UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO FERNANDA HOLANDA FERNANDES OS MECANISMOS DE EFETIVAÇÃO DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Natal/RN 2017 FERNANDA HOLANDA FERNANDES OS MECANISMOS DE EFETIVAÇÃO DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito – PPGD do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Doutor Jahyr-Philippe Bichara Natal/RN 2017 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus pelo encantamento por esse tema, que suscita em mim a vontade de aprender e conhecer cada vez mais; pelo discernimento e força que tem me concedido ao longo de toda essa jornada. Sou grata a minha família, meus pais Gracinda Holanda e Fernando Fernandes e ao meu irmão Fernando Augustus, fonte inesgotável de carinho, cuidado e apoio. Gratidão as minhas queridas amigas Talita Fernandes e Maria Isabel Gurgel pela escuta nos momentos de angústia e pelas palavras de incentivo. Expresso minha gratidão ao meu orientador Jahyr-Philippe Bichara pelos ensinamentos, pela compreensão diante das minhas dificuldades, a confiança depositada no meu trabalho e o incentivo para trilhar novos caminhos. Aos professores componentes da banca examinadora, que gentilmente aceitaram o convite. À Ordem dos Advogados do Brasil da seccional do RN, na pessoa do Presidente Dr. Paulo Coutinho, pelo convite para presidir a Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência no ano de 2016. Período em que tive a oportunidade de conhecer melhor a realidade vivenciada por essas pessoas, experiência que muito enriqueceu as minhas pesquisas. Por fim, agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) por me acolher ao longo desses anos de vida acadêmica, no curso de Psicologia, de Direito e agora no mestrado. Cada um de nós compõe a sua história e cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz. (Almir Sater) RESUMO O Brasil incorporou a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, através do Decreto n. 6.949/2009, com status de Emenda Constitucional. Esta promove uma mudança de paradigma acerca do fenômeno da deficiência, apresentando novas premissas para compreender, promover e assegurar direitos a esse grupo. Nesse contexto, considera-se que o tratado institui diversos mecanismos de efetivação de suas normas, a fim de suprir uma lacuna jurídica do sistema de proteção dos direitos humanos global, no qual a abordagem dessa questão encontrava-se apenas em documentos não vinculantes. Ressalte-se que os direitos desse segmento social foram positivados no Brasil inclusive na Constituição Federal de 1988, que dispõe sobre diversas garantias, atribuindo ao legislador ordinário a sua regulamentação. Dessa forma, observa-se a existência de um amplo arcabouço jurídico sobre o tema no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, constata-se que a situação desses indivíduos, na prática, não tem avançado na mesma proporção. Tal fato demonstra o baixo grau de efetividade de tais normas. Em face desse panorama, adotou-se como objeto de estudo a análise sobre como a incorporação dessa Convenção Internacional pode contribuir para efetivar os direitos das pessoas com deficiência no Brasil. Como diretriz, formulou-se a hipótese de que essa contribuição ocorre na medida em que o tratado compromete todas as funções do Estado (Executiva, Legislativa e Jurisdicional) com a sua implementação, de modo a direcionar para que esta ocorra de forma coordenada, sistemática e em todas as dimensões da atividade estatal. Para verificar a coerência desse pensamento, foram definidos os objetivos: examinar quais são os mecanismos de efetivação dispostos na própria Convenção e como estes têm incidido sobre o Estado brasileiro; analisar como as funções estatais estão atuando para implementar as normas do tratado; verificar quais são os instrumentos existentes em cada uma dessas esferas e o potencial para serem efetivos. PALAVRAS-CHAVE: Pessoas com Deficiência. Efetividade de direitos. Brasil. ABSTRACT Brazil has incorporated the International Convention on the Rights of People with Disabilities through Decree no. 6.949 / 2009, with Constitutional Amendment status. It promotes a paradigm shift about the phenomenon of disability, presenting new premises to understand, promote and ensure rights to this group. In this context, it is considered that the treaty establishes several mechanisms for the effective implementation of its norms, in order to fill a legal gap in the global human rights protection system, in which the approach to this question was found only in non-binding documents. It should be noted that the rights of this social segment were assured by law in Brazil including the Federal Constitution of 1988, which provides for several guarantees, giving the ordinary legislator its regulations. Thus, observed the existence of a broad legal framework on the subject in the Brazilian legal order is observed. However, it is noted that the situation of these individuals, in practice, has not advanced in the same measure. This fact demonstrates the low degree of effectiveness of such norms. In view of this panorama, the embraced object of study was the analysis of how the incorporation of this International Convention can contribute to accomplish the rights of people with disabilities in Brazil. As a guideline, it was hypothesized that this contribution may occur insofar as the treaty compromises all the functions of the State (Executive, Legislative and Jurisdictional) with its implementation, in order to direct it to occur in a way that is coordinated, systematic and in all dimensions of state activity. In order to verify the legitimacy of this thought, the objectives were defined: to examine which are the mechanisms for effectiveness established in the Convention itself and how these have focused on the Brazilian State; analyze how state functions are working to implement treaty standards; to check what are the existing instruments in each of these spheres and the potential for them to be effective. KEY WORDS: People with Disabilities. Effectiveness of rights. Brazil. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................15 PRIMEIRA PARTE OS IMPACTOS DA TUTELA INTERNACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL Capítulo 1. A PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO DIREITO INTERNACIONAL................................................................................................................24 Seção 1. A evolução das normas internacionais sobre os direitos das pessoas com deficiência.................................................................................................................................25 § 1. A proteção das pessoas com deficiência sob a perspectiva dos instrumentos não vinculantes ....................................................................................................................... 26 § 2. A tutela das pessoas com deficiência sob a ótica dos tratados internacionais de direitos humanos................................................................................................................31 § 3. As inovações da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência..........36 Seção 2. O novo paradigma sobre a deficiência consagrado pela Convenção das Nações Unidas ......................................................................................................................................44 § 1. O modelo médico de tratamento da deficiência.........................................................45 § 2. O modelo biopsicossocial de compreensão da deficiência .......................................51 § 3. O conceito de pessoa com deficiência na Convenção: A consagração do modelo biopsicossocial .................................................................................................................56 Capítulo 2. A FORÇA NORMATIVA DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL .....................................................................62 Seção 1. A hierarquia da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência no ordenamento jurídico brasileiro ...............................................................................................63 § 1. O processo de incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.................................................................................................................64 § 2. Os múltiplos significados da incorporação pelo § 3° do art. 5° da Constituição Federal de 1988..................................................................................................................75 § 3. As consequências do status de Emenda Constitucional da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência..................................................................................85 Seção 2. Os impactos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência na legislação brasileira...................................................................................................................97 § 1. A influência da tutela internacional dos direitos das pessoas com deficiência na legislação brasileira.............................................................................................................98 § 2. A inadequação do conceito de pessoa com deficiência nos Decretos nacionais .......104 § 3. A inconvencionalidade do modelo de capacidade civil brasileiro............................ 112 § 4. A ambiguidade da legislação pátria sobre educação inclusiva...................................121 SEGUNDA PARTE A IMPLEMENTAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Capítulo 3. O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA .........................................130 Seção 1. A tutela dos direitos das pessoas com deficiência no judiciário brasileiro..............131 § 1. O Supremo Tribunal Federal e o controle de convencionalidade ou constitucionalidade a partir da Convenção.........................................................................................................132 § 2. A aplicação da Convenção de Nova York pelo juiz nacional ....................................142 § 3. Instrumentos para efetivação da prestação jurisdicional à pessoa com deficiência....153 Seção 2. O acesso aos Tribunais Internacionais para defesa dos direitos das pessoas com deficiência.............................................................................................................................167 § 1. A ausência de cláusula convencional de jurisdição obrigatória na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. .................................................................................168 § 2. O diálogo entre jurisdições internacionais em prol da proteção da pessoa com deficiência .........................................................................................................................176 § 3. O acesso à Corte Interamericana contra o Estado brasileiro por violação aos direitos da pessoa com deficiência..................................................................................................185 Capítulo 4. MECANISMOS DE CONTROLE E IMPLEMENTAÇÃO NÃO JUDICIAIS ..........................................................................................................................195 Seção 1. A incidência dos mecanismos convencionais não judiciais sobre o Estado brasileiro..................................................................................................................................196 § 1. O sistema de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência ........................................................................................................................197 § 2. Sistemas nacionais de monitoramento e implementação ...........................................205 § 3. Instrumentos complementares: petições individuais e investigação in loco...............214 Seção 2. A implementação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência pelo Executivo ...............................................................................................................................221 § 1. A dignidade inerente a pessoa com deficiência como diretriz para implementação da Convenção da ONU............................................................................................................222 § 2. Instrumentos de concretização do princípio da igualdade material...........................228 § 3. As ações afirmativas para pessoas com deficiência no Brasil ...................................235 § 4. As políticas públicas para pessoas com deficiência no Brasil ..........................................240 Capítulo 5. A IMPLEMENTAÇÃO DA CONVENÇÃO PELO LEGISLATIVO: O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA.............................................................249 Seção 1. Principais alterações legislativas ............................................................................251 § 1. A regulamentação do conceito de pessoa com deficiência .......................................252 § 2. O novo modelo de capacidade civil ..........................................................................261 § 3. A construção de um sistema educacional inclusivo ...................................................272 Seção 2. A inclusão das pessoas com deficiência como dever da sociedade .......................282 § 1. A inclusão como dever da Administração Pública ....................................................283 § 2. A inclusão como dever dos particulares.....................................................................293 § 3. A tutela penal em face do descumprimento do dever de inclusão..............................301 CONCLUSÃO........................................................................................................................309 REFERÊNCIAS......................................................................................................................318 15 1. INTRODUÇÃO Os grupos humanos sempre estiveram em conflito em razão da diferença entre crenças, valores e etnia. Nos primórdios da humanidade, era necessário distinguir aqueles que integravam o grupo e defendê-lo dos demais, visto que não existiam alimentos para todos e um conjunto de indivíduos unidos pelas suas semelhanças era mais forte na competição pela sobrevivência. Assim, aquele considerado diferente da horda era visto como inimigo. Esse raciocínio primitivo perdurou por muito tempo na História do homem, explicando as guerras, holocaustos, escravidão, genocídios. Contudo, com os horrores cometidos contra os judeus durante a II Guerra Mundial, percebeu-se que a essência do humano está presente em todos os seres dessa espécie, independente das peculiaridades culturais, regionais ou biológicas e deve ser respeitada. Nesse âmbito, surge o sistema de proteção internacional dos Direitos Humanos, considerados universais e interdependentes, calcados na dignidade da pessoa humana. Sob esse prisma, a ênfase recai sob a igualdade entre todos os homens, dignos de igual respeito e consideração. Dessa forma, é proclamada a existência de um núcleo irredutível de semelhanças entre os cidadãos dos diversos Estados e estes assumem, através de tratados internacionais, a obrigação de não o violar, sob pena de sofrer sanções impostas pelos organismos internacionais. Assim, percebe-se que o objeto de proteção é a igualdade, restando carente de tutela a questão do respeito e reconhecimento das diferenças, pois a diversidade também é uma característica própria do homo sapiens. Atentando para esse fato, a Sociedade Internacional estabelece sistemas de proteção especiais aos grupos vulneráveis como mulheres, crianças, pessoas com deficiência, migrantes. Os direitos desses segmentos foram conquistados paulatinamente, por meio de movimentos sociais que chamavam a atenção para as peculiaridades de pessoas que eram vítimas com mais frequência de abusos e por isso precisavam de proteção especial. No que tange à proteção das pessoas com deficiência, a inserção desse tema nos tratados de direitos humanos ocorreu de forma tardia em comparação com os demais grupos vulneráveis. O primeiro documento internacional vinculante que aborda especificamente a matéria, no plano do sistema global, foi elaborado apenas em 2006. Nesse contexto, busca-se investigar a justificativa para esse atraso; bem como os motivos pelos quais as pessoas com deficiência não eram percebidas como um grupo vítima de discriminação sistemática. 16 Destaque-se que os únicos precedentes da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, no sistema da ONU, são instrumentos de soft Law como a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes Mentais (1971); Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (1975); Programa Mundial de Ação para as Pessoas com Deficiência (1982) e Normas sobre a Igualdade de Oportunidades paras as Pessoas com Deficiência (1996). De modo que tais documentos eram desprovidos de mecanismos de controle e sanções, apenas incentivavam os Estados a adotarem medidas voltadas para a promoção da acessibilidade, serviços de saúde, melhores condições de vida.1 Destarte, constata-se a existência de uma notável lacuna jurídica no sistema de proteção dos direitos humanos em relação às pessoas com deficiência. Em face disso, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (Convenção de Nova York) foi adotada pela ONU em dezembro de 2006 e entrou em vigor em 3 de maio de 2008. Essa norma surge incumbida da responsabilidade de incluir esses indivíduos no rol de proteção dos direitos humanos. Todavia, é imprescindível enfatizar que a Convenção de Nova York (2006) não poderia ser mais uma declaração de direitos, sem expectativas reais para se tornar realidade, uma vez que esse tratado promete uma mudança estrutural no tema da deficiência e surge para preencher um vazio jurídico deixado pelos demais tratados de direitos humanos. Portanto, a Convenção nasce com o propósito de sanar uma dívida histórica do sistema “onusiano” de proteção dos direitos humanos com as pessoas com deficiência. Sob essa perspectiva, a referida Convenção apresenta diversos dispositivos com o intuito de tornar suas normas efetivas, adentrando até mesmo em aspectos políticos dos Estados Partes. Entretanto, é preciso considerar que o maior ou menor grau de sua observância tem estreita relação com a sua forma de incorporação por cada Estado, pois a depender da hierarquia a ela atribuída, todo o ordenamento jurídico terá de ser reformulado para efetivar esse novo paradigma sobre a deficiência. Nessa esteira, esse tratado e o seu Protocolo Facultativo foram aprovados pelo Congresso Nacional brasileiro, com status equivalente ao de emenda constitucional, em 9 de julho de 2008, por intermédio do Decreto Legislativo n. 186/2008. A ratificação ocorreu em 1As normas do Direito Internacional serão consideradas soft se possuírem uma ou várias das seguintes características: disposições genéricas que criam princípios e não propriamente obrigações jurídicas; linguagem ambígua ou incerta impossibilitando a identificação precisa de seu alcance; conteúdo não exigível, como simples exortações e recomendações; ausência de responsabilização e de mecanismos de coercibilidade (tribunais). NASSER, Salem Hikmat. Desenvolvimento, costume internacional e soft law. Direito Internacional e Desenvolvimento, v. 1, p. 201-218, 2005. Disponível em:< https://periodicos.unipe.br/index.php/direitoedesenvolvimento/index> Acesso em: 10 fev. 2017. p. 215. 17 1° de agosto de 2008, quando o Brasil realizou o depósito do instrumento na ONU. E a Promulgação pelo Decreto Presidencial n. 6.949/2009, em 25 de agosto de 2009.2 É importante salientar que, antes da incorporação da Convenção, o Brasil já apresentava um arcabouço jurídico direcionado para a proteção das pessoas com deficiência. A própria Constituição Federal de 1988 dispõe sobre diversos direitos desse grupo, como vedação a qualquer discriminação no tocante à salário e critérios de admissão do trabalhador portador deficiência, conforme art. 5º, caput, e art.7º, XXXI; O art. 37, VIII, determina que a lei deve estabelecer percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência; o art. 203, IV garante a promoção da integração à vida comunitária através da habilitação e reabilitação; a Constituição também dispõe, no art. 227, §2º, e art. 244, sobre a garantia de acesso adequado através da adaptação dos logradouros, edifícios de uso público e veículos de transporte coletivo; direito ao atendimento educacional especializado, art. 208, III. No âmbito da legislação ordinária, exemplos de normas que asseguram e promovem os direitos desse segmento social são a lei n. 10.098/2000 que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade; a lei n. 8.899/94 dispõe sobre o transporte coletivo interestadual e concede passe livre às pessoas com deficiência com renda familiar mensal de até um salário mínimo por pessoa; a lei n. 10.436/02 contém dispositivos sobre a Língua Brasileira de Sinais; a lei n. 7.853/89 institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos desse grupo, disciplina a atuação do Ministério Público, além de definir como crime atos que atentem contra a pessoa com deficiência; a lei n.10.845/04 cria o Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado; por sua vez, a lei n. 8.742/93 garante renda mensal de um salário mínimo à pessoa com deficiência desprovidas dos meios de garantia da própria sobrevivência, dentre outras. Ressalte-se que, no Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), 45.606.048 de brasileiros declararam apresentar algum tipo de deficiência, o que corresponde a 23,9% da população total. A deficiência visual apresentou a maior ocorrência, afetando 18,6% da população. Em segundo lugar está a deficiência motora correspondendo a 7%, seguida da deficiência auditiva no percentual de 5,10% e da deficiência mental ou intelectual representada por 1,40%. A pesquisa destacou que entre os Estados brasileiros, a maior incidência de pessoas com deficiência ocorreu nos Estados do Rio Grande 2 BRASIL. Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo. Brasília, DF, 26 de ago. 2009. Seção 1, p.3. 18 do Norte e da Paraíba, com taxas de 27,76% e 27,58%, respectivamente, bem acima da média nacional. No total, são 882.022 potiguares com pelo menos um tipo de deficiência. 3 O Censo do IBGE de 2010 evidenciou que do total da população com deficiência 14% tinham o ensino fundamental completo, 17,7% o ensino médio completo, 6,7% o ensino superior completo e 61,1% eram pessoas com deficiência sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. Constatou-se que do total de 86,4 milhões de pessoas ocupadas, 20,4 milhões são pessoas com deficiência, o que corresponde a 23,6% do total de trabalhadores. 4 É importante ressaltar que tais dados são suscetíveis a críticas, na medida em que a deficiência é classificada pelo grau de severidade de acordo com a percepção das próprias pessoas entrevistadas através das perguntas: 1) tem alguma dificuldade em realizar; 2) tem grande dificuldade e 3) não consegue realizar de modo algum. Dessa forma, o Contingente de pessoas identificadas com deficiência severa foi de 8,3% da população.5 Nesse contexto, o Comitê da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência declarou-se preocupado com o fato do Estado não coletar sistematicamente dados desagregados sobre esse grupo. E recomendou ao Brasil facilitar a coleta sistemática, a análise e a divulgação de dados para todos os setores; bem como a alteração das perguntas do censo para refletir com precisão o quantitativo de pessoas pertencentes a esse grupo.6 Apesar do baixo grau de precisão das estatísticas, pode-se observar, a partir da realidade, um descompasso entre os direitos assegurados pela legislação e a experiência vivenciada pelas pessoas com deficiência no país. A título de ilustração, pesquisa do Senado, realizada em 2013, entrevistou 1.007 pessoas em todo o país e a opinião de 80,1% dos entrevistados é que os direitos da pessoa com deficiência não são respeitados no Brasil. Para 68,1% , apenas uma minoria dos prédios públicos está adaptada às suas necessidades; 59,2% 3INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cartilha do Censo 2010: Pessoa com Deficiência. Disponível em Acesso em: 30 março. 2017. 4Ibidem. 5 O contingente de pessoas identificadas por possuir deficiência severa foi calculado pela soma das respostas positivas às perguntas “tem grande dificuldade” e “não consegue de modo algum. Em 2010, 8,3% da população brasileira apresentava pelo menos um tipo de deficiência severa, sendo: 3,46% com deficiência visual severa 1,12% com deficiência auditiva severa 2,33% com deficiência motora severa 1,4% com deficiência mental ou intelectual. Das 45.606.048 de pessoas com deficiência 1,6% são totalmente cegas, 7,6% são totalmente surdas, 1,62% não conseguem se locomover. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cartilha do Censo 2010: Pessoa com Deficiência. Disponível em Acesso em: 30 março. 2017. 6 UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 19 apresentam a mesma queixa em relação às ruas e calçadas, e 46,8% denunciam que o transporte público de suas cidades não atende bem às pessoas com deficiência.7 Em face desse panorama, surge a questão: Como a incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pode contribuir para a efetivação dos direitos desse segmento social no Brasil? Para elaboração da hipótese de estudo que irá nortear essa pesquisa, parte-se do pressuposto de que a Convenção de Nova York (2006), ao determinar as obrigações gerais dos Estados Partes, no art. 4°, compromete todas as esferas do Estado com a sua implementação, pois apresenta como dever dos entes estatais adotar todas as medidas, legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza para realização dos seus dispositivos. Reforça, ainda, a atuação do legislativo, determinando que providências legislativas devem ser tomadas para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituam discriminação contra esse grupo. Ademais, compromete não apenas as funções estatais (Executiva, legislativa e jurisdicional), mas também as próprias autoridades públicas, ao estabelecer o dever do Estado de assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com as normas do tratado. Por fim, o art. 4° legitima a intervenção estatal nas relações entre particulares para garantir a efetivação dos seus preceitos, ao enunciar que devem ser adotadas todas as medidas para eliminar a discriminação por parte de qualquer pessoa, inclusive organização ou empresa privada. Assim, formula-se a seguinte hipótese: a incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência pode contribuir com a efetivação dos direitos desse grupo no Brasil, na medida em que compromete todas as funções do Estado com a sua implementação, de modo a direcionar para que esta ocorra de forma coordenada, sistemática e em todas as dimensões da atividade estatal. Observe-se que quando o Estado obriga-se internacionalmente ao cumprimento das normas de um tratado, tal dever se estende ao conjunto de órgãos mediante os quais a vontade do Estado é formulada, expressa e realizada. A estes órgãos incumbe o exercício das funções do poder político, que apesar de uno, indivisível e indelegável, se desdobra e se compõe em várias funções: legislativa, executiva e jurisdicional. 8 Assim, o princípio da separação dos poderes, transformado em dogma constitucional no art. 16 da Declaração dos Direitos do 7SECRETARIA DE TRANSPARÊNCIA COORDENAÇÃO DE PESQUISA E OPINIÃO DATASENADO. Condições de Vida das Pessoas com Deficiência no Brasil. Senado Federal, 2013. Disponível em: Acesso em 30 março. 2017. 8SILVA, José Afonso, da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Editores Malheiros, 2014. p. 110. 20 Homem e do Cidadão de 1789, surgiu como salvaguarda aos direitos humanos e fundamentais, pois tinha como objetivo limitar o arbítrio do governante, evitando a concentração de poderes em um só ramo da autoridade pública.9 Para além da questão do controle do poder soberano do Estado e do sistema de freios e contrapesos essencial para a formação de um Estado de Direito, o presente trabalho examina a questão sob a perspectiva do “princípio da distribuição de funções organicamente adequadas”. De acordo com este, a desconcentração das funções do Estado surge também como um problema de otimização, visto que a distribuição de competências visa a encontrar os meios adequados de consecução dos diversos objetivos estatais, atendendo a necessidade de coordenação, regulação uniforme e responsabilidade global. Dessa forma, a atribuição de funções específicas a órgãos expressamente criados para esse fim acarreta a vantagem de uma especialização materialmente apropriada.10 Nesse contexto, delimita-se como objetivo geral elucidar como cada função do Estado brasileiro está se comprometendo com a observância da Convenção de Nova York (2006). Especificamente, pretende-se investigar: 1) como as funções estatais estão atuando para implementar a Convenção; 2) quais são os instrumentos de efetivação desenvolvidos em cada uma dessas esferas e se os mesmos são potencialmente aptos para promover a efetivação das normas convencionais; 3) quais os mecanismos dispostos pelo próprio tratado para torná- lo efetivo, incluindo os sistemas de monitoramento e implementação e a possibilidade de acesso aos Tribunais Internacionais em caso de violações de direitos perpetradas pelo Estado e 4) como esses mecanismos externos têm incidido sobre o Estado brasileiro. Em face desses objetivos, é necessário esclarecer que o presente trabalho não almeja avaliar a efetividade da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência no Brasil, uma vez que a sua incorporação é relativamente recente e isso demandaria uma pesquisa empírica e estatística. A proposta desenvolvida é investigar como o Brasil, através das suas funções estatais, está se engajando nessa tarefa de efetivação, quais os instrumentos que estão sendo construídos e o que eles podem, em tese, oferecer em termos de efetividade do tratado. A questão de saber se a realidade social está sendo transformada por esses mecanismos e em que medida isso está acontecendo é uma questão que será aprofundada em pesquisas futuras. Para demonstrar a legitimidade das ideias expostas, utilizou-se a doutrina e a jurisprudência pátria e internacional; a consulta aos textos legais e o estudo das técnicas de 9 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 7 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 42. 10 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Tradução Karin Praefke Aires Coutinho. CANOTILHO, J.J Gomes. (Coord). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 412. 21 hermenêutica para compreensão dos mesmos; bem como a consulta aos documentos disponíveis no site da ONU, como relatórios, recomendações elaboradas pelo Comitê da Convenção e as decisões emitidas por esse órgão. Em relação ao suporte doutrinário, cabe salientar que a partir das lições de José Afonso da Silva11, Luis Roberto Barroso12, Tércio Sampaio Ferraz Júnior13, Konrad Hesse,14 Fábio Comparato15, dentre outros, empregou-se como categorias de análise os conceitos de “efetividade jurídica”, “eficácia social” e “aplicabilidade da norma.” No contexto dessa última, adotou-se como baliza a teoria do grau de aplicabilidade das normas constitucionais de acordo com a com a classificação de José Afonso da Silva: normas de eficácia plena, eficácia contida e eficácia limitada.16 As questões relativas ao Direito Internacional e à incorporação dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro foram exploradas com base na doutrina de Jorge Miranda17, Mazzuoli18, Flávia Piovesan19, André de Carvalho Ramos20, João Grandino Rodas21, Ingo Sarlet22, dentre outros. Nesse âmbito, foram abordados, de forma tangencial, temas como a relação entre o Direito Interno e o Direito Internacional, a obrigatoriedade deste último, o exercício da jurisdição nas duas esferas, o controle de constitucionalidade e de convencionalidade das leis. No que tange aos temas pertinentes especificamente à Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência encontrou-se suporte em autores nacionais como 11 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. 12 BARROSO, Luis Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de Direito Administrativo, v. 197, p. 30-60, 1994. Disponível em: Acesso em: 6 jan.2017 13 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio júnior; Diniz, Maria Helena; GEORGAKILAS, Ritinha Alzira Stevenson. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989. 14 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. 15 COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 14. 2001. Disponível:< http://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/18673> Acesso em: 02. Dez. 2016. 16 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. 17 MIRANDA, Jorge. Curso de direito internacional público. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 18 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Estado da Arte da Aplicação do Direito Internacional Público no Brasil no Alvorecer do Século XXI. Direito Público (Porto Alegre), v. 13, n. 71, 2016. p. 162-192. 19 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. 20 RAMOS, André de CARVALHO. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 21 RODAS, João Grandino. Jus Cogens em Direito Internacional. Revista da faculdade de direito da universidade de São Paulo, v. 69, n. 2, 1974. p. 128. Disponível em < http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66736/69346> Acesso em: 2 jan. 2017. 22 SARLET, Ingo Wolfgang. Considerações a respeito das relações entre a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, v.. 77, n. 4, out/dez 2011. Disponível em: Acesso em: 04 nov. 2016. 22 Ricardo Fonseca23, Luiz Alberto Araújo24, Sidney Madruga25, Eugênia Gonzaga26 para investigar os precedentes da Convenção, as suas principais inovações, o novo conceito de pessoa com deficiência e suas implicações. Esse arcabouço teórico foi complementado pelo diálogo com autores estrangeiros como Jorge Maldonado,27 Elizabeth Salmón,28 Roberto Schalock,29 Frédéric Mégret,30 Gerard Quinn31 e Michael Steyn32, que auxiliaram no aprofundamento das diferenças entre os modelos teóricos sobre a deficiência, a inserção do tema da deficiência nos tratados de direitos humanos, o funcionamento do sistema de monitoramento e implementação. 23 FONSECA, Ricardo Tadeu, da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. I, p. 19- 3. 24 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seus reflexos na ordem jurídica interna no Brasil. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2011. Cap. 3, p.52-60. 25 MADRUGA, Sidney. Pessoa com deficiência e direitos humanos: ótica da diferença e ações afirmativas. São Paulo: Saraiva, 2013. 26 GONZAGA, Eugênia Augusta. Art. 12 Reconhecimento igual perante a lei. In: DIAS, Joelson. et.al. (Org.). Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 3 ed. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2014. 27 MALDONADO, Jorge, A. Victoria. Hacia um modelo de atención a la discapacidad basado em los direchos humanos. Boletín Mexicano de derecho comparado, v.XLVI, n. 138, p. 1093-1109, 2013. 28 SALMÓN, Elizabeth. El rol del comité de personas con discapacidad en la tutela de la Convención. In: SALMÓN, Elizabeth; PALACIOS, Agustina. et. al. Nueve conceptos claves para entender la Convención sobre los derechos de las personas com discapacidad. Instituto de democracia y Derechos Humanos de la Pontifica Universidad Católica Del Péru, 2014. Disponível em: Acesso em 14 nov. 2016. 29 SCHALOCK, Roberto, L. Hacia una nueva concepción de la discapacidad. In: JORNADAS CIENTÍFICAS DE INVESTIGACIÓN SOBRE PERSONAS CON DISCAPACIDAD UNIVERSIDAD DE SALAMANCA, 3, 1999, Espanha. Disponível em: < http://campus.usal.es/~inico/investigacion/jornadas/jornada3/actas/conf6> Acesso em 24 de nov. 2015. 30 MÉGRET, Frédéric. The Disabilities Convention: Towards a Holistic Concept of Rights. International Journal of Human Rights, v. 12, n. 261, 2008 . Disponível em: Acesso em: 14 jan. 2017. 31 QUINN, Gerard. The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Toward a New Intemational Politics of Disability. Texas Journal on Civil Liberties & Civil Rights, v, 15:1, 2009. 32 STEIN, Michael Ashley. Disability Human Rights. California Law Review, v. 95, n.1, 2007. Disponível em: < https://law.utexas.edu/publications/journals/texas-journal-on-civil-liberties-civil-rights/> Acesso em: 16 jan. 2017. 23 PRIMEIRA PARTE OS IMPACTOS DA TUTELA INTERNACIONAL DOS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL A proteção das pessoas com deficiência no âmbito internacional começou a ser pensada a partir das condições dos soldados feridos provenientes das grandes guerras mundiais e foi evoluindo tanto em relação ao conteúdo como à forma dos instrumentos. No mundo globalizado e interdependente, esses instrumentos passaram a influenciar as decisões políticas dos Estados e, posteriormente, a elaboração de tratados internacionais passaram a incluir a matéria, vinculando os Estados Partes ao compromisso de promover e proteger os direitos desse segmento social. Para compreender os impactos da Convenção sobre as pessoas com deficiência no Estado brasileiro, primeiramente aborda-se o progresso das normas sobre esse grupo no Direito Internacional. Evidencia-se a escala evolutiva dos documentos não vinculantes como declarações e programas de ação até a elaboração do primeiro tratado internacional específico do sistema da ONU. Nesse contexto, ressalta-se o atraso na inclusão do tema da proteção das pessoas com deficiência nos tratados de direitos humanos. Nesse sentido, será explicitado como a Convenção em estudo consagra um novo paradigma sobre o fenômeno da deficiência para situá-la dentro da perspectiva dos direitos humanos e não mais apenas no campo da saúde como faziam os documentos internacionais que a precederam. A partir disso, sublinha-se que os Estados Partes precisarão empreender esse mesmo processo evolutivo no âmbito interno, pois grande parte das legislações pátrias se consolidaram com base no modelo exclusivamente médico. O Brasil deu um passo largo nessa direção, ao incorporar o referido tratado com status equivalente ao de uma emenda constitucional. O que significa a utilização do controle de constitucionalidade como instrumento para promover as adequações necessárias no ordenamento jurídico. Assim, essa primeira parte do trabalho objetiva apresentar os impactos da tutela internacional das pessoas com deficiência no Direito brasileiro, desde os primeiros instrumentos até a incorporação da Convenção de Nova York (2006); as conseqüências provenientes desse processo de internalização e as principais incompatibilidades materiais suscitadas a partir disso. Será delineado, dessa forma, o substrato a partir do qual o Estado deverá atuar para promover a implementação das normas convencionais. 24 Capítulo 1. A PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO DIREITO INTERNACIONAL Esse capítulo explora como a Convenção de Nova York (2006) surgiu para suprir uma significativa lacuna jurídica no sistema internacional, que abordava a questão da deficiência apenas sob o aspecto da saúde e da assistência social, sem incluir dispositivos sobre o exercício e gozo de direitos. Com esse intuito, exploram-se as inovações importantes apresentadas por esse tratado tanto no campo dos estudos sobre a deficiência, como em relação à própria Teoria Geral dos Direitos Humanos; evidencia-se como a Convenção em estudo consagrou um novo paradigma sobre a deficiência e de que forma através deste a proteção das pessoas com deficiência passa a ser uma questão de direitos humanos. Por fim, aborda-se como essa perspectiva foi sintetizada no tratado em estudo através da introdução de um novo conceito de pessoa com deficiência, que se constitui como o pressuposto para todas as transformações que essa norma internacional objetiva realizar. 25 Seção 1. A evolução das normas internacionais sobre os direitos das pessoas com deficiência Na presente seção, primeiramente, aborda-se o progresso das normas sobre esse grupo no Direito Internacional. Evidencia-se a escala evolutiva dos documentos não vinculantes como declarações e programas de ação até a elaboração do primeiro tratado internacional específico do sistema da ONU. Nesse contexto, ressalta-se o atraso na inclusão do tema da proteção das pessoas com deficiência nos tratados de direitos humanos, buscando levantar as possíveis causas para esse fato. Nesse cenário, busca-se evidenciar como a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência pretende preencher esse vazio normativo no Direito Internacional e como ela assume o papel de adaptar os direitos gerais, enunciados em outros tratados, ao contexto específico da deficiência. Ademais, enfatizam-se as conseqüências de incluir esse grupo sob o manto dos direitos humanos e as mudanças necessárias que a Teoria Geral dos Direitos Humanos precisa empreender para dotar de eficácia essa proteção. 26 § 1. A proteção das pessoas com deficiência sob a perspectiva dos instrumentos não vinculantes A questão da integração das pessoas com deficiência emergiu no contexto das duas Guerras Mundiais, no qual se evidenciou a necessidade de treinamento e assistência aos soldados feridos e o Estado foi convocado a se responsabilizar pelos indivíduos que se tornaram deficientes em prol da sua defesa.33 Ademais, a Segunda Guerra Mundial demonstrou, em ampla escala, o potencial de trabalho desses sujeitos, durante o período de escassez de mão de obra, no qual foram criadas inúmeras oportunidades de emprego para a pessoa com deficiência nos Estados Unidos. 34 Contudo, é importante destacar que a inclusão no mercado de trabalho não abrangia todos os grupos dentro do espectro da deficiência, pois muitas pessoas tinham problemas emocionais severos que dificultavam a adaptação social, principalmente os soldados oriundos da guerra do Vietnã. O problema do estigma e do isolamento levou ao surgimento de movimentos de defesa dos direitos desse segmento social35 Em face desse panorama, a ONU proclamou a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes Mentais (1971). Esse documento deveria servir de base comum para proteção nacional e internacional desse grupo. Declara-se que essas pessoas devem ter, na máxima medida do possível, os mesmos direitos que os demais seres humanos, assegurando-lhes cuidados médicos e tratamentos físicos adequados, educação, formação, reabilitação e orientação que lhes permitam desenvolver ao máximo as suas capacidades e aptidões. Posteriormente, em 1975, essa proteção foi estendida para as pessoas com deficiência de forma geral, através da Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes. Esse documento considera pessoa deficiente “aquela incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais.” Ademais, declara o direito desses indivíduos ao respeito por sua dignidade e aos mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos, inclusive o direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível. 33BECK, Paulo Roberto Costa. A História da cidadania das pessoas com deficiência e o desenvolvimento da sua organização como movimento social no cenário brasileiro. Monografia. Curso de Serviço Social da Universidade de Brasília. Junho, 2007. Disponível em Acesso em 04 jan. 2016. p. 34. 34 ARANHA, Maria Salete Fábio. Integração Social do Deficiente: Análise Conceitual e Metodológica. Temas em Psicologia, Sociedade Brasileira de Psicologia, Ribeirão Preto, n. 2, p. 63-70, 1995. Disponível em:< http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v3n2/v3n2a08.pdf> Acesso em: 26 fev. 2016. p. 67. 35 Ibidem. p. 68 27 Pode-se observar que embora tais declarações visem a promover o respeito aos direitos desse grupo, elas apresentam uma visão discriminatória, ao considerar que o desenvolvimento das suas potencialidades deve ocorrer dentro de parâmetros possíveis, situados abaixo do padrão de normalidade. Ressalte-se que esses instrumentos foram elaborados sem a participação das pessoas com deficiência, e o seu significado reflete como o mundo dos não-deficientes percebe as deficiências e em decorrência cria um padrão inferior de direitos.36 A despeito dessa visão equivocada, essas declarações figuraram como incentivo para a disseminação das ideias sobre a defesa desses sujeitos, culminando na deflagração de um movimento internacional de resgate dos seus direitos consagrado pela ONU em 1979. Assim, diagnosticou-se a inexistência de políticas sociais direcionadas para esse contingente de seres humanos e declarou-se o ano de 1981 como “O Ano Internacional da Pessoa com Deficiência”, o que representou o marco de um trabalho que teria prosseguimento ao longo da década. 37 Com o objetivo de assegurar a continuidade das medidas e resoluções propostas, foi promulgada, pelo órgão consultivo da ONU, "A Carta para os Anos Oitenta", orientando os Estados membros a estabelecerem um "Plano de ação de longo prazo" para combater a segregação das pessoas com deficiência. Dentre as prioridades destacam-se: promover programas para a prevenção de defeitos ou de anomalias; assegurar serviços de reabilitação ou de apoio e assistência, a fim de que esses sujeitos possam desempenhar um papel construtivo na sociedade; divulgar informações a respeito das pessoas com deficiência e do seu potencial; melhorar a conscientização da sociedade quanto à importância desses problemas; Além de explicitar recomendações para serem desenvolvidas pela comunidade nacional e internacional.38 Dessa forma, “A década das Pessoas com Deficiência (1983-1992)” serviu como um catalisador para as várias ações empreendidas em todo o mundo como a realização de Conferências, publicação de relatórios e recomendações, incluindo uma primeira menção da 36 DHANDA, op cit, p. 45. 37 CERVERA, Ignacio Campoy. Una aproximación a las nuevas líneas de fundamentación de los derechos de las personas con discapacidad. In: I Jornadas Discapacidad y Desarrollo, COCEMFE, Madrid, 2005. Anais eletrônico.... Revista Telemática de Filosofía del Derecho, n. 8, 2004-2005. Disponível em: Acesso em: 24 jan. 2017. p. 125-155. p. 130. 38 Ibidem, p. 130. 28 necessidade de desenvolver uma Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que só vai se materializar em 2006.39 Nesse contexto, percebeu-se a necessidade de atingir um nível maior de efetividade na promoção dessas medidas, principalmente ao ser observado que são as barreiras físicas e sociais que impedem a plena participação das pessoas com deficiência na sociedade e a relação entre deficiência e pobreza. Sob essa perspectiva, foi elaborado o Programa Mundial de Ação para as Pessoas com Deficiência, através da Resolução 37/52 da ONU, de 3 de dezembro de 1982. Esse documento objetiva promover medidas eficazes para a prevenção da deficiência, reabilitação e para se alcançar os objetivos de "igualdade" e "participação plena". Nesse sentido, recomenda que os Estados incluam os objetivos do programa como parte integrante da política global de desenvolvimento sócio-econômico do país, primando para que todos os benefícios obtidos com os programas de desenvolvimento alcancem também aos cidadãos com deficiência. Ademais, sugere às instituições financeiras multilaterais, que, nas suas operações de empréstimos, considerem os objetivos e as propostas do Programa de Ação Mundial e estimula os organismos internacionais de cooperação financeira e técnica a priorizarem as solicitações de assistência dos Estados Membros para a prevenção e reabilitação da deficiência e igualdade de oportunidades. O Ano Internacional das Pessoas com Deficiência, o Programa de Ação Global e a Década das Pessoas com Deficiência representaram um salto quântico na proteção desse grupo, visto que situou a integração social desse grupo de forma abrangente, diferente da etapa anterior dirigida para proteger os feridos de guerra ou vítimas de acidentes.40 Para auxiliar os Estados na elaboração dos seus programas nacionais, foram emitidas as Normas sobre a Igualdade de Oportunidades paras as Pessoas com Deficiência (1996). Essas Regras constituem um instrumento de orientação política e de atuação para as pessoas com deficiências e suas organizações, funcionam também como base para a cooperação técnica e econômica entre os Estados, as Nações Unidas e outras organizações internacionais.41 39 EGIDO, Encarnación Blanco; SALCEDO, Ana Mª Sánchez. Enfoque de la discapacidad en los organismos internacionales. Revista del Ministerio de Trabajo e Inmigración, n. 65, p. 37-48, 2006. Disponível em:< https://dialnet.unirioja.es/revistas.> Acesso em: 17 jan. 2016. p. 40. 40 Ibidem. p. 40. 41 PALACIOS, Agustina; BARIFFI, Francisco. La discapacidad como una cuestión de derechos humanos Una aproximación a la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. 5 ed. Madri: Grupo editorial Cinca, 2007. (Colección Telefónica Accesible, 4) Disponível em < http://www.tiempodelosderechos.es/docs/jun10/m5.pdf>. Acesso em 6 nov. 2016. p. 36. 29 O seu objetivo primordial, traduzido na expressão “igualdade de oportunidade” é “tornar os diversos sistemas da sociedade, tais como serviços, atividades, informação e documentação acessíveis a todos e, em especial, às pessoas com deficiência.” Para alcançar esse fim, requer que os Estados assumam um compromisso moral e político com a operacionalização da igualdade de oportunidades para esse segmento social. O documento também enuncia princípios importantes em matéria de responsabilidade, de ação e de cooperação e salienta áreas decisivas para a qualidade de vida e para se atingir a plena participação desses sujeitos.42 Destaque-se que todos esses documentos possuem natureza não-vinculante e, embora alguns deles apresentem medidas importantes para garantir o bem-estar e desenvolvimento desse grupo, não possuem força coercitiva. Ressalte-se que esses instrumentos poderiam ser dotados de um caráter consuetudinário, caso um elevado número de Estados aderissem a sua aplicação.43 Porém, essa possibilidade é remota, devido ao conteúdo dessas normas exigir investimentos que demandam reestruturações internas, que dificilmente seriam seguidas sem um controle externo. Sublinhe-se que ao final da “Década da Pessoa com Deficiência” ocorreu a Conferência Mundial sobre direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993, cuja finalidade foi elaborar uma Declaração para adotar medidas em prol da promoção de um maior progresso na observância universal dos direitos humanos. Para tanto, foi elaborado um Programa de Ação para coordenar e racionalizar o trabalho dos órgãos de supervisão dos tratados de direitos humanos dentro do sistema das Nações Unidas.44 Em relação às pessoas com deficiência, a Declaração de Viena (1993) foi um marco importante, ao afirmar : 63. Todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais são universais, neles se incluindo, por conseguinte, e sem quaisquer reservas, as pessoas com deficiência (....). Assim, qualquer discriminação direta ou outro tratamento discriminatório negativo de uma pessoa com deficiência constitui uma violação dos seus direitos (...) A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos apela aos Governos para que, quando tal seja necessário, adotem ou adaptem a legislação existente por forma a garantir o acesso das pessoas com deficiências a estes e outros direitos.45 42 PALACIOS, Agustina. El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, p. 36. 43 Como salienta o § 14 das Normas sobre a igualdade de oportunidades (1996). 44 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. 1 v. p. 244-245. 45 CURIA, Luiz Roberto; CÉSPEDES, Lívia; ROCHA, Fabiana Dias, da. Legislação de Direito Internacional Público e Privado. 9 ed. São Paulo:Saraiva, 2016. p. 571. 30 Sob essa perspectiva, suscita-se a indagação por que seria necessário declarar que os direitos das pessoas com deficiência fazem parte dos direitos humanos, não seria uma questão óbvia? Tradicionalmente, a deficiência era abordada sob o aspecto da segurança social e legislação de bem-estar, direito sanitário ou tutela. Por muito tempo, pessoas com deficiência foram descritas não como sujeitos com direitos legais, mas como beneficiados de programas de saúde e assistência.46 O tema da deficiência foi tratado no seio das Nações Unidas como questões de desenvolvimento social, ou seja, fora do âmbito específico dos órgãos do sistema de Direitos Humanos. Nesse sentido, os documentos de sof law se caracterizavam por possuírem uma linguagem mais inclinada a falar de medidas de promoção, estratégias e modelos, ao invés de obrigações estatais e violações de direitos.47 Ressalte-se que embora as Regras sobre Igualdade e Oportunidade façam declarações esclarecedoras sobre os direitos das pessoas com deficiência e promova um ambiente acessível, nos quais seja possível o exercício desses direitos, o foco ainda é o tratamento médico como pré-requisito para a participação igualitária. Isso foi fortemente criticado por ativistas, pois evidenciou a incapacidade da sociedade internacional para aceitar a deficiência como parte da diversidade humana. 48 Nesse contexto, o Programa Mundial de Ação marcou o início de uma mudança significativa de um modelo individual/médico da deficiência para a ênfase sobre os direitos e a igualdade.49 Sob esse prisma, é importante destacar quais as conseqüências de incluir as pessoas com deficiência sob a tutela dos direitos humanos e como os tratados internacionais abordam essa questão, para compreender como a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência representou uma virada conceitual nos estudos sobre a deficiência e na teoria dos direito humanos. 46 KAYESS, Rosemary; FRENCH, Phillip. Out of Darkness into Light? Introducing the Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Human Rights Law Review, Published by Oxford University Press. v. 8, n. 1, 2008. Disponível em: http://hrlr.oxfordjournals.org/content/8/1/1.abstract > Acesso em 6 nov. 2016. p. 14. 47COURTIS, Chistian. Los derechos de las personas con discapacidad en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos. In: Ignacio Campoy Cervera (Org.). Los derechos de las personas con discapacidad: perspectiv as sociales, políticas, jurídicas y filóficas. Madrid: Dykinson, 2004, p. 131-132. 48 KAYESS e FRENCH, op cit, p. 76. 49 KAYESS e FRENCH, op cit, p.76. 31 § 2. A tutela das pessoas com deficiência sob a ótica dos tratados internacionais de direitos humanos Durante algum tempo, a questão da proteção da pessoa com deficiência permaneceu ausente do contexto dos tratados de direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, embora faça referência a grupos específicos, como a igualdade de direitos entre homens e mulheres e o direito das crianças, não apresenta uma linha específica sobre a questão da deficiência. Com exceção do artigo 25 (1), que menciona, de forma genérica e formal, o direito a um padrão de vida mínimo no caso de invalidez.50 No conjunto de normas que formam o Direito Internacional dos Direitos Humanos como fonte convencional51, apenas a Convenção sobre os Direitos das Crianças de 1989 apresenta um dispositivo sobre pessoa com deficiência. O art. 23 determina que os Estados Partes devem garantir às criança com deficiência condições que favoreçam sua autonomia e participação na comunidade, sendo direito seu receber cuidados especiais, de acordo com os recursos disponíveis.52 Como explicitado, os únicos antecedentes da Convenção de Nova York (2006) eram declarações e instrumentos não vinculantes, que faziam avançar o tema. Porém, não da melhor maneira, devido ao seu maior grau de flexibilidade na elaboração e eventual modificação, frente à rigidez característica de um tratado. Portanto, na prática, tais instrumentos não solucionavam a situação de vulnerabilidade das pessoas com deficiência, principalmente, por não apresentarem mecanismos destinados a garantir seus direitos, sob pena de sanção.53 A explicação para esse vazio normativo gravita em torno de duas hipóteses, a primeira é a crença de que as normas gerais sobre discriminação eram suficientes para proteger as pessoas com deficiência; a segunda proposição é que os direitos desse grupo não eram um tema que requisitasse o reconhecimento normativo, pois consistia em uma questão situada no campo da saúde. Em qualquer das alternativas, resulta claro o desconhecimento 50 MADRUGA, op cit, p. 75. 51 Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais de 1966, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis Desumanas ou Degradantes de 1984, Convenção sobre os Direitos das Crianças de 1989, Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1982 e Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965. 52 PALACIOS, op cit, p. 208. 53 SALMÓN, op ci, p. 201. 32 das necessidades específicas desse coletivo e dos seus direitos.54 As tentativas do sistema das Nações Unidas para lidar com esse problema de invisibilidade foram: interpretar e aplicar os instrumentos de direitos humanos existentes às situações vivenciadas pelas pessoas com deficiência; e através do desenvolvimento de uma série de políticas e documentos programáticos focar nas necessidades e direitos desse segmento social.55 No que tange à primeira alternativa, foi sugerido que os Comitês responsáveis pelos mecanismos de monitoramento dos tratados utilizassem seus procedimentos de trabalho para interpretar, ou esclarecer o alcance dos direitos gerais no âmbito da deficiência.56 A exemplo disso, em 1994, o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais assumiu a responsabilidade de supervisionar questões sobre deficiência dentro da área de sua competência. No Comentário Geral n. 5, recoheceu que embora o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais não faça referência explícita às pessoas com deficiência, no artigo 2º, exige que “os direitos enunciados devem ser exercidos sem qualquer tipo de discriminação”. Na opinião do Comitê, essa afirmação claramente abrangeu a discriminação em razão da deficiência. Esta foi definida, no Comentário n. 5, como qualquer distinção, exclusão, restrição, preferência ou negação de adaptações razoáveis com base na deficiência, cujo efeito é anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício de direitos econômicos, sociais ou culturais. 57 Contudo, observe-se que para a aplicação desses instrumentos no contexto da deficiência, eles precisam ser interpretados para se adaptarem às necessidades específicas desse contingente. Nesse sentido, tal aplicação tem alcançado pouco êxito, visto que muitas das obrigações são definidas de forma bastante ampla e genérica, deixando áreas cinzentas para sua aplicação prática em relação à deficiência.58 Destarte, os indivíduos com deficiência precisariam invocar uma disposição universal ou a proteção de outra característica sua separadamente para conseguir se encaixar nos dispositivos desses tratados. Por exemplo, uma mulher com deficiência não poderia reivindicar a proteção com base em seu status de pessoa com deficiência, poderia reclamar proteção contra tortura ou discriminação sexual. Assim, apenas um punhado de pessoas com 54 Ibidem, p. 200. 55 KAYESS e FRENCH, op cit, p. 15. 56 PALACIOS, op cit, p. 209. 57 KAYESS e FRENCH, op cit, p. 13. 58 SILECCHIA, Lucia Ann. The Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Reflections on Four Flaws that Tarnish its Promise. Journal of Contemporary Health Law and Policy, v. 30, n. 1, p. 96-130, 2013. Disponível em: < http://scholarship.law.edu/jchlp/vol30/iss1/10/> Acesso em: 6 nov. 2016. p. 100. 33 deficiências conseguiriam levar adiante as suas reivindicações com base nessas leis internacionais vinculantes. 59 No sistema regional, ao contrário do sistema global, não se constata uma lacuna jurídica tão expressiva em relação às pessoas com deficiência. No âmbito da União Europeia, alguns instrumentos fazem referência a esse grupo, como por exemplo, a Carta Social Europeia de 1961, nos artigos 9 e 10, que incluem essas pessoas como titulares do direito à orientação e formação profissional; A Carta dos Direitos Fundamentais (2000), no art. 21, menciona a vedação da discriminação por motivo de deficiência e, no dispositivo 26, reconhece o direito das pessoas com deficiência a medidas que assegurem a sua autonomia e integração na vida comunitária.60 A Carta Africana de Direitos Humanos (1981), no art. 18(4), assegura que idosos e pessoas com deficiência possuem o direito a “medidas específicas de proteção” condizentes com suas necessidades físicas e morais. Em 2006, a União Africana adotou a Carta Africana da Juventude, que dedica o art. 24 aos “jovens com incapacidades mentais e físicas”. Nesta, os Estados Partes reconhecem o direito da juventude com incapacidade a cuidados especiais e se comprometem a assegurar-lhes o acesso igualitário e efetivo à educação, treinamento, serviços de saúde, emprego, esporte, educação física e atividades culturais e recreativas; e trabalhar para a eliminação de todos os obstáculos que possam ter implicações negativas para a sua integração completa na sociedade, incluindo o fornecimento de infraestrutura apropriada e serviços para facilitar a locomoção.61 No cenário da Organização dos Estados Americanos (OEA), o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), no art. 13 (3), (e), dispõe sobre o dever de estabelecimento de programas de ensino diferenciado para os indivíduos com deficiência. Além disso, o art. 18 assegura que toda pessoa afetada por diminuição de suas capacidades físicas e mentais tem direito a receber atenção especial, a fim de alcançar o máximo desenvolvimento de sua personalidade. 59 STEIN, Disability Human Rights, p. 76. 60 Como proposta para responder ao desafio da integração da pessoa com deficiência, foi elaborado o Plano de Ação Europeu: Igualdade de oportunidades para pessoas com deficiência. Este se fundamenta em vários princípios básicos como a luta contra a discriminação e a participação das pessoas com deficiência, o respeito pela diversidade, proteção dos direitos individuais, acessibilidade e inclusão. Este projeto nasceu com o impulso do “Ano Europeu das Pessoas com Deficiência”, de 2003 (EGIDO e SALCEDO, op cit, p. 45) 61 VAN REENEN, Tobias Pieter; COMBRINCK, Heléne. A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência na África: Avanços 5 Anos Depois. Revista Internacional de Direitos Humanos- SUR, v. 8, n. 14, p. 137-172, jan. 2011. Disponível em:< http://www.conectas.org/> Acesso em: 22 jan. 2017. p. 140. 34 Em 1999, entrou em vigor a Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (Convenção da Guatemala),62 esse foi o primeiro tratado a abordar um conceito social de pessoa com deficiência, evidenciando as articulações entre deficiência e discriminação e enfatizando a relevância dos fatores socioeconômicos.63 Entretanto, é importante sublinhar que esse tratado regional não seria capaz de suprir o vazio normativo existente em relação à proteção desses sujeitos, pois esse documento tem alcance territorial e material restrito, aborda exclusivamente a questão da discriminação, não incluindo questões específicas importantes como direitos civis e políticos, sexuais, direito a constituir famílias, regras sobre interdição. Em face desse panorama, a elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência veio suprir uma lacuna existente nos tratados internacionais de direitos humanos do sistema geral de proteção. Ao fazer isso, obriga a Sociedade Internacional a enfrentar a contradição entre o "Sistema mito" e o "sistema operacional" de suas normas, colocando em xeque a disparidade entre os valores universais e a prática sobre a deficiência em todo o mundo.64 Pois embora se adote instrumentos de proteção do ser humano com pretensões de universalidade, esse grupo de indivíduos continuava a ser marginalizado e desprovido de proteção. Esse fato pode ser demonstrado na elaboração dos objetivos do Desenvolvimento do Milênio, formulado pela ONU em 2000, que visam a reduzir para metade a pobreza global até 2015. E, no entanto, não considerou as pessoas com deficiência como um grupo alvo específico para a ação.65 Embora seja sabido que a crescente onda de desenvolvimento econômico não tende a elevar o estatuto desse segmento social, uma vez que a transição para uma economia de mercado, geralmente, deixa esses indivíduos para trás, os quais precisam enfrentar extrema dificuldade para sair da pobreza.66 62 Ratificada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo n. 198, de 13 de junho de 2001, promulgado pelo Decreto n. 3956, de 08 de outubro de 2001. 63 FONSECA, Ricardo Tadeu Marques, da. A reforma constitucional empreendida pela ratificação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência aprovada pela Organização das Nações Unida. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 42, p. 94-116, 2013. Disponível em: Acesso em: 24 jan. 2017. p. 103. 64 QUINN. The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Toward a New Intemational Politics of Disability, p. 39. 65 KAYESS e FRENCH, op cit, p. 17. 66 QUINN. The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Toward a New Intemational Politics of Disability, p. 36. 35 Importante ressaltar que dentre as diversas causas das deficiências encontram-se também os fatores sociais e econômicas como privação de alimentos, condições de higiene, violência e guerra. Dessa forma, as violações de direitos humanos podem levar à deficiência, e com uma deficiência a pessoa passa a estar exposta a um maior risco de violações de direitos, gerando um ciclo vicioso. Os impactos da deficiência são enormes e incluem sobre- educação crônica, taxas mais elevadas de violência física, estupro, múltiplas formas de discriminação, especialmente de gênero, maiores taxas de mortalidade e alto desemprego.67 Diante desse panorama, em 2002, foi elaborado um Relatório especial, no âmbito das Nações Unidas, preparado por Gerard Quinn e Theresia Degener intitulado "Direitos Humanos e Deficiência”. Esse documento concluiu que as pessoas com deficiência foram de alguma modo "invisíveis" dentro do sistema de direitos humanos da ONU. Ao contrário de outros grupos, tais como mulheres e crianças, esses indivíduos não têm um instrumento juridicamente vinculativo ou uma Comissão para garantir expressamente a proteção dos seus direitos.68 O relatório também evidenciou que as regras dos tratados gerais de direitos humanos não são aplicadas, ou aplicadas de forma desvantajosa, a esse grupo, pois quando observada a conformidade de tais normas em relação às pessoas com deficiência, verificaram-se notáveis insuficiências, tanto por parte dos governos como dos órgãos de supervisão dos tratados. Em face disso, o núcleo do relatório continha uma série de argumentos relativos à necessidade de um novo tratado específico para as pessoas com deficiência, para expandir e reforçar o sistema existente. 69 Assim, a Convenção da ONU remove a invisibilidade das pessoas com deficiência e oferece uma ferramenta para forçar o reconhecimento dessa contradição do sistema de Direitos Humanos.70 Ressalte-se que a Convenção de Nova York (2006) é o primeiro tratado sobre Direitos Humanos do novo milênio e exige atenção especial porque apresenta a denominada “sabedoria do atrasado”, ao evoluir com os erros cometidos ou com os obstáculos descobertos no funcionamento dos outros tratados dessa natureza.71 Dessa forma, essa norma internacional surgiu com a importante missão de saldar uma dívida do sistema internacional com a proteção dos sujeitos com deficiência. Para além 67 Ibidem, p. 35. 68 PALACIOS e BARRIFI, op cit, p. 47. 69 PALACIOS e BARRIFI, op cit, p. 47. 70 QUINN. The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Toward a New Intemational Politics of Disability, p. 39. 71 DHANDA, op cit, p. 48. 36 da simples declaração de direitos, seria necessário que esse documento incorporasse mecanismos de efetivação capazes de transformar a realidade. Nesse contexto, além de prever medidas de implementação e controle, a Convenção em estudo buscou promover uma nova compreensão sobre a pessoa com deficiência na sociedade para atingir as raízes mais profundas da discriminação e invisibilidade desse grupo. § 3. As inovações da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi adotada pela ONU, em dezembro de 2006, através da Resolução da Assembleia Geral n. 61/106 e entrou em vigor em 3 de maio de 2008.72 O seu propósito fundamental é “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais pelas pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente” (art. 1°). Esse dispositivo explicita como objetivos da Convenção não apenas criar novos direitos para esses indivíduos, mas adaptar as regras pertinentes dos Tratados de Direitos Humanos ao contexto específico da deficiência, o que implica a formulação de mecanismos para garantir o seu exercício.73 Dessa forma, o maior compromisso desse tratado internacional é com a efetividade de direitos. Ao adotar essa premissa, a Convenção evitou o debate interminável sobre a uniformidade e a diferença, ao buscar ambos, o mesmo tratamento para as pessoas com deficiência dos outros seres humanos e também o tratamento diferenciado capaz de suprir as suas necessidades particulares, a fim de obter a inclusão e plena participação.74 Baseando-se nessa lógica, a Convenção apresenta oito princípios gerais, dos quais apenas três fazem referência à situação específica da deficiência: Acessibilidade; respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana; respeito ao direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade e desenvolver suas capacidades. Os demais princípios são universais, mas foram destacados no texto da 72Adotada pela Assembléia Geral no dia 13 de dezembro de 2006, aberta à assinatura dos Estados Partes em 30 de março de 2007. Estipulou-se o requisito de 20 ratificações para que a Convenção obtivesse vigência. O último desses instrumentos foi entregue ao Secretariado da ONU em 3 de abril de 2008. Sua vigência internacional iniciou-se em 3 de maio de 2008. 73 PALACIOS e BARRIFI, op cit, p. 56. 74 DHANDA, op cit, p. 45. 37 Convenção devido à ausência de implementação plena em relação às pessoas com deficiência, são eles:75 liberdade de fazer as próprias escolhas, independência e autonomia individual, plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; não-discriminação; igualdade de oportunidades; e respeito pela dignidade inerente. O estabelecimento de princípios gerais em um artigo específico representou uma inovação da Convenção de Nova York (2006), visto que essa articulação explicita dos princípios gerais, até então, era uma característica comum apenas dos acordos ambientais e de outras convenções-quadro, não sendo uma prática corrente nos tratados de direitos humanos.76 Essa espécie de norma exerce a importante função de servir como diretriz para aplicação e interpretação do tratado, ao instituir valores que devem permear todos os dispositivos. Ademais, servirá como bússola para a elaboração de leis a nível nacional e do quadro político interno, além de funcionar como um filtro através do qual se pode avaliar se as leis existentes estão sendo executadas em conformidade com o objeto e o propósito da Convenção.77 Contudo, ressalte-se que os princípios são por sua própria natureza expressões vagas e indeterminadas, cujo conteúdo permite diferentes graus de efetivação. Dessa forma, para dotar de maior exatidão as suas diretrizes, o tratado em estudo apresenta alguns conceitos operacionais, que diminuem a margem de discricionariedade dos Estados na sua implementação. Como exemplo, a definição inovadora de pessoa com deficiência, art. 1º, que ao incluir os fatores sociais, econômicos e culturais na gênese da deficiência, promove um novo modelo de compreensão da mesma. Esta é complementada pelo conceito expresso de “discriminação por motivo de deficiência” (art. 2°), que facilita a identificação e, consequentemente, o combate aos atos discriminatórios contra esse grupo. Outros conceitos importante que figuram como instrumentos para a efetivação do direito a acessibilidade são os de “adaptação razoável” e “desenho universal.” Ainda no campo dos dispositivos que podem ser considerados como um incremento para a efetividade do tratado, destaca-se o art. 4º sobre as obrigações gerais dos Estados, 75 CISTERNAS REYES, María Soledad. Desafíos y avances en los derechos de las personas con discapacidad: una perspectiva global. Anuario de Derechos Humanos, n. 11, p. 17-37, 2015. Disponível em: Acesso em: 13. Jan, 2017, p. 20. 76STEIN, Michael Ashley, Monitoring the Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Innovations, Lost Opportunities, and Future Potential . Human Rights Quarterly, v. 32, n. 3, august. 2010. Disponível em < https://muse.jhu.edu/article/390320> Acesso em 13 nov. 2016. p. 30. 77 STEIN, Michael Ashley; LORD, Janet E. The Domestic Incorporation of Human Rights Law and the United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Washington University Law Review, v. 83: 449, 2008. Disponível em Acesso em: 27 out.2016 p. 460. 38 dentre elas: adotar qualquer tipo de medida, inclusive legislativas e administrativas, para a realização dos direitos da Convenção; aplicar a transversalidade na defesa dos direitos desse grupo, ao considerá-los em todos os programas e políticas estatais; além de assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com a presente Convenção e se abstenham de participar de qualquer ato ou prática incompatível com as normas convencionais. No âmbito da discriminação, a Convenção estabelece como dever do Estado eliminar a discriminação proveniente do próprio ordenamento jurídico, ao determinar que estes devem adotar todas as medidas necessárias para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas discriminatórias. Bem como combater a discriminação perpetrada por qualquer pessoa, inclusive organização ou empresa privada. Dentre as obrigações gerais, a Convenção aborda a importante questão dos direitos sociais, que, muitas vezes, são negligenciados pelos Estados Partes sob o pretexto de que sua realização é progressiva e dependente de recursos financeiros. O tratado reconhece a natureza dessa espécie de direitos e compromete os Estados, no art. 4 (2), com o dever de adotar medidas para concretizá-los “tanto quanto permitirem os recursos disponíveis.” Para auxiliar na materialização desses direitos, o tratado prevê, no art. 32, o mecanismo da “cooperação internacional”, que abrange parcerias com organizações internacionais e regionais para adoção de medidas apropriadas e efetivas para apoiar os esforços nacionais para a consecução dos objetivos da Convenção. Estas podem incluir intercâmbio e compartilhamento de informações, experiências, assistência técnica através de programas de treinamento e melhores práticas, facilitação do acesso e transferência de tecnologias assistivas e assistência financeira. Além disso, quando os Estados submetem seus relatórios ao Comitê do tratado, conforme art. 36 (5), este pode transmitir demandas e necessidade de consultoria às agências, fundos ou programas especializados das Nações Unidas. Dessa forma, inseriu-se uma cláusula na Convenção de Nova York (2006) que reduz o uso da justificativa da falta de meios para o não cumprimento mínimo das suas normas. Para além de todos esses dispositivos que visam a transformar as normas do tratado em realidade nos territórios nacionais, a Convenção apresenta, no art. 33, um sistema complexo de monitoramento e implementação. O monitoramento é organizado através da avaliação, por um Comitê específico, de relatórios periódicos elaborados pelos Estados membros. Esse órgão internacional vinculado ao tratado pode emitir recomendações e acompanhar a sua observância por meio de relatórios subseqüentes. Ademais, para os membros que assinaram o protocolo facultativo, esse monitoramento pode incluir 39 investigações in loco e denúncias em petições individuais. O sistema de implementação, por sua vez, determina a designação de órgãos dentro da estrutura dos governos para serem responsáveis por essa função, bem como traça algumas diretrizes específicas para o seu funcionamento e coordenação de suas atividades. Disposições inéditas em um tratado de direitos humanos.78 Como observado, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência apresenta uma forte ênfase na implementação, delineando mecanismos conceituais, políticos e jurídicos para garantir os direitos declarados. A razão para isso, como evidenciado, foi o seu surgimento sob a égide de uma situação de ineficácia dos tratados de direitos humanos em proteger esse grupo vulnerável. Por outro viés, no âmbito das inovações no conteúdo dos direitos, a Convenção de Nova York (2006) foi pioneira em assegurar o direito à participação política das pessoas com deficiência. O art. 29 dispõe sobre a obrigação dos Estados Partes de garantir a esse grupo direitos políticos e oportunidade de exercê-los em condições de igualdade com as demais pessoas, incluindo o direito de votar e ser votado e a garantia de acessibilidade nos procedimentos, instalações, materiais e equipamentos para votação. Dessa forma, foi sanado o déficit das normas não vinculantes anteriores, que abordavam, de forma quase exclusiva, direitos sociais e econômicos e não asseguravam a essas pessoas o direito à vida, à liberdade, à segurança, à liberdade de manifestação e pensamento ou à participação política.79 Essa lacuna contribuiu de modo significativo para a abordagem assistencialista da deficiência, visto que os direitos sociais e econômicos são implementados progressivamente, sujeitos à disponibilidade dos recursos, diferente dos direitos civis e políticos caracterizados pela disponibilidade imediata e justiciabilidade. Assim, na ausência de um regime de direitos dessa natureza, as pessoas com deficiências não tinham condições de reivindicar de forma assertiva suas necessidades e precisavam estar constantemente negociando as mesmas demandas.80 Além disso, o exercício dos direitos civis e políticos concede aos indivíduos a oportunidade de chamar atenção eficazmente para as suas necessidades gerais e exigir a ação pública apropriada. Considerando que a resposta do governo às demandas populares, 78MÉGRET, op cit, p. 15. 