85 Tentemos imaginar a cena: a artista postando o cavalete diante do lugar representado, sentindo o calor e os odores deste espaço que se apresenta nessa pintura como um “punhado” de ícones identitários, como possivelmente a Serra de Santana, o serrote do Melo, localizado no Povoado Maxinaré, próxima a cidade de Currais Novos. O lugar pode ser real, mas também imaginário, pois a obra é produção, um artefato, contendo em si os significados simbólicos reunidos numa paisagem cultural do Seridó. O ritmo das pinceladas, a escolha das cores, a distribuição dos elementos no quadro – uma composição. É sobretudo um arranjo pictórico imbuído da lógica imagética que atravessa este “mundo” particularizado para o Seridó; pois a maneira como Van Gogh pintava os campos de tribo no Sul da França, observando o mundo natural como registro inicialmente do que via diante dos olhos, Iran Dantas mapeia visualmente o espaço seridoense transformando- o em uma paisagem dotada de sentidos identitários. Van Gogh era um artista holandês do final do século XIX que viaja para França a procura de uma luz ideal para seus quadros, perseguia uma forma de expressão que fosse capaz de mostrar os sentimentos intensos que permeavam a sua pintura, as sensibilidades históricas, estéticas e psicológicas de seu mundo interior e do mundo que o circundava. A luz estava além do cenário físico dos lugares por onde pintou, encontrava-se dentro dele e diante dele. Porém Van Gogh inserido numa perspectiva de uma arte que se transmutava com os signos da modernidade, sua obra sofrerá a mutação da pincelada cheia e luminosa que marcará a sua arte profundamente, que se nomeará expressionista, embora para o artista não tenha importado as classificações, porque o fazer, o alimento da criatividade, ultrapassa estas dimensões formais, como também nas vísceras expostas de um sentimento, pensado, expresso numa pintura. Iran Dantas realiza uma espécie de “fotografia” pictórica, um mapeamento visual. Como um estudioso da forma e das técnicas artísticas, esta obra remete a ideia dos trabalhos de estudos, mas não por isso menos importante, configurando-se como um apanhado de memórias que integram o homem a paisagem rural. Na imagem, há a síntese de um composto discursivo sobre o Seridó. Na segunda obra (Fig 13), o cenário reaparece com cores mais vibrantes; o céu de azuis muito vivos dá ao o espaço grande profundidade. O arranjo da composição lembra uma dança, num bailar que dá expressividade à cena, demonstrando a vida em movimento. Os altos e baixos das serras, os vários elementos – açudes, pessoas, animais – dinamizam a pintura, de caráter descritivo, sobre a paisagem seridoense. Dois homens, provavelmente vaqueiros, levam um burrinho carregado de frutos, possivelmente para abastecer a feira da 86 cidade; um cachorro à frente é guia da caminhada e companheiro do homem. “Os vaqueiros foram personagens sociais que empreenderam as atividades do pastoril pelos sertões nordestinos” (ARAÚJO, 2003, 45). Figuras presentes no imaginário cultural e nas pinturas dos artistas Iran Dantas e Assis Costa. Nesse sentido, após duas décadas, observamos uma mudança em termos estéticos e artísticos, de uma pintura (Fig. 12) que se aproxima de uma tentativa mais realista, comparada com a segunda obra (Fig. 13), em que as cores aparecem mais vibrantes, com contrastes de verdes, contornos azul cobalto e laranjas. Numa vibração mais intensa de cores, Iran Dantas recria a mesma paisagem seridoense, se movimenta, desmanchando-se, não obedecendo aos cânones de perspectiva. Entramos nesta cena, num espaço-tela estampados dos signos culturais seridoenses, as ondulações das serras, o azul intenso do céu. Não busca apreender o real, mas a criação, o belo costurado pelas linhas que delineiam um Seridó pictórico, pois a certidão de nascimento do Seridó, na busca de uma genealogia para esse espaço, pode não ter sido produzida pela pintura dessas artistas, embora estes tenham contribuído para reforçar com uma argamassa simbólica uma identidade espacial para essa região. O Seridó fora produzido historicamente primeiro nas letras. Oswaldo Lamartine pintou em palavras este sertão, marcou com ferro seu corpo, sua história de vida com esse espaço, um olhar sistematizado do sertão seridoense, que chorou a perda “do sertão do nunca mais”, realizando um verdadeiro estudo etnográfico dos costumes, da preservação da natureza. Trouxe além de um discurso regionalizante, destacando a imobilidade deste espaço, sua poesia na escrita espacial do sertão, foi de extrema relevância para entender este sentimento de pertencer a um lugar, de forma inteira, quase “obsessiva”, sertanizando-se como o último dos homens a resistir a sedução da mudança do tempo, do fluxo voraz da descontinuidade histórica. Dizia ele: Os ruídos dos ventos, das goteiras, dos armador das redes, o balido das ovelhas, o canto do galo, o estalo do chicote dos matutos, o ganido, dos cachorros em noite de lua, os tetéus, o dueto das casacas de couro, os gritos do socó, a martelar silêncios, os aboios, o bater dos chocalhos, o mugido do gado e tantos outros que ferem nas ouças da saudade (LAMARTINE apud ALMEIDA, 2012, p. 56). Assim, nesse detalhar paisagístico de Oswaldo Lamartine, aproximamos a pintura de Iran Dantas, no segundo plano veem-se cavalos e gado nos currais; um casal de namorados conversa à frente do alpendre da Casa Grande, fazendo planos para a vida. A casa sertaneja é um elemento muito significativo na obra dos artistas analisados. Ângela Almeida (2012) 87 defende uma estética particular do sertão, falando dos contrastes deste espaço num tom poético e (re)afirmador do imaginário construído sobre o sertão seridoense: A casa no sertão (...) tem o ruído do vento solto na vegetação rasteira, nos estalos dos galhos secos e no ranger dos armadores velhos. Tem as estampas dos bordados. Tem as formas geométricas e curvas dos frontões. Tem a dor e a alegria, a chegada e a partida (ALMEIDA, 2012, p. 53). Nathália Diniz (2013p. 29, 36) afirma que o sertão não é uniforme. A arquitetura das casas-sedes das fazendas de gado dos Sertões do Norte é tão heterogênea quanto a própria diversidade do ambiente natural e social em que estão implantadas. Porém, nos diz que há traços comuns que unem esta paisagem cultural do ponto de vista arquitetônico, mesmo predominando a diversidade. Principalmente, a partir de meados do século XIX, as casas-sede passaram a ser edificadas com material construtivo mais duradouro (o tijolo cozido), sendo maiores e mais resistentes ao tempo. Esta forma de edificação se apresenta nas duas obras de Iran Dantas. Outra característica que ocorre nas duas casas grandes representadas em cada obra é a permanência de um porão na frente do alpendre com escadaria. Nathália Diniz esclarece que acerca dos alpendres, como o acesso principal a casa, “além de ter a função de recepção, ele é um cômodo de estar. Através dele avista-se boa parte da fazenda e nele o proprietário e os trabalhadores reuniam para discutir a lida diária. Naquela época não era um espaço permitido as mulheres” (DINIZ, 2013, p. 209). Na segunda pintura analisada, ao fundo, outras casas, novos núcleos familiares, dão a ideia de que a vida no campo constitui-se como um refúgio, um lar-paraíso imaginário, onde se apresentam de forma homogênea e feliz, há um aumento populacional em comparação a primeira obra, buscando mais uma representação simbólica do que o registro de uma paisagem real. É importante lembrar que esse é um tema muito apreciado por um público consumidor de uma arte que busca a representação de um espaço rural, de pessoas que vivem nas cidades grandes e desejam uma imagem de tranquilidade ligado ao mundo campestre. De acordo com Douglas Araújo, Até o início dos anos 70, a vida rural foi o centro, o habitat da maioria dos moradores do Seridó potiguar (...). Até aquela época, no plano da organização econômica, social e cultural da região, o campo se sobressaía frente ao urbano em desenvolvimento (...) a vida rural fora por excelência, o lócus de reprodução e manutenção da tradição, confrontando-se com os signos modernos da embrionária urbe e quase subordinado à sua lógica ou, às vezes, reverenciando-os (ARAÚJO, 2006, p. 20). 88 O colorido extrai a ideia de pureza e simplicidade associada ao sertão seridoense, seus contrastes modelam uma ideia de verdade para esse espaço. Figuras desenhadas pela história ressuscitam um mundo idealizado e inabalado, resistente ao sol como a sua vegetação, que mesmo nas piores secas serve ainda de alimento para o gado. Uma natureza construída para o dizer o homem que vive nela e assim se dizer definido por ela. Todavia, o que identifica o Seridó nesta paisagem? Antes de tentar responder a essa pergunta, torna-se importante considerar que a paisagem é portadora de sentidos. Conforme o geógrafo Eric Dardel, “a paisagem se unifica em torno de uma tonalidade afetiva dominante (...) a paisagem é um escape para toda a terra, uma janela sobre as possibilidades ilimitadas: um horizonte. Não uma linha fixa, mas um movimento, um impulso”. (DARDEL, 2011, p. 31). Compreende-se uma paisagem criada pela ação humana. De acordo com a geografia cultural, a paisagem é fruto das relações históricas-culturais, “no Ocidente medieval, a paisagem não existia como representação. A partir do século XVI, a noção de paisagem emerge das novas técnicas de pintura” (ROSENDHAL; CORRÊA, 2001, p. 14). Com o recurso da perspectiva no Renascimento, ocorreu o isolamento da paisagem. A paisagem é um construto humano, são sobrecamadas de memória, considerada uma obra da mente, segundo Simon Schama (1996). Ela é modelada pelas transformações naturais e pelo homem. As pinturas de Iran Dantas evidenciam um recorte espacial, um sertão povoado pelos signos que o identificam, homem e natureza integrados num espaço homogêneo. O lugar representado na pintura é possivelmente a zona rural de Currais Novos, município edificado sob o signo do gado – no entanto, simboliza todo o sertão. A história do povoamento dos sertões potiguares, os conflitos e confrontos étnicos, configuraram a região do Seridó, marcado feito gado, segundo Douglas Araújo: “ópera da formação do sertanejo tradicional”, com “a presença inicial dos currais e o modelo de fazendas sertanejas, como núcleo fundante e escultor do sentido da vida social daquela sociedade rural” (ARAÚJO, 2006, p. 34). Para esse autor, a “morte do sertão antigo” decorre da decadência de um modo de vida e de um conjunto de valores, entre as décadas de 1970 e 1990, a partir do contexto da crise do algodão e daquilo que ela provocou, instigando reacionalmente a nostalgia de um espaço resistente à mudança, à força da modernidade e à desestruturação da velha sociedade rural. Assim, “fala-se claramente do fim de um sentido social de vida, a morte de um típico sertão rural, da vida campestre tradicional” (ARAÚJO, 2006, p. 19). Um sertão alvo da escrita literária foi também subjetivado socialmente, criando-se uma imagem deste, reproduzido também nas artes visuais. Que fatores animam o artista a 89 deixar vivo este sertão antigo? Onde ele (o sertão) habita? Habita ali no imaginário cultural e social, mas também além, e [sobre]vive enquanto uma poesia que reverbera nas ações dos homens. Uma região que foi sendo territorializada, tomada posse, pelos povoadores portugueses de forma mais potencial em fins do século XVII e início do século XVIII, fundando as primeiras fazendas de gado e abrindo caminho para o desenvolvimento da pecuária, já que no litoral havia a necessidade de haver a separação da monocultura da cana de açúcar e a criação de gado em extensão. Sabendo-se da existência de povos indígenas que viviam nesse espaço, as noções de lugar selvagem e inóspito foram discursos legitimadores dessa dominação portuguesa, “o espaço sertão é uma representação cultural, resultado da ação dos homens” (LEONARDI, 1996, p. 59). No entanto, esse espaço do semiárido norte-rio-grandense não foi entregue docilmente, lutas como a Guerra dos Bárbaros, como ficou conhecida pela historiografia tradicional evidenciam um espaço tingido pelo sangue dos índios tapuias cariris. Segundo Macêdo (2015) as conflagrações deram-se por volta dos anos de 1683, estendendo-se até 1697 com um verdadeiro etnocídio de vários grupos indígenas. Voltaremos a esse ponto na análise da obra do artista Assis Costa, “A índia Luiza e as origens do Seridó” (2006). É importante dizer que o artista Iran Dantas nasceu em Currais Novos/RN, passou boa parte de sua vida nessa cidade, mas hoje vive em Natal, capital do Rio Grande do Norte. Ao longo de toda a sua vida tem sobrevivido exclusivamente de sua arte, fazendo exposições no interior e em Natal desde a década de 1980, tendo contato com a cena artística na capital e ocupou o cargo de agente de cultura da Fundação José Augusto durante o governo de Rosalba Ciarlini de 2011 a 2014. Em 1989, ministrou um Curso de Artes por um breve período em Currais Novos, quando Assis Costa foi seu aluno. Segundo informa seu pai, o senhor Francisco Hipólito Dantas37, de 84 anos, que exerce o ofício de relojoeiro na cidade há mais de 60 anos, Iran Dantas é autodidata, “ele é nato, é como eu sou relojoeiro nato”38, “Seu Chico”, o “médico dos relógios” como é popularmente conhecido. Relata ainda que o filho começou a dedicar-se a arte do desenho ainda criança, fazendo retratos dos colegas da escola. Vale ressaltar que em alguns sites e blogs do estado o artista é identificado como natural da cidade de Cerro Corá, porém o pai do artista confirma que Iran Dantas nasceu em Currais Novos. Fez diversas exposições no Brasil e uma exposição coletiva na França, “L’Univers Brésiliens”, na Galeria Everarts, em 2011. Sua obra remete à cultura popular, às suas 37 DANTAS, Francisco Hipólito. Entrevista realizada em 15/01/2016 em Currais Novos – RN. 38 Idem. 90 vivências do sertão seridoense, ao seu modo particular de ver esse ambiente no qual viveu e ao qual pode dar uma visibilidade por meio de sua arte. Contudo, segundo algumas pessoas que tiveram contato com o artista Iran Dantas nos diz que ele se interessava também por outras temáticas de cunho surrealistas e abstracionistas, mas essa produção artística não foi muito divulgada. Dantas argumenta que por necessidade de sobrevivência pintava a paisagem do sertão seridoense. É sem dúvida um dos artistas que mais retratou a cidade de Currais Novos e o espaço rural desta região, em todos os espaços oficiais dessa cidade, como secretarias municipais, hospitais, agências bancárias, clínicas médicas, supermercados, farmácias, lojas, pousadas e residências particulares é possível encontrar a obra de Iran Dantas, o que demonstra como a produção do artista foi solicitada ao longo de toda a sua carreira. Para exemplificar, temos duas pinturas que identificam essa cartografia pictórica da cidade de Currais Novos. Figura 14 – DANTAS, Iran. Hospital Ananília Regina.S/D. Acervo particular. Fonte: https://plus.google.com/110144835354123986926/photos. 91 Figura 15 – DANTAS, Iran. Avenida Cel. José Bezerra. 1998. Acervo Prefeitura de Currais Novos. Fonte: https://plus.google.com/110144835354123986926/photos. Mesmo sabendo-se da dificuldade de sobreviver da venda das obras num contexto cultural de desconhecimento dos valores artísticos culturais que a pintura possui para a sociedade num sentido amplo, percebe-se que a sua pintura foi aceita pela sociedade curraisnovense como uma imagem que registrava uma identidade cultural seridoense. Isso nos leva a refletir a força e o poder de uma memória que se quer eternizada, tendo o afeto como acionador de imagem e recordações, uma força impressiva, fixando uma memória, “capazes de permanecer por mais tempo na memória”. (ASSMANN, 2011, p. 239). Além desses aspectos potenciais da criação artística enquanto mecanismo rememorativo, configura-se também um mercado de arte local que permitia ao artista sobreviver, mas também fazia uma espécie de “imposição temática” das formas figurativas dos símbolos regionais do Seridó como um lugar afetivo. Um lugar que indica estabilidade, um assentamento à terra, aos costumes culturais solidamente construídos num imaginário social, refém de uma paralisia idealizada para o sertão, como se este não fosse um chão movediço, uma poeira móvel que é colorido com cores quentes, alegres, criando um sertão seridoense em que a paisagem é vida em movimento, mas que o tempo, e seus agentes transformadores não afetaram esse cenário, seria uma espécie de permanência de um ideal construído em conflito com a descontinuidade histórica . É possível adentrar nas entrelinhas do discurso do autor/pintor, que fabrica essa visibilidade, mas aparentemente não se conforma a ela, produzindo ao longo de sua vida artística uma diversidade de gêneros artísticos para além de seu tema principal: o registro 92 paisagístico da cidade de Currais Novos, assim como as festas de São João, Vaquejadas e Feiras livres. Perguntado ao professor de artes e marchand Antônio Marques39 como ele conheceu o artista Iran Dantas e quando passou a adquirir seus trabalhos, relata que desde muito jovem já circulava em Natal com seus quadros com o intuito de vendê-los a algumas pessoas, e logo se interessou pela sua arte. Percebeu que desenvolvia um trabalho voltado para o desenho de observação, pintava ao ar livre as fazendas de gado, a paisagem campestre do Seridó, a caatinga, salientado que muitas das obras poderiam ser de livre criação ou sob encomenda: Olhe! Iran é um pintor que sempre circulou por Natal, né! Desde que ele começou a fazer os primeiros rabiscos, ele circulava com quadros pra vender, procurava as pessoas, então eu saberia dizer muito, quando foi e o que eu comprei dele. Eu sempre achei que ele era uma pessoa talentosa, que era um bom artista. Agora eu acho assim, a coisa mais importante que aconteceu em relação a ele, era essa coisa de eu ter percebido que ele era um pintor de observação, e eu sabia que ele fazia muito desenho de observação, ele ia lá pro interior ao ar livre, aquelas fazendas e tal! Ali ele só tinha um caminho, que era o classicismo, ou ele enveredar por um caminho mais moderno, então o quê que eu achei, que ele encurtaria o caminho para o modernismo, tornando o trabalho dele mais espontâneo, mais primitivo; usando mais cor (...) aí que eu entrei, e houve muita oportunidade para ele, que eu tava abrindo a Galeria, no Centro de Turismo e foi logo em seguida, e lá tinha muito espaço pra esse tipo de trabalho, né! O turista procura muito! (MARQUES, 2015)40 A partir desse enunciado discursivo, percebemos o momento de “corte”, de mudança na perspectiva pictórica do artista Iran Dantas, mesmo deslizando num terreno escorregadio dos acontecimentos de um depoimento de terceiros. Essa cisão pode ser observada nas pinturas analisadas (fig. 12 e 13) pertencentes a temporalidades distintas, cronologicamente separadas por 20 anos. Ambas apresentam um cromatismo diferenciado, a primeira obra carregada de tons terrosos, que buscam similitude com a realidade, enquanto a segunda paisagem que demonstra a vivência no espaço rural seridoense está tomada por cores mais intensas e luminosas, a perspectiva é tratada de forma expressionista, segundo os moldes que o artista escolheu para trabalhar o tema, simplificando os traços, tornando um quadro uma interpretação “Naif”, estética e imaginária da realidade social e cultural que viveu. Principalmente pelo emprego de cores mais intensas e abordagem mais simplificada dos elementos, com inspiração nas pinturas ingênuas ou primitivas dos artistas conceituados como seguidores dessa corrente pictórica da história da arte. Cria-se um rótulo estilístico para acomodar o artista num determinado campo das artes, mesmo que ele transite nas diversas 39 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015, em Natal – RN. 40 Idem. 93 esferas pictóricas que perpassaram a historiografia da história da arte, como no caso de Iran Dantas que apreende principalmente em sua obra a arte moderna europeia do início do século XX. Ele criou um “estilo próprio”, uma pintura estilizada fundamentada a partir dessas escolas da arte. O mercado de artes do Estado do Rio Grande do Norte, conforme Antônio Marques é voltado principalmente para o turismo, sobretudo o visitante estrangeiro que visitava a sua Galeria de Artes no Centro de Turismo em Natal desde 1975 quando foi fundada. Por isso compreendemos que a imagem do sertão seridoense, as manifestações populares pintadas por Iran Dantas e outros artistas foram bem recebidas pelo público estrangeiro que chega ao Estado, munido imageticamente de um discurso cristalizado historicamente do espaço nordestino folclorizado, sempre alegre, endossando uma visibilidade espacial que procura traduzir uma região. No âmbito do mercado interno, segundo Marques, quem adquire as obras de artistas que vem se destacando nas últimas décadas no Estado é a categoria dos profissionais liberais, médicos, advogados, professores, para o marchand uma elite ainda despreparada orientada por arquitetos que não possuem uma significativa formação nas artes e frequentemente indica obras de artistas de outros lugares. Marques, porém, reclama principalmente do Governo do Estado, que não compra obras de pintores da terra para seu acervo, não realiza catálogos dos seus artistas, o que constituiria uma dívida histórica com a arte potiguar. O depoimento do marchand Antônio Marques, em suma, mostra-nos um pouco dos caminhos percorridos pelo artista como um profissional da arte, que acima de tudo procurava sobreviver de suas obras. O comerciante de obras de arte, aponta a pressão pela mudança estética ocorrida posteriormente ao contato inicial do artista com o marchand no final da década de 1980 e consequentemente com o mercado de artes em Natal, confirmando a visão de que a imagem folclórica “desejada” pelos turistas que visitam o Nordeste e o Brasil, fazendo uso de estereótipos recorrentes do popular, um gosto comercial por uma pintura primitiva que diz uma “verdade” sobre a região e a nação. Torna-se importante esclarecer que as duas obras, (Fig 12 e 13), de 1995 e 2015, ambas pertencem a períodos que o artista já mantinha contato com o marchand, porém o que observamos é a gradativa mudança de perspectiva estética de um tempo ao outro, sofrendo possivelmente as interferências de um mercado consumidor. Por outro lado, não podemos afirmar tal visão, talvez seja essa uma descoberta particular e íntima do seu processo criativo, de estudo de sua própria arte e que se insere num circuito comercial das artes plásticas no Estado do Rio Grande do Norte. 94 O primeiro quadro, (Fig 12) também evidencia o importante fato de o artista embrenhava-se na caatinga, vegetação típica da região em busca da essência do regional, uma representação daquilo que via que gerava em sua obra uma interpretação deste espaço marcada pela nostalgia, conjugando as cercas de pedra, os currais, as cabras em cima das pedras e o gado se refrescando nas vazantes dos açudes. Uma paisagem ainda cinza, de muita sobriedade, que tenta descrever o mundo rural, a vida no campo, no amanhecer do dia, todos num só lugar no impulso do trabalho – junção de vários fragmentos cotidianos – homogeneizados. No segundo (Fig. 13), vê-se uma mudança clara, é a junção de símbolos do universo rural, de forma mais colorida e simbólica não lembra uma paisagem real, mas imaginária. 3.1. CADA OBRA: UM NOVO OLHAR Tentaremos provocar nosso olhar sobre a pintura do artista Assis Costa. Longe de pôr um ponto-final na interpretação, a ideia é permitir a observação da obra a partir de seu conteúdo histórico-cultural, levando-nos para o ambiente no qual a obra foi concebida, entrevendo “a intencionalidade” ou as condições particulares da realidade social e cultural do artista que pode interferir no seu processo criativo. Na proposta de historicizar as imagens, Michael Baxandall (2006, p. 81) avalia o conceito de “intenção”, para o qual se trata de uma construção mental que descreve a relação de um quadro com o seu contexto. Segundo Rogério Cardoso (2008, p.12), “a melhor forma de conhecer a arte é por intermédio das obras”, num diálogo entre a arte e o meio no qual é produzida, pois em sentido mais amplo, a arte é uma forma de conhecimento do mundo. A pintura é entendida como o registro de uma verdade construída historicamente, pois a produção pictórica é mediada, sobretudo, por circunstâncias históricas, culturais e individuais do artista. Nesse caso específico, as pinturas de Assis Costa utilizadas como fontes de nosso estudo nesse capítulo são A índia Luíza ou as origens do Seridó, Sangue Derramado, Paisagem em três atos; Currais Novos, Colheita de algodão e Ceia entre dois rios. Francisco de Assis Batista da Costa, nascido em Currais Novos/RN em 1977, é artista plástico e trabalha técnicas múltiplas na pintura e escultura. Com 11 anos de idade participou do Curso de Iniciação ao Desenho Publicitário com o artista plástico Francisco Iran Dantas em 1988, e posteriormente, em 1991, participou do Curso de Desenho e Pintura Artística ministrado pelo também artista plástico João Antônio, tendo as premissas de seu conhecimento artístico. Segundo o próprio Costa, (2008), conviveu no universo da arte com 95 João Antônio e Jennerson Fernandes (artista que hoje em reside em Gramado/RS), artistas com os quais dividia experiências artísticas, como vídeos de performances artísticas. Com o amigo Jennerson Fernandes (Zeca Zenner), desde criança faziam “invenções” como robôs, brinquedos com restos de madeira e lata, que, segundo ele, foi significativo para a sua formação individual e artística. Afirma ele: “considero o quintal de minha casa a grande fábrica mágica...” (2008). Teve sua iniciação artística na década de 1990, por meio do curso de Desenho e Pintura ministrado pelo artista João Antônio, que trouxe na sua bagagem cultural as propostas do modernismo, imbuída da atmosfera das décadas de 1970/80 resultante do processo de redemocratização do País, além do universo múltiplo que envolvia a cultura mundial, na música e na liberação sexual, com as influências dos movimentos europeus e norte- americanos que tocavam a América Latina, mobilizando os jovens numa tendência de romper barreiras ideologicamente construídas. A produção artística desse período foi afetada pelos ideais marxistas, segundo as quais a dimensão social seria explicada pela divisão de classe. João Antônio foi um porta-voz de uma espécie de pedagogia social em torno da arte, em que as artes plásticas eram vistas como um instrumento de conhecimento que extrapolava os limites estéticos e passavam a significar uma ação social que propunha uma nova visão de mundo embasada na crítica social. A principal referência na cidade de Currais Novos nas áreas das artes plásticas era o historiador Joabel Rodrigues que havia estudado em escola de Belas Artes em Minas Gerais e exercia uma arte inspirada no classicismo europeu, tendo como preocupação a reconstituição fidedigna do real, tanto em retratos como em paisagens e imagens sacras. Nesse sentido, a prática artística trazida por João Antônio na década de 1990, veio transgredir essa ordem e propor uma expressão contestadora da realidade social. Assim elementos símbolos do sertão como o lampião e a lamparina, foram utilizados em estudos com a finalidade de recriação e desmembramento, numa espécie de reinvenção do objeto, provocando um olhar incômodo diante de cada signo e seus significados simbólicos naquele contexto interiorano. A pedagogia que exercia João Antônio evidenciava as várias vertentes do mundo artístico de maneira a integrar forma e conteúdo, numa perspectiva social da arte, tendo a prática cultural como instrumento de transformação da realidade social e histórica numa constante problematização dos signos regionais como o exemplo do lampião, um utilitário muito usado nas casas onde não havia luz, um objeto simbolicamente do mundo rural que passava a ser utilizado como um objeto de observação e de “destruição de sua identidade”, 96 assumindo, a cada reelaboração de sua forma, um questionamento estético e cultural. As Oficinas de Desenho de Observação e Iniciação à Pintura se realizavam ainda com técnicas teatrais de expressão corporal e cênica, ao som de Pink Floyd, Jean Michell Jarre e Kitaro. Os alunos ainda muito jovens, como Assis Costa, que tinha apenas doze anos de idade, já eram introduzidos a esse universo plural da arte41. Como também constituem nesse período o GRUPEHQ – (Grupo Pau a Pique de Histórias em Quadrinhos, formado por João Antônio, Assis Costa e Jennerson Fernandes, editando as revistas Estórias de Vaqueiros (1992) – a primeira revista em quadrinhos editada no Seridó – sendo o período inicial da linguagem em quadrinhos em Currais Novos, trazendo em seu formato a insurgência alternativa de temática regionalista. Caos nas Tetas (1993), com uma atitude reflexiva ante a realidade, que liberava a linguagem do apelo comercial predominante na indústria editorial do Brasil; e a revista Kueka 2001, constituída de um ideário contestador por meio das imagens, conforme o editorial da Revista Avoante publicada em 2014. Salienta-se que o artista João Antônio é identificado como quadrinista no livro de Dorian Gray Caldas, também por participar e ser amigo dos integrantes da Revista Maturi, o Grupehg (Grupo de Pesquisa e Histórias em Quadrinhos) entre as décadas de 1970 e 1980 em Natal/RN (CALDAS, 1989). Em Currais Novos, produziam, sobretudo, histórias que envolviam ficção científica relacionada com a realidade local. Os artistas consumiam principalmente os quadrinhos europeus, como Moebius, Milo Manara, Enki Bilal, Hugo Pratt, além dos brasileiros Watson Portela e Mozart Couto. Nesse período, o grupo também realizou performances artísticas gravadas em vídeos, tinham um tipo de conteúdo “alternativo” para a época, apropriando-se da linguagem surrealistas, esboçavam uma maneira de olhar o mundo de forma questionadora do social. Nesse sentido se produzia uma arte que se apropriava da memória cultural mundial, da linguagem dos quadrinhos e da própria história da arte, de nomes como Hieronimus Bosh ou Francisco de Goya e tantos outros artistas, dos clássicos aos modernistas. Sobre a experiência com o seu mestre João Antônio, o artista relata: João percebeu que aqui ainda era esse mundo dos currais e decidiu trazer essas experiências que ele tava vivenciando em Natal com outros artistas e tudo mais. E aí monta a oficina de desenho e pintura em 1991 com 30 alunos da rede pública, que esse era o grande ponto, quer dizer que ele não queria que as pessoas que viessem participar tivessem dinheiro, viessem da burguesia, mas que viessem das classes 41 Existem algumas gravações em vídeos das aulas ministradas pelo artista João Antônio que pertecem ao seu acervo particular. 97 sociais mais baixas, da periferia, esse era o ponto onde ele queria atingir, queria levar para as periferias o conhecimento, pegar aquelas pessoas que estavam ali sem ter nenhuma oportunidade de vivência desse tipo de coisa, questão de técnica e as experiências que ele trouxe iam muito além daquilo que qualquer pessoa na época pudesse pensar de possibilidades pra os jovens. O cara trouxe assim um novo mundo! Um mundo de possibilidades que pra hoje eu diria (...) 24 anos depois, ainda é uma coisa que parece estar ficando até mais além do que o que era na época. (...) na época a primeira aula que ele deu, não foi sobre o desenho, sobre a pintura, a primeira aula foi sobre Karl Marx, O Capital, aí ele convidou uma professora da universidade que foi falar sobre a história da revolução socialista! ... Por quê? Pra que a gente entendesse que a sociedade ela é construída através de ideais e de valores, e de fatores psicológicos e que a arte é uma ferramenta, assim como artistas é... De Chirico, (...) Diego Rivera... era muralista e socialista. Então assim, João ele já tinha dentro dele essa ideia socialista e principalmente a paixão pelos muralistas mexicanos42, e eu lembro que o primeiro trabalho que eu vi de João foi justamente um mural que ele fez sobre os trabalhadores da mineração (COSTA, 2015)43. A arte teria uma função social na visão do artista João Antônio, e essa mensagem foi incorporada na vivência artística de Assis Costa em diversas de suas obras. Aos poucos, o artista foi traduzindo em sua estética a sua forma particular de ler a realidade na qual vivia, produzindo paisagens, cenas do cotidiano, da cultura popular, que hoje se apresentam como temáticas norteadoras da sua obra figurativa. A forma como aborda o social na pintura prevalece um ideal descritivo sobre o cotidiano, uma imagem que recorre ao discurso cristalizado sobre o sertão, se constituindo como um elogio a um passado em que a natureza e o homem não se digladiavam. Quando o artista elabora uma obra, e escolhe determinada paisagem real ou imaginária para pintar possui uma intencionalidade, ou melhor, um conjunto de fatores, imbricados nas circunstancias sociais e históricas. Pintar o Seridó, determinando suas formas e cores é uma construção do pintor, imbuído do mundo ao qual pratica: Buscar tratar desses temas mais simples do cotidiano, da própria vivencia do sertão, Seridó, são muito importantes (...) Da própria vivencia do sertão, é interessante porque não existe Seridó noutro lugar. O Seridó só existe aqui, e quem vai falar sobre esse lugar, Picasso, Van Gogh, Monet, Renoir, os artistas de São Paulo, Portinari? Já morreram! Quer dizer, se não falarem quem é que vai falar? Quem é que vai dizer assim, quem é que vai ser o grande artista que vai passar essas mensagens? Alguém tem que fazer isso. Então penso eu, que nós como artistas daqui, a gente tem que falar do nosso lugar, mas como é falar desse lugar? Eu escolhi mais esse caminho mais da arte moderna, e as vezes um pouco da arte Naif (...) essa coisa de dizer que a arte é ingênua, ingênuo é pessoa que diz que a arte é ingênua, a arte ela não é, se você for ver Picasso dizia que ele pintava como uma criança, se você for ver a arte dele é ultra modernista, arte de vanguarda, mas porque ele era inteligente, sabia o que tava fazendo e vinha do academicismo, vinha da arte 42 O muralistas constituíram o grupo mais atuante e criativo que formava a vanguarda cultural revolucionária do México, com forte sentido do valor social de sua arte (...). A posse do primeiro líder revolucionário, Alvaro Obregón, no cargo de presidente, em 1920, iniciou um período de esperança e otimismo durante o qual nasceria o movimento muralista”. (ADES, 1997, p. 151). 