79 DHANDA, op cit, p. 46. 80 Ibidem, p. 46. 40 frequentemente, depende da pressão exercida sobre ele, o exercício dos direitos políticos pode contribuir para a concretização dos demais direitos fundamentais desse grupo.81 Nesse contexto, a garantia das liberdades civis e política possibilitam que a pessoa com deficiência tenha a liberdade de agir como cidadão. O reconhecimento desse atributo coloca em relevo a posição de agentes responsáveis pela construção dos valores éticos, sociais e de seu próprio bem-estar, pois, enquanto ser humano livre, cabe ao sujeito decidir como usar suas capacidades e o exercício destas depende da natureza das disposições sociais.82 Nessa esteira, a Convenção colocou a participação política como prioridade desde a sua elaboração, visto que a resolução da Assembleia Geral que criou o Comitê Ad Hoc para negociar o tratado exigiu expressamente que os Estados Partes chegassem ao texto através de consultas às pessoas com deficiências e suas organizações.83 Assim, a Convenção promove uma ruptura histórica com o modelo de negociação dos tratados, pois os instrumentos eram negociados pelos representantes dos Estados a portas fechadas e distante dos principais interessados. Em vez disso, o tratado em estudo realiza uma abordagem participativa, considerando as opiniões e experiências das pessoas que serão afetadas por essa legislação.84 Tal fato foi um grande avanço, porquanto no processo de elaboração pode-se entrar em contato com as reais necessidades desse grupo, dotando o documento de um importante diferencial em relação à legislação precedente.85 Essa diretriz foi mantida no texto do tratado, na medida em que o art. 4 (3) determina a obrigação dos Estados Partes de realizar consultas às organizações de pessoas com deficiência sobre a elaboração e implementação de legislações e políticas que lhe digam respeito. Esse dever estatal transformou o slogan do movimento “nada em relação a nós sem nós” de um hino de campanha em um princípio imprescindível para a defesa dos direitos das pessoas com deficiência.86 Destaque-se que o tratado em estudo não apenas promoveu o reconhecimento desses sujeitos na esfera política, como também dispôs acerca do “direito ao reconhecimento como pessoa”. Nesse sentido, o art. 8 (b) determina como dever dos Estados Partes o combate aos 81 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 178 82 Ibidem, p. 326. 83 DAHNDA, op cit, p. 52. Destaque-se que 71% do conteúdo da Convenção foi obtido pela contribuição direta de ONGS, que levaram para aquele ato 800 pessoas com deficiência. FONSECA, Ricardo Tadeu, da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2011. Cap. I, p. 19- 31. p. 25. 84 MELISH, Tara J. The UN Disability Convention: Historic Process, Strong Prospects, and Why the U.S. Should Ratify. The Human Rights Brief and Center for Human Rights and Humanitarian Law of the American University Washington College of Law present. Winter, 2007. 14 Hum. Rts. Br. 37. p. 37-46. Disponível em < https://www.wcl.american.edu/hrbrief/14/2melish.pdf> Acesso em: 5 out. 2016. p. 37. 85 Ibidem, p. 37. 86 DAHNDA, op cit, p. 50. 41 estereótipos e preconceitos em relação a esse grupo e a promoção da consciência sobre suas capacidades e contribuições. Dispositivo que reflete o princípio geral da aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana. Ademais, o tratado assegura o reconhecimento dos indivíduos com deficiência perante a lei (art. 12). Para tanto, os Estados Partes devem oferecer as medidas de apoio necessárias para o exercício da capacidade legal. Estas devem se configurar como um instrumento para a autonomia, respeitando os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, visto que a promoção da autonomia é um dos objetivos fundamentais da Convenção, que, no art. 26, insta os entes estatais a adotarem medidas efetivas e apropriadas para possibilitar a esses indivíduos conquistar e conservar o máximo de autonomia. Complementando essa disposição, o art. 19 garante a vida independente e a inclusão na comunidade com a mesma liberdade de escolha que as demais pessoas, contando para isso com serviços de apoio em domicílio ou em instituições residenciais ou outros serviços comunitários. A ênfase na autonomia objetivou consagrar a mudança do paradigma assistencialista para o emancipatório, que reconhece os obstáculos do meio ambiente como fatores de limitação do desenvolvimento das pessoas com deficiência. Sob essa ótica, apresenta-se a ideia de que havendo o aporte necessário e adequado, esses sujeitos podem ampliar suas potencialidades. Dentre estas, a autonomia está incluída, uma vez que ela é inerente à condição humana, não estando ausente nas pessoas com deficiência, mas apenas não estimulada. Nessa direção, considera-se a premissa de que a autonomia é um elemento da dignidade da pessoa humana e, portanto, não pode ser negada a qualquer ser dessa espécie.87 Destarte, pode-se depreender que a Convenção de Nova York (2006) se baseia no conceito de dignidade como uma qualidade intrínseca e distintiva do ser humano que lhe assegura proteção contra tratamentos degradantes e desumanos; garantia das condições existenciais mínimas para uma vida saudável e o direito de participação ativa nos destinos da própria vida.88 Tal concepção encontra-se implícita, além de nos dispositivos sobre autonomia e independência, no art. 17 que garante a integridade física e mental das pessoas com deficiência e no art. 28 que dispõe sobre o direito a um padrão de vida adequado, incluindo alimentação, vestuário, moradia e melhoria contínua das condições de vida. 87 FERNANDES, Fernanda Holanda. Um novo paradigma sobre autonomia a partir da Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência. Revista Jurídica da UFRN InVerbis, n. 36, v. 19, p. 155-173, jul-dez. 2014. p. 65. 88 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 70. 42 Vale salientar que até mesmo o direito à vida ganhou novos contornos, no tratado em estudo, para corresponder a necessidade desse grupo específico, visto que o art. 11 acrescentou, como desdobramento do direito à vida, o tratamento prioritário em casos de calamidades e guerras, pois geralmente as primeiras vítimas são as pessoas com deficiência.89 Assim, a norma internacional reconhece a esse grupo o direito à vida em condições de igualdade com os outros seres humanos.90 Nessa esteira, a Convenção é um exemplo da convergência entre os Direitos Humanos e o Direito Humanitário, ramos cujo denominador comum é a proteção da dignidade do ser humano, seja em situações de conflito ou em tempos de paz.91 O art. 11 estabelece o dever dos Estados Partes de assegurar a proteção e a segurança das pessoas com deficiência que se encontrarem em situações de risco como conflito armado, emergências humanitárias e desastres naturais. Essa norma não tem dispositivo correspondente em nenhum tratado do sistema regional, constituindo um avanço que pode suscitar reflexões a nível regional, inclusive nos próprios ordenamentos internos. 92 Contudo, algumas críticas são tecidas em relação às disposições sobre o direito no tratado, como a ausência de referência a questões relevantes como o aborto e a eutanásia, pois em muitos países o direito à vida só é protegido após o nascimento e é sabido que o diagnóstico pré-natal de fetos com deficiência, muitas vezes, leva a decisão do aborto. Ademais, são comuns as práticas, oficiais e não oficiais, de abreviação da vida de pessoas com deficiência, sob o argumento de que as pessoas com deficiência grave não possuem personalidade ou alegando o melhor interesse de si ou da família.93 Outro aspecto importante da Convenção é a presença de um dispositivo que promove “os efeitos horizontais dos direitos humanos,” ao fazer incidir a proteção das pessoas com deficiência nas relações entre particulares. Tal norma tem especial importância, em face da especificidade das situações vivenciadas pelas pessoas com deficiência, que demandam o 89FONSECA, Ricardo Tadeu Marques, da. A reforma constitucional empreendida pela ratificação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência aprovada pela Organização das Nações Unida, p. 21. 90 DHANDA, op cit, p. 46. 91 O Direito Humanitário e os Direitos Humanos são vertentes diferentes da proteção internacional da pessoa humana. O primeiro objetiva proteger as vítimas de conflitos armados, estabelecendo um limite mínimo de proteção que não pode ser violado pelas partes em conflito. Enquanto os Direitos Humanos visam a proteção nas relações entre o Estado e as pessoas sob a sua jurisdição em tempos de paz. Embora possuam origens e fontes distintas, a convergência entre ambos é notória, pois o movimento contemporâneo em prol da proteção internacional dos direitos humanos influencia o Direito humanitário a estabelecer, a par das obrigações estatais, direitos individuais de que gozam as pessoas protegidas. Em contrapartida, tratados de direitos humanos vieram a ocupar-se da proteção daqueles direitos também em tempos de crise e de situações excepcionais. (TRINDADE, op cit, p. 339-347.) 92 SALMÓN, op cit, p. 206. 93 SILECCHIA, op cit, p. 110. 43 dever do Estado de protegê-las não apenas na esfera pública, mas também em relação aos particulares. Como, por exemplo, a institucionalização, o uso de serviços e assistência prestados por pessoas privadas, a vulnerabilidade à exploração e à violência doméstica.94 A Convenção mostra uma notável consciência desta dimensão no preâmbulo, ao evidenciar a necessidade de não apenas "promover", mas de “proteger" os direitos das pessoas com deficiência. A proteção é um termo geralmente interpretado como uma obrigação para o Estado garantir que os atores privados não violem os direitos desse grupo. Acrescente-se que o tratado em estudo é o primeiro do sistema universal de direitos humanos a impor explicitamente a obrigação estatal de tomar as medidas apropriadas para eliminar a discriminação com base na deficiência por organização ou empresa privada.95 Destarte, tais dispositivos desfazem a dicotomia entre a esfera pública e a privada em prol da proteção desse segmento social. Além disso, representa uma contribuição importante para a teoria geral dos direitos humanos, na medida em que o fenômeno da horizontalidade dos direitos humanos não encontra apoio em muitos tratados internacionais, consistindo mais em uma construção jurisprudencial.96 Outra polaridade desconstruída pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência é aquela existente entre direitos de primeira dimensão (civis e políticos) e de segunda (direitos econômicos, sociais e culturais) fundamentada na diferença de exigibilidade imediata ou progressiva. Nesse sentido, a norma em exame concretiza de maneira radical a indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, visto que, ao assegurar direitos civis e políticos a esse grupo, inevitavelmente, se impõe a necessidade de prestações positivas como o fornecimento de infra-estrutura adequada para o seu exercício. Assim, a Convenção teria estabelecido “direitos híbridos”, quando, por exemplo, reconhece o direito de manifestação e expressão para essas pessoas, é preciso providenciar os modos de comunicação alternativos, pois sem isso esse direito não é realmente efetivado.97 É relevante sublinhar que o fundamento de todas essas inovações promovidas pela Convenção de Nova York (2006) encontra-se na definição de pessoa com deficiência adotada expressamente no art. 1°. Esta implementa o modelo biopsicossocial em substituição ao 94 MÉGRET, op cit, p. 9. 95 Ibidem, p. 9. 96 Ibidem, p. 10. 97DHANDA, op cit, p. 47. 44 paradigma exclusivamente médico, o que acarretou a mudança do enfoque assistencialista para uma abordagem centrada nos direitos humanos. Seção 2. O novo paradigma sobre a deficiência consagrado pela Convenção das Nações Unidas A presente seção irá explicitar as diferentes compreensões sobre o fenômeno da deficiência ao longo da história e como o surgimento do paradigma médico representou um avanço, ao retirar a deficiência do campo das crenças sociais para situá-la no âmbito da investigação científica. Pretende-se demonstrar como por meio das críticas a este modelo, surgiu o Movimento de Vida Independente, que influenciou a construção da concepção social da deficiência. Assim, busca-se evidenciar que a partir do diálogo crítico entre essas duas concepções antagônicas (modelo médico e perspectiva social) evoluiu-se para a elaboração do paradigma biopsicossocial, o qual considera a deficiência nas suas múltiplas dimensões. Por fim, demonstra-se como este foi consagrado na Convenção de Nova York (2006) através do conceito de pessoa com deficiência, bem como suas implicações, aspectos positivos e negativos. 45 § 1. O modelo médico de tratamento da deficiência A defesa dos direitos de um segmento social tem como fundamento um conjunto de teorias utilizado como paradigma e instrumento de compreensão das peculiaridades desse grupo de pessoas que as tornam merecedoras de uma proteção especial. Dessa forma, são essas teorias subjacentes que irão direcionar os objetivos, finalidades e formas de incidência da norma protetiva. Nesse sentido, vale salientar o conceito de paradigma elaborado por Thomas Kuh: “as realizações científicas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.”98 Nesse contexto, aos especialistas se entrega a tarefa de inventar uma linguagem, uma terminologia técnica, e de organizar os tratamentos da deficiência. Contudo, a imagem desta construída pelo técnico não prescinde do sistema de valores e da representação social do fenômeno predominante naquele momento. Assim, a correlação entre as categorias diagnósticas e os modelos de atuação são construções culturais que não podem ser dissociadas do contexto social.99 O modelo médico da deficiência surge como um avanço, pois a partir do progresso das ciências, torna-se possível o estudo das suas causas e tratamento. Em épocas anteriores, a deficiência era compreendida dentro das crenças e valores de cada época, mas ainda não tinha sido alçada a objeto de investigação científica. Sublinhe-se que a deficiência, naturalmente, provoca sentimento de inquietude e não familiaridade, na medida em que evidencia o inesperado testemunho de como a adversidade é um verdadeiro ataque a integridade identitária do ser humano, causando um efeito perturbador. Disso, surge a necessidade de classificar a deficiência, dotá-la de sentido, atribuindo-lhe um caráter familiar, para que seus efeitos ameaçadores sejam enfraquecidos.100 Sob esse prisma, todos os povos de diferentes épocas tiveram de enfrentar o desafio de lidar com a deficiência, conforme os valores e demandas sócio-econômicas compartilhadas. Nas sociedades primitivas, a capacidade física, a força e a participação nas atividades coletivas eram qualidades essenciais ao homens para garantir a sua sobrevivência em face das rudes condições de vida, a dependência dos meios naturais e os limites em termos de recursos. Nesse contexto, as pessoas com algum tipo de deficiência eram exterminadas, porque consideradas sem valor para a coletividade. Além disso, o pensamento místico 98KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. p. 30. 99 LEPRI, Carlo. Viajantes inesperados: notas sobre inclusão social das pessoas com deficiência. São Paulo: Saberes Editora, 2012. p. 32. 100 MOSCOVICI 1988, apud LEPRI, 2012, p. 49. 46 associava as deficiências a sinais ou forças misteriosas, cujos elementos eram temidos e ao mesmo tempo adorados, pois o homem não podia controlá-los. 101 Nas antigas civilizações Greco-Romanas era comum a prática do extermínio de crianças com deficiência, referencia encontrada em excertos da Ilíada e da Odisséia. Eram eliminados aqueles que não possuíam o gérmen da virtude necessária ao ideal consagrado ao homem naquele momento, o do guerreiro, o herói homérico dotado de força física, destreza e sagacidade. 102 Durante a Idade Média, o advento do cristianismo influenciou o desenvolvimento da visão abstrata de homem, que passou a ser visto como ser racional, criação e manifestação de Deus. Em função dessas ideias cristãs, o não produtivo (deficiente) adquire “status” humano, já que também é possuidor de uma alma. Assim, tornou-se inaceitável sua exterminação e, gradativamente, sua custódia e cuidado passaram a ser assumidos pela família e pela Igreja.103 Com a revolução industrial, surgem avanços no campo do conhecimento filosófico, médico e educacional, passa-se a encarar a deficiência do ponto de vista alquímico, portanto, tratável. A partir da necessidade de preparo da mão-de-obra para a produção, surgem as primeiras iniciativas de ensino de comunicação para pessoas surdas; instituições para cuidar e tratar pessoas com deficiência mental, como hospitais psiquiátricos, asilos e conventos; desenvolvem-se os inventos de ajuda, tais como cadeiras de rodas e bengalas.104 Nesse momento, emerge o paradigma médico da deficiência, considerando-a como um fenômeno a ser investigado pela ciência. Nesse contexto, o evolucionismo biológico abre caminho para os novos modelos interpretativos baseados na cultura positivista, como a psiquiatria moderna e a antropologia criminal. Nestas, a atividade classificatória ganha destaque e o diagnóstico torna-se um instrumento por meio do qual se decide o tratamento que, em geral, se resume ao encaminhamento do doente às diversas instituições.105 Observe-se que a segregação em instituições também se constituía como uma forma de controle social, porquanto “institucionalizar” significava retirar da sociedade os indivíduos que não se ajustavam às condições impostas pelo novo mundo do comércio e da produção. 101 GUHUR,op cit, p. 76. 102 Ibidem, p. 77. 103 ARANHA, op cit, p. 65. 104GUGEL, Maria Aparecida. Pessoas com deficiência e o direito ao concurso público: reserva de cargos e empregos públicos, administração pública direta e indireta. Goiânia: Ed. da UCG, 2006. p. 26. 105 LEPRI, op cit, p. 97. 47 Assim, os incapazes e deficientes mentais passaram a compor uma categoria representada como uma carga e uma ameaça, pois não estavam aptos a contribuir com a sociedade. 106 A institucionalização também despontava como uma forma velada de punição, na qual as agressões não se materializavam mais no corpo físico, mas na privação de todos os direitos e no emprego da farmacologia para adormecer as funções mentais, ainda que provisoriamente. Tais métodos produziam uma espécie de penalidade incorpórea, que substituiu os espetáculos de castigos físicos e torturas perpetrados durante a idade média.107 Todavia, com o fim da Primeira Guerra Mundial, surge uma nova representação da deficiência. Os soldados amputados e mutilados passaram a ser considerados como pessoas a quem estava faltando alguma coisa, seja um órgão, um sentimento ou uma função, que precisava ser restaurada. Nesse âmbito, a deficiência passou a ser vista como um fracasso a ser erradicado.108 Dessa forma, reabilitar significava estabelecer o status quo, fazer o indivíduo retornar a normalidade e, consequentemente, reintegrá-lo a vida social. Nessa fase, o modelo médico foi denominado de reabilitador e parte da premissa de que as causas da deficiência são biológicas e conhecendo-se as causas é possível encontrar os meios para extirpá-la, porquanto, a lógica da segregação é substituída pela da reabilitação, devendo existir duas fases na abordagem da deficiência: primeiro diagnosticar, tratar, reabilitar e, posteriormente, inserir na sociedade. 109 Sob essa perspectiva, o tratamento da deficiência é orientado para a cura, busca-se a melhor adaptação possível da pessoa aos padrões sociais. O problema da deficiência é situado dentro do indivíduo e considerado como resultado exclusivo das limitações funcionais de origem biológica.110 Assim, a sociedade torna-se isenta de qualquer responsabilidade na gênese desse fenômeno e as pessoas com deficiência são excluídas devido ao baixo desempenho que apresentam em razão das suas dificuldades físicas, sensoriais ou mentais. Sob essa perspectiva, o suporte filosófico para a integração social da pessoa com deficiência foi a ideologia da normalização, que advogava a necessidade de inserir o indivíduo com deficiência na sociedade, auxiliando-o a adquirir as condições e os padrões o mais próximo possível aos da vida cotidiana das demais pessoas.111 O principal objetivo era acabar com a institucionalização como tratamento, uma vez que custava cada vez mais caro 106 GUHUR, op cit, p. 78. 107 FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1977. p. 17. 108 PALACIOS e BARIFFI, op cit, p. 16. 109 LEPRI, op cit, p. 101. 110 MALDONADO, op cit, p. 1101. 111 ARANNHA, op cit, p. 66. 48 para o Estado manter a população na improdutividade e na condição de segregação. Assim, interessava ao sistema político-econômico o discurso da autonomia e da produtividade.112 A partir dessa premissa, criou-se o conceito de integração social como o fornecimento de serviços e recursos para auxiliar a pessoa com deficiência a se readaptar à sociedade. Esta não tinha a obrigação de se reorganizar para favorecer e garantir o acesso de quem estava fora dos padrões, mas sim o de lhes garantir os meios para que pudessem se aproximar dos padrões normais.113 Nesse âmbito, as mudanças sociais são apenas superficiais e vistas como concessões para beneficiar a pessoa com deficiência, que devem se adaptar aos modelos existentes, desde que o sistema faça alguns ajustes. Busca-se disfarçar as limitações para aumentar a possibilidade de inserção114 e fazer desaparecer a diferença representada pela deficiência. 115 As ferramentas para a reabilitação incluem o suporte e a intervenção do Estado no que diz respeito à assistência pública, o trabalho protegido, educação especial e aplicação médica dos avanços científicos e tratamentos.116 Do ponto de vista legal, a deficiência é abordada exclusivamente dentro da lei de segurança social ou como parte de certas questões de direito civil relacionadas com a tutela e os cuidados de saúde.117 Esse modelo sustenta que independente do tipo de condição e dos fatores socioeconômicos concorrentes, todas as pessoas com deficiência se comportam exatamente da mesma forma, assumindo o papel de enfermos. No qual cabe aos profissionais de saúde a responsabilidade pela recuperação e todas as decisões sobre a vida do paciente. A interpretação subjetiva da deficiência é desconsiderada e as variáveis individuais são excluídas.118 Sob esse prisma, os critérios utilizados para definir a deficiência geralmente têm como referência a perda de certos órgãos ou funções em relação às características isoladas estabelecidas para o funcionamento de cada um deles, como por exemplo, patamares mínimos de acuidade visual, capacidade auditiva, porquanto, exige-se grande afastamento dos padrões 112 Ibidem, p. 66. 113 Ibidem, p. 155. 114 WERNECK, Cláudia. Integração ou Inclusão? Conceitos básicos para usar este manual. In: Manual da mídia legal: jornalistas e publicitários mais qualificados para abordar o tema inclusão de pessoas com deficiência na sociedade. Rio de Janeiro: WVA, 2002, p. 16-17. 115 PALACIOS, op cit, p. 98. 116 PALACIOS, op cit, p. 81. 117 PALACIOS e BARRIFI, op cit, p. 17. 118 OLIVER, Mike. ¿Una sociología de la discapacidad o una sociología discapacitada? In: Discapacidad y sociedad. Madri: Morata, 1998. p. 34-58. Disponível em: Acesso em 7 jan. 2017. p. 48. 49 de normalidade para considerar alguém deficiente e essa análise é realizada de modo separado das necessidades impostas pelas características sociais de cada pessoa.119 Nesse contexto, destaca-se o equívoco dessa ideia de normalidade, visto que o termo “normal” é usado indiscriminadamente como “aquilo que deveria ser” ou aquilo que é mais frequente, ou seja, um fato desprovido de qualquer conteúdo valorativo. Entretanto, deve-se observar que, mesmo no sentido quantitativo, o cálculo de afastamento em relação à média só seria possível através de uma valoração atribuída a este ponto médio ideal e mais frequente.120 A média reflete as escolhas dos indivíduos segundo princípios aceitáveis biologicamente para a manutenção da vida. Mas deve-se ponderar que a linha fronteiriça entre o normal e o patológico se mantém tênue, pois existem diversos modos de vida instituídos por sociedades diferentes que se aproximam em menor ou maior grau dos princípios de preservação da vida. Além disso, a norma vital, mesmo na sua concepção estritamente biológica, não é imutável, uma vez que a evolução da espécie está em curso exatamente para romper normas e alterá-las para modalidades superiores.121 Nesse sentido, é interessante sublinhar que a língua de sinais pode ser considerada um exemplo de como um aspecto percebido como “deficiência” pode, na verdade, ser um caminho alternativo da evolução da espécie. Essa língua consiste em padrões espaciais encaixados de forma tridimensional uns nos outros, possui simultaneamente uma estrutura léxica e gramatical e um sistema sincrônico e espacial. O que revela um rompimento com as fronteiras bem delimitadas, pela ciência, que atribui funções específicas para cada hemisfério do cérebro. Observe-se que a língua de sinais, por ser uma função da linguagem, é processada pelo hemisfério esquerdo, apesar de sua organização espacial possuir um processamento típico do hemisfério direito. Assim, desenvolve-se um modo formal e refinado de representar o espaço, é como se o hemisfério esquerdo assumisse a função da percepção visual espacial, conferindo-lhe um caráter altamente analítico e abstrato, possibilitando uma língua com concepções visuais. 122 Destarte, a linguagem empregada pelas pessoas surdas parece inverter a lógica da neurologia de acordo com a qual o hemisfério esquerdo é especializado em tarefas analíticas, 119 MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Debora. A nova maneira de se entender a deficiência e o envelhecimento. In: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Texto para discussão n. 1040. Projeto “Muito além dos 60: os novos idosos brasileiros”. Brasília: Governo Federal, 2004. p. 8-9. Disponível em: Acesso em: 25 jan. 2017. 120 CANGUILEM, Georges. O normal e o patológico. 6 ed. Tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 52. 121 Ibidem, p.53. 122SACKS, Oliver. Vendo Vozes: Uma viagem ao mundo dos surdos. Tradução Laura Texeira Motta. São Paulo: Conpanhia das Letras, 2010. p. 77-93. 50 sobretudo, na análise léxica e gramatical, que possibilitam o entendimento da língua falada. Enquanto o hemisfério direito é considerado de função complementar, habilitado para lidar com percepções em crônicas em vez de análises sequenciais e, sobretudo, com o mundo visual e espacial. Uma descoberta como essa levanta questões fundamentais quanto ao grau em que o córtex cerebral está preso a restrições genéticas inatas.123 Nesse âmbito, destaca-se a vulnerabilidade da valoração do que é o normal, pois esta se encontra a mercê dos aspectos sociais da época, do meio e da evolução. Outro ponto nevrálgico do problema seria a ausência de distinção entre “anomalia” e “anormal”. O “anômalo” seria uma descontinuidade no plano morfológico da espécie que em nada impede a continuidade da vida, enquanto o “anormal” implica um obstáculo ao exercício de funções ou desenvolvimento vital, ou seja, no anormal está implícita uma valoração negativa.124 Nesse ponto, apresenta-se a importância da análise subjetiva, visto que essa valoração negativa da anormalidade só pode ser feita pelo indivíduo, na medida em que se considera como patológico.125 Dessa forma, demonstra-se que a classificação do que seja normal através de uma média de frequência é inviável, pois desconsidera a dimensão subjetiva e singular do patológico para cada sujeito.126 É justamente esse aspecto subjetivo que o novo modelo de compreensão da deficiência vai buscar resgatar, afastando-se da perspectiva médica, ao considerar que os diferentes modos de funcionamento de um organismo representam a diversidade genética humana e não um desvio de um padrão ideal. O desvio é localizado na sociedade, que não está preparada para atender às necessidades de todos, condenando as pessoas diferentes a viverem na exclusão e dependência, recebendo um tratamento assistencial que se restringe a tratar apenas os aspectos biológicos, sem estimular o desenvolvimento de suas potencialidades. 123 SACKS, op cit, p. 77-93. 124 CANGUILEM, op cit, p. 53. 125 Ibidem, p. 53. 126 Ibidem, p.53. 51 § 2. O modelo biopsicossocial de compreensão da deficiência Como evidenciado, o conjunto de práticas e instrumentos para a compreensão de um fenômeno, denominado de modelo ou paradigma, retrata as tendências científicas e culturais de cada época e, portanto, evoluem com o tempo. Nesse cenário, o modelo biopsicossocial começou a ser construído com base nas críticas ao paradigma médico. E a partir do antagonismo entre os dois modelos, surge o paradigma biopsicossocial, caracterizado por considerar os aspectos médicos, sociais e econômicos da deficiência. A ideia da concepção médica de que a inadequação e a dependência se encontram no cerne do drama individual da pessoa com deficiência começou a ser questionada por muitas associações, sobretudo, as constituídas por pessoas com deficiência motora.127 Nesse contexto, nasce, nos Estados Unidos e no Reino Unido, na década de 1970, o “Movimento de Vida Independente” focado no princípio fundamental de que toda vida humana tem igual valor e independentemente da natureza, complexidade ou gravidade da invalidez, as pessoas com deficiência têm direito de exercer o controle da própria vida e de participarem plenamente de todas as áreas da sociedade.128 Esse movimento pode ser considerado como o antecessor imediato do modelo social, pois elaborou a premissa segundo a qual quem melhor conhece as necessidades das pessoas com deficiência não são os médicos ou enfermeiros, mas as próprias pessoas com deficiência.129 Além de reivindicar direitos e promover a conscientização, o movimento passou a oferecer serviços, diretos ou indiretos, para auxiliar esses indivíduos a se tornarem instrumentos de sua própria emancipação social.130 Percebendo as potencialidades das pessoas com deficiência para conquistar sua autonomia, Miker Oliver apresentou o modelo social da deficiência, defendendo a abordagem holística, e afirmando que para a gênese da deficiência confluem uma série de fatores, como barreiras econômicas, culturais e sociais. Estas geram a inacessibilidade à educação, aos sistemas de comunicação e informação, aos ambientes de trabalho, ao transporte, aos edifícios 127 LEPRI, op cit, p. 110. 128 Ibidem, p. 110. 129 PALACIOS, op cit, p. 113. 130 CORDEIRO, Mariana Prioli. Ativismo e deficiência: um estudo sobre os repertórios que dão sentido à vida independente. Psicologia em revista, v.15, n.2, ago. 2009. Disponível em: Acesso em 15 jan. 2017. 52 públicos. Assim, esse paradigma atribui à sociedade a causa da deficiência, contrastando com o modelo médico.131 Sob esse prisma, algumas características biológicas podem ser consideradas deficiência em razão exclusivamente de fatores econômicos, de modo a existir em determinados lugares e em outros não. Por exemplo, um problema de visão não vai ser uma deficiência em um país onde há ampla disponibilidade de óculos. Por outro lado, em um Estado onde existem dificuldades para obter tratamento oftalmológico, até mesmo um leve déficit na visão, facilmente corrigível, pode vir a constituir uma deficiência, excluindo muitas pessoas do mercado de trabalho e da sociedade.132 Nesse sentido, as pesquisas não devem estar direcionadas apenas para a evolução da ciência, mas, sobretudo, para a mudança da realidade social,133 das estruturas, práticas e posturas que impedem a pessoa com deficiência de exercer as próprias capacidades. Para tanto, modifica-se o papel dos técnicos que, aos poucos, substituem a custódia e assistência pela atividade de facilitação, mediação e acompanhamento.134 A sociedade passa a assumir a deficiência e seus desdobramentos como assunto de todos, deslocando-se dos espaços domésticos para vida pública, da esfera privada ou de cuidados familiares para se configurar como uma questão de justiça.135 Assim, vive-se a etapa da inclusão, por meio da qual a sociedade passa a adaptar-se para poder incluir as pessoas com deficiência e, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus papéis na vida social.136 O objetivo não é mais a integração, adaptação do indivíduo aos padrões sociais, através de concessões que beneficiam apenas as pessoas com deficiência e tenta disfarçar as limitações funcionais. A partir do modelo social, o processo de integração é substituído pela inclusão, esta exige rupturas nos sistemas para atender às necessidades das pessoas com deficiência. O que não é representado como uma concessão, porque considera-se que esses indivíduos têm muito a contribuir e com sua participação todos se beneficiam. Não tem como 131 MALDONADO, op cit, p. 1103. 132 MÉGRET, op cit, p. 15. 133 OLIVER, op cit, p. 54. 134 LEPRI, op cit, p. 110. 135 NUSSBAUM, 2007 apud FEIJÓ, Alexsandro Rahbani Aragão. O controle de convencionalidade e a convenção da ONU sobre Os direitos das pessoas com deficiência: O caso da ADPF 182-0/800 – DF. Revista de Direito brasileira. Ano 3, v.6, p. 89-108. set.-dez. 2013. Disponível em Acesso em 14 março. 2016. p. 100. 136 SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 8. ed. Rio de Janeiro: WVA, 2010. p. 35. 53 norte disfarçar as limitações, mas sim valorizar a individualidade dos sujeitos com deficiência.137 Destaque-se que os instrumentos para a inclusão não se encontram apenas no poder médico para reabilitar o sujeito, mas também na reivindicação de direitos, na positivação dos mesmos, na fiscalização do poder público e, principalmente, no empoderamento dos sujeitos com deficiência para que assumam o seu lugar na sociedade. Para tanto, o paradigma social traduz a noção segundo a qual a pessoa é o principal foco a ser observado e valorizado. Assim como sua real capacidade para ser o agente ativo de suas escolhas, decisões e determinações. Considera-se que a pessoa com deficiência é, antes de tudo, um indivíduo com uma história de vida que lhe confere a realidade de possuir uma deficiência, além de outras experiências de vida como estrutura familiar, contexto sociocultural e nível econômico. 138 Nesse contexto, é imprescindível conceder um lugar para a história da pessoa com deficiência, seus traumas, anseios, sua relação com os outros, bem como a influência desse conjunto de fatores sob as limitações físicas, sensoriais ou mentais. Destarte, qualquer técnica tem sentido apenas à luz de um projeto existencial para aquela pessoa, pois é de suma importância para uma criança com problemas motores saber caminhar. Contudo, mais fundamental é que ela saiba aonde ir. Sob essa perspectiva, o desenvolvimento da criança com deficiência não pode ser visto como mera recuperação de competências, visto que as suas vivências acontecerão também em outros registros de tipo qualitativo.139 Ademais, o elemento mais significativo desse novo modelo é a introdução do tema dos direitos humanos como parâmetro para a leitura do fenômeno. O indivíduo com deficiência deve ser considerado à luz dos direitos inerentes a todos os homens e essa condição obriga as instituições a colocar em prática todas as medidas e ações para que esses sujeitos possam gozar plenamente dos direitos e das liberdades fundamentais.140 Uma das conseqüências de incluir a deficiência na perspectiva dos direitos humanos é estender o sentido da categoria “deficiente”, retirando-a da esfera do inesperado e transformando-a em algo recorrente, um fato ordinário e previsível como o envelhecimento, em razão do qual todos podem ter dificuldades para participar da sociedade, caso esta não se torne acessível. Da mesma forma, as mulheres grávidas podem experimentar restrições no 137WERNECK, op cit, p.16-17. 138MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde de pessoas com deficiência. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. p. 44. 139 MORETTI, 2002, apud LEPRI, 2012, p. 120. 140 LEPRI, op cit, p. 111. 54 uso dos transportes públicos à semelhança das pessoas com comprometimento do aparelho locomotor. 141 Sob esse ângulo, a deficiência deixa de ser vista como uma tragédia pessoal, um evento raro na trajetória da maioria da população. Em face disso, perde o sentido a lógica dos binômios normalidade/anormalidade, saúde/doença, bem-estar /mal-estar, pois estes não são condições determinadas, são eventos que fazem parte da vida.142 A partir desse raciocínio, a deficiência torna-se uma possibilidade da condição humana, as dificuldades de inclusão que sofrem as pessoas com deficiência são resultados do preconceito e intolerância da sociedade, que impõe obstáculos físicos e atitudinais a sua plena participação. Destarte, o indivíduo com deficiência passa a ser uma categoria que sofre discriminação, assim como as mulheres, os negros, os homossexuais. E a forma para melhorar suas condições de vida não é apenas a assistência médica, mas a garantia de direitos. As raízes dessa discriminação encontram-se na cultura da normalidade, compreendida como uma expectativa biomédica de padrão de funcionamento da espécie, que descreve alguns corpos como indesejáveis, por não atenderem as demandas de produtividade e adequação às normas sociais. A deficiência traduz, portanto, a opressão ao corpo com impedimentos e deve ser entendida em termos políticos e não mais estritamente médicos.143 Por esse viés, ao definir deficiência como um problema social, esses sujeitos passam a ser percebidos como vítimas coletivas de uma sociedade incapacitante, ao invés de vítimas individuais das circunstâncias, dignas de pena e assistência. Consequentemente, essa visão é traduzida para políticas sociais com o objetivo de eliminar as barreiras sociais e comportamentais, em vez de compensar as pessoas individualmente.144 Nesse âmbito, a luta pela transformação da sociedade depende das pessoas com deficiência se reconhecerem como sujeitos históricos, portadores de uma identidade coletiva, com capacidade de auto-organização e autodeterminação, interligados por formas de vida com interesses e valores comuns e, compartilhando conflitos, lutas cotidianas que expressam privações e demandas por direitos. Através desse reconhecimento, esse grupo poderá ser 141 DINIZ, Debora; BARBOSA, Lívia; SANTOS, Wederson Rufino, dos. Deficiência, Direitos Humanos e Justiça. Revista Internacional de Direitos Humanos- SUR. v. 6 , n. 11. dez. 2009. p. 65-77. Disponível em< http://sur.conectas.org/ > Acesso em 6 nov. 2016. p. 70. 142 LEPRI, op cit, p. 120. 143 DINIZ; BARBOSA; SANTOS, op cit, p. 23. 144 PALACIOS e BARRIFI, op cit, p. 57. 55 legitimado como força transformadora e instituidora de uma sociedade democrática, participativa e igualitária.145 Observe-se que para o modelo social se consolidar como um novo paradigma era necessário se afastar da concepção anterior exclusivamente médica. Entretanto, essa perspectiva radical, de enfatizar os fatores sociais como causa da deficiência em detrimento da realidade biológica subjacente, suscitou algumas críticas. Estas alertaram para a insuficiência de uma teoria que pretende ser apenas um “manifesto de direitos”, fracassando em reconhecer e abordar as questões genuínas de indivíduos que enfrentam, devido à deficiência, dificuldades em termos de saúde, bem-estar e capacidades individuais.146 As vozes da crítica advertiram sobre o fato de que, em alguns casos, as melhores intenções e as adaptações mais avançadas podem ainda não ser capazes de eliminar os efeitos de impedimentos físicos e mentais graves. Dessa forma, o uso exclusivo do modelo de direitos humanos para proteger as pessoas com deficiência pode ser mais benéfico para alguns indivíduos do que para outros. Com base nessas críticas, surge a perspectiva de considerar a interação entre os fatores biomédicos e sociais no surgimento da deficiência. Essa ideia se consolidou no modelo biopsicossocial.147 No plano técnico, a concepção biopsicossocial foi materializada, em 2001, na revisão do instrumento da Organização Mundial da Saúde a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF).148 Esta descreve a funcionalidade e a incapacidade relacionadas às condições de saúde, identificando o que uma pessoa “pode ou não pode fazer na sua vida diária”, tendo em vista as funções dos órgãos ou sistemas e estruturas do corpo, as limitações de atividades e a participação social . A Classificação define tanto componentes da saúde, como componentes de "bem-estar" (tais como educação, trabalho.) .149 Segundo a OMS, a CID-10 (Classificação Internacional de Doenças) e a CIF são complementares: a informação sobre o diagnóstico acrescido da funcionalidade fornece um quadro mais amplo sobre a saúde da pessoa. Por exemplo, duas pessoas com a mesma doença 145 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3 ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001, p. 240. 146 SILECCHIA, op cit, p. 114. 147 Ibidem, p. 114. 148 LEPRI, op cit, p. 111. 149BUCHALLA, Cassia Maria; FARIAS, Norma. A Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da Organização Mundial da Saúde: Conceitos, Usos e Perspectivas. Revista Brasileira Epidemiol, v. 8, n. 2, p. 93-187, 2005. Disponível em:< http://www.rinam.com.br/files/REFERENCIAS_AClassificaoInternacionaldeFuncionalidadeIncapacidadeeSade. pdf> Acesso em: 03 dez. 2013. p. 98. 56 podem ter diferentes níveis de funcionalidade, e duas pessoas com o mesmo nível de funcionalidade não têm necessariamente a mesma condição de saúde.150 Esse instrumento é baseado, portanto, em uma abordagem biopsicossocial, pois se destaca do biomédico, fundamentado no diagnóstico etiológico da disfunção, evoluindo para um modelo que incorpora as três dimensões: a biomédica, a psicológica e a social. Cada nível age sobre e sofre a ação dos demais, de modo que a deficiência se caracteriza pela presença de transtornos orgânicos nos sistemas, órgãos e estruturas corporais; a incapacidade é descrita como os reflexos da deficiência no desempenho funcional das atividades cotidianas, que se apresenta às margens da média normal; e a desvantagem é o modo de adaptação do indivíduo ao meio ambiente em face da deficiência e da incapacidade.151 Nessa seara, é possível existir deficiência sem limitação da capacidade, como por exemplo a deformação na lepra, que não tem nenhum efeito sobre a capacidade da pessoa. Por outro lado, pode ocorrer problemas de desempenho sem limitações na capacidade, seria o caso de uma pessoa que passou muitos anos internada em hospital psiquiátrico e, devido a essa institucionalização prolongada, perdeu suas habilidades sociais, embora seus sintomas mentais estejam controlados.152 É importante destacar que a CIF é um instrumento internacional à disposição dos profissionais que trabalham com a deficiência, não é uma norma capaz de estabelecer esses parâmetros de forma vinculante. A normatização desse modelo irá ocorrer através da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com deficiência (2006), que adota um conceito de pessoa com deficiência à luz do paradigma biopsicossocial. § 3. O conceito de pessoa com deficiência na Convenção: A Consagração do modelo biopsicossocial A palavra definir remete à ideia de qualificar, determinar, especificar, apontar as características identificadoras. Embora o significado pareça simplório, não é o simples produto de uma observação empírica e apresenta-se mais complexa do que se imagina, visto que a definição de algo ou alguém está impregnada de ideologia e valoração social. Nessa perspectiva, à definição de pessoa com deficiência está implícita a forma de tratamento que 150BUCHALLA e FARIAS, op cit, p. 98. 151 Ibidem, 2005, p.99. 152 PALACIOS e BARRIFI, op cit, p.63. 57 deve ser a ela destinada, as diretrizes das políticas públicas a serem realizadas e até mesmo o modo como essas pessoas são enxergadas pelos outros. A Convenção das Nações Unidas define, no art. 1º, pessoa com deficiência como os indivíduos que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial cuja participação plena e efetiva na sociedade é obstada pela interação dos seus impedimentos com as diversas barreiras ambientais. Sublinhe-se que essa definição não utiliza o termo “deficiência” para qualificar a característica específica da pessoa (surdez, cegueira, lesão medular.), esta é denominada de “impedimento” e a ele isoladamente não é atribuído qualquer prejuízo para inclusão social. É a partir da interação dessa característica com as barreiras do ambiente que é gerada a obstrução da participação plena na sociedade. Assim, os pressupostos do modelo social encontram-se bem delineados, pois há o reconhecimento do meio socioeconômico como causa ou fator de agravamento da deficiência. A ênfase do conceito recai, portanto, na interação entre dois grupos de fatores “individuais” e “sociais”. Essa inter-relação pode ser melhor explicada através da seguinte fórmula matemática: deficiência= limitação funcional x ambiente. Quando o ambiente é totalmente acessível, seu valor pode corresponder a 0. Dessa forma, uma limitação funcional como a surdez, a qual se atribui o valor 8, em face do acesso a recursos como Linguagem de Sinais e aparelhos auditivos, o resultado do impacto da deficiência na vida da pessoa pode ser zero ou nulo. A deficiência não deixou de existir, mas ela deixou de ser um problema para aquele indivíduo, pois não tem impactos negativos sobre a sua vida e passou a representar a diversidade típica da espécie humanidade 153 Por outro lado, uma limitação funcional pequena, quando se depara com um ambiente altamente restritivo (equivalendo ao valor 9 ou até 10) produzirá um resultado elevado. Por exemplo, um problema motor que demande o uso de muletas, limitação funcional equivale a uma dificuldade leve de valor 2, em interação com um ambiente com barreiras físicas como a falta de acessibilidade das calçadas, dos transportes públicos, dos recursos de reabilitação, resultará em uma deficiência de nível elevado: Deficiência = (limitação) 2 X (ambiente) 10 = 20.154 A questão, por conseguinte, não é o prejuízo causado pela especificidade do corpo, mas o ambiente que transforma essa característica em desvantagem, pois quando as pessoas com deficiência podem competir em condições que não lhe resultam adversas, podem ter 153 RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. Direito à intimidade e à vida privada. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord.). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Parte II, Cap. 1. p. 147-161. p. 148. 154 Ibidem, p. 149. 58 desempenho igual ou mesmo superior ao das outras pessoas. Prova disso são os tempos de cadeirantes em maratonas sempre muito menores do que os de pessoas que usam suas pernas. Não é o fato de ter uma cadeira de rodas como prótese que prejudica o desempenho de alguém. Os seres humanos já usam rotineiramente próteses, para otimizar o percurso de longas distâncias, tais como carros e ônibus. A diferença é que o espaço público já está organizado para lidar com essas próteses, mas não para lidar com as que são utilizadas por pessoas com deficiência.155 Sob essa ótica, salienta-se que a deficiência deve ser entendida como um conceito fluído, um contínuo com graus de variação de acordo com as possibilidades do ambiente de oferecer o apoio necessário e potencializar as capacidades individuais.156 Destarte, as limitações só se convertem em deficiência em razão da interação do indivíduo com um ambiente incapaz de proporcionar o apoio adequado para reduzir suas limitações. Nesse âmbito, a questão da acessibilidade encontra-se implicitamente inserida na definição de pessoa com deficiência, pois será através da promoção desta que será possível a eliminação das barreiras, permitindo a participação de qualquer pessoa na sociedade. Essa participação será plena e efetiva quando não houver contexto no qual o indivíduo fique na posição de pessoa com deficiência.157 É importante destacar que as barreiras não são apenas físicas, são também atitudinais, visto que o modo como os membros da sociedade interagem com os sujeitos com deficiência pode se configurar como barreiras, por traduzirem preconceito e desvalorização. Destarte, é imprescindível considerar a “construção social da deficiência”, que corresponde ao conjunto de expectativas dirigidas aos indivíduos desse grupo que orientam as relações interpessoais.158 Em face dessa multiplicidade de fatores que podem funcionar como barreiras para a inclusão da pessoa com deficiência, o conceito da Convenção de Nova York (2006) não específica a natureza das barreiras, mas sim dos impedimentos: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou 155 NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da Justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento a espécie. Tradução Susana de Castro. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. p. 146. 156 SCHALOCK, Roberto, L. Hacia una nueva concepción de la discapacidad. In: JORNADAS CIENTÍFICAS DE INVESTIGACIÓN SOBRE PERSONAS CON DISCAPACIDAD UNIVERSIDAD DE SALAMANCA, 3, 1999, Espanha. Disponível em: < http://campus.usal.es/~inico/investigacion/jornadas/jornada3/actas/conf6> Acesso em 24 de nov. 2015. Não paginado. 157 VOTOLIN, Elvis Donizeti. Os operadores do direito com deficiência e a acessibilidade ao conteúdo dos atos processuais. COLÓQUIO DE PESQUISA: PANORAMA DE PESQUISA EM DIREITO, 2 set. 2011, Osasco: EDIFIEO. Disponível em: Acesso em 18 fev. 2015. p. 78-79. 158 OMOTE, Sadao. Deficiência e não deficiência: recortes do mesmo tecido. Revista Brasileira de Educação Especial, v.1, n.2, p. 65-73, 1994. p. 68. 59 sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação (...) (art. 1°)”. Registre-se que a delegação do Brasil apresentou uma proposta para definir pessoa com deficiência como aquela que apresenta limitações físicas, sensoriais e intelectuais, as quais em interação com fatores políticos, culturais, tecnológicos, econômicos e sociais têm sua participação social afetada de acordo com o grau de incidência desses fatores.159 Entretanto, durante as discussões, essa explicitação dos fatores de discrímen recebeu forte resistência, sobretudo, de países como a China, Índia e Rússia, tendo em vista os reflexos que causariam nas políticas públicas, considerando a enorme massa populacional desses países. A solução encontrada foi elencar exemplificativamente e de forma não taxativa os fatores políticos de caracterização das deficiências no preâmbulo nas alíneas (e) e (v), assim dispostas160: e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. v) Reconhecendo a importância da acessibilidade aos meios físico, social, econômico e cultural, à saúde, à educação e à informação e comunicação, para possibilitar às pessoas com deficiência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.161 Dessa forma, a partir da interpretação sistêmica do art. 1° e das disposições do preâmbulo, fica claro a exemplificação das espécies de barreiras. No entanto, as disposições contidas no preâmbulo não possuem a força vinculante daquelas do corpo do tratado, são apenas diretrizes para auxiliar na compreensão do texto normativo. Assim, encontrou-se um paliativo em relação aos Estados que eram contrários a especificação das barreiras na Convenção. Nesse contexto, é crucial ressaltar que o tratado também não especifica o que é a “deficiência”, a definição apresentada é de “Pessoa com deficiência”. Os Estados escolheram adotar um conceito amplo desse grupo e deixar a definição de “deficiência”, que seria o 159 FONSECA. A reforma constitucional empreendida pela ratificação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência aprovada pela Organização das Nações Unida, p. 113. 160 Ibidem, p. 107. 161 BRASIL. Decreto-Lei nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Disponível em: . Acesso em: 29 de maio. 2013. 60 critério para pertencer ou não a este segmento, a cargo das legislações nacionais,162 porquanto uma definição operacional como esta delimita um quantitativo cuja abrangência implicará no aumento do ônus com políticas públicas para os Estados Partes. Ademais, argumentou-se que uma definição de deficiência inevitavelmente recairia no modelo médico, caracterizado por enfatizar as características biológicas. Também foi ponderado que a deficiência é um conceito em evolução, variando entre as sociedades, de modo que delimitar a definição poderia obstar a sua aplicabilidade, além de impor um conceito ocidental de deficiência aos sistemas culturais não-ocidentais.163 Assim, a definição de pessoa com deficiência do tratado em estudo faz referência apenas à natureza das limitações funcionais “física, mental, intelectual ou sensorial” e o seu caráter de longo prazo. O que certamente exclui as pessoas com deficiências de curto prazo decorrentes de doenças e lesões traumáticas e pessoas com condições episódicas como, por exemplo, transtornos de humor.164 Contudo, deve-se destacar que a taxonomia dos tipos de deficiência é aberta, indicando quem, no mínimo, deve ser considerada pessoa com deficiência. Os Estados Partes, podem ampliar o conceito positivado para abarcar também as deficiências temporárias, assim como fez a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999).165 Por outro viés, esse conceito aberto e focado na interação “limitação-ambiente” não passou imune às críticas, uma vez que pela redação do art. 1° da Convenção de Nova York (2006), a proteção prevista no tratado não é desencadeada pelas “limitações funcionais”, mas sim pela deficiência (produto da interação com o ambiente que provoca discriminação). Ou seja, a proteção é direcionada para as pessoas já submetidas a práticas discriminatórias e à opressão em razão da deficiência. Os indivíduos que têm impedimentos de ordem biológica e que apenas potencialmente poderiam ser discriminados não estão incluídos nesse conceito.166 Alguns críticos ressaltam que a Convenção pouco enfatiza os aspectos médicos, os quais de fato podem melhorar as condições de vida de pessoas com deficiências graves, como 162 GABURRI, Fernando. As ações afirmativas e as minorias no Brasil: O princípio da igualdade como meio de viabilização do pleno exercício de direitos humanos de minorias e grupos vulneráveis. In: JUBILUT, Liliana Lyra; MELO, Alexandre Gustavo, et al. (Coord). Direito à diferença. Aspectos institucionais e instrumentais de proteção às minorias e aos grupos vulneráveis. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 195. 163 KAYESS e FRENCH, op cit, p. 23. 164 KAYESS e FRENCH, op cit, p. 24. 165LOPES, Laís Figueiredo, de. Artigo 1. Propósitos. In: DIAS, Joelson. et.al. (Org). Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 3 ed. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2014. p. 26-36. 166 KAYESS e FRENCH, op cit, p. 22. 61 a prevenção ou o progresso científico sobre limitações biológicas. 167 Tendo em vista que as estatísticas mostram uma correlação impressionante entre deficiência e pobreza, a ênfase na prevenção das deficiências evitáveis seria imprescindível, através de medidas contra a desnutrição, poluição ambiental, falta de higiene, pré-natal inadequado e os acidentes de todos os tipos.168 . Destaque-se que, no art. 25 (b), o tratado estabelece como dever dos Estados propiciar serviços de saúde específicos para as pessoas com deficiência, de acordo com as suas necessidade, inclusive diagnóstico e intervenção precoces, bem como serviços projetados para reduzir ao máximo e prevenir deficiências adicionais. Dessa forma, embora os aspectos relacionados à prevenção e ao tratamento médico tenham sido abordados em um único dispositivo, não se pode considerar que foram negligenciados. Mas pode-se admitir que as medidas para cumprir com esse objetivo poderiam ter sido melhor especificadas. Nesse cenário, importa sublinhar que a Convenção pretendeu promover uma ruptura com o modelo exclusivamente médico e, para tanto, precisava ser incisiva em relação aos elementos predominantes do paradigma social. O que não significa que as suas omissões não possam ser supridas pelas legislações nacionais, pois, como dispõe o art. 4°, os dispositivos da Convenção não afastam a aplicação da legislação nacional, regulamentos ou costumes, quando estes forem mais favoráveis à pessoa com deficiência. 169 Destarte, o conceito apresentado por esse tratado pode ser considerado como uma síntese do modelo biopsicossocial, pelo fato de adotar como base a interação entre ambiente e limitação funcional, sem excluir os aspectos médicos. Embora o conteúdo do tratado, de modo geral, enfatize a eliminação das barreiras contextuais. Nisso reside o seu aspecto inovador, através do qual se pretende promover alterações profundas nos ordenamentos jurídicos internos, na medida em que essa concepção passará a ser um pressuposto para a elaboração de qualquer legislação ou política pública nessa seara. Acrescente-se que a prevalência do conteúdo do tratado em estudo sob a legislação pátria, e, consequentemente o maior ou menor grau de sua observância, irá depender da forma 167 SILECCHIA, op cit, p. 113. 168 Ibidem, p. 113. 169 Alguns doutrinadores consideram que a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência adota de forma radical o modelo social, criando uma falsa dicotomia com o modelo médico, o que causa prejuízo para as pessoas com deficiência que de fato se beneficiam do tratamento médico e dos avanços científicos. Nesse sentido, será importante que os esforços de interpretação e implementação da Convenção penetrem além das ideias do modelo social populista para uma compreensão mais sofisticada de comprometimento e incapacidade relacionada ao contexto social. Além disso, é preciso reconhecer que apesar da extensa exposição da Convenção, os direitos das pessoas com deficiência em algumas áreas cruciais, incluindo bioética e tratamento obrigatório, não passou sequer de raspão pelo texto do tratado. KAYESS e FRENCH, op cit, p.25. 62 de incorporação da norma internacional por cada país. Será a partir do status com que esse acordo internacional é acolhido no ordenamento jurídico nacional, que será possível a invalidação de legislações com ele incompatíveis. Nesse contexto, o Brasil apresenta a peculiaridade de ter atribuído à Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência o status de equivalência de emenda constitucional, acarretando conseqüências importantes para o modo de efetivação desse tratado. Capítulo 2. A FORÇA NORMATIVA DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO BRASIL O ordenamento jurídico de um Estado é organizado na forma de um sistema. No qual, de acordo com a concepção Kelseniana, as normas de menor escalão encontram o seu fundamento de validade das normas superiores. Nesse contexto, a Constituição encontra-se situada no topo da pirâmide, por conter os preceitos fundamentais estruturantes do arcabouço jurídico, servindo suas normas como parâmetro para extirpar do sistema os comandos normativos com ela incompatíveis, mantendo, assim, a harmonia do todo.170 A partir desse pressuposto, a força normativa de uma legislação corresponde ao poder que lhe é atribuído para impor suas disposições sobre as demais leis. No caso dos tratados internacionais, o maior ou menor grau da sua força normativa estará vinculado à forma de incorporação, a partir da qual será delimitada a sua hierarquia dentro do ordenamento jurídico. No Brasil, a Constituição de 1988 prevê a possibilidade dos tratados de direitos humanos serem alçados à categoria de maior força normativa, ou seja, com status de norma constitucional. Porém, existe a polêmica se esse atributo deriva da sua materialidade, com base no § 2° do art. 5° da Constituição ou apenas do caráter formal do processo de incorporação pelo rito do § 3° do mesmo dispositivo. Em face desse panorama, o presente capítulo irá investigar como ocorreu o processo de incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência; o significado desse processo diferenciado de incorporação para doutrina e para a jurisprudência; as conseqüências da atribuição da máxima força normativa à Convenção de Nova York (2006); e os impactos sofridos pela legislação nacional referente à proteção desse grupo em face das novas normas constitucionais. 170 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução José Cretella Júnior e Agnes Cretella. 7 ed. São Paulo: RT, 2011. p. 50-52. 63 Seção 1. A hierarquia da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência no ordenamento jurídico brasileiro A hierarquia e a força normativa de uma legislação deveriam ser termos intercambiáveis, de modo que a atribuição de determinado status hierárquico a uma norma deveria dotá-la da correspondente força normativa. Entretanto, no ordenamento jurídico brasileiro, essa lógica não se aplica, de forma tão cristalina, aos tratados internacionais, porquanto não existe uma norma constitucional expressa determinando a hierarquia dos tratados dessa espécie. O entendimento sobre o tema é extraído do art. 5° da Constituição Federal e dos seus parágrafos 2° e 3°. Sob essa perspectiva, é importante elucidar como ocorreu a incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, detalhando os atos que vincularam o Estado brasileiro no âmbito externo e interno e a participação do Executivo e Legislativo em cada fase. Procura-se observar quais as contribuições que esse processo de incorporação pode acrescentar às discussões pertinentes a esse tema, na medida em que esse tratado foi o primeiro a possuir natureza de emenda constitucional. Em seguida, busca-se evidenciar os fatores que levaram a escolha pelo o rito especial de incorporação, a partir do questionamento de por que foi atribuído a esse tratado em particular uma maior força normativa e não a outros que também abordam a proteção de minorias. Em face da conquista da formalização da qualidade constitucional da Convenção em estudo, torna-se salutar compreender qual o significado desse status dentro da discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da hierarquia dos tratados de direitos humanos no Brasil; bem como de que maneira o atributo de emenda constitucional pode garantir à Convenção uma maior efetividade. 64 § 1° O processo de incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência A incorporação de um tratado internacional é o processo através do qual uma norma é dotada de eficácia no plano interno, sinalizando o momento em que esta pode ser invocada como obrigatória e, consequentemente, está apta para a defesa de direitos. É importante ressaltar que a incorporação não se confunde com os processos que vinculam o Estado internacionalmente. Estes acontecem no plano externo, enquanto a incorporação se processa através de atos executados no âmbito nacional. Para consagrar a vinculação internacional do Brasil com a Convenção de Nova York (2006), o Estado assinou o referido instrumento em 30 de março de 2007, em conjunto com os demais países presentes na cerimônia de assinatura.171 Conforme dispõe o art. 84, VIII da Constituição Federal de 1988, é competência privativa do Presidente da República celebrar tratados, convenções ou atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional. No caso da Convenção em estudo, essa competência foi delegada172 ao Secretário Adjunto da Secretaria Especial de Direitos Humanos Rogério Sottilli. 173 Ressalte-se que o vocábulo “celebração” faz referência a uma solenidade que simboliza o engajamento internacional do Estado. Esse ato formal se concretiza através da assinatura do Presidente da República. Contudo, não vincula definitivamente o Estado aos outros signatários, tão pouco significa que ele irá manifestar seu consentimento em obrigar-se. Tal autenticação, conforme o art. 10 da Convenção de Viena de 1969, corresponde apenas ao 171 Em 30 de março de 2007, na cerimônia de assinatura, ocorrida na sede da ONU, em Nova York, 84 países tornaram-se signatários da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e 44 do protocolo facultativo. Na ocasião, a Jamaica foi o único país entre os signatários que aderiu ao tratado no ato de sua assinatura, pois o seu sistema jurídico nacional assim o permite. Os demais países, em regra, deverão passar por um processo de ratificação que envolve o referendo nacional. (LOPES, Laís Vanessa Carvalho Figueirêdo, de. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, seu Protocolo Facultativo e a Acessibilidade. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP, São Paulo, 2009. p. 73.) 172Artigo 7 (1) da Convenção de Viena de 1969: Uma pessoa é considerada representante de um Estado para a adoção ou autenticação do texto de um tratado ou para expressar o consentimento do Estado em obrigar-se por um tratado se: a) apresentar plenos poderes apropriados; ou b) a prática dos Estados interessados ou outras circunstâncias indicarem que a intenção do Estado era considerar essa pessoa seu representante para esses fins e dispensar os plenos poderes. 173 SOUZA, Rafael Barreto. Nada sobre nós, sem nós: uma análise da legitimidade jurídica da convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Revista Opinião Jurídica- Fortaleza, v. 11, n. 15, p. 213, 2013. Disponível em Acesso em 13 jan. 2017. p. 223. 65 reconhecimento unilateral do Estado do texto definitivo do tratado previamente negociado.174 Ademais, de acordo com o art. 18 da Convenção de Viena, a partir da assinatura, se impõe ao ente estatal a abstenção de praticar atos capazes de frustrar o objeto e a finalidade do tratado. A pessoa jurídica de Direito Internacional signatária de um tratado exprime definitivamente sua vontade de obrigar-se ao seu cumprimento através da ratificação.175 Esta representa uma confirmação, perante outras pessoas jurídicas de Direito das gentes,176 do conteúdo acordado anteriormente em caráter provisório.177 No Brasil, o intervalo entre a assinatura e a ratificação é preenchido pela manifestação do Congresso Nacional acerca da sua concordância com a ratificação ou não do acordo internacional. Competência esta derivada do art. 84, VIII, que ao instituir a atribuição do Presidente da República para celebrar tratados, faz a ressalva da sujeição deste ato ao referendo parlamentar. A remessa do tratado ao Congresso ocorre por mensagem do Presidente da República, acompanhada do inteiro teor do compromisso e da exposição de motivos elaborada pelo Ministro das relações exteriores.178 Nessa esteira, o trâmite para aprovação da Convenção de Nova York (2006) iniciou-se no Ministério das relações exteriores, sob a avaliação da sua consultoria jurídica, seguindo para a Casa Civil. Nesta foi elaborada e aposta a correspondente exposição de motivos, com o apoio do órgão específico do Poder Executivo Federal que trata da matéria, qual seja, a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) ligada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH). O documento sugeria ao Congresso Nacional que fosse observada a regra da emenda constitucional n. 45/04 para a atribuição do status de equivalência de emenda constitucional ao tratado.179 Em seguida, o Executivo encaminhou a Convenção ao Congresso por meio da Mensagem Presidencial (MSC) n. 711/07, datada de 02 de outubro de 2007. Aprovado o requerimento de tramitação em regime de urgência, a Mensagem foi inicialmente recebida pela Presidência da Câmara dos Deputados, em novembro de 2007, para análise e votação. Em seguida, foi encaminhada para o Senado Federal.180 Destaque-se que entre os 174 CARREAU, Dominique; BICHARA, Jahyr-Philippe. Direito Internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 143. 175 Destaque-se que a ratificação não é a única forma de expressão do consentimento definitivo dos Estados signatários, conforme art. 11 da Convenção de Viena de 1969: O consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado pode manifestar-se pela assinatura, troca dos instrumentos constitutivos do tratado, ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, ou por quaisquer outros meios, se assim acordado. 176 REZEK,Francisco. Direito Internacional Público. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 74. 177 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 163. 178REZEK, op cit, p. 89. 179 LOPES, L. V, op cit, p. 73. 180 SOUZA R.B, op cit, p. 223. 66 parlamentares não havia discordância sobre o mérito da ratificação, todos concordavam com o conteúdo da Convenção e com a sua incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro.181 Ressalte-se que a conjunção de atuações entre os poderes Executivo e Legislativo na formação dos tratados internacionais atende aos pressupostos do Estado Democrático de Direito, pois implica o controle exercido pelo Parlamento, representante popular, sob os atos do Executivo.182 Nesse contexto, a ratificação da Convenção de Nova York (2006) foi um exemplo do exercício de cidadania em prol da efetivação dos direitos da pessoa com deficiência,183 uma vez que foi fruto de uma intensa mobilização da sociedade civil brasileira, envolveu organizações não governamentais, militantes na área dos direitos humanos, autoridades públicas e acadêmicas, que se organizaram através da campanha “Assino Inclusão,” em setembro de 2007.184 O movimento criou uma plataforma virtual através da qual todos os interessados poderiam acessar informações a respeito do tratado, do processo de ratificação e da importância do quórum qualificado. Por meio da plataforma, ocorria também o mapeamento e agregação de importantes apoios de organizações não governamentais, conselhos de direitos, universidades, empresas e órgãos públicos. A divulgação da causa se propagava nos espaços públicos com palestras, congressos e passeatas. Os militantes da causa também atuaram junto aos parlamentares, fornecendo informações escritas sobre o conteúdo do tratado e de cada etapa do processo de ratificação.185 O movimento “Assino Inclusão” ilustra como os direitos de participação política remetem à institucionalização jurídica de uma formação pública da opinião e da vontade, que pode culminar em resoluções sobre leis e políticas. Esse processo comunicativo, que visa a influenciar os destinos políticos do Estado, tem como fundamento dois aspectos do princípio do discurso: o sentido cognitivo de filtrar contribuições e temas, argumentos e informações, de tal modo que os resultados obtidos por esse caminho tenham a seu favor a suposição da aceitabilidade racional. Por outro lado, o discurso tem o sentido prático de produzir relações de entendimento, desencadeando a força produtiva da liberdade comunicativa.186 181 Ibidem, p. 223. 182 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 153. 183 LOPES, L. V, op cit, p. 80. 184 Ibidem, p. 80. 185 Ibidem, p. 81. 186HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 1v. p. 190/191. “Esse cruzamento entre normatização discursiva do direito e formação comunicativa do poder é possível, em última instância, porque no agir comunicativo os argumentos também formam motivos. (...) A vontade política 67 Vale salientar que a mobilização da sociedade civil tinha por intuito não só agilizar o processo de ratificação, mas também atribuir ao tratado a equivalência de emenda constitucional através do rito de aprovação previsto no art. 5°, § 3° da Constituição Federal.187 O referido artigo preconiza que “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.“ Observe-se que na análise da Convenção, o consenso entre os parlamentares não foi imediato. Contudo, na primeira sessão, em 13 de maio de 2008, a aprovação com status constitucional obteve 418 votos favoráveis, 11 abstenções e nenhum voto contrário à proposta. Na segunda sessão, dia 28 de maio de 2008, a aprovação se repetiu com 356 votos favoráveis, seis abstenções e nenhum voto contrário. Após a aprovação em dois turnos na Câmara, o texto convencional, já com status de Proposta de Emenda à Constituição (PEC), seguiu para o Senado Federal. A Casa Superior do Congresso aprovou, dia 2 de julho de 2008, em duas sessões realizadas em ato contínuo, com 56 votos favoráveis e nenhum contrário.188 Dessa forma, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo se transformaram no Decreto Legislativo n. 186/2008, de 9 de julho de 2008.189 E sua ratificação ocorreu em 1° de agosto do mesmo ano, quando o Brasil realizou o depósito do instrumento na ONU. A partir de então, o país passou a contar com a possibilidade de ser responsabilizado internacionalmente pelas violações aos direitos consagrados na norma internacional. Posteriormente, em 25 de agosto de 2009, o Presidente da República promulgou e fez publicar a Convenção e o Protocolo Facultativo pelo Decreto Presidencial n. 6.949/2009, conforme suas competências previstas no artigo 84, IV da Constituição.190 Nesse âmbito, surge a polêmica questão de estabelecer em qual momento o tratado internacional passa a ser obrigatório internamente, a partir da ratificação, do Decreto Legislativo ou do Decreto Executivo? A argumentação em torno da possibilidade do tratado entrar em vigor internamente a partir da ratificação pode enquadrar-se dentro da discussão acerca das relações entre o Direito de uma comunidade jurídica (...) é a expressão de uma forma de vida compartilhada subjetivamente (...) isso faz com que o peso se desloque: passa-se da formação da opinião para a da vontade.” (Habermas, 1997, p. 191-192) 187 LOPES, L. V, op cit, p. 80. 188 SOUZA, R. B, op cit, p. 223. 189 Ibidem, p. 223. 190 Ibidem, p. 223. 68 Interno e o Direito Internacional. Esta gravita em torno das teorias monistas e dualista, sob a perspectiva das técnicas de recepção, incorporação, transformação e adaptação das normas jurídicas internacionais no ordenamento do Estado.191 Nesse contexto, existem dois modelos típicos de conferir relevância às normas internacionais na ordem interna: sistemas de transformação ou de execução e o sistema de recepção ou de recepção automática. No primeiro modelo, normas internacionais precisam ser convertidas em normas de direito interno para vigorar no ordenamento estatal.192 Esse sistema traduz a concepção dualista, na qual o Direito Internacional e o Direito Interno são vistos como dois mundos separados, com fundamentos e limites distintos, não sendo possível a comunicação direta e imediata entre ambos. 193 No sistema de recepção automática, as normas internacionais vigoram internamente enquanto tais, interpretadas e integradas de acordo com os critérios de Direito Internacional, refletindo a visão monista.194 De acordo com a qual predomina uma unidade sistemática das normas de Direito Internacional e das normas de Direito interno, sendo tais esferas comunicáveis e inter-relacionadas. Sob esse prisma, seria possível que apenas o ato de ratificação do tratado pelo Poder Executivo fosse suficiente para transpor a norma do plano externo para o âmbito nacional. A incorporação seria, portanto, automática, a partir da ratificação.195 Os defensores dessa corrente no Brasil consideram o art.5º, § 1º da Constituição de 1988 como fundamento para a aplicação imediata dos tratados internacionais de direitos humanos, visto que o referido dispositivo determina a inclusão desses tratados no catálogo de direitos e garantias constitucionais, como estes possuem aplicação imediata, aqueles também seguiriam essa lógica.196 Porém, em relação aos demais tratados de Direito Internacional, a norma constitucional não estabelece qualquer regra de incorporação. 191 “Ao considerar-se a problemática das relações entre a ordem jurídica internacional e a ordem jurídica interna pode-se distinguir três áreas ou grupos de questões: uma primeira área é sobre a estrutura do Direito Internacional enquanto ordem jurídica e a sua conjugação com o Direito interno; um segundo domínio corresponde ao modo de estabelecer a relação entre as normas de Direito das Gentes e as normas de Direito interno, corresponde as formas e os processos de conferir relevância aquelas normas dentro da ordem interna através das técnicas possíveis de recepção, de incorporação, de transformação, de adaptação das normas jurídicas internacionais na ordem interna do Estado; uma terceira questão faz referências às relações hierárquicas ou funcionais entre as normas de Direito Internacional, aplicáveis na ordem interna, e as normas de Direito interno, sejam estas normas de direito constitucional ou ordinário.” (MIRANDA, op cit, p. 124) 192 Ibidem, p.130 193 Ibidem, p. 125 194 Ibidem, p. 130 195PETERS, Adriana Salgado. A Eficácia do § 3° do art. 5° da CF. In: PIOVESAN, Flávia; IKAWA, Daniela (Coord.). Direitos Humanos: Fundamentação, proteção e implementação. Perspectivas e desafios contemporâneos. Curitiba: Juruá editora, 2007. p. 221. 196PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 83. 69 Por esse viés, os tratados sobre outros assuntos, em face do silêncio constitucional, ficariam com sua vigência interna condicionada à transformação em norma de Direito pátrio através de um Decreto Presidencial.197 Sob essa ótica, a ratificação é tão somente ato de Direito Internacional e para produzir efeitos no território do Estado depende da existência de um ato jurídico normativo interno. Nesse sentido, a Carta Magna de 1988 teria adotado um sistema jurídico misto.198 Com relação aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, prevaleceria o monismo internacionalista kelseniano, dispensando-se a incorporação legislativa.199 Por outro lado, no que tange aos tratados internacionais comuns, o Brasil passaria a acolher a concepção dualista, com a exigência do Decreto de Execução para irradiar seus efeitos no plano interno.200 Ressalte-se a natureza moderada dessa concepção dualista, pois não é necessário que a lei reproduza as disposições do tratado, impõe-se apenas a promulgação internamente mediante Decreto de Execução, para somente assim produzir efeitos no plano jurídico interno.201 Em outros termos, seria um sistema de transformação implícita, quando é suficiente que as normas internacionais passem por um procedimento de natureza idêntica ao do ato legislativo pátrio.202 Todavia, a prática legislativa e jurisprudencial não adotam essa concepção monista em relação aos tratados de direitos humanos, sendo estes promulgados através de Decreto Executivo para alcançar validade no ordenamento jurídico brasileiro. Nessa direção, o STF situa o “ato de promulgação” no inter procedimental da incorporação dos tratados: 197 PETRS, op cit, p. 222. 198 Ibidem, p. 222. 199 “Por seu turno, os sistemas de recepção podem ser de recepção plena (de recepção de quaisquer normas internacionais vinculativas do Estado, independentemente das matérias) e de recepção semiplena ( recepção das normas internacionais respeitantes a certas matérias, e não a todas.). A recepção tanto pode referir-se a todo o Direito das gentes ou a normas provenientes de quaisquer fontes, como somente abranger normas de Direito Internacional geral, de Direito internacional convencional ou de Direito das Organizações Internacionais.” (MIRANDA, op cit, p. 129) 200 “No entanto, observe-se que na Constituição brasileira de 1988 não há menção expressa de adoção da teoria mista, monista ou dualista. Por isso, a doutrina predominante tem entendido que, em face do silêncio constitucional, o Brasil adota a corrente dualista, com exceção dos tratados de direitos humanos, face à proteção concedida pelos parágrafos do artigo 5º da Carta Brasileira.” (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. p. 90). 201MARQUES, Claudia Lima; MAZZUOLI, Valério Oliveira, de. O consumidor depositário infiel, os tratados de direitos humanos e o necessário diálogo das fontes nacionais e internacionais. In: Direitos Humanos: Proteção internacional dos direitos humanos. Flávia Piovesan e Márcia Garcia (org). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 7.v. p. 64. 202 MIRANDA, op cit, p. 129. 70 Superadas as fases prévias da celebração da Convenção Internacional, de sua aprovação pelo Congresso e da ratificação pelo Chefe de Estado, conclui-se com a expedição, pelo Presidente da República, de Decreto, de cuja edição derivam três efeitos básicos: a promulgação do tratado internacional; a publicação oficial do seu texto; a executoriedade do ato internacional, que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. 203 Nessa esteira, na Carta Rogatória nº 8279/Argentina, o STF reconheceu a promulgação como manifestação essencial do processo de incorporação dos atos internacionais, recusando o cumprimento de referida Carta, sob o argumento de que a Convenção sobre Cumprimento de Medidas Cautelares celebrada entre os países do Mercosul ainda não estaria em vigor por lhe faltar promulgação executiva, a despeito da sua aprovação pelo Congresso Nacional através do Decreto n. 192/95 e ratificação.204 No que tange à Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, deve-se levar em conta a peculiaridade do seu status de emenda constitucional. Tal espécie normativa, conforme o § 3º do art. 60, é promulgada pela Mesa da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, dispensando a participação do Presidente da República.205 Entretanto, tal fato foi aparentemente ignorado, pois sua promulgação, como evidenciado, ocorreu através do Decreto Presidencial n. 6.949/2009. É importante acrescentar que essa discussão poderia ficar restrita ao âmbito dos procedimentos internos, pois entre a ratificação e o Decreto Executivo existe um ato normativo anterior a ambos, a saber, o Decreto Legislativo que “referenda” a celebração do tratado. Nesse âmbito, vale refletir sobre a possibilidade deste marcar a vigência da norma internacional no plano interno, até mesmo antes da sua vigência externamente. Esse argumento encontra fundamento na análise dos dispositivos constitucionais referentes ao art. 84, III e ao art. 49, I que delimitam a participação do Congresso Nacional no processo de incorporação dos tratados. O primeiro, como evidenciado, atribui ao Parlamento a competência para referendar os atos internacionais celebrados pelo Presidente da República. 203Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n. 1480- Distrito Federal. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 26 de junho de 2001.Diário da Justiça de 8 de agosto de 2001. Disponível em: Acesso em: 07 jan. 2017. 204 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Estado da Arte da Aplicação do Direito Internacional Público no Brasil. p. 162-192. 205 Nesse contexto, com o advento do § 3° do art. 5°, da CF/88, teria ocorrido o fortalecimento da concepção monista. PETERS, op cit, p. 222. 71 Observe-se que parte da doutrina entende que esse ato parlamentar estaria dentro do exercício da atividade fiscalizadora do Poder Legislativo sob a atividade do Executivo,206 correspondendo a uma “autorização”, não a uma determinação obrigatória para que este proceda à ratificação do tratado. Nesses termos, a última palavra sobre a vinculação do Estado ao compromisso internacional caberia ao Presidente da República, a quem a Constituição de 1988 conferiu a competência privativa para celebrar tratados e a responsabilidade pela dinâmica das relações internacionais.207 A manifestação do Congresso Nacional apenas seria definitiva em caso de rejeição do tratado, hipótese em que o Presidente da República estaria impedido de proceder à ratificação, sob pena de responder por crime de responsabilidade, conforme art. 85, inc. II, da CF.208 Por essa lógica, o Decreto Legislativo não poderia representar a incorporação do tratado ao ordenamento pátrio, pois não teria sido expedido no exercício da função legiferante do Congresso e nem poderia representar a aprovação final do tratado, porque o chefe do Executivo pode não ratificá-lo.209 Nesse caso, restaria inconcluso o processo de formação da norma internacional. Por outro viés, essa argumentação é passível de questionamentos quando confrontada com o art. 49, I da CF, que complementa as disposições sobre a participação do Legislativo no processo de incorporação dos tratados: “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional.” Considerando que a grande parte dos compromissos internacionais impõe encargos às partes, ainda que estes não sejam pecuniários,210 pode-se questionar se o referendo parlamentar seria apenas uma autorização para o Chefe do Executivo ratificar o tratado, pois é através desse ato que o Estado se vincula definitivamente no plano internacional.211 206 FIGUEIREDO, Patrícia Cobianchi. Hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro antes e após a Emenda Constitucional n.45 de dezembro de 2004. In: PIOVESAN, Flávia; IKAWA, Daniela (Coord). Direitos Humanos. p. 199. 207 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O treaty-making power na Constituição brasileira de 1988: uma análise comparativa do poder de celebrar tratados à luz da dinâmica das relações internacionais. Revista Brasileira de política Internacional (Brasília), v. 44, n. 2, p. 82-108, dez. 2001. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-73292001000200005&script=sci_arttext&tlng=pt> Acesso em:14 dez. 2016. p. 100. 208 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Estado da Arte da Aplicação do Direito Internacional Público no Brasil no Alvorecer do Século XXI. p. 166. 209 FIGUEIREDO, op cit, p. 199. 210 Até mesmo tratados bilaterais para a mera dispensa de visto em passaporte tem sido regularmente submetidos à aprovação do congresso. (REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 84.) 211 A expressão “tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” exclui apenas os tratados de caráter subsidiário em relação a outros; acordos de cooperação 72 A partir da interpretação sistemáticos dos artigos 84, III e 49, I, aventa-se a hipótese do termo “resolver definitivamente” corresponder ao ato de tornar a norma internacional obrigatória no âmbito interno, uma vez que, através do Decreto Legislativo, o Congresso não apenas autoriza à ratificação, mas, sobretudo, à luz do § 3º do art. 5º, delimita a hierarquia do tratado no ordenamento jurídico brasileiro, ato que não poderia corresponder a outro processo que não o de incorporação. Essa argumentação se aplicaria ao caso da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com deficiência, aprovada pelo rito especial do § 3º do art. 5º, que lhe atribuiu status de equivalência de emenda constitucional por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008. E, simultaneamente, “autorizou” a ratificação do instrumento pelo Executivo, que ocorreu, posteriormente, em 1° de agosto de 2008. 212 Essa discussão foi suscitada no Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADPF n. 182/09, cujo objetivo era invalidar o artigo 20, § 2° da Lei n. 8.742/93, Lei Orgânica de Assistência social, que regulamenta o benefício da prestação continuada previsto no artigo 203, V, da Constituição Federal. O referido dispositivo define, para efeitos da concessão do benefício, pessoa com deficiência como aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho. Dessa forma, teria sido revogado pela Convenção de Nova York (2006), cuja definição de pessoa com deficiência é ampla e direcionada para promoção da autonomia.213 Sublinhe-se que a ação foi ajuizada em 10 de julho de 2009 e o Decreto Presidencial n. 6.949/2009, promulgando o tratado, foi publicado em 25 de agosto do mesmo ano. Na inicial, a Procuradoria Geral da República defende a plena vigência da Convenção, sob a alegação de que a exigência do Decreto Presidencial não seria aplicável aos tratados internacionais de direitos humanos aprovados pelo rito especial do art. 5°, § 3° da Constituição, uma vez que as emendas constitucionais não passam pelo crivo do Presidente da República, sendo promulgadas pelo próprio Legislativo.214 agrícola, técnica, esportiva, etc; e atos adotados no âmbito de Organizações Internacionais das quais o Brasil participe. CARREAU e BICHARA, op cit, p. 154. 212 Ressalta-se a opinião divergente do doutrinador Valério Mazzuoli: “A competência do Congresso Nacional para referendar os tratados internacionais assinados pelo Executivo (constante do art. 49, inc. I da CF), autorizando este último a ratificação do acordo, não fica suprimida pela regra do atual § 3° do art. 5° da Carta de 1988, uma vez que a participação do parlamento no processo de celebração de tratados internacionais no Brasil é uma só: aquela que aprova ou não o seu conteúdo, e mais nenhuma outra. Não há que se confundir esse referendo materializado por meio de um decreto legislativo (aprovado por maioria simples), com a segunda eventual manifestação do Congresso para fins de pretensamente decidir sobre qual status hierárquico deve ter certo tratado internacional de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro.” (MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público, p.759) 213 A questão da incompatibilidade discutida na ADPF n. 182/2009 será analisada detidamente no capítulo 2 da Segunda Parte do trabalho. 214 Registre-se a opinião divergente do doutrinador Valério Mazzuoli: Não há que se confundir a equivalência às emendas, de que trata o art. 5°, § 3°, com as próprias emendas constitucionais previstas no art. 60 da CF. (...) Daí o equívoco daqueles que lecionam no sentido de não mais haver necessidade de ratificação do tratado pelo 73 Em face das alegações, o STF encaminhou, através do Ofício n. 328/2009, uma solicitação de parecer ao Congresso Nacional sobre a matéria. Este esclareceu que a promulgação pelo Presidente da República, mediante Decreto Executivo, consiste na fase final de incorporação da normativa internacional, com vistas a atribuir publicidade e valor imperativo ao texto aprovado. Portanto, enquanto não concluído todo o ciclo do procedimento para a sua incorporação, o tratado não pode ser invocado no ordenamento pátrio, mesmo na hipótese de tratado internacional sobre direitos humanos aprovado com quórum especial.215 Ressalte-se que a Suprema Corte não se posicionou sobre o tema, porque a referida ação ainda não foi julgada. Entretanto, ressalta-se a importância de colocar em relevo essa discussão à luz do processo de incorporação da Convenção de Nova York (2006), pois trata-se do primeiro instrumento de direitos humanos com status de emenda constitucional, o que possibilita o debate de questões teóricas na prática. Importante salientar que embora a promulgação pelo Executivo ateste oficialmente a existência da lei e sua executoriedade internamente, esse procedimento foi estabelecido pela Constituição Federal para a vigência das espécies normativas elencadas no art. 59, no qual não se encontra o tratado internacional.216 A Constituição nem mesmo especifica a natureza do ato através do qual o Congresso emite o referendo “autorizando” o Executivo a ratificar o tratado. A menção a este ato como “Projeto de Decreto Legislativo” encontra-se na Resolução 17 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.217 Dessa forma, inexiste, na Carta Magna, regras sobre a internalização das normas internacionais. Em face dessa lacuna, desenvolveu-se a prática da aprovação de equiparar o tratado internacional a uma norma de Direito interno, que para sua vigência requer a sanção presidencial, conforme art. 66 da CF. Entretanto, é importante frisar que o §3º do mesmo Presidente da República e de promulgação e publicação posteriores, pelo fato de o chefe do executivo não participar da edição das emendas constitucionais sancionando-as. (...) É inclusive impossível ter um tratado internacional valor interno sem que, anteriormente, tenha sido ratificado e já se encontre em vigor no plano externo. (MAZZUOLI, Valério. Curso de Direito Internacional Público, p.759.) 215 Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 182, Relator: Ministro Celso de Mello. Acompanhamento processual. Disponível em: Acesso em 24 nov. 2016. 216 CARREAU e BICHARA, op cit, p.156. 217 Regimento Interno da Câmara dos Deputados, art. 151: Quanto à natureza de sua tramitação podem ser: j) oriundas de mensagens do Poder Executivo que versem sobre acordos, tratados, convenções, pactos, convênios, protocolos e demais instrumentos de política internacional, a partir de sua aprovação pelo órgão técnico específico, através de projeto de decreto legislativo, ou que sejam por outra forma apreciadas conclusivamente. BRASIL. Regimento Interno da Câmara dos Deputados. 17 ed. Brasília: Edições Câmara, 2016. Disponível em: Acesso em 5 jan 2017. 74 dispositivo dispõe que em face do silêncio do Presidente, decorrido o prazo de 15 dias, o Decreto Legislativo estará sancionado.218 A partir dessa disposição, pode-se considerar que a sanção não é ato imprescindível, ou seja, não é o único modo de tornar uma norma pública e exigível, o próprio Decreto Legislativo passa a ter essa função, diante da omissão do Presidente. Ademais, os § 3º e 4º do art. 66 determinam que no caso do Presidente da República não aprovar o projeto de lei, o veto será apreciado pelo Congresso Nacional, o qual poderá rejeitá-lo e determinar a sua promulgação pelo Chefe do Executivo. Assim, pode-se depreender que, na processualística constitucional de elaboração das leis, cabe ao Poder Legislativo a última palavra. Nessa esteira, se para a incorporação da norma internacional, na ausência de regra expressa, é seguido o processo da legislação interna, a expressão do art. 49, I “resolver definitivamente sobre tratados e convenções” poderia ser interpretada como decidir sobre a incorporação da norma internacional ao ordenamento jurídico brasileiro. Por outro viés, se o ato de sancionar equivale não apenas a um procedimento de promulgação, mas também de assentimento do Executivo com o conteúdo do tratado, cabe salientar que este já foi manifestado através da assinatura. E não cabe ao Congresso Nacional alterar esse conteúdo no processo de aprovação. Dessa forma, pode-se especular que um motivo razoável para exigência do Decreto Presidencial seria, além da promulgação, a concordância em relação ao status normativo atribuído pelo Congresso Nacional, conforme art. 5º, § 3º. No entanto, essa ideia estaria na contra-mão do art. 49, I, que atribui ao Congresso a competência para “resolver em definitivo” sobre a incorporação do tratado, o que inclui o seu status normativo. Como observado, a ausência de previsão constitucional acerca do processo de incorporação dos tratados internacionais suscita muitas polêmicas, cujas soluções são construídas pela doutrina e pela jurisprudência do STF. O fato da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência ter sido o primeiro tratado aprovado pelo rito especial possibilita que essas questões sejam enfrentadas na prática pela primeira vez. O que antes prevalecia apenas no plano abstrato pode se concretizar, possibilitando novas reflexões acerca do tema. Ademais, além das questões formais, não se pode deixar de ressaltar a intensa participação popular através da campanha “Assino Inclusão” para que fosse atribuído o status de emenda constitucional à Convenção em estudo. Nesse contexto, é imprescindível abordar, 218 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 143 e 157. 75 de forma mais detalhada, qual o significado desse status em face da prática jurisprudencial brasileira sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos. § 2. Os múltiplos significados da incorporação pelo § 3° do art. 5° da Constituição Federal de 1988 O rito pelo qual foi incorporada a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com deficiência no Brasil foi acrescentado à Constituição Federal de 1988 através da emenda constitucional n. 45/04, que introduziu o § 3° ao art. 5° do referido diploma. Nesse âmbito, é preciso compreender o que o Constituinte derivado buscou acrescentar para além das disposições que esse artigo já comportava. O § 2º do art. 5° dispõe: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” Para a boa parte dos doutrinadores, como Mazzuolli, Piovesan, Carvalho Ramos, Cançado Trindade, o parágrafo em exame revela o caráter exemplificativo do rol de direitos fundamentais elencados na Constituição e autoriza que direitos constantes nos tratados ratificados pelo Brasil sejam incluídos no ordenamento com o status de "norma materialmente constitucional.” 219 Vale salientar que, do ponto de vista material, a Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do Poder, à distribuição de competências, ao exercício da autoridade, à forma de governo e aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Assim, todos os conteúdos básicos referentes à composição e ao funcionamento da ordem política exprimem o aspecto material da Constituição, inclusive o respeito aos direitos fundamentais como limite às ações estatais.220 O aspecto formal, por sua vez, diz respeito às matérias enxertadas no corpo normativo da Carta Magna e que, portanto, passam a contar com a garantia e com o valor superior que lhe confere o status constitucional, embora possam não versar sobre conteúdos genuinamente constitucionais.221 219 MAZZUOLI. Valério Oliveira, de. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis: o novo modelo de controle da produção normativa doméstica sob a ótica do “diálogo das fontes”. Revista Argumenta. UENP jacarezinho, n. 15 p. 77-114, 2011. Disponível em: Acesso em 01 jan. 2015. p. 80. 220 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 81-82. 221 Ibidem, p. 82. 76 Nesse âmbito, pode-se considerar que a qualidade de “materialmente constitucionais” dos tratados internacionais de direitos humanos fundamenta-se na ideia da existência de um ponto em comum no conteúdo dos Direitos fundamentais, previstos nas Constituições e os Direitos Humanos de origem internacional, visto que ambos abordam a proteção do ser humano, embora os primeiros o façam sob a ótica da historicidade de cada Estado e os segundo por uma perspectiva universal. 222 Vale ressaltar que o processo de internacionalização dos direitos humanos acarretou a crescente adesão dos Estados às Convenções de direitos humanos, contraindo o dever de assegurar determinados direitos aos seus cidadãos, sob pena de responsabilidade internacional.223 Paralelamente, os Estados passavam pelo fenômeno do neoconstitucionalismo, que buscou atribuir às Constituições força jurídica máxima dentro do sistema normativo, em face da prática comum entre os Estado de considerá-las apenas como programas políticos que deveriam inspirar a atuação do legislador. Nesse contexto, os direitos fundamentais valiam apenas na medida em que fossem protegidos pelas leis.224 Dessa forma, a partir do neoconstitucionalismo, os direitos humanos foram incorporados às Constituições de diversos países e reconhecidos como direitos fundamentais limitadores do poder estatal.225 Pode-se considerar que esse movimento de constitucionalização dos direitos humanos está relacionado com a sua marca distintiva de historicidade, pois embora universais, surgem a partir de certas circunstâncias caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades, contra velhos poderes e nascem de modo gradual, encontrando-se em diferentes níveis de desenvolvimento em cada país.226 Desse modo, a tutela nacional e externa são complementares, porquanto os direitos fundamentais são direitos humanos protegidos com as nuances da dogmática constitucional de cada Estado. Enquanto o Direito Internacional dos direitos humanos assegura a proteção desses mesmos direitos de forma universal e abstrata, protegendo-os até mesmo contra os arbítrios do próprio ente estatal.227 222 É importante esclarecer que a expressão “direitos humanos” (ou direitos humanos fundamentais) compreende os direitos da pessoa humana reconhecidos pela ordem jurídica internacional e com pretensão de validade universal. E “direitos fundamentais” são concebidos como aqueles direitos (dentre os quais se destacam os direitos humanos) reconhecidos e positivados na esfera do Direito Constitucional. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 139. 223SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Filosofia e teoria constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 113-146, 2009. p. 140. 224Ibidem, p. 120. 225 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 139. 226 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 5-6. 227 “Levar a sério aqueles valores, ou seja, os dos direitos humanos proclamados pelas Cartas Constitucionais, significa, consequentemente, ter a coragem de desancorá-los da cidadania, ou seja, desvencilha-los do último 77 Pelo exposto, pode-se sublinhar que embora pareça lógica a interpretação de que o § 2° do art. 5° atribui natureza materialmente constitucional aos tratados de direitos humanos incorporados pelo Brasil, essa não é uma afirmação pacífica e a celeuma doutrinária e jurisprudencial acerca do status hierárquico desses instrumentos jurídicos no ordenamento brasileiro continua progredindo no cenário nacional. Nesse contexto, o STF decidiu, inicialmente, que todos os tratados têm hierarquia de lei ordinária, sem abordar a questão específica dos tratados de direitos humanos.228 Assim, em face de um conflito entre um tratado e a Constituição, deve esta prevalecer. O status infraconstitucional dos tratados internacionais foi fixado pela primeira vez no julgamento do Recurso extraordinário n. 80.004, de 1977.229 Sob essa ótica, em caso de conflito entre tratado internacional e lei ordinária, a solução consistiria na aplicação do critério cronológico ou do critério da especialidade.230 Essa concepção não apenas compromete o princípio da boa-fé, mas constitui afronta ao art. 27 da Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados, segundo o qual uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um acordo internacional.231 privilégio de status que permaneceu no Direito moderno. E isso significa reconhecer seu caráter supra-estatal, garanti-los não apenas dentro, mas também fora e contra todos os Estados, e assim dar um fim a esse grande apartheid que exclui do seu aproveitamento a maioria da humanidade.” FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Justiça e direito). p. 58. 228Registre-se que, anteriormente a 1977, há diversos acórdãos do STF consagrando o primado do Direito Internacional, como é o caso da Apelação Cível n. 9.587, de 1951, na qual o Supremo Tribunal Federal decidiu unanimemente que um tratado revoga as leis anteriores. No pedido de extradição n. 07 de 1913, o STF declarou está em vigor e aplicável um tratado, apesar de haver uma lei posterior contrária à ele. O acórdão na Apelação Cível n. 7872 de 1943, com base no voto de Philadelpho de Azevedo, também afirmou que a lei não revoga tratado. Ainda nesse sentido, dispõe a Lei n. 5172, de 25 de outubro de 1966, que os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna e serão observados pela que lhe sobrevenha. (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 7) 229 O julgado abordou a nulidade do aval dado em títulos de crédito, quando não registrado no órgão público, exigência determinada pelo Decreto n. 427/69. A Convenção de Genebra, em vigor no Brasil ( através do Decreto n. 57663 de 24 de janeiro de 1966) não fazia essa exigência para a validade do aval ou do título de crédito. Contudo, o Tribunal deu prioridade ao Decreto, firmando o entendimento da paridade entre a legislação ordinária e os tratados internacionais.” LUPI, André Lipp Pinto Basto. A aplicação dos tratados de direitos humanos no Brasil a partir da EC 45/04. In: Direitos Humanos: Proteção internacional dos direitos humanos. Flávia Piovesan e Márcia Garcia (Org). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 7v. p. 29 230 RAMOS, André de carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 29. 231“O Ministro Francisco Rezek expressou, na ocasião do julgamento do RE n. 80.004 de 1977, o entendimento da prevalência da última palavra do Congresso Nacional, expressa no texto doméstico, não obstante isto importasse o reconhecimento da afronta, pelo país, de um compromisso internacional. Tal, segundo ele, seria um fato resultante da culpa dos poderes políticos, a que o Judiciário não teria como dá remédio. Em outras palavras, entendeu-se que o país deveria cumprir a lei interna contrária ao tratado, ainda que isso importasse em responsabilização do Estado no plano internacional, o que, sobretudo, no momento atual, não é compreensível e tampouco jurídico.” (MAZZUOLI. O Estado da Arte da Aplicação do Direito Internacional Público no Brasil no Alvorecer do Século XXI, p. 173) 78 Conforme o princípio da boa-fé, cabe ao Estado conferir cumprimento às disposições com as quais livremente consentiu. Se este, no livre e pleno exercício de sua soberania, ratifica um tratado, não pode posteriormente obstar sua observância. Além disso, o término de um tratado está submetido à disciplina da denúncia, ato unilateral que expressa a vontade do Estado de deixar de ser parte em um documento internacional. Portanto, na hipótese de inexistência do ato da denúncia, persiste a responsabilidade internacional do Estado pelo descumprimento das normas convencionais.232 Vale salientar que ao aprovar um tratado internacional, a vinculação do Estado, no que atine à aplicação de suas normas, abrange cada um de seus Poderes: ao Legislativo cabe aprovar as leis necessárias, abstendo-se de votar as que lhe sejam contrárias; ao Executivo, a tarefa de bem e fielmente regulamentá-las; e ao Judiciário incumbe o papel preponderante de aplicar as normas internacionais, afastando a aplicação de leis nacionais que com elas conflitem.233 Nesses termos, seria incoerente assegurar ao Congresso Nacional o direito de descumprir um tratado internacional, no qual ele mesmo consentiu através da transformação do tratado em Decreto Legislativo, após o qual o Executivo foi autorizado a proceder à ratificação. No entanto, a posição do STF foi mantida no julgamento do HC n. 72.131, de 1995, dessa vez abordando especificamente a questão dos tratados de direitos humanos.234 O referido julgado abordou a prisão civil do depositário infiel. Esta é expressamente proibida pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos,235 art. 7°, com exceção da prisão decorrente do descumprimento de obrigação alimentar. O Supremo Tribunal Federal decidiu que o dispositivo mencionado teria status de mera lei ordinária e deveria se subordinar ao texto constitucional brasileiro. Este, no artigo 5°, inciso LXVII, excepciona, além da prisão civil em razão do inadimplemento de obrigação alimentar, a hipótese da prisão civil do depositário infiel. 232 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, p. 63. 233 MAZZUOLI, O Estado da Arte da Aplicação do Direito Internacional Público no Brasil no Alvorecer do Século XXI, p. 174. 234 “Observe-se que a equiparação dos tratados à legislação ordinária comporta exceções já reconhecidas pelo STF. O artigo 98 do Código Tributário Nacional determina que os tratados prevalecem sobre a legislação ordinária. Também em matéria de extradição, o STF preferiu aplicar um tratado em detrimento da legislação interna posterior, no Habeas Corpus n. 58727- DF. Rel. Min. Soares Munoz. DJ 03.04.1991. Em ambos os casos, a distinção entre tratados contratos e tratados lei foi útil para conferir à primeira categoria o caráter de especialidade pelo qual passaram a merecer primazia sobre as leis internas, com aplicação do critério lei especial derroga lei geral. Para isso, entendeu- se que tratados contratos são específicos por dizer respeito a obrigações recíprocas com um país determinado.” (LUPI. aplicação dos tratados de direitos humanos no Brasil a partir da EC 45/04, p.30 ) 235 Promulgada no Brasil pelo Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. 79 Na ocasião, o Ministro Moreira Alves, em seu voto, esclareceu que a interpretação do § 2° do art. 5° da CF/88 responsável por atribuir status materialmente constitucional ao Pacto de São José da Costa Rica seria inaplicável, pela razão de não ser possível admitir emenda constitucional realizada por meio de ratificação de tratado. Portanto, sendo o art. 7° da Convenção dispositivo ordinário, não pode ele restringir o alcance das exceções previstas no art. 5°, LVII da atual Constituição. Nesse sentido, existe a tese de que o § 2º do art. 5º ao dispor “os direitos expressos na Constituição não excluem outros decorrentes (...) de tratados internacionais” se refere aos tratados que possuem um caráter complementar aos direitos já existentes no texto constitucional de forma genérica e por isso não se caracterizam como norma constitucional, mas como lei ordinária que garante um direito já constitucionalmente assegurado. Nos casos em que o tratado apresente um direito sem previsão constitucional, mas com ela não conflite, ele também ingressaria na via ordinária, modificando o regramento infraconstitucional incompatível. Ambos os casos se justificariam pela impossibilidade da Constituição Federal, um texto rígido, ser modificada por um Decreto Legislativo de incorporação do tratado236 Seguindo esse raciocínio, a defesa da supremacia da Constituição Federal sob os tratados internacionais encontraria fundamento no dispositivo 102 e incisos seguintes da CF/88, que estabelece entre o rol de competências do STF a tarefa de realizar o controle de constitucionalidade dos tratados em sede de recurso extraordinário.237 Nessa esteira, a Carta Magna não prevê a competência do Judiciário para avaliar a violação de tratado por lei ou vice-versa, o que demonstraria a ausência de vontade do Constituinte para instituir uma hierarquia entre ambos.238 Os defensores dessa linha de pensamento advogam que o dispositivo do § 2° nada prescreveu sobre a questão hierárquica dos tratados internacionais. Esta foi respondida pelo Constituinte no art.102, III, b. Assim, a expressão do § 2° do art. 5° "não excluem outros decorrentes (...) de tratados internacionais" teria formulado um princípio subsidiário, segundo 236 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A impossibilidade de prisão do depositário infiel, o pacto de São José da Costa Rica e a decisão do Supremo Tribunal Federal. In: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Maria (org). Revista dos Tribunais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. 6v (Coleção doutrinas essenciais). p. 338. 237 MEYER-PFLUC, Samantha, Ribeiro. A Internacionalização do Direito Constitucional Brasileiro. In: PAGLIAARINI, Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri. Direito Constitucional Internacional dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012. Parte III. p. 284. 238DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 40 e 43. 80 o qual, eventuais aspectos de direito fundamentais não consagrados nas normas pátrias poderiam ser protegidos por instrumentos internacionais.239 Contudo, ressalte-se que essas afirmações, baseadas no silêncio do texto constitucional a respeito da hierarquia dos tratados de direitos humanos, encontram oposição na exegese do § 2°, art. 5° segundo a qual quando a Constituição enuncia “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, surge a premissa de que apenas as normas de mesma hierarquia não se excluem. Se os tratados possuíssem uma hierarquia menos qualificada, certamente o conflito entre um direito fundamental consagrado na Carta Magna e outro proveniente de um tratado internacional seria solucionado através da exclusão dos últimos, considerados nulos por inconstitucionalidade. 240 Destarte, a ideia da expressão “não excluem” significar que os tratados podem apenas acrescentar direitos e nunca se contrapor a aqueles já estabelecidos é passível de questionamentos. Na medida em que é típico dos direitos fundamentais, devido ao seu caráter principiológico, colidirem entre si, estando as regras da hermenêutica constitucional disponíveis como instrumentos para solucionar os conflitos. 241 Ademais, a segunda parte do § 2° do art. 5° também considera os direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. Nesse contexto, ressalte-se que a interpretação da materialidade constitucional dos tratados de direitos humanos é condizente com a mens legis do Constituinte originário, que alçou a dignidade humana a núcleo do ordenamento jurídico (art. 1°, III); estabeleceu a prevalência dos direitos humanos como princípio orientador das relações internacionais do Brasil (art. 4 °, II); manifestou a intenção do país em participar da formação de um Tribunal de direitos humanos, conforme o art. 7° dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias; e assegurou a possibilidade de deslocamento de competência para a Justiça Federal dos casos de graves violações de direitos humanos (art. 109, § 5º). Dessa forma, com base em uma interpretação da Carta Magna, é 239 DIMOULIS e MARTINS, op cit, p. 39-40. 240 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. O § 3o do art. 5o da Constituição Federal: um retrocesso para a proteção internacional dos direitos humanos no Brasil. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v. 6, n. 6, p. 121-132, 2016. Disponível em: Acesso em: 01 jan. 2015. p.125. 241 Ibidem, p.125. 81 possível defender a hierarquia materialmente constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos.242 Em relação ao cabimento de Recurso Extraordinário contra decisão que declare a inconstitucionalidade de tratado internacional, é prudente considerar que a existência de uma norma de competência recursal, estabelecendo o controle em matéria de tratados, não significa a sua aplicação necessária a todo e qualquer tratado, pois o próprio sistema constitucional, como evidentemente o fez com a redação outorgada ao § 2º do art. 5º, pode prever exceções.243 Esses argumentos sustentam a conclusão da existência, no Direito brasileiro, de um sistema misto: um regime aplicável aos tratados de direitos humanos e outro para os tratados tradicionais. Os primeiros, por força do art. 5º, § 2º, possuem hierarquia constitucional, os demais tratados apresentam hierarquia infraconstitucional.244 Esse tratamento diferenciado encontra justificativa no caráter especial dos tratados de direitos humanos, pois enquanto os tratados clássicos regulamentam os interesses recíprocos entre as partes, aqueles consagram valores comuns superiores, consubstanciados, em última instância, na proteção do ser humano. Assim, não seria coerente sustentar que um Estado Parte possa derrogar ou revogar, por lei ordinária, um tratado de direitos humanos, contrariando frontalmente a própria noção de garantia coletiva subjacente a todos os tratados dessa espécie. 245 Nesse âmbito, cabe ressaltar que o Direito Internacional dos Direitos Humanos diferencia-se do Direito Internacional Geral por rejeitar alguns dos princípios clássicos deste, como o princípio da competência nacional exclusiva, da não ingerência nos assuntos internos, da reciprocidade ou da reversibilidade dos compromissos assumidos pelos Estados.246 Como observado, a posição inicial da Suprema Corte em considerar todos os tratados, inclusive aqueles de direitos humanos, com status de norma infraconstitucional vai 242 PIOVESAN, Flavia. Tratados internacionais e proteção dos direitos humanos: jurisprudência do STF. In: O novo constitucionalismo moderno na era pós-positivista. Homenagem a Paulo Bonavides. MOURA, Lenise S. Moreira de Moura (org). São Paulo: Saraiva, 2009. p. 7. 243 SARLET, Ingo Wolfgang. Considerações a respeito das relações entre a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, v. 77, n. 4, out/dez 2011. Disponível em: Acesso e: 10 nov. 2016. p. 178 244PIOVESAN, Flavia . Tratados internacionais e proteção dos direitos humanos: jurisprudência do STF. In: O novo constitucionalismo moderno na era pós-positivista, p. 10. 245 TRINDADE, 2003, p. 547 apud FIGUEIREDO, Patrícia Cobianchi. Hierarquia normativa dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro antes e após a emenda constitucional 45 de dezembro de 2004. In: PIOVESAN, Flávia; IKAWA, (Cord). Direitos Humanos. Curitiba, Juruá, 2006. 246 MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Internacional dos Direitos Humanos. Coimbra: Almedina, 2006. p. 28. 82 de encontro a todo o arcabouço teórico dos direitos humanos, que se baseia na proteção dos indivíduos, sobretudo, contra o próprio Estado, inaugurando um novo e diferente ramo do Direito Internacional. Assim, com o intuito de colocar fim às discussões relativas à hierarquia dos Tratados internacionais de direitos humanos, no ordenamento jurídico pátrio, acrescentou-se um parágrafo subsequente ao § 2° do art. 5° da CF, por meio da EC n. 45, de 8 de dezembro de 2004, com a seguinte redação: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”247 Todavia, longe de resolver a problemática, a redação desse dispositivo intensificou a polêmica sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos, visto que a expressão “que forem aprovados” dá margem para o Congresso Nacional conceder o status de emenda constitucional aos instrumentos internacionais de acordo com a sua conveniência.248 Destaque-se que no caso da Convenção de Nova York (2006), a sugestão para a sua qualificação como emenda constitucional foi apresentada na Mensagem Presidencial. Todavia, foi através da pressão social proveniente da campanha organizada pela sociedade civil “Assina Inclusão” que a proposta foi adotada pelos parlamentares. Contudo, não se pode olvidar que a fórmula redacional “que forem aprovados” abre a possibilidade de escolha pela aprovação através do rito comum. Para os defensores desse dispositivo, não se poderia exigir que todos os tratado de direitos humanos possuíssem o quórum de 3/5, pois assim seria dificultada a sua aprovação.249 Nesse âmbito, cabe indagar qual seria o critério para selecionar aqueles tratados que mereceriam esse status diferenciado? Sob esse viés, há um rompimento da harmonia do sistema de integração dos tratados de direitos humanos no Brasil, na medida em que esse dispositivo cria “categorias jurídicas” distintas para essas normas, ao destinar tratamento diferente para instrumentos internacionais que têm o mesmo fundamento de validade e o mesmo conteúdo ético. Isso vai de encontro a própria natureza dessa espécie de direitos interdependentes, indivisíveis e universais. 250 Destarte, a doutrina majoritária advoga a necessidade de interpretar o § 3° do art. 5° em sintonia com § 2º, de modo a assegurar a natureza materialmente constitucional de todos os tratados de direitos humanos. Nesse sentido, o novo parágrafo serviria apenas para 247 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, p. 754. 248 Ibidem, p. 760. 249 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 264-267. 250 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, p. 757. 83 conceder um status formalmente constitucional, além da natureza materialmente constitucional que o tratado já possui pelo fato de versar sobre a proteção do ser humano.251 Por outro lado, a interpretação isolada do § 3° correspondendo à ideia de que somente os tratados incorporados pelo rito especial seriam constitucionais252 implica admitir que o constituinte derivado, através da EC n. 45/04, ao introduzir a possibilidade do rito especial, ofendeu a cláusula geral de recepção dos tratados de direitos humanos, pois retirou a eficácia destinada, pelo constituinte originário, ao âmbito de proteção dos direitos fundamentais estabelecido pelo §2º do art. 5º.253 Sob esse prisma, vale ressaltar que a hermenêutica constitucional deve seguir os princípios do efeito integrador, da máxima efetividade, da harmonização prática e o princípio da força normativa da Constituição, sempre tendo em vista que jamais se interpretam as normas constitucionais para restringir direitos. Partilhar de entendimento contrário seria negar uma das principais consequências do pós-positivismo: o intérprete não está adstrito a letra fria e isolada da lei.254 Embora essa argumentação pareça coerente, ela não colocou um fim nas questões suscitadas por essa nova disposição do art. 5°, visto que a doutrina brasileira ainda continua a se questionar qual seria a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos incorporados antes da edição da EC 45/04. Para evitar a divisão dos tratados dessa espécie em dois grupos aqueles “constitucionais“ e os “equivalentes a emendas constitucionais”, defende-se que o § 3º teria apenas efeito ex nunc, ou seja, somente os instrumentos ratificados depois da entrada em vigor da referida emenda é que necessitariam ser aprovados pelo rito especial para serem equivalentes às emendas constitucionais. 255 Os tratados anteriores a reforma também teriam 251 Ibidem, p. 758 252“Não seria razoável sustentar que os tratados de direitos humanos já ratificados fossem recepcionados como Lei federal, enquanto os demais adquirissem hierarquia constitucional exclusivamente em virtude de seu quórum de aprovação. A título de exemplo, destaque-se que o Brasil é parte na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes desde 1989, estando em vias de ratificar seu Protocolo Facultativo. Não haveria qualquer razoabilidade se a este último - um tratado complementar e subsidiário ao principal - fosse conferida hierarquia constitucional, e ao instrumento principal fosse conferida hierarquia meramente legal. Tal situação importaria em agudo anacronismo do sistema jurídico, afrontando, ainda, a teoria geral da recepção acolhida no Direito brasileiro. (PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais e proteção dos direitos humanos jurisprudência do STF, p. 13.) 253 BONIFÁCIO, Artur Cortez. O Direito constitucional internacional e a proteção dos direitos fundamentais. São Paulo: Método, 2008. 8.v.(Coleção Professor Gilmar Mendes). p. 213 254 FIGUEIREDO, op cit, p. 198. 255 MARQUES, op cit, p. 59. 84 essa natureza, pois, na época em que foram recepcionados, não havia exigência de procedimento formal mais solene.256 Por outro lado, a doutrina mais formalista entende que o procedimento formal do § 3° art. 5° é condição sine qua non para equiparação do tratado à norma constitucional.257 Uma vez que mesmo admitindo-se a compatibilidade material, não é possível transmutar um Decreto Legislativo, aprovado pela maioria simples do Congresso, em emenda constitucional cuja aprovação exige uma maioria reforçada de três quintos dos votos, além dos demais limites formais às emendas constitucionais. Portanto, a linha argumentativa mais plausível é a de que os tratados internacionais de direitos humanos (que já são materialmente constitucionais por força do próprio art. 5º, § 2º, da CF) também poderão ser formalmente constitucionais, caso sejam aprovados, a qualquer momento, pelo procedimento do § 3º.258 Todavia, embora essa seja a visão doutrinária predominante, ainda se constata um descompasso entre a posição da doutrina alinhada à perspectiva dos direitos humanos e o posicionamento do STF. Para a Corte, somente os tratados incorporados pelo rito da EC/2004 teriam status constitucional, os incorporados antes de tal emenda teriam status supralegal, uma categoria normativa intermediária entre as leis infraconstitucionais e a Constituição. Essa tese foi adotada no julgamento do Recurso extraordinário n. 466.343-1/ SP (Rel. Cezar Peluso. DJ, 05 jun. 2009) sobre a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel.259 Na ocasião, o STF decidiu que os tratados sobre direitos humanos são infraconstitucionais. Porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, são dotados de um atributo de supralegalidade. Assim, tais normas têm o condão de paralisar a eficácia jurídica de qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos revogou a legislação ordinária260 que regulamentava o dispositivo constitucional sobre a prisão civil do depositário infiel.261 Embora essa decisão da Corte não tenha reconhecido a natureza constitucional dos tratados de direitos humanos anteriores a EC 45/04, a adoção do status supralegal significou 256 PETERS, op cit, p. 229. 257 PETERS, op cit, p. 229. 258 SARLET, Ingo Wolfgang. Considerações a respeito das relações entre a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos, p. 166. 259 Ressaltes-se que a tese da supralegalidade já havia sido ventilada pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no RHC n. 79.785-RJ de 2000 sobre o alcance interpretativo do princípio do duplo grau de jurisdição previsto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Contudo, essa tese não contou com a adesão dos demais ministros. 260 O art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n. 911, de 1º de outubro de 1969. 261MEYER-PFLUC, op cit, p. 285. 85 um relevante avanço, pois impediu que esses acordos internacionais fossem revogados por legislações infraconstitucionais posteriores. E, de certa maneira, também evitou a regulamentação de normas constitucionais incompatíveis com os tratados de direitos humanos. Destarte, conforme evidenciado, embora existam diferentes significados para o rito de incorporação previsto no art. 5º, §3º da Constituição, o mais importante deles para a Convenção de Nova York (2006) é ter lhe assegurado a qualidade de primeiro tratado internacional de direitos humanos reconhecido como constitucional pela Suprema Corte.262 Nesse cenário, busca-se investigar quais as consequências da formalização do seu caráter constitucional e quais as diferenças entre as normas constitucionais e aquelas equivalentes a emendas constitucionais, como é o caso da Convenção em estudo. § 3. As consequências do status de emenda constitucional da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência Como observado, o rito especial de incorporação dos tratados internacionais de direitos humanos suscitou varias questões a respeito da hierarquia dessas normas no ordenamento jurídico brasileiro. Uma das mais importantes corresponde ao significado do termo “equivalente a emenda constitucional”, em face da posição incisiva do STF em assegurar a supremacia da Constituição. Nesse cenário, é imprescindível delimitar as conseqüências desse status, para compreender o que ele garante à Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com deficiência em termos de efetividade. Um primeiro desdobramento a ser investigado é se o status de emenda constitucional permite ao tratado em estudo reformar a constituição de 1988 quando for com ela conflitante. Essa possibilidade seria o grande diferencial em relação aos tratados apenas materialmente constitucionais, visto que o texto da Carta Magna é uma legislação rígida e só pode ser modificado pela maioria qualificada.263 262 Cabe salientar que esse tratado não é mais o único com status de Emenda Constitucional, uma vez que o Brasil aprovou, também na forma qualificada prevista no § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, o Tratado de Marraquexe, conforme o Projeto de Decreto Legislativo n. 347/2015. Este tem como objetivo promover o amplo acesso à cultura às pessoas com deficiência visual através da retirada dos direitos autorais (limitando o sistema de copyright) para adaptá-los aos formatos acessíveis. MAZZUOLI, Valério; XAVIER, Fernando César. Entra em vigor tratado que facilita acesso para cego a livros. Consultor Jurídico (CONJUR), 6 de out. 2016. Disponível em Acesso em 14 jan. 217. 263 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, p. 766. 86 Importante ressaltar que as emendas constitucionais são um mecanismo responsável por satisfazer as demandas de adaptar a Constituição às novas realidades sociais e mantê-la estável. Para preservar o equilíbrio entre essas duas necessidades (inovação e estabilidade), as emendas constitucionais devem respeitar certos limites materiais denominados de cláusulas pétreas, expressas no art. 60, § 4º, que sintetizam a essência da Constituição ao enunciar: Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais. 264 Destaque-se que a expressão “tendente a abolir” deve ser interpretada com razoabilidade, pois deve impedir o desgaste do conteúdo central das normas protegidas, mas não servir para manutenção de um status quo insustentável perante as mudanças sociais e históricas. Dessa forma, as normas constitucionais são revogáveis por emendas constitucionais, enquanto alguns dispositivos são especialmente protegidos, sendo, portanto, irrevogáveis em sua essência pelo Poder Constituinte Derivado.265 Sob esse prisma, os tratados incorporados com base no § 3º do art. 5º, por serem equivalentes às emendas constitucionais, são considerados como provenientes do Poder Constituinte Derivado, portanto, as normas incompatíveis com a Constituição são inconstitucionais se violarem o núcleo intangível da Carta Magna.266 Por outro viés, os tratados de direitos humanos com status materialmente constitucional (§ 2º do art. 5º) podem ser considerados como uma extensão do Poder Constituinte Originário.267 Nesse caso, existindo conflito entre as normas constitucionais previstas no texto da Constituição e as 264 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 145-147. 265 Ibidem, p. 169. 266 “Consagrar que tratados de direitos humanos podem se incorporar ao Direito brasileiro como emendas constitucionais representa uma significativa involução (...) porque um tratado de direitos humanos pode ser declarado inconstitucional mesmo passando pelo procedimento qualificado da emenda constitucional, se colidir com alguma cláusula pétrea. Segundo o art. 60, §4º, IV, os direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas.” (GALINDO. O § 3o do art. 5o da Constituição Federal: um retrocesso para a proteção internacional dos direitos humanos no Brasil, p. 217) 267 O Poder constituinte originário é o poder constituinte propriamente dito. Nele se concentra a energia inicial pela qual se cria ou reconstrói um Estado, com a instituição de uma nova ordem jurídica, superadora da ideia de Direito pré-existente. O Poder Constituinte Derivado, por sua vez, expressa o poder, normalmente atribuído ao Parlamento, de reformar o texto constitucional. Trata-se de uma competência regulada pela Constituição. (BARROS. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 147) 267 RAMOS, André de CARVALHO. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 268- 269. 87 decorrentes desses tratados, aplicar-se-á os métodos de hermenêutica para dirimir as aparentes colisões (proporcionalidade, sopesamento, concordância prática e outros.).268 Contudo, a questão não é tão simples como aparenta, uma vez que é possível situação na qual a norma equivalente à emenda constitucional apresente uma proteção mais favorável à pessoa, e, no entanto, os órgãos jurisdicionais pátrios optem por privilegiar o ordenamento constitucional, com fundamento no argumento das cláusulas pétreas.269 Por exemplo, se a questão do depositário infiel novamente for submetida ao Supremo Tribunal Federal, ainda que a Convenção Americana de Direitos Humanos ou o Pacto de Direitos Civis e Políticos sejam incorporados como emendas constitucionais, o Tribunal pode entender que há uma incompatibilidade entre a disposição constitucional originária (cláusula pétrea) e o tratado internacional e, assim, considerar o último inconstitucional. 270 Nessa seara, é importante sublinhar que a questão de saber se os tratados internacionais de direitos humanos reformam ou não a Constituição remete à discussão da prevalência do Direito Internacional sobre o Direito interno e vice-versa explorada pelas teorias monistas e dualista.271 Para os autores dualistas, dentre os quais se destacaram, no século passado, Carl Heinrich Triepel na Alemanha e Dionisio Anzilotti na Itália, o Direito Internacional e o Direito pátrio são sistemas rigorosamente independentes e distintos, de tal modo que a validade jurídica de uma norma interna não condiciona a sua sintonia com a ordem internacional.272 Triepel parte do pressuposto de que uma regra jurídica é o conteúdo de uma vontade superior manifestada com o objetivo de impor limites às vontades individuais. Sob esse prisma, a vontade é a fonte de onde emana a regra jurídica. Assim, na esfera das relações entre Estados, o direito tem origem em uma vontade capaz de obrigar uma pluralidade de entes soberanos. Portanto, esta não pode pertencer a um só deles, nem representar um acordo entre leis nacionais. Trata-se de uma vontade comum, nascida da união das volições 268 RAMOS, André de CARVALHO. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 270- 273. 269SARLET, Ingo Wolfgang. Considerações a respeito das relações entre a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos, p.70. 270 GALINDO. O § 3o do art. 5o da Constituição Federal: um retrocesso para a proteção internacional dos direitos humanos no Brasil, p. 127. 271 “O dualismo é defendido no âmbito internacional por Triepele e Anzilotti e seguido no Brasil por Amílcar de Castro. O monismo, concepção desenvolvida por Hans Kelsen, é seguido no Brasil pela maior parte da doutrina, inclusive Valadão, Tenório, Celso D. Albuquerque Mello e Marotta Rangel.” BARROSO, Luís Roberto. Constituição e tratados internacionais: alguns aspectos da relação entre Direito Internacional e Direito Interno. In: TRINDADE, Cançado; Pereira; ALVES, Antônio Celso. Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.p. 186. 272 REZEK, op cit, p. 26. 88 particulares, veiculada por tratados internacionais ou costumes. Estes últimos constituem-se em um acordo de vontades tácito, no qual estas se encontram manifestadas através de atos e não de palavras escritas.273 Com fundamento nessas considerações, Triepel afirma que o Direito Internacional Público e o Direito interno são sistemas jurídicos independentes, pois têm fontes normativas diferentes, bem como regem relações sociais de natureza distintas. Enquanto o primeiro regulamenta as relações entre Estados, o Direito nacional regula as relações entre um Estado e os seus súditos e as relações recíprocas entre indivíduos.274 Anzilotti complementa esse argumento com a ideia de que a base de cada sistema jurídico é a vontade capaz de dotar de eficácia o direito. Dessa forma, a adesão à vontade coletiva cria os tratados-acordos, normas com força obrigatória para os Estados contraentes.275 O cumprimento dessa vontade comum não se assenta em uma razão legal, mas sim em uma ideia ética, pois visa à coexistência entre os Estados e a realização de objetivos compartilhados. Sob essa ótica, Anzilotti considera o princípio pacta sunt servanda como a origem da força vinculante de todas as normas do Direito Internacional. 276 Ressalte-se que implícito a esse entendimento está a concepção da exclusividade da ordem jurídica estatal e a sua resistência em aceitar como direito, além do seu, o Direito Internacional,277 pois, conforme o argumento dos dois autores, o fundamento do Direito Internacional encontra-se na vontade dos Estados, seja ela manifestada coletivamente ou individualmente, de forma expressa ou tácita. Nesse sentido, o dualismo se aproxima do monismo na vertente nacionalista, que reconhece a existência de um só universo jurídico comandado pelo Direito interno, em última análise, pela vontade do Estado.278 Sob essa perspectiva, é enfatizada a soberania dos Estados e a descentralização da sociedade internacional. Ademais, valoriza-se a primazia da 273 TRIEPEL, Karl Heinrich. As relações entre o direito interno e o direito internacional. Tradução Almicar de Castro. Texto original do curso de Direito Internacional de Haia de 1923, publicado no Recueil dês Cours, v. I, p. 73-119. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, v. 17, n. 6, p. 07-64, 1966. Disponível em: Acesso em: 29 abril. 2017. p. 14/15 274 Ibidem, p. 10-16 275 ZICCARDI, Piero. Características do positivismo de Dionísio Anzilotti. Revista Ius Gentium Teoria e Comércio no Direito Internacional n. 2, v.1, 2009. Disponível em: Acesso em: 28 abril. 2017. p. 2 276 GAJA, Giorgio. Positivism and dualism in Dionisio Anzilotti. The European Tradition in International Law. v. 3, 1992. Disponível em: Acesso em: 28 abril. 2017. p. 123- 128. 277 MIRANDA, op cit, p. 129. 278 Ibidem, p. 126 89 Constituição, com fundamento na sua competência para atribuir o exato grau de prestígio às normas internacionais.279 Por sua vez, o monismo internacionalista, defendido por Hans Kelsen, sustenta que as normas do Direito Internacional são, na sua maioria, incompletas, de modo que o Direito Internacional delega às ordens jurídicas nacionais a sua complementação. Logo, estas são esferas jurídicas interdependentes. Por outro lado, para que os Estados coexistam pacificamente como entes soberanos são necessárias regras que delimitem a competência política e normativa de cada Estado a determinado território e a uma parcela específica de seres humanos. Tal matéria é disciplinada exclusivamente pelo Direito Internacional.280 Refutando as teorias dualistas, Kelsen destaca que nem todas as normas de Direito Internacional derivam da vontade dos Estados. O costume, por exemplo, não pode ser compreendido apenas como um acordo de vontades tácito, pois obriga novos Estados que não participaram da sua criação. Além disso, os entes estatais podem estipular obrigações por meio de tratados internacionais, apenas se houver uma norma geral que qualifique esse acordo como fonte de norma jurídica válida. Ou seja, os Estados precisam receber poder de uma ordem jurídica superior às suas e que define as esferas nacionais de atuação.281 Nesse contexto, o voluntarismo estatal como fundamento da primazia do Direito interno vai esmaecendo, quando se considera que a própria regra da pact sunt servanda não está condicionada a simples vontade estatal, mas justificada pelo compromisso com a honra e a lealdade respaldados em uma ética universal282 capaz de sujeitar o Estado ao que ele livremente convencionou, embora as circunstâncias da escolha realizada possam torná-la inconveniente posteriormente. O Direito Internacional pode ser considerado como superior, na medida em que garante a sobrevivência da Sociedade Internacional através da prevalência de valores que devem sobrepor-se à vontade e aos interesses domésticos dos Estados,283 uma vez que tais valores afetam a humanidade como um todo, ultrapassando as fronteiras estatais e obrigando os Estados a agir em prol do bem comum da humanidade. Dentre estes podem ser elencados: o respeito aos direitos humanos, que impõem limites à atuação estatal no âmbito interno e externo; a proteção ambiental, da qual depende o bem-estar e sobrevivência de todos os seres 279 REZEK, op cit, p. 27 280 KELSEN, Hans.Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 495-500. 281 Ibidem, p. 503. 282 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 61 283 MAZZUOLI, Valério de Oliveira, Direito dos tratados. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.p. 87. 90 vivos; e a justiça internacional, de cuja eficácia depende a credibilidade do ordenamento jurídico internacional.. 284 Consagrando essa concepção, surge o conceito de Jus cogens, previsto no art. 53 da Convenção de Viena de 1969. Trata-se de uma norma cogente que contém valores considerados essenciais para a Comunidade Internacional, sendo por isso dotada de superioridade normativa, prevalecendo quando em conflito com outras normas. Ademais, é inderrogável pela vontade de um Estado isoladamente. Tal derrogação só é possível por outra norma com esta mesma qualidade.285 Contudo, é importante salientar que o conceito de jus cogens por si só ainda não é capaz de assegurar a supremacia do Direito Internacional, pois persiste a dificuldade em reconhecer tais normas, visto que a Convenção de Viena de 1969 não apresenta um rol exemplificativo das mesmas. O costume internacional tem atribuído essa qualidade às regras sobre a proibição do uso ilegítimo da força, a autodeterminação dos povos e determinadas normas de direitos humanos, incluindo aquelas sobre crimes internacionais como genocídio e tortura.286 Vale salientar que não basta a norma de jus cogens conter um valor fundamental, ela deve ter o caráter imperativo e este só é assegurado quando existe um sistema coercitivo para protegê-la. 287 Observe-se que essa relação entre o Direito interno e internacional, em termos da primazia de um sobre o outro, passa a ser repensada a partir da consagração da proteção aos direitos humanos, premente após os horrores da II Guerra Mundial, porquanto, estes se caracterizam, conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), pela universalidade, indivisibilidade e interdependência o que acarreta consequências importantes para a dicotomia entre o Estado e a Comunidade Internacional. Nesse contexto, o Direito Internacional dos Direitos Humanos é universal no sentido de que os destinatários dos seus princípios não são mais apenas cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os indivíduos. Assim, tais direitos deverão ser efetivamente protegidos até 284 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 61 285 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 138. Ressalte-se que a dificuldade reside em reconhecer tais normas, visto que a Convenção de Viena não apresenta um rol exemplificativo das mesmas. A origem destas é o costume internacional que reconhece como normas de jus cogens a proibição do uso ilegítimo da força, a autodeterminação dos povos e determinadas normas de direitos humanos, incluindo as que tratam de crimes internacionais, como genocídio e tortura. Ressalta-se que os Tribunais Internacionais e a Comissão de Direito Internacional da ONU vêm reconhecendo a qualidade de jus cogens de diversos direitos fundamentais. Assim, pode-se vislumbrar que, no futuro, a natureza de norma imperativa será reconhecida a todos os direitos humanos, sem qualquer distinção. RAMOS, 2016, p. 63-65. 286RAMOS, André de Carvalho, Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 146-147. 287 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 96. 91 mesmo contra o próprio Estado.288 Nesse domínio, perde o sentido a discussão sobre a primazia do Direito Internacional ou do Direito Interno, restando superada a polêmica entre monistas e dualistas, pois a predominância deve ser da norma mais favorável às vítimas.289 Pode-se considerar que essa garantia pro homine encontra-se expressa na própria Constituição de 1988, ao instituir, no art. 4.º, II, como princípio das relações internacionais “a prevalência dos direitos humanos,” pois este passa a se configurar como um critério hermenêutico de solução de antinomias, ao determinar que, em caso de conflito entre a ordem internacional e a ordem interna, a “prevalência”, ou seja a primazia, deve ser sempre do ordenamento que melhor proteja esses direitos.290 Ademais, os próprios tratados de direitos humanos apresentam uma cláusula que consagram essa regra, determinando a impossibilidade de se invocar uma norma internacional para reduzir direitos já garantidos em outros tratados ou mesmo na legislação interna.291 Destaque-se que a Convenção de Nova York (2006) dispõe nesse sentido no art. 4° (4): Nenhum dispositivo da presente Convenção afetará quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência, as quais possam estar contidas na legislação do Estado Parte ou no Direito Internacional em vigor para esse Estado. Não haverá nenhuma restrição ou derrogação de qualquer dos direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte da presente Convenção, em conformidade com leis, convenções, 288 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 5-6. 289 TRINDADE, Antônio August Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997. v. 1. p. 434. 290MAZZUOLI, Valério Oliveira, de. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis: o novo modelo de controle da produção normativa doméstica sob a ótica do “diálogo das fontes”. Revista Argumenta Journal Law, v. 15, n. 15, p. 77-114, 2011. Disponível em: < http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/200> Acesso em: 4 jan. 2016. 291 RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal brasileiro e o controle de convencionalidade: levando a sério os tratados de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104 p. 241-286 jan./dez. 2009. Disponível em: Acesso em 28 jan. 2015. p. 255 Embora a cláusula da “norma mais favorável” desfaça a lógica da polaridade entre Direito Interno e Internacional, alguns autores defendem que, na verdade, ela reflete a primazia do Direito Internacional: ”De fato, essa cláusula de “primazia da norma mais favorável” é assaz comum em tratados de Direitos Humanos, nos quais firma-se, em geral, que as disposições da referida convenção não poderão ser utilizadas como justificativa para a diminuição ou eliminação de maior proteção oferecida por outro tratado. Com isso, concluo que a primazia da norma mais favorável ao indivíduo preconiza que é o Direito Internacional quem estipula a possibilidade de se invocar norma interna mais protetiva. Usa-se, então, a norma interna, porque a norma internacional fez-lhe clara remissão, como visto no art. 29, b, da Convenção Americana de Direitos Humanos: Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados Partes ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados.”(RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal brasileiro e o controle de convencionalidade: levando a sério os tratados de direitos humanos. p. 255-256) 92 regulamentos ou costumes, sob a alegação de que a presente Convenção não reconhece tais direitos e liberdades ou que os reconhece em menor grau. 292 Como observado, ainda que a Convenção em estudo tenha status de emenda constitucional no Brasil, ela não reformará a Constituição, caso esta apresente normas mais benéficas às pessoas com deficiência. Por outro lado, sendo a Convenção mais favorável aos direitos desse segmento social deverá ser aplicada em detrimento da Carta Magna. Contudo, é imprescindível ressaltar que a aplicação de uma dessas normas em detrimento da outra não exclui esta do ordenamento jurídico, ambas continuam coexistindo, sendo a escolha feita apenas no caso concreto, pois Cláusulas como o dispositivo citado funcionam como “vasos comunicantes” que estabelecem um “diálogo” entre a garantia da proteção internacional e a interna. Nessa sistemática, a lógica da supremacia, que exclui uma norma do sistema jurídico em razão da sua incompatibilidade com outra superior, é substituída pela coexistência das normas de origem distintas, através da harmonização (coordenação) entre as fontes heterogêneas. 293 Ressalte-se que o diálogo só existirá se as diversas fontes versarem sobre um mesmo objeto ou assunto, possibilitando o estabelecimento de critérios294 para esse “intercâmbio normativo.” O primeiro passo será descobrir o fim perseguido pelas normas em jogo; a partir disso, tenta-se desvendar os pontos comuns que as aproximam de forma coerente; e, por fim, verifica-se quais as formas de interação possíveis: a aplicação da norma mais benéfica em seu conjunto; a aplicação simultânea de ambas, restaurando a coerência entre as ordens internacional e interna, dentro do quadro da unidade do direito; ou a aplicação de uma das normas para complementar o conteúdo variável, vago ou indeterminado da outra.295 De acordo com essa sistemática, o resultado do diálogo não é estabelecido pela simples escolha do magistrado, ele será fruto da comunicação entre as próprias fontes normativas, impedindo que o aplicador opte por uma solução no presente e outra diversa no 292 BRASIL, Decreto-Lei n. 6949, de 25 de agosto de 2009, Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm> Acesso em: 12 dez. 2016. 293 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno: da exclusão à coexistência, da intransigência ao diálogo das fontes. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. p. 114. 294 Ibidem, p. 92. 295 AMARAL JUNIOR. Tratados Internacionais e bloco de constitucionalidade. Instituto Brasileiro de Direito Público: Ciência jurídica em foco. v. 1, n. 273, 2008. p. 137- 147. 93 futuro.296 Caberá a este “perscrutar” as ressonâncias e dissonâncias entre os diplomas e evidenciar a síntese à luz do caso em apreço. Como conseqüência da coexistência de duas fontes de proteção dos direitos das pessoas com deficiência com mesma hierarquia (a Convenção de Nova York de 2006 e a Constituição de 1988, que já apresentava vários dispositivos nesse âmbito), surge a possibilidade da utilização de duas espécies de controle para auferir a compatibilidade das normas infraconstitucionais: o controle de constitucionalidade e o de convencionalidade. O controle de convencionalidade consiste em adotar os tratados internacionais incorporados pelo Brasil como parâmetro vertical do controle das leis. Vale salientar que este é um parâmetro paralelo e coexistente ao controle de constitucionalidade, visto que a compatibilidade da lei com o texto constitucional não mais lhe garante validade no plano do Direito Interno. Para tal, deve a lei ser compatível com a Constituição e com os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado. Caso a norma esteja de acordo com a Constituição, mas não com eventual tratado, poderá ela ser considerada vigente, mas não será válida, devendo ser rechaçada pelo juiz no caso concreto.297 Destaque-se que a convencionalidade teria um duplo controle, pois pode ser realizado pelos tribunais internos, bem como pelas Cortes internacionais.298 Essa ideia foi consolidada no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), segundo a qual as jurisdições internas são submetidas às disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, devendo todo magistrado nacional, ao constatar incompatibilidades entre esse tratado e as normas internas, declarar a invalidade/ inconvencionalidade destas. Por outro lado, cabe à Corte Interamericana de Direitos Humanos realizar o controle de convencionalidade apenas em caso de omissão da jurisdição interna.299 Ressalte-se que o controle de convencionalidade de matriz internacional é atribuído a órgãos criados por normas internacionais e compostos por julgadores independentes, para evitar que os próprios Estados sejam, ao mesmo tempo, fiscais e fiscalizados.300 296 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno: da exclusão à coexistência, da intransigência ao diálogo das fontes, p. 102. 297 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis: o novo modelo de controle da produção normativa doméstica sob a ótica do “diálogo das fontes,” p. 77-114 298 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito dos tratados, p. 410. 299 MARTINS, Leonardo; MOREIRA, Thiago Oliveira. Controle de Convencionalidade de atos do poder público: Concorrência ou hierarquia em face do controle de constitucionalidade? In: PAGLIARINI Alexandre Coutinho; DIMOULIS, Dimitri (Coord). Direito Constitucional Internacional dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2012. Parte III. 300 RAMOS, André de CARVALHO. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 280. 94 Destaque-se que existe uma notável diferença entre o controle de convencionalidade doméstico e aquele realizado pela Corte Interamericana. No caso do controle externo, o parâmetro é a norma internacional e o objeto são as normas internas, independente da hierarquia destas no ordenamento pátrio, incluindo até mesmo normas oriundas do Poder Constituinte Originário. Enquanto no controle nacional, tais normas geralmente não são objeto de análise de compatibilidade em relação a um tratado de direitos humanos. 301 A segunda distinção é quanto à hierarquia do tratado-parâmetro. No controle de convencionalidade interno, a hierarquia deste depende do próprio Direito nacional, que estabelece o estatuto do tratado no momento da incorporação (no Brasil, o controle pode ser de legalidade, supralegalidade ou constitucionalidade). Já no controle de convencionalidade internacional, o tratado de direitos humanos é sempre a norma paramétrica superior.302 Em relação à interpretação, o controle de convencionalidade nacional, na prática, pode adotar interpretação diferente daquela admitida pelos órgãos internacionais levando a conclusões divergentes. Embora a aceitação da competência jurisdicional de uma Corte internacional de direitos humanos pelo Estado implique o reconhecimento desse órgão judicial como interprete autêntico do tema,303 é prática corrente os Estados adotarem “o velho truque de ilusionismo” de ratificar os tratados e descumpri-los cabalmente, mas alegarem a sua observância de acordo com a ótica nacional.304 Entretanto, é importante salientar que a Corte Interamericana, no exercício do controle de convencionalidade, não pode revogar a lei inconvencional ou regrar abstratamente a situação levada a julgamento, substituindo o legislador pátrio. Cabe ao Tribunal Internacional apenas declarar a inconvencionalidade da norma e determinar que o Estado promova a sua adequação ao tratado de direitos humanos, sob pena de ser responsabilizado internacionalmente.305 Outro aspecto relevante diz respeito às espécies de controle desenvolvidas no âmbito interno, pois a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem admitido tanto o controle difuso, realizado pelos magistrados no caso concreto, inclusive podendo ser suscitado de ofício, bem como o controle concentrado ou abstrato realizado, no Brasil, pelo STF. 306 301 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 281. 302 Ibidem, p. 282. 303 Ibidem, 2013, p. 282. 304 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.p. 37. 305 MARTINS e MOREIRA, op cit, p. 301. 306 Ibidem, p. 311. 95 Na via difusa, a inconvencionalidade deverá ser alegada como questão preliminar. Nesse caso, o Magistrado, ao constatar a inconvencionalidade da lei ou de ato do poder público, deverá declarar a invalidade da norma com efeito inter parts. Havendo omissão por parte do juiz, o Estado poderá responder no âmbito internacional pelo descumprimento de obrigações impostas pelo tratado, bem como pela omissão do dever de proteger os direitos humanos.307 O controle abstrato, por sua vez, só será aplicável aos tratados de direitos humanos incorporados pelo rito do art. 5°, § 3°, visto que a expressão “guarda da Constituição”, utilizada pelo art. 102, I, para se referir à competência do STF alberga, além do texto da Constituição propriamente dito, também as normas constitucionais por equiparação.308 Nesse contexto, é plenamente possível utilizar-se das ações do controle concentrado, como a ADI, que invalidaria a norma constitucional por inconvencionalidade; a ADECON, para garantir à norma infraconstitucional a compatibilidade vertical com um tratado de direitos humanos formalmente constitucional; ou até mesmo a ADPF, que possibilitaria exigir o cumprimento de um “preceito fundamental” encontrado nesses tratados. Assim, os legitimados para o controle concentrado (elencado no art. 103 da Constituição) passam a ter a seu favor um arsenal muito maior do que anteriormente tinham para invalidar lei interna incompatível com os tratados de direitos humanos internalizados com quórum qualificado. 309 Ademais, destaque-se que não é necessário o respeito à cláusula de reserva de plenário no controle de convencionalidade, ou seja, órgão fracionário do Tribunal pode declarar a inconvencionalidade de lei ou ato do poder público ou deixar de aplicá-los. Uma vez que, de acordo com a interpretação da Corte Interamericana, qualquer órgão jurisdicional poderá realizar o controle de convencionalidade. O que não ocorre no controle de constitucionalidade, no qual há a exigência da declaração de inconstitucionalidade ser efetivada pela maioria do órgão colegiado ou órgão especial.310 Como se pode observar o controle de convencionalidade é um importante instrumento na adequação do Direito interno aos tratados internacionais, principalmente aqueles de direitos humanos, visto que não constitui apenas um controle externo realizado pelas Cortes Internacionais, mas também efetuado pela jurisdição interna. Ademais, tal instrumento encontra-se em harmonia com o novo conceito de soberania relativizada em prol 307 MOREIRA, Thiago Oliveira. Aplicação dos tratados internacionais de Direitos Humanos pela jurisdição brasileira. Dissertação. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012. 308 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direito dos tratados. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 410. 309 MARTINS e MOREIRA, op cit, p. 311 310 MOREIRA, op cit, p. 104. 