43 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 98 da Europa, então se a pessoa não teve nada disso e começa a pintar, aí é Naif, é ingênua, a arte da pessoa? São rótulos, são preconceitos, a pessoa pinta da forma que consegue pintar, e a arte se ela tem poder, se ela tem força, se tem alma, isso quem vai dizer é o tempo, são as pessoas que vão vivenciar aqueles trabalhos (COSTA, 2015)44 Há, neste trecho, um discurso que sacraliza o espaço do Seridó, legitimando-o como espaço de uma estética particular voltada para o local. Como um “levante” da arte na busca por retratar um território, delineado por linhas de afetividade que realiza nas letras, nas artes visuais um espaço de identidade. O artista propõe sua arte como uma “fala” ou “voz” – “nós como artistas daqui, a gente tem que falar do nosso lugar” – sobre sua região, colocando a si mesmo como sujeito de poder e dizer para fazer existir como arte o Seridó. Além disso, problematiza e redefine a pintura Naif ou ingênua, a pondo no lugar que ela é: um conceito construído, põe em debate a própria formação da arte brasileira, do artista que pinta no interior do Nordeste que na maioria dos casos aprendeu de forma didática o métier artístico e que por pintar uma temática que referencia as paisagens do interior e as manifestações populares é classificado como uma arte não problematizadora, “inocente”, primitiva ou Naif. A produção pictórica de Assis Costa é ampla e diversa, porém serão destacados neste estudo as obras que tem como tema o sertão seridoense. Apreciemos a seguinte obra: 44 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 99 Figura 16 - COSTA, Assis. A índia Luiza ou as origens do Seridó, óleo sobre tela, 130 x 160 cm, 2006. Foto do artista. A história do povoamento dos sertões do Seridó é atravessada por conflitos étnicos, como a chamada “Guerra dos bárbaros”, que deu-se por volta de 1683 até 1697, quando os índios Cariris que habitavam o interior da capitania – dos cinco grupos étnicos canindés, jenipapos, sucurus, cariris e pegas (MACÊDO, 2012) – se levantaram em defesa de seu território físico e existencial contra os colonizadores europeus que vieram rasgar o tecido interiorano da capitania do Rio Grande com o intuito de realizar os assentamentos das fazendas de gado. Os sertões, vistos no imaginário europeu como uma vastidão de terras “desocupadas” e inexploradas pelo homem branco, atendia a necessidade de expansão da agromanufatura açucareira no litoral com mais pastos para o plantio e o consequente deslocamento da economia pecuarista para interior que fornecia a carne e a força para o trabalho nos engenhos. Desta forma, houve a separação da produção açucareira com a pecuária (MACÊDO, 2012). Os conflitos que envolviam os povos nativos viventes dessa região, a qual hoje nomeamos Seridó, com os colonos interessados em tomar posse desse território arrastaram-se até o início do século XVIII, demonstrando que a penetração nos sertões não foi de modo 100 algum pacífica. Após as primeiras expedições encontrando forte resistência indígena, Matias da Cunha, que era Governador-Geral do Brasil em 1688, contratou os serviços do Terço Paulista de Domingos Jorge Velho, que adiara a sua ida a Palmares. Segundo informa Helder Macêdo (2013), Velho combateu no Seridó, mas não participou da última batalha da guerra cujo palco foi o Acauã. Depois de exterminados, aldeados ou fugidos, os índios dessa região do Seridó, inicialmente denominado de Sertão do Acauã, seria ocupado pelos primeiros fazendeiros de gado, os sobreviventes sofreram esse impacto cultural, deixando nódoas históricas desse encontro entre diferentes visões de mundo, O gado era uma mercadoria que a “si próprio transportava”, uma mercadoria que andava. Chegaria ao sertão, como – a despeito dos homens brancos e seus cavalos – animais estranhos aos olhos dos índios, que muitas vezes o matavam, pensando tratar-se de simples caça (MACÊDO, 2012, p. 37). A paisagem que vislumbrava o homem europeu que adentrava o sertão poderia ser semelhante à pintura que tem como título A Índia Luiza ou as origens do Seridó do artista Assis Costa? A escrita de Oswaldo Lamartine, que instituiu também um modo de ver essa região, inscreveu no tempo uma narrativa cartográfica, etnográfica e poética do Seridó, assim descreve as chuvas: As chuvas são esparsas e mal distribuídas; 4 meses de molhado para 8 secos - é o que Deus dá nos anos normais de inverno. Mas tão cedo caem as primeiras chuvas, a vegetação estoura em verde nos arbustos – a rama – e o chão se atapeta de ervas e capins – a babugem. É o tempo da fartura em que o sertanejo tira a barriga da miséria, melhora de carnes, cria substância e, na força do feijão, vai se fazendo crescer em natalidade... (LAMARTINE, 1980, p. 56). O autor remete a um tempo em que a terra “vingava” o homem com os frutos do seu trabalho. Baseado em um discurso regionalista, Lamartine expõe a contradição de um espaço que é constituído pela ambivalência, ora afortunado com as riquezas proporcionadas pelas chuvas, ora sequidão e fome, estereótipos que permanecem no imaginário cultural sobre o sertanejo. Também por meio dessa relação do homem e a terra, uma topofilia para usar um termo proposto por Yi Fu Tuan, de modo a formular uma ideia identitária para o Seridó. Apresenta uma geografia espacial que nos leva ao quadro de Assis Costa que idealiza uma paisagem e projeta uma narrativa visual e histórica para as origens do Seridó num tempo anterior ao descrito por Lamartine. O solo verdejante são frutos das chuvas que caíram nesse terreno construído pictoricamente, uma tela que se torna a alegoria de um encontro cultural, de índios e portugueses, o momento inaugural da presença destes no sertão seridoense. 101 O título A índia Luiza ou as origens do Seridó (Fig.16) já prenuncia algo da obra. Baseando-se nos mitos de origem, Luiza, a índia, seria um símbolo da miscigenação dos povos indígenas e europeu nessas paragens seridoenses revelados no discurso da oralidade. Segundo o artista, em conversa, de tanto ouvir as pessoas falarem “minha bisavó foi pega à casco de cavalo”, instigou-se a produzir uma pintura que flerta com o gênero da pintura histórica na forma de abordagem classicista e nas grandes proporções, representando um momento de ação do colonizador laçando a índia. Essa obra foi pintada em 2006 e pertence a uma fase em que o artista procurava exercitar os aspectos formais de sua arte, como o desenho, a proporção, a luz e sombra. No mesmo ano também pintou uma Santa Ceia de grandes proporções, fazendo uma reinterpretação da cena bíblica eternizada por Leonardo Da Vinci no final do século XV. Figura 17 - COSTA, Assis. O abandono do corpo, 90 x 160 cm óleo s/ tela. 2006. Acervo particular. Foto do artista. A paisagem é uma imagem fictícia da região do Totoró, de onde se originou a cidade de Currais Novos, em 1755, que segundo Joabel Rodrigues de Souza “Totoró ou Tororó, é uma palavra de origem indígena e significa ‘lugar onde se encontra água”. (SOUZA, 2008, p. 83). Sendo, sobretudo esse lugar um símbolo iconográfico na obra de Assis Costa, assim como a Pedra do Caju, por possuir uma geoforma45 de um caju, na época de chuvas essa pedra 45 Toda forma de relevo onde se reconhece a gênese geológica são geoformas. A ciência que estuda os relevos e as geoformas é a geomorfologia. 102 encontra-se submersos nas águas. O cenário é imbuído de um caráter romântico a exemplo das artes visuais e da literatura brasileira do século XIX, que buscava fundar um sentido de unidade cívica a partir das produções artísticas incentivadas pelo Imperador Dom Pedro II, ao mesmo tempo em que se inseria na ideia do “Bom selvagem” inspirado em Rousseau (XVIII). A graça e a beleza feminina diante do seu opressor, o colono que veio em busca de riquezas e prazeres, pousou “placidamente” sobre a carne (terra) física e na carne humana. Um cenário idílico que moldura uma ação violenta e plasma a história mitológica de um nascimento imagético de um espaço, da miscigenação dos povos, representando uma índia com traços híbridos, e um colono vestido de roupas de couro, traje típico do vaqueiro sertanejo que anda nas caatingas, de alguma forma remete a ideia que o conquistador europeu já estava inserido no espaço sertanejo, significando uma criação artística que não busca uma reconstituição histórica dos fatos. O artista mostra uma guerra “íntima”, como símbolo do processo de aculturação, de mulheres vitimadas, que se moldaram forçosamente aos novos regimes culturais de uma sociedade portuguesa que trouxe não somente seus cavalos, gado, galinhas e vestimentas, mas seus sentimentos eurocêntricos, sua fome de riquezas seja por minérios, açúcar ou gado, buscando a fixação nesse espaço. Um investimento simbólico no chamado “novo mundo” marcado profundamente pelo genocídio dos povos indígenas. De acordo com Helder Alexandre Medeiros de Macedo (2013, p. 102), estudando a genealogia mestiça no sertão do Rio Grande do Norte, nos séculos XVIII e XIX, Câmara Cascudo ofereceu a chave para a compreensão das mestiçagens entre os nativos e os conquistadores, tratando-se da primeira referência na historiografia clássica do estado acerca das misturas que aconteceram nos primeiros anos da implantação da pecuária. Afirmando na década de 1950, que diversas famílias-troncos do Seridó tiveram avó indígena, caçada a casco de cavalo, as chamadas “caboclas-brabas” que sobreviveram a “Guerra dos bárbaros”, permaneceram na memória dos seridoenses. Elas seriam caçadas pelos luso-brasileiros, que as capturaram, de forma forçada ou não, “domesticando-as” para serem suas esposas ou concubinas. Para Medeiros de Macedo, ressaltando os estudos de Julie Cavignac acerca dessas narrativas sobre o passado colonial do Seridó, mostra que essa reconstituição rememorativa é uma versão mestiça em contraposição a história oficial, que deifica o conquistador europeu. Contudo, não se pode negar a violência e misoginia do ato. Medeiros fez uma intensa pesquisa, buscando informações com descendentes de vários municípios seridoenses como Acari, Carnaúba dos Dantas, Caicó e Currais Novos: 103 De maneira geral, essas narrativas relembram o estado de “vida selvagem” em que estavam as caboclas, perambulando pelo mato, cozinhando em panelas de barro, colhendo mel de abelha e usando-o como alimento acessório junto à caça e aos frutos da caatinga e falando língua difícil de compreensão pelos “brancos”. O processo de encontro dessas índias com vaqueiros e/ou fazendeiros, narram seus descendentes, geralmente ocorria nas proximidades de fontes d’água (olhos d’água, lagoas, poços) ou de serras, caracterizado, em quase todos os casos, pelo uso da violência para a “captura” das mulheres – daí o uso corrente, nas narrativas contemporâneas, da expressão “dente de cachorro e casco de cavalo” – e “domesticação”. As nativas deixavam de comer “insosso” e passavam a fazer parte da sociedade colonial e cristã – casando, em algumas vezes, com os vaqueiros que lhes capturaram, ou vivendo como amásias dos fazendeiros que ordenaram a “pega” no mato (MEDEIROS DE MACEDO, 2013, p. 107). Conforme correspondência de Sinval Costa (1996, p. 106) com Medeiros de Macedo, “o aldeamento dos índios continuaram, depois da Guerra dos Bárbaros, localizavam-se próximos a grandes poços: Luíza, Acari, e Poço de Santana”. Talvez daí tenha surgido o nome da Índia Luiza representada nessa obra do artista Assis Costa. Uma das questões discutidas pelo historiador é que havia pouca presença feminina no começo do século XVIII no Seridó, considerando antigos documentos que demonstram também que muitas mulheres já chegaram a Ribeira do Seridó casadas com fazendeiros vindos do litoral do Rio Grande, Paraíba ou Pernambuco. Assis Costa afirma que produziu a obra com o interesse também que o poder público municipal ou da região do Seridó adquirisse a pintura para compor o acervo iconográfico dessa região, constituindo-se como um bem público pelo seu caráter narrativo do mito da formação do Seridó. Contudo, não foi isso que ocorreu. A índia Luíza ou origens do Seridó passou cinco anos com o artista até ser vendida, em 2011, para um empresário de João Pessoa. Entendendo-se a obra de arte como acontecimento, ela mobiliza um olhar sobre a cultura e a sociedade de uma época. O artista viu a necessidade de representar a história do Seridó a partir de seu mito de origem, “a índia pega a casco de cavalo”. Trata-se de um episódio mítico, como demonstra Julie A. Cavignac: De fato, esse elemento narrativo aparece de modo recorrente nos depoimentos colhidos em diversos contextos etnográficos. Encontramos, de maneira furtiva, nas memórias familiares, a mesma trama discursiva que encena o rapto de uma índia. A moça é levada por um homem branco para longe de seu lugar de vida (a serra, ‘o mato’), e é mantida isolada dos demais, sendo “amansada” após ter filhos. O rapto estaria na origem da mestiçagem da população atual e corresponde em parte à realidade (...). De um modo geral, a imagem da índia selvagem integra-se à representação do mundo natural descrito: o mundo feminino corresponderia a um tempo primordial, fornecendo uma explicação sobre a origem das famílias e a “ascendência indígena” (CAVIGNAC, 2012, p. 60). 104 Assis Costa retratou o embrião simbólico da mestiçagem na região do Seridó que possui raízes numa história real. “Domar” a índia seria como domar a própria terra uma vez que a história da índia selvagem faz parte da representação do mundo natural que se associa ao universo feminino como um tempo embrionário. O artista esclarece em entrevista46 que o seu quadro não é fruto de uma encomenda, mas uma livre criação, fazendo-nos refletir como a região em que nasceu e vive até os dias atuais foi edificada discursivamente como um lugar particular, de singularidades culturais que são objeto de interesse para as artes plásticas dessa região. Assis Costa tenta reforçar essa identidade espacial instituindo uma imagem para seu passado, sobretudo uma luta violenta do encontro de mundos opostos. Figura 18 – COSTA, Assis. Sangue derramado, óleo sobre tela, 60 x 80 cm, 2005. Acervo particular. Foto do artista. 46 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 105 Na obra Sangue derramado (Fig. 18) o artista transfigura a temática indígena para outro plano estético. A figura multifacetada, em tom cubista, evidencia a mulher e sua criança no centro de vários símbolos paisagísticos e culturais como o Pico do Totoró, a pedra do Caju e a cerâmica podendo esse objeto manufaturado assumir um sentido utilitário ou ritualístico para cada cultura ao longo da história humana. É o passado do Seridó, onde mulheres fortes, de músculos escultóricos, assumem os papéis de mãe, mas também de chefe da tribo, demonstrada pelo cocar, adereço tradicionalmente usado pelos caciques. Assis Costa realiza com essa obra a denúncia de uma guerra, da resistência indígena nas plagas seridoenses. Consiste um modo de olhar a história a partir da pintura que põe os ícones paisagísticos da região do Totoró, onde se teria originado a cidade de Currais Novos/RN, cidade onde o artista vive até hoje.47. Esse é um lugar visitado pelo artista, o mesmo relata durante as entrevistas ter feito muitos acampamentos no local e diz que as pinturas rupestres existentes nessa região fascinaram o artista desde sempre, segundo ele há um sentido “místico” para o lugar, podendo ser imaginado como um primeiro traço artístico nesse espaço, dando notícias da presença humana desde eras remotas, fazendo-se interpretar que muito antes dos colonos portugueses virem ocupar onde hoje é a região do Seridó, os índios já eram os senhores desse espaço e deixaram o rastro de sua presença nas pedras. As duas obras produzem uma imagem para o passado do Seridó de maneira distinta, a primeira é o mito de origem, da mestiçagem e das famílias seridoenses, que busca recuperar o veio simbólico de uma trajetória no espaço, de pessoas que se nomeiam e renomeiam a cada prática social e cultural nessa identidade. E a segunda obra conjuga uma síntese formal de múltiplos planos as camadas de sentidos de um espaço, pintado predominantemente em tons terrosos associando o indígena a terra, que é cortado por uma faixa vermelha, uma cachoeira de sangue que sutilmente insinua separar mãe e filho, os herdeiros de uma tradição cultural há muito tempo esquecida, que vem sendo, aos poucos, objeto de interesse da historiografia contemporânea praticada no Seridó. De acordo com Stuart Hall, “os mitos fundadores são, por definição, transitórios: não apenas estão fora da história, mas são fundamentalmente a-históricos” (HALL, 2003, p 29). A índia Luzia e a origem do Seridó constrói uma narrativa histórica para o sertão seridoense, demarcando um sentido de identidade regional, uma imagem dotada de romantismo, imbuída de historicidade, configurando uma “origem” para a formação étnica e cultural do Seridó. 47 Embora desde 2002 passe temporadas na Serra Gaúcha, trabalhando como escultor e pintor para eventos culturais e parques temáticos, o seu ateliê, a sua cidade, e por conseguinte o Seridó pode ser visto como um lugar de pertencimento. 106 Segundo Assis Costa, apesar de ter passado por um processo de aprendizado com o seu mestre João Antônio, ele nunca frequentou escolas de arte e isto o teria influenciado a pintar nesse período de 2006 uma temática histórica de cunho classicista. A busca por retratar um passado para o Seridó constitui-se segundo vemos uma necessidade além das próprias necessidades do métier artístico. Nesse ínterim, o artista inicia sua trajetória no universo artístico no início dos anos de 1990 orientado pelo professor de artes e artista João Antônio, mas desde criança já exercitava o desenho como uma prática cotidiana com o seu amigo Jennerson Fernandes. O aprendizado com o seu mentor nas artes, o levou a uma arte de caráter social, abordando temas de crítica social, como a fome, o preconceito racial, aos dogmas religiosos, a exploração do trabalhador e a destruição da natureza. Porém gradativamente observa-se na obra de Assis Costa, um momento de transição e de procura de um traço particular, procurando nas pinturas de paisagem feitas ao ar livre, nos moldes impressionistas, o mundo cotidiano. Isso concomitantemente a temática das mulheres no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000. Nesse período surge a busca pela representação das cenas de manifestações populares, influenciado também pelas trocas culturais com o diretor de teatro de Currais Novos, Borges Potiguar, que elaborava Autos de Natal, que envolvia a tradição do boi de reis com a história local, numa proposta inspirada principalmente nas concepções teatrais de Ariano Suassuna. Nessa década aparece ainda a temática sacra com bastante evidência, as figuras de São Francisco de Assis, a família sagrada, Maria, José e Jesus, e São Jorge. Em 2007, ele pinta o primeiro Dom Quixote. Então, as duas obras aqui analisadas configuram-se na carreira do artista como símbolos de uma busca de aprimoramento técnico, mas sobretudo por uma forma de representação de sua cultura local e regional. Num encontro entre arte e história, buscou-se um reencontro com a imagem mestiça de uma região, que foi suplantada por um discurso branco homogeneizante. A paisagem comporta relações de poder. Ao determinar fronteiras, nomear lugares o homem exerce seu domínio sobre o espaço. Na paisagem se inscreve a memória, a natureza e a percepção humana são inseparáveis, na concepção de Schama (1996). O mundo natural é transformado pelo homem, como também pelo próprio curso da natureza, e para cada cultura em temporalidades distintas ela terá um significado diferente. A tradição paisagística da arte de uma determinada sociedade ditará a forma como percebemos aquela imagem. Historicamente as imagens bucólicas do mundo rural foram interpretadas como crítica a vida moderna. Schama afirma que pela arte ocorre a apropriação do homem dessa paisagem, que a 107 desenha materialmente e simbolicamente. Assim a paisagem seria uma construção humana, sendo espaço e lugar de memória. A paisagem participa do processo de formação de uma identidade, sendo vista como espaço de significação histórica. Schama entende paisagem e memória (1996, p. 25) como uma escavação feita abaixo do nosso nível de visão convencional com a finalidade de recuperar os veios de mitos e memória existentes sob a superfície. Zeny Rosendhal e Roberto Lobato Correia (2001) discutem a ideia da paisagem como uma construção cultural e histórica e a dimensão do espaço simbólico, consistindo em uma coletânea de artigos tecidos sob a ótica da geografia cultural. A proposta central é defender que, “a razão simbólica constitutiva do processo de construção da paisagem, desnaturaliza seu significado e revela sua dimensão cultural” (2001, p.9). Compreendendo-se a natureza como culturalmente produzida, os autores ressaltam que a representação das paisagens foi alterada sucessivamente na história. No ocidente medieval, a paisagem não existia como representação. No século XVI – a noção de paisagem emerge das novas técnicas de pintura. Há a valorização estética da paisagem como símbolo distintivo de posição social – (uma nova percepção – onde uns poucos poderiam desfrutar deste ideal construído). A perspectiva na pintura conseguiu dar autonomia a paisagem, isolando o exterior, rompendo com a visão bidimensional, dando a ilusão de profundidade. Os artistas renascentistas trouxeram uma nova luz sobre a paisagem representada, adquirindo neste sentido status de objeto. No século XIX, com os impressionistas, a subjetividade foi ganhando maior representação, e a importância dada ao real seria substituído pelas impressões da luz e cores sobre a paisagem. Podemos resumir dizendo que a paisagem é composta por diferentes representações, mesmo com a mesma materialidade: “Em cada época, o imaginário coletivo define a concepção social de natureza e a traduz, transformando-a em artefatos materiais e simbólicos, ou seja, em cultura”. (ROSENDHAL, 2001, p.11). As paisagens não existem a priori, como um dado da natureza, mas somente em relação à sociedade. Edivânia Gomes (2001) afirma que a natureza recebe valor a partir de uma dimensão cultural, ou seja, histórica. Ela surge como possibilidade de representação, inicialmente sob a forma artística, desde os registros mais antigos, pictóricos e narrativos. Escolher determinados recortes espaciais e temporais indica construção de critérios seletivos que revelam subjetividades, “a marca humana”. 108 Figura 19 - COSTA, Assis. Paisagem em três atos, acrílica sobre tela, 60 x 150 cm, 2010. Acervo particular. Foto do artista. Paisagem em três atos é o título da obra de Assis Costa, pintada em 2010 como parte de uma série de pinturas que foram realizadas para compor o acervo particular de uma Clínica médica chamada Humanitare, pertencente ao médico Flaubert Senna, inaugurada nesse mesmo ano na cidade de Currais Novos/RN. Foram produzidas vinte e seis obras, entre telas e desenhos à nanquim. A encomenda, segundo o artista, sob influência da arquiteta Daniela Othon, deveria trabalhar os temas regionais, aludindo a paisagem natural e cultural do Seridó seguindo a tendência pictórica já característica do artista, que se apropria dos diversos estilos propostos no modernismo europeu e brasileiro, como cubismo e expressionismo, tendências pictóricas trabalhadas pelo artista desde a formação com o artista João Antônio. Dentro de um figurativismo estilizado o mesmo elucida o mundo rural, a paisagem do campo conforme o seu imaginário construído. O tema Seridó encontra-se presente com mais ênfase a partir de 2006, conforme visualizados em diversos estudos, esboços registrados em cadernos que o artista preserva em seu atelier. Em 2011 ele realiza a exposição intitulada Seridós na Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte, segundo ele, sem apoio nenhum do Estado. Eles cederam apenas o espaço para a exposição. O quadro é dividido em três cenas principais, nomeadas pelo artista como “Atos”, remontando ao vocabulário do teatro. Segundo nossas pesquisas, Assis Costa atuou no teatro em Currais Novos na década de 1990, participando do “Grupo Boca de rua” dirigido por Paulo Gomes. Também trabalhou com o teatro quando cursava a faculdade de Letras, na UFRN (Campus de Currais Novos), curso que quase concluiu, sendo que chegara a ganhar prêmios literários no Concurso “Navegos” de poesia. Assis Costa levou a atmosfera cênica para a obra, que poderia representar um tríptico na pintura, um conjunto de três cenas “independentes” unidas no mesmo espaço pictórico. 109 Poderíamos dizer que no primeiro plano estão os corpos dos personagens dessa produção pictórica. O primeiro Ato enquadra três personagens: a senhora negra grávida sentada ao banco, o gato que se espreguiça e a outra senhora de cabelos brancos na janela. Ressalta-se que o número três repete-se também na quantidade de armadores de rede pintados na parede do casario antigo. A luz parece ser o amanhecer do dia e a sociabilidade nesse despertar no campo é indicada pelo trabalho. Os únicos em estado de descanso são as senhoras que travam uma conversa no alpendre da casa do primeiro Ato, duas mulheres em distintos momentos da vida: uma espera uma criança, indica o nascimento de uma vida, simbolizando a renovação; enquanto a senhora de cabelos brancos mostra a mulher que descansa do trabalho e olha a vida recomeçando, da janela se posiciona ao mundo que a cerca, a paisagem que poderia por toda a sua vida ter visto, o nascer e o pôr do sol. O segundo Ato, circunscreve um espaço dedicado à presença masculina com dois homens, um branco e um negro, possivelmente vaqueiros daquele sítio denotados pelas vestes simples. Ressalte-se que em várias das obras do artista o elemento da miscigenação brasileira associado ao sentimento de brasilidade é pintado e, neste caso especificamente, Assis Costa mostra que o espaço sertanejo é ocupado por negros, brancos e mestiços. Os homens e seus cavalos demarcam o centro do quadro, demarcando o centralismo do masculino nesse ambiente tradicional. No terceiro Ato, uma moça alimenta as galinhas, que possuem uma escada na árvore para o descanso noturno, seu espaço é dividido com uma vegetação de cactos e bananeiras. Todo o fundo é definido por uma paisagem simbológica definida pelas pedras, serras, caminhos e craibeiras, árvores que só florescem uma vez ao ano e acendem de amarelo a paisagem dessa região. O Pico do Totoró denuncia o espaço geográfico – localizado na zona rural de Currais Novos e conhecido como a “pirâmide do Seridó” pelo seu formato triangular é tido como um marco local. Outro marco que surge na tela é a pedra do Caju, que se localiza no açude do Totoró, mas na pintura sofre uma adaptação, tendo sua forma desdobrada, impregnando-a de uma maneira humanizada como uma figura que parece ter corpo e cabeça a observar a cena. Segundo nossa interpretação, a pedra é uma metáfora da permanência discursiva dessas relações sociais e culturais dessa região do Seridó, uma vez que a pedra sofre muito lentamente as mudanças temporais. Cercas de madeira dividem espaços e o conjunto de casa com alpendre e rede é outro elemento que se repete na obra do artista para simbolizar essa espacialidade. O quadro constitui-se em grande dimensão, como uma pintura mural, porém longe da perspectiva dos muralistas mexicanos, que adotavam uma visão de crítica social nas artes 110 visuais nas décadas de 1920 e utilizavam a técnica do afresco para pintar pinturas monumentais, inspirados pelos ideais socialistas contra a ditadura de Porfírio Diaz e integrando as artes da pintura e escultura. Paisagem em três atos busca criar uma representação do modus vivendi do sertanejo, a sociabilidade local vivida no campo. Nessa obra específica, o sentimento que impera é o de construir uma visibilidade para a região do Seridó, calcada na história cotidiana, do universo rural, a associação da economia pastoreia a formação do espaço seridoense. A região do Seridó é produto de uma rede discursiva, de acordo com Macedo (2012) que entende a região como um quadro de referência para a sociedade, tendo como pressupostos teóricos Albuquerque Jr. (1994) e Iná Elias de Castro (1992). A noção de um espaço diferenciado se alinha a proposta de construir um discurso regionalista ancorado em signos identitários como a terra, o homem e suas mercadorias. O autor analisa a produção do espaço seridoense a partir dos discursos regionalistas das elites algodoeira-pecuaristas nos séculos XVII, XIX e início do século XX, utilizando como fontes a produção intelectual como as crônicas de Manoel Antônio Dantas Correia, artigos de Manoel Dantas, textos de Juvenal Lamartine e José Bezerra de Medeiros. Ao discutir a história do regionalismo seridoense, o historiador Muirakytan K. de Macedo nos diz que foi efetivamente no fim do Império e início do período republicano que o Seridó se constituiu como região, como um lugar particular, construindo uma certa “identidade”. O autor aborda o embrião do Seridó enquanto construção discursiva de suas elites, sendo a identidade seridoense o resultado das estratégias de poder dessas elites. O discurso dessas elites empreende a ideia de uma natureza singular do homem sertanejo a partir dos interesses de uma aristocracia algodoeira que via nesse imaginário uma forma de superar os dramas de um espaço em crise. O Seridó começa a surgir no discurso político como uma estratégia de manutenção e monopólio do poder. A partir do conflito entre o litoral e o sertão no final do Império, havia a necessidade de dar uma fisionomia particular aos seridoenses, investindo-se simbolicamente no imaginário do homem sertanejo. Conta-nos Macedo (2012, p. 33): Em fins do Império foi a vez da estruturação do personagem regional: o seridoense. Duas imagens foram produzidas. A primeira delas aparece nos jornais da província, urdida na disputa eleitoral entre José Bernardo de Medeiros (principal liderança sertaneja) e Amaro Bezerra (chefe do partido liberal potiguar e chefe das forças políticas sediadas no litoral), que competiram pelo domínio do 2º Distrito – território eleitoral que abrangia todo o sertão, e que era comandado pelo seridoense José Bernardo. O seridoense era representado no jornal O povo, editado e impresso em Caicó, como a encarnação virtuosa dos costumes sertanejos aferrados à rotina e ao 111 conservantismo, hábitos tão pétreos que não permitiam que ele se dobrasse à ameaça representada pelo candidato vindo do litoral (MACÊDO, 2012, p. 33). Naquele momento, as elites seridoenses se apropriam de um discurso que construía a imagem do homem sertanejo, ao mesmo tempo em que coexistia uma visão dicotômica. Dependendo dos jogos de interesses os símbolos construídos poderiam assumir uma feição positiva ou negativa de acordo com as circunstâncias sociais e políticas de cada tempo, ora vinculando-se a força de superação, ora ao suposto atraso que impedia as mudanças necessárias a um progresso regional: Forças telúricas surgiam de uma paisagem onde a indigência da natureza esculpia homens da semelhança de pedras sem porosidade (...). Essa identificação do sertanejo com os contornos do inamovível é um caminho de mão dupla. A rigidez de seu caráter, a solidez de sua palavra empenhada, o orgulho à constância de seus aferrados costumes, a honra que pode ser ritualizada com a morte, todos esses valores são manipulados compondo sua fortaleza diante do adversário (MACEDO, 2012, p. 140). A contraposição ao litoral foi uma estratégia assimétrica de distinguir o sertão e o sertanejo do “outro”, o que é incorporado por meio da atualização constante de símbolos que apontam para a permanência como o vaqueiro. A obra de Assis Costa, (fig. 19), desenha o espaço do Seridó também a partir de seus símbolos, como a paisagem e o vaqueiro como homem integrado a terra, associado ao gado, todos elementos da matriz discursiva do território seridoense. Podemos inferir que o tempo representado na pintura se refere a um momento em que havia a estabilidade do homem branco, negro, miscigenado no espaço seridoense. A Paisagem em três atos do artista Assis Costa cristaliza o Seridó pecuarista, tecendo um discurso imagético que define essa região, produz na contemporaneidade um olhar nostálgico, requerido pela maioria dos seridoenses, que desejam e se identificam com o objetivo de paralisar o tempo, de sustentar símbolos arquetípicos de um lugar, construídos histórica e imageticamente pelos próprios seridoenses em relação ao outro diferente, posicionando no espaço regional do Estado como sertão do Seridó. A obra sendo uma encomenda atende aos critérios de representação espacial dessa região, mesmo tratando-se de uma pintura de referências modernistas48, composta com traços estilizados, ainda não totalmente aceito pela maioria das pessoas que vivem nessa região 48 É importante lembrar, como já apontado antes, que os princípios estéticos, formais e históricos da arte moderna foram levados para a cidade de Currais Novos no final dos anos de 1980 com o professor de artes João Antônio. 