96 da defesa do ser humano, bem como a ideia de construção de uma legislação interna enriquecida com os dispositivos internacionais. Assim, se ultrapassa a concepção de um Direito Internacional distante, utilizado apenas quando conveniente aos Estados. A partir do controle de convencionalidade, o Direito Comunitário se coloca como parceiro da legislação interna, contribuindo para efetivação dos direitos humanos. No que tange à Convenção de Nova York (2006), saliente-se que, devido ao seu status de emenda constitucional, ela serve de parâmetro tanto para o controle de convencionalidade difuso quanto concentrado. Dessa forma, a implementação dos seus dispositivos conta com um instrumento jurídico adicional a ser aplicado pelo judiciário brasileiro. Este deve assumir o seu papel na luta pela efetivação dos direitos desse grupo, tendo em vista que cabe ao judiciário não apenas aplicar a lei, mas também realizar a justiça. Nessa esteira, pode-se considerar que não cabe mais ao STF apenas a função de “guardião da Constituição”, essa função se amplia para abranger também a guarda dos direitos humanos que, como analisado, podem está além do texto constitucional. Nesse âmbito, é importante evidenciar as incompatibilidades existentes entre a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e a legislação nacional, destacando os impactos da norma internacional com hierarquia superior sobre os diplomas vigentes antes da sua incorporação. Para na segunda parte desse trabalho destacar as formas de resolução desses conflitos e os mecanismos de implementação do tratado. 97 Seção 2. Os impactos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência na legislação brasileira Destaque-se que o tema da proteção dos direitos da pessoa com deficiência já se encontrava inserido na Constituição Federal de 1988, como resultado dos esforços de movimentos sociais sob a influência do Zeitgeist internacional. Sob essa perspectiva, abordam-se os reflexos da proteção internacional da pessoa com deficiência no contexto histórico-político brasileiro, buscando investigar a sua importância na elaboração legislativa. Todavia, é importante considerar que entre a promulgação da Carta Magna e a incorporação da Convenção em estudo, o modelo de compreensão da deficiência evoluiu, bem como a forma de assegurar o exercício dos direitos por esse grupo. Dessa forma, busca-se evidenciar os impactos dos novos preceitos, introduzidos pela Convenção de Nova York (2006), sobre as normas nacionais. Para esse fim, exploram-se alguns temas de maior relevância como o conceito de pessoa com deficiência dos Decretos nacionais, que serve de pressuposto para toda e qualquer legislação ou política pública nesse âmbito; as normas sobre educação das pessoas com deficiência, pois o direito a educação tem caráter instrumental, possibilitando o acesso a outros direitos como trabalho, independência e inclusão social; e a teoria das incapacidades consagrada no Código Civil de 2002, devido a sua estreita relação com o direito à autonomia e à igualdade perante a lei consagrados na Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. 98 § 1. A influência da tutela internacional dos direitos das pessoas com deficiência na legislação brasileira No Brasil, paradoxalmente, foi durante o regime escravocrata que surgiram as primeiras preocupações direcionadas às pessoas com deficiência, que estava relacionada com o prejuízo econômico resultante da deficiência provocada pelos castigos e torturas. Em 1835, aparece a primeira proposição legal dirigida especificamente às pessoas cegas e surdo-mudas, determinando a criação, no império e nas principais localidades das províncias, de uma classe especial. Ressalte-se que embora tal lei não tenha sido sancionada, representou a preocupação do Governo com essa questão.311 Esse caráter separatista e asilar caracteriza a primeira fase da abordagem da deficiência no país. Em meados do século XIX, ocorreu a criação de organizações específicas para atender a esse contingente da população como o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, criado por Dom Pedro II em 1854.312 Observe-se que, até 1969, a legislação pátria continha apenas referências esparsas sobre esse grupo. Não existiam regras constitucionais específicas, nem debates sobre inclusão social. As Cartas de 1824 e 1891 limitaram-se apenas a mencionar o princípio da igualdade perante a lei. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934 foi o primeiro diploma constitucional brasileiro a tratar da questão da deficiência (art. 138, a), então denominada de “desvalia”, determinava a competência da União, Estados e Municípios para assegurar amparo aos desvalidos por intermédio de serviços especializados e sociais. 313 A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 não apresentou qualquer referência especial às pessoas com deficiência, restringindo-se a dispor sobre “invalidez para o exercício do cargo ou posse” para fins de aposentadoria ou reforma (art. 156, e) e aposentadoria com proventos integrais para o “funcionário invalidado em consequência de acidente ocorrido no serviço” (art. 156, f). O mesmo vale para as Constituições de 1946 e 1967 restritas ao direito previdenciário em caso de invalidez. A Emenda n. 1/69 alterou a Carta de 1967 e estatuiu a necessidade de uma lei especial (art. 175, §4º) para disciplinar a educação dos excepcionais.314 311 BECK, op cit, p. 55. 312 Ibidem, p. 54. 313 MADRUGA, op cit, p. 226. 314 SALES, Gabriela Azevedo. A proteção aos direitos das pessoas com deficiência no Brasil: o diálogo entre o direito interno e o direito internacional. Direito e Justiça: Reflexões soció-jurídicas v. 11, n. 16, 2011. Disponível em: . Acesso em: 29 maio. 2013. p. 7. 99 Em seguida, a Emenda Constitucional n. 12/78 assegurou às pessoas com deficiência a melhoria de suas condições socioeconômicas, apontando instrumentos para a consecução desse objetivo: "É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante: I. educação especial e gratuita; II. assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do país; III. proibição de discriminação, inclusive quanto a admissão no trabalho ou no serviço público e a salários; IV. possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.315 Saliente-se que os avanços na legislação acerca dos direitos desse grupo tiveram períodos de amortização, devido às oscilações sofridas pela democracia no Estado brasileiro. Importante relembrar que durante o Estado Novo (1930), populista e autoritário, os direitos sociais reivindicados pelos trabalhadores eram atendidos como doações paternais, com características de outorga, diluindo os movimentos operários que entraram em depressão. Após 1930, os direitos de cidadania são construídos sobre outras bases. Surgiu um conceito de cidadania regulada, no qual são cidadãos aqueles trabalhadores que desempenham ocupações reconhecidas e definidas por lei. Nesse contexto, as pessoas com deficiência foram excluídas, visto que havia pouca ou nenhuma possibilidade de ocupação.316 Nessa seara, o sistema de produção vigente forja uma ideologia responsável por segregar de forma automática e velada os indivíduos que nele não estão inseridos. 317 Sob essa perspectiva, coloca-se o problema sócio-histórico da deficiência, a partir do qual apenas a conscientização social revela-se como método ineficaz no controle das concepções construídas e reproduzidas por mecanismos sociais ligados ao modo de funcionamento da própria sociedade. Nesse sentido, é necessário mais do que informação sobre as pessoas com deficiência, é imprescindível mudança social através de políticas públicas, que assegurem espaços nos quais esses indivíduos possam desenvolver e mostrar suas capacidades.318 A partir de 1964, instituiu-se o regime militar caracterizado pelo afastamento da sociedade civil do cenário político, que passa a ser tutelada e vigiada. Com o milagre econômico brasileiro, foram criados mecanismos para aumentar a produtividade e a 315 Ibidem, p. 7. 316 SANTOS, 1979, apud BECK, op cit, p. 56. 317 ARANHA, op cit, p. 63-70. 318 O indivíduo, por sua vez, vive nesse contexto. Através de sua atividade, mediada pelo conjunto do simbólico que permeia suas relações sociais, vem a conhecer a realidade, transformando-a segundo suas intenções e seus objetivos (instrumento), e sendo por ela transformado (produto). Dessa forma, ele constrói a sua própria história e a história da humanidade O movimento pela integração do deficiente é um produto de nossa história. Precisamos, entretanto, apreender seu significado real para que possamos efetivá-lo como instrumento de transformação da sociedade. ARANHA, op cit, p. 77. 100 exploração da força de trabalho. Nesse contexto, o padrão de vida da classe trabalhadora deteriorou-se e a inclusão das pessoas com deficiência era apenas um sonho distante.319 Por outro lado, no final do regime militar, em face das péssimas condições de vida das massas populares, começaram a surgir reivindicações sociais e em todas as camadas da sociedade marginalizadas eclodem os “movimentos de bairros” na luta pelos direitos das mulheres, dos índios, das crianças, direitos por moradia digna, esgoto e água. Assim, também desponta os primeiros líderes do Movimento Nacional de Defesa das Pessoas com Deficiência.320 Destaque-se que as pessoas com deficiência começaram a se organizar para reivindicar seus direitos a partir da propagação do tema no âmbito internacional, quando em 1979, a ONU inicia um movimento de resgate dos direitos desse grupo.321 A Coalizão Pró- Federação Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes foi criada nesse mesmo ano. Pela primeira vez, organizações de diferentes Estados da federação e tipos de deficiência se reuniram para traçar estratégias de luta por direitos. O eixo principal das novas formas de organização e ações era politicamente contrário ao caráter assistencialista que marcou historicamente as ações direcionadas para esse público.322 Outra ação internacional que também surtiu impactos no âmbito político brasileiro foi o Ano Internacional da Pessoa com Deficiência (AIPD), proclamado pela ONU em 1981 sob o lema "Participação Plena e Igualdade". A Assembleia Geral das Nações Unidas sugeriu a formação de comissões nacionais para implementação das metas do Ano Internacional. No Brasil, a Comissão Nacional do AIPD foi instalada pelos Decretos n. 84.919/1980 e n. 85.123/1980. Instituída no Ministério da Educação e Cultura a Comissão Nacional era formada por representantes do Poder Executivo, de entidades não governamentais de reabilitação e educação de pessoas com deficiência e entidades interessadas na prevenção de acidentes de trabalho, trânsito e domésticos. 323 Sublinhe-se que não havia na Comissão Nacional do AIPD nenhuma vaga para entidades formadas por pessoas com deficiência, o que foi motivo de grande insatisfação por parte do movimento. As críticas ao processo de condução do AIPD pelo governo brasileiro foram seguidas de ações como a criação de comissões e a realização de encontros e de 319 BECK, op cit, p. 64. 320 Ibidem, p. 65. 321 Ibidem, p. 64. 322 BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Presidência da República- Secretaria de Direitos Humanos. 1 ed. 2010. p. 15. 323 Ibidem, p. 44. 101 manifestações para alertar a sociedade em relação aos direitos desse grupo. Assim, pode-se afirmar que o AIPD, no Brasil, cumpriu o objetivo desejado pela ONU, visto que as pessoas com deficiência ganharam destaque no cenário nacional, suas reivindicações e suas mobilizações se fizeram notar como nunca antes havia acontecido.324 Como resultado da intensa mobilização, no final da década de 1980, surge a ideia de se estabelecer uma representação do Movimento de Vida Independente (MVI) no Brasil. Criado nos Estados Unidos na década de 70, o MVI se espalhou pelo mundo e foi trazido para o país por um grupo de militantes brasileiros. O Movimento busca o desenvolvimento individual das pessoas com deficiência através da divulgação do conceito de vida independente e do oferecimento de serviços e informações para que as mesmas adquiram autonomia na realização das atividades da vida diária, tomem as próprias decisões, se responsabilizem por suas escolhas e assumam as consequências destas.325 É a partir dessa filosofia, que as organizações de pessoas com deficiência irão contribuir com os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Ressalte-se que a redemocratização do Brasil ocorreu em um cenário de intensa efervescência social e a elaboração da Constituição Federal de 1988 representou a consolidação da democracia participativa,326 uma vez que o regimento interno da Assembleia Nacional Constituinte determinou, dentre outras medidas, o recebimento de sugestões de órgãos legislativos, de entidades associativas e de tribunais; a realização de audiências públicas pelas subcomissões para ouvir a sociedade; a apreciação de emendas populares respaldadas em pelo menos 30 mil assinaturas; e a obrigatoriedade do voto nominal nas matérias constitucionais.327 Nesse contexto, o movimento das pessoas com deficiência participou ativamente das discussões, com o objetivo de inserir no novo texto constitucional os direitos desse grupo. Uma das principais reivindicações das pessoas com deficiência era que a Constituição não consolidasse a tutela, e, sim, a autonomia. Nesse sentido, o movimento se colocou contrário ao anteprojeto da Constituição, elaborado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, que tinha um capítulo intitulado "Tutelas Especiais" direcionado para as 324 Em 28 de maio de 2000, foi criado o Conselho Nacional dos Centros de Vida Independente do Brasil (CVI- Brasil), esse Conselho é uma entidade nacional que congrega os Centros de Vida Independente de todo país, tendo como missão representar, articular e apoiar essas entidades, visando ao desenvolvimento da filosofia e serviços de Vida Independente sob o paradigma da inclusão social. BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, p. 63. 325 BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, p. 63. 326 BECK, op cit, p. 65. 327 BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. p. 64. 102 pessoas com deficiência e com necessidades de tutelas específicas.328 Tal proposta era contrária as ideias dos movimentos sociais, que desde o início da década de 1980, lutavam pela igualdade de direitos. Nesse sentido, reivindicavam que os dispositivos constitucionais voltados para as pessoas com deficiência integrassem, de modo transversal, os capítulos dirigidos a todos os cidadãos, evitando a segregação.329 Com a Constituição de 1988 e a instituição do princípio da igualdade material, os direitos desse grupo avançaram sobremaneira, pois se garantiu, através de prestações positivas do Estado, as condições básicas para a sua inclusão na sociedade e construção da sua autonomia de forma ampla e direcionada para a efetivação de um dos principais fundamentos da República Federativa do Brasil “a dignidade da pessoa humana”, bem como o objetivo de “construir uma sociedade livre, justa e solidária.” Superando a declaração do princípio da igualdade meramente formal, conquistada com o liberalismo clássico, que prega o tratamento igualitário a todos perante a lei, o legislador constituinte avançou e consagrou no Texto Maior também a igualdade material. Esta cláusula “supralegal” não apenas impede que seja conferido tratamento desigual aos iguais ou àqueles que se encontram em uma mesma circunstância fática, como também impõe a adoção de medidas reparadoras visando à redução das desigualdades de fato, através do tratamento diferenciado àqueles que se encontram em circunstâncias de desigualdade, tal como ordena a mais basilar das ideias de justiça.330 É nesse cenário principiológico, que a Constituição Federal de 1988 apresenta vários dispositivos acerca da proteção desse grupo. Um dos principais pilares para a integração social dessas pessoas é a acessibilidade física, pois não tem como participar das atividades sociais sem poder frequentar os lugares onde elas ocorrem. Nesse âmbito, o legislador constituinte atribui, no art. 227, § 2.º, à legislação ordinária a tarefa de dispor sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, com o objetivo de garantir acesso adequado às pessoas com deficiência. 328 O movimento também preparou um projeto de emenda popular e iniciou campanhas em todo o Brasil para recolher as 30 mil assinaturas necessárias para submetê-lo à ANC. A Emenda Popular n. PE00086-5 continha 14 artigos sugerindo alterações no projeto da Constituição, onde coubessem temas como igualdade de direitos, discriminação, acessibilidade, trabalho, prevenção de deficiências, habilitação e reabilitação, direito à informação, educação básica e profissionalizante. BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, p. 68. 329 Ibidem, p. 70. 330QUARESMA, Regina. Comentários à legislação constitucional aplicável às pessoas portadoras de deficiência. Revista Diálogos jurídicos. Bahia, n.14, junho/ago. 2002. Disponível em Acesso em 02 jan.2015. p. 13. 103 Ressalte-se que a disciplina constitucional da acessibilidade, embora louvável e avançada para o seu tempo, apresenta uma abordagem hoje considerada conservadora, pois está restrita, basicamente, à eliminação de barreiras no acesso a estruturas físicas. A Constituição nada diz especificamente a respeito da equiparação das pessoas com deficiência em relação às demais pessoas; sobre o acesso à informação, a serviços, ao transporte coletivo (para além da acessibilidade dos veículos) e sobre os demais bens que modernamente se reconhecem como fundamentais ao pleno desenvolvimento social. 331 Em seguida, entende-se como essencial para o exercício da cidadania a educação, condição necessária para viabilizar o exercício dos demais direitos. De tal modo, o texto Constitucional estabelece, em seu artigo 208, III, o dever do Estado de garantir a educação das pessoas com deficiência, através do atendimento educacional especializado preferencialmente na rede regular de ensino. Observe-se que o constituinte foi além do direito à educação, ao enunciar a preferência pela integração desses indivíduos às instituições regulares de ensino, buscando evitar a segregação. O trabalho como direito de todos é assegurado também a esse grupo e está previsto no art. 6º da Constituição da República, se fundamenta nos objetivos do Estado democrático de Direito (Art. 1º, III e IV, CF) que visam a promover o bem de todos sem preconceitos ou discriminação (Art. 3º, IV, CF). Discorrendo sobre os direitos sociais, o artigo 7º, XXXI, veda a discriminação em matéria de salário e critérios de admissão do trabalhador com deficiência. O dispositivo do art. 37, inciso VII da Constituição, refere-se à reserva do percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência e delibera sobre os critérios de sua admissão. Dessa forma, busca-se promover a dignidade da pessoa com deficiência e sua condição de cidadão através do exercício de um trabalho remunerado. Ademais, a Lei nº 8.112/90 prevê a reserva de vagas para candidatos com deficiência em concurso público. O exercício do direito ao trabalho também é viabilizado pelo enunciado normativo do art. 203, que aborda a assistência social, habilitação e reabilitação; a integração à vida comunitária, bem como a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência comprovadamente desprovida de meios para manutenção de sua subsistência ou de tê-la provida por sua família. Nesse âmbito, visando à proteção integral desse grupo, o Estado se compromete com a criação de programas de prevenção e atendimento especializado às pessoas com deficiência 331 BARCELLOS, Renata Ramos; CAMPANTE, Ana Paula de. A acessibilidade como instrumento de promoção de direitos fundamentais. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos direitos das pessoas com deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Parte II, Cap. 2, p. 175-191. p. 180. 104 física, sensorial ou mental, além de promover a integração do adolescente com deficiência (art. 227, §1º, inciso II, CF). Para este fim, concorrem medidas de preparo para o trabalho e para a convivência, além da facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos a partir da eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. Ademais, a Carta Magna delimita, no art. 23, a competência comum entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios para as matérias referente à saúde, assistência pública, proteção e garantia dos direitos desse grupo (art. 23). E a competência legislativa concorrente, no art. 24, dos entes federados para a proteção e integração social. Como observado, a Constituição Federal de 1988 dispensou especial atenção à proteção das pessoas com deficiência, o que representa uma conquista dos movimentos sociais, que participaram ativamente da Assembleia Nacional Constituinte, reivindicando direitos e contribuindo com sugestões para que eles fossem positivados da forma mais eficaz possível. Nessa esteira, destaca-se a influência das declarações e movimentos internacionais sobre as forças sociais internas, impulsionando-as para empreender a mudança no tratamento desse segmento social através da participação política. Ressalte-se que embora o arcabouço normativo apresentado contenha delineamentos importantes para promoção dos direitos das pessoas com deficiência, faltava-lhe o essencial: a definição de pessoa com deficiência. Esta foi elaborada através de Decretos regulamentares. Nesse contexto, cabe apresentar o conteúdo de tais normas e os efeitos do novo conceito de pessoa com deficiência, introduzido pela Convenção de Nova York (2006), sobre essa legislação. § 2. A inadequação do conceito de pessoa com deficiência nos Decretos nacionais Como evidenciado, a “Constituição Cidadã” é exemplar em assegurar os requisitos primordiais para inclusão social e desenvolvimento desse grupo vulnerável. Contudo, suscita algumas indagações: A quem se dirige as normas protetivas? Em que consiste essa desigualdade causada pela deficiência? Essas questões não são respondidas pelo texto constitucional, ficando a cargo da legislação ordinária dispor sobre esses conceitos essenciais.332 332 FERNANDES, Fernanda Holanda; MOREIRA, Thiago Oliveira. A Nova Definição Constitucional de Pessoa com Deficiência produto do diálogo com o direito internacional e suas implicações no ordenamento jurídico 105 Nesse sentido, o Decreto n. 914/93, ao instituir a Política Nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência, define, no artigo 3°, pessoa com deficiência como “aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano.” 333 Destaque-se que essa definição vai de encontro à política de integração e desenvolvimento da autonomia desses sujeitos, pois o elemento identificador da deficiência é o caráter permanente da perda ou “anormalidade.” Concepção perigosa, visto que poderia eximir o Poder Público de prover diversos serviços com vistas ao tratamento de patologias ou lesões ensejadoras da deficiência.334 Além disso, recorre-se a um “padrão de normalidade” pouco claro, que se atém às considerações médicas e não inclui as socioeconômicas. O Decreto n. 3.298/99 revogou o anterior, apesar de continuar adotando como parâmetro para a deficiência a “normalidade”, aprimorou o conteúdo da legislação precedente, ao retirar da caracterização da deficiência o condicionante “em caráter permanente.” Apresenta três conceitos distintos: deficiência transitória, deficiência permanente e a incapacidade. A primeira passou a ser admitida implicitamente pela eliminação da expressão “em caráter permanente”; a segunda é conceituada como aquela deficiência que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos. Enquanto a incapacidade é identificada por uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social e pela necessidade de equipamentos, adaptações ou recursos especiais para o desempenho de função ou atividade. Ademais, é necessário o enquadramento em uma das categorias descritas no art. 4°: deficiência física, auditiva, visual ou mental, conforme os parâmetros biológicos estabelecidos. I - deficiência física – alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; brasileiro. Revista de Direito Internacional de Direitos Humanos (eletrônica), v. 1, n.2, p. 43-67, jan-jun. 2014. p. 14. 333 BRASIL. Decreto-Lei n. 914, 6 de dezembro de 1996. Institui a política nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 17 fev. 2014. 334 SALES, op cit, p. 178. 106 II - deficiência auditiva – perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte: a) de 25 a 40 decibéis (db) – surdez leve; b) de 41 a 55 db – surdez moderada; c) de 56 a 70 db – surdez acentuada; d) de 71 a 90 db – surdez severa; e) acima de 91 db – surdez profunda; e f) anacusia; III - deficiência visual – acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho, após a melhor correção, ou campo visual inferior a 20º (tabela de Snellen), ou ocorrência simultânea de ambas as situações. É importante salientar que o Decreto n. 3.298/99 admite, na categoria de deficiência auditiva, a perda da audição de apenas um ouvido. Enquanto a interpretação do inciso III não é muito clara em relação ao enquadramento da visão monocular como deficiência, ao caracterizar esta como “acuidade visual igual ou menor que 20/200 no melhor olho.” Pela expressão “melhor olho” pode-se supor que o outro também está com um mau desempenho. Essa disparidade configura-se uma incoerência que não é justificada pela norma em exame. Observe-se que o conceito de deficiência abrange apenas categorias médicas, sem fazer qualquer referência aos fatores ambientais. Em sentido contrário, o conceito de saúde adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), divulgado na Carta de Princípios de 7 de abril de 1948, corresponde à situação de perfeito bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Nessa mesma lógica, o Sistema único de Saúde (SUS), em sua Lei Orgânica n. 8.080/90, incorpora à definição de saúde os fatores do meio físico, econômico e cultural e considera inclusive a oportunidade de acesso aos serviços de promoção e recuperação da saúde.335 Ademais, de acordo com a legislação em exame para ser considerada uma pessoa com deficiência física, deve ser constatado o comprometimento da função física. Assim, uma pessoa que não tem um dedo não se enquadra no conceito de pessoa com deficiência para os fins da legislação, ou seja, para usufruto da proteção e benefícios legais. Isso porque a norma nacional considerou como deficiência apenas as mais severas, que acarretam maiores dificuldades para os indivíduos.336 A definição de pessoa com deficiência foi alterada pelo Decreto n. 5.296/04, art. 5°,§ 1°, I, que passou a compreender aquela que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadra nas categorias apresentadas. Destaque-se que há uma 335BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.Presidência da República Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: Acesso em: 30 out. 2013. 336 LOPES, L.V, op cit, p. 97. 107 mudança relevante, pois é introduzida a possibilidade de existir apenas uma limitação ao invés de incapacidade e é retirada a referência ao padrão de normalidade. Em relação às categorias, para deficiência física é mantida a mesma descrição anterior, sendo acrescentado o nanismo e a ostomia.337 No que diz respeito à deficiência auditiva, é acrescentado o termo “perda bilateral”, revogando a possibilidade de audição em apenas um ouvido ser considerada como deficiência, como dispunha o Decreto anterior n. 3. 298/99. Por outro lado, os parâmetros para a deficiência visual foram aumentados para possibilitar o enquadramento como deficiência do conceito de baixa visão. Entretanto, foi mantida a redação que não esclarece se a visão monocular seria uma deficiência.338 No que tange à deficiência mental, o Decreto n. 5.296/04 manteve praticamente a mesma redação da legislação anterior. Ademais, a nova lei apresenta a categoria de pessoa com mobilidade reduzida, como aquela que tem redução efetiva da mobilidade, flexibilidade, coordenação motora e percepção, por qualquer motivo, mas que não é considerada pessoa com deficiência. Essas normas tornaram-se incompatíveis com a política de inclusão da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, pois desconsideram os fatores socioambientais, utilizando apenas critérios médicos para a classificação. Isso fica evidente no dispositivo que conceitua deficiência física, excluindo as deformidades estéticas. Dessa forma, não leva em consideração que em razão destas, a pessoa pode sofrer discriminação que impeça a sua inclusão na sociedade. Um exemplo disso ocorre quando duas mulheres disputam uma vaga para recepcionista de um hotel, possuindo uma delas uma cicatriz no rosto. O contrato de trabalho será firmado, provavelmente, com a sua concorrente. A candidata em situação de desvantagem sequer poderá alegar discriminação por motivo de deficiência, nem concorrer a uma das vagas reservadas às pessoas com deficiência pelo inciso VIII do artigo 37 da 337 Intervenção cirúrgica que cria um ostoma (abertura, ostio) na parede abdominal para adaptação de bolsa de coleta. 338 A Súmula 377 do STJ considera que o indivíduo com visão monocular tem direito a concorrer, em concurso público, às vagas reservadas às pessoas com deficiência. Enquanto, a Súmula 552 do mesmo Tribunal, considera que a pessoa com surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 377, terceira seção, julgado em 22/04/2009, DJe 05/05/2009. Súmula 552, Corte especial, julgado em 04/11/2015, DJe 09/11/2015. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2017. Esse tema será abordado detalhadamente no Capítulo 3 da Segunda Parte. 108 Constituição Federal, haja vista o conteúdo dos Decretos brasileiros não apresentar uma definição referencial de pessoa com deficiência.339 A Convenção de Nova York (2006) supre essa lacuna, ao definir pessoa com deficiência como aquela que “tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” Observe-se que o tratado internacional usa o termo “impedimento” para se referir às características biológicas e não faz qualquer referência, como a legislação nacional, à “perda ou anormalidade de estruturas ou funções”. Assim, desvinculou-se a deficiência da ideia de incapacidade, pois enfatiza que a pessoa com deficiência não está incapacitada para integração social, apenas a sua participação encontra-se obstruída pelas barreias ambientais. O critério delimitador da deficiência é, portanto, a existência de dificuldade na integração social da pessoa. Caso sua limitação funcional não encontre obstáculos para sua participação na sociedade, pode-se afirmar que não há deficiência.340 Destarte, conclui-se que o cerne da questão está na situação de desvantagem, na qual determinada pessoa se encontra em virtude do ambiente não acolher suas singularidades, seja esta de qualquer espécie biológica. Uma ilustração desse conceito foi apresentada na decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia que considerou a obesidade como uma deficiência, ao julgar o caso de um educador físico que foi despedido por ser obeso.341 Como se observa, a deficiência surge a partir do momento em que a sociedade age de forma discriminatória em relação a uma pessoa que possui características diferentes da maioria. Vale salientar que a Convenção de Nova York (2006) elenca os termos “deficiência mental” e “deficiência intelectual”, operando a correta distinção entre ambos. De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM V), a deficiência intelectual inclui déficits no raciocínio, solução de problemas, planejamento, pensamento abstrato, juízo e aprendizagem, associados ao 339 VOTOLIN, Elvis Donizeti. Os operadores do direito com deficiência e a acessibilidade ao conteúdo dos atos processuais. COLÓQUIO DE PESQUISA: PANORAMA DE PESQUISA EM DIREITO, 2 set. 2011, Osasco: EDIFIEO. Disponível em: Acesso em: 18 fev. 2015. p. 78 340 ROSTELATO, Telma Aparecida. Portadores de deficiência e prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá Editora, 2009. p. 25. 341 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. Comunicado de imprensa n.° 183/14. Luxemburgo, 18 de dezembro de 2014. Acórdão no processo C-354/13. Disponível em Acesso em 23 jan. 2017. 109 comprometimento das funções adaptativas como comunicação, participação social e vida independente. Enquanto o transtorno mental caracteriza-se por perturbação na regulação emocional ou no comportamento, que não necessariamente geram déficits intelectuais, como, por exemplo, a depressão, transtorno bipolar e esquizofrenia. Com a incorporação da Convenção, foi corrigida a falha dos Decretos brasileiros que usam apenas a expressão “deficiência mental” e, ainda, cometem o equívoco de adotar esse termo, quando, na verdade está fazendo referência à deficiência intelectual. Decreto n. 5.296/04, art. 5°, § 1° (d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilização dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e 8. Trabalho.342 A principal conseqüência desse conceito equivocado foi excluir as pessoas com transtornos mentais do conceito de pessoa com deficiência e, consequentemente, de todas as políticas públicas e benefícios a que teriam direito. Embora a Lei n. 10.216/01 discipline os direitos dos pacientes com transtornos mentais, sublinhe-se que não se trata de uma legislação acerca dos direitos desses indivíduos enquanto sujeitos de direito, mas sim normas restritas ao campo dos serviços de saúde mental. Buscando suprir essa lacuna em relação às pessoas com autismo, a Lei n. 12.764 de 2012 estabelece que a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais. Como ficou evidenciado, a legislação brasileira sobre a definição de pessoa com deficiência apresenta avanços, ao retirar a referência ao padrão de normalidade; e passar a permitir a existência de uma limitação que não necessariamente gere incapacidade. Porém, apresenta alguns equívocos como confundir deficiência intelectual com a deficiência mental, excluindo esta última do rol das deficiências; e adotar regras distintas para audição unilateral e visão monocular. Ademais, tornou-se incompatível com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, pois prioriza critérios médicos para a classificação, desconsiderando os aspectos socioambientais. Outra inovação importante, introduzida pela Convenção de Nova York ( 2006) na legislação brasileira, foi a substituição do termo, empregado inclusive na Constituição Federal 342BRASIL. Decreto-Lei n. 5.296, de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. 110 de 1988, “pessoa portadora de deficiência” pela expressão “pessoa com deficiência”, que a partir da incorporação do tratado, se transformou em terminologia constitucional. Destaque-se que “pessoa com deficiência” traduz a perspectiva social, ao considerar a deficiência como algo inerente à diversidade humana, na medida em que o uso da preposição “com” qualifica a palavra “deficiência” como um atributo humano, como qualquer outro, gênero, raça, idade, orientação sexual. Nesse contexto “pessoa com deficiência” equivale à expressão “pessoa com cabelos claros, olhos castanhos....”343 Importante sublinhar que a expressão foi escolhida para ser consagrada na Convenção após debate mundial que levou em consideração a opinião das próprias pessoas pertencentes a esse grupo. Partia-se da seguinte palavra de ordem “nada ao nosso respeito sem a nossa participação”. O profundo significado desse lema reside na radical ruptura com as políticas de cunho tutelar e assistencialista, que impunham às pessoas com deficiência a condição de coadjuvantes em todas as questões que lhes diziam respeito diretamente, as decisões eram tomadas por pais, simpatizantes e amigos.344 Ademais, o termo “pessoa com deficiência” desfaz a ideia errônea de que o indivíduo “porta” a deficiência, como se a deficiência não fosse algo da pessoa, mas algo que está com ela,345 e fosse possível optar por trazê-la consigo ou não.346 Bem verdade que, a época da sua positivação na Constituição de 1988, a expressão pessoas portadoras de deficiência representou um avanço, pois substituiu termos como “deficiente” e “excepcional”. O primeiro equivoca-se por colocar a deficiência como a característica essencial da pessoa, mas possuir uma deficiência não significa que a pessoa toda é deficiente.347 Nesse contexto, deficiente resume a pessoa a sua condição, não lhe permitindo ser “sujeito de direitos” em primeiro lugar.”348 Excepcional, por sua vez, não abarca todas as espécies de deficiência, termo mais usado para se referir às pessoas superdotadas. Além disso, remete à ideia de “fora do comum” contrapondo-se, na linguagem coloquial, ao termo normal. 349 343FONSECA, Ricardo Tadeu, da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. I, p. 19- 31. p. 27. 344 FONSECA, Ricardo Tadeu, da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem, p. 22. 345 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seus reflexos na ordem jurídica interna no Brasil. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. 3, p.52-60. p. 55. 346 LOPES, Laís Figueirêdo, de. Disposições Gerais. In: Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. In: LEITE, Flávia Piva Almeida. et al. (Coord) São Paulo:Saraiva, 2016.Cap. 1, p. 35-64. p. 55. 347MADRUGA, op cit, p. 33. 348 LOPES, L.F, op cit, p. 55. 349 MADRUGA, op cit, p. 33. 111 Surgiram também algumas expressões que buscavam amenizar o tom pejorativo da palavra deficiência, como “pessoas especiais” ou “pessoas portadoras de necessidades especiais”. Contudo, o adjetivo “especial” não constitui uma característica exclusiva das pessoas com deficiência. Ser considerado especial vale para qualquer ser humano,350 as gestantes, os idosos e os namorados apaixonados. Todos os indivíduos tem necessidades especiais em circunstâncias específicas, mas, certamente, nenhum as “porta”, uma vez que não são objetos, todos são especiais considerando o princípio da dignidade humana como nota distintiva de cada sujeito.351 Pessoa com deficiência enfatiza a noção de que a pessoa, antes da sua deficiência, é o principal foco a ser observado e valorizado. Assim como sua real capacidade de ser o agente ativo de suas escolhas, decisões e determinações sobre sua própria vida. Portanto, a pessoa com deficiência é, antes de tudo, um indivíduo com uma história que lhe confere a realidade de possuir uma deficiência, além de outras experiências de vida como estrutura familiar, contexto sociocultural e nível econômico. 352 Sob essa perspectiva, a deficiência não precisa ser escondida ou camuflada, ela deve ser reconhecida e respeitada, pois faz parte da diversidade humana. Nessa esteira, é imprescindível frisar que o uso do termo correto é o primeiro passo para uma mudança real no tratamento dessas pessoas, porquanto o ato de nomear alguém é carregado dos valores e conceitos que permeiam a sociedade. Além disso, o emprego da designação adequada, “pessoa com deficiência”, é importante na promoção da mudança na posição subjetiva desses indivíduos para que venham a exercer sua autonomia, visto que o ser humano constrói a sua identidade através do discurso do outro, da maneira como a sociedade o enxerga.353 Encarar a deficiência como parte do ser humano e sem eufemismos354 significa avançar na sua compreensão do ponto de vista biopsicossocial e não apenas médico. Nesse sentido, vale salientar que a alteração da estrutura constitucional brasileira, a partir da introdução da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com deficiência, implica 350 MADRUGA, op cit, p. 33. 351 FONSECA, Ricardo Tadeu, da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem, p. 22. 352 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde de pessoas com deficiência. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. p. 44. 353 FERNANDES e MOREIRA, op cit, p.11. 354 “ (...) a adoção de alguns eufemismos para qualificar a pessoa com deficiência como “pessoa portadora de necessidades especiais”, “pessoa especial” (...) não são a melhor alternativa , visto que mascaram o assunto e preservam a exclusão de modo quase leviano e evidentemente nebuloso e impreciso.” (FONSECA, Ricardo Tadeu, da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem, p. 22) 112 transformações na legislação ordinária e na condução de políticas públicas voltadas para esses cidadãos. Estas deixam de ser assistenciais para se tornarem mais propensas a promover a autonomia ao invés de meros cuidados. Nesse contexto, destaca-se, como um dos impactos emblemáticos da norma internacional no ordenamento jurídico brasileiro, a questão da capacidade civil prevista no Código Civil de 2002. § 3. A inconvencionalidade do modelo de capacidade civil brasileiro A Convençãode Nova York (2006) dedicou o art. 12 às disposições sobre o direito das pessoas com deficiência à capacidade civil. O primeiro enunciado desse dispositivo reafirma o reconhecimento, pelos Estados Partes, desses indivíduos como pessoas perante a lei. Embora pareça uma afirmação óbvia, esta consiste em um pressuposto fundamental para situar a “regulação da capacidade jurídica no campo dos direitos humanos.”355 O Código Civil brasileiro (2002) aponta nessa direção, ao afirmar, no art. 2°, que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida. Ou seja, a existência do ser humano é condição suficiente para ser pessoa e, portanto, possuir personalidade jurídica, considerada como a projeção social da personalidade psíquica que gera efeitos jurídicos.356 O Comitê da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência esclareceu, na Observação Geral n. 1 sobre o art. 12 (CRPD/ C/11/4, de 25 de novembro de 2013), que do reconhecimento da personalidade jurídica deriva o reconhecimento da capacidade jurídica, compreendida como a possibilidade de desfrutar e exercitar direitos. Esta é um atributo do ser humano e não uma concessão estatal, uma vez que pré-existe a vontade dos Estados.357 Nesse sentido, o diploma brasileiro afirma, art. 1°, que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. 358 355 A ideia da capacidade jurídica como um direito humano é defendida por BARIFFI, 2013, p. 8. BARIFFI, Francisco. Plena igualdad ante la Ley, capacidad jurídica y limitación de derechos. Mesa Redonda. In:CONFERENCIA INTERNACIONAL 2008-2013: CINCO AÑOS DE VIGENCIA DE LA CONVENCIÓN INTERNACIONAL SOBRE LOS DERECHOS DE LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD. Comité Español de Representantes de Personas con Discapacidad (CERMI) de la Universidad Carlos III de Madrid, mayo de 2013. Disponível em:< http://www.uc3m.es/Estudios> Acesso em:20 jan. 2017. 356 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil- Parte Geral. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. 1 v. p. 123. 357As observações gerais dos Comitês do sistema universal de direitos humanos têm como finalidade assessorar os Estados Partes a cumprir com as disposições do respectivo tratado, mediante a análise e interpretação das obrigações contidas em cada instrumento. Esta finalidade está contemplada no artigo 47 do Regimento do Comitê, ao indicar que o mesmo poderá preparar observações gerais sobre a base dos artigos e as disposições da Convenção com a finalidade de promover sua melhor aplicação e ajudar os Estados Parte a cumprir suas obrigações apresentadas nos informes. (SALMÓN, op cit, p. 212) 358 NACIONES UNIDAS. Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Comité de los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general n.1, Artículo 12: Igual reconocimiento como 113 Todavia, a capacidade jurídica, no ordenamento brasileiro, encontrava-se dividida em capacidade de gozo e capacidade de fato ou exercício. A primeira consistia na aptidão para contrair direitos e deveres na ordem civil, enquanto a segunda era a qualidade necessária para exercê-los pessoalmente.359 Na ausência ou diminuição do discernimento para o exercício, declarava-se a incapacidade da pessoa, de forma absoluta ou relativa. Essa declaração se fazia necessária para que o indivíduo pudesse ter acesso ao mecanismo da curatela na modalidade representação ou assistência, respectivamente. O relativamente incapaz sofria limitações mais amenas em sua liberdade de agir, pois ele estava impossibilitado de praticar sozinho apenas alguns atos jurídicos, mas não todos. E a intervenção do curador era apenas para assisti-lo e não para representá-lo. Portanto, o ato contava com a participação do incapaz, não sendo a sua vontade completamente desconsiderada na esfera jurídica.360 O art. 1.772 do Código Civil autorizava o juiz, ao decretar a interdição do relativamente incapaz, estabelecer a curatela parcial apenas para os atos definidos na sentença. Como não havia semelhante previsão legal para os absolutamente incapazes, era possível, mediante a aplicação literal da norma, que na interdição do absolutamente incapaz a aplicação da curatela total para todos os atos da vida civil.361 Dessa forma, o curador passava a cuidar não apenas dos bens do incapaz, mas também de sua pessoa, implicando ao interdito a perda da autonomia, inclusive para a manifestação de vontade acerca de questões extrapatrimoniais. O interditado ficava impossibilitado de pessoalmente celebrar contratos, efetuar pagamentos, elaborar testamento, reconhecer paternidade, decidir acerca do próprio nome, da sua saúde, seus relacionamentos afetivos. 362 Sublinhe-se que a prática comum no Brasil sempre foi a interdição total de pessoas com deficiência intelectual ou mental.363 O que demonstra o caráter eminentemente patrimonialista das normas brasileiras, pois, em nome da proteção ao patrimônio, sacrificavam-se os direitos do sujeito, sendo este reduzido, no Código Civil (2002), “aquele persona ante la ley. 19 de mayo de 2014. Disponível em: < http://www.un.org/en/sections/news-and- media/index.html> Acesso em 27 jan. 2017. 359 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 27. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 1.v. p.130. 360 LEITE, Glauber Salomão. O regime jurídico da capacidade civil e a pessoa com deficiência, p. 310. 361 Ibidem, p. 305. 362 Ibidem, p. 306. 363 GONZAGA, Eugênia Augusta. Art. 12 Reconhecimento igual perante a lei. In: DIAS, Joelson. et.al. (Org). Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 3 ed. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2014. p. 88. 114 que tem aptidão para adquirir direitos e deveres, figurando no polo ativo ou passivo de uma relação jurídica.”364 Na direção contrária, a Convenção de Nova York (2006) apresenta, no art. 12, a obrigação dos Estados Partes de adotarem providências para auxiliar a pessoa com deficiência no exercício da sua capacidade civil. Enquanto instrumentos facilitadores da autonomia, essas medidas devem respeitar as vontades e preferências do indivíduo e não restringir seus direitos. Para evitar esse risco, tais medidas devem ser estabelecidas pelo menor tempo possível, de modo proporcional às necessidades de cada pessoa e revisadas regularmente por órgão judicial. Ademais, cabe aos Estados assegurar salvaguardas para prevenir abusos, conflitos de interesses e influências indevidas. Ressalte-se que o reconhecimento da capacidade jurídica está intimamente ligado ao gozo de muitos outros direitos humanos consagrados na Convenção de Nova York (2006) como: o direito de não ser obrigado a passar por tratamento de saúde mental; o respeito pela integridade física e mental; à liberdade de circulação; o direito de escolher onde e com quem viver; à liberdade de expressão; o direito de casar e de constituir família; de votar e de concorrer como um candidato na eleições.365 Estes constituem direitos da personalidade, oriundos e inerentes à dignidade da pessoa humana, sendo-lhe, portanto, indissociáveis. De modo que é incabível garantir ao incapaz a titularidade de direitos dessa natureza, mas transferir o seu exercício a um terceiro, pois possuem caráter personalíssimo e não comportam exercício por outrem que não o próprio titular.366 Nesse contexto, o art. 12 da Convenção em estudo, ao proclamar o reconhecimento das pessoas com deficiência perante a lei, determina também o dever dos Estados Partes de reconhecer que esses sujeitos “gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.” Assim, coloca-se em evidência a relevância da capacidade jurídica para o acesso a muitos direitos humanos, cujo exercício é parte intrínseca dos mesmos.367 Para compreender a titularidade de direitos como indissociável do seu exercício é preciso considerar a natureza singular dos direitos humanos, que são atribuídos ao indivíduo pelo simples fato dele pertencer à espécie humana. E a característica distintiva desses seres é a capacidade para domar seus instintos naturais e a eles sobrepor sua vontade, ainda que esta 364 LEITE, Glauber Salomão. O regime jurídico da capacidade civil e a pessoa com deficiência, p. 311. 365 CISTERNAS, op cit, p. 30. 366 LEITE. Glauber Salomão. O regime jurídico da capacidade civil e a pessoa com deficiência, p. 315. 367 BARIFFI, op cit, p. 8. 115 seja incompatível com os padrões sociais, como ocorre nas pessoas com transtornos mentais graves.368 Essa racionalidade mínima está presente em todo ser humano, pois é uma qualidade dessa espécie a aptidão para tomar a si mesmo como objeto da própria reflexão. Esta se traduz no fenômeno da autoconsciência, ou seja, consciência da própria subjetividade. Sob esse aspecto, destaca-se a autonomia como produto dessa autoconsciência.369 As pessoas com transtornos mentais podem interpretar a realidade de forma distorcida, mas a sua percepção continua sendo objeto de uma auto-reflexão, pois o sujeito reage aos estímulos ambientais conforme seus pensamentos e sua consciência destes. 370 Destarte, é imprescindível salientar que a autonomia não depende exclusivamente da racionalidade lógica para ser exercida, é possível uma relativização do aspecto racional, visto que no homem não existe uma razão pura apartada dos demais elementos psíquicos.371 Assim, ressalta-se que nenhum ser humano consegue viver sem objetivos, por mais banais que possam parecer, é a capacidade para desejar que o mantém lutando pela sobrevivência. Pode- se concluir que existe uma autonomia inerente ao homem, enquanto um ser habitado por desejos e objetivos, que não pode ser retirada das pessoas com deficiência sob pena de violar a sua dignidade.372 Nesse sentido, a capacidade jurídica deve ser entendida como um direito que permite a pessoa exercer, de acordo com a sua própria vontade, os direitos que lhe são reconhecidos.373 Por essa razão, o tratado em estudo busca assegurar que as pessoas com 368 FERNANDES, Fernanda Holanda. Um novo paradigma sobre autonomia a partir da Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência. Revista Jurídica da UFRN InVerbis, n. 36, v. 19, p. 155-173, jul-dez. 2014. p. 163. 369 COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos Direitos Humanos. Revista jurídica Consulex. Ano IV, v. I. n. 48, p. 52-61, 2001. p. 54 370 FERNANDES, Um novo paradigma sobre autonomia a partir da Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência. p. 160. 371 “O pensamento “racional” é extremamente limitado por motivos simples: As opções, para as mínimas coisas, são virtualmente infinitas; somente critérios emocionais permitem a tomada de decisão. A razão atua sobre o limitado leque de opções disponibilizado pela emoção. A emoção conduz literalmente o pensamento. Somente se consegue “ser racional” dentro de parâmetros emocionalmente aceitáveis.” FIORELLI; José Osmir; RAZAZZONI, Rosana Cathya. Psicologia Jurídica. São Paulo: Atlas, 2009. p.35. 372 Registre-se o pensamento divergente de Jorge Reis Novais, de acordo com o autor a capacidade para autodeterminação de alguns pacientes com transtorno mental grave existiria apenas em abstrato: “Pensava assim, esta é uma dignidade da pessoa em ser, uma dignidade fundada numa capacidade abstrata e potencial de autodeterminação, independentemente da capacidade ou vontade concreta da sua realização que pode mesmo nem sequer existir faticamente , como acontece quando se reconhece necessariamente a dignidade da pessoa humana dos doentes mentais.” (NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2011. p. 59.) 373 BARIFFI, op cit, p. 9. 116 deficiência tenham direito ao gozo da capacidade jurídica, a qual inclui a legitimidade para agir em nome próprio.374 Tal proteção encontra-se positivada não apenas no art. 12, mas enunciada nos propósitos da Convenção, sendo, portanto, o núcleo dessa norma internacional: Art. 1°: “O propósito da presente Convenção é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.” Percebe-se que o intuito da norma não é apenas assegurar direitos, mas promover o exercício destes pelas pessoas com deficiência, tornando-as sujeitos de direito. É relevante salientar que não se trata de desconsiderar as dificuldades que uma pessoa com deficiência pode ter para exercer seus direitos, mas sim de garantir a igualdade de oportunidades, através do fornecimento dos suportes adequados para superá-las. Para tanto, a Convenção determina, no art. 12 (3), que os Estados devem providenciar as medidas necessárias para promover o exercício da capacidade civil. Destaque-se que dessas barreiras sócio-ambientais, a mais grave delas é o estigma através do qual é disseminada a ideia de que a presença do transtorno mental é suficiente para caracterizar a incapacidade de alguém para todos os atos da esfera jurídica. A imensa maioria dos sistemas jurídicos incide nesse equívoco, visto que se baseia no denominado “modelo de atribuição por status.” Segundo o qual, a presunção de ausência de capacidade jurídica deriva automaticamente do reconhecimento de que o indivíduo tem uma deficiência. Em alguns sistemas, até mesmo certas deficiências físicas como a cegueira ou a surdez são causas de incapacidade. Esses sistemas de atribuição direta de incapacidade são incompatíveis com as obrigações assumidas pelo Estado à luz da Convenção de Nova York (2006).375 Ademais, negar a capacidade jurídica com base em um atributo pessoal como raça, sexo ou deficiência constitui discriminação.376 Nesse sentido, a Convenção define a discriminação por motivo de deficiência, art. 2°, como atos que tenham o propósito ou o efeito de “impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício de direitos (...) em igualdade de oportunidade com as demais pessoas. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável.” 374 SALMÓN, op cit, p. 214. 375 BARIFFI, op cit, p.3. 376 CISTERNAS, op cit, p. 30. 117 Nessa esteira, a consequência da incorporação desse tratado é uma inversão da prática corrente da interdição no Brasil.377 Agora, a interdição parcial deve ser a regra e a interdição absoluta a exceção, aplicada apenas para os casos mais graves, nos quais, por exemplo, a pessoa está em estado vegetativo, sem condições de manifestar sua vontade por qualquer meio.378 Sublinhe-se que à luz do referido tratado, o modelo de incapacidade absoluta baseado na substituição para tomada de decisões não é uma adaptação razoável para o exercício da capacidade legal pelas pessoas com deficiência, pois acarreta um ônus desproporcional para esses indivíduos, que sob o pretexto de “protegê-los” tolhe por completo a sua autonomia, constituindo-se como uma violação a sua dignidade.379 Embora o objetivo de proteção do presumidamente incapaz possa ser considerado legítimo, não justifica um exame da capacidade civil em abstrato, é necessário ponderar se, no caso concreto, para proteger direitos é necessário gerar uma maior restrição dos mesmos.380 A desproporção entre meios e fins é patente no mecanismo da interdição absoluta, pois este transfere para um terceiro todas as decisões sobre a pessoa e seu patrimônio, sem a necessidade de consultá-la ou participá-la em nenhum momento.381 Tal medida não considera a possibilidade de uma pessoa com deficiência mental ou intelectual, mesmo que não tenha plenas condições de gerir seus bens, possa está apta para expressar a sua vontade a respeito de questões de outra ordem, como afetivas, familiares, culturais, corporais, educacionais.382 Em relação à legislação brasileira, ressalte-se que o modelo de capacidade civil foi ajustado aos dispositivos da Convenção através da Lei n. 13.146, promulgada em 6 de julho de 2015. Contudo, é importante destacar que a Convenção de Nova York (2006) foi incorporada com status de emenda constitucional pelo Brasil, por meio do Decreto 6.949, em 25 de agosto de 2009. Portanto, existe um intervalo de 5 anos, durante o qual a legislação pátria sobre capacidade civil era aplicada, embora caracterizada como inconstitucional. 377 Buscando implementar a interdição parcial como regra, em obediência à Convenção de Nova York (2006), o Conselho Nacional do Ministério Público lançou, em 2014, a campanha “Interdição Parcial é mais Legal”, com o objetivo de orientar as pessoas sobre o processo de interdição, incentivar e sensibilizar os profissionais da área jurídica a utilizarem a interdição, até mesmo a parcial, somente quando necessária pois ela é uma exceção à regra da capacidade plena. Conselho Nacional do Ministério Público. Interdição parcial é mais legal. Brasília : CNMP, 2014. Disponível em: Acesso em 19 fev. 2017. 378 GONZAGA, op cit, p. 88. 379 BARIFFI, op cit, p. 6. 379 Ibidem, p. 7. 379 LEITE, Glauber Salomão. O regime jurídico da capacidade civil e a pessoa com deficiência, p. 315. 380 BARIFFI, 2013, p. 7. 381 Ibidem, p. 8. 382 LEITE, 2012, p. 315. 118 Observe-se que o Código Civil de 2002 representou um avanço em relação à legislação anterior, pois o Código de 1916 trazia a expressão “loucos de todo o gênero” para descrever a ausência de saúde mental para o ato jurídico, incidindo na discriminação em abstrato de pessoas com base em um diagnóstico pouco preciso. O Código Civil (2002) usa o termo mais genérico “ausência do necessário discernimento para os atos da vida civil” e estabelece uma gradação para a debilidade mental, pois o art. 4° conceitua como relativamente incapazes “aqueles que por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido”. Essa gradação é mais justa, pois há casos de deficiência mental que comprometem apenas parcialmente a capacidade civil. Nesse sentido, posicionam-se os julgados mais recentes, descrevendo o grau de incapacidade dos interditos.383 A partir desse diploma, para a decretação da interdição não basta apresentar transtorno mental ou doença, é indispensável que a patologia mental interfira de tal forma no plano psicológico a ponto de impedir que a pessoa detenha a indispensável compreensão do significado e implicações dos seus atos. Sob esse aspecto, houve uma evolução legislativa, visto que se admite que uma pessoa possua déficits sem que seja considerada incapaz. Ademais, passa a existir a possibilidade de uma doença biológica não necessariamente implicar em comprometimento da vida social. Nesse contexto, a lei se adapta ao novo conceito de pessoa com deficiência, pois vai ao encontro da ideia de que um indivíduo com deficiência pode está se servido dos instrumentos socioambientais necessários para superar a desvantagem que a sua condição fisiológica lhe impõe. Contudo, não se pode olvidar que por mais que tenham ocorridos avanços em relação ao Código Civil anterior, o diploma de 2002 ainda apresentava alguns equívocos, quando a Convenção de Nova York (2006) foi incorporada, que o tornavam incompatível com o novo modelo de compreensão da deficiência.384 Observa-se que tal norma continha um espectro amplo de pessoas que se enquadravam na condição de “absolutamente incapaz.” Por outro lado, restringia a possibilidade de interdição parcial, que sob a perspectiva da Convenção deveria ser a regra.385 383 Venosa, op cit, p. 265. 384FERNANDES, Fernanda Holanda. A Capacidade civil no Direito brasileiro à luz da Convenção internacional sobre os direitos da pessoa com deficiência. In: XXIV ENCONTRO DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO, DIREITO E POLÍTICA: DA VULNERABILIDADE À SUSTENTABILIDADE. 2015, Minas Gerais: Anais eletrônicos... Florianópolis: 2015. p. 250-274. p. 260. 385 “No Brasil, desde 2002, ficou expressa na legislação a possibilidade de interdição apenas parcial das pessoas com deficiência intelectual. E é exatamente isso o que diz a Convenção da ONU, ou seja, que qualquer medida de apoio ou salvaguarda que a legislação interna venha a adotar deve ser o menos restritiva possível. O item 5, do artigo 12, por seu turno, reafirma o igual direito das pessoas com deficiência em “possuir ou herdar bens, de controlar as próprias finanças e de ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e assegurarão que as pessoas com deficiência não sejam arbitrariamente destituídas de seus bens”. 119 No art. 3°, a incapacidade absoluta era caracterizada pela expressão “enfermidade ou deficiência mental”, abrangendo todos os transtornos mentais existentes, à exceção dos transtornos da personalidade (dispositivo revogado pela Lei n. 13.146/2015 abordada no capítulo 3 da Segunda Parte desse trabalho). No art. 4°, sobre as incapacidades relativas, o inciso II, substituiu a expressão “enfermidade mental” por categorias específicas “ébrio habitual” e “viciado em tóxicos”, mantendo ao lado destas o termo deficiência mental, e no inciso III incluiu o “excepcional sem desenvolvimento mental completo”. Com tal dispositivo, o legislador, dentre as enfermidades mentais, restringe a incapacidade relativa apenas às relacionadas ao capítulo das dependências químicas por substâncias lícitas ou ilícitas. Dessa forma, fechava-se a possibilidade para que um sem-número de pessoas com outras enfermidades mentais pudessem ser protegidas com restrições parciais de sua autonomia.386 Em relação ao excepcional sem desenvolvimento mental completo, a redação do dispositivo provocava ambigüidades, pois elencava essa categoria em um inciso separado das demais, no qual não associava a expressão “redução do discernimento”. Nesse contexto, gerava a dúvida: A pessoa com atraso no desenvolvimento necessitaria de um comprometimento da faculdade da compreensão para ser declarada como tal ou sempre o deveria ser? 387 Ademais, a tentativa da legislação civil brasileira de fazer corresponder um determinado transtorno mental a certo grau de discernimento não encontrava respaldo na prática clínica da psiquiatria, uma vez que a dependência de álcool e tóxicos pode ser tal que iniba totalmente a compreensão dos fatos da vida, de modo a implicar incapacidade absoluta. Pela mesma razão, nem sempre a situação de ebriedade ou toxicomania implica qualquer diminuição do discernimento. Outro exemplo relevante é a prodigalidade, pois o pródigo é o indivíduo que gasta desmedidamente, dissipando seus bens, sua fortuna, estando susceptível à restrição relativa da capacidade, de acordo com a norma civil. Contudo, se a dissipação da fortuna advém de estado patológico que afeta a saúde mental do indivíduo como um todo, o caso será de incapacidade por falta de discernimento. 388 Logo, para que isso seja possível, o instituto da interdição deve ser adotado apenas quando isto ocorrer em proveito da própria pessoa com deficiência, de maneira transitória, sempre sujeito a reanálises, e de maneira parcial, como regra.” GONZAGA, op cit, p. 90. 386 TABORDA, José G.V. et. al. A avaliação da capacidade civil e perícias correlatas. In: TABORDA, José. et.al. Psiquiatria Forense. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 177-190. p. 178. 387 Ibidem, p. 180. 388 VENOSA, op cit, p. 264. 120 Sob esse prisma, é imprescindível a sensibilidade dos magistrados para compreender que a deficiência não possui origem apenas biológica, mas também nas condições de vida de cada um. É salutar enxergar a pessoa e sua história antes de querer enquadrá-la em uma categoria de transtorno mental, que muitas vezes nem a própria medicina consegue precisar com exatidão. Nesse âmbito, conhecer o novo conceito sobre pessoa com deficiência, introduzido pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, faz uma relevante diferença nesse processo. Ademais, constatava-se a inexistência de uniformidade terminológica entre a Convenção da ONU e o Código Civil de 2002. O tratado emprega expressões mais abrangentes como “deficiência mental” (patologias mentais) e “deficiência intelectual” (limitação cognitiva), enquanto a legislação interna era mais minuciosa, usava conceitos imprecisos como “enfermidade mental, deficiência mental, excepcional sem desenvolvimento completo”. Essa disparidade terminológica se acentuava em face da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial da Saúde, e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR) da Associação Psiquiátrica Americana, que empregam a expressão “transtornos mentais” para designar todos os casos de doenças mentais, de transtornos da personalidade e de deficiência intelectual.389 Dessa forma, seria mais sensato que o Código Civil tivesse adotado linguagem mais técnica, com menos minúcias, pois era notória a dificuldade que enfrentava a doutrina para diferenciar o alcance jurídico das expressões “enfermidade”, “deficiência mental” e “pessoa excepcional sem desenvolvimento mental completo.” Além disso, percebe-se que, na prática, a definição exata dessas expressões tem sua importância reduzida, uma vez que, identificada pela perícia médica a existência de um transtorno mental, é o grau de comprometimento do discernimento do indivíduo o fator preponderante para a qualificação como absolutamente ou relativamente incapaz, independente do enquadramento nos tipos legais previstos no Código Civil.390 Pelo exposto, era patente a incompatibilidade do sistema de regulação da capacidade civil do ordenamento jurídico brasileiro com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Saliente-se que embora esse tratado tenha status de norma constitucional, ele não revogou automaticamente a legislação civil, porquanto, não seria possível a aplicação direta da Convenção, que apenas apresenta as diretrizes gerais para substituição do modelo de representação por mecanismos de suporte para o exercício da 389 LEITE, Glauber Salomão. O regime jurídico da capacidade civil e a pessoa com deficiência. p. 310. 390 Ibidem, p. 318. 121 capacidade civil pelas pessoas com deficiência. A regulamentação deste é uma obrigação de cada Estado Parte. Nesse sentido, o Estatuto da Pessoa com Deficiência de 2015 revogou expressamente os dispositivos sobre incapacidade e instaurou um novo modelo de capacidade civil, que respeita a autonomia desses sujeitos, adequando-se à Convenção, conforme será analisado no capítulo 3 da II Parte desse trabalho. Destaque-se que a referida Lei operou mudanças não apenas no âmbito civil, mas em varias áreas do direito, dentre elas o direito a educação inclusiva, desfazendo as ambiguidades das normas anteriores á Convenção. § 4. A ambiguidade da legislação pátria sobre educação inclusiva No âmbito da educação, a Convenção de Nova York (2006) determina, no art. 24, como obrigação dos Estados Partes assegurar às pessoas com deficiência o aprendizado ao longo da vida, através de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis. Para a realização desse direito, a referida norma dispõe que deve ser garantido que a deficiência não será alegada como motivo para exclusão desse grupo do sistema educacional geral. Este deverá fornecer aos alunos com deficiência o apoio necessário para facilitar sua efetiva educação, por meio de medidas de apoio individualizadas e em ambientes maximizadores do desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena. 391 O dispositivo em comento deixa claro que aos estudantes com deficiência deve ser assegurado o acesso ao ensino regular, mas também um atendimento especializado para ajudá-lo a acompanhar a classe comum. Ressalte-se que esse acompanhamento não pode substituir o ensino normal, deve ser um instrumento complementar para promover a igualdade de oportunidades no âmbito da escola. Essa ideia vai ao encontro da definição de pessoa com deficiência introduzida pela Convenção, pois a falta de acessibilidade das escolas pode ser a causa da exclusão dos alunos com deficiência e não a limitação biológica. Contudo, as escolas brasileiras ainda funcionam na lógica segundo a qual a deficiência é um problema do indivíduo e não da sociedade, visto que, embora a educação 391 A Declaração de Salamanca sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educacionais Especiais, firmada na Espanha entre os dias 07 e 10 de junho de 1994, trouxe, no seu terceiro item, a noção de educação inclusiva, conclamando os Estados a adotá-la, seja no plano legislativo, seja no político. Com o advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a mera recomendação de outrora para que os Estados se empenhassem na concretização de uma escola inclusiva transformou-se em uma imposição. VOLTOLIN, op cit, p. 38. 122 seja reconhecida como um direito de todos, as instituições de ensino julgam estar preparadas para receber apenas o aluno que não apresenta nenhum tipo de necessidade mais específica. Se isso ocorrer, ele é convidado a procurar outro local "preparado" para "aquela" demanda. Dessa forma, a característica individual é compreendida como um problema do aluno e de sua família.392 A Convenção da ONU busca inverter essa lógica, colocando a deficiência como um problema localizado no ambiente social, que impõe obstáculos para a inclusão da pessoa com deficiência. Nesse contexto, a escola deve fornecer meios para a superação das barreiras sociais, dentre elas a não capacitação dos professores para lidar com os alunos com deficiência, o preconceito dos demais alunos, a ausência de acessibilidade física e tecnológica. Sublinhe-se que qualquer escola ou Governo que pratique o ensino segregado, estará violando o direito à educação inclusiva, o qual não é apenas um direito dos alunos com deficiência, é também daqueles que não as têm, porque todos precisam aprender a conviver com as diferenças e assim se desenvolverem plenamente como seres humanos e cidadãos conscientes.393 Nesse sentido, o art. 205 da CF/88 dispõe sobre a educação como um direito de todos e dever do Estado e da família, que contam com a colaboração da sociedade para promovê-la e incentivá-la. A norma declara como fins a serem buscado pela educação o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Observe-se a sequência de objetivos elencados no dispositivo, em primeiro lugar está o desenvolvimento pessoal, acompanhado da cidadania e apenas em terceiro lugar a qualificação para o trabalho.394 Entretanto, na prática, o futuro profissional é considerado como a única prioridade para a maioria das escolas brasileiras. Estas desconsideram os objetivos primordiais de desenvolver plenamente o ser humano e prepará-lo para o exercício da cidadania. Estes só são alcançados a partir da oportunidade de vivenciar as diferenças, aprendendo a respeitá-las, sendo solidário e tolerante. Dessa forma, a diversidade compõe a base fundamental da educação.395 O art. 206 da Carta Magna, por sua vez, enuncia como princípio do ensino a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. Esse dispositivo busca 392 FÁVERO, Eugênia Augusta Gonzaga. Direito à educação das pessoas com deficiência. Revista CEJ, v. 8, n. 26, p. 27-35, 2004. p. 32. 393SEGALLA, Juliana Izar Soares Fonseca, da. Direito á educação. In: FERRAZ, Carolina Valença. Et al. (Coord). Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap.1, p. 129-144. p. 129. 394Ibidem, p. 130. 395Ibidem p. 132. 123 promover a democratização do ensino no Brasil. Pois embora a escola seja vista como produtora da igualdade social, visto que através da educação todos podem se esforçar para galgar o sucesso profissional e melhores condições de vida. O ensino não é neutro, ele impõe às crianças e aos jovens os valores, modelos e regras do grupo social dominante. Estes são traduzidos em parâmetros pedagógicos, servem para a programação de conteúdo escolares, para o estabelecimento de regras, critérios e formas de avaliação.396 Dessa forma, esses recursos se configuram como instrumento pra excluir aqueles que não se adéquam aos valores sociais preponderantes, naturalizando o fracasso escolar como culpa do aluno, que não se esforça o suficiente ou não tem condições de acompanhar a turma. Nesse contexto, a educação especial se organizou fundamentada no binômio normalidade/anormalidade e transformou o ensino dos alunos com deficiência em um campo da educação especializado. Neste utilizam-se não apenas métodos pedagógicos, mas também atendimentos clínicos e terapêuticos, bem como aplicação de testes psicométricos que definem, por meio de diagnósticos, as práticas escolares.397 Assim, fomentou-se a ideia segundo a qual a escola comum não foi planejada para receber esses alunos com necessidades específicas. A Constituição Federal poderia reverter esse quadro. Contudo, suas disposições sobre a educação da pessoa com deficiência são imprecisas e geraram ambigüidades que continuaram a legitimar o ensino especial segregado, visto que o art. 208, III, estabelece como dever do Estado efetivar o direito à educação através do atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino. O termo “preferencialmente” coloca em dúvida se existe a obrigatoriedade da inclusão dos alunos com deficiência na escola regular ou se o dispositivo apenas garante o direito dos pais a optarem por matricular seus filhos em escolas especiais.398 Ademais, é preciso verificar qual o sentido atribuído pelo constituinte ao “atendimento educacional especializado.” Identificam-se posições antagônicas sobre esse conceito, uma delas o considera como modalidade de atendimento em instituição diversa da escola regular, com respaldo no texto da Portaria do MEC/CENESP n. 69/1986. 399 396BOCK, A. M. B. Psicologia da Educação: Cumplicidade Ideológica. In: MEIRA, M. E. e ANTUNES, M. A. M. Psicologia Escolar: Teorias Críticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003, p. 79-103. p. 83. 397 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília - Janeiro de 2008. Disponível em < http://portal.mec.gov.br/> Acesso em 20 nov. 2016. p. 2. 398 FERREIRA, Wyndiz. B. Direitos da pessoa com deficiência e inclusão nas escolas. 24 set/2009. Disponível em < http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/edh/redh/03/03_ferreira_direitos_deficiencia.pdf> 399 CARVALHO, Erenice Natália Soares, de. Educação especial e inclusiva no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Educação Especial, v. 26, n. 46, p. 261-276, 2013. Disponível em Acesso em 20 jan. 2017. p. 264. 124 Esse documento, no art. 1°, considera a educação especial como parte integrante da educação, cujo objetivo é o desenvolvimento do educando com necessidades especiais através do atendimento educacional especializado (AEE). Este consiste na “utilização de métodos, técnicas, recursos e procedimentos didáticos desenvolvidos nas diferentes modalidades de atendimento por pessoal devidamente qualificado (art. 6°).” Dentre as modalidades de AEE, o art. 7° apresenta: a classe comum com apoio da sala de recursos; classe comum com apoio de professor itinerante; classe especial; escola especial; serviço de atendimento psicopedagógico. Como se pode observar, a educação especial (segregada da escola regular) encontra-se como um dos métodos do atendimento educacional especializado. Pela proximidade cronológica entre a Portaria n. 69/1986 do MEC e a elaboração da Constituição Federal de 1988, é plausível que a caracterização de atendimento educacional especializado desse documento tenha embasado o art. 208 da Carta Magna.400 Contudo, a partir da incorporação da Convenção de Nova York (2006), pode-se considerar como esclarecida a interpretação do referido dispositivo, uma vez que para ser condizente com o tratado internacional, o atendimento especializado previsto pelo Constituinte não pode ser entendido como separação do ambiente escolar comum. Ele deve funcionar como um currículo á parte, oferecendo subsídios para os alunos poderem aprender conteúdos específicos a cada deficiência, concomitantemente ao ensino regular.401 Assim, a garantia de atendimento especializado não pode subtrair o direito de acesso ao mesmo espaço que os demais educandos, pois a Convenção determina como obrigação dos Estados Partes fornecer o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, para os alunos com deficiência. É imprescindível sublinhar que a Constituição fala em “atendimento educacional especializado” (AEE) e não em educação especial, o que permite a mudança de interpretação do art. 208, III, para conformá-lo, sem a necessidade de alteração do enunciado normativo, ao texto da Convenção da ONU (equivalente a emenda constitucional).402 400 CARVALHO, E. N, op cit. p. 269. 401 FÁVERO, 2007, p. 55-65 apud SEGALLA, op cit, p. 135. 402 Tal mecanismo seria correspondente a técnica da “interpretação conforma a Constituição” que impõe a juízes e tribunais interpretar a legislação ordinária de modo a realizar, da maneira mais adequada, os valores e fins constitucionais. Vale dizer: entre interpretações possíveis, deve-se escolher a que tem mais afinidade com a Constituição. Por exemplo, depois de alguma hesitação, a jurisprudência vem reconhecendo direitos previdenciários a parceiros que vivem em união estável homoafetiva. Mesmo na ausência de norma expressa nesse sentido, essa é a inteligência que melhor realiza a vontade constitucional que veda a desequiparação de pessoas em razão de sua orientação sexual. BARROSO Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 302. 125 Destaque-se que esse novo conceito de “atendimento educacional especializado,” sob a perspectiva da educação inclusiva, foi positivado na Resolução do MEC CNE/CEB n. 4/2009, Art. 5º: “O atendimento educacional especializado é realizado, prioritariamente, na sala de recursos multifuncionais da própria escola ou em outra escola de ensino regular, no turno inverso da escolarização, não sendo substitutivo às classes comuns (...).” Em face desse panorama, pode-se constatar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) apresenta problemas na sua redação, pois utilizou o termo “educação especial” ao invés de “atendimento educacional especializado”, como fez a Constituição, dando margem para interpretações contrárias a política de inclusão. Art. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. § 1º Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela de educação especial. § 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular. § 3º A oferta de educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil, de acordo com a meta de inclusão plena; VII - oferta de educação especial preferencialmente na rede regular de ensino; e VIII - apoio técnico e financeiro pelo Poder Público às instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial Cabe observar o tratamento dado pela lei a “educação especial” e ao “atendimento especializado” como instrumentos distintos, admitindo, portanto, que a primeira substitua o ensino regular. Ademais, a norma deixa claro que apenas em alguns casos é possível a inclusão na escola comum acompanhada do atendimento especializado. Enquanto o tratado em estudo compromete os Estados Partes com a obrigação de garantir que os alunos com deficiência não sejam excluídos do sistema regular de ensino em razão da sua limitação funcional. Assim, a melhor leitura da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, especificamente em relação aos artigos 58 a 60, é aquela que interpreta a expressão “Educação Especial” conforme a Constituição, ou seja, entendida como “atendimento educacional especializado”, pois deve prevalecer o intuito constitucional de proteção e 126 garantia do direito à educação das pessoas com deficiência em detrimento da terminologia equivocada.403 O mesmo equívoco encontra-se na Lei n. 10.845/04, ao instituir o Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência, garante a universalização do atendimento especializado aos educandos com deficiência cuja situação não permita a integração em classes comuns de ensino e sua gradativa inserção nas mesmas. Nessa direção, também a resolução do Conselho Nacional de Educação da Câmara de Educação Básica CNE/CEB n. 2/2001 legitima a classe especial dentro da escola regular, visto que o art. 9° dispõe sobre a possibilidade extraordinária de a escola criar salas especiais, em caráter provisório, para “alunos com dificuldades acentuadas de aprendizagem ou condições de comunicação e sinalização diferenciadas dos demais e que demandem ajudas e apoios intensos e contínuos.”404 Os textos mencionados refletem um sistema de educação misto, no qual embora exista a perspectiva da inclusão escolar, ou seja, uma escola única para todos os estudantes. Também admite espaços separados, socialmente restritivos, para alunos com deficiência. Estes podem possuir caráter substitutivo na medida em que os textos normativos legitimam as instituições com atuação exclusiva em educação especial.405 Essa modalidade educativa é incompatível com a Convenção de Nova York (2006), que assegura um sistema educacional inclusivo e não apenas o direito à educação. A ideia de sistema corresponde a mudanças amplas e estruturais em todos os níveis, a reformulação do projeto político e pedagógico, abarcando não só os professores, mas a escola como um todo, os demais alunos, os funcionários e o material didático.406 O sistema articula a disseminação da filosofia inclusiva e não apenas a presença de alunos com deficiência que continuam isolados, embora se encontrem no mesmo espaço que os demais. Destaque-se que o ensino coletivo é pressuposto para ser "escola", e para ter a coletividade como público, a instituição de ensino não pode ser discriminatória. Conquanto, alguns alunos precisem de cuidado especial para que possam ter pleno acesso à educação. Tal necessidade não pode significar seu confinamento em uma sala/instituição longe dos demais. 403 SEGALLA, op cit, p. 140 404 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Básica CNE/CEB n. 2/2001. Disponível em: Acesso em: 15 jan. 2017. 405 CARVALHO, E. N, op cit, p. 271 406 FERREIRA , Luiz Antônio Miguel. Do Direito à Educação. In: LEITE, Flávia Piva Almeida et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 158. 127 Ao contrário, deve-se oferecer subsídios para que os alunos com deficiência possam aprender no ensino comum. 407 Nesse contexto, o papel das instituições especializadas em educação especial evoluiu, agora cabe a elas dá suporte, ensinar a escola regular a receber todos os alunos. Ao invés de oferecer ensino segregado, devem destinar-se a oferecer um conjunto de instrumentos e recursos auxiliares e complementares à educação formal, servindo inclusive para capacitação de pais e profissionais.408 Conforme demonstrado, as legislações sobre temas essenciais para a pessoa com deficiência como a definição desse segmento social, a capacidade jurídica e a educação são abordados na legislação brasileira de forma incongruente com a Convenção de Nova York (2006). Destarte, em um primeiro momento, os impactos desse tratado, com equivalência de emenda constitucional, sobre o ordenamento jurídico brasileiro foi evidenciar essas incompatibilidades, lançando luzes sobre a necessidade de promover medidas para adequação desses diplomas. Nesse sentido, a segunda parte do trabalho irá elucidar quais são os mecanismos utilizados pelo Brasil para solucionar essas inadequações e realizar a implementação da norma internacional. 407 FÁVERO, op cit, p. 30. 408 SEGALLA, op cit, p. 142. 128 SEGUNDA PARTE A IMPLEMENTAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A incorporação da Convenção de Nova York (2006) com status de emenda constitucional, sem dúvidas, foi um passo fundamental para o avanço na promoção dos direitos das pessoas com deficiência. Contudo, como observado, isso não é o suficiente para garantir a sua implementação, pois o ordenamento jurídico é apenas o substrato sobre o qual os sujeitos irão atuar para tornar as normas realidade. Dessa forma, a efetividade desse tratado depende da ação dos atores sociais, dos legitimados para propor as ações do controle de constitucionalidade; dos operadores do direito em utilizar as normas convencionais para defender os direitos dos indivíduos; dos magistrados em aplicá-las aos casos concretos; dos administradores em empreender recursos públicos que possibilitem o exercício e gozo de direitos; dos membros da sociedade em respeitar e promover esses direitos nas suas relações. Nesse contexto, após a delimitação do posicionamento hierárquico da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência no ordenamento jurídico brasileiro e todas as conseqüências advindas deste, nessa segunda parte do trabalho apresenta-se a construção da hipótese de pesquisa: A incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência pode contribuir com a efetivação dos direitos desse grupo no Brasil, na medida em que compromete todas as funções do Estado com a sua implementação. De modo a direcionar para que esta ocorra de forma coordenada, sistemática e em todas as esferas da atividade estatal. A priori, evidencia-se o papel do judiciário na efetivação da Convenção em estudo, essa análise é empreendida em três dimensões: no plano da jurisdição do Supremo Tribunal Federal, sob a perspectiva do controle de constitucionalidade; no âmbito da jurisdição ordinária, com fundamento no grau de aplicabilidade das normas convencionais; e um terceiro aspecto a ser abordado é a questão do acesso à justiça nacional e às Cortes Internacionais. Saliente-se que no âmbito internacional, os Tribunais não possuem a mesma centralidade que ocupam no plano estatal, devido às características próprias dessa jurisdição, cuja competência depende do consentimento dos Estados, inexiste hierarquia entre os órgãos, 129 e está ausência de execução forçada das decisões judiciais.409 A partir dessas considerações, passa-se a analisar os mecanismos externos não judiciais que podem promover a efetivação do tratado em estudo e a incidência destes sobre o Estado brasileiro. Nesse sentido, examina-se o sistema de monitoramento e implementação delineados na Convenção de Nova York (2006). Nesse âmbito, desempenha função importante o Executivo, pois caberá a ele designar e instituir as competências do órgão central responsável pela implementação da Convenção e de um órgão independente para realizar o monitoramento interno. Ademais, será examinado como ocorre a utilização dos recursos públicos e do aparelho estatal para promover os objetivos da Convenção. Os principais instrumentos abordados são as políticas públicas e as ações afirmativas, verificando-se como eles estão sendo aplicado para promover melhores condições de vida e igualdade de oportunidades pra as pessoas com deficiência. Por fim, investiga-se a função do Legislativo na efetivação da Convenção, evidenciando a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em 6 de julho de 2015, como o principal instrumento para solucionar as incompatibilidades entre a legislação nacional e o tratado; a regulamentação das normas convencionais nas hipóteses necessárias e a instituição de novos mecanismos de efetivação. 409FINKELSTEIN, Cláudio. Hierarquia das normas do Direito Internacional: jus cogens e metaconstitucionalismo. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 32. 130 Capítulo 3. O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA EFETIVAÇÃO DA CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Em face do status de emenda constitucional da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, cabe ao judiciário não apenas a aplicação dos seus dispositivos, mas também o controle abstrato da legislação infraconstitucional que for com ela incompatível. A partir da análise desse controle, pretende-se avaliar os efeitos jurídicos da Convenção de Nova York (2006) sobre as demais normas do ordenamento jurídico. Enquanto, no âmbito da jurisdição ordinária, será objeto de análise a aplicabilidade da Convenção pelo juiz nacional. A seguir, apresentam-se os instrumentos processuais aptos a trilhar o caminho do jurisdicionado com deficiência até o acesso a prestação jurisdicional. Por fim, considerando que nem sempre a justiça brasileira consegue cumprir o seu papel na promoção e proteção dos direitos das pessoas com deficiência, discute-se o acesso às Cortes Internacionais de Direitos Humanos nos casos de violações perpetradas pelo Estado brasileiro contra as pessoas com deficiência. Dessa forma, procura-se esclarecer como a jurisdição internacional pode contribuir para implementação da Convenção de Nova York (2006) no âmbito interno. 131 Seção 1. A tutela dos direitos das pessoas com deficiência no judiciário brasileiro A proteção dos direitos das pessoas com deficiência através do judiciário pode ser promovida em dois âmbitos distintos. No processo objetivo, por meio do controle concentrado de constitucionalidade, que incide sobre as normas em abstrato e independente dos fatos concretos.410 Nesse contexto, desenvolve-se a questão acerca da natureza desse controle, investigando se o status de norma constitucional afastaria o controle de convencionalidade, sendo aplicado apenas o controle de índole constitucional. Para tanto, apresentam-se a distinção entre cada tipo de controle, os efeitos e características de cada um, bem como as hipóteses de incidência. Por outro viés, no processo subjetivo, perante as instâncias ordinárias, defendem-se direitos e interesses de sujeitos determinados.411 Neste, também cabe o controle de constitucionalidade difuso, cuja eventual declaração de inconstitucionalidade produzirá efeitos apenas entre as partes. Nesse contexto, a aplicabilidade do tratado pelo juiz traduz a possibilidade de um caso concreto ser regulado por seus dispositivos.412 Nesse âmbito, questiona-se sobre a natureza das normas convencionais, buscando verificar se o seu formato de diretrizes gerais seria um óbice a sua aplicação direta. Destaca-se o papel primordial da atividade interpretativa do magistrado na possibilidade ou não da aplicação imediata dessas normas. Como a atividade judiciária é regida pelo princípio da inércia, ou seja, apenas tem início quando é provocada413, apresentam-se os principais instrumentos processuais à disposição do operador do direito para obter a prestação jurisdicional capaz de satisfazer às necessidades das pessoas com deficiência. Nesse contexto, abordam-se as hipóteses em que é cabível a tutela individual ou coletiva; os legitimados a propor cada tipo de ação; as possibilidade de indenização por danos morais e materiais e as tutelas de urgência ou provisória. 410 CINTRA, Antonio Carlos Araújo, de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27 ed. São Paulo: Malheiros Editores. p. 310. 411 Ibidem. p. 310. 412 Carlos Maximiliano, 1951, p. 19 apud SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 51. 413 CINTRA; GRINOVER e DINAMARCO, op cit, p.72. 132 § 1. O Supremo Tribunal Federal e o controle de convencionalidade ou de constitucionalidade a partir da Convenção O Supremo Tribunal Federal enquanto Corte constitucional tem como função precípua a “guarda da Constituição,” a sua defesa em face de leis infraconstitucionais que atentem contra os seus preceitos. Sob esse prisma, o controle de constitucionalidade concentrado é um mecanismo que garante a superioridade da Carta Magna, tornando nulas as normas inferiores que com ela conflitem. Dessa forma, esse escalonamento do sistema jurídico mantém a sua estabilidade através da atividade da Corte Suprema. Sob essa ótica, o status formal de norma constitucional da Convenção de Nova York (2006) só terá eficácia jurídica, se através da aplicação do controle de constitucionalidade, esta for capaz de produzir os efeitos que lhe são próprios, ou seja, a invalidade das normas incompatíveis. O que não se confunde com a eficácia social, que corresponde à capacidade da norma para transformar a realidade, adequando-a aos seus preceitos. 414 Nessa esteira, realizou-se uma busca no site do STF, a partir dos termos “Convenção” e “pessoa com deficiência” e foram encontrados oito documentos. Destes, a maioria utiliza o referido tratado como um dos fundamentos da decisão, apresentado em conjunto com a Constituição ou leis infraconstitucionais. Apenas dois configuram-se como ações do controle concentrado, adotando o tratado como parâmetro, a saber, a ADPF n.182 de 2009 e a ADI n. 5.265 ajuizada em 2015.415 A Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental ADPF n. 182 foi ajuizada, perante o Supremo Tribunal Federal, pela Procuradoria Geral da República, em 10 de julho de 2009, com o fito de reconhecer que o § 2º do artigo 20 da Lei n. 8742/93, Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), não foi recepcionada pela Convenção da ONU sobre o Direito das Pessoas com Deficiência. Ressalte-se que embora a petição inicial faça referência a não recepção da norma, o fenômeno passível de ocorrer nesse caso é o de “revogação”, visto que o STF não admite a 414 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 66 415 Em 18 de fevereiro de 2015, foi interposta a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ADO n. 30, pelo Procurador Geral da República Rodrigo Janot, contra o inciso IV do artigo 1º da Lei Federal n. 8.989, de 24 de fevereiro de 1995, que dispõe sobre a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para pessoas com deficiência e exclui desse rol as pessoas com deficiência auditiva. Contudo, na petição inicial não foi encontrada qualquer referência à Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com deficiência. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade por Omissão n. 30 – Distrito Federal. Relator: Ministro Dias Toffoli. Acompanhamento processual. Disponível em:< http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp> Acesso em 9 março. 2017. 133 teoria da inconstitucionalidade superveniente. Conforme fundamentação apresentada na ADI 02, julgada em 1997, a declaração de inconstitucionalidade da lei tem como conseqüência a sua nulidade absoluta e se a lei foi corretamente editada quando da Constituição anterior, ela não pode ser considerada nula desde sempre, esta apenas deixa de operar com o advento da nova Carta, sendo, portanto, revogada e não declarada inconstitucional. Por outro lado, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, nos termos da Lei n.9.882/1999, possibilita o exame do direito pré-constitucional, desde que se configure controvérsia relevante sobre a legitimidade de tal direito em face de preceito fundamental da Constituição.416 A Lei Orgânica de Assistência Social regulamenta o artigo 203, V, da Constituição Federal de 1988, que prevê o benefício da prestação continuada às pessoas com deficiência e aos idosos independentemente de contribuição à seguridade social, garantindo um salário mínimo mensal àqueles que comprovem não possuir meios para prover a própria subsistência ou de tê-la provida por sua família. Do dispositivo em tela, observa-se que a Carta Magna reservou à lei a tarefa de delimitar a quem seria destinado o benefício, tendo como diretriz a insuficiência de recursos financeiros. Atendendo a essa determinação, o artigo 20 da Lei n. 8742/93 dispôs: O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. § 2º Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho.417 A Procuradoria Geral da República apontou que, de acordo com esse dispositivo, não tem direito ao benefício a pessoa considerada capaz para a vida independente e para o trabalho, ainda que apresente impedimento mental, físico, intelectual ou sensorial que comprometa gravemente sua participação em igualdade de condições na sociedade e que viva em condições de miserabilidade.418 Dessa forma, esse direito que aparentemente deveria ser um benefício, na verdade, se configurava como um mecanismo de perpetuação da pobreza, pois para ser concedido exigia que o destinatário se encontrasse em situações de 416 MENDES, op cit, p. 125. 417 BRASIL. Lei nº 8742/93163, de 7 de dezembro de 1993, Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Disponível em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm> Acesso em 28, fev. 2015. 418Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 182- Distrito Federal. Relator: Ministro Celso de Mello. Acompanhamento Processual. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp> Acesso em 14 março. 2017. 134 vulnerabilidade praticamente irreversíveis.419Ademais, para continuar recebendo a prestação essa circunstância deveria permanecer inalterada com o tempo.420 Como evidenciado, a Lei n. 8.742/93 tinha como pressuposto um conceito de pessoa com deficiência baseado no modelo médico, que desconsiderava o fato da deficiência também ser conseqüência de fatores do meio social. Nessa perspectiva, o tratamento assistencialista não visava a promover a autonomia dessas pessoas, mas sim mantê-las na posição de objetos de políticas públicas. Assim, restou claro o desrespeito ao conceito de pessoa com deficiência, introduzido pelo art. 1° da Convenção de Nova York (2006), fundamentado na busca pela autonomia e independência desses sujeitos. Nesse contexto, a ADPF n. 182 é um exemplo do Controle Jurisdicional de Convencionalidade interno das leis. Todavia, é importante destacar que a referida ação ainda não foi julgada pelo STF. Nesse caso, tal controle foi realizado pelo legislativo, através da promulgação da Lei n. 12.470/11 que alterou, dentre outros dispositivos, o artigo 20 da Lei n. 8.742/93, cuja redação passou a ser a seguinte: Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. § 2° Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. 421 Desse modo, o § 2º do artigo 20 da LOAS passou a vigorar com o conceito de pessoa com deficiência estabelecido no artigo 1º da Convenção da ONU. A partir dessa nova redação, o benefício deve ser concedido a todas as pessoas que, independente da capacidade 419 GOMES, Ana Lígia. O Benefício da prestação continuada: uma trajetória de retrocessos e limites- Construindo possibilidades de avanços. Revista de Direito Social, ano 1, n. 4, p. 64-87, 2001. p. 82. 420 Que recompensa afinal era prevista ao beneficiário da assistência social que, sendo uma pessoa com deficiência, na busca de independência e auto respeito, ousava romper no mercado de trabalho formal, superando todos os obstáculos (que em verdade lhe eram e são impostos pela sociedade e não pela natureza)? Paradoxalmente, a recompensa não era atribuição de um prêmio, mas a imposição de uma pena, um castigo por tal ousadia; concretamente: a extinção do benefício. FEIJÓ, Alexsandro Rahbani Aragão. O controle de convencionalidade e a convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência: O caso da ADPF 182- 0/800 – DF. Revista de direito brasileira. ano 3, v.6. set.-dez. 2013. p. 89-108. Disponível em Acesso em 14 jan. 2015. p. 102. 421 BRASIL. Lei nº 8.742/93163, de 7 de dezembro de 1993, Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Disponível em < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8742.htm> Acesso em 28, fev. 2015. 135 para o trabalho, não conseguem manter-se com recursos próprios ou de sua família. Somente a pessoa com deficiência inserida no mercado de trabalho e com recursos financeiros suficientes para prover satisfatoriamente suas necessidades fundamentais de forma autônoma terá cessado o benefício. Sob esse prisma, a prestação continuada se configura como um auxílio temporário para que esses indivíduos consigam alcançar sua autonomia. Ressalte-se que o controle de convencionalidade legislativo, exercido no presente caso, encontra previsão na doutrina tanto na versão preventiva, quando o legislativo não aprova lei inconvencionais; como na modalidade repressiva, através da revogação das leis que violam uma Convenção Internacional, bem como pela edição de leis com a finalidade de tornar efetivos os direitos previstos no Pacto. 422 Observe-se que na ADPF n. 182 não foi utilizado o termo “controle de convencionalidade”, mas sim “controle de constitucionalidade” com fundamento no status constitucional da Convenção de Nova York (2006). Nesse contexto, cabe a indagação: Em razão da qualidade de equivalência de emenda constitucional, a Convenção de Nova York (2006) seria parâmetro apenas para o controle de constitucionalidade e não de convencionalidade? Conforme a teoria do “diálogo das fontes,” apresentada no § 3º do capítulo 2 desse trabalho, no mesmo ordenamento jurídico podem existir duas fontes distintas de mesma hierarquia (no caso, a Constituição de 1988 e a Convenção de Nova York de 2006) dispondo sobre o mesmo assunto “a proteção da pessoa com deficiência.” As normas de diferentes origens convivem harmonicamente, pois eventuais incompatibilidades entre elas serão resolvidas por um “diálogo” estabelecido pelo magistrado à luz do caso concreto, priorizando a aplicação da norma mais benéfica ao indivíduo, sem excluir do ordenamento jurídico a outra disposição normativa.423 Nesse âmbito, a proteção da pessoa com deficiência passa a contar com dois parâmetros distintos: o controle de constitucionalidade, quando a legislação infraconstitucional for compatível com a Constituição e com as normas da Convenção que tenham correspondência no texto constitucional. E o controle de convencionalidade, por sua 422 MAZZUOLI, Valério Oliveira, de. O controle jurisdicional de convencionalidade das leis, p. 126. 423 MAZZUOLI, Valério Oliveira, de. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno: da exclusão à coexistência, da intransigência ao diálogo das fontes, p.102; AMARAL JUNIOR, op cit, p. 137- 147. Ver explicação sobre a “teoria do diálogo das fontes” no § 3º do Capítulo Segunda Parte (As conseqüências do status de emenda constitucional da Convenção de Nova York). 136 vez, quando as normas ordinárias estiverem de acordo com a Constituição, mas em discordância com a norma internacional.424 Destaque-se que a declaração de inconstitucionalidade opera em duas dimensões, tanto com relação à vigência da norma, como no que diz respeito a sua validade. A primeira consiste na regularidade do ato normativo, ou seja, a obediência às formas prescritas para a sua produção, corresponde ao plano da existência, ao pertencimento da norma ao ordenamento jurídico. Enquanto a validade resulta da conformidade do conteúdo normativo com os valores estabelecidos por outras normas superiores.425 Assim, as normas podem ser vigentes, no plano formal, mas invalidas sob a perspectiva material. Esse fenômeno ocorre no caso da declaração de inconvencionalidade, que atinge apenas a validade da norma, mas não a sua vigência. Nesse caso, ela continuará existindo, mas deverá ser rechaçada pelo juiz no caso concreto.426 No caso da LOAS, pode-se argumentar que ela viola a Constituição Federal de 1988, na medida em que a Carta Magna reservou à lei a tarefa de delimitar a quem seria destinado o benefício, tendo como única diretriz a insuficiência de recursos financeiros para a própria manutenção. Entretanto, a Lei Orgânica de Assistência Social ultrapassou esse mandamento, acrescentando o requisito da incapacidade do beneficiado para o trabalho e para a vida independente. O que exclui a possibilidade do recebimento da prestação por uma pessoa com deficiência que embora trabalhe, a remuneração recebida é insuficiente para a sua sobrevivência, em face dos elevados gastos com medicamentos e tratamentos. Sob esse prisma, à luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, não faz sentido que o sistema normativo tenha limitado a proteção assistencial a um campo de pessoas que já se encontram em condição de miséria. Pelo contrário, a assistência social deve ter uma natureza preventiva ou acautelatória, substituindo-se a ideia de direcionar-se para situação de “limite da indigência” com o suprimento apenas das necessidades vitais.427 424 Na doutrina de Mazzuoli, encontra-se a ideia de que o controle constitucional existe apenas quando ocorre afronta à Constituição propriamente dita. Partindo desse pressuposto, para os direitos previstos tanto na Constituição como no Tratado Internacional será cabível o controle de constitucionalidade. Por outro lado, quando ocorrer afronta a direito com previsão apenas na norma internacional haverá controle de convencionalidade (e não de constitucionalidade, porque não houve violação da Constituição). MAZZUOLI, Valério Oliveira, de. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, p. 153. 425 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 333. 426 MAZZUOLI, Valério Oliveira, de. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, p. 133. 427 SAVARIS, José Antônio. Os Direitos de previdência e assistência social das pessoas com deficiência. In: FERRAZ .et al. Manual dos direitos da Pessoa Com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. 5, p.229- 259. 137 Destarte, seria possível considerar a inconstitucionalidade da LOAS através de dispositivos da própria Constituição, sem fazer alusão à Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, tratando-se, portanto, de controle de constitucionalidade. Nesse sentido, inclusive, a Advocacia Geral da União, na sua manifestação na ADPF n. 182, argumentou que inexiste incompatibilidade entre o conceito de pessoa com deficiência da LOAS e da Convenção, visto que a norma interna aborda o critério de identificação de uma classe específica de indivíduos que, além de deficientes, são também hipossuficientes, necessitando de amparo financeiro do Estado. Enquanto o tratado internacional apresenta uma definição genérica de pessoa com deficiência e não dispõe sobre o grupo específico identificado na legislação de assistência social. Dessa forma, inexiste colisão entre os dois diplomas. 428 Por outro viés, pode-se considerar a inexistência de conflito com a Carta Magna, pois esta delega à legislação ordinária a tarefa de regulamentar a concessão do benefício e isso inclui a especificação de quem seja a pessoa com deficiência beneficiada por essa política pública. Não havendo, portanto, incompatibilidade com o art. 203 da Constituição, mas sim com a Convenção de Nova York (2006), uma vez que esta busca promover a emancipação das pessoas com deficiência, enquanto a LOAS, ao estabelecer o benefício apenas para as pessoas incapacitadas para o trabalho e para a vida independente, desestimula a conquista da autonomia por esses indivíduos. Sob essa perspectiva, seria aplicável o controle de convencionalidade e não de constitucionalidade, pois houve afronta apenas à norma internacional, sem violação da Constituição. Destarte, a natureza do controle (convencionalidade ou constitucionalidade) irá depender da interpretação aplicada na análise da norma em relação à Convenção de Nova York (2006) e à Constituição Federal de 1988. Sendo importante a distinção, na medida em que os efeitos do controle de constitucionalidade diferem da declaração de inconvencionalidade. Como observado, enquanto o primeiro opera no âmbito da vigência e validade, o segundo produz apenas a invalidade da lei incompatível. Outra ação que buscou o controle de constitucionalidade, adotando como parâmetro a Convenção de Nova York (2006), foi a ADI n. 5.265 ajuizada, em 13 de março de 2015, pela Procuradoria Geral da República, contra o § 3º do art. 98 da Lei n. 8.112, de 11 de 428Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF n. 182, Relator: Ministro Celso de Mello. Lex: Supremo Tribunal Federal. Acompanhamento Processual. Disponível em:< www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2690086> Acesso em 15 jan. 2017. 138 dezembro de 1990. O qual concede apenas ao servidor público que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência física o benefício do horário especial.429 Argumenta-se que o referido dispositivo viola o princípio da isonomia, estabelecido no caput do art. 5º da Constituição da República, ao fazer referência apenas à deficiência física, tratando de forma diferente os servidores que possuem familiares com outros tipos de deficiência. Com efeito, a lei discrimina de forma arbitrária as pessoas com deficiência mental, intelectual e sensorial, pois não existe justificativa razoável para essa restrição. O Ministério Público, em seu parecer, invocou o conceito da Convenção de Nova York (2006), art. 1º: “pessoa com deficiência, aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial (...)”. E destacou que a Convenção assegura a todas elas, em igualdade de condições e independentemente da natureza da deficiência, o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, assim como, no art. 5º, igual proteção e igual benefício da lei sem discriminação. Entretanto, o Parquet propugnou pelo não conhecimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, pois se trata da incompatibilidade de lei pretérita com emenda constitucional superveniente e, nessa hipótese, ocorre a revogação da disciplina infraconstitucional que com a norma superior seja incompatível, sem necessidade de declaração de inconstitucionalidade. Ressalte-se que a referida ação ainda não foi julgada, encontrando-se conclusa para o relator Ministro Teori Zavascki. Caso venha a ser acolhida a tese do Ministério Público pelo Supremo Tribunal Federal, será um grande avanço, pois terá se configurado o controle de convencionalidade430, admitindo-se a revogação direta de uma legislação nacional pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Dos julgados apresentados, observa-se que a terminologia “controle de convencionalidade” é pouco utilizada, o STF tem empregado a Convenção de Nova York (2006) como parâmetro na perspectiva de um controle de constitucionalidade, em razão do seu status de emenda constitucional, sem atentar para as minúcias doutrinárias que distinguem o controle de convencionalidade e de constitucionalidade. 429 Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n. 5265- Distrito Federal. Relator: Ministro Teori Zavascki. Lex: Supremo Tribunal Federal. Acompanhamento processual. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/pesquisarProcesso.asp> Acesso em: 07 jan. 2017. 430 Adotando a tese de Valério Mazzuoli, segundo a qual o controle de convencionalidade ocorre quando não há coincidência entre a norma da Convenção e da Constituição. Como na Carta Magna de 1988 não existe conceito de pessoa com deficiência, a violação ocorreu apenas em relação à Convenção de Nova York (2006), configurando-se, portanto, controle de convencionalidade e não de constitucionalidade. Embora a Convenção tenha status de emenda constitucional, o controle de constitucionalidade só aconteceria se houvesse violação também ao texto da Constituição. 139 Vale salientar que essa ideia da revogação direta do art. 98 da Lei n. 8.112 pela Convenção já foi adotada no âmbito do controle difuso, no Agravo de Instrumento n. 0010619-96.2015.4.01.0000/DF. Neste, a Relatora Gilda Sigmaringa Seixas considerou o art. 98 da referida lei como revogado pela Convenção de Nova York (2006). Nesse caso, o dispositivo em questão foi o § 2° e § 3°do mesmo artigo, o primeiro concede ao servidor com deficiência o direito ao horário especial sem compensação de carga horária. Enquanto o § 3° prevê a compensação de horário para o servidor pai ou cônjuge de criança com deficiência. A fundamentação, ao contrário da maioria dos julgados que apenas citam a norma internacional de forma genérica, utilizou vários dispositivos da Convenção relacionados especificamente ao caso concreto. Foi mencionado o art. 23, que versa sobre o respeito pelo lar e pela família e assegura que os Estados Partes adotarão medidas efetivas e apropriadas para eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência, em todos os aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos, em igualdade de condições com as demais pessoas; os direitos e responsabilidades das pessoas com deficiência relativos à guarda, custódia, curatela e adoção de crianças. Ademais, foi explicitado como o art. 7º da Convenção de Nova York (2006) eleva o interesse da criança a mais alta prioridade, determinando que “os Estados Partes deverão tomar todas as medidas necessárias para assegurar às crianças com deficiência o pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em igualdade de oportunidades com as demais crianças.” Destarte, o julgado destacou que a legislação nacional que exige do servidor pai de criança com deficiência a compensação de horário, enquanto não requer a mesma obrigação para o servidor com deficiência, é desarrazoada e não atende ao escopo das normas veiculadas na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. A relatora advertiu que não existe justificativa para garantir ao servidor com deficiência uma proteção maior, uma pessoa já formada e detentora de cargo público, do que aquela conferida à criança com deficiência, ainda em formação, sob a dependência e cuidados de um servidor público e, portanto, ainda mais necessitada de assistência. Tal tratamento diferenciado restringe a condição e os direitos do menor. Em face desses argumentos, considerou-se que o art. 98, § 3º, da Lei n. 8.112/90, não foi recepcionado pela Convenção de Nova York (2006), especialmente pela incompatibilidade com os artigos 7º, 23 e 28, que promovem e garantem como direitos fundamentais a máxima proteção da criança com deficiência, no que tange ao seu convívio com a família, à dignidade de sua condição, educação e formação, bem como os deveres de guarda e cuidado que lhe 140 devem garantir o Estado, a sociedade e a família. A decisão considerou que a posterior incorporação da Convenção, com status de emenda constitucional, afasta a hipótese de inconstitucionalidade, pois a norma incompatível é pretérita a ela, configurando-se verdadeira revogação.431 Vale salientar que, nesse julgado, os dispositivos da Convenção de Nova York (2006) foram aplicados diretamente para afastar a aplicabilidade de norma com ela incompatível, operando efeitos concretos para as partes, independente de legislação nacional intermediária que traduzisse os direitos da Convenção à situação específica da compensação de horário no serviço público. Nesse sentido, cabe ressaltar que a ausência de lei integradora, quando não inviabilize totalmente a aplicação do preceito convencional, não é empecilho a sua concretização pelo Juiz, visto que o art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro dispõe: "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito." 432 Saliente-se que, nesse caso, foi operado o controle de constitucionalidade difuso, realizado por qualquer juiz ou Tribunal na análise de um caso concreto, seja a pedido das partes, como questão prejudicial, ou de ofício. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade são restritos à demanda em questão, ou seja, apenas subtrai as partes dos efeitos de uma norma eivada de vício de inconstitucionalidade, e a norma continua vigente e aplicável no ordenamento jurídico.433 Salvo, quando o controle difuso for exercido pelo STF e o Senado, conforme a regra constitucional do art. 52, X, suspender a execução da norma. Apenas a decisão da ação do controle concentrado, que continua aguardando julgamento no STF, poderia retirar, automaticamente, a vigência e a validade do art. 98 da Lei. n 8.112/90. Todavia, destaque-se que, mais uma vez, o Legislativo se antecedeu ao controle de constitucionalidade da Suprema Corte e promulgou, no dia 13 de dezembro de 2016, a Lei n. 13.370 que estende o direito ao horário especial ao servidor público federal 431 Tribunal Regional Federal (1. Região). Agravo de Instrumento n. 0010619-96.2015.4.01.0000/DF. Agravante: Klaus Reitz. Agravada: Agência Nacional de Águas – ANA. Relatora: Ministra Desembargadora Gilda Sigmaringa Seixas. Brasília, 31 de maio de 2016. Lex: Diário Oficial, Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Seção Caderno Judicial - TRF1 , p. 410. Disponível em: Acesso em: 25 jan. 2017. 432BARROSO, Luis Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de Direito Administrativo, v. 197, p. 30-60, 1994. Disponível em:< http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46330> Acesso em 20. Jan. 2017. p. 50. 433 FERRARI, Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 86. 141 que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência de qualquer natureza e independente de compensação de horário. Dessa forma, a solução da incompatibilidade de uma lei infraconstitucional com a Convenção de Nova York (2006) ocorreu novamente pela via do controle de convencionalidade legislativo repressivo. Consoante demonstrado, são poucas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade com fundamento na Convenção e as duas encontradas não chegaram a ser julgadas, sendo as incompatibilidades resolvidas pela via legislativa. Destarte, pode-se concluir que o controle de constitucionalidade judicial não tem se revelado um mecanismo eficaz, no sentido de ser um meio adequado para produzir efeitos em relação à superioridade da Convenção de Nova York. O que revela que a inserção, no texto da Constituição, de salvaguardas formais de sua supremacia não é suficiente para assegurar a sua efetividade,434 se os encarregados do cumprimento da Constituição não considerarem esses mecanismos como úteis. Nessa esteira, cabe ressaltar que as Convenções internacionais se caracterizam por apresentarem uma linguagem vaga e significados pouco precisos. Contudo, o modo incompleto ou inacabado das suas expressões se justifica pela necessidade de atender às expectativas de nações com diferentes realidades sociais. Tal fato confere singular importância ao papel dos destinatários do seu discurso para o estabelecimento da sua eficácia ou supremacia, pois, em muitos aspectos, a própria definição dos contornos do texto convencional dependerá da interpretação atribuída pelos seus destinatários. 435 Em face desse panorama, se impõe a reflexão de que os efeitos das normas com status constitucional sobre a legislação ordinária ocorrem de forma contingente. Em outras palavras, a nova lei suprema, ao entrar em vigor, não revoga de forma automática as normas incompatíveis. Essa modalidade eficacial para se instaurar depende sempre da interpretação e da conduta daqueles encarregados do cumprimento das normas em questão. A Supremacia das normas constitucionais dependerá, portanto, do modo como os destinatários da mensagem normativo-constitucional a cumpram, quer se trate daqueles agentes estatais dotados de competência normativa, como legisladores, juízes e administradores, quer se trate dos demais integrantes da população, pela sua atitude de mobilização, fiscalização e cobrança.436 Assim, observa-se que a conversão da norma com status de emenda constitucional em força normativa dependerá da consciência geral sobre a necessidade de cumpri-la, 434 GEOGARKILAS, Ritinha Alzira Stevenson. A Constituição e sua supremacia. In: FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio júnior; Diniz, Maria Helena; GEORGAKILAS, Ritinha Alzira Stevenson. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989. Parte III, p.93-122. p. 123. 435 Ibidem, p. 123. 436 Ibidem, p. 100. 142 particularmente da consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional. Nestes deve habitar não só a vontade de poder, mas também a vontade de concretizar a Constituição.437 Nesse âmbito, constatado que o controle de constitucionalidade concentrado é um mecanismo pouco utilizado para garantir a supremacia da Convenção de Nova York (2006), passa-se a investigar se o tratado em estudo está sendo aplicado pelo juiz nacional aos casos concretos. § 2. A aplicação da Convenção de Nova York pelo juiz nacional As pessoas com deficiência têm seus direitos diariamente desrespeitados, desde os mais simples como o direito ao atendimento preferencial até as violações mais graves que as privam de um ensino de qualidade, das prestações de saúde, os atos que atentam contra a sua dignidade, como discriminações, abusos e explorações. Nesse sentido, o acesso à tutela jurisdicional é de suma importância para prevenir e reprimir tais situações. Como evidenciado, a Convenção de Nova York (2006) apresenta vários dispositivos para efetivação desses direitos. E a aplicabilidade destes pelo juiz nacional traduz a possibilidade da sua incidência sobre os casos concretos. Portanto, corresponde à capacidade da norma de submeter as suas prescrições uma relação da vida real e tem como objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente o interesse humano.438 Sob essa perspectiva, destaque-se que a distinção entre normas constitucionais auto- aplicáveis ou não auto-aplicáveis surgiu a partir da observação de que as Constituições apresentam normas, princípios e regras de caráter geral, cujas minúcias de sua aplicação devem ser convenientemente desenvolvidas pelo legislador ordinário. Enquanto as normas auto-aplicáveis seriam aquelas que desde logo são revestidas de plena eficácia jurídica, por regularem diretamente situações ou comportamentos. 439 Ressalte-se que não existe norma constitucional alguma destituída de eficácia. Todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre uma inovação da ordem jurídica preexistente, pois não se pode olvidar o enunciado do § 1° do art. 5° da Constituição Federal que declara a aplicação imediata de todas as normas sobre direitos fundamentais. Contudo, é preciso considerar que estas são aplicadas até onde sejam suscetíveis de execução. A questão 437HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 15- 19. 438 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. 439SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 73-74. 143 consiste em saber a determinação desse limite, quais os efeitos parciais e possíveis de cada uma. Dessa forma, as normas diferenciam-se quanto ao grau de seus efeitos jurídicos.440 As normas constitucionais de eficácia plena são aquelas que, desde a sua entrada em vigor, têm aptidão para produzir todos os seus efeitos essenciais, cumprindo os objetivos visados pelo legislador constituinte, visto que este criou uma normatividade suficiente para incidir direta e imediatamente sobre a matéria disciplinada. As normas de eficácia contida também apresentam essa mesma qualidade, porém, existe a previsão de meios ou conceitos que permitem manter sua eficácia restrita a certos limites e em face de determinadas circunstâncias. Por outro viés, os dispositivos de eficácia limitada ou reduzida não produzem todos os seus efeitos a partir da vigência, porque o constituinte remeteu ao legislador ordinário a regulamentação necessária para sua execução.441 Destaque-se que, em geral, se proclama a ideia de que os tratados de direitos humanos apresentam diretrizes gerais a serem seguidas pelos Estados Partes de acordo com suas legislações internas, que irão regulamentar e especificar os direitos ali esboçados. Afinal, os textos dos tratados são fruto de negociações que visam a atender as diferentes realidades sociais dos Estados, apresentando, portanto, linguagem aberta e ampla, com significados vagos a serem adaptados e completados pelo legislador pátrio. Seriam, portanto, normas de eficácia limitada ou reduzida. Em verdade, muitos dispositivos da Convenção de Nova York (2006) possuem caráter genérico e devem ser seguidos pelos Estados Partes na elaboração, aplicação e interpretação das normas internas. Todavia, esse tratado tem a peculiaridade de apresentar também conceitos operacionais como “adaptação razoável”, “discriminação por deficiência”, “desenho universal” que podem ser aplicados diretamente às situações concretas. O Recurso Especial n. 1315822/ RJ de 2015 ilustra essa possibilidade. O presente recurso é oriundo de Ação Civil Pública promovida pela Associação Fluminense de Amparo aos Cegos (AFAC) contra o Banco do Brasil, que objetiva a condenação do réu a confeccionar em Braille os contratos de adesão e todos os demais documentos fundamentais para a relação de consumo; a enviar os extratos mensais consolidados impressos em linguagem Braille para os clientes com deficiência visual; desenvolver cartilha para seus empregados com normas de conduta para atendimentos ao deficiente visual; e o pagamento de 440 Ibidem, p. 82. 441 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 84. 144 multa diária de R$ 70.000,00 pelo não cumprimento da obrigação, além de indenização no valor de R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais).442 A defesa apresentada pela instituição financeira centrou-se, exclusivamente, na alegação de inexistência de comando normativo específico que lhe imponha tais obrigações. Aduziu que a Resolução n. 2.878/2001 do Banco Central do Brasil, ao tratar do procedimento a ser observado pelas instituições financeiras na prestação de serviços aos clientes e ao público em geral, não dispôs sobre a obrigação de utilização do método Braille nas contratações com pessoas com deficiência visual, tecendo outras exigência que são detidamente cumpridas. O órgão julgador destacou que a Lei n. 4.169/62 oficializou, em todo o território nacional, as Convenções Braille para uso obrigatório na escrita e leitura das pessoas cegas. Posteriormente, a Lei n. 10.048/2000, ao conferir prioridade de atendimento às pessoas com deficiência, impôs às instituições financeiras o dever de conferir tratamento prioritário, e, por conseguinte, diferenciado, aos indivíduos. A Lei n. 10.098/2000, ao estabelecer normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência, explicitou a necessidade de supressão de todas as barreiras e de obstáculos, em especial, no que importa à controvérsia, nos meios de comunicação. Por fim, foi citado o Decreto n. 6.949/2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência com valor equivalente ao de emenda constitucional. Nesse âmbito, a Convenção impôs aos Estados a obrigação de promover a acessibilidade física e de comunicação e informação, inclusão social, autonomia, independência, e liberdade para as pessoas com deficiência fazerem suas próprias escolhas. Especificamente sobre a barreira de comunicação, ressaltou-se que a Convenção referiu-se expressamente ao método Braille, sem prejuízos de outras formas e sempre com atenção à denominada "adaptação razoável" como forma de propiciar aos deficientes visuais o efetivo acesso às informações. Ademais, o art. 9 (b) determina que os Estados Partes devem assegurar que as entidades privadas que oferecem instalações e serviços abertos ao público ou de uso público levem em consideração todos os aspectos relativos à acessibilidade. 442Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1315822 RJ 2012/0059322-0. Terceira Turma. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Recorrente: Banco do Brasil. Recorrido: AFAC- Associação Fluminense de Amparo aos Cegos. Brasília, 24 de março de 2015. Lex: Superior Tribunal de Justiça. Diário da Justiça Eletrônico de 20 de abril de 2012. Edição nº 1032. p. 336. Disponível em:< http://dj.stj.jus.br/20120420.pdf> Acesso em 4 jan. 2017. 145 Nesses termos, valendo-se das definições trazidas pelo Tratado, a decisão afirmou que a não utilização do método Braille durante todo o ajuste bancário caracteriza-se como intolerável discriminação por deficiência e inobservância de "adaptação razoável". Sobre a razoabilidade da exigência legal, a relatora ressaltou que a impressão de uma folha no método Braille custaria o singelo valor de R$ 1,00, de fato verdadeiramente ínfimo diante da relevância dos direitos a que se busca preservar. Observe-se que, nesse contexto, o conceito de “adaptação razoável” da norma internacional foi aplicado diretamente ao caso concreto. E pode ser considerado como uma norma auto-aplicável ou de eficácia plena. Ou seja, desde a sua entrada em vigor produz todos os efeitos essenciais ou tem a possibilidade de produzi-los,443 visto que não há necessidade de constituir ou designar uma autoridade, nem criar ou indicar um processo especial para sua aplicação. O direito instituído se acha apto a operar por si mesmo, pela sua própria natureza, com os seus meios de execução e preservação.444 Ademais, o fato do consumidor com deficiência visual não ter acesso direto aos termos contratuais acarreta a violação da sua intimidade, pois precisará permitir a terceiros conhecer o conteúdo da sua movimentação financeira. No caso em exame, não é apenas o direito à acessibilidade que está em questão, mas a sua íntima relação com os princípios da independência e autonomia consagrados na Convenção de Nova York (2006), bem como o direito a intimidade, disposto no art. 22. Vale salientar que as pessoas com deficiência sempre sofreram violações da sua intimidade, devido ao fato de precisarem constantemente recorrer à ajuda de outros para suprir suas necessidades mais básicas como comer, se vestir.445 Tal fato acabou por banalizar a ideia de que isso era comum e natural, ao ponto do Banco do Brasil achar que não tem nada demais a pessoa com deficiência visual ter que depender de alguém para se informar sobre suas finanças. Sob essa ótica, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com deficiência reintroduz, no campo da deficiência, direitos fundamentais inalienáveis como a intimidade, forçando a sociedade a modificar as suas concepções sobre esses sujeitos. Porém, sabe-se que tal mudança não é espontânea. E para que esta aconteça, o judiciário tem papel relevante, porque pode forçar os atores sociais a cumprirem a norma internacional. Como 443 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 83. 444 BARBOSA, 1933, apud SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 75 445 RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. Direito à intimidade e à vida privada. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Parte II, Cap. 1. p. 147- 161.p. 158 146 observado, conceitos operacionais como o de “adaptação razoável” viabilizam a concretização dos fins da Convenção de Nova York (2006), ao serem auto-aplicáveis aos casos concretos. É importante salientar que os demais dispositivos não auto-aplicáveis também possuem função essencial, visto que as normas de eficácia limitada não são destituídas de efeitos imediatos, apenas a subsunção ao caso concreto depende de legislação intermediária. Mas ela atua, de forma abstrata, sobre as outras normas do ordenamento jurídico, direcionando a interpretação, como será exemplificado no julgado a seguir.446 A decisão recorrida é o acórdão proferido pelo Tribunal Superior do Trabalho, no Recurso em Mandado de Segurança RMS 32732 AgR/DF, julgado pelo STF, sob a relatoria do Ministro Celso de Mello. Este denegou a segurança para manutenção da autora na lista de candidatos com deficiência aprovados em concurso público, fundamentando-se no argumento da ausência de comprovação de que o encurtamento do seu membro inferior direito acarreta dificuldades para o desempenho das atribuições do cargo. Ressaltou-se que, nos termos do art. 4º, inc. I, do Decreto n. 3.298/1999 (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004), para que a deformidade congênita ou adquirida de membros caracterize a deficiência física, para efeito de reserva de vagas, é necessária a comprovação da existência de dificuldades para o desempenho das funções acarretadas pela deformidade.447 O relator do processo argumentou que o Tribunal Superior do Trabalho interpretou a expressão "dificuldades para o desempenho de funções" como embaraço para o desempenho do cargo. Contudo, a referida expressão, presente no art. 4º, inc. I, do Decreto n. 3.298/1999, deve ser interpretada com referência às funções orgânicas do indivíduo, uma vez que a Lei n. 8.112/1990, ao dispor sobre os requisitos básicos para investidura em cargo público, estabelece a compatibilidade entre a deficiência e as funções do cargo como requisito para a investidura, e não como requisito para a caracterização da deficiência. Ademais, o art. 37, VIII, da CF, declara que o indivíduo com deficiência tem direito de acesso aos cargos públicos, desde que devidamente qualificada a deficiência e que esta não seja incompatível com as atribuições do cargo postulado. Para além dos fundamentos na Constituição e na legislação ordinária sobre o tema, destacou-se, também, que a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com 446 SILVA, 1998, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 55. 447 Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental do Recurso ordinário em Mandado de Segurança n. 32732- Distrito Federal. Relator: Ministro Celso de Mello. Agravante: União. Agravada: Lais Pinheiro de Menezes. Brasília, 03 de junho de 2014. Lex: Diário da Justiça Eletrônico de 1 de agosto de 2014. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp > Acesso em 5 dez. 2016. 147 Deficiência, incorporada com hierarquia de norma constitucional, estabelece normas destinadas a assegurar a esses sujeitos a o direito de acesso ao trabalho e ao emprego (art. 27). Nesse contexto, a “mens” que informa a cláusula normativa fundada no inciso VIII do art. 37 da Constituição visa a instituir ações afirmativas a serem implementadas pelo Poder Público e busca cumprir com os objetivos da Convenção expressos no preâmbulo (y) de “promover e proteger os direitos e a dignidade das pessoas com deficiência”, corrigindo “as profundas desvantagens sociais” que afetam tais pessoas, de modo a tornar efetiva a “sua participação na vida econômica, social e cultural, em igualdade de oportunidades, tanto nos países em desenvolvimento como nos desenvolvidos”. Ressaltou-se que as normas nacionais em benefício das pessoas com deficiência devem ser interpretadas de acordo com os “princípios gerais” elencados no art. 3° da Convenção, que, no ordenamento jurídico brasileiro, são cláusulas impregnadas de autoridade, hierarquia e eficácia constitucionais (CF, art. 5º, § 3º). Sob essa perspectiva, foram elencados como aplicáveis ao caso em exame os princípios: dignidade inerente as pessoas com deficiência; autonomia individual; plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; respeito pela alteridade e pela diferença e aceitação das pessoas com deficiência, sem qualquer discriminação; e igualdade de oportunidades. Ressalte-se que, apesar do seu elevado grau de abstração, os princípios são normas jurídicas e não simples recomendações ou exortações políticas. Trata-se de normas de eficácia plena e imediata, por força do disposto no § 1º do art. 5º da Constituição, que enuncia a aplicação direta das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais. Assim, o juiz está sempre autorizado a aplicar diretamente um princípio e, inclusive, denegar vigência às regras legais que lhe pareçam contrariar o sentido daquele.448 Porém, é preciso esclarecer que essa aplicação direta de princípios gerais corresponde à “eficácia interpretativa,” visto que, enquanto normas programáticas, essa espécie normativa aponta os fins sociais e as exigências do bem comum que constituem vetores da aplicação da lei.449 Tais normas informam a concepção do Estado e da sociedade e 448 COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 14. 2001. Disponível:< http://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/18673> Acesso em: 02. dez. 2016. p. 9. 449 Pelo seu sentido amplo, que diferente das regras não apresenta prescrição de condutas, o legislador transfere ao intérprete a avaliação das condutas aptas a realizá-los ou ao legislador ordinário através de regras. Nesse contexto, a estrutura normativa dos princípios aponta para Estados ideais a serem buscados, que podem ser concretizados por várias alternativas. Portanto, é nota de singularidade dos princípios a indeterminação de sentido, assim como a existência de diferentes meios para sua realização. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo, p. 208- 209. 148 inspiram diretamente a ordem jurídica vigente.450 Destarte, os princípios e objetivos da Convenção de Nova York (2006) podem ser considerados como normas de eficácia limitada, que dependem de regulamentação, pois indicam apenas as finalidades a serem perseguidas. Entretanto, não são destituídas dessa eficácia mínima, denominada de eficácia interpretativa. A construção dos fundamentos desse julgado, a partir da utilização dos princípios convencionais para interpretar a legislação nacional, revela-se de suma importância, pois configura uma abordagem denominada de “monismo moderado”. 451 Esta ocorre quando as normas internacionais de direitos humanos são usadas para interpretar os estatutos domésticos, reforçando o raciocínio baseado nas fontes de direito interno; E, ao mesmo tempo, atualizando a jurisprudência em alinhamento com o Direito Internacional.452 Em outro julgado, o Tribunal Regional do Trabalho emitiu decisão com o fito de combater a discriminação contra a pessoa com deficiência no âmbito do mercado de trabalho. Trata-se do Recurso Ordinário impetrado por empresa contra auto de infração do Ministério do Trabalho e Emprego, que constatou e puniu o réu pelo não cumprimento da cota legal para contratação de pessoas com deficiência. 453 O réu alega que a não contratação decorre da ausência de pessoas com deficiência que se candidatem ao processo seletivo. Aduz que apesar da publicidade dos seus processos, não tem logrado êxito no preenchimento da cota legal (de 2 a 5%, nos termos do art. 93, da Lei n. 8.213/1991). Ademais, defende não configurar o descumprimento da lei o mero não preenchimento da cota, sem que haja qualquer outro elemento objetivo indicador da conduta patronal visando à burla ao sistema de cotas, o que não se verifica nesse caso. A decisão ressaltou que o art. 93 da Lei de Benefícios da Previdência Social, em harmonia com o inciso II, § 1º do art. 227 da CF, busca promover a inserção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho e, por via reflexa, impedir práticas discriminatórias em 450 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 158. Por exemplo, a Constituição Federal, no artigo 7º, assegura aos trabalhadores os direitos ali enumerados, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. Esta última parte do dispositivo é daquelas normas programáticas que se limitam a indicar certo fim a atingir: melhoria da condição social do trabalhador. A respeito desses outros direitos que podem ser outorgado aos trabalhadores, o legislador ordinário tem ampla discricionariedade, mas, assim mesmo, está condicionado ao fim ali proposto, melhoria da condição social do trabalhador. Qualquer providência do poder público, específica ou geral, que contravenha esse fim é inválida e pode ser declarada sua inconstitucionalidade pelo juiz. SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 159. 451 A expressão “monismo moderado” através da interpretação judicial foi utilizada por Melissa Waters, em seu estudo sobre como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos têm sido aplicado por algumas Cortes nacionais. (LORD e STEIN, op cit, p. 474) 452 LORD e STEIN, op cit, p. 474 453Tribunal Regional do Trabalho (1 Região). Recurso Ordinário n. 00109383820155010014. Sétima Turma. Rio de Janeiro, 15 de junho de 2016. Lex: Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho de 1°de julho de 2016. Disponível em:< http://www.trt1.jus.br/> Acesso em: 12 dez. 2016. 149 relação às mesmas. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, por sua vez, determina, no art. 27, o dever dos Estados Partes de salvaguardar e proteger a realização do direito ao trabalho; proibir a discriminação baseada na deficiência com respeito a todas as questões relacionadas com as formas de emprego, inclusive condições de recrutamento, contratação e admissão; proteger os direitos das pessoas com deficiência às condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo iguais oportunidades; possibilitar a esses indivíduos o acesso efetivo a programas de orientação técnica e profissional e a serviços de colocação no mercado de trabalho e de treinamento profissional e continuado.454 À luz desse dispositivo da Convenção, a decisão sublinhou que a obrigação legal das empresas não está restrita a mera disponibilidade de vagas, mas inclui o dever de preenchimento das mesmas por pessoas com deficiência, devendo o empregador assumir uma postura ativa para encontrar candidatos e não somente divulgar as vagas e esperar que estes apareçam, pois também é responsabilidade social da empresa promover a inclusão, até mesmo através da promoção de cursos de capacitação.455 Nesse sentido, a relatora considerou que o anúncio em jornais de grande circulação não é maneira adequada e suficiente para alcançar os candidatos, sendo necessária a busca em instituições de ensino especializadas e em empresas e consultorias que selecionam pessoas com deficiência e fornecem treinamento inclusivo. Aliás, o próprio setor de recursos humanos da demandada deve ser capacitado para tanto, não somente para admitir, mas também para inserir tais profissionais no ambiente de trabalho. Em seu parecer, a Procuradora do Trabalho afirmou que a dificuldade de cumprimento da norma, por si só, não elide a observância do comando legal, sendo necessária a demonstração cabal da impossibilidade de observância por circunstâncias alheias a vontade do destinatário da norma. Para a aferição da impossibilidade de cumprimento, deve-se demonstrar o esgotamento de todas as medidas possíveis e viáveis. 456 Por meio desse julgado, pode-se evidenciar o importante papel do judiciário na efetividade das normas sobre inclusão, ao interpretá-las de modo que atinjam a mais alta 454 Nesse sentido, o Decreto nº 3.298/1999 nos §§ 2º, 3º e 4º do artigo 36 esclarece: “pessoa portadora de deficiência habilitada é aquela que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função; a pessoa portadora de deficiência poderá recorrer à intermediação de órgão integrante do sistema público de emprego, para fins de inclusão laboral na forma deste artigo." 455Tribunal Regional do Trabalho (1 Região). Recurso Ordinário n. 00109383820155010014. Sétima Turma. Rio de Janeiro, 15 de junho de 2016. Lex: Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho de 1°de julho de 2016. Disponível em:< http://www.trt1.jus.br/> Acesso em 12 dez. 2016. 456 Ibidem. 150 eficácia possível, afastando hipóteses de descumprimento sob pretextos que não encontram guarida na legislação, mas sim no mero preconceito. Nesse contexto, é relevante destacar que caso semelhante foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em 2002, antes da incorporação da Convenção de Nova York (2006) pelo Brasil. Tratou-se de Recurso Especial n. 305.986/SP interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, contra acórdão exarado pelo Egrégio Tribunal de Justiça paulista sobre a não contratação de pessoa com deficiência devido à falta de preparo profissional.457 As empresas recorridas alegaram que as circunstâncias dos autos apontam que a ausência de contratação nos termos da Lei n. 8.213/91 não decorre necessariamente de ofensa a esse diploma legal. O motivo para a não observância da norma encontra-se na omissão do Poder Público em proceder, por meio do INSS, à ampla habilitação/reabilitação de beneficiários e emissão de certificação indicando a função para a qual a pessoa com deficiência foi capacitada profissionalmente. Em seu voto, a Relatora Ministra Nancy Andrighi reforçou que se as pessoas com deficiência não possuem a certificação que deveria ser fornecida pelo Instituto Nacional de Seguridade Social e não tiver pessoas habilitadas para as funções que as empresas necessitam, não podem estas serem responsabilizadas pela não contratação. Assim, de conformidade com os votos, os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, decidiram não conhecer do recurso.458 Destaque-se que essas decisões refletem a evolução que ocorreu na jurisprudência do STJ. Enquanto o último julgado reconhece como dever apenas do Estado promover a capacitação das pessoas com deficiência, a decisão mais recente compreende que esse dever se estender às empresas privadas. Cabe sublinhar que a inclusão das pessoas com deficiência evoluiu também em virtude das novas tecnologias, o avanço nas técnicas de aprendizagem e uma consciência geral de que a sociedade perde ao marginalizar indivíduos que poderiam estar contribuindo como força produtiva. Ademais, a tarefa de capacitação antes destinada apenas ao Poder Público, hoje é desenvolvida por outras entidades como associações de pessoas com deficiência, que passaram a ter um papel ativo na luta pela inclusão, processo este também fruto de um desenvolvimento histórico. 457Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 305.986- São Paulo (2001/0022816-0). Terceira Turma. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 16 de maio de 2002. Lex: Diário da Justiça de 23 de junho de 2003. Disponível em < http://www.stj.jus.br/>. Acesso em: 23 fev. 2015. 458Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 305.986- São Paulo (2001/0022816-0). Terceira Turma. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 16 de maio de 2002. Lex: Diário da Justiça de 23 de junho de 2003. Disponível em < http://www.stj.jus.br/>. Acesso em: 23 fev. 2015. 151 Sob esse aspecto, sublinhe-se que a norma constitucional, como a Convenção de Nova York (2006), não tem existência autônoma em face da realidade. A partir da sua vigência, ela tem uma pretensão de eficácia, mas esta só irá se concretizar de acordo com as condições históricas, como fatores naturais, técnicos, econômicos e sociais que criam regras próprias e não podem ser desconsiderados. 459 Importante frisar que a Constituição não configura apenas a expressão de um ser, mas também de um “Dever Ser”.460 Embora ela procure imprimir ordem e conformação à realidade política e social, a norma também é determinada pela trama social. 461 Em uma relação dialética a norma e a realidade são mutuamente transformadas. Nesse contexto, a atividade interpretativa tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. Para tanto, se requer uma interpretação que objetive o princípio da ótima concretização da norma e não se encontre adstrita a subsunção lógica, pois se o Direito e, sobretudo, a Constituição tem a sua eficácia condicionada pelos fatores concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábua rasa. Ela deve contemplar os seus condicionantes correlacionando-os com as propriedades normativas do texto constitucional. 462 A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar de forma excelente o sentido da proposição normativa dentro das condições reais dominantes em uma determinada situação. Assim, uma mudança das relações fáticas pode, e deve, provocar mudanças na exegese da Constituição. 463 Pode-se considerar que essa espécie de interpretação ocorreu na decisão do Tribunal Regional do Trabalho em que a compreensão do art. 93 da Lei n. 8.213/91, à luz do art. 27 da Convenção de Nova York (2006), foi expandida para o sentido de que “preencher as vagas com cotas para pessoas com deficiência” não significa apenas colocar tais vagas à disposição, mas a realização de um esforço, por parte das empresas, para que a inclusão seja efetivada. Pode-se considerar que tal interpretação atualizou a força normativa da Convenção de Nova York (2006), pois possibilitou que esta influencie e transforme a realidade social. 459 HESSE, op cit, p. 15. 460 Um dever ser que nunca se realize parcialmente é uma abstração sem sentido. O que acontece, porém, é que, por outro lado, jamais o dever ser poderá converter-se totalmente em ser. Para que haja dever ser, é necessário que o ser jamais o esgote totalmente. É por isso que afirmamos haver entre ser e dever ser um nexo de implicação e polaridade, o que torna compreensível a complementariedade dialética própria do Direito. (REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 1999. p.470). 461 HESSE, op cit, p. 15- 19. 462 Ibidem, p. 15-19. 463 Ibidem, p. 22 -23. 152 Pode-se dizer que qualquer diferenciação existente entre os sentidos propugnados pelo aplicador e o sentido objetivo do texto normativo apontado pelo jurista será decidido pelo sentido objetivo da norma superior contida no sistema. Assim, nunca haverá a predominância de um fenômeno jurídico isolado, mas do sistema, ou seja, do todo sobre as partes. 464 Dessa forma, restou evidenciado que os efeitos de uma norma vai sempre depender da mediação de um ato humano de interpretação. Nesse caso, configurou-se, do ponto de vista da semiologia, o efeito sintático resultante da incidência da norma sobre outras normas do mesmo universo jurídico, que também são signos lingüísticos suscetíveis a diversos significados.465 Como observado, os dispositivos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência possuem grau de aplicabilidade variável. Algumas normas, como as que descrevem conceitos, podem ter aplicação direta; outras como os princípios gerais, objetivos e até mesmo as obrigações gerais dos Estados Partes possuem aplicabilidade limitada, mas eficácia interpretativa. Seja qual for a espécie normativa, a atividade do juiz, enquanto intérprete do texto convencional, é salutar, na medida em que imprime a este maior ou menor incidência ao caso em apreço. Ressalte-se que a atividade dos magistrados é apenas uma das etapas na efetivação dos direitos da pessoa com deficiência. Antes de atingir esse estágio, é necessário percorrer o caminho processual de ajuizamento da demanda através do instrumento adequado, para que esta possa ser admitida em juízo e, só então, julgada. Sob esse prisma, apresenta-se a seguir os principais instrumentos processuais à disposição dos operadores do direito para efetivar os direitos desse grupo através da prestação jurisdicional. 464DINIZ, Maria Helena. Vigência e eficácia da norma constitucional. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio júnior; Diniz, Maria Helena; GEORGAKILAS, Ritinha Alzira Stevenson. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989. Parte II. p. 59-86. p. 65. 465FERRAZ, júnior; SAMPAIO, Tércio et al. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989. p. 79. 153 § 3. Instrumentos para efetivação da prestação jurisdicional à pessoa com deficiência A busca do judiciário para assegurar os direitos das pessoas com deficiência tem se tornado cada vez mais frequente, em razão do movimento de empoderamento desses sujeitos, que estão cada vez mais conscientes dos seus direitos. No entanto, para que essa tutela seja efetiva, é essencial conhecer os instrumentos processuais aptos a realizar a prestação jurisdicional adequada, apta a garantir às pessoas com deficiência o acesso à justiça. Destaque-se que as demandas envolvendo pessoas com deficiência podem apresentar fundamentos distintos, pela via individual, coletiva ou difusa. A tutela coletiva é destinada à proteção de direitos que ultrapassam a esfera do indivíduo, pois atinge uma categoria de pessoas ou mesmo toda a sociedade e os efeitos do dano se projetam para além da dimensão individual, violando interesses coletivos ou difusos. O Código de Defesa do Consumidor estabelece, no artigo 81, parágrafo único, as hipóteses em que deve haver, necessariamente, a defesa coletiva.466 Os direitos difusos são os interesses cujos titulares não são passíveis de serem determinados ou determináveis, pois se encontram ligados apenas por circunstâncias de fato. São direitos comuns a uma categoria abrangente de pessoas, sendo impossível afirmar, com precisão, a quem pertencem, tampouco a parcela destinada a cada um dos integrantes desse grupo, o que caracteriza a indivisibilidade desses interesses.467 Tal hipótese ocorre, por exemplo, com a publicação de edital de concurso público sem previsão de vagas para pessoas com deficiência. Nesse caso, embora não seja possível afirmar exatamente quem são os indivíduos que têm seu direito ameaçado, existe um grupo difuso que se encontra na mesma situação.468 466PINHEIRO, Flavia de Campos; ARAÚJO, Luiz Alberto David. A pessoa com deficiência e a defesa coletiva em juízo: o papel das associações. Revista Direito UFMS, Campo Grande, MS. Edição Especial. v.1, n. 1. p. 145-163 - jan./jun. 2015. Disponível em: Acesso em: 14 dez. 2015. p. 152. Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. 467 VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação civil pública. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 47. 468 RAGAZZI, Ivana Aparecida Grizzo; ROSTELATO, Telma Aparecida. A tutela específica como instrumento viabilizador do acesso ao emprego público pelas pessoas portadoras de deficiência. Revista brasileira de direito 154 O interesse coletivo também tem natureza transindividual e indivisível, mas é titularizado por um grupo ou categoria determinável de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica, como a assinatura de um contrato de adesão com o plano de saúde.469 É o caso também de associação de pessoas com deficiência que, verificando a inexistência de previsão de reserva de vagas em um edital de Concurso Público, intenta Ação Civil Pública com o objetivo de se fazer cumprir os preceitos legais, afastando a violação aos direitos dos seus associados.470 No mesmo plano dos direitos difusos e coletivos, encontram-se os direitos individuais homogêneos, abordados no inciso III do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor.471 Trata-se de direitos divisíveis referentes a pessoas determinadas ou determináveis, que poderiam ser reivindicados pela via individual, mas devido às inúmeras situações semelhantes, a tutela coletiva se torna mais prática e menos custosa. Por exemplo, pessoas com deficiência que optaram pelas vagas reservadas em concurso público, obtiveram a classificação exigida, entretanto, foram preteridas no momento da convocação. São indivíduos submetidos às mesmas circunstâncias, mas não estão ligados por uma relação jurídica. Dessa forma, o objeto é divisível, porém, a busca pela prestação jurisdicional em âmbito coletivo se perfaz com maior facilidade.472 Em relação à defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos da pessoa com deficiência, a Lei n. 7.853/89, art. 3º, indica como legitimados o Ministério Público473; a Defensoria Pública; a União; os Estados; os Municípios; o Distrito Federal; associação constituída há mais de um ano, nos termos da lei civil; autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista que incluam entre suas finalidades institucionais a proteção dos interesses e a promoção dos direitos da pessoa com deficiência. constitucional, v. 12, n. 1, p. 101-118, 2008. p. 115. Disponível em: Acesso em 13 jan. 2017. p. 108. 469 PINHEIRO e ARAÚJO, 2015, p. 151. 470 RAGAZZI e ROSTELATO, op cit, p. 114. 471 Ibidem, p. 116. 472 RAGAZZI e ROSTELATO, 2008, p. 116 473 Destaque-se que a legitimação do Ministério Público para defesa de interesses difusos e coletivo, de forma genérica, encontra-se disposta na Constituição Federal, art. 129, III. Especificamente, no âmbito da deficiência, conforme, art. 5º da Lei n. 7.853/89, o Ministério Público, independente de ser o autor da ação, intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas. Nesse sentido, qualquer pessoa poderá e o servidor público deverá provocar a iniciativa do Ministério Público, apresentando informações sobre fatos que constituam objeto da ação civil e indicando-lhe os elementos de convicção (art. 6º). Podendo, em face destas, o Parquet instaurar inquérito civil para esclarecer situações. BRASIL. Lei n° 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção e dá outras providências. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7853.htm> Acesso em: 17 fev. 2016. 155 A legitimação dos entes públicos se justifica na medida em que a preocupação do Estado com a inclusão de grupos vulneráveis na sociedade é um dos aspectos da realização do interesse público. uma vez que este se encontra vinculado aos valores constitucionais fundamentais e deve prevalecer sobre o interesse particular.474 As associações, por sua vez, estão aptas a defender os interesses transindividuais das pessoas com deficiência, desde que essa função encontre-se especificada nos seus objetivos sociais. Essas instituições são criadas por meio de um agrupamento voluntário de pessoas que compartilham de uma finalidade comum, estabelecida através de contrato e com a pretensão de durar no tempo.475 No que tange à legitimação ordinária, a Lei n.7.347/85 da Ação Civil Pública atribuiu novos contornos ao instituto da coisa julgada, ampliando sua extensão para todos os titulares do direito. Nesse caso, a sentença tem eficácia erga omnes, em virtude da indivisibilidade dos direitos em questão.476 Sob esse prisma, a Ação Civil Pública desempenha papel importante na concretização das normas de proteção de grupos vulneráveis, visto que os benefícios advindos de um processo podem se traduzir no respeito aos direitos de toda a categoria de pessoas que são vítimas de violações no território da competência do órgão prolator, conforme art. 16 da Lei n. 7.347/85. 