112 A obra leva-nos para um tempo distante, de encontro com as vivências esquecidas pela “força massificadora da globalização”, sendo que esta última é traduzida de forma particular para cada localidade: Quanto ao impacto da globalização sobre a identidade é que o tempo e o espaço são também as coordenadas básicas de todos os sistemas de representação. Todo o meio de representação – escrita, pintura, desenho, fotografia, simbolização através da arte (...) – deve traduzir seu objeto em dimensões espaciais e temporais (HALL, 2006, p. 70). As relações espaço-tempo estão sendo constantemente redefinidas com a pós- modernidade ou modernidade tardia. Os movimentos artísticos como o movimento cubista de Picasso e Braque trouxeram à luz o sentimento que se configurava de instabilidade e aceleração, o princípio de uma mudança na sociedade e a fragmentação do sujeito cartesiano. Stuart Hall reflete que as identidades modernas foram descentradas na modernidade tardia, e entre outras consequências da globalização sobre as identidades ocorreu o fortalecimento das identidades locais e a formação de novas identidades. Para Hall, ocorreu a constituição de identidades híbridas advindas de nova dimensão de espaço e tempo, sendo ressignificados com novas características construindo posições diversas, deslocamentos de conceitos enrijecidos por uma visão criada no período iluminista do sujeito unificado, surgindo com isso identidades múltiplas, mais flexíveis, híbridas e descentradas. Para Hall, a “compressão de espaço-tempo” é a aceleração dos processos globais e, evidencia que com o passar do tempo, as identidades locais, regionais e comunitárias se tornam mais importantes, e nessa tensão entre o global e o local na mutação das identidades, ocorre uma postura dinâmica, contestando as identidades fixas do passado devido aos processos culturais híbridos. O discurso que fundamenta essa visibilidade tornava visível em imagem pictórica uma realidade que não acontece diante dos olhos das pessoas da cidade – ela é imaginada e simbolicamente apropriada pela ação humana. Considerando-se o conservadorismo estético impregnado nessa cultura seridoense, ter acesso a um quadro que se mostra como “autorrepresentação”, de uma paisagem e uma cultura seridoense e está composto de uma forma não tradicional, demonstra o consumo de arte por um grupo específico da sociedade, de uma elite que possui um poder aquisitivo, deseja ganhar status social e criar também uma imagem de modernidade em relação ao contexto regional do Estado do Rio Grande do Norte e do país. Porém com um conteúdo que valoriza a vida rural, numa simbiose entre o moderno 113 em termos estéticos e o tradicional na forma como interpreta o universo no campo, o trabalho, as vivências cotidianas como simbólicas de uma região. Já apontamos acima que a pecuária foi uma das primeiras atividades usadas como marcadores da identidade e da paisagem do Seridó (MACEDO, 2000). Figura 20 – COSTA, Assis. Colhedores de algodão, acrílica sobre tela, 80 x 90 cm, 2010. Acervo particular. Na obra do artista Assis Costa, os Colhedores de algodão (fig. 20) datada de 2010, no primeiro plano, dois homens e uma mulher, personificam o trabalho no campo de algodão. A paisagem não parte de um lugar real, mas imaginário. Uma plumagem a perder de vista cria uma perspectiva onde se visualiza mais trabalhadores. O campo vasto, a plantação, as casas, as serras em azul formam a profundidade, a natureza modificada pelo homem, desejando mostrar a imensidão e a força de uma prática econômica que hoje é obsoleta, mas transformou-se em símbolo cultural da região do Seridó. Somente o homem do canto direito 114 da obra olha para o espectador, o único a sentir-se representado pelo artista – seria esse o que olha para o presente, indagando o seu lugar social? As demais figuras representam, segundo nosso entendimento, o trabalho quase ininterrupto do trabalhador dos campos de algodão, um produto revestido de um discurso imagético que ainda sobrevive no imaginário social dessa sociedade. A sobrevivência de muitas famílias era mantida pelo seu cultivo. De modo amplo o desenvolvimento econômico da cotonicultura proporcionou uma mutação no espaço urbanístico, arquitetônico e no modus vivendi de várias cidades que compõe o Seridó. Abordar, a partir dessa obra, a permanência de uma imagem que identifica a paisagem seridoense é trazer à discussão a maneira como se configurou, na história deste espaço, a produção simbólica da cultura do algodão para essa região do estado do Rio Grande do Norte. Para Macedo (2012, p. 213) “a cotonicultura no regionalismo seridoense é uma imagem de eterno presente e futuro a ensombrecer o criatório”. Isso porque desde o final do século XIX a excelência do algodão do Seridó já era reconhecida, incorporando uma nova dinâmica na secular forma de produção do espaço seridoense que se ancorava na pecuária. A crise econômica da atividade pastoreia devia-se tantos aos efeitos das constantes secas como pela queda no preço do gado imposta pela Companhia de Carnes Verdes do Recife, principal centro consumidor dos produtos da pecuária vindos do Seridó (MACEDO, 2012). Segundo Macedo as secas entre os anos de 1791-1793 destruíram os rebanhos e despovoaram as fazendas, abrindo caminho para a semente mercantil do algodão. Nesse contexto, o espaço seridoense foi produzido pela cotonicultura no processo de mudança de eixo político potiguar do litoral para o sertão na década de 1920. Como o discurso regionalista se gestou no seio da elite algodoeira pecuarista, constituindo-se nessas mudanças econômicas no momento em que uma nova geração de filhos de fazendeiros formados pela Faculdade de Direito, período em que efervescia a propaganda republicana, fundando-se, naquele contexto, discursos compósitos que constroem uma identidade para Seridó. Há uma série de enunciados que circulam até hoje que buscam associar a identificação das virtudes do homem sertanejo com a qualidade da fibra do algodão produzido no Seridó, mesmo que atualmente inexista uma só lavoura de algodão. Mesmo ausente, o algodão continua a gerar valores simbólicos, sendo considerado como uma peça da matriz discursiva formadora da paisagem regionalista. A pecuária estava associada com a origem do Seridó, enquanto o algodão surge como uma espécie de superação regional. Embora voltado para o mercado interno brasileiro, o algodão norte-rio-grandense também se expandia para o mercado estrangeiro. A cotonicultura torna-se o principal produto do Estado do Rio Grande do Norte no final do século XIX e início do século XX. Conforme 115 Macedo (2012), isso se definiu principalmente pelas crises conjunturais ocorridas nos Estados Unidos da América, primeiro na guerra de independência (1776-1783), a Revolução Industrial Inglesa, sendo esse país o principal comprador dessa matéria-prima e a Guerra de Secessão na década de 1860. O produto sofre uma alta demanda devido a baixa oferta e uma rápida subida dos preços favorecendo o algodão produzido na região do Seridó, que atenderá o sedento parque têxtil britânico. Além disso, houve também a grande seca de 1877/79, que permitiu uma nova expansão espacial para o algodão que se deve a variedade arbórea Mocó, a espécie que melhor se adaptou a essa região, graças as suas raízes profundas mais resistentes a seca. Essa variedade de algodão tornou-se um elemento identitário do seridoense. De acordo com o historiado Muirakytan K. Macedo atribui-se essa persistência simbólica do algodão no imaginário desse espaço a crise da produção cotonicultora vivenciada a partir da década de 1970. Juvenal Lamartine (1874-1956), um típico representante da elite seridoense, ao lado de seu filho Oswaldo Lamartine, sedimentaram uma historiografia sobre os sertões do Rio Grande do Norte numa verdadeira etnologia do espaço sertanejo. Ele defendia o autêntico algodão do Seridó como um meio de projetar politicamente e economicamente o Estado para o cenário nacional. A ideia que norteava o seu discurso era integrar o sertão do Seridó com a nacionalidade, pautado na valorização do espaço do interior do Estado desenvolvido pela cotonicultura, promovida pelo conhecimento técnico e científico. Com isso demonstrando as nuances discursivas da mudança do eixo político espacial do Rio Grande do Norte. A produção simbólica desse espaço de superação, tendo como elementos o solo, o homem e o algodão formam a base da identidade sertaneja do Seridó potiguar. A cotonicultura construiu uma visibilidade para essa região por volta da década de 1920, no momento em que ocorreu a mudança do eixo político do litoral para o sertão a partir da conquista política do Estado pelas elites seridoenses. Na chamada República Velha, a região foi definida pela economia algodoeira e esse produto recebe a aura de elemento identitário do Seridó. Como sabemos a arte é capaz de construir e reforçar símbolos, tomamos como exemplo o quadro Café do pintor Cândido Portinari, o qual segundo Luciene Lehmkuhl (2011, p. 20), desde 1935, vinha sendo alçado à categoria de obra-símbolo do Brasil. A tela foi agenciada como estratégia política do Estado Novo para composição de uma promoção da identidade nacional, criando uma imagem forte do Brasil que coadunasse modernidade e tradição. 116 O Café, de Portinari aborda o tema do trabalho enfocando o povo brasileiro, aquele que seria considerado o tipo ideal para o projeto de engrandecimento, de unidade e de nacionalização. O trabalhador de Portinari lida com a terra vermelha e fértil do solo brasileiro, cultiva o produto mais importante da balança comercial brasileira durante os anos iniciais da República, o país e o trabalho são mostrados através dos trabalhadores (...). (LEHMKUHL, 2011, p. 241). Figura 21– PORTINARI, Cândido. Café, óleo sobre tela, 130 x 195 cm, 1935. Fonte: http://artenarede.com.br/blog/wp-content/uploads/2016/04/Cafe_Portinari1.jpg A produção pictórica de nosso artista Assis Costa incorpora essa iconografia brasileira no modo de representar o trabalhador com o intuito também de significar o espaço em que vive. Em âmbito local e regional, possui destaque pela síntese estética que realiza dessas múltiplas imagens que foram construídas para o sertão potiguar, tanto que consegue sobreviver exclusivamente de sua arte como um profissional. Ao relatar sobre suas referências nas pinturas, fala de Cândido Portinari e outros mestres: Então os artistas brasileiros que trazem essa influência como o próprio Portinari, Tarsila do Amaral, Anita Mafalti e Di Cavalcante vão pra Europa e começam a vivenciar a década de 30, 40 na Europa quando tá tudo no quente da coisa, porque Picasso tava desenvolvendo o trabalho dele a partir da década de 1910, 12 em diante, década de 20 já era um mestre reconhecido. (...) O próprio Portinari teve uma influência tão pesada assim, tão marcante foi a obra de Picasso. Acho que ter ficado diante de Guernica, que aquilo ele trouxe por um bom tempo até que foi mastigando, mastigando, e criou a sua própria forma de fazer. Mas porque Portinari também era outro mestre, então você se liberta num certo momento da sua vida, você se liberta das influências, mas eu acho que toda arte, que você pega como inspiração, pra sua vida, é como uma gasolina, você precisa daquilo para encher seu tanque ideológico e pra lhe dar ânimo e continuar fazendo, porque se você tá achando belo o que o outro fez e da vontade até de fazer algo assim também, isso é ânimo, depois, lógico, aí 117 você aprende a andar com as próprias pernas, aí a pessoa consegue depois tirar as rodinhas do velocípede, e consegue sair pedalando sozinho (COSTA, 2015).49 O relato é de uma artista que se preocupa em tecer relações entre os artistas que se fixaram na História da Arte como mestres, a inevitável apropriação artística no descobrimento de sua própria arte. Vários personagens que se cruzam no espaço e no tempo, fundam movimentos que serão nomeados como unidades de pensamento, correntes estéticas que homogeneízam uma ideia comum da arte. Na verdade, tais concepções enquadradas em estilos pictóricos sofreram desdobramentos, chegando ao mundo contemporâneo na pintura de Assis Costa como uma interpretação pessoal desse conjunto de práticas artísticas. Tem-se em seu discurso um saber sobre o passado artístico na Europa e no Brasil, com isso podemos analisar que ao referir-se esteticamente a esse legado nas artes, a relação que tecemos entre a obra de Portinari e a pintura de Assis, os Colhedores de algodão, seria a potencialidade semântica da imagem, vendo-se como a partir de uma obra se constrói uma visibilidade espacial seja esta regional ou nacional. Se o quadro o Café de Portinari integra uma iconografia nacional, o algodão do Seridó e seus trabalhadores são partícipes de uma identidade seridoense. Assis Costa no contexto interiorano no Rio Grande do Norte fabrica uma visibilidade para o Seridó. Essa obra foi pintada no ano de 2010 e pertence a série de encomendas realizadas para a Clínica Médica Humanitare, já mencionada, com a orientação da arquiteta Daniela Othon, que solicitou ao artista uma série de pinturas que retratassem a cultura seridoense como forma de divulgar a região e a sua produção artística. A obra constitui-se como um acervo particular que está num espaço de circulação social na cidade de Currais Novos/RN, onde uma parcela da sociedade tem acesso aos serviços médicos privados ou de convênios com o SUS (Sistema Único de Saúde). Assis Costa teria sido o artista escolhido para realizar esse conjunto de obras, que na verdade segundo compreendemos, essa escolha é influenciada pela própria produção pictórica do artista, levando-se em conta suas exposições ao longo de mais de vinte anos vivendo como artista plástico nessa região. Segundo nos revela o artista em conversas informais, havia o interesse que as obras tivessem como tema o Seridó, logo a arquiteta já conhecendo o trabalho do mesmo há alguns anos, sendo admiradora do seu trabalho solicitou a encomenda. Fazendo-se refletir que a sua arte se apropria dos significados simbólicos existentes nesse meio social, construindo com esforço artístico há mais de 25 anos uma carreira que se consolidou com muito trabalho, 49 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada no dia 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 118 vendo-se a quantidade de obras já vendidas em seu acervo impresso e digital. Suas pinturas dialogam com os traços da modernidade, sintetiza signos, suas figuras elegantes pousam em cenário belos, coloridos, atraindo os sentimentos de alegria e de pertencimento com o lugar que é representado, na maioria das vezes a sua aldeia – o Seridó, produzida pictoricamente. 3.2. OLHOS D’ÁGUA DO SERTÃO Na pintura de Assis Marinho, o sertão é mar nos olhos de suas figuras humanas. Ele mobiliza o espaço de sua infância, de suas memórias no interior do Rio Grande do Norte como temática norteadora de sua arte, Dercílio Morais, amigo de infância do artista Assis Marinho, a sua obra representa: Ele retrata uma coisa de pureza, da origem dele, o povo sertanejo, ele marca muito o agricultor. Ele pintou muito algodão, a colheita de algodão, do pescador, o menino com gaiola, o menino com baladeira, o menino brincando de piquete, que era a brincadeira da gente. Eu acho que Assis representa o povo muito bem. Tudo que ele faz eu gosto! Eu gosto da lavadeira, gosto daquela mulher que vem com um feixe de lenha que ele pinta, aquele senhor com um feixe de lenha e uma foice na mão. Mostra a memória do Seridó! Ele mostra a memória do nordestino. Retrata a infância da gente, retrata nossa memória. Eu gosto também do pescador, não o pescador lá do litoral, mas o pescador nosso que ele pinta (...). Eu acho que ele puxa muita a memória da infância dele, a pobreza que ele viveu, aquele povo da época que ele viveu. Ele vê Maria como uma retirante... ele pinta a fome, aquele povo com o olho sofrido, pedindo, pedindo perdão... pedindo... como se estivesse... a gente ver aquela criança sofrida , com fome, como se tivesse com a necessidade de algo, pedindo algo (...). Ele retrata muito bem a nossa cultura, o nosso povo, um quadro vivo da gente (...). E os sertões ele pinta perfeito! Ele pinta a cerâmica, o algodão, o peixe (...) (MORAIS, 2016)50. O quadro discursivo é composto e moldurado pelo sentimento de pertencimento ao espaço do sertão do Seridó. Percebe-se que Moraes está embalado pelas imagens reais e imaginárias que foram construídas em torno do discurso da seca que caracteriza o Nordeste como um espaço pedinte e de dor, um discurso de verdade que foi construído historicamente, subjetivado culturalmente e reproduzido como uma máquina histórica de saber e poder. A prática artística também se nutre desse imaginário, tendo como um grande “paradigma visual” a série dos retirantes de Cândido Portinari pintada na década de 1940, marcada pela denúncia social. O êxodo rural nordestino retratado por Portinari faz parte de uma iconografia nacional que construiu e fez ver o Nordeste de forma dilacerada pelas secas que assolavam a região, 50 MORAIS, Dercílio. Entrevista realizada em 13/02/2016 em São João do Sabugi – RN. 119 cristalizando-se no tempo enquanto um discurso de verdade aplicado unicamente a essa parte do país sujeita climaticamente a estiagens periódicas. Conforme Albuquerque Jr. (1999) são sobretudo “quadros de dor”, responsáveis por criar uma visibilidade sobre o Nordeste. A pintura de Assis Marinho se entrelaça a sua vida e trança os símbolos de uma regionalidade seridoense, espaço em que viveu durante a infância. A sua trajetória artística foi muito marcada pela sua vivência no sertão do Seridó, por uma travessia relatada por ele em vários depoimentos. Nascido em 1960, em Cubati na Paraíba, migrou com a sua família quando tinha por volta dos cinco anos de idade para São João do Sabugi, interior norte-rio-grandense, em busca de melhores condições de vida, segundo ele fugindo da seca e da fome. Ressalta-se que em várias matérias para jornais e sites do estado do Rio Grande do Norte, o artista diz ter vindo do sertão paraibano como um retirante, o trajeto foi feito a pé, cerca de 95 km sob o sol. De acordo com a senhora Maria das Graças de Azevedo51, 67 anos, parente de Assis Marinho que vive em São João do Sabugi, a família ficou por volta de uns três dias embaixo de uma árvore Oiticica, quando o pai da senhora Maria das Graças que já é falecido, teria reconhecido a mãe de Assis Marinho como sua sobrinha, abrigando toda a sua família na sua casa ainda por uns três meses. Logo depois, foram viver em outra casa, tentando a sobrevivência na agricultura. Conta Maria das Graças de Azevedo que Assis Marinho, por volta dos sete e oito anos de idade, não gostava muito de frequentar regularmente a escola e fugia para Caicó/RN, cidade próxima a São João de Sabugi. Aquela é uma cidade histórica do Seridó e polo comercial da região. Segundo a entrevistada, ele ficava nas calçadas em frente aos hotéis tentando vender seus desenhos e já despertava admiração e interesse de pessoas com maior poder aquisitivo. Dormia em qualquer lugar, como por exemplo, em carros velhos, o que segundo ela deixava a sua mãe muito preocupada. Ele já desenhava, chamava muito atenção do pessoal de Caicó. Aí o pai dele era imaginário52, fazia santo, aquelas imagens de madeira (...). Ele era muito inteligente, todo mundo admirava. Não adiantava a mãe botar ele na escola, porque ele fugia, o negócio dele era Caicó, até quando foi entendendo o mundo, foi partindo (AZEVEDO, 2016).53 Conforme matéria de Henrique Arruda publicada no Do Novo Jornal Assis Marinho relata: “Em 69, quando eu finalmente saí de São João do Sabugi e vim para Natal, dormi na 51 AZEVEDO, Maria das Graças de. Entrevista realizada em 13/02/2016 em São João do Sabugi – RN. 52 A expressão “imaginário” na frase possui um sentido de expressão popular referindo-se a atividade que exercia o pai de Assis Marinho, como escultor de santos em madeira, um artesão popular. 53 AZEVEDO. Entrevista realizada em 13/02/2016. 120 rua e vi o que era tristeza todo dia” (ARRUDA, 2013).54 Foi menino de rua, trabalhando como flanelinha nos restaurantes. Foi internado por oito vezes em educandários, como o Oswaldo Cruz, no Bairro do Tirol em Natal, centro de recuperação e triagem de menores infratores, de onde teria fugido diversas vezes para desenhar na Praia do Meio e tentar a sobrevivência com a sua arte. Depois de ter vivido nas ruas em Natal, convivendo com os pescadores na praia, fazendo retratos, ganhando a sobrevivência, apreendeu o espaço litoral do Estado e o transportou também para as suas obras, talvez com a mesma intensidade com que pinta o sertão. Em 1979, ele vence o Prêmio de Pintura Newton Navarro, concedido pela galeria de arte da Biblioteca Câmara Cascudo. Com isso, foi conquistando espaço no cenário artístico e comercial das artes em Natal, recebendo muitas encomendas. Deixou de lecionar no Colégio das Neves quando auxiliava a irmã Miriam que era professora de artes e também uma artista da época que pintava ao estilo clássico, a qual o teria auxiliado muito no início de sua carreira. O marchand e professor de artes Antônio Marques descreve a primeira experiência que teve com a obra do artista Assis Marinho: A primeira vez que vi um trabalho de Assis foi numa moldureira, uma pessoa tinha deixado um quadro, eu disse: Que trabalho estranho! Que olhos bonitos, que figura estranha! Quem é que pintou esse trabalho? Aí, me disseram: Assis Marinho. Quem é? Como a gente encontra? Ah é um cigano vive por aí, por aí. (risos) Aí eu comecei a procurar Assis Marinho, até que encontrei, e realmente nunca teve pouso, nunca teve lugar fixo (...) (MARQUES, 2015)55. Em depoimento a Paulo Augusto, em 05 de agosto de 2007, Antônio Marques destaca que chegou a levar o artista para expor no Pavilhão da Bienal em São Paulo no final dos anos de 1980, tendo temporadas em Brasília e João Pessoa, sempre com muito sucesso por onde passou, afirmando ter sido muito procurado pelos marchands. Porém, lamenta o artista ter se dedicado mais a boemia do que aos estudos artísticos, ao contrário de Newton Navarro, com que o compara, o qual também era boêmio, mas sabia diferenciar as horas de boemia e de dedicar-se aos estudos. Assis Marinho é um grande pintor, uma pessoa de muito talento (...). Não frequentou escola, é um autodidata. Dormia nas ruas, desenhava pelas calçadas, até que enfim se tornou um pintor, com uma produção fantástica. Ele se enquadra na perspectiva de continuidade do trabalho de Newton Navarro, de quem foi amigo e discípulo (...). Teve fases de grande produtividade. O auge da produção de Assis Marinho foi a 54 Disponível em: http://novojornal.jor.br/noticias/cultura/artista-plastico-inaugura-hoje-exposicao-as-fases-de- assis. Acesso em: 02 de maio de 2016. 55 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015, em Natal – RN. 121 produção dos anos 90’. Mas, devido às extravagâncias, não tem como fazer um trabalho de peso. Mas ele tem todas as condições. Agora, ele precisava melhorar a saúde, para voltar a produzir com mais vigor e com maior repercussão (...). Ele mesmo se dar limites (AUGUSTO, 2007).56 Em 1983, Assis Marinho representou o Rio Grande do Norte no Museu de Arte Contemporânea em São Paulo e lembra do impacto que teve ao ver o Menino morto de Cândido Portinari: “Eu comecei a chorar ali mesmo, quando vi a tela” (ARRUDA 2013)57, Era a primeira vez que ele retornava à cidade como um destaque das artes plásticas do Estado, pois em 1978 teria ido para São Paulo estudar na escola de artes e design Panamericana com a ajuda da irmã Miriam. Apesar de não ter se adaptado ao clima e a cidade, continuava a desenhar na rua, nas praças fazendo retratos a crayon, bico de pena e aquarela. Com “O dinheiro que ganhava, comprava as roupas da época, pagava a entrada na matinê do Cine Nordeste – evento que nunca perdia” (FARIAS, 2010)58. O artista potiguar participou de exposições coletivas na Espanha e Itália. Artista autodidata, Assis Marinho nunca frequentou escolas de artes, mas teve o convívio com artistas de Natal como Newton Navarro e outros como o artista plástico e professor de artes na UFRN Vicente Vitoriano. Segundo este último: Surpreendo-me em conversa com Assis Marinho, com a clareza com que ele consegue justapor suas experiências estéticas, vivenciais e artísticas numa espécie de filosofia que aponta mais nitidamente para um arraigado contato com as figuras humanas e a paisagem do sertão. Sua fala, especialmente ao descrever ou a planejar imagens, transborda uma poesia simples capaz de me fazer, além de “ver” o que ele elabora verbalmente, sentir calor e vento, sentir sede. De repente, como consequência de tal justaposição, vejo-me analisando os processos de realização das imagens seja com aquarela, com cera e pastel ou tinta a óleo. Acompanho o artista resolvendo no ar figuras coloridas sobre superfícies que ele também descreve como se preparam, sejam telas ou planos de papel; resolvendo deficiências que descobre nos materiais em função de concluir satisfatoriamente aquilo a que ele se dispõe. Assis transita por estas técnicas – de desenho, de pintura e preparação de suportes. Com elas, o artista multiplica imagens que ele tem recolhido na memória e as reencontra para reconstruir sua infância cheia de jogos e de folguedos, alguns deles já registrados por Di Cavalcanti ou, entre nós, por Socorro Evangelista e Dorian Gray (CARVALHO, 1999)59. Vicente Vitoriano M. Carvalho, no trecho acima, exerce o papel de um crítico de arte, escrevendo numa Coluna de Artes Plásticas do Diário de Natal, constituindo um saber 56 Disponível em: http://agoranatal.blogspot.com.br/. Acesso em: 15/03/2016. 57Disponível em: http://novojornal.jor.br/noticias/cultura/artista-plastico-inaugura-hoje-exposicao-as-fases-de- assis. Acesso em: 02 de maio de 2016. 58 Disponível em: fabiofariasf.blogspot.com/2010/01/o-artista-perfil-de-assis-marinho.html. Acesso em: 03/04/2016. 59 Disponível em: http://agoranatal.blogspot.com.br/. Acesso em: 03/04/2016. “Cores do sertão” – texto publicado no diário de Natal, Coluna Artes Plásticas, Caderno Muito, em 11/02/1999. 122 sobre a produção artística local de modo a elaborar uma imagem do artista ancorada numa dimensão múltipla de suas potencialidades no universo das artes como um desenhista, pintor e inventor de sua própria “identidade” artística. O autor afirma surpreender-se com a capacidade do artista em criar obras com grande “resolutividade” estética (expressividade), trazendo de sua memória as imagens de sua infância no sertão. Percebe o elo histórico da pintura de artistas como Di Cavalcanti, um dos grandes nomes da geração de 1922, fazendo parte dos artistas que buscavam afirmar uma identidade nacional a partir de um sentimento de brasilidade exposto em suas mulatas, cenas dos morros cariocas, do samba, produzindo com formas sinuosas que condensavam a imagem do Brasil numa nação mestiça e tropical. Aproxima ainda a arte de Assis Marinho em termos de temática à obra de Dorian Gray Caldas, tecendo um diálogo entre a iconografia nacional e a regionalidade potiguar na pintura. Nas décadas de 1970/80, além da galeria de Antônio Marques instalada no Centro de Turismo de Natal/RN, existia outro espaço de atuação das artes plásticas no Estado que pertencia a Francisco das Chagas Bezerra de Araújo, conhecido como Chico Miséria. Era poeta, músico, documentarista, um produtor cultural que incentivava os artistas locais e trazia shows de grandes nomes da música popular brasileira como Gilberto Gil, Fagner e Jorge Mautner dentre outros que se hospedavam em sua chácara em Pium/RN. Em 1973 ele inaugurou a loja de moda masculina que funcionaria também a Galeria de Arte Sagarana. Morreu em 1996, vítima de assassinato. Hoje funciona o Espaço Chico Miséria, antiga área de lazer da zona norte que é mantido pela Prefeitura Municipal de Natal através da Funcarte e de três secretarias. Conforme o sebista Ramos Severino do sebo Balaica em Natal/RN, amigo de Assis Marinho desde 1978, Chico Miséria era um marchand e produtor musical que inclusive hospedou o artista em sua chácara em Pium antes de falecer: Ele tinha uma galeria de arte na Deodoro, Humbre moda, que era metade galeria de arte e metade roupas masculinas de porte fino (...). Tinha contatos nacionais, todo artista que passava por natal, visitava Chico. E Assis vendeu obras pra Rita Lee, pra Paulinho da viola, pra Fagner, pra Belchior, pra Gil (...) (DUARTE, 2015). 60 Desta forma, vê-se que existia em Natal um ambiente cultural nessa época que favorecia a afirmação de um artista plástico como Assis Marinho que realizava um trabalho dentro de uma estética expressionista e figurativa voltada para os temas regionais nordestinos, como o sertão seridoense e as praias de Natal. 60 DUARTE, Severino. Entrevista realizada no dia 15/05/2015 em Natal – RN. 123 Na década de 1980, ele retornou a cidade de São do Sabugi/RN, já como um artista consagrado na cultura estadual, tendo recebido prêmios e realizado exposições fora do estado e do país. Já com uma carreira definida nas artes, tinha entre seus clientes marchands e políticos do Estado. Conforme relato de Dercílio Morais, residente naquela cidade, ele chegou a pintar muitos quadros, com imagens de Jesus Cristo, por exemplo. Em 1989, fez uma exposição 1, 2, 3: artes! Promovida pelo Diretório Acadêmico do CERES na casa da artista Lídia Brasileira em Caicó, com a ajuda de amigos, como Dercílio Morais e João Quintino de Medeiros Filho que tinha como proposta reunir os artistas locais, pintores, poetas e artesãos. No período em que esteve na cidade, Assis Marinho gostava de ficar em bares e contratar músicos como sanfoneiros para tocar para ele e os amigos, posicionando-se socialmente como um artista atuante na esfera cultural local e regional, construía uma imagem para si e para essa região do estado. Assis Marinho foi casado duas vezes e teve três filhos. Na década de 1990, a morte de um dos seus filhos num acidente de carro pilotado pelo artista, numa curva próxima a São João do Sabugi/RN, marcou a sua vida. Logo depois desse fato separou-se da sua primeira esposa chamada Rosélia. É fato que o álcool e as drogas sempre fizeram parte da vida do artista desde a sua juventude, levando-se em conta o momento histórico em que está situado o artista entre as décadas de 1960/70 e 80, quando havia uma experimentação de drogas ilícitas associada aos movimentos culturais que surgiam nessa época propagando a liberdade comportamental e sexual. Contudo, Assis Marinho continua a pintar nos sebos e bares do centro histórico de Natal, mantendo os traços característicos e o encantamento e admiração que as pessoas nutrem por ele, adquirindo uma postura quase mítica nas artes plásticas do Estado. Seu traço forte e paradoxalmente fragilizado esboçam o mundo, o mesmo que começou a produzir no início de sua carreira, feitos sobre qualquer suporte: desde papéis profissionais ou comuns, papelão ou folhas de ofício; muitas vezes trocados por qualquer valor que possa sustentar naquele dia o vício de um copo de bebida. Hoje, continua recebendo pessoas para entrevistas, jornalistas do Estado que se preocupam em reforçar a figura mítica em que se transformou Assis Marinho, oscilando entre mundos contraditórios. Não há uma homogeneidade que possa traduzir a dificuldade de discutir a vida de um artista que se liga tão intrinsecamente a sua obra. A ideia que prevalece é que a sua obra, independente de como se realiza a sua vida, já é considerada como um patrimônio cultural do Estado do Rio Grande do Norte pelo olhar impregnado de vivências cotidianas das espacialidades, especialmente pela forma de ver o sertão do Seridó. 124 Na última internação em uma clínica de reabilitação em Nísia Floresta/RN, o artista diz: O psicólogo recolheu todo o meu material (...). Eu não pinto por elegância; eu pinto por sobrevivência revestida de ternura e afeto (...). Não faço ideia de quantos quadros já pintei nessa vida, mas podem tirar tudo de mim, menos os meus pincéis e as minhas tintas (...). Já teve jornalista que disse que o meu trabalho daria para ilustrar toda a obra de Graciliano ou de João Cabral de Melo Neto. Eu só sei que nunca vou esquecer dos rostos esquálidos, quase mortos que vi pela estrada quando eu era menino (ARRUDA, 2013)61. O médico recolhia os materiais de pintura devido ao uso do querosene que o artista utilizava para a diluição da cera no papel, produto cujo contato prejudicaria o tratamento. O discurso de Assis Marinho defende os aspectos simbólicos do seu trabalho, associa-se a Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto na literatura sobre os retirantes no Nordeste e classifica suas obras de intensa carga poética com uma crítica social memorial que remete à infância. Para ele o que viveu não é fruto de sua imaginação, mas de sua realidade, de observação e de registro visual como sujeito participante. Podemos dizer que realizou uma transfiguração da realidade numa representação pictórica imagética e discursiva. Os jornais de Natal/RN que abordam o artista potiguar fomentam o aspecto de identidade regional projetada em sua obra, bem como o caráter ambíguo de sua personalidade como artista, “subversivo” e “genial”. São muitos os textos nos quais se mobiliza a visão de marginalização da arte para artistas que não conquistaram o complexo mercado das artes e suas nuances discursivas, dentre outros aspectos que poderiam ser notados: Ele tem o cheiro do mar e o gosto de sertão entranhado n’alma, como se vaqueiros e pescadores se juntassem em festa num boteco qualquer no Beco da Lama para celebrar a vida. Dessa mistura agrestina surge a arte de Assis Marinho, imagens barrocas na lembrança dos anos vivenciados entre secas no sertão do Seridó e a brisa marinha da Redinha (...). Assis Marinho é um eterno menino do sertão, apaixonado pelo Seridó norte-rio-grandense. Sua arte mostra exatamente essa vertente interiorana, poeticamente sertaneja (GURGEL, 2007). 62. A visão do artista como um “eterno menino do sertão” é subjetivada culturalmente, imbricando-se aos seus temas pictóricos, conferindo-lhe um lugar de sujeito moldado 61 Disponível em: http://novojornal.jor.br/noticias/cultura/artista-plastico-inaugura-hoje-exposicao-as-fases-de- assis. Acesso em: 02 de maio de 2016. 62 Disponível em: http://blogs.portalnoar.com/grandeponto/assis-marinho-o-genio-maldito-da-arte-potiguar/. Acesso em: 05/03/2015. 125 imageticamente. Assis Marinho não habita mais o sertão, mas o leva dentro de si e de suas criações artísticas, perambulando pelas ruas do centro histórico de Natal, espaço de fruição cultural na cidade, como o Beco da Lama63, onde a arte se produz “marginalmente”, por poetas, músicos, pintores, em sebos, em bares e ateliês. O dinamismo do tempo e a permanência de Assis Marinho como “menino do sertão” se relaciona com o apego aos temas que elegeu para simbolizar a expressão de sua arte e de sua vida. Entre entradas e saídas de clínicas de reabilitação, o seu retorno é para o mesmo espaço onde se acomodou a confortável poltrona de suas verdades construídas, ao mundo real que projeta imaginariamente em seus trabalhos. O lugar que ocupa nas artes plásticas do estado está consolidado, o seu sertão vivido e construído imageticamente está em paredes de Sebos, em galerias, nos edifícios públicos e em acervos particulares da cidade de Natal, em quase todo o espaço norte-rio- grandense, especialmente a região do Seridó, como Caicó, São João do Sabugi e Currais Novos/RN, como em prédios públicos, em restaurantes, bares, sebos, ateliers e principalmente em acervos particulares, Assis Marinho pode ser visto como um artista popular, muito próximo do público, ele vende retratos de São Francisco, Jesus Cristo e sertanejos em papéis comuns de ofício, cartolinas ou canson. Conforme Antônio Marques: Eu acredito que Assis (Marinho) seja o pintor mais memorialista que nós temos, não tem outro! Nem Navarro, porque Navarro ele vai ao sertão, mas saindo de Natal, Assis sai do sertão para o sertão! (MARQUES, 2015)64 63A Rua Doutor José Ivo e a Rua Cel. Cascudo - Bairro Cidade Alta\ Natal são a referência geográfica do que seria o Beco da Lama, porém o termo Beco da Lama ganhou efeito de referência maior e agora ruas circunvizinhas também carregam esse nome extraoficialmente. Um exemplo disso é que a maioria dos eventos que ocorrem no bairro Cidade Alta levam o nome do Beco: Festival Gastronômico do Beco; MPBECO etc (...). Observamos manifestações de potência de vida que 125 cintilam nos sebos e nas paredes de praticamente todos os bares e estabelecimentos do complexo do Beco da Lama. Acreditamos se tratar de um espaço de prática artística que emergiria com força de acontecimento propondo determinadas formas de agir e criando resistências a vida cotidiana da cidade (FAÇANHA, 2013, p. 124 e 125). 64 MARQUES, Antônio. Entrevista realizada em 16/04/2015, em Natal – RN. 126 Figura 22 – MARINHO, Assis. Algodoal, 60 x 80 cm, 1986. Acervo particular. Foto da autora. Ao observamos a pintura Algodoal, de Assis Marinho, Fig. 22, temos a figura feminina como personagem central e o algodão enquanto um símbolo identitário da região do Seridó, esse é o motivo principal do quadro, a virtude do algodão do Seridó ou mocó associada ao sertanejo que está representado nessa paisagem do artista. A imagem é da década de 1980, quando o algodão não oferecia mais a riqueza econômica de outrora, porém continuava a existir no terreno simbólico e discursivo, sendo exaltado como um produto capaz de significar o espaço seridoense, unindo um produto natural a força de resistência do homem sertanejo, arquétipos discursivos que acompanham boa parte da literatura potiguar e das artes plásticas. O azul é a cor predominante do quadro, pintado em crayon sobre papel, toma terra e céu entremeados pelas serras quase translúcidas que dividem sutilmente os espaços de representação da paisagem seridoense. Uma vastidão profunda, como parece profundos os olhos da personagem feminina que segura o floco de algodão e olha para o horizonte, uma figura que propõe o olhar de simplicidade. A forma como Assis Marinho compõe a figura 127 humana não obedece aos traços clássicos de anatomia, privilegia a forma simplificada quase Naif, e ao mesmo tempo expressionista dada a pincelada rápida e distorcida. A maioria dos artistas da nossa pesquisa pintam com um saber intuitivo, empírico, da vivência cotidiana e singular com o espaço em que vivem ou viveram. Ao contrário do que aconteceu com os modernistas brasileiros do início do século XX, quando a maioria teve oportunidade para viagens de estudo patrocinadas pelo governo, como no caso de Anita Malfatti, ou Tarsila do Amaral, que viajou para Europa com seus próprios recursos, como filha de uma aristocracia produtora de café em São Paulo. Estes puderam apreender e interiorizar a produção de artistas como Pablo Picasso, Fernand Léger e Lhote, no “calor” desse movimento de renovação estética das artes, criando novos paradigmas voltados para uma interpretação do mundo alforriados da concepção de cópia da realidade. Porém, a simplicidade da figura humana de Assis Marinho pode ser vista como a economia do próprio ser sertanejo no sentido da produção visual deste, a pobreza, as dificuldades de se viver numa região. Como numa redoma de vidro, intocável, o sertanejo é um estereótipo que serve ao discurso de poder engendrado historicamente pelos segmentos políticos dessa região, que detinham o poder de decisão política e de escrever e discursar enquanto “os sertanejos” continuavam nas mesmas condições precárias de vida. Esses aspectos são tratados na obra do artista, seus sertanejos marcam a existência de um passado desenhado pela privação, pela dificuldade da sobrevivência numa região que foi produzida materialmente e simbolicamente pela cotonicultura. O algodão continuou símbolo cultural mesmo após o declive econômico da produção algodoeira na década de 1970 decorrente de diversos fatores, como a praga do bicudo, fruto da fragilidade genética da hibridação natural entre o algodão Seridó e as outras variedades estrangeiras embarcadas do Egito com os lotes de sementes de algodão importadas desse país. (MACEDO, 1998). Além disso, houve uma sequência de secas periódicas e o aparecimento das fibras sintéticas, fazendo com que houvesse um redimensionamento da população que vivia no espaço rural para o crescimento da dimensão urbana nessa região do Estado. A persistência simbólica do algodão no imaginário seridoense, mesmo após o seu solo não ser mais “pontilhado por suas plumas branqueando a perder de vista os campos sertanejos”, (2002, p. 98), a antiga rede discursiva que construiu a defesa de uma região se defrontou com uma nova realidade de urbanização e de superação do setor primário pelo terciário. Esse imaginário da produção algodoeira continuou nas décadas subsequentes a ocupar um lugar significativo nos discursos que procuravam valorizar a região, mantendo-se 128 presente nas tentativas de soerguimento econômico e político, inclusive na atualidade, redefinindo a paisagem regionalista com um produto símbolo da região. O Algodoal de Assis Marinho fez parte de uma exposição realizada em Currais Novos/RN no final da década de 1980, que foi organizada pelo amigo e decorador José Milton Salustiano residente até hoje nessa cidade. A exposição continha um número de 66 obras, entre aquarelas e desenhos a crayon. Antes da vernissage, todas as pinturas já estavam vendidas, uma vez que o pintor recebia o apoio das “patronesses”, mulheres da elite local que custeavam as molduras e tinham descontos nas obras. A proprietária da obra analisada, a senhora Nadja de Menezes, professora de história que possui uma Escola privada na região, de família tradicional, na época casada com o já falecido Francisco Toscano, hospedavam o artista em sua residência quando estava na cidade de Currais Novos. Assis Marinho, para pintar o seu Algodoal, não realizou estudos de observação, não se interessou por mapear essa planta, como forma de descrevê-la, mas quisera montar um quadro simbólico dessa região. Construiu uma paisagem imaginária do sertão do Seridó a partir de seu símbolo identitário. Talvez ainda existissem na década de 1980 resquícios dessa cultura algodoeira, mas não mais existia enquanto uma economia que concorria com o açúcar em termos de exportação para o mercado internacional e foi responsável por costurar as estratégias políticas de mudança do eixo-político estadual no Rio Grande do Norte do sertão para o litoral. Poderíamos compreender que o Algodoal de Assis Marinho se aproxima dos Colhedores de algodão do artista Assis Costa, pintado em 2010, no aspecto temático das obras. Como também se pode dizer que as duas obras podem ser herdeiras da iconografia produzida no Estado com Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, uma vez que ambos pintaram também campos de algodão principalmente em suas tapeçarias. Caldas, em especial, em muitas das obras encomendas pelo Estado do RN, interessado em produzir uma imagem do RN, realizou muitas telas com propostas identitárias. No Rio Grande do Norte com as obras de Dorian Gray Caldas e Newton Navarro principalmente buscava-se essa imagem identitária a partir do algodão, vinculado com a espacialidade do Seridó; as salinas, a região oeste em Mossoró, e a Natal, como uma região central do Estado, configurando múltiplas espacialidades na busca por uma identidade que ainda é reclamada. A identidade regional produzida para o sertão seridoense estava tramada na construção das espacialidades no Estado do Rio Grande do Norte, que vincula a cultura do algodão ao interior do Estado, reforçando a imagem de uma região que construiu sua própria 129 autonomia econômica e simboliza historicamente a regionalidade seridoense desejosa por garantir uma força política no âmbito estadual e nacional com a cotonicultura. Ver-se no Algodoal de Assis Marinho, os ricos campos floridos de um tipo de monocromia malvácea serpenteia um espaço de pertencimento que são entendidos como construtos de uma identidade cultural seridoense, oferecendo aos olhos a beleza de uma imagem que reverbera desenvolvimento, futuro e sustento de vida para milhares de pessoas que viveram diferentes épocas em que a riqueza do algodão pode mudar as suas vidas, tendo sentidos materiais e simbólicos, uma imagem vinculada ao universo rural, outro traço identitário. Figura 23 – MARINHO, Assis. Painel da UFRN – Campus de Caicó, 1986. Todos os dias alunos, professores e funcionários em geral da UFRN/Campus de Caicó vivem cotidianamente com um Painel de Assis Marinho, pintado na década de 1980. Uma imagem que fez e faz parte do cotidiano de tantas pessoas que frequentaram e frequentam esse espaço social, de produção do conhecimento, possuindo em seu acervo, uma contribuição de um artista que viveu na cidade próxima a Caicó e teceu vínculos afetivos com 130 pessoas e a cidade. Caicó foi o primeiro lugar onde se começou a comercializar os desenhos do artista quando fugia de casa para tentar sobrevivência nas ruas. Quando retorna a essa região como um artista reconhecido no universo das artes potiguar, na década de 1980, é convidado a realizar essa obra que tem como tema uma paisagem sertaneja, composto de retirantes em primeiro plano, avançando como em marcha para qualquer lugar onde pudesse plantar o alimento e uma nova vida. É um quadro de pobreza, mas também de esperança. Os meninos continuam no seu mundo, aprisionando pássaros, usando estilingues para matá-los, é uma ação quase inconsciente de uma realidade não crítica, que se naturalizava como uma forma cultural das crianças que não tinha brinquedos. O painel apresenta uma inscrição no painel, apesar de muito apagado pela ação do tempo: “Filhos da terra sem terra, massacrados pela violação dos direitos. Homens vivos e sepultados (...) mesmo assim a esperança não morre, renasce a cada semente da vida”. Assis Marinho usa a imagem que legitimou sobre o sertão como denuncia das injustiças sociais, da necessidade de uma justa divisão de terras. O artista fora capturado pelas amarras de uma imagem que continuou a perpetuar como uma verdade. O Painel encontra-se num estado de deterioração devido a fragilidade da técnica mista empregada pelo artista sobre a parede. A representação de retirantes é um quadro cristalizado no imaginário nordestino, que chega através da arte de Assis Marinho no Seridó, treinado nos padrões cunhados na literatura de cunho regionalista, na pintura de Cândido Portinari e na sua experiência individual como imigrante do sertão paraibano para o interior do Rio Grande do Norte. A repetição de enunciados simbólicos na sua obra configura o seu passado como símbolo de uma realidade social que sintetiza a maneira que muitas pessoas viveram a realidade da fome, da miséria, ainda pouco tratado nos estudos historiográficos. 131 Figura 24 – MARINHO, Assis Marinho, Retirantes, técnica mista, S/D. Fonte: http://aflordaterra.blogspot.com.br/2013/09/faces-de-assis-marinho.html O mesmo tema aparece na tela Retirantes. As duas pinturas (fig. 23 e 24) são compostas por um grupo de trabalhadores do campo, agricultores que empunham seus instrumentos de trabalho como extensão de seus corpos. Caminham firmes sobre a terra, seus corpos e roupas quase padronizados com rústicos chinelos de couro, homogeneízam essa “massa humana” que reforça a visão de que a intenção do artista Assis Marinho é criar uma imagem força, agenciadora de sentidos para o sertão que é o Seridó, experienciado por ele. A imagem dos retirantes de Assis Marinho, endossa a visão que se produziu sobre o sertão, o Seridó que foi habitado pelo artista na sua infância, não são imagens idealizadas, mas que recorrem a estereótipos discursivos, projetando uma imagem única para esse espaço, esse seria o ponto de questionamento. O chão árido onde pisam os homens, mulheres e crianças se alargam no tempo, numa imagem que se multiplica, ganha pequenos traços diferenciados, mas continuam a narrar a epopeia do sertanejo na terra urdida pela pobreza, pela necessidade de pão, carregando nos olhos toda a expressão e sentimento que é pertencer ao lugar, e tornar-se com isso um símbolo da “retirância”. Seus retirantes fazem alusão a série dos retirantes de Cândido Portinari realizados na década de 1930, porém seus pés grandes lembram a força dos trabalhadores do Café, seus corpos não são esqueléticos, são uniformes. Não vestem farrapos, assim como os sertanejos de Assis Costa, os homens e mulheres de Assis Marinho são revestidos de uma dignidade, de uma simplicidade que povoa o imaginário cantado por Luiz 132 Gonzaga por exemplo, do sertão que preserva a tradição, que em meio a adversidade são fortalezas a impedir a desconstrução de um mundo ordenado pelas antigas relações sociais. Observa-se nos discursos dos seridoenses uma identificação com a sua obra, reconhecendo-se em suas pinturas, como uma identidade presente nesses signos culturais, a necessidade da valorização de um artista que conta por meio de imagens uma paisagem cultural composta de símbolos que se repetem65: A importância que ele tem, para a construção de uma imagem para a nossa região, pra construção de uma imagem do nosso lugar, do nosso povo, que isso ainda não se deu a devida importância a isso (...). A importância de um artista que ainda está, está aí, que não recebeu a devida importância, que não foi ainda devidamente homenageado (...). A não ser em expressões particulares, individuais, mas não o coletivo, o coletivo representado pelo poder público ou por alguma Instituição. E o reconhecimento em seu lugar é muito importante, tanto pra construção da sua autoestima pessoal (...). Para que o artista sinta-se parte da construção do lugar, porque o lugar não se constrói só, com as edificações arquitetônicas, mas também com essas construções imagéticas. E um pintor, um artista plástico tem uma importância muito grande nisso aí, na construção da imagem do lugar, da representação do lugar pela imagem (MEDEIROS FILHO, 2016)66. O discurso do professor João Quintino de Medeiros Filho é permeado por essa preocupação de valorizar o artista como um importante produtor de uma memória cultural, o qual ainda não teve o devido reconhecimento profissional. A maioria dos artistas sobrevive da venda de suas obras para um público específico de apreciadores de arte, que no estado do Rio Grande do Norte, é uma minoria. Confirma como o trabalho de um artista pode construir a imagem de um lugar, compartilhando do sentimento de pertença como praticante do espaço seridoense. Realcemos que Quintino Filho é professor da Universidade do Rio Grande do Norte e toma como referência pessoal que essa produção pictórica é responsável pelas construções imagéticas formadoras de uma identidade espacial. As figuras humanas de Assis Marinho são sertanejos que, habitando o sertão ou o litoral, carregam nos olhos um pesar, a dor do mundo interpretada pelo artista, interiorizada e transformada em ícone de seu trabalho pela repetição dos signos culturais. Assis Marinho, novamente pintando no Beco da Lama em Natal, nos disse em conversa informal no ateliê Central que voltará a pintar com pintura a óleo e de uma nova fase de produção voltada para os seus temas: sertão, mar, Jesus Cristo, São Francisco e Dom Quixote. Contudo a sua pintura 65 É um caminho tortuoso e complexo a relação entre aquilo que é importante para manutenção, reforçando-se uma identidade e um “desconhecimento” da maioria das pessoas sobre as artes plásticas de modo amplo. A pintura ainda consiste em um campo privilegiado para alguns consumidores de arte. Frequentemente, além de poder aquisitivo, o cliente necessita ter um conhecimento mínimo de cultura artística. 66 MEDEIROS FILHO, João Quintino. Entrevista realizada em 13/02/2016 em São João do Sabugi – RN. 133 seguirá os traços de identidade regional, inscrevendo seu olhar particular sobre o mundo que o cerca, a sua preocupação parece ser viver cada dia, e nesse movimento leva consigo a arte que o deixou reconhecido no Estado como artista memorialista. 3.3. DESCREVENDO A PAISAGEM Segundo Svetlana Alpers (1999), a arte holandesa do século XVII chama atenção por seus aspectos descritivos, produzindo sobretudo um retrato de si mesmo e de seu país, bem como da produção e recepção vinculada ao mercado da burguesia, caracterizando-se por uma observação do mundo que a circundava. A realidade visual da Holanda se modelava por uma rica burguesia que queria ver-se representada. Alpers distingue o modelo italiano como narrativo, que trabalhavam numa perspectiva da centralidade do olhar, tendo como princípio a perspectiva albertiana, com o ponto de fuga e o observador; diferente nesse sentido do modelo compreendido na Holanda como descritivo, que incorporava o esquema cartográfico, a superfície plana de Ptolomeu, havendo uma congruência entre pinturas e mapas. Segundo a autora, os pintores tinham como objetivo captar sobre uma superfície (um quadro), um significativo conhecimento e informações sobre o mundo. A noção de paisagem na representação pictórica da cultura holandesa estava enraizada nos hábitos cartográficos. Para os holandeses, o registro era inseparável da pintura. Nesse sentido, a produção artística é definida nessa perspectiva para aquilo que foi feito, com a finalidade descritiva do visível. Logo, o sentido da obra seria o que ela representa, formando assim um conhecimento sobre o mundo e entendendo-se que a paisagem é institutiva da identidade holandesa. É o que ocorre nas pinturas dos artistas analisadas nesta dissertação. Ainda que sem o cunho descritivo, tal como na pintura holandesa do século XVII, as telas de Dantas, Costa e Marinho têm objetivo de consolidar em pintura a identidade do lugar por meio de sua espacialização. 134 Figura 25 – DANTAS, Iran. Praça de Currais Novos, mista sobre tela, 100 x 200 cm, 1991. Acervo particular. Foto da autora Figura 26 – DANTAS, Iran. Praça de Currais Novos, óleo sobre tela, 80 x 100 cm, 1995. Acervo particular. Foto da autora. 135 As telas Praça de Currais Novos, do artista Iran Dantas (Fig. 25 e 26), respectivamente de 1991 e 1995 representam o mesmo espaço, as Praças de Currais Novos/RN. Na primeira obra (Fig. 25), na paisagem urbana de Iran Dantas, há a presença do Mercado Municipal, um prédio histórico do município de Currais Novos. Buscando-se fazer considerações estéticas e históricas, o artista produziu o quadro no início da década de 1990, criando uma composição imaginária tendo como referência diversas fotografias antigas das décadas de 1950 e 1970, aludindo a períodos em que a arquitetura de casas, prédios públicos e comerciais se estabeleciam na cidade como produto do desenvolvimento do algodão e posteriormente da mineração. O olhar do artista pinta um cenário construído pela história, imagem que as famílias abastadas da cidade de Currais Novos desejavam expor em suas salas de visita, uma elite constituída das famílias tracionais da região como Bezerra, Galvão e Salustino. O ângulo da composição parte da torre da Igreja Matriz de Santana e possui uma abrangência espacial das ruas comerciais da cidade e recorta o espaço da Praça Cristo Rei e o antigo Mercado Público. Sua construção se iniciou em 1900, mas devido o crescente movimento social, o Intendente Vivaldo Pereira, em 1919, construiu um novo mercado, justamente o que aparece na obra de Iran Dantas. Nesse espaço funcionava a feira livre, com venda de carnes, frutas e cafés que vendiam caldo de cana e lanches, nesse mesmo lugar aconteciam festas populares. O antigo Mercado passou por diversas reformas até ter essa aparência ao qual o artista pintou, com a finalidade de anunciar a modernidade e a civilidade em âmbito local, perseguindo os princípios de higiene e racionalização dos espaços, a ideia era construção moderna, que integrasse beleza estética e condições de higiene, servindo com isso ao crescimento do comércio. A economia algodoeira foi decisiva para o descolocamento de várias pessoas da zona rural para a zona urbana, fazendo o desenvolvendo da cidade. A cultura do algodão mantinha toda a estrutura social na região do Seridó, a casa, o açude e a cerca e fortalecia o ideal de uma modernidade urbana. (BARROS, 2008) No ano de 1969, foi demolido para dar lugar a Praça Cívica Desembargador Tomaz Salustino (SOUZA, 2008). Isso pode ser explicado pelo ideal de civilidade e modernidade que a cidade buscava construir enquanto uma cidade que se desenvolvia economicamente com a mineração. Destruía-se uma imagem do passado para se edificar uma cidade moderna, que homenageava um patrono do desenvolvimento econômico local, proprietário da Mina Brejuí. Currais Novos é uma cidade localizada no interior do Rio Grande, na região central do Seridó. Economicamente a cidade se desenvolveu por meio da criação de gado, posteriormente ganhou destaque com o predomínio do algodão Seridó ou Mocó, ocupando uma posição de 136 hegemonia como principal matéria consumida na indústria de tecidos no Sudeste do país, perdendo esse espaço com a seca de 1910. Teve um novo destaque no estado e no mercado internacional com a Mina Brejuí, fundada em 1943, pelo Desembargador Tomaz Salustino67. A mineração Tomaz Salustino exportou scheelita (no qual se extraia o tungstênio, metal que estava sendo amplamente usado na indústria metalúrgica) mais de 35 anos para países como Estados Unidos, Inglaterra, Holanda e Suécia. Na década de 1980, houve o início do seu declínio com a oscilação dos preços internacionais da matéria-prima e a utilização de outros minérios de custo inferior ao produzido nessa região para a fabricação de artefatos industriais e tecnológicos, reduzindo a atividade de extração mineral em Currais Novos. A pintura de Iran Dantas que compõe o centro dessa cidade recupera os traços históricos de suas construções arquitetônicas, ao mesmo tempo em que recria a realidade. A obra envolve o sentimento que o seridoense possui sobre a sua paisagem, pois mesmo que as edificações não existam mais no âmbito do real, sua existência no imaginário permanece, como se pode perceber pela paisagem contemporânea das praças pintadas pelo artista currais- novense. A Praça de Currais Novos (1991) pertence a um empresário local e repousa num espaço recôndito de um supermercado Rede Mais da cidade de Currais Novos, um corredor escuro pelo qual passam cargas de alimentos diariamente. Está, portanto, abrigado do olhar da comunidade, apenas vista pelos funcionários da empresa, passando na maioria das vezes despercebida. Mesmo assim, pode-se intuir que sua presença impõe uma segurança simbólica e imaginária daquilo que representaria o espaço e a paisagem local de uma cidade do interior do Rio Grande do Norte, que foi desenvolvida, alinhada harmonicamente em projeções urbanas e arquitetônicas com a modernidade do início do século XX, promovidas pela cotonicultura na região do Seridó. O sol da manhã que banha o cenário urbano da cidade, que faz algumas pessoas caminharem isoladas, pequenas, diante do espaço projetado pelo artista numa tela de grandes dimensões (100 x 200 cm) é de livre criação. O artista provavelmente a produziu com a possibilidade concreta de ser vendida, sendo uma paisagem desejada pela maioria das pessoas que nutrem uma relação de afeto com o lugar, mesmo que não tenham conhecimento sobre artes ou consciência do valor de uma produção artística. A tela é um acontecimento no qual se misturam subjetividades. Sobretudo, o quadro de Iran Dantas nos permite imaginar vivências, 67 A Mina Brejuí está localizada no município de Currais Novos, considerada a maior mina de Scheelita da América do Sul, a mineração teve o seu apogeu em plena Segunda Guerra Mundial, o minério de Scheelita produz uma importante fonte de tungstênio, metal utilizado na indústria bélica, e forneceu toneladas de minérios a várias indústrias do aço. Disponível em: www.minabrejui.com.br Acesso em: 18/05/2016. 137 memórias desgastadas, vindas ao solo como o Mercado Público, e novamente recriadas como outras faces modernas, retramadas no decurso da história. A segunda obra (Fig 26), foi pintada em 1995 quando o artista assina como Veetmohi que de acordo com o filósofo Edrisi Fernandes é um dos nomes sugeridos aos convertidos à seita de Osho (Bhagwan Shree Rajneesh); vem de Veet (“ir além; transcendência”) e Mohi (“apego”), significando “desapegado; que transcende apegos; transcendente. A pintura é de propriedade de Marília Mamede Galvão Cunha, sobrinha da poeta Zila Mamede, que de acordo com familiares teria sido encomendado para a sua residência. Hoje o quadro se encontra no Supermercado Atacadão Vicunha que pertence a sua família. Numa visão aérea, com base em fotografias antigas da cidade, bem como de sua observação, compreende uma representação das praças Cristo Rei e Tomaz Salustino que veio substituir o antigo Mercado Público. De forma impressionista pincela a praça como um local/símbolo de sociabilidade local. Marca as edificações comerciais características organizadas ao redor desse centro onde irradiam vivências cotidianas ao longo da história da cidade. Um traço particular que identifica simbolicamente as cidades do interior seria um lugar central como a praça, onde há uma grande aglomeração de pessoas, no caso de Praça de Currais Novos, tomada por uma luz solar, embora seja a noite que tradicionalmente vê-se quantidade expressiva de jovens a namorar na praça, no encontro de amigos, idosos e crianças a brincar nesse lugar afetivo e coletivo. Albuquerque Júnior analisando os tipos diferenciados de espacialidades, no Oriente e no Ocidente, informa que: Como no Ocidente a verdade está sempre num centro que se busca encontrar, a verdade das cidades estaria em seus centros; aí encontraríamos suas identidades, as qualidades particulares que as definiriam (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 17). O período retratado pelo artista é a década de 1990, momento também em que foi produzida a obra. Ele registra o cotidiano das praças da cidade em que morava, uma série de elementos evidenciam essa época como os carros, a forma como se vestiam as pessoas, a presença do jeans. A presença humana é marca desse quadro, o colorido que traduz uma diversidade de pessoas que estão presentes em todo o espaço pictórico, um território compartilhado por pessoas, bicicletas e carros formam um campo de vivências humanas que transmite a relação de pertencimento ao lugar. Há no imaginário social curraisnovense uma divisão social entre as praças: a Cristo Rei seria “a praça dos pobres” e a Tomaz Salustino “a praça dos ricos”, constituído entre as 138 décadas de 1980 e 1990 principalmente. A praça mais nova Tomaz Salustino seria frequentado pelos filhos da elite local e na Praça Cristo Rei estaria a comunidade em geral, tribos sociais diversas, constituindo uma fronteira social imaginária e real para as pessoas que vivem nessa cidade, como uma espécie de discurso de verdade produzido na prática social. A cidade de Currais Novos tem como símbolo cultural a Praça Cristo Rei, denominada anteriormente como Praça da Eucaristia, na conhecida “Rua do Comércio”. Recebe essa nomeação em 1937 quando ocorre o 2º Congresso Eucarístico Paroquial em Currais Novos organizado pelo pároco Monsenhor Paulo Herôncio de Melo, ao receber a doação do Cel. Manoel Salustino Gomes de Macedo de uma estátua de um “Cristo Rei do Seridó”, importada da França, que teria sido construída pelo mesmo construtor e arquiteto da estátua do Rio de Janeiro. O local passa a ser significado por esse símbolo cristão. Para erguer a estátua e inaugurar o monumento no dia do Congresso, vieram técnicos de Recife, segundo relatos da época (LIBERATO, 2009)68. Esse evento religioso Católico instituiu o nome da praça principal de Currais Novos, reuniu políticos da capital do Estado e de outras regiões, congregou o poder político e religioso na concretização de um marco identitário, um espaço de celebrações religiosas e populares, imbuída de memórias, de histórias individuais e coletivas tendo como liame um espaço edificado com sua força simbólica. Em 1947, o coreto foi construído no centro da praça com a finalidade de abrigar apresentações musicais. Naquela época a pracinha tomou formas geométricas harmonizadas com a jardinagem. Esta praça é um importante espaço de memória de Currais Novos, como se pode observar pela polêmica gerada em sua reforma nos anos 2000. Conforme depoimento de Joabel Rodrigues foi realizada uma reforma na Praça Cristo Rei durante o governo municipal de José Lins (2004-2008), no mesmo ano em que publica o seu livro “Totoró, berço de Currais Novos”: Atualmente, tem-se falado em uma “reforma” na mimosa Praça do Cristo do Seridó, símbolo benfazejo dos Currais Novos, da cidade marcada pelo epifânico encontro Eucarístico Paroquial de 1937 (...). Termo muito perigoso, “reforma” implica em destruição, mudança, descaracterização de um ambiente o qual, décadas em fora, tem sido confidente das emoções mais intimas e recônditas dos currais-novenses. Permitirá essa gente que assim se faça, que outra página de sua história seja rasurada? “Restauração” é um assunto tanto quanto distinto” (SOUZA, 2008, p. 147). 68 Disponível em http://terradaxelita.blogspot.com.br/2009/11/festa-de-cristo-rei-em-currais-novosrn.html. Fonte: Seridó.zip.net. Acesso em: 12/05/2016. 139 O historiador local desenvolve uma escrita historiográfica de cunho memorialista expressa o seu sentimento diante da mudança, o incômodo de destruir um lugar de pertencimento. O seu discurso postula a importância do marco religioso na cidade com o Congresso Eucarístico de 1937, quando houve uma visibilidade local dimensionada para o Estado naquele ambiente de transformação política no país, durante a vigência do Estado Novo de Getúlio Vargas e Rafael Fernandes Gurjão como interventor federal no Rio Grande do Norte. Joabel Rodrigues, ainda ressalta de forma saudosa as vivências nesse lugar, transformando-o em um espaço de memória. Com isso, recorta de forma discreta a sua opinião crítica acerca do governo municipal em exercício, num ano que era de disputas eleitorais. Na época da reforma, iniciada em novembro de 2007, significativa parte da população assinou um abaixo-assinado para impedir a alteração arquitetônica da praça, a qual foi preservada apenas em suas características antigas: os monumentos Ulysses Telêmaco, o Cristo Rei do Seridó e o coreto. Também nas obras de Assis Costa, a cidade de Currais Novos é um tema recorrente, como se observa na tela Currais Novos (Fig. 27). O artista pinta um painel de elementos identitários dessa região do Seridó de forma justapostas numa composição geométrica. Três linhas imaginárias e em planos dividem o quadro em forma horizontal, seguindo o delineamento de uma paisagem pintada, representando símbolos históricos e culturais locais, estando inserida no grande espaço de identidade seridoense. A começar pela base que sustenta o edifício construtivo dessa imagem, observamos como o artista trabalhou predominantemente os tons terrosos, o chão, a terra, a vegetação e as pedras, como a Pedra do Caju, a qual reaparece significando o espaço do Seridó na linha inferior. 140 Figura 27 – COSTA, Assis. Currais Novos, acrílica sobre tela, 80 x 120 cm, 2011. Acervo particular. Na pintura acima, o campo e a cidade unem-se para mobilizar um pensamento sobre a região seridoense, pois apresenta um núcleo de figuras humanas, que simbolizam o algodão, por meio de uma mulher catadora de algodão, uma senhora grávida com uma gamela na cabeça, com potes ao chão, referenciando a comunidade quilombola “Negros do Riacho”69 existente na zona rural de Currais Novos, a arte de fazer utensílios de barro possui uma história, é um elemento que identifica os morados do Riacho. Na cena, um menino com roladeira, um dos ícones da pintura de Assis Costa, e um senhor com um burrinho caracterizado com um chapéu de couro (“adereço típico do sertanejo”). Este último assemelha-se a um tropeiro, homens que comercializavam mercadorias diversas transportadas no lombo de jumentos, atravessando o território brasileiro. Pássaros da fauna sertaneja, como “concriz” e “galo de campina” pousam em garranchos secos ao lado da imponente Pedra do Caju, como destaque do canto inferior direito do quadro. A Igreja Matriz de Santana ocupa 69 Os “Negros do Riacho” são uma comunidade rural de maioria negra, descendentes de povos que foram escravizados nessa região, especificamente do escravo ou ex-escravo Trajano Lopes da Silva. De acordo com Joelma Tito, que realizou estudos de mestrado e doutorado acerca dessa comunidade: “A produção da cerâmica marca as relações comerciais travadas entre os negros que moram no Riacho e os habitantes da região desde “o tempo pra trás”. (...) Para os moradores do Riacho que aprenderam a arte do barro, a louça é um suporte de memória, revela tempos antigos e atinge o imemorial. (SILVA, 2010). 141 espaço central junto ao Cristo Rei da Praça de Currais Novos e a procissão de Santana. Casas de arquitetura portuguesa preservam um sentido de regionalidade baseada no período colonial. O espaço rural se liga a parte superior do quadro, com uma casa retratada de modo estilizado, símbolo das casas típicas do Seridó. Note-se que é comum os artistas receberem encomendas de pessoas que querem representações de seus lugares de origem, como as casas onde nasceram e viveram, como uma necessidade de autorrepresentação, caracterizando-se como uma necessidade de tornar visível “aquilo que faz parte de mim”. Nesse caso especificamente da obra de Assis Costa, a encomenda sugeria a paisagem de Currais Novos ao “estilo” do artista, ou seja, ele teve a liberdade de criar esteticamente, mas obedeceu ao tema como foi proposto pelo cliente, segundo nos conta em entrevista70. Um vaqueiro com um rebanho de gado direciona o olhar do espectador para um vazio pedregoso preenchido por esses personagens que contam sobre a origem dessa região, os Currais Novos, uma cidade que nasceu sob o signo da pecuária. O historiador Muirakytan K. de Macêdo, narrando a travessia dos primeiros colonizadores no território seridoense, explica sobre a importância dos rios na história brasileira, no processo de adentramento dos sertões, a sua designação para territórios mais vastos e a toponímia na constituição territorial de várias regiões com a criação de gado, mas no geral para pequenas povoações, a exemplo de Currais Novos: A importância usufruída pelos rios – sejam perenes ou temporários – no período colonial é notável. Vias naturais para o adentramento dos colonos possibilitaram o povoamento do interior brasileiro, integrando-o ao circuito produtivo da colônia. Nos sertões nordestinos, as primeiras fazendas localizavam-se nas ribeiras (...). A toponímia dos sertões avulta inspirada tanta no criatório, quanto em rios e riachos, com a diferença de que, na maioria dos casos, do primeiro retiraram-se os nomes com que se batizavam os povoados (Currais Novos, Curral Velho, Curral dos Padres, Curralinho etc.), ao passo que dos últimos foram extraídos os topônimos para a designação de territórios mais vastos: Sertão do Acauã, Açu, Seridó, Apodi, Espinhares etc. (MACÊDO, 2012, p. 39). Na parte superior do quadro, estão as serras que transpassam as pedras e aos morros, a Pedra do Navio, popularmente conhecida como Cruzeiro, formação rochosa única isolada na paisagem no canto superior esquerdo. É um grande bloco de pedras acumuladas muito retratada por Assis Costa em algumas de suas obras, como a série de pinturas a “Missa no 70 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 142 Cruzeiro”. Por último o rio Totoró71, forma uma linha sinuosa azul cortando a tela, dividindo espaços e umedecendo as mangueiras em suas margens, águas que transformam as pedras ao longo dos séculos e milênios e desperta o interesse artístico de Assis Costa. O rio une-se com o Pico do Totoró, enaltecido ainda mais em formato de pirâmide no canto superior direito. Assim o quadro é composto de uma paisagem real, porém o artista produz uma imagem que sintetiza vários símbolos da identidade local – de sua paisagem física e imaginária. Destacamos nessa obra do artista Assis Costa a relação entre o campo e a cidade, o processo de transformações sociais, econômicas e culturais decorrentes da modernidade na região do Seridó norte-rio-grandense. Mostrar o algodão e o criatório como constituintes desse espaço é voltar-se para um discurso que se repete para reafirmar a sua permanência enquanto uma prática social vivenciada e protagonizada pelos seridoenses. No início do século XX, a imagem com um ideal moderno chegava ao interior do Rio Grande do Norte, especificamente Currais Novos, por meio de sua arquitetura que mesclava os estilos arquitetônicos coloniais e o estilo neoclássico. A partir das décadas de 1940 e 50 é que essas formas tornam-se mais simplificadas inspiradas no modernismo. Na pintura de Iran Dantas, nas Praças de Currais vê-se essa representação na década de 1990, quando algumas fachadas das casas serão substituídas por esse novo sentido de modernidade que não é mais aquele constituído no início do século XX. Como pintor de seu tempo, mostra a rede de sociabilidade gerada nas praças, os costumes, o vestuário de um período que avançava para o século XXI e o hábito de frequentar um espaço público como peculiar e recorrente das cidades do interior. Tendo como cenário a cidade de Currais Novos, o espaço representado nas pinturas de Iran Dantas e Assis Costa exprime uma nostalgia da expansão da região com a ascensão da produção algodoeira e mineradora na economia do Estado e a sua posterior crise, decorrente da seca e de outros fatores já discutidos neste estudo. Na tela Ceia entre dois rios (Fig. 28), as fronteiras identitárias, por exemplo, estão marcando o lugar do artista e da região por meio de símbolos pictóricos. 