477 Esse aspecto foi discutido em Agravo de Instrumento interposto, em 2016, no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, contra decisão que deferiu tutela antecipada para a designação de professor de apoio à comunicação, linguagem e tecnologia assistiva para atender aos menores com deficiência indicados na inicial e outros que estivessem na mesma situação. A decisão ressaltou que a extensão dos efeitos da sentença aos demais menores não caracteriza uma obrigação genérica ou indiscriminada. Visto que ainda que não se possa identificar com precisão todos os titulares da pretensão, seu objeto é concreto, pois se busca tutelar os menores com limitações físicas e mentais e que necessitam de profissional 474 PINHEIRO e ARAÚJO, 2015, p. 152 475 PINHEIRO e ARAÚJO, 2015, p. 154 476 Esta Terceira Turma, por ocasião do julgamento do Resp n. 1.114.035/PR, Relator para Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, cuja razão de decidir, ante a robustez dos fundamentos, adota-se integralmente para a hipótese dos autos, consignou que "o caráter indivisível dos direitos difusos e coletivos stricto sensu conduz ao impedimento prático, e mesmo lógico, de qualquer interpretação voltada a cindir os efeitos da sentença civil em relação àqueles que estejam ligados por circunstâncias de fato ou que estejam ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base preexistente à lesão ou à ameaça de lesão." BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Estecial REsp: 1315822 RJ 2012/0059322-0. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Terceira Turma. Brasília, 24 de março de 2015. Lex: Diário da Justiça Eletrônico, 16 de abril de 2015. Disponível em:< http://www.stj.jus.br/> Acesso em: 3 dez. 2016. 477 BRASIL. Lei n° 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção e dá outras providências. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7853.htm> Acesso em: 17 fev. 2016. 156 especializado, de forma a assegurar o real acesso à educação e a sua integração nas classes comuns.478 Outro fator que contribuiu para a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, no âmbito da Ação Civil Pública, foi a possibilidade, prevista no art. 1º da Lei n. 7.347/85, da responsabilidade civil por danos morais e patrimoniais.479 Em que pese opiniões de que o dano moral envolva o abalo psíquico associado necessariamente à dor e sentimentos inerentes ao indivíduo, e, portanto, incompatível com a indeterminabilidade do sujeito passivo das ações coletivas. A jurisprudência mais recente do STJ tem superado o referido entendimento, para admitir a existência de dano extrapatrimonial coletivo e o correspondente dever de repará-lo.480 A configuração de dano moral coletivo ocorre sempre que a lesão ou a ameaça atinge valores e interesses fundamentais do grupo. Afasta-se, pois, da concepção individualizada do abalo psíquico.481 A esfera afetada é a própria imagem do grupo, a sua cultura e valores. Tal como ocorre na seara do dano moral individual, é dispensada a prova da culpa, devendo-se responsabilizar o agente pelo simples fato da violação.482 Imprescindível considerar que o dano moral não apenas objetiva compensar a coletividade, com a reversão do valor pecuniário em favor de fundo que a todos aproveita, mas também possui função preventiva e repressiva, ao punir aquele que violou interesse metaindividual.483 Em julgado, de 2015, do Tribunal Regional do Trabalho da 3º Região, esse tema foi evidenciado através da condenação ao ressarcimento por danos morais coletivos da empresa que se omitiu em preencher a reserva legal de seus cargos com beneficiários da Previdência Social, pessoas com deficiência reabilitados ou habilitadas. Desatacou-se que essa conduta 478Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de Instrumento n. 10005150025863001. Relator: Desembargador Edilson Fernandes. 6° Câmara Cível. Minas Gerais, 5 de junho de 2016. Lex: Diário da Justiça Eletrônico do Estado de Minas Gerais, de 17 de julho de 2016. Disponível em: < http://www.tjmg.jus.br/portal/> Acesso em: 20 dez. 2016. 479Art. 1º da Lei n. 7.347/85: Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais (...) Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados. 480Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1315822-RJ (0059322-0). Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Terceira Turma. Brasília, 24 de março de 2015. Lex: Diário da Justiça Eletrônico de 16 de abril de 2015. Disponível em:< http://www.stj.jus.br/> Acesso em: 5 jan. 2017. 481 Ibidem. 482BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, v. 12, p. 44-62, 1994. Disponível em: Acesso em: 14 nov. 2016. p. 10. 483Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1057274- RS (2008/0104498-1). Relatora: Ministra Eliana Calmon. 2° Turma. Brasília, 1° de dezembro de 2009. Lex: Diário da Justiça Eletrônico de 26 de fevereiro de 2010. Disponível em:< http://www.stj.jus.br/> Acesso em: 5 jan. 2017. 157 afrontou os valores fundamentais da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho presentes na Constituição Federal. De modo que as atitudes ilícitas importam em desrespeito à dignidade do trabalhador e à coletividade na qual está inserido.484 Além da tutela coletiva, as pessoas com deficiência podem acionar o Poder Judiciário para resguardar seus direitos pela via individual. Esta conta com a vantagem de não depender da representação dos legitimados legais. Sob essa perspectiva, as pessoas com deficiência podem ajuizar ações de reparação de danos, mandado de segurança, ação de obrigação de fazer, dentre outras. Todas objetivando cumprir os preceitos protetivos que se encontram determinados na legislação. 485 No que tange ao dano moral individual, observe-se que não é qualquer dissabor da vida que pode acarretar a indenização. Esta é devida quando a lesão atinge os direitos da personalidade como direito à imagem, ao nome, à privacidade, ao próprio corpo, à dignidade. Portanto, não está restrita exclusivamente a dor física ou psíquica. 486 Um exemplo de dano moral individual causado a pessoa com deficiência pode ser encontrado na decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, proferida em 2015. Nesta, foi considerado como dano moral o constrangimento causado pela ausência de equipamento para o embarque e desembarque da aeronave de passageiro com deficiência física. O Tribunal entendeu como vexatória a circunstancia do autor precisar ser carregado no colo para desembarcar, caracterizando ofensa a sua dignidade a situação de impotência e de falta de autonomia a que foi submetido.487 Destaque-se que o dano imaterial, do ponto de vista estrito, é incomensurável. A condenação em dinheiro é mais uma satisfação do que uma reparação e tem caráter punitivo para o demandado.488 Nesse contexto, impende observar que a tutela dirigida a evitar o ilícito é, evidentemente, mais relevante que a tutela ressarcitória.489 Nesse sentido, os art. 497 e 499 do Código de Processo Civil de 2015 dispõem que na ação que tenha por objeto a prestação 484Tribunal Regional do Trabalho (3 Região). Recurso Ordinário n. 00800201101203005 0000800- 03.2011.5.03.0012, Relator: Convocado Danilo Siqueira de C. Faria. Terceira Turma. Minas Gerais, 21 de novembro de 2011. Lex: Diário da Justiça Eletrônico de 18 de novembro de 2011. Disponível em< http://www.trt3.jus.br/> Acesso em: 5 jan. 2017. 485 ROSTELATO, Telma Aparecida. Portadores de deficiência e prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá Editora, 2011. p. 98. 486 VENOSA, Sílvio Salvo, de. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 12 ed. São Paulo: Atlas, 2012. (Coleção Direito Civil ) 4. v. p. 49. 487Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ação Civil n. 70064489768- RS. Relator: Umberto Guaspari Sudbrack. Décima Segunda Câmara Cível. Rio Grande do Sul, 13 de agosto de 2015. Lex: Diário de Justiça eletrônico do Estado do Rio Grande do Sul, de 17 de agosto de 2015. Disponível em:< http://www.tjrs.jus.br/site/> Acesso em: 14 fev. 2017. 488 VENOSA, Sílvio Salvo, de. Direito Civil: Responsabilidade Civil , p. 49. 489 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela específica. Revista dos Tribunais, 2000. p. 70. 158 de fazer ou de não fazer, o juiz concederá a tutela específica ou determinará providências para assegurar a obtenção do resultado prático equivalente. De acordo com o diploma processual, a possibilidade da conversão da obrigação em perdas e danos só irá se concretizar se o autor requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente. Na seara dos direitos das pessoas com deficiência, é importante salientar que apenas a reparação de determinado dano, muitas vezes, se mostra insuficiente para a satisfação do interesse pretendido, que requer a prestação específica correspondente ao cumprimento da obrigação objeto da lide.490 Assim, de nada adiantaria a pessoa com deficiência receber ressarcimento por danos morais por não conseguir ir trabalhar devido à falta de acessibilidade no seu local de trabalho, se a empresa não for obrigada a realizar as adaptações necessárias. Por outro viés, para afastar a implementação de danos irreparáveis ou de difícil reparação, é possível requerer as denominadas tutelas provisórias ou de urgência, que consistem na prestação jurisdicional, não definitiva, antes do término do processo. A concessão dessas tutelas depende, conforme art. 300 caput do Código de Processo Civil de 2015, sempre da presença de dois requisitos: a probabilidade da existência do direito afirmado pelo autor (fumus Boni iuris) e do risco de seu perecimento pelo decurso do tempo (periculum in mora). Ademais, por fundamentar-se em cognição sumária, sem análise aprofundada e produção de provas complexas, a tutela pode ser, a qualquer tempo, revogada ou modificada.491 As espécies do gênero tutelas de urgência são as cautelares e a tutela antecipada. São cautelares as medidas que visam a evitar os efeitos danosos do tempo sobre os elementos do processo que seriam úteis para se obter o resultado final, como fontes de provas, bens, testemunhas. A antecipação da tutela, por sua vez, oferece a uma das partes o bem da vida reivindicado no litígio ou algum benefício que a obtenção do bem poderá proporcionar-lhe, sendo, portanto, um adiantamento do próprio resultado final da lide.492 490 ROSTELATO, op cit, p. 98. 491 DINAMARCO, Cândido Rangel Dinamarco; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilhop. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 27. O § 3º do art. 300 do CPC de 2015 apresenta como requisito específico da tutela de urgência de natureza antecipada a ausência de perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão. Contudo, tal pressuposto não é absoluto e deve ser afastado sempre que o dano ou risco que se quer evitar é qualitativamente mais importante que aquele que há de vir do indeferimento da tutela de urgência. Ademais, § 1º do art. 300 disciplina medida de contra-cautela, dispondo que para a concessão da tutela de urgência, o juiz pode, conforme o caso, exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir os danos que a outra parte possa vir a sofrer. A caução pode ser dispensada se a parte economicamente hipossuficiente não puder oferecê-la. (CABALLERO, Berto Igor . et al. Novo CPC: principais alterações. Teresina: Dinâmica Jurídica, 2016. p. 107). 492 DINAMARCO e LOPES, op cit, p. 27. 159 Destaque-se que para as pessoas com deficiência, o fundado receio de dano está presente invariavelmente,493 porquanto a ameaça de violação dos seus direitos ou a própria violação os impede de exercer os seus direitos mais básicos como o direitos de ir e vir, de expressão, à saúde. Exemplo de concessão de tutela antecipada e do que pode ser considerado como fumus Boni iuris no campo da deficiência, pode ser encontrado no seguinte julgado: Agravo de instrumento tempestivo tirado de ação ordinária e de decisão que deferiu tutela antecipada para obrigar a agravante a providenciar, no prazo de 72 horas, a confecção e entrega do cartão de transporte gratuito aos genitores do autor, sob pena de multa de R$ 1.000,00. (...) Em sede de cognição sumária própria dessa fase do procedimento (...) concorre o requisito da verossimilhança, pois há nos autos prova da enfermidade psiquiátrica que acomete o autor. O fundado receio de dano, por outro lado, está presente diante da necessidade de não interrupção do tratamento médico.494 Nos casos em que se encontra ausente o receio de dano, o novo Código de Processo Civil de 2015 trouxe, no art. 311, uma nova tutela provisória denominada de tutela de evidência, que dispensa o requisito da urgência. É suficiente para a sua concessão uma forte probabilidade da existência do direito do autor, representada por documentos ou pela harmonia com súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal ou tese firmada em julgamento de casos repetitivos. Pode ser concedida, ainda, como sanção ao abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório da outra parte.495 Outro instrumento processual relevante é o Mandado de Segurança, previsto no art. 5°, LXIX da Carta Magna, utilizado quando a violação ou ameaça ao direito da pessoa com deficiência decorrer de ilegalidade ou abuso de poder praticado por autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público. O principal requisito para sua impetração é a existência de prova pré-constituída do direito, o que o caracteriza como líquido e certo, pois pode ser comprovado de plano. Ressalte-se a natureza subsidiária desse instrumento, uma vez que só pode ser empregado quando o direito não estiver amparado por Habeas Corpus ou Habeas Data.496 Situações nas quais é cabível o Mandado de Segurança ocorrem quando, por exemplo, parlamentares, no ato da elaboração de lei, votam proposições contrárias aos direitos das pessoas com deficiência; ocorre negligência do administrador 493 ROSTELATO, op cit, p. 187. 494Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento n. 20948814720148260000- SP (2094881- 47.2014.8.26.0000). Relator: Desembargador Décio Notarangeli. 9ª Câmara de Direito Público. São Paulo, 6 de agosto de 2014. Lex: Diário da Justiça Eletrônico do Estado de São Paulo, de 07 de agosto de 2014. Disponível em :< https://www.dje.tjsp.jus.br/cdje/index.do> Acesso em: 14 jan. 2017. 495 DINAMARCO e LOPES, op cit, p. 29. 496 BRASIL. Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009. 160 público na disponibilização de vagas em escolas de ensino regular para as crianças e adolescentes com deficiência.497 Sublinhe-se que esse remédio constitucional não pode ser considerado o melhor instrumento para a satisfação dos direitos da pessoa com deficiência em qualquer caso, pois se destina a coibir situação muito específica: o ato de autoridade pública. E tem requisitos bem delimitados, o direito líquido e certo, ou seja, é necessário apresentar provas documentais das alegações fáticas. Além disso, o ajuizamento, no caso do mandado de segurança repressivo, deve ser feito no prazo de 120 dias a contar do conhecimento do ato impugnado, conforme artigo 18 da Lei 1533/51. 498 A título de ilustração, apresenta-se uma demanda em que todos os requisitos do mandado de segurança estão presentes: pessoa com deficiência visual ajuizou medida administrativa junto ao Conselho Nacional de Justiça com o objetivo de dar cumprimento à Recomendação n.27/2009 do próprio Conselho. A qual determina a adoção de providências para a remoção de quaisquer barreiras ao acesso das pessoas com deficiência aos bens e serviços do Poder Judiciário. Entretanto, o Presidente do CNJ indeferiu o pedido, sob o argumento de que a necessidade da advogada (parte autora) de auxílio de terceiros para o envio de petições eletrônicas não configuraria dano irreparável ou de difícil reparação a ser preservado. 499 Em face disso, foi proposto, perante o STF, mandado de segurança sobre o fundamento de que a decisão do CNJ violou o direito líquido e certo de acessibilidade aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação do Judiciário. Foi requerido o deferimento da liminar para o fim de conceder à autora o direito de permanecer peticionando em papel até que os sites do Poder Judiciário fiquem acessíveis. Alegou-se o periculum in mora presente no fato da autora está impedida de exercer a advocacia por meio do processo judicial eletrônico existente.500 Outro instrumento importante para assegurar os direitos da pessoa com deficiência dispostos na Convenção de Nova York (2006) é o mandado de injunção. Este é utilizado para suprir a ausência de norma regulamentadora que torna inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à 497 ROSTELATO, Telma Aparecida. Portadores de deficiência e prestação jurisdicional. Curitiba: Juruá Editora, 2011.p. 174. 498 ROSTELATO, op cit, p. 186. 499Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança n. 32751- RJ. Relator: Ministro Celso de Mello. Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2014. Lex: Diário da Justiça Eletrônico, de 10 de fevereiro de 2014. Disponível em:< https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/?ref=navbar> Acesso em: 18 nov. 2016. 500 Ibidem. 161 cidadania. Portanto, trata-se de um mecanismo apto a outorgar aplicabilidade às normas constitucionais.501 Contudo, a forma como essa lacuna será preenchida depende da teoria adotada. Para a teoria não-concretista, em respeito à separação dos Poderes, caberia ao Judiciário apenas o reconhecimento formal da inércia legislativa e a sua comunicação ao órgão legislador. A teoria concretista geral, adotada em decisões proferidas pelo STF nos Mandados de Injunção n. 670, 708 e 712, todos de 2008, estabelece que incube ao Judiciário tornar exequível o exercício do direito pelo impetrante e atribuir efeito erga omnes à decisão. Por outro lado, a teoria concretista individual, utilizada pelo Supremo Tribunal Federal no MI n.721 de 2007, admite a regulamentação pelo Judiciário apenas para o caso específico. Por fim, a teoria concretista intermediária preconiza que ao Judiciário compete fixar prazo para o Legislativo elaborar a norma. Expirado esse lapso temporal, ficaria o Judiciário autorizado a suprir a ausência de normatização, possibilitando o exercício dos direitos assegurados constitucionalmente.502 Em relação ao uso do mandado de injunção para regulamentação das normas da Convenção de Nova York (2006), foi encontrado, na jurisprudência do SFT, o MI: 6551 SP- 0007252-43.2015.1.00.0000, julgado em 2016. Neste, o impetrante buscou garantir o direito à acessibilidade na justiça, através do deslocamento do foro competente para o local da residência da pessoa com deficiência em conflito judicial com ente público. Foi alegado que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência garante, no art. 13, o direito à justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiência como participantes em todos os procedimentos jurídicos. Dessa forma, o impetrante alegou que reconhecer o foro especial para a pessoa com deficiência corresponderia a avançar na especificação do direito positivado no tratado de natureza constitucional. Ademais, sustentou que a Lei Federal n. 13.146/2015 deveria ter incluído em seu texto a garantia de acessibilidade jurídica à pessoa com deficiência, como não o fez, cabe recorrer ao judiciário para suprir essa omissão.503 501 ARAÚJO, Luiz Alberto; MARTIN, Andréia Garcia; GONÇALVES, Ana Catarina Piffer. Mandado de Injunção: garantia constitucional à regulamentação dos tratados internacionais de direitos humanos fundamentais das pessoas com deficiência. Seqüência: estudos jurídicos e políticos, v. 32, n. 62, p. 119-159, 2011. p. 140. 502 Ibidem, p. 144. 503Supremo Tribunal Federal. Mandado de Injunção: 6551 SP - SÃO PAULO 0007252-43.2015.1.00.0000, Relator: Min. Luiz Fux. Brasília, 22 de agosto de 2016. Lex: Diário da Justiça Eletrônico de 25 de agosto de 2016. Disponível em:< https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/?ref=navbar> Acesso em: 10 abril. 2017. 162 No entanto, a Suprema Corte decidiu pela improcedência do pedido, devido à ausência dos pressupostos para o cabimento do mandado de injunção, o qual requer a imposição constitucional do dever de legislar, associada à omissão da autoridade responsável pela edição da norma. Afirmou-se que à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, não cabe falar em omissão legislativa. Em primeiro lugar, porque a referida Convenção, ao disciplinar em seu art. 13 o acesso à justiça, não impõe ao Poder Público o dever de legislar sobre direito processual em benefício da pessoa com deficiência,504 visto que o tratado refere-se apenas à provisão de “adaptações processuais adequadas à idade”, não mencionando qualquer adaptação processual relativa à fixação da competência territorial. Não há, pois, a imposição constitucional de regulamentação da matéria, o que torna incabível o writ. Por outro viés, alegou-se que mesmo havendo a imposição do dever de legislar acerca da acessibilidade jurídica à pessoa com deficiência, ela teria sido observada pela Lei n. 13.146/2015, que tratou expressamente do acesso à justiça por esse grupo e não estabeleceu foro diferenciado. Assim, o Supremo Tribunal Federal decidiu que não pode o impetrante valer-se do mandado de injunção com o fito de alterar a legislação já editada, para contemplar o suposto direito, porquanto inexistente a previsão do direito na Constituição Federal, tampouco do dever de regulamentação. Como evidenciado, apesar do mandado de injunção ser um dos institutos mais significativos para assegurar os direitos fundamentais, sua utilização continua restrita, devido ao excessivo apego à ausência de instrumento formal que lhe dê propriamente aplicabilidade, com fundamento em uma interpretação ultrarrestritiva do texto constitucional.505 Ressalte-se que o Mandado de Injunção é utilizado em processo subjetivo, para assegurar o exercício do direito pelo impetrante. No âmbito do processo objetivo, cabe a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), visto que, como analisando em capítulo anterior, podem ser utilizadas todas as ações do controle de constitucionalidade para defesa em abstrato das normas da Convenção, vez que possuem status constitucional. 504 Art. 13 da Convenção: “1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas com deficiência à justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiência como participantes diretos ou indiretos, inclusive como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações e outras etapas preliminares. 2. A fim de assegurar às pessoas com deficiência o efetivo acesso à justiça, os Estados Partes promoverão a capacitação apropriada daqueles que trabalham na área de administração da justiça, inclusive a polícia e os funcionários do sistema penitenciário”. 505 ARAUJO e MARTINS, op cit, p. 120. 163 Um clássico caso de omissão parcial é a denominada “exclusão de benefício incompatível com o princípio da igualdade,” que ocorre quando a norma concede vantagens ou benefícios a um determinado grupo sem contemplar outros que se encontram na mesma situação.506 Como exemplo, pode ser citada a ADO 30 ajuizada pelo Ministério Público Federal, em 2015, contra o inciso IV do art. 1º da Lei Federal n. 8.989, de 24 de fevereiro de 1995. Esta dispõe sobre a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na aquisição de automóveis por pessoas com deficiência física, visual, mental severa ou profunda, ou autistas ou por seu representante legal, excluindo desse rol as pessoas com deficiência auditiva. Observe-se que na petição inicial não foi encontrada qualquer referência à Convenção de Nova York (2006). O conceito de pessoa com deficiência citado foi o do Decreto 3.298/1999, que no art. 4° elenca as categorias de pessoas com deficiência incluindo dentre elas aquelas com deficiência auditiva. Dessa forma, argumentou-se que, conforme o princípio da igualdade material, não caberia a Lei n. 8.989 fazer distinção entre os indivíduos que se encontram na mesma situação de desvantagem.507 Como evidenciado, a prestação jurisdicional à pessoa com deficiência pode ser realizada através de vários instrumentos, cada um direcionado para solucionar determinada situação. Deve o operador do direito escolher o caminho mais adequado para reparar ou prevenir a violação de direitos. Nesse contexto, os dispositivos da Convenção de Nova York (2006) podem ser usados como fundamentação dos pleitos, visto que dispõem de forma abrangente sobre os diversos direitos desse grupo e tem natureza de norma constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, muitas vezes, a escolha do caminho adequado para acionar a justiça, por si só, não é garantia do reconhecimento da pretensão pleiteada. Embora a razoável duração do processo tenha sido alçada a direito constitucional, a justiça brasileira ainda enfrenta um alto quantitativo de demandas e dificuldades para prestar a jurisdição tempestivamente.508 O que nos casos das pessoas com deficiência acarreta graves prejuízos, pois as ações visam a 506 MENDES, op cit, p.1124. 507 Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade por Omissão n. 30 – Distrito Federal. Relator: Ministro Dias Toffoli. Acompanhamento processual. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp> Acesso em 9 março. 2017. 508 O relatório do CNJ referente ao ano de 2015 apontou que cerca de 74 milhões de processos estavam em tramitação no país. No ano passado, esse estoque cresceu 3%, uma alta de 1,9 milhão de ações em relação ao fim de 2014. O saldo aumenta continuamente desde 2009. Desde aquele ano, o crescimento acumulado é de 19,4%, ou 9,6 milhões de processos pendentes a mais. Em média, processos comuns demoram 2 anos e 11 meses a espera de solução. Disponível em: Acesso em 8 dez. 2016. 164 satisfação das suas necessidades mais básicas que, constantemente, estão sendo negligenciadas ou violadas. Ademais, esse grupo enfrenta problemas específicos para obter uma prestação jurisdicional justa e eficiente, como a falta de acessibilidade na própria justiça e o fato de algumas de suas demandas esbarrarem inevitavelmente na questão orçamentária do Estado, que frequentemente alega o princípio da reserva do possível para afastar o cumprimento da pretensão aduzida em juízo. No que tange ao princípio da reserva do possível, pode-se destacar a decisão do Tribunal de Justiça do Espírito, em agravo de instrumento interposto pelo Estado do Espírito Santo contra decisão de primeira instância. Esta deferiu medida liminar determinando que o Estado forneça à agravada, diagnosticada com tetraplegia traumática completa, uma cadeira de rodas motorizada, no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais).509 O Estado alegou que a compra desse instrumento deve obedecer aos critérios de dotação orçamentária, haja vista que o Estado não possui recursos públicos suficientes para atender a todas as necessidades da população. A decisão ressaltou o dispositivo 196 da Constituição Federal, que dispõe sobre a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantida aos cidadãos por meio de políticas sociais e econômicas focadas no seu acesso universal e integral. Evidenciou-se a ideia, já firmada pela jurisprudência, de que a "cláusula da reserva do possível" não pode ser invocada para restringir a assistência pelo ente público àquele que necessita de um aparelho fornecido pelo sistema público de saúde, sem, contudo, conseguir obtê-lo em razão dos entraves burocráticos. Nesses casos, mostra-se acertada a intervenção do judiciário para viabilizar a fruição do direito à saúde. 510 Ademais, verificou-se que, de acordo com o exame dos autos, o Estado não obteve êxito em comprovar a insuficiência de recursos para a compra da cadeira de rodas motorizada. Argumentou-se que a questão referente à suposta ausência de dotação orçamentária não se mostra como fato impeditivo da realização de despesas. Na medida em que a Lei n. 4.320/64 (diploma que aborda a elaboração e controle de orçamentos), em seu art. 41, II, prevê os chamados créditos adicionais especiais “destinados a despesas para as quais não haja dotação orçamentária específica”. 509Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Agravo de Instrumento n. 1.0223.08.268994-2/001. Relator: Desembargador Dídimo Inocêncio de Paula. Espírito Santo, 22 de outubro de 2009. Lex: Diário de Justiça Eletrônico, de 6 de novembro de 2009. Disponível em: < http://www.tjmg.jus.br/portal/processos/diario-do- judiciario/> Acesso em: 18 nov. 2016. 510 Ibidem. 165 Ainda no tocante à querela orçamentária, considerando a necessidade de preservação da vida dos doentes em estado grave, ponderou-se que a despesa será feita uma única vez e, certamente, não acarretará o alegado risco de lesão à ordem pública e econômica, pois se trata de valor pequeno em face do orçamento de um Estado do porte do Espírito Santo. Dessa forma, decidiu-se pelo indeferimento do pleito de suspensão da aludida liminar. Afirmou-se que, mediante o emprego dos critérios da razoabilidade e proporcionalidade, os direitos à saúde e à vida devem prevalecer sobre outras garantias e princípios constitucionais, tais como supremacia do interesse público sobre o privado, autonomia orçamentária, políticas públicas da administração e assim por diante. Observe-se que a limitação de recursos existe e deve ser observada pelo magistrado, ao determinar o fornecimento de um bem jurídico pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado é realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida a promoção do bem-estar dos cidadãos, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua dignidade. O que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Dessa forma, os alvos prioritários dos gastos públicos devem ser estabelecidos em conformidade com a preservação e promoção dos elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial).511 No âmbito dessa questão do conflito entre a disponibilidade orçamentária do Estado e a defesa dos direitos fundamentais, é paradigmática a argumentação da Suprema Corte apresentada na ADPF n. 45. Nessa Ação, o STF explica que o princípio da reserva do possível reside na ideia de que a concretização dos direitos sociais, culturais e econômicos é progressiva e subordinada às possibilidades do orçamento estatal, pois depende de prestações positivas para se concretizarem. Assim, em face da demonstração de incapacidade econômico-financeira do Estado não é razoável exigir a imediata efetivação de tais direitos. 512 Contudo, o referido julgado ressalta que, salvo a existência de motivo objetivamente auferido, a cláusula de reserva do possível não pode ser invocada pelo Estado para não cumprir suas obrigações constitucionais, principalmente quando dessa conduta negativa 511 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. Renovar, 2002, p. 245- 246. 512 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45 DF. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 29 de abril de 2004. Lex: Diário de Justiça eletrônico, de 4 de maio de 2004. Acesso em 5 dez. 2016. 166 governamental puder resultar nulificação ou aniquilação de direitos constitucionais fundamentais. 513 A decisão em comento considera a admissão excepcional do controle judicial das políticas públicas, em razão do descumprimento arbitrário pelo Executivo e Legislativo dos respectivos encargos constitucionais, comprometendo a integridade dos direitos fundamentais. Nesse contexto, ressaltou-se que a Carta Magna ampliou os poderes do judiciário, ao prever no art. 5° XXXV, que a lei não excluirá da apreciação do judiciário lesão ou ameaça a direito. Restando evidente que quando há omissão arbitrária ou má prestação dos direitos sociais pelos demais poderes, ocorre omissão (total ou parcial) inconstitucional, sendo legítima a atuação do judiciário para saná-la. Em face das dificuldades enfrentadas pelos sujeitos com deficiência para obter uma prestação jurisdicional efetiva, é imprescindível destacar que a introdução do tema da pessoa com deficiência no âmbito dos tratados de direitos humanos acarretou a importante conseqüência de possibilitar o acesso aos Tribunais Internacionais. Nessa esteira, apresenta-se a seguir os recursos disponíveis na esfera jurídica internacional para solucionar as hipóteses em que o Estado brasileiro não conseguiu assegurar os direitos desse grupo. 513 BARCELLOS, op cit, p. 245-246. 167 Seção 2. O acesso aos Tribunais Internacionais para defesa dos direitos das pessoas com deficiência A presente seção tem como objetivo evidenciar como a pessoa com deficiência que teve seus direitos violados pelo Estado brasileiro pode recorrer às instâncias internacionais. Inicia-se a investigação sobre qual seria o Tribunal competente para aplicar a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Considerando que se trata de um instrumento pertencente ao sistema global de proteção dos direitos humanos, analisa-se a possibilidade da competência da Corte Internacional de Justiça. Nessa esteira, apresentam-se os modos pelos quais os Estados consentem com a sua jurisdição, bem como a sua atuação no campo dos direitos humanos. Para então, averiguar se o acesso à CIJ seria um mecanismo eficiente na promoção dos direitos da pessoa com deficiência. A seguir, evidencia-se como a defesa desse grupo vulnerável ocorre nos sistemas regionais, buscando compreender se a garantia dos direitos assegurados na Convenção de Nova York (2006) pode ser promovida no âmbito dessa jurisdição, ainda que não seja pela sua aplicação direta. Nesse sentido, elabora-se a hipótese de que é possível interpretar os instrumentos jurídicos regionais à luz da Convenção da ONU para efetivar o novo paradigma sobre deficiência introduzido por esta. Ademais, apresenta-se o caso Damião Ximenes Lopes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por violações aos direitos de um paciente com transtorno mental. Com esse julgado, evidencia-se a postura do Brasil em face das decisões da Corte, verificando o seu grau de efetividade para satisfazer a demanda por justiça das vítimas e transformar a realidade social interna. 168 § 1. A ausência de cláusula convencional de jurisdição obrigatória na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. O sistema jurídico internacional tem um papel relevante na proteção dos direitos humanos, pois além de promover a reparação às vítimas, fixando obrigações para os Estados Partes; permite, através de um procedimento imparcial, que o Estado apresente suas justificativas para as supostas violações. Nesse contexto, a efetividade desses tratados pode ser facilitada a partir da existência de um órgão internacional autorizado a desempenhar essa função. Sob essa perspectiva, a proteção dos direitos humanos ocorre em dois âmbitos distintos de aplicação: o sistema Global, de caráter universal, centrado na Organização das Nações Unidas e suas agências especializadas; e os sistemas regionais como o Africano, Europeu e Interamericano, por meio de seus órgãos e instrumentos normativos.514 Ressalte-se que são sistemas complementares, na medida em que o plano global contém um parâmetro normativo mínimo, enquanto os instrumentos regionais consideram as diferenças peculiares de uma mesma região e adicionam novos direitos e aperfeiçoam outros. 515 Sublinhe-se que os órgãos responsáveis pelo contencioso judicial no âmbito das Nações Unidas são a Corte Internacional de Justiça, os Tribunais ad hoc para a ex Iugoslávia e Ruanda (criados por resolução do Conselho de Segurança da ONU) e o Tribunal Penal Internacional. Em face dessa sistemática, constata-se que no sistema Global a justicialização operou-se na esfera penal, alcançando os indivíduos autores dos crimes internacionais. Enquanto nos sistemas regionais, a justicialização efetivou-se na esfera civil, mediante a atuação das Cortes Europeia, Interamericana e Africana, responsabilizando os Estados perpetradores de violações aos direitos humanos. 516 Destarte, o sistema global atua, principalmente, no sentido de prevenir conflitos internos através de mecanismos de intervenção política, que visam ao fortalecimento das instituições nacionais para solucionar questões relacionadas aos direitos humanos. Enquanto os sistemas regionais comumente decidem controvérsias que não tiveram solução no plano 514 GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa; LIMA JUNIOR, Jayme Benvenuto. A proteção dos Direitos da Pessoa com deficiência na Jurisprudência da Corte Interamericana e da Corte Europeia de Direitos Humanos. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. (Coord). Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. 2, p. 463-475. 515PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 245. 516 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeus, interamericano e africano. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p.104. 169 das jurisdições domésticas dos Estados, representando um meio jurisdicional internacional de solução de conflitos.517 Destaque-se que o sistema jurídico internacional tem uma estrutura de coordenação, em que o próprio sujeito regrado, o Estado, sempre e necessariamente, participa da criação das regras, da sua fiscalização, modificação e da sanção aos infratores.518 Essa coordenação, no mais das vezes, é realizada por organizações intergovernamentais com personalidade jurídica própria e com o objetivo de realizar os fins comuns.519 Nesse contexto, surgem organizações com feições de jurisdição, cujas bases encontram-se nas convenções, acordos e instrumentos internacionais respectivos, e seu exercício é regulamentado por atos interna corporis (regulamentos).520 No sistema de proteção dos direitos humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos foi criada pela Convenção Europeia de Direitos Humanos em 1950, tratado elaborado sob a tutela do Conselho da Europa; A Corte Interamericana de Direitos Humanos é órgão da Convenção Americana de Direitos Humanos (1978); e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos, por sua vez, foi instituída pela Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.521 Ademais, o próprio tribunal estabelece, dentro dos parâmetros do instrumento que o criou, se ele é ou não competente para julgar determinados casos, o que se denominou de princípio da competénce de la competénce.522 Um exemplo da aplicação desse princípio pode ser encontrado no parecer consultivo n.1/82 de 24 de setembro de 1982, da Corte Interamericana, no qual esta declarou que sua competência consultiva abrange os diversos tratados internacionais não necessariamente entre Estados americanos, mas aqueles adotados para proteger as pessoas da região americana.523 Como a Convenção de Nova York (2006) é um tratado do sistema global de direitos humanos, investiga-se a possibilidade da competência para sua aplicação ser atribuída à Corte 517 GONÇALVES e LIMA JUNIOR, op ci, p. 463-475. 518 FINKELSTEIN, Cláudio. Hierarquia das normas do Direito Internacional: jus cogens e metaconstitucionalismo. São Paulo: Saraiva, 2013.p. 155. 519 TRINDADE, Antonio Augusto Cancado. Direito das organizações internacionais. 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 107. 520 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos, p. 45. 521 RAMOS, André de CARVALHO. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 112- 115. 522 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Dialogando na multiplicação: uma aproximação. Revista de Direito Internacional (Brazilian Journal of International Law), v. 9, n. 2, 2012. Disponível em: Acesso em: 18 abril. 2017. p.3. Em 1953, por exemplo, em uma influente opinião consultiva, a Corte Internacional de Justiça afirmou o princípio, ao estabelecer que controvérsias sobre a competência do Tribunal Administrativo das Nações Unidas para julgar um caso devem ser resolvidas pelo próprio Tribunal Administrativo. (Galindo, op cit, p. 3) 523 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 353. 170 Internacional de Justiça. Destaque-se que em razão do respeito à soberania dos Estados decorrem duas regras de acesso aos Tribunais Internacionais: a necessidade de consentimento estatal para se submeter à jurisdição internacional e o caráter subsidiário desta, só acionada após o esgotamento dos recursos internos. Nesse âmbito, apresentam-se as modalidades de consentimento para atribuição de competência à CIJ, a fim de verificar se ela poderia ser responsável pela aplicação da Convenção de Nova York (2006). No que concerne à competência material, disposta no art. 36 (1) do Estatuto da Corte, esta abrange todos os assuntos previstos na Carta das Nações Unidas e nos tratados e convenções em vigor, além de todas as questões que as partes desejem submeter a sua apreciação. Trata-se, portanto, de uma jurisdição extremamente ampla, podendo incluir qualquer questão relativa ao Direito Internacional.524 Ressalte-se que a Corte está aberta a todos os Estados Partes do seu Estatuto, art. 35 (1), e os membros das Nações Unidas são ipso facto partes no referido documento, conforme art. 93 da Carta das Nações Unidas.525 Contudo, os Estados não se submetem automaticamente à jurisdição do Tribunal em consequência de terem assinado o seu ato constitutivo. Para tanto, é exigida uma manifestação posterior do consentimento, regra da prática internacional sobre a resolução de litígios corolário da igualdade soberana dos Estados.526 A partir da interpretação dos dispositivos 36 (1) e 36 (2) do Estatuto da CIJ, a doutrina depreende que são três as modalidades de concessão do consentimento: acordo especial, declaração unilateral e cláusula convencional. O acordo especial seria uma anuência concedida pelos Estados, que decidem de comum acordo submeter à CIJ um litígio já instaurado, ou aquele que eventualmente vier a existir. Observe-se que não é especificada a forma desse acordo, podendo este decorrer de um ato conjunto dos Estados ou, simplesmente, de atos sucessivos de cada um. O que acontece nos casos em que o Estado autor aceitou a jurisdição através de um requerimento unilateral, seguido de um ato distinto de consentimento 524 Art. 36.2: (...) a jurisdição da Corte em todas as controvérsias de ordem jurídica que tenham por objeto: a) a interpretação de um tratado; b) qualquer ponto de Direito Internacional; c) a existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria a violação de um compromisso internacional; d) a natureza ou a extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional. 525 O artigo 93 n. 2 da Carta das Nações Unidas estabelece que o Estado que não seja membro das Nações Unidas poderá tornar-se parte no Estatuto do Tribunal em condições que serão determinadas, em cada caso, pela Assembleia Geral, mediante recomendação do Conselho de Segurança. 526 BROWNLIE, Ian. Princípios de Direito Internacional Público. 4 ed. Oxford University Press. Lisboa: Fundação Calouste Glbenkian, 1997. Cap. XXXI, Parte XII, Tribunal Internacional de Justiça. p.746 171 da outra parte. Como evidenciado, o acordo pode ser informal, inferido de uma conduta ou formalizado, desde que o consentimento seja fidedigno e não apenas aparente.527 A Declaração unilateral, também denominada de “cláusula facultativa de reconhecimento de jurisdição obrigatória”, consiste na aceitação unilateral por um Estado da competência obrigatória da CIJ para certas matérias. O caráter facultativo decorre da opção do Estado por vincular-se à Corte, podendo, inclusive, estabelecer prazo determinado, mitigar o alcance da jurisdição através de reservas e desvincular-se de forma discricionária. Ademais, ao emitir uma declaração unilateral, o Estado pode requerer o aceite da mesma obrigação, sob condição de reciprocidade, de outros Estados.528 Por fim, quando o art. 36 (1) declara a competência da CIJ para "todas as questões especialmente previstas (...) nos tratados e Convenções em vigor”, abre-se a possibilidade dos tratados internacionais incluírem em seu texto uma cláusula direcionando à Corte a resolução dos litígios envolvendo a sua temática. Esse consentimento pode ser descrito como obrigatório, na medida em que a anuência é concedida antes do aparecimento do litígio.529 Exemplos de tratados que apresentam a cláusula convencional de jurisdição obrigatória são o Estatuto dos Refugiados, de 28 de julho de 1915; a Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 1948; a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, de 21 de dezembro de 1965. Ressalte-se que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência não apresenta dispositivo nesse sentido, permanecendo silente em relação ao Tribunal Internacional competente para aplicá-la. Todavia, como observado, a cláusula convencional é apenas uma das modalidades de instituição da competência da CIJ. Portanto, nada impede que os Estados Partes na Convenção adotem outro procedimento, como a declaração unilateral ou o acordo especial, para atribuir à Corte Internacional de Justiça competência para dirimir litígios provenientes da aplicação e interpretação desse tratado. Embora exista essa possibilidade, é imprescindível destacar que essa Corte tem um modesto papel na aferição da responsabilidade internacional dos Estados por violação de direitos humanos. A justificativa para isso encontra-se em dois aspectos do Estatuto da Corte. O primeiro deles diz respeito à legitimidade ativa e passiva para participar dos processos ser atribuída apenas aos Estados, conforme o art. 34(1). Fator que limita, sobremaneira, a 527 Ibidem, p. 755 A título de ilustração, vale citar o caso do Canal de Corfu, no qual após o Reino Unido ter apresentado uma petição inicial unilateral, a Albânia aceitou a jurisdição em uma comunicação oficial dirigida ao Tribunal. (BROWNLIE, op cit, p. 755) 528CARREAU e BICHARA, op cit, p. 764. 529 BROWNLIE, op cit, p. 748. 172 proteção judicial dos direitos humanos, pois para esta é imprescindível a capacidade postulatória do indivíduo para litigar contra o próprio Estado da sua nacionalidade. 530 Sublinhe-se que a CIJ apresenta um mecanismo rigidamente interestatal, excluindo- se até mesmo a participação das organizações internacionais.531 Embora seja possível pela via diplomática, um indivíduo lograr submeter à Corte um pleito relativo ao dano sofrido em razão da ação de um Estado estrangeiro, isso só será viável se o Estado de sua nacionalidade assumir a causa.532 A artificialidade do caráter exclusivamente interestatal do contencioso perante a CIJ é claramente revelada pela própria natureza de determinados casos, visto que, em muitos deles, os problemas submetidos ao conhecimento da Corte requerem desta um raciocínio que transcende a dimensão dos interesses estatais. Assim, o fato de o mecanismo ser acessível apenas para os Estados, inadequado nos dias de hoje, não significa que as fundamentações das sentenças do Tribunal considerem apenas os Estados e seus interesses.533 Nesse sentido, a Corte Internacional de Justiça já fez varias contribuições à proteção dos direitos humanos, ao mencionar a responsabilidade do Estado por violação destes em vários casos concretos: No litígio sobre o Estreito de Corfu, primeiro contencioso da Corte, ficou estabelecido que a Albânia era obrigada a notificar aos navios a existência de minas em águas territoriais albanesas, obrigação essa derivada dos princípios dos direitos humanos; no Caso Namíbia (1970), a Corte afirmou que as cláusulas sobre direitos humanos da Carta das Nações Unidas contém obrigações legais; no litígio Reféns de Teerã (1980), considerou-se que a violação das regras e princípios da Declaração Universal de Direitos Humanos constitui violação de Direito Internacional Geral; no contencioso Barcelona Traction (1970), consolidou-se o entendimento de que a ofensa aos direitos humanos constitui violação de obrigações erga omnes.534 Como evidenciado, não é admissível mais dirimir uma demanda internacional, mesmo restrita aos Estados, e ignorar a existência de seres humanos envolvidos. Afinal, os indivíduos compõem o Estado na sua dimensão subjetiva, não podendo qualquer Tribunal Internacional negligenciar os possíveis impactos de suas decisões em relação às normas cogentes de proteção dos direitos humanos. 535 530 RAMOS, André de CARVALHO. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 128. 531TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos, p .21-22. 532 PELLEGRINO, Carlos Roberto. Estrutura normativa das relações internacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 346. 533 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos, p. 47. 534 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, 104-111. 535 Ibidem, p.105. 173 Sob esse prisma, a força imperativa de tais direitos permitiria qualquer Estado terceiro denunciar outro Estado por violações de direitos humanos, ainda que não tivesse qualquer parte no litígio. Essa tese pode ser defendida tomando como pressuposto o conceito de obrigação erga omnes. Esta constitui norma imperativas que contém valores essenciais da Comunidade Internacional e que, por conseguinte, se impõe a cada Estado, não sendo-lhe facultado, enquanto autoridade internacional, o direito de violar normas imperativas e sequer de aquiescer com violações por parte de outrem. 536 Destaque-se que normas de jus cogens e erga omnes são espécies do gênero normas imperativas, mas não são categorias estanques. Todas as normas de jus cogens são consideradas obrigações erga omnes, mas o inverso não é verdadeiro. O conceito de jus cogens implica o reconhecimento da superioridade do direito material e as obrigações erga omnes significam uma qualidade de implementação do direito material, ou seja, todo Estado tem interesse no cumprimento dessa norma. Consagra-se, assim, o interesse de terceiros Estados em vê-las observadas pelos demais, o que se contrapõe ao bilateralismo das obrigações internacionais, nas quais o Estado violador responde somente em face do Estado vítima.537 No caso Barcelona Traction (1970), a CIJ estabeleceu quais seriam os exemplos de obrigação erga omnes vigentes à época. Para a Corte, essas obrigações nascem dos atos de agressão, genocídio, violações dos princípios e regras referentes aos direitos básicos da pessoa humana tais como a discriminação racial e a escravidão. Dessa forma, os instrumentos internacionais de caráter universal de proteção dos direitos humanos foram indicados como uma das fontes dessa espécie de obrigação.538 Por outro viés, a norma de jus cogens, conforme art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, é definida como “norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.” Esse conceito restringe o modelo voluntarista- positivista de soberania estatal que se consagrou a partir da Paz de Westfália, pois deriva da aceitação por toda a Comunidade Internacional de princípios que superam a vontade do Estado.539 536 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 55. 537 Ibidem, p.57. 538 Ibidem, p. 68. 539 FINKELSTEIN, op cit, p. 189. 174 Essa superioridade material reside no fato das normas de jus cogens exprimirem valores éticos universais consagrados conforme as concepções políticas, éticas, filosóficas e ideológicas da época. Portanto, trata-se de um conceito em evolução e difícil de ser delimitado com exatidão, sobretudo, devido às conseqüências revolucionárias que advém desse reconhecimento, como a anulação de tratados com ele conflitantes.540 Destarte, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 quedou silente quanto ao rol de normas cogentes. A doutrina, por sua vez, enumera como normas dessa espécie a proibição do emprego da força nas relações internacionais, contrariamente aos princípios da Carta da ONU; a interdição do tráfico de seres humanos, a pirataria, o genocídio os princípios humanitários colocados pelas quatro Convenções de Genebra de 1949; bem como atos qualificados como crimes contra humanidade, tipificados no artigo 7 do Estatuto da Corte Penal Internacional, dentre eles a escravidão, deportação de populações civis, tortura, estupro e outros.541 Destarte, embora exista a eventual possibilidade da CIJ se tornar um Tribunal de Direitos Humanos, com base na defesa, pelos Estados, das normas de jus cogens e erga omnes de forma multilateral. É preciso considerar que para além das dificuldades conceituais relacionadas a essas espécies normativas, o fato do acesso à Corte ser restrito aos Estados compromete a efetividade da tutela dos direitos humanos, visto que esta depende irremediavelmente da capacidade postulatória dos indivíduos e organismos internacionais independentes, porquanto, o Estado sempre pode sacrificar os direitos individuais em prol dos seus interesses geopolíticos. 542 A definição requer que a norma seja aceita e reconhecida pela comunidade internacional como não derrogável, não sendo necessário que todos os Estados comunguem dessa opinião: o que é necessário é que ao menos a vasta maioria dos Estados reconheça a norma como peremptória. Como resultado, a abordagem puramente consensualista do direito internacional é parcialmente abandonada, uma vez que a maioria qualificada dos Estados pode vincular a minoria. (FINKLTEIN, op cit, p. 184). 540 RODAS, João Grandino. Jus Cogens em Direito Internacional. Revista da faculdade de direito da universidade de São Paulo, v. 69, n. 2, 1974. p. 128. Disponível em < http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66736/69346> Acesso em: 2 jan. 2017. 541 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 103. 542 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 111 Exemplo da preponderância dos interesses dos Estados sob a proteção dos direitos humanos pode ser visto no caso Breard da CIJ. O caso foi proposto pelo Paraguai contra os Estados Unidos, que teriam desrespeitado a Convenção de Viena sobre Relações Consulares. Uma vez que, em 1992, quando as autoridades policiais da Virgínia prenderam o cidadão paraguaio Ángel Francisco Breard, sem notificá-lo do direito à assistência consular, ele foi preso, julgado e condenado à morte. Em 9 de Abril de 1999, a Corte acatou o pedido de medida cautelar pleiteado pelo Paraguai e ordenou a suspensão da execução da pena capital pelos Estados Unidos. O Estado da Virgínia, entretanto, não acatou tal ordem e executou o senhor Breard no dia 14 de abril de 1998. Após a execução, o caso foi arquivado a pedido do Paraguai, que aparentemente, não desejou continuar processando os Estados Unidos. INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Case conserning the Vienna Convention on Consular Relations (Paraguai v. United States of America), 3 April 1998. Disponível em Acesso em: 01 abr. 2016. 175 Assim, é da própria essência da proteção internacional dos direitos humanos a contraposição entre os indivíduos demandantes e os Estados demandados. Ainda que o direito de petição seja motivado pela busca da reparação individual, o seu exercício contribui também para assegurar o respeito pelas obrigações de caráter objetivo que vinculam os Estados Partes, ao forçá-los a prestar contas à Sociedade Internacional da maneira como tratam os seres humanos que se encontram sob sua jurisdição. 543 Como evidenciado, o fato da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência não apresentar uma cláusula convencional atribuindo competência à Corte Internacional de Justiça para solucionar litígios sobre o seu objeto não é um fator que comprometa de forma relevante a sua efetividade, visto que a CIJ, embora venha abordando de forma indireta a responsabilização dos Estados por violações de direitos humanos, é uma jurisdição exclusivamente interestatal, o que reduz a sua eficácia na tutela dos direitos humanos. Contudo, é inegável a necessidade de um Tribunal para julgar os casos provenientes do tratado em estudo. Principalmente, porque, como observado ao longo desse trabalho, a legislação internacional tem uma dívida de efetividade com as pessoas com deficiência, que por muito tempo foram objeto apenas de políticas públicas e declarações de sof Law, sem serem incluídas nos tratados de direitos humanos. O que acarretou o enraizamento de práticas assistencialistas, preconceitos e estigmatização desse grupo, que necessitam ser combatidas também através da esfera judicial. Nesse cenário, um órgão judicial seria deveras importante para fornecer, à luz de casos concretos, significados reais e práticos aos direitos consagrados no texto da Convenção. Tais significados, na medida em que são adotados pelo intérprete autorizado do tratado tornam-se universais e podem ser incorporados, quase de forma simbólica, por outros tribunais nacionais e internacionais, transformando-se em um motor para a mudança social e política.544 Ademais, os Tribunais de direitos humanos têm um papel preventivo, pois as demandas apreciadas são selecionadas justamente pelo seu impacto estrutural, que levará a 543TRINDADE, Augusto Cancado. A pessoa humana como sujeito do direito internacional: A experiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. IN: Direito, Carlos Alberto Menezes; TRINDADE, Antônio Augusto; PEREIRA, Antônio Celso Alves. (Coord). Novas perspectivas do direito internacional contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.p. 509 544 PERLIN, Michael L. Promoting social change in Asia and the Pacific: The need for a disability rights tribunal to give life to the UN Convention on the Rights of Persons with Disabilities. The George Washington International Law Review. v. 44, p. 1, 2012. Disponível em: < http://www.gwilr.org/> Acesso em: 13 dez. 2016. 176 reformas internas, impedindo novas violações. Por outro lado, o acesso a uma Corte externa possibilita a reparação das vítimas, não obtida no plano interno.545 Nesse sentido, um tratado revolucionário como a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que simboliza uma promessa de transformação no tratamento desses indivíduos, não pode prescindir do recurso à jurisdição internacional para os casos em que os Estados se mostrem omissos em cumprir com as suas normas. Nesse contexto, procura-se investigar quais seriam as soluções para esse impasse. § 2. O diálogo entre jurisdições internacionais em prol da proteção da pessoa com deficiência Como observado, a ausência de atribuição de competência a um Tribunal Internacional para interpretar e aplicar a Convenção de Nova York (2006) poderia ser um obstáculo a sua efetivação, pois negaria às pessoas com deficiência o acesso à instância internacional, quando os Estados Partes não cumprissem com as obrigações ratificadas. Porém, como constatado, o silêncio da Convenção sobre uma cláusula de jurisdição convencional pode ser suprido por outras modalidades de atribuição de competência para a Corte Internacional de Justiça. Mas, ainda assim, isso não resolveria o problema, em face da natureza interestatal dessa jurisdição. Observe-se que cada Tribunal Internacional tem sua jurisdição baseada em um tratado ou instrumento internacional específico, que delimita o direito por ele aplicável. A CJI tem competência para dirimir o contencioso interestatal; Os Tribunais Regionais de Direitos Humanos solucionam as demandas das vítimas de violações dos direitos dessa espécie; Os Tribunais Penais Internacionais são o fórum destinado a acolher as reclamações dos familiares das vítimas de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra; Para os tripulantes de navios detidos, o Tribunal Internacional mais importantes é o do Direito do Mar, em Hamburgo. Cada uma das Cortes Internacionais tem sua relevância no domínio respectivo de sua atuação.546 Contudo, essa distribuição de competências revela um aspecto contraditório, visto que os tratados de direitos humanos do sistema global não contam com um Tribunal de Direito Humanos para a sua aplicação, já que estes existem apenas no sistema regional. Em face desse panorama, é imprescindível destacar que o sistema global e regional devem ser complementares, porquanto, ambos devem refletir os princípios e valores da 545 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 419 546 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Os Tribunais Internacionais Contemporâneos, p. 107. 177 Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Nessa direção, o propósito da existência de distintos instrumentos jurídicos garantindo os mesmos direitos é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. 547 Nesse sentido, a Convenção de Nova York (2006) convive com instrumentos regionais como a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999). No âmbito da União Europeia, a Carta dos Direitos Fundamentais (2000) apresenta dispositivos que se referem aos direitos da pessoa com deficiência, bem como a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (1981). Além disso, o Tribunal de Justiça da União Europeia pode aplicar diretamente a Convenção de Nova York (2006), visto que esse tratado foi ratificado pela União Europeia através da Decisão 2010/48/CE do Conselho, de 26 de novembro de 2009.548 Ademais, o tratado em estudo não apenas garante direitos específicos às pessoas com deficiência, como também reafirma direitos universais positivados em outros documentos, que podem ser interpretados para realizar os fins da Convenção. Sob essa ótica, deve-se adotar o valor da primazia da pessoa humana, promovendo a complementação entre os diferentes sistemas. Seguindo essa perspectiva, embora os Tribunais regionais não possam aplicar diretamente o tratado em exame, pois este é uma norma do sistema global, considera- se a possibilidade desses órgãos interpretarem os tratados pertencentes à jurisdição regional à luz da Convenção de Nova York (2006). Tal prática pode fornecer precedentes importantes sobre os direitos das pessoas com deficiência para aplicação da Convenção nos Estados Partes. Essa ideia pode ser ilustrada no caso Alajos Kiss X Hungria julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em 20 de agosto de 2010. A requerente, uma pessoa diagnosticada com deficiência mental e sob regime de tutela parcial, alegou violação do seu direito ao voto, em face do art. 70, n. 5 da Constituição da Hungria que veda a participação nas eleições das pessoas sujeitas à tutela total ou parcial. Argumentou-se que a proibição era contrária aos artigos 12 e 29 da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que 547PIOVESAN, Flávia. Igualdade, diferença e Direitos humanos: Desafio da ordem internacional contemporânea. In: PIOVESAN, Flávia (Coord). Direitos Humanos. Curitiba: Ed. Juruá, 2006. p. 24. 548CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Decisão do Conselho, de 26 de Novembro de 2009 , relativa à celebração, pela Comunidade Europeia, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. DO L 23 de 27.1.2010, p. 35/61. Disponível em: < http://eur-lex.europa.eu/homepage.html> Aceso em: 10 jan. 2017. 178 deve ser considerada na interpretação do artigo 3º do Protocolo nº 1 da Carta Europeia de Direitos Humanos.549 A Corte considerou a restrição imposta pela Constituição da Hungria inadmissível, pois não é razoável agrupar todas as pessoas com deficiência mental em uma única classe, excluindo todas do direito de votar apenas pelo fato de possuir uma deficiência mental como justificativa da tutela parcial. Assim, a Corte decidiu, por unanimidade, que a proibição absoluta violava o artigo 3 do protocolo n. 1 da Carta Europeia de Direitos Humanos, o qual enuncia o dever dos Estados Partes de realizar eleições livres, periódicas, por voto secreto e em condições que garantam a livre expressão da opinião do povo.550 Observe-se que, através da aplicação de um instrumento regional, o Tribunal fez uma importante afirmação dos pressupostos da Convenção de Nova York (2006),551 contribuindo com a efetividade do art. 29, que determina como obrigação dos Estados Partes garantir às pessoas com deficiência direitos políticos e a oportunidade de exercê-los em condições de igualdade com as demais pessoas. A decisão também está em consonância com o art. 12 do referido tratado, o qual afirma o direito das pessoas com deficiência de exercerem sua capacidade legal com o auxílio de medidas que respeitem sua autonomia e capacidades e sejam proporcionais e apropriadas ás circunstâncias de cada pessoa. Ademais, o julgado promoveu o novo conceito de pessoa com deficiência apresentado pela Convenção em estudo, ao propugnar pela invalidação do estabelecimento genérico da deficiência na lei, desconsiderando o contexto que envolve as pessoas e suas capacidades.552 Por esse viés, demonstrou-se a possibilidade de interpretar um dispositivo do sistema normativo regional sob a ótica de um tratado do sistema “onusiano,” visto que foi aplicado um dispositivo geral sobre eleições livres da Carta Europeia de Direitos Humanos a uma situação específica de uma pessoa com deficiência, realizando os fins da Convenção da ONU. Sublinhe-se que esse caso demonstra a importância de garantir o acesso do indivíduo aos Tribunais Internacionais, pois pode possibilitar o questionamento de dispositivos até 549 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case originated in an application against the Republic of Hungary lodged with the Court under Article 34 of the Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms by a Hungarian national (Alajos Kiss v. Hungary), 3 august 2010. Disponível em: Acesso em: 01 abr. 2017. 550 GONÇALVES e JUNIOR LIMA, op cit, p. 465. 551Ibidem, p. 467. 552 PALUMBO, Lívia Pelli. A efetivação dos direitos das pessoas com deficiência pelos sistemas de proteção de direitos humanos: sistema Americano e Europeu. Revista Direitos sociais e Políticas Públicas. v. 1, n. 2, p.114- 135, 2013. Disponível em Acesso em: 16 jan. 2016. p. 128. 179 mesmo da Carta Magna do Estado, quando estes se encontram fundados no preconceito enraizado na cultura popular e na legislação pátria.553 O que revela a faceta contramajoritária da jurisdição internacional dos direitos humanos, em especial acerca de temas que envolvem vícios históricos. Em face dos quais, mesmo nos Estados Democráticos, os anseios das vítimas podem não ser reconhecidos como legítimos. Nessas situações, o acesso às instâncias internacionais é uma alternativa para evidenciar violações de direitos que podem estar invisíveis para grande parte da população. 554 No âmbito da Corte Interamericana, destaca-se o caso Sebastian Furlan, julgado em 11 de outubro de 2012. Trata-se de acidente sofrido por um menino de 14 anos, que adentrou em um prédio abandonado pertencente ao Exército Argentino e foi atingido por uma barra de ferro, que lhe causou traumatismo craniano, fraturas e coma grave. A justiça nacional condenou o Estado a pagar uma indenização de 130 mil pesos argentinos. Entretanto, o cumprimento da sentença só ocorreu 13 anos depois do ajuizamento da demanda.555 A Corte Interamericana declarou que a demora na prestação jurisdicional violou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), art. 19 sobre o direito de toda criança a medidas de proteção; e o art. 8 (1) relativo ao direito a razoável duração do processo,556 visto que a ação foi interposta em 18 de dezembro de 1990, enquanto o pagamento da indenização ocorreu somente em 12 de março de 2003. O Tribunal constatou a negligencia das autoridades judiciais, ao não considerarem que a indenização seria destinada a cobrir as despesas médicas e, portanto, a intempestividade da prestação jurisdicional poderia ter conseqüências graves, pois privaria a vítima de receber tratamentos para melhorar sua qualidade de vida e diminuir as seqüelas do acidente. A Corte Interamericana ressaltou que as violações deveriam ser analisadas à luz do corpus juris internacional de proteção das crianças e as normas internacionais sobre a 553 Observe-se que no sistema europeu o acesso direto do indivíduo ao Tribunal tem previsão no protocolo n. 11 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, com vigência a partir de 1998, da Convenção Europeia de Direitos Humanos. 554 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 419. 555CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Furlan y familiares vs. Argentina. Resumen oficial emitido por la Corte Interamericana da sentencia de 31 de agosto de 2012. disponível em Acesos em 8 dez. 2016. 556 Convenção Americana de Direitos Humanos, art.8 (1): Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. Art. 19: Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado. 180 proteção e garantia dos direitos da pessoa com deficiência. Nesse âmbito, destacou o conceito de pessoa com deficiência da Convenção Interamericana para eliminação de todas as formas de discriminação contra a pessoa com deficiência (1999) e da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com deficiência (2006). Neste sentido, o Tribunal esclareceu que cabe aos Estados não apenas se absterem de violar os direitos dos indivíduos, mas também é imperativa a adoção de medidas positivas capazes de atender as necessidades de proteção específicas do sujeito. Assim, a sentença indicou que as autoridades administrativas ignoraram o estado de vulnerabilidade da vítima e não observaram a inadequação da modalidade de pagamento por subscrição de bônus, que diminuiu de forma excessiva o valor da indenização, tornando-a insuficiente para um adequado tratamento de reabilitação. Dessa forma, a Corte declarou que o pagamento da indenização não cumpriu a finalidade de proteger e ressarcir as violações de direitos reconhecidas pela sentença. Ademais, constatou-se que em nenhuma etapa do processo judicial Sebastião Furlan foi ouvido ou foram consideradas as suas opiniões sobre o assunto, consumando-se a violação à garantia da sua oitiva pelo juiz, consagrada no art. 8 (1) da Convenção Americana. Em sua decisão, a Corte estabeleceu nova indenização por danos materiais e imateriais e reintegração das custas e gastos; a obrigação do Estado de formar um grupo interdisciplinar para determinar, após ouvir Sebatian Furlan, as medidas de proteção e assistência mais apropriadas para sua inclusão social, educativa, vocacional e laboral; adotar as medidas necessárias para assegurar que quando uma pessoa for diagnosticada com graves problemas ou sequelas relacionadas à deficiência, seja entregue a ela ou a sua família uma carta de direitos com os benefícios contemplados na legislação argentina. Vale sublinhar que uma das obrigações impostas ao Estado foi a oferta de acompanhamento multidisciplinar, decisão que vai ao encontro da Convenção de Nova York (2006), cujo objetivo principal é promover a emancipação das pessoas com deficiência através de um acompanhamento no qual tenha especial importância as opiniões e vontades da pessoa, a fim de construir a sua autonomia. Como evidenciado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, embora seja um tribunal do âmbito regional e, portanto, adstrita a aplicação dos tratados desse sistema, promoveu a efetivação dos direitos da pessoa com deficiência através da interpretação dos dispositivos da Convenção Americana à luz dos preceitos da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Importante ressaltar que diferente da Corte Europeia de Direitos Humanos, o acesso dos indivíduos ao sistema interamericano ocorre por meio da Comissão Interamericana de 181 Direitos Humanos e não diretamente à Corte. Esta só pode ser acionada pelos Estados Partes e pela Comissão. Esse órgão analisará as petições encaminhadas pelas vítimas (ou seus representantes), procedendo à avaliação de admissibilidade da demanda e, caso julgue procedente, encaminhará à Corte. 557 Por outro lado, no sistema Africano, os indivíduos e as ONGs têm acesso direto ao Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos, desde que o Estado supostamente infrator tenha declarado expressamente a aceitação da competência dessa Corte, nos termos do artigo 5°, n. 3 do Protocolo do Tribunal. Destaque-se que o Sistema Africano foi concebido no âmbito da União Africana, instituída pela Carta da Organização da Unidade Africana.558 A Carta proclama a adesão dos Estados africanos aos princípios da Carta das Nações Unidas e à Declaração Universal de Direitos Humanos, relacionando este compromisso ao anseio de que todos os Estados africanos cooperem entre si para assegurar o bem-estar de todos os povos dessa região.559 Destarte, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos é o principal instrumento do sistema africano de direitos humanos. Esse documento reconhece tanto direitos individuais, como direitos econômicos, sociais, civis e políticos, como direitos dos povos. O mecanismo de monitoramento estabelecido originalmente foi através da Comissão Africana, criada em 1987, complementada pela criação posterior do Tribunal Africano de Direitos Humanos e dos Povos, instituído pelo Protocolo da Carta Africana, com vigência a partir de 2004. 560 Nesse âmbito, não foi encontrada nenhuma decisão relativa à pessoa com deficiência no Tribunal Africano de Direitos Humanos. Contudo, constatou-se a existência de um caso 557 ROSATO, Cássia Maria; CORREIA, Ludmila Cerqueira. Caso Damião Ximenes Lopes: Mudanças e Desafios após a primeira condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos. v. 8, n. 15, p. 93-113. dez. 2011. Disponível em: < http://sur.conectas.org/> Acesso em: 14 jan. 2016. 558 Esta Carta expressa claramente a convicção de que se trata de um direito de todos os povos determinar o seu próprio destino; e reafirma que liberdade, igualdade, justiça e dignidade constituem objetivos essenciais para atingir as aspirações legítimas dos povos africanos. A perspectiva africana de direitos humanos tem sido concebida como uma visão comunitarista da sociedade e dos indivíduos. Na medida em que se entende que os interesses e direitos individuais já estão pressupostos nos interesses e no bem-estar da comunidade. De modo que ser um membro da comunidade constitui a razão fundamental de ter nascido humano. Portanto, não surpreende condicionar a concessão de direitos individuais ao cumprimento de deveres para com a comunidade. O conjunto de valores e culturas africanas, por essência patriarcais, têm sido substituídos por sistemas mais tolerantes, inclusivos e, em certos contextos, mais igualitários. É possível evidenciar tais mudanças por meio da incorporação gradual da referência aos direitos das mulheres, a igualdade de gênero, juventude e pessoas com deficiência VAN REENEN, Tobias Pieter; COMBRINCK, Heléne. A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência na África: Avanços 5 Anos Depois. Revista Internacional de Direitos Humanos- SUR, v. 8, n. 14, p. 137-171. jan. 2011. p. 141. 559 Ibidem, p. 142. 560 VAN REENEN e COMBRINCK, op cit, p. 142. 182 sobre esse tema na Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. O referido órgão emitiu decisão sobre o caso Purohit e Moore v. Gâmbia, em 7 de março de 2001. O processo iniciou-se a partir da petição dos advogados de algumas pessoas com deficiência mental internadas na Unidade Psiquiátrica do Hospital Hoyal Victória da Gâmbia, na qual constavam as alegações de que a legislação sobre saúde mental do Estado encontrava-se desatualizada, visto que o “Ato de Detenção de Lunáticos” não apresentava definição sobre quem são essas pessoas, inexistindo disposições sobre salvaguardas durante o diagnóstico que fundamenta a internação, além da ausência da obrigatoriedade de consentimento para início e continuação do tratamento.561 A Comissão Africana declarou que a discussão acerca dos instrumentos jurídicos nacionais deve ser feito à luz dos pactos internacionais e regionais relativos aos direitos humanos, em razão dos princípios da universalidade e indivisibilidade. Sob essa perspectiva, ressaltou-se que o “Ato de Detenção de Lunáticos” (ADL) da Gâmbia estigmatiza as pessoas com deficiência mental, ao empregar termos pejorativos como “lunáticos” e “idiotas”, além de desumanizar e negar a esses indivíduos qualquer forma de dignidade, violando o artigo 5° da Carta Africana. Ademais, o Princípio 1(4) dos Princípios das Nações Unidas para a Proteção de Pessoas com Doença Mental e a Melhoria dos Cuidados de Saúde Mental (1991) determina: “Não haverá qualquer discriminação com base na doença mental”. Define-se “Discriminação” como qualquer distinção que tenha o efeito de anular ou impedir o usufruto igual de direitos.562 A Comissão também lembrou o princípio 1(2) da Declaração de princípios da ONU, que afirma “todas as pessoas com doença mental ou que estejam sendo tratadas como tal, deverão ser tratadas com humanidade e respeito pela dignidade inerente à pessoa humana”. A partir desse dispositivo, a Comissão interpretou como violado o art. 6° da Carta Africana sobre o direito a liberdade e segurança e a vedação de detenções arbitrarias de qualquer indivíduo; bem como art. 18 (4) acerca do direito dos idosos e das pessoas com deficiência a medidas especiais de proteção. Em face dessas considerações, a Comissão recomendou à República da Gâmbia revogar o “Ato de Detenção de Lunáticos” e substituí-lo, o mais rápido possível, por um novo regime legislativo para a saúde mental, que seja compatível com a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e com os pactos e normas internacionais para a proteção de pessoas com deficiência mental. Determinou também a criação de um corpo de peritos para revisão 561 VAN REENEN e COMBRINCK, op cit, p. 142. 562 Ibidem, p. 143. 183 dos casos de todas as pessoas detidas de acordo com o “Ato de Detenção de Lunáticos” e que cuidados médicos e materiais adequados sejam providenciados para pessoas que sofrem de problemas mentais. Observe-se que a decisão da Comissão Africana também corrobora a tese, inicialmente apresentada, de que os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos utilizam os instrumentos jurídicos universais para interpretar as suas normativas e garantir os direitos dos grupos vulneráveis, em um verdadeiro diálogo entre as jurisdições. No caso Purohit e Moore v. Gâmbia, os dispositivos da Carta Africana foram aplicados sob a ótica dos Princípios das Nações Unidas para a Proteção de Pessoas com Doença Mental e a Melhoria dos Cuidados de Saúde Mental (1991). Destaque-se que, na época, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência ainda não tinha sido elaborada (2006), as Nações Unidas ainda estavam na primeira fase da história dos direitos das pessoas com deficiência, na qual imperava os instrumentos de soft Law direcionados para as políticas de saúde mental. 563 O importante é salientar que a aplicação dos tratados regionais não ocorre de forma isolada e a coordenação dos sistemas de proteção é imprescindível em face da universalidade e indivisibilidade de tais direitos. Destarte, corrobora-se a hipótese de que a ausência de uma cláusula convencional de jurisdição obrigatória na Convenção de Nova York (2006) e da adoção de outro procedimento para instaurar a competência da CIJ não prejudicam de forma tão relevante a sua efetivação, pois, como evidenciado, a Corte Internacional de Justiça ainda não se consolidou como um Tribunal de direitos humanos, devido ao seu acesso restrito aos Estados. Por outro viés, a defesa das pessoas com deficiência tem ocorrido no âmbito regional, no qual a Convenção da ONU tem sido aplicada pela via reflexa da interpretação dos tratados regionais. Nesse contexto, pode-se considerar que a ausência de um Tribunal regional pode comprometer significativamente a efetivação da defesa dos direitos desse grupo, como é o caso da Ásia e da região do pacífico. Nesta, a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) surgiu como um bloco econômico, objetivando promover o desenvolvimento 563 Ressalte-se que os Estados africanos se envolveram ativamente no processo de elaboração do texto da Convenção (KANTER, 2006-2007, p. 308; QUINN, 2009a, p. 256). Esse foi um afastamento de uma prática comum do passado, onde Estados africanos, devido ao pouco envolvimento no nível global, preferiam estabelecer um tratado quase idêntico no âmbito regional (VILJOEN, 1998, p. 205; KAIME, 2009, p. 55). Já se afirmou que a Convenção de Nova York (2006) detém uma marca “africana” por sua ênfase nas conexões entre deficiência, pobreza e desenvolvimento. Contudo, os Estados ratificaram a Convenção individualmente, embora o art. 43 permite que “organizações de integração regional” submetam a Convenção à confirmação formal ou adesão. Essa opção não foi possível para a União Africana, dada a definição específica de “organizações de integração regional” no artigo 44. (VAN REENEN e COMBRINCK, op cit, p. 147.) 184 econômico, social e cultural da região e servir como fórum para discussão das diferenças intra-regionais.564 Contudo, destaque-se que a ASEAN não é instrumento relevante para a aplicação dos direitos humanos na região. Dentre as justificativas dessa afirmação, a mais grave delas é o conflito entre os denominados “valores asiáticos” e os direitos humanos.565 Constata-se que a falta de um Tribunal Internacional ou Comissão tem sido um impedimento para fazer valer os direitos das pessoas com deficiência nessa área. A necessidade de tal órgão tornou-se mais premente desde a ratificação da Convenção de Nova York (2006) pelos Estados asiáticos. Como visto, esse documento configura uma nova forma de enxergar a deficiência. Entretanto, para que não seja apenas uma vitória teórica, ela deve ser executada por meio de um órgão com jurisdição regional.566 Sublinhe-se que as leis de muitas nações asiáticas são incompatíveis com os requisitos da Convenção. Na Coréia, por exemplo, a legislação prioriza a institucionalização das pessoas com deficiência; A Lei do Matrimônio do Camboja proíbe homens impotentes, pessoas que têm lepra, tuberculose, câncer ou doença venérea, e pessoas com transtornos mentais de se casarem; O governo de Hong Kong rejeitou um candidato a emprego público devido à sua relação com uma pessoa com deficiência mental. Esses exemplos mostram claramente que a maioria dos Estados asiáticos não cumpre de forma efetiva as normas da Convenção da ONU. 567 É indubitável que a existência de tribunais e comissões regionais de direitos humanos tem sido um elemento essencial para o cumprimento desses direitos nas diversas regiões. No campo específico da defesa dos direitos das pessoas com deficiência, a jurisprudência regional ganha cada vez mais consistência no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e através das decisões da Corte Interamericana e, pelo menos, um caso importante foi decidido na Comissão Africana.568 Todavia, é imprescindível destacar que embora as sentenças internacionais possam ter impactos positivos no território dos Estados, estas não possuem o mesmo grau de efetividade das decisões prolatadas pelo judiciário interno, pois os órgãos judiciais internacionais não têm poder coercitivo capaz de impor suas determinações através da força. 564ASSOCIATION OF SOUTHEAST ASIAN NATIONS (ASEAN). Disponível em:< http://asean.org/asean/about-asean/history/> Acesso em: 27 abril. 2017. 565 PERLIN, Michael L. Promoting social change in Asia and the Pacific: The need for a disability rights tribunal to give life to the UN Convention on the Rights of Persons with Disabilities. The George Washington International Law Review. v. 44, 2012. Disponível em: < http://www.gwilr.org/> Acesso em: 13 dez. 2016. p. 5. 566Ibidem, p. 5. 567 PERLIN, op cit, p. 19. 568 Ibidem, p.7. 185 Em face desse panorama, passa-se a investigar a incidência da jurisdição da Corte Interamericana sobre o Estado brasileiro, no caso da proteção das pessoas com deficiência, buscando averiguar em que medida as suas decisões são cumpridas pelo Brasil e se os direitos desse grupo são de fato protegidos por essa tutela internacional. § 3. O acesso à Corte Interamericana contra o Estado brasileiro por violação aos direitos da pessoa com deficiência Como observado, o Brasil possui um arcabouço jurídico considerado avançado, em muitos aspectos, para proteção das pessoas com deficiência. O qual ganhou um novo reforço com a incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência com natureza equivalente a uma emenda constitucional. Todavia, é preciso considerar que nem sempre esses indivíduos irão obter o atendimento de suas necessidades através de uma prestação jurisdicional adequada. Seja porque ainda coexistem no sistema jurídico normas incompatíveis com a Convenção, ou devido à interpretação equivocada realizada pelos operadores do direito ou, ainda, pelas dificuldades geradas pela morosidade da justiça. Assim, em face de fatores variados, pode o Estado brasileiro falhar em garantir os direitos desse segmento social. Nesse caso, surge a possibilidade de acesso à Corte Interamericana de Direitos Humanos como alternativa subsidiária. Nesta, será instituído um processo internacional, através do qual o Estado apresentará suas justificativas para a violação e poderá ser condenado a reparar os danos causados à vítima, elaborar ou modificar legislações, adotar medidas administrativas. A Convenção de Nova York (2006), conforme evidenciado, não designou um Tribunal específico para a sua aplicação. Como não se afigura razoável conceder direitos no plano internacional sem a correspondente capacidade processual para vindicá-los,569 defende- se a ideia dos Tribunais Regionais poderem interpretar os instrumentos desse sistema à luz dos dispositivos da Convenção da ONU. Ademais, existem outros documentos no sistema regional como a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999) que podem ser utilizados para fundamentar essa tutela. Bem como os dispositivos da própria Convenção Americana de Direitos humanos, que podem ser 569 TRINDADE, Augusto Cancado. A pessoa humana como sujeito do direito internacional: A experiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. p. 50. 186 interpretados para solucionar as demandas das pessoas com deficiência. Nesse sentido, a Corte Interamericana é um importante mecanismo para efetivação dos direitos das pessoas com deficiência no Estado brasileiro. O Brasil incorporou definitivamente a Convenção Americana de Direitos Humanos quando encaminhou nota transmitida ao Secretário- Geral da OEA no dia 10 de dezembro de 1998. Internamente, o tratado foi promulgado através do Decreto n. 4.463, de 8 de novembro de 2002.570 Assim, o Estado reconheceu a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos e consentiu em obrigar-se a implementar suas decisões.571 Esse sistema de proteção é formado pelo estabelecimento de dois órgãos encarregados de promover e sancionar os Estados violadores:572 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Cabe à Comissão promover o respeito aos direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, podendo recomendar condutas aos Estados Partes, sugerir soluções amistosas entre as vítimas e o Estado violador; bem como, presente os requisitos de admissibilidade, propor ação de responsabilidade internacional contra um Estado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.573 A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, só pode ser acionada pelos Estados contratantes e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que exerce função similar a do Ministério Público brasileiro (parte processual e fiscal da lei). A vítima ou seus representantes podem peticionar apenas à Comissão. Esta irá analisar tanto a admissibilidade da demanda quanto seu mérito e caso considere a demanda inadmissível ou infundada ocorrerá o arquivamento, não havendo recurso disponível à vítima. A Corte também poderá apreciar a demanda, se algum Estado, no exercício de uma verdadeira actio 570BRASIL. Decreto n. 4.463, de 8 de novembro de 2002. Promulga a Declaração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sob reserva de reciprocidade, em consonância com o art. 62 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial, 11 de novembro de 2002. 571 O Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte sob reserva de reciprocidade e somente para fatos ocorridos após 10 de dezembro de 1998. O que significa que se determinado Estado que não tenha reconhecido a competência da Corte apresentar alguma denúncia contra o Brasil, este não considerará a Corte competente para apreciar o assunto. (CEIA, Eleonora Mesquita. A Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e o desenvolvimento da proteção os Direitos Humanos no Brasil. Revista da Emerj, v. 16, n. 61, p. 113-152, 2013. Disponível em: < http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/revistaexemplaresanteriores.htm> Acesso em: 14 jan. 206. p. 135) 572 RAMOS, André de Carvalho. Supremo Tribunal Federal brasileiro e o controle de convencionalidade: levando a sério os tratados de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 104 p. 241-286 jan./dez. 2009. Disponível em: Acesso em 28 jan. 2015. p. 253. 573 Ibidem, p. 250 187 popularis, ingressar com ação contra o Estado violador. Até o momento, os Estados americanos nunca exerceram tal prerrogativa.574 Nesse contexto, a primeira condenação do Estado Brasileiro na Corte foi sobre os direitos de um paciente com transtorno mental. A decisão do caso Damião Ximenes Lopes demonstrou que a proteção judicial das pessoas com deficiência pode alicerçar-se nos próprios dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969). Damião Ximenes tinha 30 anos quando, em outubro de 1999, foi internado, por sua mãe, em uma clínica psiquiátrica credenciada ao SUS do município de Sobral, no Ceará. Quatro dias depois, sua mãe foi visitá-lo e encontrou-o com as mãos amarradas, sangrando, todo sujo, machucado e com cheiro de excrementos e urina. A mãe deixou a instituição consternada e, algumas horas depois, soube da morte do filho.575 A família de Damião ajuizou ação criminal e ação civil indenizatória contra o proprietário da clínica psiquiátrica. Contudo, as referidas ações só foram iniciadas dois anos após a morte de Damião. Durante muito tempo, o laudo da necropsia por “morte indeterminada” fundamentou o argumento de que não houve violência.576 Além disso, fatos do inquérito policial não foram encaminhados ao Ministério Público, como os depoimentos de ex-internos que denunciavam outros atos de violência. Em 27 de março de 2000, foi interposta a denúncia pelo Ministério Público e até a prolação da sentença pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2006, não havia sido proferida sentença em primeira instância.577 Em face desse panorama, em 1999, a irmã de Damião peticionou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que abriu procedimento contra o Brasil e no seu informe conclusivo recomendou ao Estado proceder a uma investigação completa, imparcial e efetiva dos fatos relacionados com a morte de Damião Ximenes Lopes e reparar adequadamente seus familiares pelas violações. Porém, essas observações não foram cumpridas pelo Estado.578 A Comissão ajuizou ação contra o Estado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A alegação estatal de inadmissibilidade da demanda por não esgotamento dos recursos não foi acolhida pela Corte, visto que houve negligência nas investigações, 574 ROSATO e CORREIA, op cit, p. 98. 575 ROSATO e CORREIA, op cit, p. 99. 576 BORGES, Nadine. Damião Ximenes: Primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renavan, 2009. p. 55. 577Ibidem, p. 56. 578 ROSATO e CORREIA, op cit, op. cit. p. 100. 188 dificultando o ajuizamento da ação no judiciário nacional.579 Assim, o caso se enquadra nas exceções do esgotamento dos recursos internos previstas no art. 46 (2) da Convenção Americana de Direitos Humanos que incluem: b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos. Em sua decisão, prolatada em 4 de julho de 2006, a Corte declarou que o Estado brasileiro foi responsável pela violação da Convenção Americana de Direitos Humanos no que diz respeito ao direito à integridade pessoal, ou seja, não ser submetido a tortura, tratamentos cruéis ou degradantes (art. 5º); o direitos à vida (art. 4º); direito à proteção judicial e às garantias Judiciais consagradas nos artigos 8°e 25. O Tribunal considerou que devido à internação de Damião em condições degradantes, sua vida foi ceifada arbitrariamente e seus familiares não tiveram o direito a um processo judicial célere e eficaz para punir os responsáveis. 580 Um ponto importante da sentença foi o reconhecimento de que a Convenção Interamericana para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência de 1999 (Convenção da Guatemala)581 é vetor de interpretação dos direitos do Pacto de São José, quando aplicado a casos envolvendo pessoas com deficiência. Assim, fica sanada uma importante lacuna da Convenção da Guatemala, que também não apresenta cláusula convencional de jurisdição obrigatória. Criou-se, uma supervisão por ricochete: caso o Brasil desrespeite a Convenção da Guatemala, pode tal desrespeito ser considerado uma violação de algum dos direitos genéricos do Pacto de San José (como o direito à igualdade) e, com isso, ser desencadeado o mecanismo de controle do pacto (petição à comissão e ação perante a Corte).582 Observe-se que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com deficiência não foi citada nesse caso, em razão da sua vigência internacional ter iniciado em 2008 e o julgamento ter ocorrido em 2006. Contudo, ficou evidenciado que é possível a Corte 579 RAMOS, André Carvalho. Reflexões sobre as vitórias do caso Damião Ximenez Lopes. Consultor Jurídico, 8 de setembro de 2006. Disponível em Acesso em: 12 dez. 2016. p. 3. 580 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Caso Ximenes Lopes vs. Brasil. Sentencia de 4 de julio de 2006. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_ing.pdf > Acesso em: 16 abril. 2016. 581BRASIL. Decreto n.3.956, de 8 de outubro de 2001. Promulga a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência. Diário Oficial da União, de 9 de outubro de 2001. 582 RAMOS, André Carvalho. Reflexões sobre as vitórias do caso Damião Ximenes Lopes, p.3. 189 estabelecer um diálogo entre tratados internacionais e utilizar como fundamento instrumentos não incluídos na sua competência, através de uma espécie de aplicação reflexa ou indireta. Destarte, o mecanismo de aplicação reflexa da Convenção da Guatemala, a partir da interpretação da Convenção Americana, poderia ser igualmente usado em relação à Convenção de Nova York (2006). O Tribunal determinou que o Brasil deveria reparar moralmente e materialmente a família Ximenes mediante o pagamento de uma indenização; garantir a celeridade da justiça para investigar, identificar e punir os culpados pela morte de Damião e continuar a desenvolver programas de formação e capacitação para profissionais de saúde vinculados ao campo da saúde mental.583 Vale ressaltar que a luta travada pela irmã de Damião demonstrou que a indivisibilidade dos direitos serviu de justificativa para a demanda de reconhecimento de outros direitos, pois, inicialmente, Irene buscava justiça para reparar a morte do seu familiar, mas seu registro público ganhou uma envergadura capaz de influenciar as políticas públicas de saúde mental do Brasil.584 Esse julgado demonstrou que a possibilidade conferida aos indivíduos de apresentarem denúncias individualmente a uma Comissão Internacional adquire destaque quando o caso tem concretude e publicidade, ou seja, deixa de ser um caso singular e se transforme em uma “causa” universal. Esses casos individuais geram um efeito demonstrativo, na medida em que as violações denunciadas e investigadas tendem a proteger interesses e direitos comuns a determinados grupos sociais.585 Embora a condenação do Estado brasileiro tenha sido uma importante conquista, é necessário verificar como ocorreu o cumprimento da sentença, a fim de observar se o acesso à Corte Interamericana para proteção dos direitos da pessoa com deficiência pode ser considerado um mecanismo eficaz nos casos de violações perpetrados pelo Brasil. 583 ROSATO e CORREIA, op cit, p.102. 584 BORGES, op cit, p. 141. 585 Ibidem, p. 141. Destaque-se que a Convenção Americana determina que só os Estados Partes e a Comissão podem submeter um caso a Corte, artigo 61 (1). Ainda que exista essa restrição, a importância do direito de petição do indivíduo não pode ser minimizada, visto que a Convenção Americana tornou o direito de petição individual obrigatório e de aceitação automática pelos Estados ratificantes do tratado. Além disso, possibilita o acesso à Comissão a qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados membros. Dessa forma, a legitimidade ad causa pode prescindir até mesmo de manifestação da própria vítima e o direito de petição individual tem se constituído em um meio eficaz de enfrentar violações maciças e sistemáticas de direitos humanos. TRINDADE, Augusto Cancado. A pessoa humana como sujeito do direito internacional: A experiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, p. 508. 190 O artigo 68 (1) do Pacto de São José estipula que a execução das sentenças da Corte depende da normatividade interna.586 Assim, cabe a cada Estado escolher, de acordo com seu direito, a melhor forma de executar os comandos da sentença internacional.587 Em relação à obrigação de efetuar indenizações às vítimas, a Convenção Americana determina, no art. 68 (2), o uso das regras internas de execução de sentenças nacionais contra o Estado para a execução da decisão internacional. No Brasil, o pagamento é autorizado por intermédio de Decreto Presidencial e realizado por meio da Secretaria de Direitos Humanos, existindo previsão na lei orçamentária para eventuais pagamentos ordenados pela Corte.588 No caso em estudo, o Decreto n. 6.185, de 13 de agosto de 2007, autorizou o pagamento das indenizações aos familiares de Damião, este foi efetuado pela Secretaria de Direitos Humanos em 17 de agosto do mesmo ano.589 No que tange à obrigação de continuar a desenvolver a capacitação e formação dos profissionais da área de saúde mental, em seu primeiro relatório sobre o cumprimento da sentença, enviado em 11 de outubro de 2007, o Brasil declarou que foram realizadas, nos último seis anos, grandes mudanças no modelo de atenção à saúde mental. Houve a expansão significativa de serviços abertos, comunitárias e substitutivos ao Hospital Psiquiátrico, o que representa um avanço importante no processo de desinstitucionalização dos pacientes. Ademais, ressaltou-se que o Ministério da Saúde tem desenvolvido mecanismos para fiscalização e redução gradual e planejada dos leitos em hospitais psiquiátricos.590 Nesse sentido, uma das consequências do julgamento do caso Damião Ximenes foi a aceleração do processo de reformulações da Política Nacional de Saúde Mental que culminou na elaboração da Lei n. 10.216, de 2001. Essa legislação responsabiliza o Estado e a sociedade pela superação do modelo assistencial, até então vigente, baseado na internação 586 No Brasil, as sentenças da Corte não necessitam de homologação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme o art. 105 I “i” da CF, pois se baseiam em normas internacionais incorporadas ao direito brasileiro. Assim, a norma externa já foi recepcionada pelo ordenamento jurídico doméstico, não sendo necessária nova verificação de sua compatibilidade com o Direito nacional. Em suma, após o reconhecimento formal da jurisdição da Corte pelo Brasil, as suas sentenças passam a equivaler a um título executivo judicial, produzindo os mesmos efeitos jurídicos de uma sentença proferida pelo Judiciário nacional. CEIA, 2013, p. 135. 587 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 383. 588 RAMOS, Reflexões sobre as vitórias do caso Damião Ximenes Lopes, p. 2. 589 BRASIL. Decreto n. 6.185, de 13 de agosto de 2007. Autoriza a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República a dar cumprimento à sentença exarada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Diário Oficial da União, de 14 de agosto de 2007. 590 BORGES, 2009, p. 168. A OEA conta com um sistema de garantia coletiva do cumprimento das decisões dos órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. No que se refere às sentenças da Corte, esta exerce a supervisão da execução de suas próprias decisões, mediante um procedimento escrito, que consiste no processo do Estado apresentar relatórios que lhe sejam solicitados pela Corte. As vítimas ou seus representantes podem enviar observações a tais relatórios. Por meio destes, a Corte acompanha a adoção ou não de medidas pelo Estado, pondo termo ao processo somente quando houver o cumprimento integral da sentença. CEIA, op cit, p. 137. 191 psiquiátrica. Sob o advento dessa nova política, identifica-se o paradigma da corresponsabilidade da sociedade e do Estado, a partir de ações intersetoriais que não se limitam, portanto, à área da saúde.591 Embora o Brasil tenha cumprido as obrigações acima elencadas, a determinação para adotar providências objetivando acelerar os processos judiciais de investigação e punição dos responsáveis pela morte de Damião não foi observada. O processo criminal teve início no ano 2000, sendo julgado apenas no dia 29 de junho de 2009, 9 anos após a morte de Damião e 3 anos após a sentença da Corte.592 O proprietário do Hospital e cinco funcionários foram condenados em primeiro grau pelo crime de maus-tratos qualificado, incidindo as penas do art. 136, §2°, do Código Penal Brasileiro. Os réus entraram, em 2009, com Recursos em sentido estrito e Apelação Criminal no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Em novembro de 2012, foi prolatado acórdão da Turma Julgadora da Primeira Câmara Criminal do Tribunal, sem divergência de votos, reconhecendo de ofício a prescrição e a extinção da punibilidade dos condenados em primeira instância. A decisão concluiu que as provas não eram suficientes para a manutenção da qualificadora do crime, caracterizando-o apenas como crime de maus-tratos simples, sem nexo causal com o resultado morte. Em 17 de abril de 2013, o acórdão transitou em julgado, sem que o representante do Ministério Público nada tenha apresentado ou requerido.593 Destaque-se que os Estados da região, no exercício da sua soberania, decidem autonomamente reconhecer a competência da Corte. Uma vez realizado esse reconhecimento, a sua competência se torna obrigatória e irrevogável, a não ser nas hipóteses previstas para denúncia do Pacto de San José. Nos termos do artigo 68 (1) combinado com o artigo 2° da Convenção Americana de Direitos Humanos, os Estados afirmam que cumprirão integralmente a sentença proferida pelo Tribunal, e nenhum argumento de direito interno, conforme at. 27 da Convenção de Viena de 1969, tais como prescrição e decadência, pode ser utilizado para afastar essa obrigação. O descumprimento de sentença per se gera responsabilidade internacional.594 591 ROSATO e CORREIA, 2011, op. cit. p. 106. 592 Os prazos para o cumprimento do dispositivo da sentença são variáveis: de até um ano para os pagamentos das quantias fixadas (os valores podem ser pagos em dólar ou convertidos em reais); de seis meses para a publicação da sentença; e ainda um "prazo razoável" no que tange ao dever de punir e ao dever de formar e capacitar o pessoal de atendimento de saúde mental. (RAMOS, Reflexões sobre as vitórias do caso Damião Ximenes Lopes, p.3) 593 ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS. Corte Interamericana de Decrechos Humanos. Caso n. 12.237 - Damião Ximenes Lopes X Brasil. Washington, 1 de octubre de 2004. Disponível em: Acesso em: 14 fev. 2017. 594 BERNARDES, Marcia Nina. Sistema interamericano de direitos humanos como esfera pública transnacional: Aspectos jurídicos e políticos da implementação das decisões internacionais. Revista Internacional de Direitos 192 Em que pese a obrigatoriedade do cumprimento das sentenças internacionais, essas são desprovidas de coercibilidade em face da inexistência de “execução forçada” através da substituição do Estado por um terceiro agente capaz de executá-la. No caso de inobservância, considera-se que o Estado violou uma nova obrigação internacional, a saber, o dever de cumprir de boa fé a decisão anterior. Essa segunda responsabilização nada acarreta para a vítima, pois o Estado é livre, em razão da sua soberania, para encontrar a solução jurídica interna mais apropriada para a implementação da decisão internacional.595 Essa dupla condenação pode implicar a imposição de sanções coletivas capazes de obrigar o Estado infrator a finalmente cumprir as obrigações internacionais.596 No âmbito da Organização Americana, a Corte envia relatórios anuais à Assembleia Geral, informando o descumprimento de suas decisões pelos Estados Parte. O objetivo é gerar constrangimento ao Estado violador, em uma estratégia conhecida como “naming and shaming” e possibilitar gestões diplomáticas para que o Estado passe a cumprir a determinação em questão. Dentre as faculdades da Assembleia Geral, ainda que esse recurso nunca tenha sido utilizado, existe a possibilidade de se emitir resolução recomendando aos demais Estados da Organização que imponham sanções econômicas ao Estado infrator até que a decisão seja implementada. 597 Como observado, as pessoas com deficiência podem acionar a Corte Interamericana, por intermédio da Comissão, para promover a responsabilidade internacional do Brasil pela violação dos seus direitos. Isso não ocorrerá através da aplicação direta da Convenção de Nova York (2006), mas os direitos nela dispostos podem ser tutelados por meio dos instrumentos regionais de proteção. Por outro lado, a falha do Estado brasileiro em cumprir com as decisões prolatadas por esse órgão, principalmente no que diz respeito à punição dos responsáveis pelas violações é um fator desestimulante. Conquanto, é preciso levar em consideração que as decisões internacionais cumprem o importante papel de direcionar as atenções das autoridades, da mídia, da sociedade nacional e internacional para situações que, muitas vezes, estão invisíveis no âmbito interno. Assim, são gerados espaços de negociação, de pressão e de educação para os direitos humanos, Humanos- SUR, v. 8, n.15, p.135-156. jan. 2011. Disponível em: Acesso em: 10 abri. 2016. p.140. 595RAMOS, André de Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 39-40 596Ibidem, p. 395. No plano universal, tais sanções são impostas através da Ação do Conselho de Segurança da ONU que pode declarar a nulidade do ato estatal, embargo de armas, de espaço aéreo, embargo comercial, autorização do uso da força e mesmo a criação de um tribunal internacional penal como consequência de violações maciças de direitos humanos. RAMOS, André de Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 83. 597 KRSTICEVIC, 2007, p. 34-37 apud BERNARDES, op cit, p.148. 193 independentemente do resultado final do procedimento.598 Nesse contexto, esferas públicas transnacionais de discussão podem ser determinantes para implementar assuntos que não encontram espaço na agenda política nacional, possibilitando que estes possam ser tematizados e incluídos de volta na pauta política doméstica em uma nova configuração de poder. No entanto, para que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos como esfera pública transnacional produza os efeitos políticos mencionados é preciso que seus órgãos gozem de credibilidade e que suas determinações sejam atendidas pelos Estados.599 Ressalte-se que o receio de ser punido e o convencimento racional não são os únicos fatores para a observância das normas, outro aspecto relevante é a legitimidade dos comandos normativos. Em contraste com a persuasão racional, a legitimidade envolve a ideia de deferência. Na medida em que uma instituição tem o direito de governar, então as pessoas adotam as suas decisões, mesmo quando discordam do seu teor. Mas de modo diferente da compulsão, fundamentada também na ideia de obediência, a legitimidade funciona no campo da justificação.600 Sob essa perspectiva, não apenas as organizações buscam a legitimação para garantir a efetividade de suas decisões, como também os Estados adotam os instrumentos de direitos humanos para adquirir credibilidade no plano internacional e nacional, porquanto, o seu locos standi no plano diplomático e o acesso à cooperação internacional são reforçados com a promoção dos direitos humanos e a correspondente proteção democrática. Esta convergência da ética e da política tem sustentado a lógica da vida globalizada.601 Assim, o Direito Internacional pode ser enxergado como um motor para a transformação do ambiente político, visto que os atores estatais são conscientes da reputação internacional do seu país em relação ao cumprimento das normas internacionais e se esforçam para alinhar a política interna com as normas cosmopolitas.602 Defender a ideia de que os direitos humanos só se cumprem pela via jurídico-positiva é uma posição contraditória, pois significa que somente se fazem efetivos quando violados. Destarte, o mais importante não é apenas incrementar uma cultura jurídica de proteção, mas potencializar uma cultura integral de respeito aos direitos humanos, porque são os próprios 598 BERNARDES, op cit, p. 136. 599 Ibidem, p. 136. 600 FINKELSTEIN, op cit, p. 57-58. 601 LAFER, Celso. A ONU e os direitos humanos. Estudos Avançados. São Paulos, v.9, n. 25, set/dez. 1995. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?lng=en> Acesso em: 15 nov. 2016. p. 10. 602 QUINN, Gerard. The United Nations Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Toward a New Intemational Politics of Disability, p. 40. 194 indivíduos que participam dos processos de sedimentação ou desrespeito a esses direitos.603 É imprescindível a positivação da tutela dos direitos humanos, mas não é suficiente, visto que os sistemas de garantias jurídicas para serem efetivos devem ser acompanhados de medidas políticas e sociais em todos os níveis.604 Nesse contexto, é de suma relevância a atuação dos mecanismos não judiciais de promoção dos direitos das pessoas com deficiência que serão a seguir analisados. 603 RUBIO, David Sanchez. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de Clovis Gorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. p. 20. 604 Ibidem, p. 20. 195 Capítulo 4. MECANISMOS DE CONTROLE E IMPLEMENTAÇÃO NÃO JUDICIAIS Embora o Judiciário represente o mecanismo que tem a sua disposição o potencial sancionador para fazer cumprir as normas de direito. Como observado, em razão da soberania dos Estados, os Tribunais internacionais não possuem esse poder coercitivo. Assim, os mecanismos não judiciais desempenham um papel importante na complementação da tutela dos tratados de direitos humanos. A eficácia desses instrumentos deriva do fato dos Estados encontrarem-se vinculados pela interdependência econômica, gerada pela globalização, e em razão desta possuírem interesse em adquirir credibilidade perante os demais membros da sociedade internacional.605 Nesse âmbito, os direitos humanos são standards do Estado Democrático de Direito, regime que melhor se coaduna com as liberdades necessárias para as alianças políticas e econômicas entre os países.606 Assim, os Estados Partes buscam garantir o cumprimento das normas convencionais através de um sistema de monitoramento instituído por cada tratado de direitos humanos, que cria um órgão denominado de Comitê para avaliar o progresso dos entes estatais na observância de suas disposições. A partir desse controle, os Estados podem exercer mútuas pressões para que o tratado seja efetivado. Destaque-se que a Convenção em estudo dispõe, de forma detalhada, sobre o sistema de monitoramento tanto no âmbito externo como interno. Nesse contexto, objetiva-se apresentar como o sistema de monitoramento internacional tem atuado junto ao Estado brasileiro e como foi organizado o sistema de implementação doméstico. Buscando auferir de modo mais preciso o que significa implementar a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, evidencia-se quais são os objetivos dessa Convenção e como eles podem ser concretizados pela atuação do Executivo por meio de políticas públicas e ações afirmativas. 605 LAFER, op cit, p. 10. 606 MARIANO, Karina Pasquariello; VIGEVANI, Tullo; Oliveira, Marcelo Fernandes. Democracia e atores políticos no MERCOSUL. In: LIMA, Marcos Costa; MEDEIROS, Marcelo Almeida, de. (org). O MERCOSUL no limiar do século XXI. Sã Paulo: CLASCO, 2000. Parte 3, p. 250-286, p. 266. 196 Seção 1. A incidência dos mecanismos convencionais não judiciais sobre o Estado brasileiro A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência atribui uma ênfase especial ao mecanismo de monitoramento, visando a assegurar meios para promover a efetividade de suas normas. Sob esse prisma, aborda-se como ocorre o monitoramento no âmbito dos tratados de direitos humanos, quais são as suas principais atribuições e quais foram os parâmetros estabelecidos pela Convenção de Nova York (2006) para essa atividade. Sob essa perspectiva, investiga-se como o sistema de monitoramento da Convenção está incidindo sobre o Brasil, quais foram as recomendações emitidas a partir dos relatórios apresentados e como o monitoramento pode se tornar mais efetivo, no sentido de avaliar corretamente os reais progressos alcançados pelo Estado e pressioná-lo para cumprir espontaneamente o pactuado. Por outro lado, o protocolo facultativo prevê a competência do Comitê para receber petições de nacionais em caso de violações perpetradas pelo Estado. A partir destas, o órgão internacional poderá fazer investigações in loco para apurar os fatos e emitir recomendações. Considerando que o Brasil também assinou o protocolo facultativo, analisa-se a denúncia apresentada contra o Estado brasileiro e o modo como o caso foi solucionado pelo Comitê. No âmbito do sistema de implementação doméstico, será analisado como o Brasil o estruturou e se foram cumpridos os requisitos mínimos estabelecidos pelo tratado. Será examinado também como o órgão nacional de implementação está desenvolvendo suas atividades, a fim de saber se esse é um mecanismo apto a promover a eficácia social das normas da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 197 § 1. O sistema de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência Os sistemas de monitoramento dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos fornecem um panorama geral sobre o cumprimento da norma internacional pelos Estados Partes, possibilitando, a partir da divulgação das informações, a cooperação entre eles e o exercício das mútuas pressões políticas e econômicas, que podem induzi-los a obedecer ao pactuado. Dentro do quadro dos mecanismos coletivos de apuração de violação de direitos humanos, o monitoramento realiza uma supervisão através de relatórios enviados pelos Estados a um Comitê (constituído pelo tratado), descrevendo a situação da implementação da norma em seu território. Os informes estatais são examinados por especialistas independentes, que estabelecem um diálogo com o Estado sobre o cumprimento das obrigações. Posteriormente, o Comitê emite recomendações não-obrigatórias, que consistem em uma forma de pressão sobre os Estados para modificação voluntária de seus comportamentos. Dessa forma, o princípio informador desse sistema é a busca do progresso na tutela dos direitos humanos através da cooperação baseada no consenso entre o Estado e o órgão internacional.607 Para além desses efeitos no âmbito internacional, o Escritório do Alto Comissariado da ONU esclarece que os mecanismos de monitoramento têm múltiplas funções no contexto interno, pois além do acompanhamento dos progressos alcançados; facilita o diagnóstico da situação existente, fornecendo a base para a elaboração de políticas públicas; possibilita maior transparência na efetivação da norma, criando oportunidades para o estabelecimento de novas parcerias entre os Estados e os sujeitos de direitos, além de favorecer a obtenção de consenso na elaboração de um arcabouço normativo específico.608 O art. 35 da Convenção de Nova York (2006) determina como obrigação dos Estados Partes a entrega de relatórios sobre as medidas adotadas em cumprimento das disposições do tratado, dois anos após a sua entrada em vigor e, posteriormente, a cada quatro anos ou sempre que o Comitê solicitar. Ressalte-se que a elaboração dos relatórios pelos Estados pode suscitar a ideia de que estes podem simplesmente fornecer informações genéricas ou 607 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 84. 608NACIONES UNIDAS. Oficina del Alto Comisionado para los Derechos Humanos (OACDH). Informe Anual del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos e Informes de la Oficina del Alto Comisionado y del Secretario General. Estudio temático preparado por la Oficina del Alto Comisionado de las Naciones, 2009. Disponível em: < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx> Acesso em 04 abril. 2016. 198 apresentar um quadro extremamente positivo da situação dos direitos das pessoas com deficiência que não corresponde à realidade. Para evitar esse tipo de conduta, o Comitê emite diretrizes rigorosas para a elaboração dos relatórios609 e busca informações fidedignas em outros órgãos internacionais, tais como a Organização Internacional do Trabalho, a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial. Outro tipo de fonte alternativa são as organizações não governamentais.610 Destaque-se que o papel da sociedade civil no monitoramento é enfatizado pela própria Convenção, conforme o art. 33 (3), a sociedade civil e, particularmente, as pessoas com deficiência e suas organizações representativas devem participar plenamente no processo de monitoramento. Essa participação inclui atentar para o prazo de apresentação dos relatórios pelos Estados ao Comitê; exigir que sejam informadas e devidamente consultadas sobre o processo de elaboração do documento; uma vez concluídos os relatórios, as organizações podem revisá-los para averiguar a sua objetividade e rigor e, caso distanciem-se da condição real das pessoas com deficiência, essas organizações devem trabalhar na preparação de relatórios alternativos ou sombra.611 Depois de o Comitê Internacional emitir suas observações e recomendações, baseadas no relatório submetido, e após dialogar com representantes dos Estados Partes, as organizações de pessoas com deficiência deverão conhecer o teor deste documento e dar-lhe o máximo de publicidade como primeiro passo no esforço de incidência política, para que as recomendações sejam devidamente cumpridas.612 Dessa forma, a participação dessas organizações deve perpassar todas as fases do monitoramento, desde a elaboração do relatório, a emissão das recomendações a partir dele e, por fim, a divulgação dos seus resultados. A importância da sociedade civil613 no processo de monitoramento da Convenção de Nova York, e, consequentemente, na sua eficácia remete a ideia de que “a vontade do Estado é o resultado de partículas valiosas das vontades individuais, sendo sempre sustentada por 609 GATJENS, Luis Fernando Astorga. Análise do Artigo 33 da Convenção da ONU: O Papel Crucial da Implementação e do Monitoramento Nacionais . Revista internacional de direitos Humanos- SUR. v. 8 n. 14, p. 75-87. jun. 2011. Disponível em: Acesso em 28, jan. 2015. p. 78. 610 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos. p. 85. 611 GATJENS, op cit, p. 85. 612 Ibidem, p. 86. 613 A expressão sociedade civil na significação que aqui se lhe está dando, e que se tornou corrente na atualidade, designa o conjunto de indivíduos, grupos e forças sociais que atuam e se desenvolvem fora das relações de poder que caracterizam as instituições estatais. BARROSO, Luis Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada. Revista de Direito Administrativo, v. 197, p. 30-60, 1994. Disponível em:< http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/46330> Acesso em 20. Jan. 2017. p. 45. 199 elas.”614 Essas pequenas partículas em conjunto traduzem a consciência civil, na qual descansa o consenso difuso sobre o respeito aos valores fundamentais. Desse modo, nas comunidades políticas, a obediência a tais preceitos se baseia apenas parcialmente na força, e, em alguma medida, na influência das massas.615 Pode-se considerar que, nos Estados Democráticos, não há efetividade possível das normas sem uma cidadania participativa, na qual a sociedade exerça a fiscalização dos poderes públicos, cobrando a observância dos direitos e demonstrando a sua insatisfação com a falta de compromisso na sua implementação.616 Ressalte-se que, no campo da efetividade, o sistema de monitoramento pode ser considerado como um mecanismo de avaliação da eficácia em sentido sociológico ou empírico, ou seja, diz respeito à conformidade das condutas dos seus destinatários à norma, no caso, os Estados Partes. O monitoramento internacional zela pelo cumprimento espontâneo do tratado, na medida em que é um sistema desprovido de sanções, como evidenciado, pois as recomendações do Comitê não são vinculantes.617 Quanto ao cumprimento das observações finais, o Comitê exige que os Estados, nos informes posteriores, exponham como cumpriram ou justifiquem a delonga ou o descumprimento. Assim, o ente estatal fica na desconfortável posição de periodicamente se justificar pela inobservância das recomendações. Nos casos de atraso do relatório oficial, conforme o art. 35 (2), o Comitê poderá notificar o Estado de que examinará a aplicação da Convenção com base em informações confiáveis de que disponha, se o relatório não for entregue no prazo de três meses. Destarte, impede-se que a falta de informes oficiais seja um obstáculo para emissão das recomendações por parte do Comitê.618 As observações finais do Comitê e informações prestadas pelos Estados serão discutidas e avaliadas, conforme o art. 40 da Convenção, na Conferência dos Estados 614 HELLER, 1947, apud Pablo Lucás. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 129 615 Ibidem, p. 138. 616 BARROSO, Luis Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada, p. 47. 617 O problema da eficácia da norma jurídica diz respeito à questão de saber se os seus destinatários ajustam ou não seu comportamento, em maior ou menor grau, às prescrições normativas. (...) Casos há em que o órgão competente emite normas que, por violarem a consciência coletiva, não são observadas nem aplicadas, só logrando, por isso, ser cumpridas de modo compulsório, a não ser quando caírem em desuso; consequentemente, têm vigência, mas não possuem eficácia espontânea. Vigência não se confunde com eficácia, logo, nada obsta que uma norma seja vigente sem ser eficaz, ou que seja eficaz sem estar vigorando. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução ao Estudo do Direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 407. 618 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 88. 200 Partes.619 Essa competência é uma exclusividade da Convenção de Nova York (2006), visto que os tratados de direitos humanos anteriores dispõem sobre essa Conferência como um mecanismo limitado a eleger os membros do Comitê ou promover emendas e alterações no texto convencional.620 Dessa forma, a Convenção em estudo transformou a Conferência dos Estados Partes em um fórum para discussão e reflexão sobre as melhores formas de operacionalização do tratado, entre os diversos atores incluindo os Estados Partes, as agências especializadas das Nações Unidas, as organizações não governamentais e organizações de pessoas com deficiência. O que facilita a obtenção de uma visão do ambiente internacional e dos mecanismos de controle utilizados, além de possibilitar o alcance de um consenso entre os Estados sobre questões de caráter político. Por esse viés, evita-se a crítica, comum aos Comitês de direitos humanos, de estenderem o seu mandato para reivindicar poderes implícitos.621 O Comitê da Convenção de Nova York (2006) analisou o primeiro relatório enviado pelo Brasil, referente ao período de 2008-2010, nas reuniões realizadas em 25 e 26 de agosto de 2015. Em suas observações finais, parabenizou o Estado brasileiro pela incorporação da Convenção com equivalência normativa constitucional; a criação, em 2015, de uma Comissão Permanente sobre os direitos das pessoas com deficiência na Câmara dos Deputados; a adoção de um Plano Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência – Viver Sem Limite; a criação de Conselhos sobre os direitos desse grupo nos níveis municipais e estaduais; a instituição do Comitê Ministerial de Assistência Técnica; as disposições jurídicas para implementar a acessibilidade nos sites governamentais, rádio e TV; e a provisão de prestações pecuniárias a pessoas com deficiência pelo Sistema de Segurança Social.622 Contudo, dentre os aspectos preocupantes, o Comitê destacou o fato das informação destinada ao público em geral, incluindo os pronunciamentos oficiais e campanhas políticas, ainda não estejam totalmente disponíveis em formatos acessíveis. Nesse contexto, o órgão internacional também sublinhou a discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência sob 619 Tal reunião será convocada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, dentro do período de seis meses após a entrada em vigor da presente Convenção. Enquanto as reuniões subsequentes serão convocadas a cada dois anos ou conforme a decisão da Conferência dos Estados Partes.(art. 40 da CDPD) 620 STEIN, Michael Ashley, Monitoring the Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Innovations, Lost Opportunities, and Future Potential (January 8, 2010). Human Rights Quarterly, v. 32, n. 3, august. 2010. Disponível em < https://muse.jhu.edu/article/390320> Acesso em 13 nov. 2016. p. 9. 621 Ibidem, p. 10 622 UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 201 interdição em relação ao seu direito ao voto e incentivou o Estado a remover as restrições legais e imediatamente restaurar o direito de voto para as pessoas privadas de capacidade jurídica. Também recomendou que o Brasil aumente os seus esforços para assegurar a total acessibilidade das votações, procedimentos, instalações e materiais eleitorais.623 Ademais, foi observado que a acessibilidade do ambiente construído, transportes, informação, comunicação e serviços abertos ao público não está plenamente alcançada, especialmente em áreas remotas e rurais. Foi recomendado que o Estado invista na acessibilidade, principalmente, nas referidas áreas, inclusive com a plena implementação da legislação em vigor e realize um acompanhamento eficaz, aplicando sanções em face do descumprimento integral dessas normas.624 Nesse contexto, pode-se considerar a recusa em promover o acesso às pessoas com deficiência como uma das piores formas de discriminação, pois se fundamenta no preconceito de que esses indivíduos não merecem gastos com infraestrutura adequada para garantir a sua autonomia. Isso é completamente contrário aos princípios enunciados na Convenção, art. 3°: “o respeito pela dignidade inerente, à autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas.” No âmbito da discriminação, ressaltou-se também os baixos níveis de conformidade com o regime de quotas aplicável às empresas privadas com 100 ou mais empregados. Para solucionar esse problema, recomendou-se que o Estado desenvolva e implemente uma estratégia coordenada para aumentar o emprego das pessoas com deficiência no mercado de trabalho aberto, incluindo medidas específicas para as mulheres com deficiência. Ademais, deve-se adotar medidas imediatas para criar possibilidades de transição do emprego segregado, em oficinas protegidas, para o mercado de trabalho.625 Observe-se que o acesso ao mercado de trabalho é de suma importância para o amadurecimento e autonomia desses sujeitos, pois a inserção nas atividades laborais determina o comportamento mais maduro e responsável, justamente como adaptação e resposta a uma representação dos colegas de trabalho, que, naquele contexto, enxergam a pessoa com deficiência como adulta.626 623 UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 624 Ibidem. 625 Ibidem. 626 LEPRI, op cit, p. 38. 202 Destaque-se que não se trata apenas de encontrar uma forma de sustento para o indivíduo com deficiência, lhe dando uma ocupação em um ambiente de trabalho artificialmente produzido, onde prevalece uma imagem infantilizada da pessoa com deficiência. O acesso ao mercado de trabalho auxilia na construção da sua imagem como ser humano dotado de capacidades e autonomia para desenvolvê-las. Nesse âmbito, é imprescindível a conscientização da sociedade acerca das potencialidades desses sujeitos. Em face disso, o Comitê mostrou-se preocupado com a falta de estratégias do Estado para promover o conteúdo da Convenção e do modelo de direitos humanos para o público em geral. Sugeriu-se ao Estado realizar campanhas de sensibilização do público para reforçar a imagem positiva das pessoas com deficiência e oferecer formação sobre os direitos reconhecidos na Convenção a todas as autoridades públicas e profissionais que trabalham com esse segmento social.627 Importante ressaltar que o objetivo da Convenção de substituir o paradigma exclusivamente médico de tratar a deficiência por um modelo biopsicossocial ainda encontra obstáculos para se consolidar no Brasil, visto que o Comitê constatou relatos de privação arbitrária de liberdade e tratamento involuntário de pessoas com deficiência, abrangendo situações em que um diagnóstico discriminatório é fundamento para declarar a pessoa com deficiência como perigosas para si ou para outrem. Para combater casos como esse, o Comitê orientou o Brasil a adotar medidas, incluindo a revogação das disposições legais pertinentes, para abolir a prática da internação involuntária ou hospitalização e tratamento médico forçado. Além disso, deve proibir, em particular, tratamentos psiquiátricos com base apenas no diagnóstico da deficiência, e fornecer alternativas de tratamento na comunidade.628 Importante sublinhar que, desde 2001, o Brasil promulgou a Lei n. 10.216, cujo objetivo é redirecionar o modelo assistencial em saúde mental, considerando a internação psiquiátrica (voluntária, involuntária ou compulsória) como medida de exceção, adotada apenas quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Nesse sentido, o Ministério da Saúde criou linhas de financiamento para os serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Foram criados também mecanismos para fiscalizar, gerir e reduzir os leitos dos manicômios.629 627 UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 628 Ibidem. 629BORGES, op cit. p. 168. 203 Todavia, é importante sublinhar que para efetividade desse novo modelo é necessária a articulação do SUS com a comunidade e a família da pessoa com deficiência, pois não é simplesmente retirar do hospital psiquiátrico uma pessoa institucionalizada, muitas vezes, há anos. É imprescindível acompanhar o seu ritmo de adaptação social e ajudá-lo a retornar a sociedade da melhor maneira. Nesse contexto, o órgão da Convenção também destacou que os serviços de saúde tradicionais não são acessíveis para pessoas com deficiência e os profissionais de saúde não têm a formação adequada para prestar cuidados inclusivos e atender às necessidades específicas desse grupo. Em face disso, recomendou ao Estado brasileiro adotar planos e alocar recursos para garantir que os serviços tradicionais de saúde, incluindo os serviços de saúde sexual e reprodutiva, sejam acessíveis a pessoas com deficiência.630 Em consonância com a Convenção de Nova York (2006), o Ministério da Saúde publicou, em 2009, um documento acerca dos direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde das pessoas com deficiência.631 Este considerou como premissa a concepção de que esses indivíduos enquanto sujeitos de direito devem ter a garantia de uma vida sexual livre, segura e prazerosa que se sobrepõe à presença da deficiência. Algumas das diretrizes apontadas por esse documento nacional são: Garantir acessibilidade em todas as unidades e serviços do SUS; desenvolver programas e ações de promoção de qualidade de vida e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis; promover a sensibilização e envolvimento dos gestores do SUS para a implementação do acesso programático das pessoas com deficiência aos serviços de atenção à saúde sexual e reprodutiva. Como evidenciado, a legislação nacional contrasta com a realidade observada pelo Comitê de monitoramento do tratado, o que leva à conclusão que embora o Brasil apresente avanços no campo legislativo esses não se tornam efetivos na prática. Outro problema explicitado pelas observações finais do Comitê foi a proteção de pessoas com deficiência pertencente a grupos específicos. Constatou-se a ausência de medidas para enfrentar a discriminação contra as pessoas indígenas e afro-descendentes com deficiência. Sugeriu-se ao Brasil aplicar a legislação, políticas e programas inter-setoriais para lidar com as múltiplas formas de discriminação contra esses setores específicos da população. 630UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 631 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Direitos sexuais e reprodutivos na integralidade da atenção à saúde de pessoas com deficiência. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. 204 Também se evidenciou a necessidade do Estado de garantir às crianças com deficiência o envolvimento sistemático nas decisões que afetam suas vidas e a preocupação sobre a separação das pessoas com deficiência dos seus filhos. O Comitê insta o Estado Parte a adotar medidas legais para proibir explicitamente a retirada de crianças com base no comprometimento de seus pais, inclusive quando o pai esteja sujeito à interdição. Outra recomendação foi a coleta e reporte de dados sobre a disponibilidade de bases de apoio para as famílias das crianças com deficiência, e o número de famílias que acessam esses serviços. Constatou-se que outra categoria carente de ações específicas são as mulheres com deficiência, o órgão internacional apontou que os mecanismos de prevenção de violência doméstica contra a mulher, como o disque 180, não são totalmente acessíveis. O Comitê recomendou ao Brasil tomar medidas imediatas e concretas para garantir a acessibilidade desses; promover meios para garantir a eficácia na prevenção e reparação da violência contra as mulheres com deficiência, incluindo a elaboração de metas e indicadores. Ademais, o Estado deve desenvolver estratégias para promover o empoderamento dessas mulheres, conforme art. 6° da Convenção. Conforme observado, o Comitê, em consonância com os princípios da Convenção de Nova York (2006), busca garantir a proteção a partir das singularidades dos indivíduos, evitando enxergá-los sob a categoria genérica de “pessoa com deficiência,” visto que para uma efetiva promoção dos seus direitos é imprescindível compreender as especificidades da demanda de cada subgrupo de pessoas com deficiência, pois a “pessoa” deve está em primeiro lugar, sendo a deficiência apenas mais um dos diversos predicados que um ser humano pode apresentar, como, por exemplo, “indígena”, “negro”, “criança”, “mulher”.632 Sublinhe-se que além de promover os direitos desse segmento social é necessário que o Estado proteja esses indivíduos, pois eles estão mais sujeitos à violência e exploração. Nesse âmbito, constatou-se a falta de dados e investigações sobre abuso, exploração e violência contra esse segmento social. O Comitê incentiva o Estado a assegurar mecanismos que possibilitem às autoridades identificar, investigar e processar todos os casos de violência contra pessoas com deficiência.633 632 A alusão à deficiência como um predicado pessoal é empregada por Ricardo Fonseca. FONSECA, Ricardo Tadeu, da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem, p. 25. 633 UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 205 Essas são apenas algumas das principais recomendações feitas ao Estado brasileiro a partir do relatório apresentado ao Comitê da Convenção de Nova York (2006).634 Como demonstrado, o sistema de monitoramento aponta os caminhos através dos quais o Estado deve seguir para avançar na implementação do tratado, cabendo ao ente estatal buscar suprir as lacunas evidenciadas de forma adequada e efetiva. § 2. Sistemas nacionais de monitoramento e implementação Um dos grandes diferenciais da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência é dispor sobre os sistemas de monitoramento e implementação não só no âmbito internacional, através das atividades do Comitê, mas também acerca da estruturação destes no contexto doméstico. Dessa forma, para além de consistir em uma simples prestação de contas sobre o cumprimento do tratado, a previsão desses sistemas internamente pretende de fato auxiliar na concretização das normas no território de cada ente estatal. O art. 33 determina que os Estados estabeleçam uma estrutura, que inclua um ou mais de um mecanismo independente, para monitorar o cumprimento das normas da Convenção.635 Esse instrumento deve ser definido em conformidade com os sistemas jurídicos e administrativos de cada Estado. O único requisito enunciado pela norma internacional é o dever de considerar “os princípios relativos ao status e funcionamento das instituições nacionais de proteção e promoção dos direitos humanos.” Estes são denominados de “Princípios de Paris”, adotados pela Assembleia Geral da ONU, em 1993, por meio da Resolução n. 48/134, com o objetivo de disciplinar a forma como conceber uma instituição nacional de defesa dos direitos humanos.636 Estas devem constituir-se como órgãos estatais de natureza administrativa, estabelecidos pela Constituição ou por lei; dotados de 634 O Comitê solicita que o Estado Parte, no prazo de 12 meses e de acordo com o artigo 35, (2) da Convenção, forneça informações por escrito sobre as medidas tomadas para implementar as recomendações da Comissão. Solicita-se também que o Estado Parte apresente o segundo, terceiro e quarto relatórios periódicos no mais tardar em 1° de Setembro de 2022, e inclua informações sobre a implementação das observações finais. UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 635 Promoção inclui, entre outras, atividades de conscientização, bem como fornecimento de suporte técnico para as autoridades públicas; proteção engloba diversas atividades que vão da investigação de denúncias à emissão de relatórios; monitoramento envolve a análise de dados para a verificação do progresso da implementação. (DIAS, Joelson. Artigo 33 Implementação e monitoramento nacionais. In: BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR)/Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD). Novos Comentários à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. 3 ed. Brasília, 2014. p. 214) 636 Ibidem, p. 214. 206 independência, não subordinados ao Poder Executivo, e composto por membros com mandato definido e capazes de representar a população em geral.637 No caso das instituições nacionais de monitoramento da Convenção em estudo, essa representação plural das forças sociais precisa abranger as pessoas com deficiência.638 No Brasil, o órgão designado para realizar o monitoramento da Convenção de Nova York (2006) é o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE). Ressalte-se que esse órgão não foi criado para essa função específica, ele existe desde 1999. Ele foi instituído através do Decreto n. 3.076, de 1° de junho de 1999, para ser um órgão superior de deliberação coletiva, com a atribuição principal de garantir a implementação da Política Nacional de Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Suas funções são acompanhar o planejamento e avaliar a execução das políticas relativas a esse grupo; zelar pela efetivação do sistema descentralizado e participativo de defesa dos direitos da pessoa com deficiência; propor a elaboração de estudos e pesquisas; propor e incentivar a realização de campanhas visando à prevenção de deficiências e à promoção dos direitos desses indivíduos.639 É relevante salientar que, no primeiro relatório (2008-2010) apresentado pelo Brasil ao Comitê da Convenção, o Estado reconheceu que o CONADE cumpre parcialmente a obrigação estabelecida no art. 33, visto que o órgão é constituído, paritariamente, por representantes de instituições governamentais e da sociedade civil.640 Enquanto o tratado menciona um mecanismo de monitoramento independente, ou seja, composto exclusivamente por representantes da sociedade civil.641 O Brasil destacou que embora o CONADE tenha promovido ajustes no seu Regimento Interno para contemplar sua participação no cumprimento das obrigações de 637 ACNUDH, 2010, apud MAZZUOLI, Valério Oliveira, de. Curso de direitos humanos. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 404. 638 QUINN, Gerard. The UN Convention on the Rights of Persons with Disabilities. National Institutions as Key Catalysts of Change In: Mecanismos nacionales de monitoreo de la Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. México: Comisión Nacional de los Derechos Humano, 2008. p. 109-122. Disponível em: < http://cdhezac.org.mx/pdfbiblio/91.pdf#page=123?> Acesso em: 5 abri. 2016 639 BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, p. 72. 640 Composição do CONDADE: Com relação aos membros da sociedade civil, são treze representantes eleitos de organizações nacionais de pessoas com deficiência, um representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), um representante de organização nacional de empregadores, um representante de organização nacional de trabalhadores, um representante da comunidade científica que desenvolva ações relacionadas com a inclusão das pessoas com deficiência, um representante do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, um representante da Associação Nacional do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (AMPID). (DIAS, op cit, p. 215) 641 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos da Pessoa com deficiência. 1º Relatório Nacional da República Federativa do Brasil sobre o cumprimento das disposições da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2008-2010). Disponível em < http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/relatorio-de- monitoramento-da-convencao> Acesso em: 02 março. 2016. 207 monitoramento do tratado, a composição de seu colegiado seria uma limitação concreta para lhe atribuir o papel reservado pela Convenção. Ademais, destacou-se que o referido órgão encontra-se estruturado de acordo com o modelo adotado pelo Estado brasileiro para a constituição de conselhos de direitos. Portanto, essa é uma questão que requer profunda análise e adoção de ajustes no futuro, para reformulação dos mecanismos existentes ou criação de novos.642 Nesse âmbito, é importante sublinhar que não é apenas a composição desse órgão que compromete a sua autonomia, mas o fato de o mesmo encontrar-se inserido na estrutura governamental, subordinado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. O que gera a situação contraditória do CONADE possuir competência para fiscalizar e monitorar o Estado quanto as suas obrigações internacionais e fazer parte do governo. No relatório alternativo, de 2015, elaborado pela Organização não governamental Disability Conuncil International foi evidenciada a ausência, no último relatório do Brasil, de menção às dotações orçamentárias destinadas ao CONADE para o desempenho das suas funções.643 Nesse contexto, a ONG encoraja o Estado Parte a esclarecer a função desse Conselho e se ele tem alocações orçamentárias suficientes para trabalhar de forma adequada.644 A ONG também constatou a falta de indicação dos mecanismos existentes para monitorar os progressos sobre a efetivação da Convenção de Nova York (2006), incluindo 642 NACIONES UNIDAS. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, 14º período de sesiones, 17 de agosto a 4 de septiembre de 2015. Examen de los informes presentados por los Estados partes en virtud del artículo 35 de la Convención. Adición Respuestas del Brasil a la lista de cuestiones. Disponível em: < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx > Acesso em 23 março. 2017. 643 O Disability Conuncil International é uma ONG internacional que tem como membros pessoas com deficiência e sem deficiência, convidadas a trabalhar, como parceiros ativos para a promoção dos direitos humanos desse grupo. É uma organização universal, suas atividades se estendem a todos os países do mundo. Seu objetivo é promover a ratificação universal e aplicação da Convenção de Nova York (2006) através de programas de advocacia, capacitação e apoio aos Estados e ao organismo de controle das Nações Unidas (Comitê CDPD), dos Escritórios e Agências da ONU, organizações da sociedade civil e instituições nacionais de direitos humanos; também desenvolve projetos que beneficiam diretamente as pessoas com deficiência em todos os países do mundo. Ademais, contribui para a implementação da Convenção mediante a divulgação de melhores práticas para a realização dos direitos humanos das pessoas com deficiência e promove a cooperação internacional através do intercâmbio de inovações técnicas. Disability Council International. Disponível em: . Acesso em 27 dez. 2016. 644Em resposta, o Brasil esclareceu que o Conade compartilha o mesmo orçamento da Secretaria Nacional para a Promoção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (SDH) da Presidência da República. Este orçamento pretende garantir o trânsito (passagem aérea e diárias) de conselheiros da sociedade civil para participarem das reuniões ordinárias e extraordinárias. Os Representantes e conselheiros do governo são pagos por seus respectivos ministérios. Além disso, há uma equipe técnica de coordenação geral administrativa do Conselho contratada para garantir o trabalho do Conade. NACIONES UNIDAS. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, 14º período de sesiones 17 de agosto a 4 de septiembre de 2015. Examen de los informes presentados por los Estados partes en virtud del artículo 35 de la Convención. Adición Respuestas del Brasil a la lista de cuestiones. Disponível em: < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx > Acesso em 23 março. 2017. 208 indicadores e referenciais nacionais relacionados com cada um dos direitos previstos. Sugeriu-se ao Estado estabelecer mecanismos de avaliação capazes de fornecer um panorama geral das realizações concretas na implementação da agenda para a promoção dos direitos das pessoas com deficiência.645 Essa atuação das organizações não governamentais no monitoramento e efetivação do tratado reflete o fenômeno contemporâneo da transmutação do Direito Internacional em Direito Transnacional. No qual a atividade dos entes não estatais, como ONGs, sindicatos internacionais de trabalhadores e associações privadas ocupam cada vez mais espaço, através da criação de um “Direito Profissional” especializado em questões que ultrapassam as fronteiras e cuja atuação pode influenciar as condutas e o ordenamento jurídico dos Estados.646 Nesse âmbito, ressaltando a importante contribuição das Organizações Não Governamentais, o relatório da Disability Conuncil International sugere ao Brasil designar oficialmente, por lei, todas as ONGs nacionais que trabalham para pessoas com deficiência como instituições de monitoramento da Convenção.647 Destaque-se que as Organizações de Pessoas com Deficiência nacionais (OPDs) elaboraram, em 2015, uma lista de questões recomendadas para a revisão do relatório brasileiro pelo Comitê.648 Foram suscitadas indagações como: quantas resoluções foram aprovadas no Conselho Nacional de Direitos das Pessoas com Deficiência (CONADE) nos últimos cinco anos? E quantas foram convertidas em políticas públicas? O que fez o governo brasileiro para aumentar a participação e o envolvimento das pessoas com deficiência e suas organizações representativas no processo de monitoramento do tratado? Como o Brasil deu apoio financeiro às OPDs para a sua participação no processo de monitoramento?649 Na resposta ao Comitê Internacional, o Brasil explicou que, dentre as realizações do CONADE, poderiam ser citadas a elaboração do ato Regulamentar n. 12.764, de 27 de dezembro de 2012, que prevê a Política Nacional para a Proteção dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro autista; a recomendação à Agência Nacional de 645 NACIONES UNIDAS. DisabCouncil’s Independent Review: Consideration of country reports Brazil. Submitted, February 2015, Geneva. Disponível em < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx> Acesso em 13 março. 2017. 646 CARREAU e BICHARA, op cit, p. 335 647 NACIONES UNIDAS. DisabCouncil’s Independent Review: Consideration of country reports Brazil. Submitted, February 2015, Geneva. Disponível em < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx> Acesso em 13 março. 2017. 648 UNITED NATIONS. List of Issues recommended by Brazilian DPOs for the Brazilian State review by the UN Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Brazil, 15 April 2015. Disponível em < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx> Acesso em 22 dez. 2016. 649 UNITED NATIONS. List of Issues recommended by Brazilian DPOs for the Brazilian State review by the UN Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Brazil, 15 April 2015. Disponível em < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx> Acesso em 22 dez. 2016. 209 Telecomunicações sobre o estabelecimento de metas para alcançar serviços universais de atendimento às pessoas com deficiência de forma justa; Foi realizada a III Conferência Nacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência com o objetivo de estabelecer um diálogo entre a sociedade civil e o Governo para avaliar conjuntamente a implementação das políticas públicas por parte dos governos municipal, estadual e federal. Ressaltou-se que a mobilização em prol dos direitos desse grupo se reflete no aumento do número dos órgãos colegiados estaduais, que cresceu de 12 para 27 (em todas as unidades da Federação), enquanto na esfera municipal foi de 75 para 572 entre 2003 e 2014.650 Em relação às questões estruturais do CONADE, o Brasil salientou que embora não existam planos para o estabelecimento de um mecanismo independente, alinhado com os Princípios de Paris. O trabalho de monitoramento realizado pelo CONADE ocorre de forma difusa e descentralizada entre as muitas entidades e ONGs nacionais. Essas entidades, em conjunto ou separadamente, promovem debates, seminários, reuniões, trabalhos editados, publicam artigos, conduzem campanhas de sensibilização, fazem intervenções com organismos e diálogos relevantes com o órgão do governo para expressar suas avaliações sobre a execução do tratado.651 Como evidenciado, o monitoramento da Convenção de Nova York (2006) no Brasil ainda encontra algumas limitações e está sendo construído paulatinamente a partir do diálogo com os diversos atores sociais que compartilham do propósito de promover e proteger os direitos desse grupo. Importa salientar que o sistema de monitoramento não se confunde com o mecanismo de implementação doméstico também previsto no tratado em exame. O sistema de monitoramento supervisiona as atividades do sistema de implementação. Nessa esteira, sublinhe-se que a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com deficiência não é apenas uma declaração de direitos, ela própria se configura como um instrumento de efetivação dos mesmos, pois além de impor obrigações aos Estados Partes, prevê um sistema de monitoramento para avaliar o seu cumprimento e esboça, minimamente, a estrutura interna necessária para que esses deveres sejam devidamente cumpridos. 650 UNITED NATIONS. List of Issues recommended by Brazilian DPOs for the Brazilian State review by the UN Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Brazil, 15 April 2015. Disponível em < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx> Acesso em 22 dez. 2016. 651 NACIONES UNIDAS. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad, 14º período de sesiones 17 de agosto a 4 de septiembre de 2015. Examen de los informes presentados por los Estados partes en virtud del artículo 35 de la Convención. Adición Respuestas del Brasil a la lista de cuestiones. Disponível em: < http://www.ohchr.org/EN/Pages/Home.aspx > Acesso em 23 março. 2017. 210 Observe-se que, normalmente, os instrumentos internacionais de direitos humanos se concentram em estabelecer obrigações de resultado, se eximindo de dispor sobre como os direitos serão implementados. Dessa forma, embora para cada direito exista uma correspondente conduta estatal para torná-lo efetivo, o teor exato dessa obrigação de meio nunca, ou raramente, é explicitado pelas Convenções internacionais. A razão disso é o reconhecimento de que a implementação do tratado adentra na esfera política dos Estados e não pertence ao âmbito jurídico internacional, que poderá apenas monitorar a forma como cada Estado Parte está efetivando as normas pactuadas.652 Entretanto, essa divisão entre as esferas política e jurídica mostra-se prejudicial no campo dos direitos das pessoas com deficiência, uma vez que até mesmo para promover o respeito às liberdades individuais, exige-se uma postura positiva do Estado e não apenas a omissão de intervir na esfera pessoal. Por exemplo, no caso das pessoas com deficiência, a observância da não interferência na liberdade de expressão e pensamento se transforma na obrigação positiva do Estado de fornecer informação pública em formatos acessíveis e reconhecer a língua de sinais como meio de comunicação alternativo.653 Assim, a negligência em reconhecer a especificidade das necessidades das pessoas com deficiência também é uma forma disfarçada de discriminação. Para corrigir essa falha, a Convenção vai mais longe do que qualquer instrumento internacional de direitos humanos,654 ao esboçar, minimamente, como os Estados devem organizar uma estrutura administrativa para garantir os direitos do tratado. Cabe ressaltar que esse instrumento internacional é o primeiro a abordar, de maneira ampla, o tema da implementação e monitoramento no âmbito doméstico.655 Nenhum dos tratados anteriores do sistema "onusiano" apresenta dispositivo equivalente.656 O arcabouço institucional interno desenhado pela Convenção de Nova York (2006), no art. 33, compreende duas estruturas. Os Estados deverão designar um ou mais de um ponto focal no âmbito do governo para abordar assuntos relacionados à implementação do tratado e além destes e estabelecer um mecanismo de coordenação das ações correlatas nos diferentes setores e níveis. 652 MÉGRET, op cit, p. 15. 653 KAYESS e FRENCH, op cit, p. 33. 654 MÉGRET, op cit, p. 15. 655 Com a parcial exceção apenas do dispositivo incluído no Protocolo Facultativo da Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (artigo 3º), o qual obriga a todos os Estados que ratificaram o protocolo a estabelecer, designar ou manter um “mecanismo nacional de prevenção”. Na CDPD, uma ênfase ainda maior é dada ao trabalho de monitoramento, uma vez que esta inclui dois âmbitos: internacional e nacional. (GATJENS, op cit, p. 76.) 656 Ibidem, p. 77. 211 Desse dispositivo, depreende-se que embora deva existir um ou mais de um ponto focal responsável pela implementação, esta também ocorre de modo transversal, abrangendo todas as esferas do governo. A especificação de órgãos como pontos focais objetiva evitar a dispersão das atribuições em vários departamentos, resultando no fenômeno previsível de nenhuma entidade assumir a responsabilidade pelo desempenho do trabalho.657 Segundo o estudo temático do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos sobre a estrutura e rol de mecanismos nacionais para a implementação e monitoramento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a total efetivação depende de um trabalho em rede. Portanto, é recomendável que mais de um ponto focal seja determinado, cada qual na estrutura de um Ministério ou órgão responsável pela realização das medidas pertinentes.658 Essa organização em rede justifica-se na medida em que a implementação da Convenção pressupõe o desenvolvimento e execução de políticas públicas e programas inclusivos em todas as áreas da vida das pessoas com deficiência. Desse modo, os pontos focais devem atuar em colaboração com os Ministérios da educação, saúde, trabalho, transporte, comunicação ou informação, entre outros, os quais ficarão responsáveis por elaborar e executar suas respectivas políticas públicas.659 O trabalho de coordenação do órgão central consiste em traçar as linhas gerais e harmonizar as ações dos demais. De acordo com o estudo, a designação deste deve considerar alguns aspectos essenciais: Evitar a escolha dos Ministérios da saúde, educação e trabalho, uma vez que a escolha do órgão central deve refletir a mudança do paradigma médico para o de direitos humanos; a designação do ponto focal na estrutura da Presidência seria o ideal, pois facilitaria a adesão de todos os setores do governo à atividade de implementação da Convenção; as competências do órgão central devem estar direcionadas à coordenação e ao desenvolvimento de uma política nacional coerente, bem como se constituir como um canal de comunicação entre o governo e a sociedade e organizações civis; faz-se necessária a disponibilidade de pessoal altamente capacitado para dar suporte ao desenvolvimento de cada trabalho, observando as suas particularidades.660 No Brasil, a institucionalização da defesa dos direitos das pessoas com deficiência na estrutura do Estado efetivou-se com a criação da Coordenadoria Nacional para Integração da 657 QUINN, Gerard. The UN Convention on the Rights of Persons with Disabilities. National Institutions as Key Catalysts of Change, p. 34. 658 DIAS, op cit, p. 214. 659 GATJENS, op cit, p. 81. 660 DIAS, op cit, p. 214. 