71 “O rio Totoró nasce na Serra de Sant’Ana, com os riachos Totoró, Trangola e Namorados, lançado as suas águas no Rio Currais Novos, na localidade Riacho Fechado” (SOUZA, 2008, p 35). 143 Figura 28 – COSTA, Assis. Ceia entre dois rios, acrílica sobre tela, 60 x 200 cm, 2012. Acervo particular. A pintura Ceia entre dois rios nasceu de uma parceria profissional e uma amizade construída no Rio Grande do Sul. Conforme Assis Costa nos relata em entrevista72, desde 2002, frequenta a Serra Gaúcha nas cidades de Gramado, Canela e Nova Petrópolis para trabalhar em eventos culturais como pintor, escultor e diretor artístico em alguns trabalhos. Em 2012, um casal de amigos de Nova Petrópolis/RS pediu-lhe para que pintasse uma obra que representasse a relação entre esses e o artista, que tivesse a conotação de família e amizade. Desta forma Assis Costa produziu uma grande mesa de jantar. Pelos objetos e alimentos postos sobre a mesa, é possível identificarmos o espaço ao qual representam? A cultura visual desses espaços é posta como imagens particulares, porém compõe um único espaço nacional, chamado Brasil, para o qual desde o século XIX se busca uma unidade territorial a partir da formação de um sentido de nacionalidade construída por práticas e discursos. Dentro desse complexo todo nacional, as regiões brasileiras historicamente instituíram suas identidades. No caso do Seridó, consiste em uma regionalidade inserida no âmbito do espaço norte-rio-grandense, que se cria e se fortalece como diferenciada, sendo praticada diariamente nos discursos políticos, nos jornais, na escrita literária e na pintura. Para Stuart Hall (2014), a identidade é marcada pela diferença: é no jogo de oposições que a identidade se produz em relação ao outro. As culturas fornecem as classificações simbólicas que se relacionam a uma ordem social, estabelecendo fronteiras simbólicas por meio de contraposições binárias, contribuindo para compreender o processo de construção das identidades culturais: Aquilo que comemos pode nos dizer muito sobre quem somos e sobre a cultura na qual vivemos. A comida é um meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmações 72 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 144 sobre si próprias. Ela também pode sugerir mudanças ao longo do tempo bem como entre culturas (HALL, 2014, p 43). O artista utiliza uma natureza morta para expressar seu sentimento para ambos os espaços, Rio Grande do Norte, onde nasceu e vive até hoje, e o Rio Grande do Sul, significando o outro que habita temporariamente, no qual constituiu experiências profissionais e afetivas. Em perspectiva transversal, a mesa dialoga com a paisagem que está dividida em três grandes arcos, associando-se a tradição iconográfica clássica de representação, tanto na arte Ocidental como Oriental. O quadro de Assis Costa é dividido em dois espaços de identidade cultural: do lado direito está um violão sem cordas – o artista também é músico –, o vinho73, sinalizando o Rio Grande do Sul que é o maior produtor de vinhos no Brasil, uma tábua de queijos e o chimarrão, um símbolo identitário da cultura gaúcha vinculando-se a paisagem de Nova Petrópolis/RS que aparece em perspectiva, com o labirinto, o pórtico, os jardins da praça, com uma cachoeira e araucárias, um município que foi colonizado por imigrantes alemães na metade do século XIX. Na garrafa há a inscrição VD, o rótulo do vinho consiste em uma criação do artista que homenageia os futuros proprietários da obra e seus amigos que se chamam Vanderlei Reidel e Daniela Steffen. Do lado esquerdo da obra, o espaço oposto, a paisagem seridoense significa o outro Rio – o Rio Grande do Norte, representado pelos elementos simbólicos que constituem a visibilidade do Seridó, construída na arte pictórica de Assis Costa. A imagem idílica de Nova Petrópolis que passa a representar o Rio Grande do Sul, contrapõe-se a paisagem do Sertão do Seridó, uma visão árida, seca, composta de cactos floridos, cercas de pedras e pedras como a do Caju, as serras da Acauã e o Pico do Totoró. A casa antiga do Seridó, arquitetura portuguesa adequada ao clima e às condições materiais dos habitantes dessa região no passado, é um elemento icônico da produção do artista, principalmente, na década dos anos 2000, embora o elemento “casa” seja um tema recorrente na pintura de seu mentor nas artes João Antônio. Parece-nos que o casario antigo seridoense é um índice permanente em várias obras do artista, como um “mantra ideológico”, um ícone sempre reapresentado para tornar visível o lugar e o liga-lo ao seu percurso histórico. A casa que de modo amplo possui uma 73 Em 2013, Assis Costa realizou uma exposição intitulada “Dom Quixote de La Manchas de Vinho” utilizando como matéria-prima o próprio vinho, na livraria Saraiva em Natal/RN, sendo um dos poucos artistas brasileiros a usar essa técnica de pintura no Brasil. No ano seguinte fez a exposição “A Vindima em Vinho Tinta”, em Bento Gonçalves, com o patrocínio de diversas vinícolas do Estado do Rio Grande do Sul, contando a história do vinho nessa região e no mundo pelo próprio vinho. 145 polissemia de sentidos, como a do abrigo e da segurança para mostrar a permanência de um discurso sobre uma região, atribuída ao universo rural, “arcaico”, significando uma maneira de reatualizar as imagens construídas para essa espacialidade. A versão de Assis Costa para o sertão é docilizada, de uma aridez sintética e poética, mas não inferior ao outro espaço (o Rio Grande do Sul), mas diferente, aproximando-se mais de um imaginário projetado para o sertão como exótico e idealizado, num mundo esfacelado pelos antigos sistemas de identidade. Trata-se da imagem de antigas formas de vida e soa como uma reconciliação de paisagens culturais amareladas com o tempo. De um lado a rede vazia e do outro um violão sem cordas, em ambos a presença do artista. Na mesa de madeira rústica pairam objetos diversos do “recorte seridoense” como o galo74, símbolo do artesanato potiguar e da cultura cristã ocidental. Os cajus, a lamparina para lembrar-se de um tempo que as pessoas viviam sem energia elétrica nas casas do interior, como também os estudos que o artista fazia com esse objeto quando iniciou o curso de desenho e pintura com João Antônio em 1991 em Currais Novos/RN. Além disso, a potência de sentido que a luz possui na tradição pictórica ocidental, relacionada com a ideia de razão, de conhecimento e de espiritualidade. Por último, com o jerimum formam o contexto simbólico do Rio Grande do Norte e a região do Seridó. Mas há de perceber ainda no centro do quadro um objeto “estranho”, uma palheta com pincéis e duas taças de vinho, compreendendo que foi sua arte que mobilizou o artista a realizar essa travessia para o Rio Grande do Sul. Ela é expressa pelos instrumentos de trabalho do pintor – as duas taças reforçam o sentido de alteridade do jogo binário enunciado em toda a composição. A pintura de Assis Costa a Ceia entre dois Rios representa o Rio Grande do Norte por meio do Seridó, numa demarcação da espacialidade pela diferença que constrói a identidade seridoense – um campo simbólico e social “ornado” por uma mesa metafórica, que contém em si toda uma simbologia representando uma produção humana, construída subjetivamente por sentimentos familiares, ancestrais, pois a concepção de união presente na mesa está desde os nossos ancestrais ao se reunirem ao redor de uma fogueira para se 74 O galo Branco de São Gonçalo do Amarante/RN foi reconhecido no ano de 1996, como símbolo do folclore Norte-rio-grandense, legitimando uma alusão do então Prefeito de Natal Djalma Maranhão que justificou a escolha em 1950 tida como festivo e lúdico, e da III Festa do Folclore Brasileiro em 1975. O Galo Branco nasceu das mãos do artesão chamado Antônio Soares que viveu em Santo Antônio do Potengi, comunidade essa que é tradicional na produção de argila e cerâmica. Antônio Soares querendo deixar suas “quartinhas” mais atrativas para seus clientes criou um modelo no estilo de um galo feito com um barro branco, na época encontrado facilmente nos barreiros da comunidade. Posteriormente, D. Neném Felipe foi trabalhar com seu Antônio e dá uma nova forma àquela peça utilitária, deixando-a com aspecto de uma peça decorativa e com cores. Pode-se afirmar que existem no mundo dois galos que representam o folclore regional de sua localidade, que é o Galo de Barcelos (Portugal) e no Brasil o Galo Branco de São Gonçalo do Amarante/RN. Disponível em: http://www.saogoncalo.rn.gov.br/artesanato.php. Acesso em: 21/05/2016. 146 aquecerem, comerem e beberem o trabalho do dia, para depois representar o ideal de civilização, com todas as minúcias culturais de todas as épocas e lugares. Os códigos culturais expressos se imbricam ao sentimento de nostalgia soberano. A mesa sugere uma ponte entre dois Rios – Norte e Sul, fronteira fluida, móvel como o tempo, porém cristalizada por conceitos hegemônicos, espaços construídos pelo discurso compósito dos Rios que atravessam lugares distintos, produtos de uma feitura histórica. O rio metafórico que nomeia a tela pode ser a fluidez da própria vida, na ausência proposital de pessoas, a paisagem fictícia baseada numa paisagem real fala por si, devido a um corpo discursivo incutido culturalmente sobre esses determinados espaços identitários, frisando a diferença de que é composto os dois lados numa busca por uma união pictórica. Nesse ínterim, ao realizar uma descrição dos universos culturais por meio de símbolos paisagísticos, de objetos e alimentos pertencentes ao discurso-imagético de lugares do Rio Grande do Norte e do Rio Grande do Sul, Assis Costa promove um olhar constitutivo de uma identidade cultural. 147 4. SERIDÓ: ESPACIALIDADE DE FESTAS E FÉ O sertão do Seridó é a minha raiz, é a terra de onde eu nasci, é o chão [...]. Como é muito quente o sol deve ser o ar quente que faz a pessoa flutuar e ir embora, esperando os ventos secos, os ventos alísios soprarem pra levar as sementes da pessoa pra outros campos. Mas o sertão é como eu tenho dito, ele tem uma áurea, uma magia, um mistério, que faz com que você de certa forma pense numa forma idealizada [...]. Sertão é a alma humana, dentro de poucas alegrias que são os períodos de chuva, que aí você tem que produzir naquele período, aproveitar o máximo que dá, pra comemorar a colheita no São João, comer milho assado, fazer canjica, comer feijão verde, dar comida ao gado pra poder produzir o queijo de coalho e queijo de manteiga [...]. São pequenas alegrias que fazem ser grandes que é como eu falo: viver sempre a luz de lamparina e de repente se deparar com luz elétrica. Então eu acho que essa cultura, essa vivência parece que é tão arraigada, enraizada na pessoa que você leva pro resto da vida essas experiências, parecem que não morrem nunca, ficam sempre assim só esperando aqueles momentos de brotarem igual o sertão quando vê chuva (COSTA, 2016)75. O espaço seridoense é dotado de sentidos múltiplos, marcado pelo signo do gado, do algodão, da mineração, do homem sertanejo que resiste a seca. É representado e reproduzido na pintura de Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa, configurando-se como espaço de festividades que se mesclam a noção de sagrado e profano. As festas causam uma ruptura com o cotidiano e incidem no tecido social como um acontecimento, movendo os sujeitos no espaço e no tempo, nos quais estão representados os significados simbólicos construídos culturalmente. As espacialidades são historicizantes, frutos de construtos sociais e culturais, pois é na prática do lugar que os espaços são significados. O Seridó é seio desse movimento festivo. Durante todo o ano são comemoradas as festas de padroeiros, com destaques para a Festas de Santana em Currais Novos e Caicó no mês de julho, além das festas juninas, os forrós e as vaquejadas. O discurso do artista Assis Costa reforça o imaginário construído para o sertão do Seridó, “chão onde nasci”, que constitui histórias individuais e coletivas. Remete a sua experiência com o lugar, sentida nas práticas culturais festivas como os preparos para as noites juninas, onde são comemorados os santos: São Antônio, São João e São Pedro que trazem as reminiscências históricas do culto aos antigos deuses greco-romanos em agradecimento as colheitas de cada ano, num ciclo reafirmador das crenças e do sentido de fé praticado nas singularidades culturais. Um homem do sertão integrado a natureza, produzido pelas circunstâncias climáticas e modelado por uma imagética espacial que lhe dá sentido e significado, fundando o sentimento de pertencimento. 75 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 148 Neste capítulo, objetivamos discutir a partir das obras dos artistas pesquisados de que maneira as festividades: festas de São João, procissões e vaquejadas, as cenas do cotidiano e os santos veem a constituir uma tradição sertaneja representada pictoricamente por cada um dos artistas, ressaltando suas singularidades temáticas e estéticas. As festas são entendidas como ritos sociais que se repetem de forma mítica e circular, porém sofrem as mutações do tempo. A forma de representação dos santos nas pinturas dos artistas Assis Costa e Assis Marinho abrigam peculiaridades culturais e estéticas, dialogam com a tradição pictórica e com a identidade cultural que homogeneíza o Seridó. Na Itália do final do século XV, um artista norteado pelos sentimentos que regiam aquela sociedade, buscava expor em sua pintura o máximo de saber técnico na representação dos temas religiosos, ansiava mostrar a sua interpretação das passagens bíblicas conforme a exigência do mercado de artes da época. Esse artista era o italiano Piero dela Francesca nascido na cidade de Sansepolcro, na Toscana. Lá pintou um dos quadros mais conhecidos da história da arte: “A ressurreição de Jesus Cristo”, um afresco pintado por volta de 1460 e 1463 para a sala do Conselho da Prefeitura de Bargo Sansepolcro, inspirado no quadro de Niccolò di Segna pintado três séculos antes, valorizando com isso uma tradição iconográfica. No século XVIII, a cultura e a sociedade haviam mudado, novos interesses artísticos estavam surgindo e o afresco de Piero, vista talvez como “fora de moda”, acabou coberta com uma mistura de gesso e tinta. Somente no século XIX foi redescoberto por um arqueólogo inglês pesquisador da arte do Renascimento, sendo a pintura restaurada. O escritor Aldous Huxley que visitou a região, escreveu num de seus livros referenciando a obra do artista como “a pintura mais bela do mundo”. Na segunda Guerra Mundial, o capitão britânico Anthony Clarke recebeu a ordem de bombardear a cidade, iniciado o ataque, mas o comandante lembrou-se da frase que ficou gravada em sua memória do livro de Huxley e suspendeu o bombardeio. Os alemães já haviam se retirado da cidade e logo após a retomada foi Clarke à procura da pintura. Ficando conhecido por ter salvo a vida de muitas pessoas naquela comunidade, o capitão britânico foi saldado como um herói local e até hoje existe nessa cidade uma rua em seu nome. A história de uma obra contada mesmo que de forma geral propicia o entendimento do poder da arte em construir e constituir símbolos e espacialidades, assim como o poder da crítica de arte, pois o soldado não conhecia o quadro. A pequena cidade de Sansepolcro na Itália produziu uma identidade local a partir da pintura de Piero della Francesca vinculada ao próprio nome da cidade. Sendo a obra realizada para a cidade, ela tornou-se um traço 149 característico da história local quando o artista, como filho desse espaço, foi agenciado para representar um tempo glorioso nas artes, como ficou conhecido o renascimento italiano. Nas escolas de Sansepolcro, as crianças aprendem sobre a história do artista e a ilustre pintura que se tornou símbolo identitário local, enaltecida pelo poder público, sendo uma imagem reproduzida e cristalizada como emblema do município inclusive no site da Prefeitura. Hoje na antiga Prefeitura de Sansepolcro, transformada no Museu Cívico e lar da pintura, a obra pode ser visualizada por todos aqueles que passam na rua através de uma janela de vidro. O historiador Michael Baxandall analisou o Batismo de Cristo de Piero della Francesca e penetrando nas estruturas das “intenções” reconstituiu a clientela, as encomendas, a filosofia e a diferença cultural que deram origem a obra. As “intenções”, os fatores que explicam os acontecimentos de uma obra são diferentes hoje, além da questão suscitada pelo autor da bagagem cultural do observador e a compreensão dos nativos de uma determinada cultura e espaço, ressalta que o entendimento dos nativos de uma cultura é diferente da compreensão dos que a observam de fora, cada um tendo suas limitações e perspectivas específicas. Explicar uma intenção não é contar o que se passou na cabeça do pintor, mas elaborar uma análise sobre seus fins e seus meios, conforme os inferimos a partir da observação da relação entre um objeto e algumas circunstâncias identificáveis. A análise se realiza em constante e ostensiva interação com o quadro (BAXANDALL, 2006 p. 162). As pinturas, para Baxandall como neste estudo são vistas como o próprio acontecimento, impossíveis de serem narrados em sua totalidade e complexidade, mas singularidades culturais distintas que podem ser encontradas. Ao mostrar um dado espaço, a pintura o nomeia numa cartografia imaginária e real no Rio Grande do Norte particularizada como Seridó. As telas dos artistas que viemos trabalhando trabalham com as reminiscências de um discurso regionalista que se gesta na passagem do século XIX para o século XX, produzido historicamente por um conjunto de práticas e discursos por uma elite política e intelectual que fomentava o ideal do sertanejo como bravo e valente e de uma região de secas periódicas. Graciliano Ramos em Vidas Secas traduzia na economia linguística com que narrava o romance o mundo reduzido, a escassez de água, a fome, a dor sem palavras. Também a pintura no Brasil, desde Percy Lau76, elabora uma iconografia do vaqueiro, como 76 “Percy Lau, cujo pai era inglês, nasceu no Peru em 1903, mas passou a maior parte de sua vida no Brasil, onde fez carreira como desenhista e ilustrador. Está em Pernambuco desde 1921 e participa do Grupo dos 150 uma personagem que representar o adentramento do poder instituído colonial no território nacional. Sua obra é uma representação documental da paisagem física e humana de várias regiões brasileiras, a exemplo dos desenhos a bico de pena e gravuras que foi publicado com o título “Tipos e Aspectos do Brasil”, para compor a sessão Revista Brasileira de Geografia criada em 1938 e publicada pelo Conselho Nacional de Geografia (CNG) e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), duas Instituições que nascem no final da década de 1930 (ANGOTTI-SALGUEIRO, 2005). A arte de Percy Lau encomendada por essas Instituições tinha, sobretudo, a função de registrar os tipos regionais, tipos humanos, a vida rural brasileira, construindo uma representação iconográfica do Brasil que foi amplamente disseminada nos livros didáticos ao longo dos anos. Então, os tipos humanos, como o vaqueiro, o seringueiro, foram figuras fixadas no imaginário brasileiro como uma forma de criar uma unidade territorial brasileira e a disciplina geográfica nesse contexto teve um papel crucial nessa edificação imagética e discursiva. 4.1. AS FESTAS: PROCISSÕES, SÃO JOÃO, FORRÓS E VAQUEJADAS Ao discutirmos artistas que estão atuando no cenário artístico estadual como Iran Dantas, Assis Costa e Assis Marinho não temos o recurso do distanciamento temporal de um historiador que se debruça sobre a obra de Piero dela Francesca ou a produção artística de Percy Lau. Ainda assim, discutiremos como as imagens pictóricas desenham o espaço, construindo e reforçando uma identidade da qual fazemos parte, consistindo em uma proposta de análise sobre o amplo painel de possibilidade que cada um desses artistas permite para a historiografia das artes. As imagens são produtoras de identidades locais, regionais ou nacionais, se constituindo na diferença, alimentadas por discursos que não circulam no vácuo, mas em situações reais. Albuquerque Júnior (2012) reflete o regime de espacialidades que fabricam espaços materiais, imaginários e simbólicos, onde a forma como pensamos e nos dispomos no espaço obedecem a uma lógica cultural e histórica constituindo uma visibilidade e dizibilidade do espacial. Sobre a imagem do sertão disserta que as regiões no Brasil foram Independentes, organizando em 1932, com Augusto Rodrigues, o Ateliê de Artes Plásticas; no Rio de Janeiro integra em 1939 a equipe dos funcionários do IBGE. Malgrado sua mobilidade reduzida, viajou pelo Brasil a serviço do instituto, mas alguns de seus desenhos a bico-de-pena da série não são apenas fruto das viagens, tendo trabalhado também a partir de fotografias; frequentou pintores como Portinari, Guinard, Djanira, além de Augusto Rodrigues, intérpretes como ele dos arquétipos brasileiros” (ANGOTTI-SALGUEIRO, 2005, p. 27). 151 marcadas pelo processo de colonização, de ocupação violenta, pela vontade de ocupar, rejeitando o sertão como algo demoníaco, que deveria ser conquistado, garantindo a vitória sobre aquilo que considerava inóspito e selvagem. As regiões são escritas e inscritas para ficar, para ser a base de identidades que queremos fixas e imutáveis. Nessa sociedade onde se busca a eternidade, onde a morte é a grande inimiga a combater, se verifica uma dificuldade de conviver com todas as formas de finitude. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 19). Eternizar o Seridó como imagem que não muda foi um impulso configurado nesse temor pela finitude. A narrativa que tenta desnaturalizar a identidade, procura caracterizar os processos de identificação, uma vez que a identidade não possui uma essência, mas marcadores culturais que a definem na coletividade. Há uma imagem de inferioridade que se construiu acerca do Nordeste, na perspectiva de Albuquerque Jr. é uma regionalidade ancorada na ideia de atraso econômico, de relações patriarcais, conservadoras, de modelagens culturais inspiradas num tradição que permanece como signo desse espaço, como beatos, cangaceiros e uma paisagem árida. O sertão seridoense é dotado de uma positividade, de um espaço acolhedor e festivo, que mesmo com a aridez do solo formata-se pela obediência aos códigos morais e religiosos, um “sertão das muié séria, dos homes trabaiador” como versa e canta Luiz Gonzaga, um sertão que se homogeneíza pelo seu discurso, que se preservou nas tradições culturais. O “outro” seria todo o espaço não identificado como não pertencendo ao Seridó. Uma construção imagética que passa pelos produtos que produziu como o queijo de coalho, a carne de sol e um tipo humano característico, nomeado seridoense, que estando em qualquer lugar do Estado, ocupa um lugar de referência marcado pelo signo do gado, do algodão e da terra. Entre os traços fundamentais da cultura seridoense foram e são as Festas de Sant’Ana que ocorrem em várias localidades da região. Apesar do reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro pelo IPHAN tenha ocorrido na forma de registro apenas da festividade da cidade de Caicó77, a festa de Sant’Ana também é muito importante para cidades como Currais Novos e Acari, onde se instalaram muitos dos artistas sobre os quais nos 77 Foi constituído um estudo sobre a cultura do Seridó que buscou mapear o patrimônio imaterial das regiões que se intitulou “Inventário das Referências culturais do Seridó-RN”, realizado entre 2007 e 2008 por pesquisadores da UFRN e IFRN coordenados pela equipe de professores Julie A. Cavignac, Muirakytan K. de Macêdo, Paula Sônia de Brito e Maria Isabel Dantas. Esse projeto foi renomeado para “Inventário da cultura do Seridó”, porém o estudo frisou mais a cidade de Caicó, sobretudo por ser um polo político e econômico dessa região (2010). Este inventário esteve na base do registro da Festa de Sant’Ana de Caicó como patrimônio imaterial brasileiro. 152 debruçamos. Não por acaso as festividades religiosas estão entre os principais temas pictóricos da produção encontrada em nossa pesquisa. Sendo uma imagem da tradição, Sant’Ana do Seridó expressa o poder hierárquico da religião católica naquele espaço e se configura num glossário discursivo sobre a referida imagem-símbolo que permeia a história política e cultural da região. Sob esse enfoque, tentaremos provocar nosso olhar sobre a pintura do artista Assis Costa. A ideia é permitir a observação da obra a partir de seu conteúdo histórico-cultural, levando-nos para o ambiente no qual a obra foi concebida, entrevendo “a intencionalidade” ou as condições particulares à realidade social e cultural do artista que puderam interferir no seu processo criativo. Tomamos como partida uma análise iconográfica da obra Procissão de Santana a) (2009). Observando alguns elementos presentes na linguagem figurativa de Assis Costa, ou seja, quais símbolos o artista utiliza, percebe-se que aborda a paisagem cultural do sertão seridoense. Ressalta-se que já no título está presente a figura icônica de Sant’Ana, padroeira de vários municípios que integram a região do Seridó. Figura 29 – COSTA, Assis. Procissão de Santana, 40 x 60 cm, óleo sobre tela 2009. Acervo particular. Foto do artista. 153 Obra de livre criação, pintada em 2009, e primeira expressão pictórica do tema Procissão de Santana feita pelo autor, ela evidencia uma cidade do interior (não especificamente Caicó ou Currais Novos, por exemplo) que tem a Santa como sua padroeira, mas simbolicamente representa todas as cidades do Seridó, e sua tradição religiosa católica. Do ponto de vista formal, encontra-se dentro de uma configuração estética figurativa aludindo a simplificação dos elementos da cena, as pinceladas mais livres, porém conservando o figurativismo. Assim como nos versos da canção de Gilberto Gil –”Olha lá, vai passando a Procissão, se arrastando que nem cobra pelo chão, as pessoas que nela vão passando, acreditam nas coisas lá do Céu...” –, o artista descreve uma manifestação cultural do sertanejo, a procissão de Santana, e acriticamente nos mostra um sertão idílico, colorido, espacialmente ordenado por casas que lembram as bandeirinhas de Volpi, segundo Ângela Almeida (2012). Por outro lado, essa observação da música de Gil e a pintura de Assis Costa sobre esse mundo religioso é um relato – de uma tradição religiosa, que vive, se repete, segue o movimento lento de uma cobra se arrastando no chão, porém acredita nas coisas lá do céu, presas aos rituais, ao (for)mato de ser religioso. Parece-nos sobretudo um elogio ao modo de viver nas cidades sertanejas, interiorizando um modo de ver o passado, em que pequenos povoados criavam para si uma unidade simbólica em torno de um ícone religioso como Santa’Ana, e isso por si só bastava para dizer o todo dessa gente. Mostra, ainda, casas herdadas da arquitetura portuguesa, pouco preservadas na contemporaneidade na maioria das cidades grandes do interior, preocupação presente na pintura de Assis Costa. Acari, por exemplo, ainda conserva muito dessa cara de cidadezinha do interior, tenho vontade de pintar algo lá, aquelas ruas, aquelas casas, fazer trabalhos rápidos, estudos, porque uma hora aquilo vai se acabar, não vai durar pra sempre. Teve cidades que aguentaram até enquanto pode, depois vão se modernizando, a tal ponto que se não houver tombamento as pessoas descaracterizam mesmo e vai criando uma poluição visual muito grande. Tem aquela beleza arquitetônica que foi criada a algumas décadas passadas, tem lugares que praticamente já se extinguiu. Currais Novos é um lugar que pouco se vê, são pouquíssimos prédios e casas que tem algum traço, mas é colonial portuguesa, aquelas faixadas com seus detalhes, seus beirais (COSTA, 2015)78. É interessante notar que a Igreja representada na obra é uma criação do artista, não houve uma Igreja específica que o mesmo se referenciou, porém ela é um símbolo da arquitetura portuguesa empregada nas várias edificações católicas construídas na região do 78 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 154 Seridó. Assim, nos guia pela paisagem seridoense, suas edificações, casarios antigos, que trazem nas fachadas as memórias de seus moradores, as distinções sociais, o desenvolvimento de uma espacialidade urbana marcada pelo gado e posteriormente pelo cultivo do algodão. Da Igreja Matriz, a qual está na parte superior do quadro, os fiéis seguem ocupando espaço central na obra e podemos entreouvir os hinos entoados pelas beatas à frente da procissão, com os anjinhos e algumas mulheres uniformizadas, pertencentes as congregações religiosas. Entretanto, a maioria dos devotos está adornada com vestimentas simples, embora sejam aquelas reservadas para os momentos de expressão social, de reencontro com amigos e parentes. Podemos ver pessoas com oferendas (frutas, lenços...), pagadores de promessas; até os animais (cachorros) participam deste acontecimento social. Toda a imagem construída por Assis Costa nos lembra dos rituais ancestrais presentes nos cerimoniais dos antigos, conduzidos pela fé no sobrenatural. Uma criança com um brinquedo de roladeira aparece na cena, observando aquele mundo ao qual pertence. Será que se sente integrado? A festa de Santana pode ser vista como uma ação do povo? Os estandartes dos santos, o andor de Santana, cheio de flores, ícone sagrado do catolicismo, é (re)significado em cada novo ritual, todos os anos, momento em que todos esses símbolos se encontram novamente, num ciclo de reafirmação identitária com o Seridó. O tempo é um elemento a se perceber nessa pintura, que remete a uma época que não existe mais, lembrando uma imagem dos anos de 1940/50, por causa do chão batido, pela arquitetura das casas, pelas vestimentas – como uma necessidade de preservar uma imagem do sertão seridoense inerte às transformações do tempo, imbuída do signo da saudade. As relações sociais se formam, modeladas por uma história imbricada ao seu processo de povoamento e de territorialização. A religião católica constitui uma instância identitária que contribuiu inexoravelmente para a constituição do espaço seridoense; a figura da Senhora Sant’Ana (Santana) tornou-se ícone deste processo de fundação e demarcação do território do Seridó. Além de participar da fundação do território do Seridó, a religião católica impregna todo o imaginário que circunda a região, fundando noções explicativas para a realidade social (MACÊDO, 2012). Nesta concepção, a cristalização dos ideais religiosos no conteúdo simbólico deste povo, e, sobretudo, na identificação deste com o próprio espaço, institui um modo de pensar e agir que, a partir de práticas discursivas, atua de forma identificatória. Percebe-se, deste modo, que a sociedade seridoense se molda sob esses pressupostos, através dos rituais católicos, criando 155 axiomas de verdades que de certa forma mitificam esse espaço como o lugar da tradição e da obediência à conduta moralizante dos desígnios cristãos, construídos culturalmente. Ao observamos na (Fig. 30), outra obra que trata do tema de uma Procissão de Santana, produzida em 2011, vemos a recorrência de elementos discursivos, de uma paisagem criada para identificar o Seridó – costurando espacialidades sentimentais, em que imagens fazem recordar um tempo que não existe mais, contudo são reais no imaginário coletivo. A festa de Santana em Currais Novos e Caicó, por exemplo, seguem o ritual social e religioso todos os anos, com peregrinações rurais e urbanas, com rituais de missa e procissão, encontro das imagens padroeiras dos bairros e de outras localidades vizinhas do campo e das cidades. O artista escolhe um recorte: a procissão de Santana como um ícone identitário do Seridó, alinhando o sentimento de pertencimento numa trama que exalta a história do espaço seridoense como território construído e cimentado pela imagem da Santa Católica. A composição dessa obra une espaços distantes numa visão panorâmica da paisagem, um mundo de relações que se estabelecem entre os personagens anônimos, praticantes da arte do cotidiano. Onde há rio, há ocupação humana, na profundidade do quadro, avista-se um açude que provavelmente consegue prover a população local, se constituindo numa representação do espaço seridoense em que a religião Católica aparece como “Forte” identitário, irremovível pela arma do tempo, murado das ações da história. Nessa obra são múltiplas as dimensões que criam uma dinâmica não apenas oferecidas pelo principal tema do quadro, a procissão de Santana, mas a cadência de situações: o jogo de futebol, os currais, com cavalos brancos, os quintais, evidenciado o espaço privado e a vivência no espaço íntimo da casa. 156 Figura 30 – COSTA, Assis. Procissão de Santana em pequeno povoado do Seridó. Acrílica s/ tela, 40 x 60 cm, 2011. Acervo particular. Foto do artista. A Igreja no centro do povoado, o grupo escolar, a configuração “natural” das paisagens, lembram sim um espaço ordenado, habitado por pessoas simples, uma paisagem imaginada para significar o Seridó. Uma série de casais reforça a instituição familiar como alicerce social, em diferentes idades, como o casal de idosos que veem o movimento da rua, estes descem seus olhos cansados sobre uma festa, possivelmente a mais esperada pelas pessoas dessa comunidade. Os homens de bicicleta e a cavalo – meios de transportes que hoje soam apenas como poesia79, um grupo de músicos acompanham o cortejo, lembrando uma manifestação cultural alegre! Substituindo as tradicionais bandinhas, Orquestras das cidades do interior. Em meio ao grupo e de maneira pouco visível um pagador de promessas, dissonando entre os cânticos celestes, demonstrando não só uma tradição católica de autoflagelo, mas a 79 Hoje em dia a moto modificou completamente o transporte urbano nas localidades do interior do RN. Sua ausência na pintura e a presença do cavalo e dos jumentos revelam a permanência de tais elementos como formas pictóricas e/ou simbólicas no retrato do sertão. 157 própria via crucis do povo seridoense em viver numa região de clima semiárido e que teve ao longo de sua história, importantes economias como o gado, o algodão e a mineração, mas que nas últimas décadas do século XX sobrevive do setor terciário principalmente, reforçando um discurso da resistência e da imagem outrora construída sobre o Seridó. Poderia ser essa a visão do artista? Este simbolizaria a dor do sertanejo? A imagem dicotômica que define esse espaço, como socialmente abandonado pelo poder estatal, mas ao mesmo tempo formula um quadro de alegria e resistência. Os animais domesticados pelo homem são destaque, assim como na pintura clássica e moderna, significam sentimentos diversos numa produção pictórica, como o gato na Olympia, pintura de Edouard Manet (1863), os vários signos da obra, entre eles a nudez da cortesã parisiense, seu corpo disforme realizando a fuga dos cânones acadêmicos, o buquê de flores, a negra e o gato que indaga o espectador, revelando e questionando as mudanças com a modernidade. Segundo T. J. Clark, analisando contos, crônicas, noticiários de jornais da época elucida o impacto que a pintura teve na sociedade francesa de 1865. Essa liberdade peculiar com as formas habituais de representação foi mais tarde considerada a essência da Olympia, como o quadro de Manet foi chamado, e fez dele o monumento fundador da arte moderna (CLARK, 2004, p. 129). Manet recorre a uma tradição pictórica da história da arte, a Olympia provinha da Vênus de Urbino de Ticiano. No quadro de Manet no lugar do cachorro é o gato preto, que aos pés da figura feminina deitada simboliza alegoricamente a sensualidade, conforme Jorge Coli no quadro da cortesã moderna, “o gato adquire então misteriosa irradiação erótica” (COLI, 2010, p. 91). O gato do alto do muro da obra de Assis Costa olha tudo passar, leva nosso olhar para outros personagens, idosos que aguardam a procissão, criando uma maneira de ver o espaço, uma memória do cotidiano das pequenas cidades do interior, onde idosos ficam nas calçadas conversando ao lado de seus animais domésticos. Os gatos nas obras do artista são recorrentes e revelam uma particularidade estética, consistindo em uma marca de seu trabalho, além da convivência com os felinos observado em seu ateliê, eles constituem um tema significativo na obra de vários artistas como Manet e o próprio Aldemir Martins, artista que criou séries com a temática dos gatos. Os animais como gatos e cachorros em várias obras de Assis Costa que abordam cenas do interior mostram-se como um signo pictórico do artista. Nessa obra específica, são vários animais, galinhas, cavalos que expressam conforme essa interpretação o cotidiano, a relação entre homem e natureza, todos são importantes para 158 significar o que se quer ver representado: uma procissão onde todos se unem com o objetivo de festejar a sua fé. E os animais durante toda a história humana participou das dores e alegrias dos homens, sendo parte dos acontecimentos humanos, nesse sentido o artista observa o mundo que o cerca com a sensibilidade artística para fazer ver o Seridó, o lugar que escolheu para refletir e expressar um pensamento visual que é coletivo. Por fim, no espaço aberto, de respiração da obra, os cachorros à frente do grupo ditam a marcha e abrem caminho para os romeiros, onde um segue adiante e o outro olha para trás, esperando a pequena multidão, é o sentimento de comunhão com a natureza e com a comunidade. Uma fé em Santana que identifica a região do Seridó que liga o passado e o presente de forma imaginária. Outro dado a observar no lado esquerdo da obra: uma planta em frente a casa dos idosos, a vida que recomeça diante dos seus olhares crepusculares fitando o mundo com alegria e lembranças do que viveu. É uma cidade que cresce, mas que preserva os traços rurais, a vida que segue lenta, como no passo de uma procissão. Conforme postula Muirakytan K. de Macêdo, “inegavelmente a religião católica tem um caráter de fundação e instituição de um estilo de pensar, de viver e de delimitar espaços nos sertões seridoenses” (2000, p. 74). Apesar de ainda ser majoritariamente católica, a região do Seridó concorre com outras crenças religiosas na contemporaneidade, como inicialmente os evangélicos e posteriormente, ou concomitante a eles, vieram outras fés: manifestações espirituais afro-brasileiras, Testemunhas de Jeová, Espíritas Kardecistas, etc. O autor aponta para o fato que essa instância religiosa contribuiu para a constituição do território seridoense, referindo a territorialização cartográfica que demarcou geograficamente o espaço a partir de suas especificidades e a cultura. Como já discutido, a expansão do gado no sertão na metade do século XVII permitiu a formação de fazendas, e os primeiros núcleos urbanos, assim a Igreja Católica constituiu-se como parte integrante desse processo de delimitação territorial físico como poder espiritual, político e cultural. A princípio subordinado aos serviços religiosos da distante Freguesia de Piancó (vila paraibana), até 1748, o Seridó foi secionado dessa jurisdição e delimitado como freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Ana, para atender as necessidades espirituais da população. É interessante notar que o recorte espacial que tomava a freguesia seria o mesmo da Vila do Príncipe (correspondente à atual Caicó) [...]. Foi a primeira regionalização do espaço seridoense que se desenhava. Partindo da divisão administrativa da Igreja Católica na Colônia, o Seridó ganhou existência no plano cartográfico como território fiscal – o dízimo do gado era cobrado nesse espaço; como território espiritual – dominado por Sant’Ana; e como território político – a povoação do Queiquó (antiga denominação de Caicó), posteriormente Vila do Príncipe, como sede do poder civil da freguesia. (MACÊDO, 2000, p. 74, 177) 159 No período colonial, nos diz o autor, que a Igreja regulamentava as práticas espirituais dos indivíduos, exercia a assistência social o ensino e as diversões públicas, por meio de controles sociais e práticas discursivas cotidianamente eram reencenadas nos púlpitos das Igrejas, nos lares, em todo o espaço onde pudesse se infiltrar esse poder “invisível” de manipulação discursiva. Mary Del Priori, analisando esse período, infere: As procissões também ensejavam atividades festivas. Esse tipo de comemoração, na qual um desfile de fiéis acompanhava o pálio sob o qual seguia o sacerdote, ou seguiam andores e charolas, fora instituída no Brasil desde o governo geral de Tomé de Souza, quando chegaram aqui os primeiros Jesuítas [...]. A difusão das procissões, em dias de festas religiosas, colocava em evidência a mentalidade das populações, que viam no rito processional uma função tranquilizante e protetora [...]. As procissões são simultaneamente fenômenos comunitários e hierárquicos. Eles exprimem a solidariedade de grupos sociais subordinados a uma paróquia, reforçando tanto os laços de obediência à Igreja e aos poderes metropolitanos (DEL PRIORI, 1994, p. 22, 23). Praticamente inexistia a vida urbana nos sertões seridoenses no século XVIII, havia dois lugarejos, o de Caicó e o de Acari. A cidades do artista Assis Costa que representam as procissões de Sant’Ana, não identifica nenhum lugar específico nem uma temporalidade, contudo elabora uma imagem símbolo da região por meio da devoção a santa católica e a um tempo remoto. O próprio título das telas faz esse papel pela designação de Santana (como metáfora do Seridó), na tela Festa de Santana e explicitamente em Procissão de Santana em pequeno povoado do Seridó. As festas de padroeiro na região do Seridó constituiu-se como um traço característico da cultura regional seridoense, como momentos de sociabilidades, um discurso que reaparece todos os anos para quem vivencia esse espaço, e observa com criticidade essas categorias discursivas como a expressão recorrente: a festa é o momento em que “os filhos ausentes” retornam ao seu lugar de origem, reafirmando laços familiares, valorizando os elementos particulares “dessa cultura” como os bordados em Caicó, o artesanato, as “comidas típicas”, as bandas de música, transformando o espaço em um lugar praticado, que se ressignifica com o tempo, pois o tempo não é inerte como a ideia de identidade praticada pelas sociedades ditas tradicionais. A festa de Santana, com destaque para Caicó e Currais Novos, na atualidade não é mais a mesma, mescla-se o profano e o sagrado, ela produz a contradição da mudança na permanência. Como diz Macêdo (2002), a religião católica está presente na fundação territorial do Seridó, se impregnando no imaginário que até hoje estão presentes na subjetividade sertaneja. O IPHAN instituiu a festa de Santana de Caicó como representante da 160 cultura seridoense, legitimando um discurso identitário centrado na primeira povoação do Seridó fundada em 1735, significando o sentimento de pertencimento ao espaço regional. As festividades de outrora como as de hoje, misturam manifestações religiosas e profanas, são missas, procissões, bandas, parques de diversão, são formas de atualizar e ressignificar uma tradição que se repete há mais de 260 anos na cidade de Caicó. Compreendendo-se que o discurso que sustenta esse espaço identitário, passam pelas formas de afeto que estão inseridas no âmbito da cultura e da vida social. Também é importante destacar que a narrativa mítica associada com a figura de Sant’Ana, “a fé do sertanejo na avó de Jesus” fez nascer várias povoações como Caicó, Santana do Matos e Currais Novos, envolvendo sempre uma luta de um vaqueiro contra o demônio representado pela seca, ou no caso de Caicó, um touro possuído por Tupã, associando-se a batalha contra os indígenas nessa região, que em nome de uma “graça alcançada” é edificada uma capela em seu nome, germinando nesse espaço um lócus de atuação humana, uma dominação do espaço. Conforme apontado acima, segundo Muirakytan Macêdo (2008), no ato de criação da freguesia do Seridó agregou-se a essa territorialidade ao nome de Santa Ana, que segundo tradição popular é venerada como padroeira dos pastores e vaqueiros (MACÊDO, 2008). Porém vale ressaltar que em cada lugar há uma explicação mítica específica de acordo com as circunstâncias históricas e culturais próprias para essas localidades. Mas nem só de Sant’Ana vivem as festas religiosas pictóricas dos artistas seridoenses. As duas pinturas a seguir, do artista Iran Dantas, pertencem ao acervo do marchand e professor de artes Antônio Marques. As Figuras (29 e 30) trazem uma reunião de elementos que identificam a paisagem seridoense, como as casas da zona rural, as serras e principalmente os significados culturais impregnados nesse recorte espacial acerca da tradição católica das procissões. Estas constituem representações sociais e culturais dos lugares são performances visuais que indicam e geram identidades espaciais. Na primeira obra vê-se o que o título aponta Procissão de Nossa Senhora Aparecida, de 2010, tendo duas Igrejas, dois marcos do poder religioso na história brasileira, pois a imagem reflete a forte presença do catolicismo no processo de afirmação das identidades regionais. A santa instituída como padroeira do Brasil é trazida para uma cena do interior pintada por um pintor de Currais Novos, interior do Rio Grande do Norte, fazendo uma referência a diversas perspectivas estéticas, e a uma categoria de pintura naif que sintetiza o espaço com mais cor e mais desprendimento das técnicas de perspectiva, volumes, luz e 161 sombra, pregando uma “maneira ingênua” de ver o mundo, as relações humanas travam-se em ordenações sociais tradicionais. Figura 31 – DANTAS, Iran. Procissão de Nossa Senhora Aparecida, óleo s/ tela, 50 x 60 cm, 2010. Acervo particular. Fonte: Arquivo da pesquisa. Figura 32 – DANTAS, Iran. Procissão de Santo Antônio, óleo s/ tela 45 x 65 cm, 2005. Acervo particular. Fonte: Arquivo da pesquisa. 162 A paisagem urbana domina quase toda a superfície da tela, numa perspectiva que lembra as ladeiras de Olinda em Pernambuco e de Ouro Preto, em Minas Gerais, talvez lugares visitados pelo artista ou apreendidos pela memória visual que nos é transmitida pelas diversas mídias como livros, revistas, internet, pois a história também é feita de imagens. Apenas na (fig. 31), observa-se no canto direito uma imagem da zona rural, com duas casas e uma cerca. As ruas delineiam espaços múltiplos, a ocupação humana se estende por todos os espaços das duas telas, nos becos estreitos escondem-se cenas do cotidiano observado e criado pelo artista. Como uma obra de Pieter Brueghel do século XVI, rica em detalhes do cotidiano flamengo, o pintor Iran Dantas mostra o espetáculo da vida, nas minúcias sutis que aglutinadas sufocam nossa visão, mas ao mesmo tempo entorpece de cor nosso olhar de forma alegre. Sem dúvida é uma representação das festividades religiosas como forma de “registro” visual de uma cultura seridoense cristalizada no imaginário coletivo. No Seridó, as festas de padroeiro aparecem como momentos importantes da sociabilidade local que são também marcos identitários fortes. Às festas dos santos, agregam-se práticas e discursos que formam um conjunto cultural rico desenhando a identidade da região. (CAVIGNAC, MACEDO, BRITO, DANTAS, 2010, p. 63). Apesar de não existir nenhum município na região do Seridó que tenham Santo Antônio ou Nossa Senhora Aparecida como padroeiros, em Jardim do Seridó, por exemplo há a festa de Nossa Senhora Aparecida. Como também Santo Antônio é um santo festejado nas cidades de Cruzeta e em Santana do Seridó durante os festejos juninos, onde se comemora o dia de Santo Antônio com o tradicional festejo “Santo Antônio do povo”. É possível perceber que a Igreja Católica desde o período colonial constrói matrizes em bairros centrais como forma de manter o controle social dos seus fiéis, ordenando a sociedade segundo seus dogmas religiosos. No caso das cidades na atualidade, em Currais Novos, por exemplo, Santana ocupa o lugar central na simbologia católica local, mas existem duas matrizes em homenagem a Nossa Senhora da Conceição e a São Francisco de Assis. Durante a festa de Santana, tanto na missa do agricultor quanto na procissão que encerra a festa é comum ver-se a congregação de vários andores dos santos representativos dos povoados circunvizinhos como dos bairros da cidade. Acredita-se que de modo geral, o artista tenta reforçar a imagem simbólica do poderio católico no sertão. Sabe-se ainda que muitas obras sejam frutos de encomenda e por vezes os artistas são solicitados a pintar procissões e santos de sua devoção tendo como cenário o sertão do Seridó. 163 É possível observar detalhes como a quantidade de casais, de namorados e a diversidade étnica, dispostas em núcleos familiares tradicionais. Apesar de hoje se apresentarem diferentes formas de arranjos familiares, uma vez que não somente casais heterossexuais participam desses eventos religiosos e sociais, o pintor retratou apenas núcleos familiares antes convencionais. Algo que também se percebe em ambas as obras (Figs. 31 e 32), no caso da Procissão de Santo Antônio, de 2005 é a presença das congregações religiosas, as irmandades, as bandas musicais que constituem o grupo de elementos das identidades culturais do Seridó. Em todas as cidades que compõe essa região, há uma tradição em incentivar a música de orquestra para participar das celebrações cívicas e religiosas, principalmente no mês de julho quando se comemora a Festa de Sant‘Ana em cidades como Caicó e Currais Novos/RN. É impossível falar das festas de padroeiro sem evocar as bandas de música que ocupam um lugar de destaque na vida social do Seridó. Nas suas primeiras formações, as bandas tinham, antes de tudo, um caráter lúdico e os seus membros se reuniam apenas algumas vezes por ano para os ensaios. As bandas surgiram no Seridó entre o final do século XIX e o início do século XX para acompanhar as celebrações religiosas da cidade (festas de padroeiros, comícios e outras reuniões públicas). Hoje, conhecem uma revitalização, pois quase todas as cidades do Seridó possuem uma banda própria que participa de concursos locais e se apresenta em reuniões públicas. Além das bandas de música desempenhar um importante papel social, pois se transformaram numa ferramenta de aprendizado da música, oferecendo aulas de musicalização e ocasião de lazer para os mais jovens [...]. (CAVIGNAC et al., 2010, p. 80). O professor Raimundo Arrais analisa como as organizações leigas (irmandades, confrarias e ordens terceiras) participam da construção das simbologias e de marcos de referência urbanos de grande significado para o imaginário da cidade de Recife no século XIX. Afirma que a presença da mulher nas festividades religiosas remetia a uma fruição controlada do espaço público. Algo que se observa nas pinturas dos artistas Iran Dantas e Assis Costa é a grande participação das mulheres e mesmo não se podendo afirmar as temporalidades representadas, mostra-se as permanências de um legado cultural colonial sobre o controle do feminino no espaço público uma vez que os papéis sociais determinados à mulher contemplavam frequentar apenas os espaços “licenciados” socialmente, como a Igreja. O autor nos diz que: Para as mulheres de família, as festividades religiosas representavam a única ocasião para usufruir do espaço público, rompendo a reclusão da vida patriarcal dos sobrados [...]. Gerido pela instituição jurídica do padroeiro, o catolicismo que se desenvolveu no Brasil desde a colonização adquiriu um forte caráter leigo. Era um 164 catolicismo em grande medida movimentado em torno das confrarias, irmandades e ordens terceiras e externado por meio delas (ARRAIS, 2002, p. 174). As obras de Assis Costa guardam semelhanças em termos de temática com a pintura de Iran Dantas. Os dois artistas vivenciaram e vivenciam o mesmo espaço identitário, porém divergem completamente no que diz respeito a perspectiva estética, da forma de fazer. Além das particularidades que identificam o traço e a maneira de pintar de cada artista, Assis Costa trabalha como artista plástico diversos materiais para a realização de suas pinturas, além de óleo sobre tela e acrílica sobre tela, o mesmo experiência aquarelas, técnicas mistas e pintura com vinho como já foi abordado. Como inexiste uma produção histórica sobre as artes plásticas do Seridó e o artista Iran Dantas, especificamente, não aceitou realizar entrevista para a pesquisa, não podemos analisar quais são as técnicas que o artista utiliza ou já utilizou para a confecção de suas obras, além das tradicionais óleo sobre tela. No âmbito formal, é possível dizer que as correntes estéticas que percorreram a história da arte, foram fontes de estudos para os artistas, de forma direta ou indireta, pois mesmo que os artistas sejam autodidatas, o estudo do desenho, a perspectiva, os volumes, as formas, as cores, elas partem de algum lugar, seja dos livros, dos vídeos já vistos ou de algum mestre. A produção dos artistas está inserida num mercado de arte que circula no Estado e no país, pois várias das obras desses artistas são adquiridas por pessoas de outros estados, como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Porém, a partir de suas especificidades de linguagem artísticas pintam o universo que é composto pela história dessa região, espacialidades intrínsecas as suas narrativas pictóricas e as suas próprias vidas, particulares e profissionais tecidas nesse ambiente que se formaram como indivíduos participantes de uma coletividade. 4.2. LAZER E CULTURA POPULAR Conforme já discutimos, o conceito de cultura popular obedece a uma lógica histórica, com isso procura-se questionar as ideias homogeneizantes sobre a cultura, pois esta não se cristaliza no tempo. De acordo com Arantes: Pensar a “cultura popular” como sinônimo de “tradição” é reafirmar constantemente a ideia de que a idade de Ouro deu-se no passado [...]. Essas maneiras de pensar a cultura pressupõem ou que ela seja passível de cristalização, permanecendo imutável no tempo a despeito das mudanças que ocorrem na sociedade, ou quando muito, que ela esteja em eterno “desaparecimento” (ARANTES, 2006, p. 16, 20). 165 As escolhas temáticas dos artistas circundam o universo da chamada cultura popular como Circos, Festas de São João e forrós. Nesse tópico serão abordados aspectos relativos a essas manifestações populares e artísticas representados nas obras de Assis Costa, Iran Dantas e Assis Marinho. Universos que se inscrevem num pensamento coletivo, observando os usos do espaço íntimo da casa e do espaço público, a rede de sociabilidades que geram as festividades na cidade do interior. Cada pincelada é uma maneira de ver o sertão, embevecido de música, dança e performances cênicas. O Circo Avoador é o título da obra abaixo do pintor Assis Costa (Fig. 33). A cidadezinha do interior está em festa com a presença do espetáculo circense, uma representação de qualquer cidade do Seridó, pelas características que lhe são recorrentes. O artista, em suas telas, raramente aborda uma localidade específica, mas lugares representativos do espaço seridoense. Constrói-se nessa imagem uma memória, apaziguada, sem conflitos. Os símbolos demarcatórios de uma pequena urbe, com Igreja, Prefeitura e o coreto. Nessa representação do sertão seridoense, uma paisagem que homenageia a arte do circo, a vida no interior é feita em contraponto à identidade constituída sobre as cidades grandes. Mesmo que as cidades do Seridó, na realidade, não possuam mais tais relações de sociabilidade, essa tela possui algo de uma imagem da saudade de um mundo esgarçado pelos atrativos da globalização que movediça a paisagem seridoense. 166 Figura 33 – COSTA, Assis. Circo Avoador, 40x 60 cm, acrílica s/ tela, 2013. Acervo particular. Foto do artista. Um caminhão ou “pau-de-arara” carrega um amontoado de pessoas, crianças, gatos, cachorros, senhores e senhoras, casais de namorados, um rico painel de sociabilidades, de pessoas nas calçadas vendo o tempo passar. O quadro congela uma dada imagem de conforto e de alegria. Quando perguntado sobre os temas mais procurados de sua clientela, Assis Costa responde: Olha, no geral, eu tanto vendo pra pessoas que tenham interesse numa arte que tenha um pouco de conceito, uma coisa mais modernista, mais espontânea, como também para as pessoas que também olham a arte pela beleza de olhar a arte. E tem essa imagem mais convencional né!? Festas do São João, os circos, os parques, a vida no campo, a vida rural, é os festejos! Reisado, mamulengo... Então são temas, que no geral as pessoa se identificam porque viram na infância, ou viram em algum momento e que sabem a importância daquilo ali, e que não quer deixar morrer, entendeu? [...] É porque a gente tem que buscar um pouco das nossas raízes, dessa coisa da terra, porque a gente não se sente muito somente essa coisa da máquina, do horário, que somente vive pra trabalhar, comer, dormir, e não faz mais nada e ganha dinheiro, então é como tirar férias no sítio, olhar o mato, olhar as estrelas a noite, respirar fundo, escutar os passarinhos cantando, o vagalume piscando, ficar olhando no escuro e imaginar que vai passar um disco voador, mesmo com luz elétrica, e quem vivenciou a vida de quem ia pro sitio e ia acender a lamparina, aquele cheiro de querosene, aquela fumacinha, e ficar no alpendre deitado na rede olhando a noite escura, olhando a lua cheia por trás das serras, é uma coisa maravilhosa! Então assim é como uma paz interior, é como um momento de meditação, a gente na 167 cidade não tem tempo pra isso, só vive, tem que viver até a hora de morrer [...]. (COSTA, 2015)80. Temos a imagem de uma pequena cidade do interior produzida pelo artista e a sua narrativa que mostra-nos a sua busca por representar uma memória, uma paisagem cultural e afetiva palmilhada de lembranças vividas na cidade de Currais Novos. O universo social e cultural criado na cidade que recebe o circo sofre um deslocamento pelos sentimentos de fantasia e imaginação que a arte circense provoca ao indivíduo. O espectador é convidado a imaginar o espetáculo que ocorre por trás da grande tenda armada antigamente nos centros das cidadezinhas, hoje é uma realidade que em quase todas as cidades do interior do Brasil e no Rio Grande do Norte, eles ficam geralmente localizados quando chegam às cidades, em lugares periféricos, não sendo mais o centro das atenções e nem atraindo um grande público como outrora. Então, observa-se em seu discurso uma defesa das coisas simples do interior, da paz interior idealizada no passado, onde a velocidade e a quantidade de carros nas ruas não eram uma ameaça a tranquilidade de uma pacata cidadezinha e sim motivo de fantasia e encantamento. A visibilidade construída para o sertão por Assis Costa remete a alegria, a uma sociabilidade marcada pela riqueza de detalhes, de portões românticos - herança ibérica, traçados com inspiração nos arabescos árabes, de fragmentos cotidianos pintados em janelas abertas, com pessoas idosas nas janelas. De muros baixos, longe da violência das cidades grandes, de pessoas de diferentes idades a conversar sobre suas vidas, como casais, famílias e crianças, vivendo a fluidez de um dia alegre que nos fala de uma região. A obra expressa micro-histórias relatadas pictoricamente pelo artista, como a do casal que chega ao circo de cavalo, hoje uma prática quase inexistente. Um mundo primordial que indica movimento, vida pulsante numa festa democrática, pois quem está fora do circo participa, pois toda a cidade se transforma para receber os artistas do circo. É também o medo do “desaparecimento” dessa cultura circense que o artista busca retratar, como uma imagem desejada pelas pessoas que adquirem seu trabalho, como sonhos e idealizações construídas sob os escombros de um passado idealizado como melhor do que o presente. Não objetivamos elogiar o passado ou o presente, mas dizer o quanto essas imagens surgem como um conforto a extrema relatividade dos conceitos na contemporaneidade, a aceitação da não identidade, ou das identidades múltiplas como partes integrantes desse mundo. 80 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN. 168 Figura 34 – MARINHO, Assis. Sem título, técnica mista s/ papel. S/D. Fonte: http://aflordaterra.blogspot.com.br/2013/09/faces-de-assis-marinho.html. Na tela acima81 (Fig. 34), o artista Assis Marinho remete às singularidades expressivas da composição dos espaços interioranos do estado. A obra e o artista parecem ter- se tornado em símbolos da cultura do RN, sobretudo por identificarem o espaço do interior do Estado, especificamente o Seridó e a região litorânea. Sua arte parece mais “democrática” e de fácil entendimento e fazer parte dos sentimentos de pertencimentos que se construíram para esses lugares. Um artista que fez do Beco da Lama em Natal/RN, das ruas da cidade Alta, seus lugares praticados, como caminhante desses espaços, transformou-o com novos 81 Esta tela não tem datação. Sabe-se que fez parte da exposição realizada pela UFRN, em 2013, na Galeria Conviv’art em Natal/RN, intitulada “As fases de Assis Marinho”. Em 2015 essa mesma Mostra, que teve a curadoria de Elidete Alencar de Souza, responsável pela Galeria Conviv’Arte do NAC/UFRN, também realizou- se na galeria Newton Navarro, na Fundação José Augusto. Era composta de aproximadamente 12 obras que representariam o seu trabalho dos últimos 20 anos. Com isso, observa-se a busca das Instituições oficiais culturais do Estado do Rio Grande do Norte, em valorizar o artista Assis Marinho, trazendo-o novamente para a cena artística estadual. 169 sentidos na sua arte e preservou os signos identitários de sua infância vivida nas cidades do Seridó. A cidade do interior na pintura de Assis Marinho (Fig. 34) pode ser identificada como sendo São João do Sabugi/RN, cidade na qual viveu até por volta dos 12 anos de idade. A Serra do Mulungu82 é o pano de fundo de várias das obras do artista que tem como tema o sertão, o cotidiano e as festividades. Nesse quadro ele traz o momento lúdico da criança com a presença imponente do palhaço posto em pernas de pau, pois a arte circense era a principal atração cultural que chegava às pequenas cidades brasileiras, gerando o encantamento que a arte permite, constituindo sociabilidades e a mudança da rotina de toda a realidade social, como se evidencia na pintura do artista. Ainda acerca dessa obra, vemos que Assis Marinho retratou o circo à luz do dia. Um trabalhador em segundo plano traz uma enxada nas costas, mais um dos ícones de sua obra, salientando a repetição do lavrador na sua pintura, é como uma persistência da memória. A repetição ritualiza e reatualiza as formas, os mesmos símbolos são apenas representados de maneiras diferentes, contém a mesma ideia nascente, de modo que a memória é agenciada para construir uma identidade cultural coletiva do espaço regional seridoense. Mesmo que tal ação seja inconsciente para o artista, alguns aspectos de seu trabalho serão utilizados como símbolos dessa região pelas pessoas que introjetam esse imaginário cultural bem como as Instituições culturais do Estado também, favorecendo a manutenção de uma imagem de tradição que se quer ver sobre o sertão. Porém, curiosamente, em outra pintura de Assis Marinho (Fig. 35), o mesmo palhaço reaparece, com a mesma paisagem, acrescida de um pôr-do-sol por trás de casinhas enfileiradas. Quase como um desenho de criança, ele mostra o homem despido de seu personagem, revelando a tristeza no olhar de um possível autorretrato. 82 A Serra do Mulungu localiza-se há 5 km da zona urbana do município de São João do Sabugi/RN, possuindo uma altitude que ultrapassa os 500 metros. É um grande complexo rochoso, que se destaca pela elevação que tem em relação as outras cadeias montanhosas da região. Alguns populares consideram a serra um local santo e realizam cerimônias religiosas em seu cume. O nome “serra do Mulungu” tem origem num poço que existia ao pé da serra onde perto havia um pé de Mulungu. Disponível em: . Acesso em:12 jun. 2016. 170 Figura 35 – MARINHO, Assis. Sem título, crayon s/ papel. S/D. Fonte: http://aflordaterra.blogspot.com.br/2013/09/faces-de-assis-marinho.html. Figura 36 – MARINHO, Assis. Sem título, crayon s/ papel, 70 x 50 cm, 2012. Fonte: http://aflordaterra.blogspot.com.br/2013/09/faces-de-assis-marinho.html 171 O quadro das lavadeiras de Assis Marinho (Fig. 36) representa as duas serras que pertencem à paisagem de São do Sabugi/RN, retificando o que já foi debatido sobre a repetição de ícones identitários. Uma cena do cotidiano rural e uma descrição pictórica dos hábitos cotidianos de pessoas que não tinham água disponível em suas casas: lavavam suas roupas no rio e as crianças viam tal fato corriqueiro como um verdadeiro parque de diversão. Os riachos eram lugares de pertencimento para lavadeiras de roupa. Segundo estudo de Francisca Palmeira (2005), as mulheres que exerciam essa prática cotidiana ficaram desterritorializadas com os mecanismos de modernização do processo de alvejamento das roupas como o sabão em pó e a máquina de lavar. Apesar disso, a autora afirma que várias mulheres continuaram a defender as práticas tradicionais. Houve um redimensionamento dos papéis do feminino e de inserção no cotidiano dos símbolos que compõe o conceito de modernidade. A temática das lavadeiras de roupas encontra-se também na obra do artista Assis Costa, principalmente em obras da década de 1990. Se, nos anos 2000, as lavadeiras tornaram-se anacrônicas e simbólicas – pelo menos na pintura –, até os anos 1990 elas eram figuras sociais fundamentais. Segundo Almeida (2001), a obra de Assis Marinho realiza uma arqueologia da memória. Almeida aborda a poética visual do artista de uma perspectiva fenomenológica à Gaston Bachelard, numa narrativa que busca reforçar o discurso identitário regional. Compreende, sobretudo, que o artista fixa quadros de suas vivências no imaginário coletivo. No momento histórico em que vivemos hoje, a noção de tempo ligada à velocidade. Tudo é muito rápido e instantâneo. Interessa o novo, o inusitado. Imagens que registram uma memória é colocar-se no passado. Assis Marinho, como um arqueólogo, escava a memória de sua própria existência, para vir à tona com imagens que revelam a vida no interior, a família, os pescadores, crianças soltando pipa, forró, noites de São João... A sua obra reflete o seu interesse pela vida e pela cultura do interior do nordeste. A construção de uma poética visual se dá a partir dessa noção de memória e de cotidiano (ALMEIDA et al, 2001, p. 136). As consequências do processo de globalização são analisadas por Stuart Hall, percebendo o jogo contraditório das identidades culturais, pois há o fortalecimento das identidades locais e a produção de novas identidades, criticando a noção de homogeneização cultural. A seguinte obra (Fig. 37) do artista Assis Marinho, é um dos seus inúmeros “Forrós” que o artista já produziu ao longo de sua carreira. Esse é de um acervo particular e encontra-se em Currais Novos/RN e foi adquirida por Iaci Pereira durante a exposição realizada pelo decorador José Milton Salustiano no ano de 1986 nessa cidade. 172 Figura 37– MARINHO, Assis. Forró, 60 x 90 cm, técnica mista, 1986. Acervo particular. Foto: acervo da pesquisa. Embora o quadro seja um Forró numa casa de interior, no caso o “seu” interior era a cidade de São João do Sabugi. A tristeza nas fisionomias de seus personagens denuncia a contradição entre o tema e a representação. Os olhares lacrimosos das figuras de Assis Marinho recebem um tom sacro, mesmo quando o tema é a festa profana, o despojamento de uma dança “típica” nordestina, que invadia as salas humildes e nobres desse espaço regional. No sertão seridoense, a prática cultural de dançar forró significa na obra do artista a dicotomia flagrante de todo seu trabalho, uma alegria- triste tomada em suas pinturas e transforma-se em poética visual, mas também em clichê de um espaço regional, buscando no fazer artístico uma “arqueologia da memória” que elucida o lado subterrâneo de um discurso que homogeneíza o conjunto de sua obra. Deve-se frisar que na década de 1980 o artista começou a ser reconhecido como um pintor de destaque no cenário cultural do Estado do Rio Grande do Norte, muito pela qualidade de suas obras, em termos de originalidade e expressividade, mas também pelas temáticas que escolhia, as quais contribuíam para o sentido de identidade, traduzindo-se no seu universo “interior” e na identidade seridoense imbuída da lógica da regionalidade nordestina. Na próxima pintura (Fig. 38) ele ressalta os músicos, a festa junina, o privado e público na cultura sertaneja, a qual cultua e eterniza, explorando os detalhes da casa de uma 173 família humilde, de contornos sociais demarcados. São provavelmente trabalhadores do campo que usam a arte da música para comunicar ao mundo sua alegria, a lembrança de vivências festivas no “interior” de seu ser. Figura 38– MARINHO, Assis. Sem título, crayon s/ tela, 2015. Fonte: http://aflordaterra.blogspot.com.br/2013/09/faces-de-assis-marinho.html. Figura 39 – COSTA, Assis. Noite Junina, óleo s/ tela, 80 x 80 cm, 2009. Acervo particular. Foto: acervo da pesquisa. 174 A tela Noite Junina, de Assis Costa, fora adquirida, em fevereiro de 2014, pela Editora Saraiva de São Paulo, que comprou a licença para a reprodução dessa imagem. A imagem circula nos livros didáticos como sendo a representação das manifestações culturais brasileiras, com destaque para a região Nordeste que faz do mês de junho uma festividade tão maior quanto a do Natal em dezembro, quando se comemora tradicionalmente o nascimento de Jesus. Como acontecimento (FOUCAULT, 1970), a pintura instaura uma dada visibilidade, num processo que forma a densa camada de identidade cultural de um espaço, como por exemplo, a região do Seridó, com conceitos cristalizados como a da tradição cultural de festejar os santos católicos. Albuquerque Júnior (2013) praticando uma história dos conceitos, propõe o Nordeste como uma região construída historicamente, sendo inventada, entre outros atributos, como um espaço de cultura artesanal e folclórica. Os folcloristas dos séculos XIX e XX definiram o que deveria ser visto e dito, inventando o que hoje conhecemos como cultura nordestina. Seguindo propostas de Michel Foucault, considera-se o folclore e a cultura popular como categorias discursivas, vindo nomear formas e matérias de expressão que estariam sendo transformadas ou destruídas pelo mundo moderno, pela sociedade urbano- industrial. A festa junina de Assis Costa, ao contrário da pintura de Assis Marinho, situa-se totalmente no espaço público. A cidade e a festa apresentam-se como tema principal. No primeiro plano, uma barraca de comidas “típicas” agrega um casal e uma mãe com duas crianças pequenas, do lado esquerdo um vendedor de algodão doce, pessoas e dois cachorros encantam-se com o voo do balão. Um “trio sertanejo”, como ficou conhecida a composição de músicos estabelecida por Luiz Gonzaga e composta pelo sanfoneiro, zabumbeiro e triangueiro, animam dois casais e a quadrilha que forma o “túnel do amor”. A fogueira quase ao centro direciona o olhar do espectador para outras cenas do quadro, como o grupo de pessoas que assistem ao teatro de mamulengo, no Rio Grande do Norte nomeado como Teatro de João Redondo. Uma arte muito divulgada no estado pelo mamulengueiro Chico Daniel. Ressalta-se que em Currais Novos, cidade do artista plástico, o teatro de bonecos foi realizado por Bastos Bonequeiro e tratado no livro O teatro de João Redondo, escrito pelo poeta José Bezerra Gomes em 1975, também natural dessa cidade. Houve também “Zé Boneco” que atuou nos anos de 1960 no povoado Trangola, zona rural de Currais Novos. Reafirmando-se essa “tradição”, em 2007 se constituiu o grupo “Caçuá de mamulengo”, criado pelos artistas Ronaldo Gomes e Francinaldo Moura os quais realizaram o projeto “João 175 Redondo no oco do mundo” tendo Incentivo do Ministério da Cultura – MINC através do projeto mais Cultura do governo Federal em 2010, o qual visava a realização de oficinas de confecção de bonecos de João Redondo e a circulação do teatro por cinco municípios do Seridó, como forma de recuperar essa manifestação popular esquecida na contemporaneidade. Assim, os artistas, a produção pictórica de Assis Costa situa-se nessa busca de recuperar o elo com o passado, das tradições populares, das festas juninas vividas como antigamente, criando uma nostalgia de um tempo que ficou perdido, de formas de expressão que foram “folclorizadas”, caricaturadas, descontextualizadas, tomadas como uma paisagem que necessita ser revivida nem que seja numa memória plástica endossada na pintura, alimentando a ideia uma “alma do lugar”. O “pau de sebo” é outro atrativo dessa festa popular, as pessoas sobem numa vara tomada de um tipo de substância escorregadia, com a finalidade de ganhar uma recompensa financeira. O ganho desse jogo é a brincadeira, pois na maioria das vezes ninguém consegue chegar ao cume. Em perspectiva, um grupo de brincantes de Boi de Reis entra em cena, encontrando-se com a procissão de São João que sai da Igreja no canto superior esquerdo do quadro. A arquitetura das casas e prédios públicos é minuciosamente detalhada, o prédio do lado direito da obra, de cor branca e janelas amarelas, segue o desenho arquitetônico da Prefeitura de Currais Novos/RN, a Igreja lembra as formas da Igreja antiga de São Vicente/RN. Essa pintura marca o princípio de uma série de pinturas com a temática junina, conforme pesquisado em seu acervo digital. Cada vez mais o artista tenta trazer mais detalhes do cotidiano, buscando uma maneira de descrever esse ser sertanejo, no modo como as pessoas se vestiam e se comportavam, baseadas em lembranças que viveu na infância como de uma memória cultural interiorizada historicamente. As sonoridades do forró no São João, as noites de quadrilhas nas ruas da cidade, dão sentido à ideia de identidade cultural e corporeidade a um sentido de integração social que a festa possibilita, desde tempos ancestrais quando o homem imaginava nas estrelas um céu multicolor. A intenção não seria decifrar as minúcias da imagem produzida pelo artista, mas observar como cada detalhe tem um “pedaço de história”. Um quadro que representa as festas de São João nas cidades do interior, no caso destes aqui trabalhados, expõe as características do lugar ao qual o artista vivencia, a cidade de Currais Novos, na região do Seridó. As figuras são simplificadas, porém obedecem a uma figuração na qual cada um dos personagens construídos na pintura possui uma identidade, uma “personalidade” apesar do anonimato. São “tipos”, personagens referenciais. 176 Ao valorizar os temas ditos folclóricos ou pertencentes a cultura popular – conceito atualizado de folclore83 – os artistas pintam a partir do fluxo de ideias e conceitos interiorizados socialmente e culturalmente. Para eles, como na tradição discursiva dos folcloristas, rejeita-se qualquer indício de mudança, contribuindo por sedimentar esse sentimento “antimoderno” e promover o conforto de uma representação de memórias do passado. Esta rede temática pictórica é produzida por ter encontrado um mercado consumidor, uma demanda por pinturas pelos tipos e situações populares. Segundo estes consumidores, essas obras retratam a “verdadeira cultura”, uma autêntica visão do popular, tornando-se atualizadores desse imaginário. De certa forma, estas telas podem ser vistas como “fugas” do imaginário das cidades grandes, nas quais se destacam os atributos do medo e da violência, a impessoalidade, a não identidade ou as múltiplas identidades. Albuquerque Jr. afirmou que: A curiosidade pelas crenças e hábitos religiosos, pelos rituais e pelas devoções populares, por suas crendices e superstições mostra uma disposição por parte desses homens que pertenciam ou deveriam pertencer ao mundo da racionalidade, da intelectualidade, da consciência para reencontrarem um mundo presidido por mitos e mistificações (...). O povo torna-se o repositório do encanto e do encantado, do sagrado e do sacralizado, num mundo desencantado e desencantador (ALBUQUERQUE JR. 2013, p. 68). O mundo desencantado é o avesso do ideal de vida no sertão e nas pequenas cidades do interior, como Currais Novos, Caicó, Acari, São Vicente, cidades da região do Seridó que tiveram seu processo maior de urbanização na metade do século XX principalmente. Estas urbes mantiveram algumas (poucas) características arquitetônicas do período colonial, com exceção de Acari que ainda preserva um conjunto arquitetônico ainda conservado. Tais localidades vivem nas últimas décadas o embate entre as formas de vida tradicionais e as novas sociabilidades geradas do mundo contemporâneo. A chamada cultura popular seria o espaço mágico que garantiria a atuação desse universo imaginário das festas, da vida tranquila associada ao sertão, configurando imagens de cidades compostas de poucas casas ordenadas pela Igreja Católica. 83 Quem nomeia aqueles que são as pessoas ou grupos sociais folclóricos são membros da elite cultural letrada, cujo exemplo paradigmático no RN foi Câmara Cascudo. Este fazia uma etnografia dos usos e costumes de pessoas praticantes de todos as expressões artísticas e culturais, as quais muito anteriormente de serem classificadas e instituídas em códigos sociais e linguísticos, exerciam suas peculiares formas de expressão. Cf. ALBUQUERQUE JR., 2013. 177 Figura 40 – DANTAS, Iran. São João do arraiá, dimensão não informada. 2007. Fonte: https://plus.google.com/110144835354123986926/photos. As imagens de Assis Costa podem ser contrapostas à pintura São João do arraiá, de Iran Dantas (Fig. 40), ambas sobre o mesmo tema que trabalha a reminiscência e vivência na região do Seridó. Seus personagens são simplificados, como se fossem “bonecos de pano” com vida encenando um “teatro ao ar livre” de uma festividade junina. Representam as práticas culturais no espaço rural e mais uma vez observamos os códigos que demarcam a identidade seridoense, a Igreja, o casario antigo e as formas de sociabilidades gestadas nesse contexto de predominância de uma imagem folclórica, tradicional e festiva da região. O colorido expressa o sentimento de alegria, é o que se procura projetar para as outras regiões do país como também para o exterior, uma vez que a maior parte de sua produção nesse caráter de representação de uma cultura popular e de uma paisagem interiorana era destinada a Galeria do marchand Antônio Marques no Centro de Turismo de Natal/RN, voltada ao público visitante. 178 Figura 41 – DANTAS, Iran. Sem título. 2011 Fonte: http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/selecao-de-art-naif-no-salao-xico-santeiro/191850. Iran Dantas investiu muito em composições figurativas superpovoadas quando o tema eram as festas juninas. Também numa tela sem título de 2011 (Fig. 41) mostra-se a representação de uma Festa Junina que recebeu o prêmio do Salão Nordeste de Cultura Popular Chico Santeiro, realizado pela fundação José Augusto, Natal/RN em 2011. Nota-se um detalhe, a Torre Eiffel em perspectiva participa dessa festividade. A referida tela fora produzida logo após uma viagem do artista a Paris naquele mesmo ano, quando expôs numa coletiva na Galerie Everarts. Dantas fora homenageado pela Société Académique de Arts, Sciences et Lettres na França com uma insígnia outorgada a personalidades brasileiras pelos relevantes serviços prestados as Artes, Ciências, Letras e Cultura. Esse fato foi divulgado na imprensa local (impressa e digital), ressaltando o artista como cidadão currais-novense e seridoense que ultrapassou as fronteiras geográficas da região por meio de sua arte. 179 4.3. UMA FESTA DE BOI DE REIS Figura 42– COSTA, Assis. Boi do Trangola, 40 x 60 cm, óleo sobre tela, 2008. Acervo particular. Foto do artista. De acordo com o discurso do escritor Luiz Câmera Cascudo, no livro o Dicionário do folclore Brasileiro o Reisado é a denominação erudita para os grupos que cantam e dançam na véspera do Dia de Reis, conceituando-os como “formas teatrais de enredo popular”, com bailados (cantos feitos enquanto se espera a entrada das figuras) tratando de assunto religioso ou profano, representados no ciclo das festas de Natal. O Boi de reis é um auto que tem sua expressão originária no período da colonização portuguesa no Brasil. O primeiro registro do Boi de reis apareceu no jornal O Carapuceiro, do padre Miguel do Sacramento de Lopes Gama, em 1840, mas sua origem exata é desconhecida. É uma lenda que acaba se desdobrando em expressões culturais diversificadas de acordo com a cultura e lugar que se apresenta. Cascudo identificou na Península Ibérica os tourinhos, que consistiam em uma pantomima em que um rapaz, colocado numa armação de cipós, recoberta de pano, imitando um touro, corria atrás de seus companheiros para atingi-los, numa tourada de brincadeiras. Possíveis antepassados da brincadeira de Boi de reis e o costume podem ter imigrado, sendo posteriormente modificado em terras brasileiras. O Boi de Reis ou Reisado pintado por Assis Costa é uma representação do “Boi do Trangola”, povoado localizado na região do Totoró, que pertence a zona rural de Currais Novos, local onde se originou o município. Essa região é conhecida pelas pinturas rupestres, 180 pelo Pico do Totoró, pelas pedras do Sino e do Caju, como também pelo Boi de Reis que mesmo passando mais de 20 anos sem ser celebrado, continuou a gerar valores simbólicos. Assis Costa foi o primeiro artista plástico a fazer o registro dessa expressão cultural local. Esta tela, em especial, está diretamente ligada a um processo de retomada e monumentalização do Boi do Trangola pelo poder municipal de Currais Novos, conforme veremos a seguir. Na década de 1960, o Sr. Vicente Firmino que era do brejo de Bananeira na Paraíba, popularmente conhecido como “Zé Boneco”, inicia suas atividades no Povoado Trangola, fundando o “Boi de reis do Oriente”, depois simplesmente Boi do Trangola. Lourdes Garcia, que é professora da única escola do povoado, em entrevista84, nos relata que o processo embrionário começa com dificuldades, pois todo o custo era de responsabilidade do grupo, porém todo o esforço era compensado devido ser muito prestigiado pelo povo da região. De tal modo a comunidade construiu em sua homenagem um pequeno museu que expõe a trajetória do Boi de reis. Os adereços eram produzidos pela comunidade com aquilo que dispunham85. Os integrantes iam a pé, e as alegorias eram levadas nas costas ou sobre burrinhos, pois antes, declara o Sr. Nelson Luiz86, contramestre na época do Sr. Zé Boneco, havia uma pessoa exclusiva para levar o Boi até os povoados da zona rural de Currais Novos/RN e região. Geralmente as apresentações iniciavam a partir do segundo semestre de cada ano, encerrando suas atividades no dia dos Santos Reis, isto é, do mês de junho ao dia 06 de janeiro e o tempo de duração era em torno de três horas. O cenário era a casa do contratante, para tomarem banho e se vestirem. Depois de ter-lhes servido um jantar, era uma obrigação do dono da casa (MEDEIROS, 2000, p. 06). Armavam a tolda em um espaço livre à maneira do Teatro de João Redondo, onde os personagens do Auto saíam para o espetáculo. A apresentação começava com uma louvação aos reis do Oriente cantada pelo grupo e o mestre continua: Bendito louvado seja, Pai e Filho, Espírito Santo, são as primeiras palavras que nesta vitória eu canto. [...]. Sai o sol e sai a lua, as estrelas também, também sai a 84 GERALDO, Maria de Lourdes Garcia. Depoimento escrito. Entrevistador Maria Ilka Silva Pimenta. Povoado Trangola, zona rural de Currais Novos/RN, 22/04/2012. 85 Por exemplo, as cabeças do boi e do bode eram feitos de esqueletos dos próprios animais e a estrutura de madeira, coloridos de fitas, espelhos, pinturas em espirais e outros materiais simples eram produzidas por meio de matéria-prima local. 86 SANTOS, Nelson Luiz dos. Atual mestre. Depoimento escrito. Entrevistadora Maria Ilka Silva Pimenta. Povoado Trangola, zona rural de Currais Novos/RN, 22/04/2012. 181 primavera, na hora de Deus amém. Se o santo rei soubesse quando era o seu dia, descia do céu a terra, com prazer e alegria. (SANTOS, 2012) Assim como encontramos no enredo do texto original, uma saudação a Sant’Ana, ícone identitário da região do Seridó, sendo, portanto, uma particularidade do Boi de reis do Oriente. Assim canta o mestre: Na chegada desta casa, levanto nossa bandeira, // nossa senhora Santana é a nossa padroeira. (Idem). A sua última apresentação foi em 1985, segundo informa a senhora Lourdes Garcia. Aparentemente os fatores de seu desaparecimento foram o êxodo rural como resultado da decadência econômica das principais economias da região como a produção do algodão e a extração da Scheelita, a inflação e falta de apoio do poder público. Em busca de uma nova narrativa estética e linguagem que criasse uma identidade regional, na década de 1990, o professor Jefferson Fernandes criou o grupo de teatro do Totoró, com a peça o Boi de Reis do Trangola – o espetáculo, uma adaptação do texto de Racine Santos, O dia em que Jesus nasceu em Natal. A peça foi compreendida como uma homenagem ao Boi de reis pelo professor Jefferson Fernandes, que na época era diretor de Teatro do Grupo “Boca de rua” de Currais Novos e atualmente professor titular da UFRN. Esse projeto teve grande significância para a autoestima da comunidade no momento em que o Boi de reis do Trangola não mais se apresentava. Entre 2011 e 2012, com os incentivos do Ponto de Cultura de Currais Novos/RN, através do projeto do Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura - MINC, da comunidade do Trangola e do artista Assis Costa que contribuiu na produção de novas alegorias, essa manifestação cultural – a qual foram atribuídos traços da identidade local – voltou a fazer apresentações pela região assumindo como Mestre do Boi de Reis, o senhor Nelson Luiz, que era contramestre, no lugar do senhor José Firmino da Silva, o “Zé Boneco”, falecido em 21 de fevereiro de 2005. Com isso, apesar de se tentar buscar uma origem, uma forma genuína dessa prática cultural existente nessa região, a nova geração que compõe os novos integrantes dessa “fase ressuscitada” do Boi de Reis do Trangola, não pode assemelhar-se a maneira antiga, pois apesar de ser uma comunidade isolada, a televisão, os diversos meios de comunicação, como a internet e o próprio deslocamento das pessoas por outros territórios, faz com que seja uma reapropriação da expressão cultural iniciada nos anos de 1960. 182 Ao evidenciar uma prática cultural adormecida no contexto local, que fez parte da memória cultural e histórica da cidade de Currais Novos, Assis Costa elabora uma espacialidade seridoense estruturada pela cultura popular, pois o Boi de Reis do Trangola sobreviveu na lembrança de pessoas que vivenciaram essas festividades. Nessa medida, entende-se que as representações são construídas num determinado grupo social, definindo suas práticas e identidades. E neste caso específico, o artista fez parte de um processo de reestruturação e monumentalização de uma expressão cultural antiga desaparecida e que fora retomada na prática e na visualidade. Para Mary Del Priori a festa abriga sentidos sociais, políticos, religiosos e simbólicos que serão introjetados coletivamente, Expressão teatral de uma organização social, a festa é também fato político, religioso ou simbólico. Os jogos, as danças e os músicos que a recheiam não significam descanso, prazeres e alegria durante sua realização, ele tem simultaneamente importante função social: permitem às crianças, aos jovens, aos espectadores e atores da festa introjetar valores e normas da vida coletiva, partilhar sentimentos coletivos e conhecimentos comunitários [...]. A alegria da festa ajuda as populações a suportar o trabalho, o perigo, a exploração, mas reafirma igualmente, laços de solidariedade ou permite aos indivíduos marcar suas especificidades e diferenças (DEL PRIORI, 1994, p. 10). Na figura (Fig. 42), identificamos uma paisagem real reelaborada para significar o espaço imaginário, pois os personagens (da esquerda para a direita) Boi, Mestre, Birico e galante, este último dançando com um violão, são apenas criações do artista, uma pintura que não procura reconstruir com detalhes o que seria a manifestação folclórica localizada no povoado Trangola, mas trazer uma inventividade sobre o lugar – neste caso inspirada em estilo modernista – como um símbolo do espaço seridoense, demarcado pelo rio Totoró que permeia o quadro, fragmentado em linhas geometrizantes, como uma colcha de retalhos. A natureza – expressa pelo rio, Pico do Totoró e pedra do Caju constituem uma unidade, uma ideia simbólica do lugar. 183 4.4. VAQUEIROS E VAQUEJADAS Figura 43 – DANTAS, Iran. Sem título, dimensões desconhecidas, óleo sobre tela, S/D. Fonte: https://plus.google.com/110144835354123986926/photos. Figura 44 – DANTAS, Iran. Vaquejada, 50 x 70 cm, óleo s/ tela, 2009. Acervo particular. Foto da autora. 184 Figura 45 – DANTAS, Iran. Vaqueiros e vaquejada, dimensões não encontradas, óleo s/ tela. S/D. Fonte: https://plus.google.com/110144835354123986926/photos Utilizando-se das obras do artista Iran Dantas que abordam os temas vaqueiros e vaquejadas, refletimos a luz de uma discussão histórica e estética como essa cultura seridoense foi construída e projetada como espaço da tradição – constituída pela criação do gado, pelas relações indóceis do homem com o animal que fez de uma violência como a derrubada do boi ao chão, um espetáculo de caráter arbitrariamente “esportivo” fundado em um discursivo que prega a permanência de uma “tradição cultural” dos vaqueiros do sertão potiguar. A vaquejada é apenas um prolongamento da apartação. É uma das tradições mais cantadas em prosa e verso pelos cantadores [...]. Eis o que disse o saudoso cronista Pedro Pereira de Araújo: “As vaquejadas vêm dos nossos primitivos tempos [...], como uma recordação dos nossos antepassados, como uma lembrança viva dos nossos ascendentes como testemunha eloquente das belezas antigas, tudo aquilo que foi bom e passou. Passou e vamos reviver como se não tivesse passado”. (BEZERRA, 2015, p. 30) Nas páginas anteriores, visualizamos quatro imagens que mostram pinturas de Iran Dantas com a temática da vaquejada87, uma atividade classificada como esportiva e cultural, 87 “A apartação era realizada pelos vaqueiros de fazenda que capturavam o gado no mato para separá-los entre os fazendeiros de uma dada região. A apartação, conforme Cascudo (1976) e Bezerra (1978), foi o primeiro momento, iniciado no século XX, que permitiu o surgimento da vaquejada. Isso foi desenvolvido através da pega 185 que supostamente agrega valores históricos que deveriam ser mantidos como uma “tradição cultural”. Apesar de não existir ainda um estudo específico sobre isso na região do Seridó, sabe-que as vaquejadas de Currais Novos e Caicó possuem destaque nessa categoria de festas chamadas “nordestinas” (AIRES, 2008). O enunciado discursivo acima está no livro Retalhos do meu sertão, escrito por José Fernandes Bezerra, em 1980, com intuito de construir e reforçar uma historiografia sobre o espaço sertanejo, pautado numa escritura dos costumes culturais, tecendo as linhagens dos homens que dominaram politicamente e economicamente a região e partilhando da proposta romântica e etnográfica de Câmara Cascudo, José Augusto, Juvenal Lamartine e Oswaldo Lamartine. A primeira obra (Fig. 43) vislumbra características da paisagem da região do Seridó, especificamente Currais Novos, demonstrando intenso movimento na ação dos vaqueiros numa estrada rural, possivelmente numa “pega do gado”. Eles avançam no primeiro plano a procura do boi, que não aparece na cena. Impressiona nessa composição a quantidade de cavalos, pois são dez ao todo para três vaqueiros. Não podemos saber ainda, se essa foi uma obra de observação, ou seja, se o artista viu essa mesma cena e a representou no lugar, nem se foi uma livre criação ou uma encomenda. Porém segundo informações colhidas com algumas pessoas que tiveram mais contato com o artista nas décadas de 1980 e 1990, teria sido comum o artista fazer pintura de observação em vários locais da região, na zona urbana e rural. O mais interessante nessa obra é o destaque para os cavalos como animais fortes e desbravados, de uma beleza única e quase indomada pelos homens. Sobretudo, o estudo da topografia do espaço, o detalhamento visual das cores do chão, da caatinga, com facheiros e pequenas vegetações rasteiras, das pedras iluminadas pelo sol, com árvores que lembram mangueiras na perspectiva de fundo. Além da Serra do Chapéu, identificada no lado esquerdo superior do quadro, uma paisagem natural que se modifica na prática artística como símbolo de um lugar, no caso a cidade de Currais Novos/RN. Na tela seguinte, Vaquejada (Fig. 44), assistimos a um deslocamento de perspectiva estética e de abordagem do tema. Ela pertence ao acervo do marchand Antônio Marques e no momento que fora fotografada, em 16 de março de 2015, ainda estava disponível à venda. O último plano é um horizonte simplificado e tradicionalmente azul, espremido no alto do quadro. As figuras dos vaqueiros avançam no primeiro plano, criando dinamismo e impregnados de um sentido telúrico com o lugar, são homens vestidos com a pele dos animais, que ao serem representados pictoricamente tornam-se matéria simbólica, do boi que tentava fugir do cerco dos vaqueiros ou até mesmo da boiada, eles corriam atrás do animal no mato derrubavam-no ao chão puxando-o pelo rabo” (AIRES, 2008, p. 72). 186 fortalecendo o imaginário do sertão como território mágico. Como afirma Ulpiano T. B. de Menezes: O visível é sintoma do invisível, e todo objeto, toda imagem significam mais do que a aparência e podem conduzir à circunscrição de um inconsciente coletivo, uma cosmovisão, um espírito da época (MENEZES apud FLAMARION, VAINFAS, 2012, 254). Também aparece uma casinha com Curral e árvores na diagonal direita, contudo o quadro todo é construído em torno desse semicírculo que forma o corredor da vaquejada e a cidade em festa. Arquibancadas improvisadas são ocupadas por quatros pessoas, dois homens e duas mulheres, tudo acontecendo de forma concomitante, um pequeno forró, barracas de comidas, muitos casais de namorados, pessoas levantam os chapéus em comemoração a passagem dos vaqueiros, tumultuadas no espaço “privilegiado” de visão do acontecimento festivo. As cores puras das casas, verdes, amarelos, vermelhos, folclorizam a ideia que se deseja mostrar, assemelham-se ao padrão cromático elaborado pelo artista para as vestimentas dos personagens. Uma visão “naif” do mundo, aquilo que é procurado pelas pessoas, ensejando uma visibilidade de festividade do lugar – espaço de tradição e de festa. Na cidade criada pelo artista Iran Dantas, podemos ver ruas e becos desencontrados, deslocados do foco principal do quadro, amparados pelos prédios antigos, são espaços vividos numa “desordenação” espacial urbana que não representa uma perspectiva do real, mas uma composição inventada para simbolizar as cidades do sertão e as práticas humanas, figuras que ensejam seu cotidiano numa festa de vaquejada. É uma paisagem festiva que descreve um modus vivendi do Seridó, porque mesmo não sendo um lugar real, existe enquanto uma representação pictórica e imagética discursiva. Uma multidão que aplaude e comemora a passagem dos vaqueiros e a pega do boi, num ato rememorativo da história dos primeiros vaqueiros que vieram para a essa região e se constituíram nela, os quais adentravam na caatinga a mando dos seus patrões para reunir o gado desgarrado. Na obra, novamente a representação da Igreja, o símbolo do poder religioso nas pequenas cidades que evidentemente constituem uma imagem do Seridó. O templo religioso é um elemento identitário para diferentes culturas do mundo, dentro de uma topografia que possui significado simbólico ao ser construído geralmente em lugares mais altos das cidades ou regiões. O templo é o elemento da paisagem que está ligado diretamente a uma identidade religiosa, pois circunscreve um espaço sacralizado que catalisa uma rede de práticas 187 e discursos que impulsionam o ser humano à transcendência religiosa permitindo sensações, emoções e ideias que fornecem o sentido de sagrado (GIL FILHO, 2009, p. 05). Ao realizarmos esse passeio pelas imagens, não objetivamos formular uma verdade sobre as pinturas desses artistas, que antes de tudo procuram sobreviver de sua arte aliando o sentimento que tem para com o lugar no qual se constituíram enquanto indivíduos participantes de uma cultura historicamente homogeneizadora. Visamos apenas perceber como essas imagens encontram receptividade, levando os artistas a continuarem reproduzindo tais conceitos homogeneizadores sobre uma identidade cultural seridoense, reafirmando-a sobretudo porque estão inseridos num mercado de arte que valoriza tais imagens. Há uma cultura comum e um traço identitário que os envolve e forma os artistas coletivamente. No quadro de Iran Dantas Vaqueiros e vaquejadas (Fig. 45), há quatro personagens de grande intensidade na obra, os dois vaqueiros, o boi e o sol, um quarteto de força simbólica. O cenário é o campo, a casa típica da região do Seridó, a população que festeja a vaquejada como uma prática cultural relacionada com a pecuária, a relação do homem com os animais, que não possui nada de místico. Reforçar-se a ideia do sol que arde o sertão, a fúria do vaqueiro na caatinga, a “fera” interior que faz morrer o sentimento. No caso da vaquejada, a derrubada do boi é sinal de que o vaqueiro é forte e campeão, sendo atributos dados a um ideal de masculinidade enquanto um conceito historicamente construído sobre o “cabra-macho”. Cria-se uma visão da forma como eram praticadas no campo as vaquejadas, folcloriza a visão da vaquejada, exibe a força e o trabalho exercidos pelos homens desse espaço, como cavaleiros guerreiros que enfrentam os desafios da natureza. Hoje elas ocorrem em áreas próximas às cidades. A pintura exibe um mundo belo e ensolarado onde apenas a festa importa, de maneira nenhuma a dor e o sofrimento dos animais são discutidos. O boi recebe uma pintura azul, todo adornado como um boi de reis. Seu colorido mostra uma alegoria de um culto paradoxal, pois essa prática dita cultural e nos dias atuais vista como prática esportiva trata-se, na verdade, de uma violência contra os animais, configurando um crime ambiental, que é legitimada e instituída por um discurso conservador que se ancora inclusive na narrativa historiográfica romanceada de Câmara Cascudo e de outros historiadores de uma corrente tradicionalista. De acordo com Francisco Jânio Filgueira Aires (2008), que analisa as relações de gênero no sertão potiguar, na historiografia produzida no RN, o vaqueiro seria um sinônimo de bravura, coragem e heroísmo, a partir da sua entrada no sertão e permanência na região. A 188 ideia de heroísmo estaria vinculada as formas de resistir às adversidades como a seca, a condução do gado nas longas jornadas pelo sertão, um ser produzido pelo meio em que vive. Aires mostra que os modelos de masculinidade do vaqueiro, na vaquejada contemporânea e no contexto das fazendas são móveis, não congelados como transmite a historiografia romanceada e dos folcloristas. Geralmente a festa de vaquejada estava relacionada ao universo religioso e a produção agrária. Realizando-se quase sempre no mês de junho, no fim do inverno. De acordo com Aires (2008, p. 85), a vaquejada no início se apresentava como um meio de arrecadar recursos financeiros para os padroeiros do período junino e para os de cada cidade. Na vaquejada contemporânea houve a dissociação do aspecto religioso, no que se refere a concessões financeiras do evento para as paróquias locais. Operou-se uma mudança atrelada ao processo de uma indústria cultural, que atende à realidade mercantil. Porém, o autor observa que ainda permanecem os aspectos simbólicos dos ritos festivos como as cavalgadas, por exemplo, em Currais Novos, que mantém aproximação com a padroeira Sant’Ana. Ele aponta que foi a partir da década de 1990 do século XX que a vaquejada ganhou a formatação mercantilizada que possui hoje, atentando para o plano simbólico do corpo humano, no movimento do vaqueiro na derrubada no boi, fazendo associar ao pensamento de bravura e de superação acerca dessa figura que se apropria dos valores simbólicos do cavalo também como bravo, guerreiro e indócil. Esses são vistos conforme o autor nesse contexto mercantil como “máquinas de fazer dinheiro”. As pinturas de Iran Dantas que estão sendo discutidas no momento, correspondem a esse cenário do início das vaquejadas no interior do Estado. Quando a festa se realizava no campo, pertencendo a esse restrito universo social, diferente do que ocorre hoje, quando a maioria das pessoas das cidades procura usufruir dos atrativos musicais do evento até mais do que o “espetáculo” da derrubada do boi. Deve-se chamar atenção para um aspecto pouco mencionado, que é a presença do touro como tema pictórico da arte ocidental, entre os quais se destacam os sucessivos quadros europeus sobre o episódio da tradição clássica do rapto de Europa. Mais tarde, no século XVIII, algumas expressões culturais relacionadas ao touro se tornaram tópicos da arte espanhola. O próprio pintor Francisco de Goya fora um apreciador das touradas e hoje são famosas La tauromaquia, conjunto de gravuras produzidas por volta de 1815-1816. Na Espanha as Touradas ainda são um símbolo nacional, que movimenta a indústria do turismo. No século XX, o também espanhol Pablo Picasso tratou do tema das Touradas em diversas obras e a figura do touro além de recorrente, é uma expressão pictórica de grande 189 intensidade na sua obra, revelando as nuances destrutivas, da agressividade sofrida pelo animal e como resposta a agressão desse para com o homem. Ao mesmo tempo em que se mostra o conflito de uma autorrepresentação, do universo pessoal do artista, dos seus amores, do exercício de sua prática artística e das circunstâncias terríveis da Segunda Guerra Mundial em que vivenciou na Europa. As vaquejadas são um tema utilizado pelo artista Iran Dantas de forma a endossar o sentimento de identidade cultural na região, referente à cultura do gado, do vaqueiro, do sertanejo como bravo e resistente, que apesar de tudo, continua a festejar, como o sol que brilha para todos. 4.5. CENAS DO COTIDIANO Artistas como Assis Costa, Assis Marinho e Iran Dantas também retrataram muitas cenas do cotidiano que não se assemelham a momentos específicos como festas religiosas ou vaquejadas. Destacam-se as feiras e as situações do dia a dia variadas que são temas desta seção. Nas feiras circulam não apenas mercadorias, mas sociabilidades, relações de afeto, configurando-se como um lugar de encontro entre pessoas que aproximam regiões distantes, transformando com isso os espaços. É uma experiência social que sobrevive nas pequenas e grandes cidades apesar das grandes redes de supermercado. É uma prática cultural que sofreu modificações ao longo do tempo, porém continua a existir contendo em si um simbolismo de intercâmbio cultural, como se fosse uma ponte imaginária com um passado remoto e arcaico. As feiras88 adquirem novos sentidos na contemporaneidade, com produtos diversos, feiras de alimentos orgânicos, feiras de produtos tecnológicos, feiras de arte, de antiguidades. Enfim, um universo explorado pela possibilidade múltipla dos significados contidos nessa palavra. É praticada socialmente e culturalmente em regiões diferentes do globo. A feira é uma experiência pública de uso da rua, é reatualizada com novas perspectivas e interesses comerciais e significações humanas. Os artistas seridoenses também investiram na feira como um tópico identitário de sua espacialidade. As telas Feira livre de Currais Novos, de 2000, e, Feira Livre, s/d (Figs. 46 e 88 “Considera-se ‘feira livre’ o local previamente designado para a administração pública municipal, dotado de equipamento padronizado removíveis ou não, destinados às atividades comerciais a nível de varejo, voltada para o abastecimento de gêneros alimentícios à população, especialmente os de origem hortigranjeira (Decreto Municipal n° 26. 579, de 14/04/1994. Cap. I. Art. 1°- Conceito e Finalidade)”. (SANTOS, 2013, p. 09). 190 47), de Iran Dantas, configuram-se como uma paisagem cultural, conferindo ao espaço representado uma visibilidade regionalista seridoense, que tem na sua paisagem e nas práticas culturais ícones identitários. Figura 46 – DANTAS, Iran. Feira livre de Currais Novos, 82 x 93 cm, 2000. Acervo da Prefeitura de Currais Novos/RN. Foto da autora. Figura 47 – DANTAS, Iran. Feira livre, dimensões não informadas. S/D. Fonte: https://plus.google.com/110144835354123986926/photos. 191 Apesar de a feira fazer parte do universo cotidiano de muitas pessoas das várias regiões do país e do mundo, nas pinturas de Dantas ela possui uma identidade particular, especialmente a primeira obra (Fig. 46) que apresenta uma cena cotidiana da feira da cidade de Currais Novos/RN. O quadro ocupa uma parede do Gabinete da Prefeitura Municipal daquela cidade, fazendo parte do acervo iconográfico institucional do município. A pintura mostra a feira atual da cidade, a qual anteriormente funcionava no centro da cidade, onde hoje é a Praça Cristo Rei, sendo deslocada para a Rua Laurentino Bezerra na década de 1950 (SOUZA, 2008). Posteriormente, foi feita a cobertura dos canteiros conforme visualizamos no lado direito superior da tela de Iran Dantas. A obra, em formato vertical, evidencia apenas uma lateral da Rua Laurentino Bezerra, localizada no município de Currais Novos, conseguindo demostrar a configuração espacial da antiga feira. Hoje devido a diversos fatores, como a multiplicidade de supermercados e as opções de mercearias nos bairros, os hábitos cotidianos se modificaram com a industrialização dos alimentos. Com isso não existem mais tantas pessoas a frequentar a feira como ocorria com grande intensidade entre as décadas de 1960, 70 e 80, por exemplo, conforme relatos dos próprios feirantes e antigos moradores da cidade. Porém, a feira continua a existir como uma categoria cultural e histórica, a exemplo da Feira do Mangalho, onde são vendidas ervas variadas como: erva doce, cidreira, capim santo, canela e outras, bem como temperos, óleos, cordas, lamparinas, de modo geral produtos artesanais vindos do campo, esses ainda são muito procurados. No primeiro plano de Feira Livre de Currais Novos estão figuras bem identificadas, com destaque para a negra de costas, com um pote na cabeça, um senhor com as mãos cheias de jerimuns com uma expressão carrancuda e o cachorro. A feira de Currais Novos é um dos espaços de andanças da comunidade chamados negros do Riacho, a arte da cerâmica é identificada como artesanato tradicional desenvolvido pelos seus antepassados, como um traço da memória comunitária, sobre isso nos diz Joelma Tito da Silva: Para os moradores do Riacho que aprenderam a arte do barro, a louça é um suporte de memória, revela tempos antigos e atinge o imemorial. Alguns permanecem produzindo-as, mesmo diante da dificuldade em vendê-las. Nos domicílios alguns potes velhos dividem espaço com geladeiras e fogões. As poucas louças modeladas no Riacho ritualizam a memória dos antigos, dos seus mortos e dos ensinamentos que foram transmitidos na infância [...]. A arte ceramista deixou de compor a renda familiar, mas a prática e ritualização de seus significados permanecem na nostalgia daqueles (ou, mais precisamente, daquelas) que não perderam seu “treino” e, mesmo esporadicamente, levantam-se cedo para fazer pequenas peças, que são aproveitadas nas atividades domésticas, ficam empilhadas ou são quebradas. A louça se tornou memória de um trabalho antigo. No presente, as maneiras de sobreviver não possuem mais o tom do barro, mas a cor do carvão. (SILVA, 2010). 192 Além disso, percebemos também a barraca de frutas de verduras onde uma jovem senhora escolhe alguns cajus, e, do outro lado, um bananeiro que parece ser “fotografado” pelo artista, é o único que a olhar mais diretamente para o espectador. Ao adentrarmos na profundidade do quadro, na paisagem que se expande em profundidade na multidão, os detalhes das frutas e verduras descrevem sobre a cultura dos alimentos, o que é plantado e mais consumido, como melancias e jacas em abundância espalhadas pelo chão, barracas não cobertas, completas de jerimuns, melões, laranjas e bananas, uma “tropicalidade” dada ao espaço representado e transformada em uma paisagem cultural. Homens de chapéu de couro, um grupo de músicos e violeiros podem estar cantando repentes, no lado direito do quadro; assim, tudo simboliza um espaço democrático em que crianças, mulheres, idosos, usufruem dessa forma de vivência popular. No segundo quadro, Feira livre (Fig. 47), produzido possivelmente na década de 2000, período em que ocorre uma mudança de perspectiva estética, mais colorido, figuras mais estilizadas, “naifizadas”, adequando a um público apreciador tanto da temática como do estilo pictórico aproximado do primitivismo. Diferente da obra anterior, da década de 1990, que possui um traço do artista com uma espécie de “colorido sóbrio” aparentemente preocupado com o registro da paisagem local. Os potes em Feira livre aparecem junto a figuras humanas branqueadas que se homogeneízam, tornando-se uma massa humana que ocupa toda a tela, com as barracas seguindo uma ordenação, galinhas, milho, jerimuns, hortaliças, seres humanos, cavalos e jumentos, um caminhão carregado de frutas. Um amontoado de elementos, quase uma abstração, chama a atenção para um mundo antigo, o sertão do Seridó antigo. A problematização do cotidiano foi tomada como objeto de estudo a partir dos historiadores dos Annales na primeira metade do século XX, visto que a história não se faz apenas dos grandes acontecimentos, tendo como dimensões privilegiadas da historiografia tradicional as dimensões políticas e econômicas. Buscou-se historicizar o cotidiano, como um campo de transformações estruturais na sociedade, como percebe Michel de Certeau (1994) os espaços tecem as condições determinantes da vida social, porém com procedimentos multiformes, resistentes, astuciosos que escapam a disciplina – tecem lugares vividos. Nesta teoria das práticas cotidianas, extraindo as “maneiras de fazer”, surgem como “resistências” a ordem social instituída. Portanto, o espaço realiza-se enquanto vivenciado, costurado por lembranças, por relatos, criando lugares e cenários do vivido. Há nesse sentido ligações simbólicas entre as práticas espaciais, de caminhada, de deslocamento, práticas significantes, que nomeiam e postulam identidades. A memória irá compor o fragmentado. É um exercício 193 de criatividade, de inventar universos reais a partir do concreto, das enunciações, uma verdadeira operação historiográfica. Na observação de uma pintura, aquilo que vemos pertence a dimensão simbólica e de representação, se fabrica uma maneira de ver e de contar uma história. Com a próxima obra de Assis Marinho o tema é o namoro dos sertanejos, conforme verificamos na (Fig 48). Voltamo-nos para o universo privado, a partir do nosso olhar do presente sobre uma prática cotidiana não vivenciada pela maioria dos jovens namorados na atualidade. A vida íntima de um jovem casal é objeto de vigilância social, sendo o retrato cotidiano da mulher que foi educada para obedecer aos padrões morais vigentes em uma sociedade tradicional, convencionada aos dogmas religiosos cristãos. Um rito cotidiano de várias moças que levavam seus namorados para suas casas, não ocorrendo o mesmo fato com os homens, porque estes pertencem à outra formação de gênero e codificação cultural. Mas o que faz dessa imagem, uma representação do cotidiano seridoense? As práticas cotidianas são culturais, podem haver semelhanças entre as culturas, no que diz respeito principalmente historicamente ao cerceamento do corpo feminino da cultura ocidental, que prega uma supremacia masculina. Mas Assis Marinho pinta as memórias que vivenciou no sertão, seja as vividas pelo artista ou as transmitidas pela cultura a qual fez parte. Quando o artista pinta, ele transmite algo que está dentro dele, expressando sinais introspectivos do seu “eu pictórico”. Assis Marinho, ao relatar pictoricamente uma cena do cotidiano, fala do seu sertão como “vindo do sertão”; ele congela uma ação no tempo por meio de sua arte, diz dos sentimentos com o lugar que teceu a sua história de vida e cria emblemas de uma cultura seridoense como o recorte de jovens enamorados na calçada. 194 Figura 48 – MARINHO, Assis. Sem título, crayon s/ papel, 2013. Fonte: http://aflordaterra.blogspot.com.br/2013/09/faces-de-assis-marinho.html Na pintura acima de Assis Marinho (Fig. 48), o sentimento é o de amor nascente, uma cena privada, um namoro “vigiado” pelos mais velhos como pregava o costume encontrado nas famílias do interior. Um retrato das vivências cotidianas, dos afetos velados e censurados por uma moral imposta socialmente por uma cultura formada segundo os desígnios do cristianismo ocidental, a tela apresenta a prisão (gaiola) do pássaro, o qual parece dormir, para reforçar a ideia do controle do corpo, dos pensamentos e dos gestos. O quadro, de poucos elementos, oferece não apenas um retrato, mas uma interpretação e uma síntese sobre um modo de vida obsoleto capturado pelo olhar de sensibilidade do artista. 195 Figura 49 – COSTA, Assis. Calor da minha terra, 150 x 150, acrílica s/ tela, 2010. Acervo particular. Fotografia do artista. Também Assis Costa pintou muitos momentos do cotidiano seridoense a partir de cenas corriqueiras de atividades humanas diversas. O artista, habitante de Currais Novos, condensa em Calor da Minha Terra (Fig. 49), por meio de linhas e cores, o espaço seridoense, numa geometrização do espaço pictórico e representando, através signos identitários, como a casa grande do Seridó e as brincadeiras uma dada espacialidade. A tela, porém, também ressalta a casa menor, como sendo a casa do empregado, do vaqueiro que serve a família da casa grande. Como nesse poema haicai de José Bezerra Gomes (1974, p. 55-56)89: SERIDÓ Casa grande. 89 Autor currais-novense que foi considerado um dos principais representantes da literatura modernista no Estado do Rio Grande do Norte, atuando entre as décadas de 1930 a 1970. Realizou no plano literário um construto discursivo e imaginário sobre a região do Seridó, a partir dos elementos da natureza física, social e humana, ajudou a construir uma memória histórica do lugar com a arte literária. 196 Calor da minha terra foi pintado em 2010 como encomenda. A cliente, segundo o artista, é arquiteta e pedira uma tela tendo como tema o Seridó. Existe um equilíbrio em todo o cenário, seis personagens. As duas mulheres, possivelmente mãe e filha, ao lado direito com gamelas de frutas; enquanto dois músicos sentados no tradicional banco dos alpendres das antigas casas de moradia enquanto são observados por um gato – todos esses elementos compõem o primeiro e o segundo plano do quadro. No centro da tela, o terceiro e o quarto plano está ocupado pelas figuras lúdicas de duas crianças: um menino brinca com uma roladeira e um cachorro, outro mais isolado, próximo as casas e as cercas de pedra, empina uma pipa. O artista conta, em entrevista90, que, quando criança, fabricava pipas para as outras crianças que não sabiam confeccioná-la. Argumenta ainda que a arte já o acompanhava desde tenra idade, quando desenhava em qualquer papel, como em papéis de embrulhar pães. O seu universo do saber fazer é constantemente reapresentado em suas pinturas, o mundo da infância, assim como o artista Assis Marinho que pinta os meninos com gaiolas, piões e as meninas brincando de bonecas de pano. O quadro forma múltiplos quadros, dentro de um cubismo reapropriado da arte de Picasso e de Cândido Portinari, inspirando-se também nas estilizações das figuras de Caribé. Cada uma das figuras expressa com sua performance individual um modo de ver a região, um dado modo de ser: o preto que os identifica é a humanidade. A obra expressa a feitura cotidiana, o ritmo dos dias, um dia ensolarado, considerando-se que os fortes contrastes de vermelho e amarelo, constituindo uma vibração de cores que faz lembrar o que projetamos, idealizamos, imageticamente formulamos para essa regionalidade, definida pelo sol, pela caatinga com cardeiros retorcidos, apenas delineados ou quando cheios de frutos - uma reunião de clichês que significam para os seridoenses o sentimento de pertencer ao lugar. A obra reflete também o movimento na composição, uma vez que apesar das linhas rígidas há uma fluidez do vento que faz voar a pipa, na corrida do menino com a roladeira e os tocadores de música – tudo expressa movimento e os códigos culturais são sintetizados em cores “quentes” impulsionando uma visão de mundo alegre e nostálgica. O artista nos conta que, em 2015, foi convidado pela UFRN, Campus Caicó, a dispor de uma de suas pinturas que tivesse como tema o Seridó no intuito de ser utilizada como slogan do evento que é realizado nesse município, o V Colóquio Nacional de História Cultura e Sensibilidades, ocorrido entre 16 a 20 de novembro daquele ano. A pintura escolhida pela 90 COSTA, Francisco de Assis Batista da. Entrevista realizada em 17/05/2015 em Currais Novos – RN 197 comissão de professores dessa Instituição foi Calor da minha terra (2010). Como a poesia de José Bezerra Gomes, a pintura também reduz a quantidade de elementos para na síntese discursiva e simbólica construir uma imagem rememorativa, de um Sertão do Seridó antigo, como uma espécie de “rubrica” pictórica desse espaço. 4.6. OS SANTOS: ARTE DEVOTADA Uma das imagens do seridoense é a devoção aos santos católicos, mesmo que existam outras crenças que coabitem esse espaço, como as religiões afrodescendentes, como o Candomblé, a Umbanda que une elementos africanos e indígenas, os evangélicos, os espiritas e aqueles que não possuem nenhum credo, os ateus. O estereótipo discursivo que marca o espaço é a fé católica indiscutivelmente. Com isso, apresentamos nessa última seção uma análise dessa tradição santeira nas pinturas de Assis Marinho e Assis Costa. De acordo com Ione Rodrigues Morais (2005), um dos legados da colonização portuguesa, entre outros foi o da religiosidade. A reprodução de imagens de santos nos interiores das casas do sertão seridoense atesta essa formação histórica como uma forma de aproximar os santos das Igrejas à dimensão privada, fazendo do lar também um espaço de adoração. No medievo, a arte serviu aos interesses da Igreja Católica, ao disseminar os desígnios cristãos, exercia uma pedagogia através das imagens de santos, dos martírios, localizando imageticamente o céu e o inferno, determinando uma hierarquia social e a manutenção de uma ordem estabelecida pela Igreja Católica. Tal cultura foi trazida para o Brasil pela colonização portuguesa por meio das missões Jesuíticas. Com uma cultura fortemente católica, a iconografia dos santos também teve grande importância na pintura de Assis Costa e Assis Marinho, principalmente. Sua presença na obra de Iran Dantas está mais condicionada as procissões, quando miniaturas dos santos são figuradas no meio do espetáculo da festa religiosa, embora existam pinturas de Francisco de Assis e de Frei Damião pintados pelo artista. Não foram poucos, porém, os quadros de Costa e Marinho voltados somente aos retratos dos santos católicos, a ênfase nesse tema é uma das características pictóricas dos artistas. Há uma ampliação do panteão católico nas práticas devocionais nessa região configuradas na atualidade, como São Francisco, Santa Rita de Cássia, além das diversas representações de Nossa Senhora e Jesus Cristo. Os artistas cresceram em meio ao poder imagético de uma cultura pulverizada de imagens sacras e de uma educação voltada para o cristianismo. A relação do artista Assis 198 Marinho, por exemplo, com os santos tinha uma peculiaridade devido ao seu pai ser um fabricante de santos de madeira para vender em feiras, contribuindo para a renda da família. Essa vivência cotidiana quando criança de quando via o pai trabalhar com imaginária, incutiu na subjetividade artística do pintor a tradição santeira. As imagens de Francisco de Assis e de Jesus Cristo estão entre as mais recorrentes e aparecem repetidamente em volumes de pinturas impossíveis de serem contabilizadas. Na região do Seridó, as cidades que formam essa regionalidade são lugares que nasceram sob o véu católico, urdindo os espaços de um modelo de vida cristão. Muitos artistas e artesãos fizeram dessa tradição um mecanismo de comunicação com o mundo por meio do exercício artístico cotidiano, nomes como a escultora Luzia Dantas que nasceu em 1943 na cidade de São Vicente e vive na cidade de Currais Novos há muitos anos, é considerada uma das maiores representantes da arte popular do Rio Grande do Norte, modelando na madeira vaqueiros, retirantes, a vida no campo e a tradição santeira. Construiu uma produção artística artesanal icônica da cultura seridoense potiguar. Ambrósio Córdula, também escultor, traz a arte sacra barroca para a realidade atual, com técnicas tradicionais entalha e eterniza na madeira a fé das pessoas católicas, seus olhos de vidro e oratórios aludem ao seu universo criativo experienciado na cidade de Acari, onde possui seu ateliê e oficina de artes. O mestre da arte sacra como ficou conhecido proporciona nessa localidade a formação de uma geração de jovens artesãos e artistas. Essa realidade de produção artística cultural existente no Seridó constitui para os artistas Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa um rico acervo iconográfico e imagético configurado pelas divindades católicas, reafirmando-se os elementos identitários desse espaço, como participantes desse conteúdo de identidade cultural construída para o Seridó potiguar. Tanto Costa como Marinho, deve-se frisar, recebem em seus nomes a insígnia de um santo famoso: Francisco de Assis. A importância dessa figura icônica na cultura cristã ocidental atualiza-se nas representações pictóricas de Assis Marinho e Assis Costa, herdeiros de um legado cultural nas artes, e reconstrutores de uma “nova versão” dos santos de paredes que enfeitam ainda as casas do interior seridoense. Para as suas produções artísticas, existe um público apreciador específico, que se insere numa categoria social mais intelectualizada e possui um poder aquisitivo maior. Este público, na verdade, na maioria das vezes, deseja ter um quadro na parede não apenas um motivo de fé, mas uma proposta artística elaborada por um artista em particular. 199 Figura 50 – MARINHO, Assis. São Francisco. Crayon s/ papel, 2013. Fonte: https://sistemas.ufrn.br/portal/PT/noticia/11263034. São Francisco (Fig. 50), por exemplo, é um dos tantos desenhos, pinturas e esboços muitas vezes inacabados produzidos por Assis Marinho ao longo de sua carreira como artista. Mesmo quando ele representa festas juninas ou forrós, os olhos de suas figuras humanas carregam essa visão religiosa, abarcando o mundo com o olhar, penetra na profundidade de um mar de sentimentos impossíveis de serem narrados em palavras ou imagens, nas tristezas e nas alegrias da vida. Ao tentar realizar uma imagem do São Francisco em flôr (Fig. 51), Assis Costa demonstra não apenas seguir uma imaginária consolidada, mas apropriá-la para a realidade local. Esta tela é uma obra pensante que, se inscreve no contexto em que foi produzido, na realidade plural do artista, reproduzindo algo do seu imaginário coletivo o qual o reatualiza. O tema de Francisco de Assis na obra do artista é persistente, uma investigação estética nas suas representações pictóricas, o santo foi retratado de várias formas e perspectivas, tomando sentidos espirituais, estéticos ou regionais. O que mais se evidencia no plano formal é a linha que corta o quadro formando uma cruz, a figura humana e o burro se entrecruzam constituindo um só ser, uma unidade que se 200 abre em camadas, as vestes de São Francisco transmutadas simbolicamente em uma flor. Dois animais de cor branca, a ovelha e o pássaro, equilibram o cromatismo predominante dos tons quentes e frios. O santo católico é considerado o protetor dos animais, assim expressa de modo simbólico a integração do homem- natureza e espírito. Figura 51 – COSTA, Assis. São Francisco em flor, 60 x 46 cm, óleo s/ tela, 2009. Acervo do artista. Fonte: arquivo da pesquisa. Francisco pertence à Itália do século XIII, seus ideais pregavam uma vivência do evangelho de Jesus Cristo, pregando a humildade como primeira instância a ser praticada pelos homens. Embora contestado pela Igreja, serviu ao projeto da Contrarreforma e com “adequações” tornou-se uma Ordem, a qual desvirtuou alguns dos preceitos promulgados pelo Francisco histórico. Após abandonar a vida de riqueza, vivia na mendicância, baseando-se nos princípios do cristianismo primitivo, voltado para a caridade e o desprendimento material e intelectual. A história mística diz que ele teria ouvido uma voz que pediu-lhe para restaurar a Igreja. Entendeu que seria uma Igreja física a de São Damiano que estava em escombros, mas após reconstruí-la teria percebido que o verdadeiro significado da mensagem seria a reconstrução espiritual. Observa-se na obra de Assis Costa uma Igreja que segundo o artista é a de São Damiano. 201 Outro tema recorrente da “imaginária” de Assis Costa e Assis Marinho é um símbolo cultural do Seridó como um todo: Sant’Ana. Como já dito, nos mitos de origem da ocupação do Seridó pela pecuária, os primeiros vaqueiros teriam escolhido a imagem de Sant’Ana como símbolo de proteção e materializaram suas esperanças votivas quando construíram as capelas, sementes de futuras igrejas matrizes (MACÊDO, 2012, p. 182). A visão da avó de Jesus como educadora, a ensinar a Maria as letras, encarna uma sociedade tradicional que determina o “verdadeiro” papel da mulher a ocupação do território familiar e do lar na instrução privada. Sendo a imagem portadora de sentidos múltiplos, os dois “retratos” de Sant’Ana do artista Assis Costa que seguem (Fig. 52 e 53) nos levam a reflexão sobre a modernidade e a tradição. Possuem o mesmo tema, porém cada uma detém uma especificidade. As duas obras dialogam com a perspectiva modernista das artes, com traçados geometrizados, que constituem uma marca visual do artista, embora pareça que a busca por uma identidade fixa estilisticamente não seja sua intenção. Assis Costa marca a diferença na forma de representar suas figuras e os espaços trazendo um jogo cromático que são as tradicionais “cores de Sant’Ana”: azul, rosa e branco, visualizadas nas duas pinturas. Porém a primeira Sant’Ana (Fig. 52) apresenta o tom azul e o vermelho predominantes. Esta foi a primeira Sant’Ana pintada pelo artista, ainda em 2011. 202 Figura 52 – COSTA, Assis. Sant’Ana, 60 x 90 cm, acrílica s/ tela, 2011. Acervo particular. Foto: acervo da pesquisa. As feições árabes da mãe se contrapõe a fisionomia europeizada da menina Maria. Seu formato é escultural, forte como é a sua imagem para essa região. O artista criou uma visão particular de Santana, diferenciando-se das imagens tradicionais da santa que estão nas cidades de Caicó e Currais Novos. Uma representação da fé no espaço seridoense a partir de uma figura icônica, que atravessa as fronteiras temporais persistindo como uma memória sempre agenciada para lembrar a força de uma tradição religiosa baseada no catolicismo91. 91 O artista nos relata que no ano de 2011, expôs Sant’Ana de 2011 (Fig. 26) na Famuse, evento que faz parte da Feirinha de Sant’Ana, em Caicó, onde é exposto o artesanato regional, os bordados, os produtos da culinária e etc.. Um ritual que se repete todos os anos nas cidades que tem Sant’Ana como padroeira, tendo maior destaque as Festas de Caicó e Currais Novos. Na ocasião ele lembra da “insatisfação” ou do “impacto” de algumas pessoas ao verem uma reinterpretação da imagem tradicional da Santa Católica. O suposto estranhamento era somente pela forma moderna, a qual não seria a imagem verdadeira ou verossímil da representação historicamente codificada na cultura local. 203 Figura 53 – COSTA, Assis. Sant’Ana, 80 x 120 cm, acrílica s/ tela, 2015. Acervo particular. Foto: acervo da pesquisa. A segunda Sant’Ana (Fig. 53), de 2015, foi a quinta imagem da santa produzida pelo artista. Essa segue claramente as características da imagem que está localizada na Matriz de Sant’Ana de Currais Novos/RN92. Outros artistas da cidade de Caicó/RN, como Davina, e, principalmente, André Vicente, reconstituem em imagens diversas a imagem da Santa de Caicó, que é representada como uma senhora mais idosa, possuindo mais traços do estilo barroco, com mais exagero nas formas. Percebe-se nos santos produzidos na obra de Assis Costa uma alusão a arte bizantina93, quanto à simplificação e estilização da figura humana. Foi uma arte cristã utilizada para ilustrar a liturgia, 92 Em Currais Novos/RN, a imagem de Sant’Ana foi comprada em Recife/PE, em 1806 pelo capitão mor- Galvão, trazida do Totoró para a capela para Currais Novos em 26 de julho de 1808 (SOUZA, 2008, p. 216). 93 “A arte bizantina se desenvolveu ao longo de mais de mil anos e se caracterizou por misturar o classicismo grego e a arte romana com a tendência oriental à alegoria, e por fim um predomínio cada vez maior dos ritos cristãos” (FARTHING, 2011, p. 72). 204 Os artistas interessavam-se pela figura humana como residência do espírito e da fé; os seres humanos são arquetípicos, figuras afastadas da realidade visual, cuja definição formal e proporções eram previamente estabelecidas (ARRESE, 1997, p. 08). Contudo, o artista está em outro tempo, a ideia de oferecer ao fiel uma pedagogia da liturgia bíblica ou de reafirmar o poderio de um Império não seria a preocupação desse artista que é contemporâneo, não no sentido estilístico e formal, mas por pertencer ao mundo atual. Sua arte sobretudo está imbuída dos pressupostos formais e estéticos da arte moderna ocorrida entre o final do século XIX e o século XX, a qual herda essa tradição pictórica do período medieval e a reinventa. Assis Costa procura traduzir o mundo cristão ocidental para o contexto seridoense. Além disso, o artista não utiliza como recurso técnico as matérias-primas mais nobres já empregadas na arte bizantina, como ouro, o marfim e as pedras semipreciosas, (uma riqueza advinda de uma mentalidade humana interessada apenas em manter seus interesses políticos e religiosos), mas transmite a emoção e a beleza do lugar, a força de imagens importantes para a região, construindo simbolicamente um lugar guardado sob a proteção dos santos, seres contornados discursivamente de uma aura hierárquica que estaria, no âmbito espiritual, numa dimensão além da nossa realidade. A paisagem que se destaca na segunda obra, repete os mesmos signos culturais representados pelo artista: casario antigo seridoense, cercas, pedras, Pico do Totoró e Serra de Sant’Ana, experiências vividas transfiguradas em formas pictóricas, símbolos de um espaço edificado no sentimento de pertencimento. Marcado pela suavidade, a aparição da santa nessa paisagem dita sertaneja expressada de forma nobre uma alegoria, uma representação da relação umbilical de nascimento desse espaço geográfico com a religiosidade cristã. A santa aparece no Seridó que a consagra por meio de uma pintura. De certa forma, a pintura a regionaliza ao ser justamente um símbolo da região. O discurso da tradição permeia todo o espaço seridoense, cristalizando uma imagem de ser seridoense, um ser(tão) incólume as mudanças, que vive de suas instâncias identitárias, reproduzidas para preservar esse ideal tradicional, preferindo sobretudo manter-se nesse quadro de identidade. 205 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Delinear o esboço de um ponto final em um texto que tenta dissertar sobre a matéria da imagem pictórica, da construção de uma região nomeada Seridó, é perceber, sobretudo, que a extensão das palavras está além de fórmulas gramaticais. Isto porque, numa pintura, são investidos sentimentos por parte do artista, assim como na escrita do pretenso historiador, que no final de uma labuta acadêmica encontra uma resposta: mais páginas em branco podem ser sempre preenchidas de novas ideias, visto que somos seres dinâmicos, que não conseguem obedecer integralmente a uma lógica racional. Todavia, é desse misto de razão e (des) razão que produzimos imagens para os espaços que habitamos e imaginamos. A intenção era discutir como as pinturas dos artistas Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa, com obras produzidas entre os anos 1980 até os dias atuais, conseguiram construir imagens para a região do sertão do Seridó, reforçando um imaginário cultural que se funda nas matrizes históricas, econômicas e culturais formadoras do ser seridoense. Tais pintores atribuíram uma maneira peculiar de olhar o espaço, sua natureza transformada em cultura, as realidades físicas e imaginárias que se unem pelo espaço que habitam ou habitaram, significando-o simbolicamente para o contexto local e regional. Orientados por essa perspectiva, abordamos, no primeiro capítulo, a discussão em torno dos artistas Newton Navarro e Dorian Gray Caldas, concebidos como uma premissa pictórica no Estado do Rio Grande do Norte, dado que ambos os artistas construíram uma visibilidade espacial para a cidade de Natal, consolidando-se no cenário artístico do Estado como nomes pioneiros do modernismo nas artes no RN, tendo o litoral como espaço de representação pictórica e afetiva, em contraposição ao Seridó. Portanto, os referidos artistas proporcionaram a produção de uma iconografia que se tornou referência para os artistas da pesquisa, ainda que indiretamente. Nos demais capítulos, abordamos a natureza, os aspectos históricos da formação do espaço seridoense nos séculos XVIII e início do século XX, enfatizando como o discurso regionalista teve como âncora discursiva os signos da pecuária, do algodão e da imagem do sertanejo, reapresentados nas pinturas de Iran Dantas, Assis Marinho e Assis Costa, eternizando essa regionalidade por meio de seus símbolos culturais. A maneira ímpar de cada artista pintar o seu vivido, as experiências cotidianas, os ícones identitários representados na paisagem, nas festividades e na presença marcante do catolicismo foram responsáveis por modular e instituir, destacando a figura de Sant’Ana nesse 206 processo, um modo de ver o espaço. Assim, entre traços, cores, linhas e espaços vazios estão marcados os códigos culturais que os artistas desenvolvem numa interação cultural. Daí porque o olhar do observador é sempre carregado da bagagem de sonhos, ilusões e realidades imaginárias que partem de um real, tomados de sentidos sociais, praticados na história de todos os dias. Chegamos então ao ponto nevrálgico da discussão empreendida pelo presente estudo, que é compreender o poder da identidade na construção simbólica dos espaços. Nesse sentido, a região foi se constituindo historicamente pelas múltiplas dimensões políticas, econômicas e culturais, que são instâncias conformadoras do social; é nesse processo de reavivamento dos traços identitários que o Seridó segue sendo reinventado, tendo a cultura, o papel fulcral de remodelação dessa regionalidade, vinculada à qualidade de seus produtos, a imagem de resistência como algo inerente ao seu povo. Foi esse conteúdo simbólico/subjetivo que a sociedade converteu em argamassa da estrutura regional. O Seridó transformou o seu patrimônio cultural, objetos, símbolos, crenças em manifestações em âncora do processo de reavivamento de sua identidade (MORAIS, 2005, p. 314). Mesmo com a decadência de economias como o algodão e a mineração, que foram sustentáculos financeiros do espaço seridoense, novas formas de sobrevivência nessa região foram agenciadas com o desdobramento para o setor terciário. Contudo, as matrizes simbólicas, incluindo a pecuária, permaneceram no imaginário social como instâncias de uma identidade cultural. A diferença determinante nesse contexto imagético-discurso é que, ao contrário da identidade nordestina, marcada pela imagem de inferioridade, o regionalismo que produziu uma identidade seridoense baseia-se em valorações positivas, divergindo da noção constituída para o elemento nordestino. Nas telas observadas, cria-se uma valoração do que é e do que fora feito nessa região. Portanto, seria uma conjunção de instâncias identitárias que se ancoram na positividade numa permanente reconstrução do espaço regional do Seridó norte-riograndense. Ao analisarmos o sentimento identitário presente nas obras dos artistas, compreendemos que a noção de identidade por eles construída está vinculada a um princípio idealizado, algo que quase “congelado” no tempo, produto de um imaginário que delineia uma dada regionalidade em signos representativos, fixando, assim, a imagem do Seridó. Como nos diz Muirakytan Macêdo (2012, p. 157), “essa identidade regional existe por meio de um efeito do poder, produzido por uma construção histórica, que se entranhou e emaranhou na memória 207 social”. Assim, nossa intenção foi caldear essa história, para que, através das produções pictóricas contempladas, tivéssemos a capacidade de entender o universo plural e ao mesmo tempo singular da imagem, não apenas como testemunha, mas como produtora da história. Há, portanto, muito a se narrar acerca dessa escrita pictórica. Por ora, deixamos aqui apenas o princípio de uma discussão, com o desejo de prosseguir adentrando esse universo ainda inexplorado pela historiografia norte-rio-grandense. 208 6. REFERÊNCIAS 6.1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, João Gualberto. Navarro entre os morros e a cidade. Cadernos do Rio Grande do Norte. Ano III – Abril/ Maio, 1974. AIRES, Francisco Jânio Filgueira. O “Espetáculo do cabra-macho”: um estudo sobre os vaqueiros nas vaquejadas no Rio Grande do Norte. Natal-RN. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2008. ALBUQUERQUE, J. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Prefácio de Margareth Rago. Recife: RJN, Ed. Massangana. São Paulo: Cortez, 1999. ______. Nos destinos de fronteiras: história, espaço e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008. 516p. ______. A Feira dos Mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (nordeste 1920- 1950). 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