212 Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE), no âmbito do Gabinete Civil da Presidência da República, em 1986, através do Decreto n. 93.481/86. Sua atribuição principal era funcionar como órgão de articulação interministerial, coordenando as áreas envolvidas e elaborando os planos e programas governamentais voltados para a integração social desse grupo. Contudo, a efetivação da atuação da CORDE se materializou apenas em 1989, com a Lei n. 7.853.661 A referida Lei dispõe sobre as ações governamentais necessárias para a integração social das pessoas com deficiência. Com esse objetivo define aspectos específicos dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social, ao amparo à infância e à maternidade. Ademais, estabelece as competências da CORDE, dentre as quais se encontram elaborar planos, programas e projetos de acordo com a Política Nacional de Integração da Pessoa com Deficiência; acompanhar a sua execução pela Administração Pública Federal; e manter relação com Estados e Municípios para desenvolver ações conjuntas para execução da Política Nacional.662 Destaque-se que embora tenha sido criada na estrutura da Presidência da República, a CORDE transitou por diversos Ministérios e secretarias durante toda a sua trajetória. Somente em 2003, empreendeu-se nova reforma administrativa e a CORDE foi definida como um órgão de assessoramento vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR).663 Em 2010, o Decreto n. 7.256 criou a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência como órgão da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). Com a estrutura maior e com o novo status, o órgão gestor federal de coordenação das ações direcionadas às pessoas com deficiência obteve maior capacidade na articulação e acompanhamento das políticas públicas federais. Ressalte-se que incluir a coordenação da política para inclusão da pessoa com deficiência na pasta dos Direitos Humanos é um reconhecimento de que esses indivíduos são sujeitos de direitos.664 Uma conquista promovida pela Convenção de Nova York (2006), que buscou inserir esse tema no âmbito dos direitos humanos, retirando-o do campo exclusivo da saúde e da assistência. Vale salientar que a Medida Provisória n. 726, de 12 de maio de 2016, não previu na estrutura do novo Ministério da Justiça e Cidadania a continuidade da existência da Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A Deputada Mara Gabrilli 661 BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, p. 78 662 BRASIL. Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção e dá outras providências. Disponível em:< https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7853.htm> Acesso em: 17 fev. 2016. 663 BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil, p. 78. 664 Ibidem, p. 78. 213 protocolou na Câmara dos Deputados uma Emenda à MP n.726 para corrigir essa omissão e listar textualmente a Secretaria Nacional e suas atribuições na estrutura e organização do Ministério da Justiça e Cidadania. 665 Nesse contexto, cabe destacar o equívoco do Estado brasileiro em designar o órgão de coordenação para implementar a Convenção de Nova York (2006) através de Decreto Executivo, pois a substituição do governo pode implicar uma mudança na perspectiva de como promover os direitos desse segmento social e, consequentemente, na escolha da instituição encarregada dessa função. O que gera instabilidade e prejudica a continuidade do trabalho desenvolvido. O mais razoável seria que a escolha dessa instituição ocorresse por meio de um ato do Legislativo, não apenas indicando qual a instituição designada, mas também a revestindo com o poder político e recursos necessários para desempenhar satisfatoriamente sua missão. 666 Conforme explicitado, a Convenção apresenta algumas diretrizes para estruturação de um sistema nacional para sua implementação, pontos focais e um órgão de coordenação. Todavia, a forma como o Estado irá designar esses órgãos e as competências que lhes serão atribuídas vai depender do sistema organizacional de cada Estado. Como observado, tanto o CONADE, responsável pelo monitoramento, quanto a CORDE, encarregada de coordenar a implementação do tratado, possuem aspectos institucionais frágeis que podem prejudicar o trabalho de efetivação da Convenção de Nova York (2006) no Brasil. Nesse âmbito, importante salientar que o sistema de monitoramento e implementação atuam na esfera preventiva e se desenvolvem a partir de um longo processo. Portanto, não são eficazes para os casos de violações dos direitos das pessoas com deficiência. Para as hipóteses em que o Estado brasileiro falhou em proteger os direitos desses indivíduos, o tratado apresenta dois mecanismos adicionais previstos no Protocolo Facultativo. 665 Para mais informações: . Acesso em 31 dez. 2016. 666 GATJENS, op. cit, p. 79. 214 § 3. Instrumentos complementares: petições individuais e investigação in loco Em complementação ao sistema de monitoramento previsto no corpo da Convenção de Nova York (2006), o protocolo facultativo apresenta dois mecanismos adicionais para os casos em que as violações de direitos das pessoas com deficiência já foram perpetradas. São eles as petições individuais e as investigações in loco, trata-se de instrumentos subsidiários na medida em que somente os Estados que optaram por ratificar o Protocolo reconhecem a competência do Comitê para aplicar esses mecanismos. No caso das investigações no território nacional, o art. 8° possibilita aos Estados ratificar o Protocolo e excepcionar essa atribuição específica. O procedimento de investigação é desenvolvido por alguns comitês do sistema convencional e tem três características comuns: são de caráter confidencial, inclusive no momento do informe final; a investigação de ofício apenas terá início se houver o recebimento de informação confiável (de fonte governamental ou não) sobre a prática sistemática ou grave de violação de direitos consagrados na respectiva convenção; será realizada em estreita colaboração com o Estado, solicitando- se o seu consentimento prévio para realizar a visita. 667 No caso do Comitê da Convenção de Nova York (2006), deve-se observar o requisito implícito das violações terem ocorrido em razão da condição da vítima de pessoa com deficiência. Um exemplo disso pode ser o inquérito sobre a institucionalização de pessoas com deficiência mental ou a exclusão sistemática de crianças com deficiência das escolas.668 Destaque-se que, até o momento, não foi realizada investigação dessa índole por parte do Comitê.669 Após examinar os resultados da investigação, o Comitê os comunicará ao Estado Parte, acompanhados de eventuais recomendações. Dentro do período de seis meses após o recebimento das conclusões do inquérito, o Estado submeterá suas observações ao órgão internacional. Este poderá convidá-lo a incluir em seu relatório, conforme art. 35 da Convenção, pormenores a respeito das medidas adotadas.670 As petições individuais, por sua vez, podem ser encaminhadas ao Comitê, conforme art. 1º do Protocolo, por pessoas ou grupos de pessoas vítimas de violação dos direitos 667 SALMÓN, op cit, p. 234. 668 STEIN, Michael Ashley, Monitoring the Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Innovations, Lost Opportunities, and Future Potential, p. 30. 669 SALMÓN, op cit, p. 234. 670 PALACIOS e BARIFFI, op cit, p. 137. 215 previstos no tratado ou por terceiros, como organizações não governamentais e organizações de pessoa com deficiência em nome das vítimas. Pode o Comitê, antes da resolução do mérito e após o recebimento da comunicação, requerer ao Estado Parte que adote medida suficiente para evitar danos irreparáveis para a suposta vítima.671 O art. 2º do Protocolo apresenta os requisitos para a admissibilidade da comunicação, que não poderá ser anônima; apresentar compatibilidade com as disposições da Convenção e está bem fundamentada; a matéria não deve ter sido examinada pelo Comitê ou está submetida a outro procedimento de investigação ou resolução internacional; esgotamento de todos os recursos internos disponíveis, salvo no caso de demora injustificada, ou a obtenção de solução definitiva seja improvável. O trâmite da petição tem as seguintes características: Em primeiro lugar, o Estado Parte deve ter aceitado expressamente a competência do Comitê para receber as petições de particulares; o procedimento é confidencial e obrigatório, sendo informado pelos princípios da ampla defesa e contraditório; sobre a questão de mérito, o Comitê delibera e fixa a existência ou não de violação de direito protegido pela Convenção; Em caso positivo, deve estabelecer as medidas de reparação que o Estado infrator deverá adotar.672 São seis os casos resolvidos pelo Comitê até o momento: H.M vs Suécia; Kenneth Mc Alpine vs. Reino Unido; Szilvia Nyusti, Péter Takács y Tomás Fazekas vs Hungría; Zsolt Bujdosó et al. vs. Hungria; Sr. vs Argentina; Liliane Groninger vs Alemanha. Nessas comunicações se observa algumas características em comum: O Comitê, em todos os casos admitidos, salvo no Kenneth Mc Alpine, tem recomendado ao Estado não apenas oferecer reparação a pessoa afetada, mas também adotar medidas preventivas destinadas às pessoas que podem ter o mesmo tipo de deficiência e está sujeita a condições similares; o Comitê não tem declarado necessariamente a admissibilidade de todos os direitos invocados, mas apenas aqueles que, de acordo com seu critério, estejam respaldadas por provas suficientes; as demandas são de distintos tipos e envolvem não apenas a atuação do Estado na esfera pública, abrange também o âmbito privado, como se pode observar no caso Szilvia Nyusti, Péter Takács y Tomás Fazekas vs Hungria.673 674 671 STEIN, Michael Ashley, Monitoring the Convention on the Rights of Persons with Disabilities: Innovations, Lost Opportunities, and Future Potential, p, 7. 672 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 95 673 SALMÓN, op cit, p. 219. 674 O caso Szilvia Nyusti, Péter Takács y Tomás Fazekas vs Hungría diz respeito a pessoa com deficiência visual que firmou contrato de prestação de serviços de conta corrente com direito a usar cartão de crédito. O problema foi gerado porque os teclados dos caixas eletrônicos não possuem caracteres em Braille. Devido a isso o representante legal da vítima apresentou uma reclamação baseada na lei de igualdade de tratamento, Lei n. CXXV da Hungria. O Tribunal Metropolitano aceitou que não poderia intervir na relação contratual; sustentou 216 Destaque-se que o Brasil assinou o protocolo facultativo da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, permitindo denúncias ao Comitê de violações aos direitos estabelecidos no referido tratado, bem como investigações in loco. Nesse âmbito, em 21 de agosto de 2013, o Comitê da Convenção recebeu uma queixa contra o Brasil, sob a alegação de que a política do Banco do Brasil que permite a mudança de função do empregado após três meses de licença médica é discriminatória. Postulou-se pela violação dos direitos a não discriminação no ambiente de trabalho (art. 27, alíneas a e b); igualdade de oportunidades (art. 3, alíneas b, e); e as obrigações dos Estados-Partes de adotar todas as medidas necessárias para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas que constituem discriminação contra a pessoa com deficiência (art. 4 a, b, d, e). 675 O Estado brasileiro alegou a incompetência material do Comitê para a análise do caso, pois o artigo 1º do tratado define pessoa com deficiência como aquela que possui uma deficiência de longo prazo. Enquanto os profissionais do Instituto Nacional de Seguridade Social diagnosticaram a autora com uma incapacidade laboral temporária. Logo, esta não se enquadraria no conceito de pessoa com deficiência da norma internacional. 676 Porém, o Comitê considerou que o caráter temporário da lesão no joelho da autora não impede a caracterização desta como deficiência, de acordo com os critérios da Convenção, visto que a diferença entre deficiência e doença é uma questão de grau e não de caráter, nada obsta que uma enfermidade crônica em interação com as barreiras ambientais impeça a participação plena e efetiva do indivíduo na sociedade. 677 Embora o art. 1º do tratado se refira à pessoa com deficiência como aquela que tem “impedimento de longo prazo”, o artigo 4º (4) do tratado prevê que não são afetadas as obrigações dos Estados Partes anunciadas em outros instrumentos de direitos humanos. Nesse caso, a Convenção Interamericana para Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência, incorporada pelo Brasil através do Decreto n. 3.956, de 8 de outubro de 2001, define deficiência como “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais que a adaptação dos caixas não garantiria seu uso independente por parte das pessoas cegas; e que a Empresa OTP não tinha a obrigação de garantir a igualdade de tratamento prevista na lei n CXXV. (NACIONES UNIDAS. Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Comunicação n. 1/2010, 21 de junho de 2013. Decisión adoptada por el Comité en su 9° período de sesiones. Disponível em:< http://juris.ohchr.org/Search/Details/1986/> Acesso em: 03 dez. 2016.) 675 NACIONES UNIDAS, Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Comunicación Nº 10/2013. Decisión adoptada por el Comité en su 12º período de sesiones. Disponível em: Acesso em 03 dez. 2016. 676 Ibidem. 677 Ibidem. 217 atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social” (art. 1º).678 Como observado, o órgão do tratado interpretou de forma complementar os instrumentos distintos do sistema global e regional para ampliar os direitos do grupo protegido por ambos, realizando um diálogo entre jurisdições. O Comitê entendeu que a política do Banco do Brasil que permite mudar de categoria os empregados que estejam de licença médica por mais de três meses é discriminatória por motivo de deficiência, pois embora a norma seja aparentemente neutra, visto que aplicada a todos os empregados licenciados e não tenha a intenção de discriminar, afeta desproporcionalmente as pessoas com deficiência. Apesar desse entendimento, não foi emitida uma decisão de mérito, em face da ausência do requisito do esgotamento dos recursos internos, porquanto a autora não alegou perante os tribunais nacionais que a modificação do seu posto de trabalho estava vinculada a uma deficiência com fundamento na Convenção Internacional. 679 Ressalte-se que embora não tenha ocorrido a resolução do mérito, o Comitê fixou parâmetros de interpretação do texto do tratado a ser seguido pelos Tribunais nacionais. Nesse contexto, esse órgão internacional cumpre a importante função de apresentar as diretrizes do universalismo dos direitos previstos no tratado, ao promover a unificação da forma de interpretá-lo, pois constantemente os Estados ratificam tratados e depois os descumprem sob a alegação de que os estão observando de acordo com a interpretação nacional.680 A facultatividade de competências tão importantes para a efetivação desse tratado (recebimento de petições individuais e investigações in loco) suscitou algumas críticas por parte da doutrina, pois esse seria um aspecto de fragilização da proposta inovadora da Convenção de apresentar um novo paradigma sobre a deficiência.681 Nessa seara, impende destacar que o caráter opcional do protocolo insere-se na questão mais ampla dos limites do poder coercitivo do Direito Internacional em face da soberania dos Estados.682 Ademais, sublinhe-se que mesmo aqueles Estados-Partes que não ratificaram o protocolo facultativo, ou até mesmo não ratificaram a Convenção em estudo, estão sujeitos aos mecanismos não judiciais desenvolvidos pelo sistema geral de proteção dos direitos 678 NACIONES UNIDAS, Comité sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Comunicación Nº 10/2013. Decisión adoptada por el Comité en su 12º período de sesiones. Disponível em: Acesso em 03 dez. 2016. 679 Ibidem. 680 RAMOS, André Carvalho, de. Processo Internacional de direitos humanos, p. 37. 681 GATJENS, op cit, p. 86. 682 FINKELSTEIN, op cit, p. 32. 218 humanos da ONU. Nesse âmbito, a apuração das violações de direitos humanos ocorre em duas dimensões: na área convencional, proveniente dos acordos internacionais; e na esfera extraconvencional alicerçada em resoluções da organização, editadas a partir da interpretação dos dispositivos relativos à proteção dos direitos humanos presentes na Carta da Organização das Nações Unidas.683 Evidencia-se que os mesmos instrumentos de investigações in loco e petições individuais previstos em alguns tratados do sistema universal também têm previsão no sistema extraconvencional. Sob esse prisma, a resolução n. 1503 de 1970 versa sobre o procedimento das comunicações relativas a violações dos direitos humanos e liberdades fundamentais no Conselho Econômico e Social. Ressalte-se que, em 18 de Junho de 2007, o Conselho de Direitos Humanos684 aprovou a Resolução n. 01/05, intitulada "Desenvolvimento Institucional do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas", através da qual um novo procedimento de denúncia foi criado para enfrentar padrões consistentes de violações de todos os direitos humanos em qualquer parte do mundo e em qualquer circunstância. 685 Dentre os procedimentos extraconvencionais, encontram-se também os denominados “procedimentos especiais”, realizados por especialistas independentes e grupos de trabalho que monitoram, examinam, fazem recomendações e publicam relatórios sobre as questões temáticas ou situações de direitos humanos em países específicos. Tais procedimentos incluem realizar visitas aos países e em seguida apresentar relatórios, anualmente, ao Conselho de Direitos Humanos e à Assembleia Geral.686 Dessa forma, pode-se refletir de que modo tais mecanismos podem complementar os instrumentos de controle da Convenção de Nova York (2006). Sublinhe-se que, em 2014, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou a Resolução n. 26/20, criando o mandato do Relator Especial sobre os direitos das pessoas com deficiência. Este deve seguir as diretrizes da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e outros instrumentos de direitos humanos relevantes. Além disso, o mandato de relator especial pode intervir e dialogar diretamente com todos os 683 RAMOS, André Carvalho, de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional, p. 75. 684 O Conselho de Direitos Humanos é um órgão inter-governamental criado pela Organização das Nações Unidas em 15 de Março de 2006, por meio da Resolução 60/251 . O órgão é constituído por 47 Estados membros das Nações Unidas, que são eleitos pela Assembleia Geral da ONU. Tem como atribuição fortalecer a promoção e proteção dos direitos humanos em todo o mundo, além de solucionar situações de violações e fazer recomendações. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS BRASIL. As Nações Unidas e os direitos humanos. Disponível em: Acesso em: 25 abri. 2017. 685UNITED NATIONS. Office of the High Commissioner for Human Rights (OHCHR). Disponível em: Acesso em 15 março. 2016. 686 Ibidem. 219 Estados-Membros das Nações Unidas, independente da existência ou não da ratificação da Convenção de Nova York (2006).687 No relatório especial de 2015, discutido na 28° sessão do Conselho de Direitos Humanos, ressaltou-se a importância de promover o direito das pessoas com deficiência no quadro regulamentar da ONU, incluindo a matéria em fóruns não relacionados com a deficiência e em várias áreas do trabalho temático do Conselho. Assim, objetiva-se alcançar a plena inclusão dos direitos desse grupo em todas as atividades das Nações Unidas e da comunidade internacional em geral.688 Destarte, constata-se a preocupação em promover uma complementação entre a proteção fornecida pela Convenção de Nova York (2006) e os mecanismos gerais da ONU, de modo a suprir possíveis fragilidades na efetivação desse tratado e envolver os Estados não signatários do acordo nas obrigações relativas à promoção dos direitos desse segmento social.689 Nessa direção, a Assembléia Geral, em 17 de dezembro de 2015, aprovou a Resolução n. 70/145, que incentiva os Estados que ainda não ratificaram a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o respectivo Protocolo Facultativo a fazerem;690 encoraja os Estados que efetivaram reservas para rever a pertinência das mesmas e a considerar a possibilidade de retirá-las691; salienta a importância da integração das questões relativas à deficiência nas estratégias relevantes de desenvolvimento, como a Agenda 2030 para o Desenvolvimento sustentável.692 Cabe salientar que as resoluções emitidas pelas organizações internacionais possuem significado variável: algumas enunciam princípios gerais, outras requerem determinado tipo de ação visando a resultados específicos. Em alguns casos, pode-se considerar que as resoluções sobre determinado tema funcionam como partes de um processo contínuo, 687 UNITED NATIONS. Office of the High Commissioner for Human Rights (OHCHR). Disponível em: Acesso em 15 março. 2016. 688 NACIONES UNIDAS, Consejo de Derechos Humanos, 28º período de sesiones. Informe de la Relatora Especial sobre los derechos de las personas con discapacidad, Catalina Devandas-Aguilar, on 2 de febrero de 2015. Disponível em Acesso em: 27 mar. 2016. 689 Ibidem. 690A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com deficiência possui ao todo 161 Estados-membros e a União Europeia. 92 Estados assinaram e 88 ratificaram o tratado e o seu protocolo facultativo. Dentre os países que apenas assinaram encontram-se os Estados Unidos. E dentre aqueles que não assinaram, nem ratificaram, pode- se mencionar a Somália, a República Democrática do Congo e Sudão do sul, dentre outros. Para mais informações: https://nacoesunidas.org/acao/pessoas-com-deficiencia/ 691 O art. 14, da Convenção de Nova York (2006) prevê a possibilidade de reservas ao dispor: Não serão permitidas reservas incompatíveis com o objeto e o propósito do presente protocolo. 692 UNITED NATIONS, General Assembly. Resolution 70/145, adopted on 17 December 2015. Convention on the Rights of Persons with Disabilities and the Optional Protocol thereto. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 220 refletindo uma opnio juris de consenso generalizada693. Todavia, as resoluções não possuem força vinculante, as únicas decisões realmente mandatórias, além daquelas do Conselho de Segurança sobre o artigo 25 da Carta da ONU, são as relativas à estrutura interna do organismo internacional.694 Ressalte-se que embora a maioria das resoluções tenham efeito de recomendação, elas são juridicamente relevantes e influenciam a prática internacional e os Estados. 695 Nesse contexto, em 17 de dezembro de 2015, foi aprovada pela Assembleia Geral a Resolução n. 70/170, com o objetivo de promover a completa acessibilidade e inclusão das pessoas com deficiência nas Nações Unidas, através da seleção e recrutamento de pessoas com deficiência e a implementação progressiva de normas e orientações sobre a acessibilidade das instalações e serviços do sistema das Nações Unidas. Esse seria um exemplo de resolução vinculante, pois versa sobre a estrutura interna da organização internacional.696 Conforme explicitado, o sistema de monitoramento e implementação da Convenção de Nova York (2006) pode ser complementado pelo sistema extra-convencional da ONU. Assim, mesmo que algum Estado membro na ONU não tenha ratificado a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ou o seu protocolo facultativo, ele estará sujeito aos procedimentos não judiciais realizados pelos órgãos da Organização das Nações Unidas. Vale enfatizar que esses procedimentos de fiscalização externos exercem pressão sobre os Estados para que estes promovam e respeitem os direitos das pessoas com deficiência. Mas a efetiva implementação destes depende do aparato estatal e dos recursos que este disponibiliza para tanto, conforme o programa político e a forma de Estado vigente. Nesse sentido, passa-se a investigar a atuação do Executivo na concretização do tratado em estudo. 693TRINDADE, Antonio Augusto Cancado. Direito das organizações internacionais. 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 28 694 Para mais informações: http://www.un.org/en/ga/70/resolutions.shtml 695 TRINDADE, Antonio Augusto Cancado. Direito das organizações internacionais, p. 30 696 UNITED NATIONS, General Assembly. Resolution 70/170, adopted on 10 February 2016. Towards the full realization of an inclusive and accessible United Nations for persons with disabilities Disponível em: http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/70/170 Acesso em: 04 abr. 2016. 221 Seção 2. A implementação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência pelo Executivo O Executivo enquanto administrador das despesas e investimentos públicos terá papel essencial na implementação da Convenção, no sentido de organizar a estrutura e recursos necessários para efetivar as suas normas. Dessa forma, essa função estatal irá atuar buscando a eficácia social do tratado, ou seja, a extensão em que os seus propósitos são alcançados na prática.697 Destaque-se que a Convenção elenca como objetivos, art. 1°, “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente.” Pode-se considerar que esses fins encontram-se assentados nos princípios da igualdade e da dignidade. Nesse contexto, a priori, busca-se compreender o significado desse dispositivo, quais os elementos que compõem a dignidade da pessoa humana e as diferentes dimensões da igualdade, bem como a aplicação desses princípios no âmbito específico da deficiência. Para, em seguida, apresentar as diretrizes estabelecidas pela Convenção de Nova York (2006) para concretizá-los e as obrigações atribuídas aos Estados com esse intuito. Ademais, serão abordados como principais instrumentos de efetivação desses princípios as ações afirmativas e políticas públicas. Sob essa perspectiva, investiga-se como o Executivo brasileiro tem utilizado esses mecanismos sócio-jurídicos para efetivar a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade. 697 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 66. 222 § 1. A dignidade inerente a pessoa com deficiência como diretriz para implementação da Convenção da ONU O art. 1° da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência enuncia como um dos objetivos do tratado promover a dignidade desses sujeitos. O primeiro aspecto que chama atenção é a necessidade de transformar a “dignidade inerente a pessoa com deficiência” em um fim a ser alcançado pela norma internacional. O que logicamente significa que a dignidade desse grupo tem sido alvo de constantes violações, nos seus mais múltiplos aspectos, como a submissão a tratamentos assistencialistas, que enxergam o indivíduo como mero objeto de intervenções médicas; internações psiquiátricas arbitrárias em condições desumanas e degradantes; tratamentos irreversíveis, como esterilização, sem o seu consentimento; ausência de acessibilidade que contribui para sua dependência em relação a terceiros, tolhendo a sua capacidade de decidir os rumos da própria vida; falta de acesso ao sistema educacional, privando-os da oportunidade de desenvolver seus talentos e potencialidades, bem como carência das condições materiais básicas como moradia, comida e vestuário, sem os quais é impossível viver uma existência digna. Ressalte-se que todas essas violações atingem a dignidade humana, concepção aprofundada a partir dos horrores perpetrados contra os judeus durante a II Guerra Mundial. Uma vez que os campos de concentração empreendiam um verdadeiro processo de despersonalização capaz de esvaziar os prisioneiros do seu próprio ser. A primeira providência era substituir o nome da pessoa por um número, frequentemente, gravado no corpo, como se fosse a marca da propriedade de um animal; em seguida, eram eliminadas qualquer marca de individualidade, despojado de todos os seus haveres: roupas, objetos pessoais, cabelos, próteses dentárias; e perda do contato com o mundo exterior.698 Em face desse panorama, pode-se depreender os elementos da dignidade humana. A priori, destaca-se a integridade psicofísica, que compreende tradicionalmente o direito de não ser torturado, a proibição de penas cruéis e as garantias penais no caso de prisões e interrogatório. Na esfera cível, se traduz na garantia dos direitos da personalidade como a vida, nome, imagens, honra, privacidade, corpo e identidade pessoal.699 Ou seja, todos os aspectos que individualizam o homem em sua existência, o distinguindo dos demais, pois é da 698COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 35. 699MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade da pessoa humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Constituição, direitos fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed. 2003. p. 127. 223 essência do ser humano possuir uma identidade a partir da qual é reconhecido por si mesmo e pelos outros.700 Sob essa perspectiva, o art. 17 da Convenção de Nova York (2006) declara que toda pessoa com deficiência tem direito ao respeito a sua integridade física e mental, em igualdade de condições com as demais pessoas. Para isso, os Estados Partes deverão, art. 16, adotar todas as medidas apropriadas para proteger esses indivíduos contra todas as formas de exploração, violência e abuso e fornecer formas apropriadas de atendimento e apoio, inclusive através de informação e educação sobre a maneira de evitar, reconhecer e denunciar casos de exploração, violência e abuso; Ademais, a fim de prevenir a ocorrência de tais atos, os Estados Partes assegurarão que todos os programas e instalações destinados a atender pessoas com deficiência sejam efetivamente monitorados por autoridades independentes. Outros aspectos da dignidade humana, evidenciados a partir dos horrores do nazismo, foi a racionalidade moral e a autonomia. Observe-se que destituídos de qualquer humanidade, os prisioneiros eram utilizados em experimentos científicos, empregados em trabalhos forçados, eliminados em câmaras de gás em prol da limpeza étnica da raça ariana. Essa experiência ilustra a “fórmula kantiana do objeto” para definir a dignidade. De acordo com esta, a pessoa possui um valor intrínseco que não tem qualquer correspondente no mundo, e, portanto, não pode ser substituída por um preço (valor de troca), porque ela é um fim em si mesmo. Assim, a dignidade é violada quando a pessoa é degradada ao nível de uma coisa ou de um objeto, deixando de ser considerada como sujeito autônomo e passa a ser tratada como um instrumento ou meio para realização de fins alheios.701 Esse valor absoluto do homem é o atributo que o diferencia de todos os demais seres. Sua singularidade deriva do fato de ser o único animal capaz de dirigir suas ações em função de finalidades racionalmente percebidas, apoiadas em preferências valorativas. Destarte, a dignidade resulta do fato de que, por sua vontade racional, a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio cria, sem ser conduzido pela inelutabilidade dos instintos, como os outros animais. 702 Nesse contexto, a autonomia tem como pressuposto a liberdade, capacidade de realizar as próprias escolhas sem interferências de qualquer gênero, independente de qualquer constrangimento imposto pela vontade do outro. Ressalte-se que a liberdade pode ser exercida 700 Sobre os elementos que compõe a dignidade humana ver: MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade da pessoa humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wlfgang (Org). Constituição, direitos fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed. 2003. 701 NOVAIS, op cit p. 57. 702 COMPARATO, Fábio Konder. Fundamentos dos Direitos Humanos. Revista jurídica Consulex. Ano IV, v. I. n. 48, 2001. p. 52-61. 224 em diferentes dimensões. Na esfera individual, o seu exercício ocorre através das escolhas sobre os destinos da própria vida703. Na dimensão social, a liberdade diz respeito à construção do processo de desenvolvimento individual em sociedade, fornecendo esta os valores morais a partir dos quais o ser humano toma suas decisões. Dessa forma, considera-se que o substrato axiológico da dignidade pode ser decomposto nos princípios da integridade física e moral (psicofísica), igualdade, liberdade e solidariedade.704 Essa concepção foi incorporada à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, no art. 1°: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” Desse dispositivo depreende-se as características comuns aos seres humanos: liberdade, igualdade, dignidade, razão, consciência e fraternidade. Atributos seriam inerentes à natureza humana, sobre a qual todos os demais direitos assentariam a sua base. 705 Como observado, o respeito à dignidade compreende tanto uma dimensão negativa, que exige a abstenção do Estado, como não submeter a pessoa a tratamentos degradantes, respeitar a sua intimidade e honra. Mas também uma dimensão positiva, que consiste no dever estatal de tutelar a dignidade através de ações concretas. Sob essa perspectiva, importa destacar que embora a dignidade consista em uma nota característica do ser humano, independente de qualquer condição pessoal, os mecanismos de respeito e promoção da dignidade não são idênticos em se tratando de pessoa com ou sem deficiência.706 Essa dimensão positiva justifica-se na medida em que é impossível a qualquer ser humano conseguir exercer a sua autodeterminação quando lhe faltam as condições materiais básicas para sobreviver. Conforme demonstrou a experiência nos campos de concentração, a privação de alimentos e as péssimas condições de higiene direcionavam as energias do prisioneiro para a luta contra a fome e a dor, em um esforço puramente instintivo. Nessa luta pela sobrevivência, não restava espaço para o cultivo dos valores morais e o furto, a 703 MORAES, op cit, p. 138. 704 Ibidem, p. 119. 705 A natureza humana foi interpretada dos mais diferentes modos e o apelo à natureza serviu para justificar sistema de valores até mesmo diversos entre si. O único modo fatualmente comprovado de fundamento dos direito humanos é o consenso histórico. Isso significa que um valor é tanto mais fundado quanto mais é aceito. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 representa o consensus omnium gentium sobre um sistema de valores. Foi aprovada por 48 Estados , em 10 de dezembro de 1948, na Asembleia Geral das Nações Unidas. A partir de então foi acolhida como inspiração e orientação no processo de crescimento de toda a comunidade internacional, no sentido de uma comunidade não só de Estados, mas também de indivíduos livres e iguais. (BOBBIO, op cit, p. 27) 706 LEITE, George Salomão. A dignidade humana e os direitos fundamentais da pessoa com deficiência. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. 1, Parte II, p. 61-68. p. 64. 225 prostituição, a bajulação sórdida, a exploração dos mais fracos tornava-se algo corriqueiro.707 Em face desse panorama, percebe-se que a qualidade inerente do ser humano, enunciada por Kant, de agir de acordo com os preceitos morais por ele livremente eleitos708 implica o reconhecimento do princípio da igualdade e da solidariedade como componentes da dignidade, visto que o sujeito moral reconhece a existência de outros como sujeitos iguais a ele, por conseguinte, merecedores do mesmo respeito e consideração.709 Devido ao homem ser gregário por natureza, a capacidade de reconhecimento da dignidade dos outros também é uma característica própria da espécie humana.710 Esse atributo da sociabilidade se traduz na necessidade de fazer parte do grupo social e ter a garantia de não ser marginalizado. Assim, a solidariedade deriva da consciência racional dos interesses em comum, que implica para cada membro a obrigação moral de não fazer aos outros o que não se deseja que a ele seja feito.711 Porém, em situações de extrema penúria, o homem sucumbe aos instintos e perde a sua capacidade de se colocar no lugar do outro e agir de forma solidária e moralmente correta. Por esse motivo, enuncia-se como condição si ne qua non para uma vida digna um mínimo de condições materiais. Estas se traduzem na exigibilidade, juridicamente reconhecida, de prestações destinadas a garantir a todos os cidadãos a ajuda material que lhe permita levar uma vida com dignidade.712 Sob esse prisma, indaga-se qual seria esse núcleo essencial que daria o suporte material necessário para autodeterminação do ser humano. A doutrinadora Ana Paula de Barcellos defende a síntese em quatro elementos: educação, saúde, assistência aos desamparados e acesso à justiça. Com efeito, educação e saúde são os pressupostos iniciais para que o indivíduo seja capaz de construir uma vida digna autonomamente. A assistência aos desamparados, por sua vez, identifica um conjunto de pretensões cujo objetivo é evitar a indignidade, em termos absolutos, envolvendo particularmente a alimentação, o vestuário e o abrigo. O acesso à justiça é o elemento instrumental e indispensável à eficácia positiva dos 707 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos, p. 35. 708 Em 1788, através da Crítica da Razão Prática, Immanuel Kant reacendeu a questão da moralidade em novas bases. O imperativo categórico está contido na sentença "Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre valer, simultaneamente, como um princípio para uma legislação geral" ou " Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres Racionais", que exprime a separação entre o reino natural das coisas e o reino humano. (MORAES, op cit, p. 115-116.) 709 Ibidem, p. 119. 710 LEITE, George Salomão, op cit, p. 63. 711 MORAES, op cit, p. 141. 712 NOVAIS, op cit, p. 64. 226 demais elementos, possibilitando sua exigibilidade diante do Poder Judiciário.713 Nessa esteira, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, no art. 21, reconhece o direito desses indivíduos à educação, bem como a necessidade da sua efetivação sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades. Para tanto, os Estados Partes devem assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, que possibilite o pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e auto-estima da pessoa com deficiência. No âmbito da saúde, o art. 25 declara o direito das pessoas com deficiência de gozar do estado de saúde mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência, através do acesso a serviços de saúde, incluindo os serviços de reabilitação. Para efetivar esse direito, os Estados Partes deverão oferecer às pessoas com deficiência programas de atenção à saúde gratuitos ou a custos acessíveis; realizar atividades de formação e definir regras éticas para os setores de saúde público e privado, de modo a conscientizar os profissionais acerca dos direitos humanos, da dignidade, autonomia e das necessidades das pessoas com deficiência. Ainda no que tange ao mínimo existencial adotado como uma das dimensões da dignidade da pessoa humana, a Convenção da ONU dispõe, no art. 28, sobre o direito das pessoas com deficiência a um padrão de vida e proteção social adequados. Este inclui alimentação, vestuário e moradia, bem como a melhoria contínua de suas condições de vida. Nessa direção, os Estados comprometem-se a garantir igual acesso aos serviços de saneamento básico, aos serviços e atendimentos apropriados para as demandas relacionadas à deficiência; o acesso a programas de proteção social e de redução da pobreza; o acesso à assistência do Estado em relação aos gastos ocasionados pela deficiência, inclusive treinamento adequado, aconselhamento, ajuda financeira; o acesso a programas habitacionais públicos e benefícios de aposentadoria. Ressalte-se que a Convenção de Nova York (2006) enuncia medidas de caráter político como caminho para a concretização de suas normas. Isso é algo que a maioria dos tratados tem ignorado. Estes se limitam a afirmar a necessidade de “medidas adequadas ou apropriadas” sem enumerá-las e sendo mais explícitos apenas em relação à necessidade de adotar legislações para implementar seus dispositivos.714 Em sentido contrário, uma das especificidades da Convenção encontra-se na antecipação de quase todos os tipos de iniciativa política que possam melhorar a condição das pessoas com deficiência, uma vez que esse 713 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 258. 714 MÉGRET, op cit, p. 16. 227 grupo não é apenas discriminado pelas leis ou ausência delas, mas pela falta de políticas vigorosas para efetivar seus direitos.715 No que tange ao acesso à justiça como um dos elementos que compõe o mínimo existencial, o art. 13 da Convenção determina que os Estados Partes assegurem o efetivo acesso das pessoas com deficiência à justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, mediante a provisão de adaptações processuais adequadas e por meio da promoção da capacitação apropriada daqueles que trabalham na área de administração da justiça, inclusive a polícia e os funcionários do sistema penitenciário. Vale salientar que o acesso à justiça confere aos direitos humanos o atributo da exigibilidade, distinguindo-os da mera obrigação moral. Dessa forma, é inegável o importante papel do judiciário na sua efetivação. No entanto, é salutar destacar que este não é único meio eficaz, pois, muitas vezes, o recurso ao judiciário é restrito às classes mais abastardas, resultando em soluções individualizadas. Por outro viés, a adoção de políticas públicas possibilita atingir um maior número de beneficiados, incluindo as classes com nível de renda mais baixo, além de operar no nível da prevenção da violação de direitos.716 Destarte, apesar do recurso ao Judiciário ser relevante para a efetivação dos direitos humanos, ele não pode ser a única estratégia utilizada. É imprescindível uma ação governamental complexa para que tais direitos sejam concretizados da maneira mais ampla possível. Essas afirmações se tornam mais evidentes no caso dos direitos da pessoa com deficiência, que enfrentam uma discriminação cujas raízes são culturais. Nessas situações, as vitórias legais isoladas têm reduzido potencial para corrigir as manifestações sistemáticas de exclusão social.717 Sob essa perspectiva, é relevante compreender o papel do Estado na efetivação dos direitos das pessoas com deficiência através da elaboração de políticas públicas, que para além de prover o mínimo existencial, assegurando a dignidade desse grupo, é também instrumento de concretização do princípio da igualdade material, consagrado também a objetivo primordial do tratado em estudo e, portanto, diretriz para a sua implementação. 715 MÉGRET, op cit, p. 16. 716JUBILUT, Liliana Lyra. A aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelo STF. IN: PIOVESAN, Flávia; GARCIA, Márcia (org). Direitos Humanos: Proteção internacional dos direitos humanos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 7.v. p. 319 717 MÉGRET, op cit, p. 16. 228 § 2. Instrumentos de concretização do princípio da igualdade material O Princípio da igualdade encontra-se presente na Convenção de Nova York (2006) desde o preâmbulo e perpassa de modo transversal todo o documento, apresentando-se nas suas mais diversas facetas. Nos propósitos do tratado está traduzido na expressão “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e eqüitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência.” Dessa forma, não tem como ignorar que esse princípio se constitui como uma diretriz fundamental para implementação de todos os dispositivos do tratado. É importante salientar que a igualdade é um aspecto da dignidade da pessoa humana, na medida em que o ser humano tem a liberdade para desenvolver suas faculdades no contexto social, ou seja, a sua autodeterminação encontra limite na liberdade dos demais membros da sociedade, que devem reconhecer a igual dignidade um dos outros.718 Sob essa perspectiva, a igualdade foi concebida inicialmente do ponto de vista formal e incorporada ao mandamento de que a lei não deve interferir na liberdade dos indivíduos, deve tratar a todos da mesma forma, sem atribuir qualquer distinção ou privilégio.719 Assim, todos serão livres para desenvolver suas habilidades. Observe-se que a fórmula "todos são iguais perante a lei” expressa não apenas o conteúdo geral destas, mas também a neutralidade na sua aplicação, de modo que a incidência da lei seja homogênea sobre todos os destinatários, independente de posição social ou convicção.720 Esse aspecto da igualdade continua a ser o mínimo que se impõe a qualquer Estado de Direito, enquanto exigência decorrente da igual dignidade de todos.721 Nesse contexto, o art. 5 º da Convenção de Nova York (2006) declara que “os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.” Dessa forma, a 718DRAY, Guilherme Machado. O princípio da igualdade no direito do trabalho: sua aplicabilidade no domínio específico da formação de contratos individuais de trabalho. Livraria Almedina: Coimbra, 1999. p. 129. 719 Ibidem, p. 20. 720 A História e o Direito Comparado aí estão para nos fornecer algumas pistas e nos alertar contra o perigo da inércia nesse domínio. Com efeito, é até enfadonho relembrar que a ruptura brutal com o ancien régime se materializou precisamente na abolição dos privilégios que, por lei, eram atribuídos a certas classes de cidadãos. A Democracia que se seguiu, sobretudo, na concepção ulterior que deu margem ao surgimento do Estado de bem estar social tem como um dos seus pilares a tentativa de distribuição equânime e generalizada dos recursos originários do labor coletivo. GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 137. 721 NOVAIS, op cit, p. 102. 229 legislação não pode estabelecer tratamento inferior a pessoa devido a uma característica pessoal, como a deficiência. Esse sentido da igualdade também se encontra previsto na Constituição Federal de 1988, art. 5º, caput, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.”; nos objetivos fundamentais da República, art. 3º, IV “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”722 E o art. 5º, XXXI, proíbe “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência.” Observe-se que igualdade e não discriminação estão intrinsecamente relacionadas, pois a ideia de tratamento isonômico gera a proibição de ações discriminatórias, que seriam a sua vertente negativa.723 Em face disso, a Convenção da ONU estabelece como propósito “o exercício equitativo de todos os direitos humanos pelas pessoas com deficiência” e como princípio geral, no art. 3º, a não discriminação. Destaque-se que para a psicologia social, a discriminação constitui atitudes e condutas particulares que um indivíduo ou um grupo manifesta em relação a outro indivíduo ou grupo, geralmente com base em caracteres atribuídos mais por preconceito que por algo objetivamente verificado.724 Assim, não discriminar significa que ninguém será privado de qualquer direito em razão de características pessoais, o que pressupõe, à primeira vista, não realizar qualquer comparação entre pessoas.725 Destarte, a não discriminação implica no reconhecimento da igualdade também como direito à diferença, visto que proíbe o tratamento menos benéfico com base em atributos e combate o preconceito em relação às singularidades, que devem ser respeitadas e desmistificadas como negativas. Nesse sentido, revela-se a frase emblemática de Boaventura de Souza Santos “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza.” Sob essa ótica, 722 O Movimento das pessoas com Deficiência que participou dos debates na Assembleia Nacional Constituinte sugeriu para o capítulo "Dos Direitos Individuais", a seguinte redação: "Art. [...] Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas ou por ser portador de deficiência de qualquer ordem." A intenção era inserir a explícita igualdade de direitos para as pessoas com deficiência. Contudo, na redação final da Constituição, determinou-se: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", sem especificá-las. BRASIL. História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil. Presidência da República Secretaria de Direitos Humanos. 1 ed. 2010. p. 70. 723 GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos humanos, princípio da igualdade e não discriminação: sua aplicação às relações de trabalho. São Paulo: LTr, 2010. p. 48 724 DORON, 2007, p. 248, apud FONSECA, Ricardo Tadeu, da. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem, p. 29. 725 GURGEL, Y. M. P, op cit, p. 49. 230 o direito ao reconhecimento requer medidas de transformação cultural, como a desconstrução de estereótipos e estigmas.726 Visando concretizar essas diretrizes, a Convenção da ONU estabelece como objetivo geral de suas normas, art. 3º, “O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana”. E no art. 8 º determina que os Estados Partes deverão conscientizar a sociedade sobre as condições, capacidades e contribuições das pessoas com deficiência; combater estereótipos, preconceitos e práticas nocivas em relação a esses indivíduos; favorecer atitude receptiva em relação aos direitos desse grupo; e incentivar todos os órgãos da mídia a retratar as pessoas com deficiência de maneira compatível com o propósito da presente Convenção. Ressalte-se que a batalha contra a discriminação é indispensável e constante, pois esta é também um componente indissociável do caráter competitivo do relacionamento entre os seres humanos. Afinal, discriminar também é uma tentativa de se reduzirem as perspectivas de uns em benefício de outros. Quanto mais intensa a discriminação e mais ineficaz os mecanismos para sua eliminação, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e discriminado. 727 A partir dos resultados nocivos desse fenômeno, percebeu-se que apenas a igualdade formal não era capaz de promover a inclusão dos grupos marginalizados, vítimas do preconceito e da discriminação sistemática, encontrando-se destituídos das condições necessárias para competir com os demais. Constatou-se que a igualdade de direitos não era por si só suficiente para tornar acessível aos desfavorecidos as mesmas oportunidades que gozavam os indivíduos socialmente privilegiados. Seria necessário colocar os primeiros ao mesmo nível de partida, ou seja, em paridade de condições. 728 Em face desse panorama, constatou-se que a própria lei geral e abstrata, sem intenção alguma de discriminar, poderia gerar desigualdades ao incidir sobre pessoas em condições distintas. Exemplo disso ocorreu no caso Griggs x Duke da Suprema Corte dos EUA, no qual uma empresa de energia elétrica exigia, como requisito para promoção, o bom desempenho em um teste de inteligência. Tal prática mantinha os negros como subalternos, uma vez que 726 PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas da perspectiva dos direitos humanos. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 124, p. 887-896, jan./abr. 2005. Disponívelem: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/index > Acesso em: 25 jan. 2017. p. 889. 727 GOMES, Joaquim Benedito Barbosa; SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas, da. As ações afirmativas e os processos de promoção da igualdade efetiva. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL AS MINORIAS E O DIREITO. Anais eletrônico... Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2001. Disponível em: Acesso em: 28 nov. 2016. 728 DRAY, op cit, 57-58. 231 por força de lei eles foram obrigados a frequentar escolas segregadas e de qualidade inferior. Denominou-se práticas como esta de “discriminação por impacto desproporcional.”729 Nesse contexto, sob a perspectiva do Estado Social, comprometido com o bem-estar de todos, a igualdade ganhou novos contornos. Passa-se a admitir uma produção legislativa que contemple casos particulares, autorizando o tratamento diferenciado de situações fáticas desiguais, tendo em vista a proteção dos indivíduos social e economicamente desfavorecidos. Dessa forma, a igualdade material atua sobre o legislador, ao interditar o tratamento diferenciado para situações iguais e o tratamento igual de casos dissemelhantes.730 Destarte, evidencia-se a necessidade de conferir a determinados grupos uma proteção especial em face de sua própria vulnerabilidade.731 Considerando que uma pessoa só é igual (ou desigual) se houver outra a ser comparada com ela, ninguém é absolutamente igual ou desigual, apenas relativamente.732 Nesse sentido, promover a igualdade material não significa aniquilar as diferenças, mas atribuir tratamento diferenciado, através da lei, aqueles que estão em desvantagem, para que cada um possa, de acordo com as suas singularidades, se desenvolver e ter acesso aos bens necessários a uma vida digna. Todavia, cabe salientar que a igualdade no Estado Social não se restringe ao seu aspecto jurídico, através das normas e da sua aplicação, mas projeta-se para o plano fático sob o signo da “igualdade de oportunidade” ou “discriminação positiva” por meio da disponibilização das condições materiais que, no mínimo, atenuam as desigualdades de partida. Assim, o Estado introduz fatores dinâmicos de compensação ou equalização que se traduzem em tratamentos privilegiados, e não apenas diferenciados, em favor dos que são vítimas de desvantagens tão profundamente enraizadas que impossibilitam a obtenção de resultados iguais apenas através da garantia da paridade de condições.733 Essa concepção tem fundamento na justiça social, compreendida como a distribuição adequada das vantagens e dos fardos da cooperação social. Nessa direção, o Estado passa a atuar no sentido de corrigir as desigualdades fáticas existentes através de uma política de redistribuição de rendimentos. O Estado reconhece que mais importante que a outorga de certos direitos formais e de uma liberdade puramente jurídica é a atividade promotora de 729GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA, p. 22. 730 DRAY, op cit, p. 77. 731 NOVAIS, op cit, p. 104. 732 QUARESMA, op cit, p. 8. 733NOVAIS, op cit, p. 105. 232 benefícios sociais, fornecendo aos indivíduos os meios indispensáveis para que possam gozar os bens da vida.734 Importante sublinhar que apesar da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência abordar o princípio da igualdade nas suas mais variadas vertentes, ela concede enfoque especial para “igualdade de oportunidades”, pois a inclui no próprio conceito de pessoa com deficiência, art. 1º, que seria o indivíduo impossibilitado de participar plenamente da sociedade, em igualdade de condições com os demais, devido à interação das suas características biológicas com as barreiras ambientais. A Convenção declara expressamente que esses sujeitos estão em desvantagem e a “igualdade de oportunidades” é o caminho a ser buscado para se alcançar o exercício efetivo dos seus direitos. Nesse sentido, o art. 5°, esclarece que as medidas específicas necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias. Destaque-se que os dois principais instrumentos de concretização dessa igualdade são as ações afirmativas e as políticas públicas. As primeiras são medidas adotadas em caráter compulsório pelo setor público, geralmente sob a forma de planos (que podem englobar medidas de incentivo e fomento), como pelo setor privado na forma de medidas voluntárias.735 No âmbito do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, a conceituação normativa das ações afirmativas surgiu através da fórmula geral de medidas especiais, temporárias, dirigidas à proteção e ao desenvolvimento de determinadas minorias sociais e étnicas, estabelecidas por intermédio de Convenções e Convênios.736 Na Convenção de Nova York (2006) alguns exemplos de ações afirmativas são encontrados no art. 27, como a obrigação dos Estados Partes de promover oportunidades de emprego e ascensão profissional para pessoas com deficiência no mercado de trabalho; promover oportunidades de trabalho autônomo, empreendedorismo, desenvolvimento de cooperativas e estabelecimento de negócio próprio; empregar pessoas com deficiência no setor público; promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas. 737 734 DRAY, op cit, p. 92. 735 MADRUGA, op cit, p. 186. 736 Ibidem, p. 186. 737 Pode ser citado também o Convênio 159 da OIT de 1983 , que determina o dever dos Estados de formular e aplicar uma política nacional sobre readaptação profissional para as pessoas com deficiência. GUGEL, Maria Aparecida. Pessoas com deficiência e o direito ao concurso público: reserva de cargos e empregos públicos, administração pública direta e indireta. Goiânia: Ed. da UCG, 2006. p.22 233 Para além de concretizar a igualdade de oportunidades, as ações afirmativas objetivam induzir transformações de ordem cultural, pedagógica e psicológica, aptas a subtrais do imaginário coletivo a ideia de supremacia e subordinação de um grupo em relação a outro. Os meios para tanto são a implantação de certa diversidade e de uma maior representatividade das minorias, através da fixação de percentuais mínimos garantidores da sua presença nos mais variados setores públicos e privados. 738 Assim, em face da “convivência jurídica obrigada”, a maioria teria que se acostumar a trabalhar, estudar, se divertir com os negros, as mulheres, os judeus, as pessoas com deficiência. O que promove a desconstrução, no cotidiano, dos preconceitos existentes, ao possibilitar às vítimas da marginalização conviver com os demais sem qualquer inferioridade em razão das suas características pessoais.739 Ademais, trata-se de um mecanismo sócio-jurídico que viabiliza a harmonia e a paz social, perturbadas quando um grupo encontra-se à margem do processo produtivo e dos benefícios do progresso, prejudicando o desenvolvimento econômico do país. Na medida em que a universalização do acesso à educação e ao mercado de trabalho tem como conseqüência inexorável o crescimento macroeconômico e a ampliação generalizada dos negócios. 740 Sob essa perspectiva, sublinhe-se que a desvantagem de um grupo não é considerada perpétua, espera-se que através das ações afirmativas estas sejam reduzidas. Nesse sentido, um dos limites da aplicabilidade das referidas ações é o seu caráter temporal e transitório. Uma vez alcançada a igualdade de oportunidades ou de tratamento, as medidas devem deixar de serem aplicadas, caso contrário podem ser taxadas de inconstitucionais por serem contrárias a igualdade formal. Contudo, é importante destacar que esse caráter temporal na prática não se verifica, pois as desvantagens que acometem determinados grupos, na maioria das vezes, persistem por anos, passando as ações afirmativas a terem caráter indeterminado.741 No caso das pessoas com deficiência, considerando o novo conceito introduzido pela Convenção de Nova York (2006), as desvantagens cessarão quando todo e qualquer ambiente social for capaz de suprir as necessidades de todas as pessoas, acolhendo a diversidade 738 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e princípio constitucional da igualdade: Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA, p.48. 739 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. Revista de informação legislativa, v. 33, n. 131, p. 283-295, jul./set. 1996. Disponível em: Acesso em: 19 nov. 2016.p. 286. 740 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e princípio constitucional da igualdade: Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA , p.133 741 AÑÓN, José García. El principio de igualdad y lãs políticas de accíon afirmativa: algunos problemas de la dogmática jurídica y el Derecho Europeo. Cuadernos eletrônicos de Fílosofia Del Derecho, n.2, 1999. Disponível em< http://www.uv.es/CEFD/2/garcia.html> Acesso em: 5 março. 2017. p. 6-7. 234 humana em toda à sua extensão. Nesse contexto, cabe destacar que a sociedade foi concebida para impor padrões, aniquilando as singularidades para poder melhor controlá-las. Com efeito, desconstruir a sociedade para resgatar as diferenças é um trabalho progressivo e quase interminável, visto que é uma luta constante contra um sistema sócio-político-econômico que se alimenta da massificação de corpos, desejos e comportamentos. A partir dessas considerações, pode-se suscitar uma questão delicada em relação às pessoas com deficiência que diz respeito à contradição de considerar importante a sua inclusão social na medida em que podem contribuir com a sociedade. Sem negar essa possibilidade, é imprescindível observar que o valor do ser humano independe de qualquer consideração sobre a sua utilidade social. Ou seja, as pessoas com deficiência são igualmente dignas por sua essência, por serem um fim em si mesmas e não pela sua capacidade de colaborar com a coletividade. Caso contrário, o conteúdo central do imperativo categórico kantiano seria violado.742 Existem casos graves de pessoas com deficiência que de fato suas limitações biológicas as impedem de participar da sociedade, ainda que esta elimine todas as barreiras sócio-ambientais. Nesse contexto, não cabe ao Estado apenas promover a igualdade de oportunidades para que todos possam conquistar, através dos seus esforços, uma vida digna, mas também promover a própria dignidade, através da garantia dos direitos sociais, quando não é possível ao indivíduo por si só alcançar as condições para isso. Sob esse prisma, pode- se considerar o eficaz instrumento das políticas públicas, que diferentemente das ações afirmativas, promovem a dignidade de forma direta através da prestação de direitos básicos como saúde, alimentação, moradia e assistência social. Ressalte-se que embora a maioria dos autores utilize os termos “ações afirmativas” e “políticas públicas” como sinônimos, compreende-se que as ações afirmativas têm o objetivo mais restrito de inserir os grupos minoritários em espaços públicos e privados, através, por exemplo, das políticas de cotas. 743 Enquanto as Políticas Públicas possuem o propósito mais amplo de prover os grupos vulneráveis dos direitos básicos necessários para que possam alcançar o seu pleno desenvolvimento.744 As políticas sociais ou públicas se referem às ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado. São direcionadas, em princípio, para a 742 PALACIUS e BARRIFI, op cit, p. 77. 743 GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa e princípio constitucional da igualdade. Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA, p.48. 744 HÖFLING. Eloisa Mattos, de. Estado e políticas (públicas) sociais. Cadernos Cedes, ano XXI, n.55, nov. 2001. Disponível em. Acesso em 24 março. 2017. p. 31 235 redistribuição dos benefícios sociais visando à diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico745 e a concretização dos direitos das minorias. Esta ocorre através da “Ação do Governo”746 que, conforme as normas jurídicas e o orçamento, traduz sua plataforma eleitoral em planos de ação e programas para transformação da sociedade.747 Nessa esteira, ressalta-se a necessidade de que haja uma coesão entre os objetivos do Governo e o conteúdo da norma jurídica.748 Destarte, esses dois primeiros tópicos explicitaram os objetivos primordiais da Convenção sobre os Direitos da pessoa com deficiência, sintetizados em: promover a dignidade inerente às pessoas com deficiência e o exercício pleno e equitativo dos direitos humanos e liberdade fundamentais através da igualdade de oportunidade. Como observado os dois instrumentos essenciais para alcançá-los são as políticas públicas e as ações afirmativas. Em face desse panorama, passa-se a analisar como o Brasil tem utilizado esses mecanismos sócio-jurídicos para efetivar a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade. § 3. As ações afirmativas para pessoas com deficiência no Brasil Destaque-se que as ações afirmativas e políticas públicas no Brasil encontram fundamento na própria Constituição de 1988, que adota o princípio da “igualdade de oportunidade” como diretriz de todo o ordenamento jurídico brasileiro, ao estabelecer, no art. 3°, I, dentre os objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da marginalização social e a redução das desigualdades sociais e 745 HÖFLING, op cit, p. 31. 746 Torna-se importante ressaltar a diferença entre Estado e Governo (...) é possível considerar Estado como o conjunto de instituições permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras (...) – que possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período. (...) Políticas públicas é o Estado implantando um projeto de governo, através de programas e de ações voltadas para setores específicos da sociedade. (HOLFLING, op cit, p.31). 747 SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura1. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, jul/dez 2006, p. 20-45. Disponível em: Acesso em: 24 março. 2017. p. 37. 748 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 144. 236 regionais. Tais objetivos, denominados de princípios fundamentais, foram enfatizados pelo texto constitucional, e, portanto, devem ser adotados como prioridade na atuação dos poderes públicos.749 Pode-se perceber que o caminho para construção da igualdade é a solidariedade, alçada ao patamar de princípio jurídico, logo, possui força normativa para autorizar o Estado brasileiro a empreender os esforços necessários para promover a distribuição de renda, as políticas de inclusão e todos os instrumentos direcionados para garantir uma existência digna comum a todos.750 Sob essa perspectiva, a Carta Magna prevê como ação afirmativa para as pessoas com deficiência a reserva de cargos e empregos públicos, no art. 37, VIII, atribuindo expressamente ao legislador ordinário a obrigação de implementar essa norma. Nesse sentido, A Lei n. 7.853/89 dispõe sobre o apoio à integração social das pessoas portadoras de deficiência e determina, no art. 2°, III, d, a adoção de legislação específica que discipline a reserva de mercado de trabalho em favor desses indivíduos, nas entidades da Administração Pública e do setor privado. A Lei n. 8.112/90, por sua vez, assegurou a reserva de até 20% das vagas oferecidas em concurso público no âmbito da União, autarquias e fundações públicas federais. O Decreto n. 3.298/99 estabelece o percentual mínimo de 5% das vagas ofertadas nos certames públicos. Ressalte-se que a fixação desse patamar mínimo foi um importante avanço, pois a maioria das leis estaduais e municipais falava em até 5%, o que possibilitava a definição de percentuais irrisórios.751 Ademais, o referido Decreto esclarece, no art. 37, §1°, que o candidato com deficiência, em razão da necessária igualdade de condições, concorrerá a todas as vagas, tendo direito à reserva mínima apenas se não for aprovado dentro da classificação geral. Dessa forma, não se trata de garantir resultados, estes continuam dependentes dos talentos e méritos pessoais.752 A aplicação da igualdade de oportunidades não atribui ao Estado o poder de inserir as pessoas com deficiência no mercado de trabalho independentemente de qualquer esforço pessoal ou habilidade para o trabalho, isso seria caridade e assistencialismo. Pelo contrário, o sistema de cotas no serviço público respeita o desempenho dos candidatos com deficiência, por reconhecer a sua capacidade, garantindo 749 MORAES, op cit, p. 139. 750 Ibidem, p. 143. 751 FONSECA, Ricardo Tadeu Marques, da. O trabalho protegido do portador de deficiência. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v. 7, 2015. Disponível em:< http://www.revistajustitia.com.br/artigos/14w07y.pdf> Acesso em: 19 fev. 2017. p. 23. 752 GURGEL, Y.M.P, op cit, p. 45. 237 apenas uma compensação pela desvantagem da sua condição, caso não alcance o desempenho satisfatório para a classificação geral. Um aspecto relevante a ser enfatizado é que embora a legislação preveja o direito do candidato a se inscrever em concurso público cujas atribuições do cargo sejam compatíveis com a sua deficiência (art. 37), é vedado à autoridade competente obstar a inscrição do candidato com deficiência (art. 40).753 Isso porque a avaliação dessa compatibilidade só ocorrerá durante o estágio probatório (art. 43, § 2°).754 A interpretação desses dispositivos precisa ser realizada conforme o princípio da razoabilidade, de modo que o administrador público deve se limitar a estabelecer pressupostos e exigências em relação às peculiaridades das funções e tarefas inerentes aos cargos, como, por exemplo, exigir a qualificação profissional por meio de diplomação específica.755 Não se trata de excepcionar pessoas, pois ao indivíduo com deficiência não se pode restringir, em abstrato, qualquer tipo de trabalho ou ocupação.756 Por outro viés, a Lei n. 8.213/91 determina a reserva de vagas para pessoas com deficiência nas empresas privadas. O art. 93 dispõe que as empresas com 100 ou mais empregados devem reservar de 2% a 5% dos cargos de trabalho para pessoas com deficiência habilitadas e/ou beneficiários reabilitados, de acordo com o número total de empregados. Empresas com até 200 empregados – 2%; empresas com 201 a 500 empregados devem destinar 3% dos cargos; e para empresas com 501 a 1000 empregados a cota é de 4%; 1001 empregado em diante deve aplicar o percentual de 5% dos cargos para pessoas com deficiência. Além disso, o referido diploma delegou a fiscalização das empresas ao Auditor 753 A Apelação Cível n. 126020.2010.012602-0 analisada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte discute a reserva de vagas para pessoas com deficiência estabelecida apenas para o cargo de delegado da polícia civil e não para o de agente. Foi concedido provimento parcial ao Ministério Público, permitindo aos indivíduos com deficiência o direito de se inscrever para o cargo de Agente da Polícia Civil. Contudo, decidiu-se que a avaliação de compatibilidade pode ocorrer tanto durante o concurso, como no estágio probatório. O julgado destaca que no caso em apreço, a legislação específica dos servidores da Polícia Civil não exige capacidade plena dos candidatos aos cargos, portanto, não autorizaria o Estado a, desde logo, excluir a possibilidade dos sujeitos com deficiência se inscreverem para qualquer dos cargos desta carreira. (RIO GRANDE DO NORTE. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 126020.2010.012602-0 . Apelante: Ministério Público. Apelado: Estado do Rio Grande do Norte Relator: Desembargador Vivaldo Pinheiro. 3° Câmara Cível. Natal, 27 de janeiro de 2011. Lex: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. Disponível em: Acesso em: 16 jan. 2017. 754 A importância da apresentação do laudo médico atestando a espécie e o grau da deficiência no ato da inscrição (art. 39) é para que sejam tomadas as providências pelo órgão responsável pelo certame quanto à adaptação das provas e ao local de realização desta. (GUGEL, 2006, p. 424). Uma vez que será somente durante o estágio probatório que será analisada, por equipe multiprofissional, a compatibilidade entre as atribuições do cargo e a deficiência apresentada pelo candidato. (LEITE , 2012, p. 224) 755 GURGEL, Y.M.P, op cit, p. 45. 756 GUGEL, Maria Aparecida. Pessoas com deficiência e o direito ao concurso público: reserva de cargos e empregos públicos, administração pública direta e indireta, p. 95. 238 Fiscal do Ministério do Trabalho. Aquelas que desobedecerem à norma são multadas e denunciadas ao Ministério Público do Trabalho.757 Ressalte-se que, de acordo com os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2015, o número de empregos para pessoas com deficiência cresceu 5,75% em relação ao ano de 2014. Constatou-se que 403,2 mil pessoas com deficiência estavam atuando formalmente no mercado de trabalho, correspondendo a um percentual de 0,84% do total dos vínculos empregatícios. Assim, observa-se o aumento progressivo da participação nos últimos anos: 0,73% em 2013 e 0,77%, em 2014.758 Todavia, apesar dos progressos, os percentuais ainda são baixos se considerado o número total de pessoas com deficiência 23,9% no Brasil. Portanto, o país ainda precisa avançar em relação à efetivação das ações afirmativas no mercado de trabalho. Outro aspecto preocupante revelado por uma pesquisa nacional da “i.Social”, recrutadora especializada em profissionais com deficiência, é que 86% dos entrevistados da área de recursos humanos contratam apenas para cumprir a regra. A Presidente da recrutadora Andrea Schwartz observa que, muitas vezes, o RH considera apenas a deficiência, se é um problema leve ou grave e não se empenha em realizar uma triagem do perfil da pessoa com deficiência e suas reais habilidades. Em razão disso, constata-se que aproximadamente 70% das pessoas com deficiência ocupam funções da base da pirâmide, embora existam candidatos bem qualificados.759 Vale salientar que as ações afirmativas não se resumem apenas ao sistema de cotas, estas devem ser entendidas como qualquer “medida apropriada” para conceder tratamento diferenciado a grupos vulneráveis, com o objetivo de inseri-los em espaços sociais dos quais foram sistematicamente marginalizados, principalmente relacionados ao trabalho e à educação. Nesse sentido, o § 1º do artigo 201, da CF/88, ao estabelecer que a Previdência Social deve adotar requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos segurados com deficiência também pode ser considerada como uma ação afirmativa. Como norma 757 Ressalte-se que a dispensa do trabalhador com deficiência reabilitado ou habilitado, no contrato por prazo determinado de mais de 90 dias, e a dispensa imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderão ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante. GUGEL, Maria Aparecida. Inserção da Pessoa Portadora de Deficiência no Mercado de Trabalho–Papel do Ministério Público do Trabalho. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA - TRABALHADOR EFICIENTE, São Paulo, abril de 2001. 758 Fonte: Portal Brasil, informações do Ministério do Trabalho, Publicado: 27/09/2016. Disponível em < http://www.brasil.gov.br/acessibilidade> Acesso em 8 dez. 2017. 759 Folha de São Paulo. Mais que uma vaga, pessoa com deficiência quer chegar ao topo. Publicada 11/09/2016. Disponível em < http://www.folha.uol.com.br/> Acesso em 8 jan. 2017. 239 constitucional de eficácia limitada ou reduzida, 760 sua execução só tornou-se possível a partir da regulamentação pela Lei Complementar n.142 de 2013. Nessa esteira, a regulamentação da aposentadoria especial para a pessoa com deficiência ocorreu após a incorporação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, e veio concretizar o disposto no art. 27 e 28, cumprindo a obrigação do Estado de assegurar às pessoas com deficiência o exercício dos seus direitos trabalhistas e o igual acesso a programas e benefícios de aposentadoria. 761 No campo da educação, A Lei n. 13.409, promulgada em 28 de dezembro de 2016, alterou a Lei n. 12.711 de 29 de agosto de 2012 para incluir a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnicos de nível médio e superior das instituições federais de ensino. Dessa forma, as ações afirmativas na espécie sistema de cotas ainda é bastante recente e, por enquanto, restrita ao ensino superior e técnico. E a prática da inclusão das pessoas com deficiência na rede regular de ensino privada ainda encontra grandes desafios, embora esteja sendo construída a partir das obrigações estabelecidas no Estatuto da Pessoa com Deficiência que objetiva efetivar o tratado internacional em exame. Segundo dados do Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em um período de dez anos, entre 2004 e 2014, o acesso de pessoas com deficiência ao ensino superior deu um salto no país. Mas quando esses números são comparados com o percentual total de ingresso nas faculdades e universidades brasileiras, essa participação ainda é mínima. Em 2004, por exemplo, o número de pessoas com deficiência que se matricularam em cursos superiores presenciais e à distância no Brasil foi de 5.395, o que representou somente 0,12% do total de matriculas no país neste ano, que foi de 4.223.344, de acordo com o Inep.762 Em 2014, por conta de um conjunto de fatores como a criação de novas instituições e cursos e, ainda estímulo ao acesso por meio de iniciativas como o Programa Universidade para Todos (Prouni), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Programa de Financiamento Estudantil (Fies), o número de matriculados no ensino superior como um todo teve um grande incremento e o ingresso de pessoas com deficiência nestas instituições 760 CARVALHO, Marco Cesar, de. A Ausência de Políticas Públicas para os Direitos Sociais da Pessoa com Deficiência: Os Reflexos não Sentidos da Convenção de Nova York no Brasil. Revista de Direito Sociais e Políticas Públicas, v. 1, n. 2, 2015. P. 233. Disponível em Acesso 8 jan. 2017. 761 A reforma da Previdência, proposta pelo governo federal em 6 de dezembro de 2016, mantém critérios diferenciados para a aposentadoria de trabalhadores com deficiência ou expostos a condições nocivas à saúde. O texto apresentado prevê uma idade mínima de 65 anos para todos os trabalhadores. Ainda que a proposta garanta condições especiais a pessoas com deficiência ou sob condições nocivas à saúde, a diferença em relação aos demais trabalhadores não poderá ser maior que 10 anos no requisito de idade e 5 anos no tempo de contribuição. Disponível em: . Acesso em 8 jan. 2017. 762 INSTITUTO ACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEXEIRA. Censo da educação superior. Disponível em: Acesso em 8 jan. 2017. 240 também cresceu. O Inep aponta que nesse ano, 7.828.013 estudantes se matricularam em cursos superiores no país, o que representou um crescimento de 85,35%, frente a 2004. Em relação aos alunos com necessidades educativas especiais o aumento foi muito maior na mesma comparação, 518,66%, atingindo 33.377 matrículas. Apesar do ingresso das pessoas com deficiência ter aumentando três vezes e meia, em relação ao total de matrículas no ensino superior do país em 2014 o percentual não chegou nem perto de 1% do total, representando somente 0,42%.763 Conforme evidenciado, os dados revelam progressos na inserção das pessoas com deficiência no âmbito da educação. No entanto, estes ocorrem de forma paulatina e pouco expressiva. Ressalte-se que o acesso ao ensino superior representa uma batalha vencida ao longo da vida da pessoa com deficiência para conseguir passar por todas as etapas anteriores do sistema educacional. Ultrapassando o campo das ações afirmativas, investiga-se a seguir as políticas públicas, outro instrumento fundamental para dotar de eficácia os direitos desse grupo, buscando demonstrar como elas estão sendo estruturadas no Estado brasileiro e quais resultados estão sendo alcançados. § 4. As políticas públicas para pessoas com deficiência no Brasil As políticas Públicas são um dos mecanismos mais importantes de efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, visto que através do emprego do orçamento público de forma planejada, é possível implementar direitos básicos como saúde, educação, assistência social. Enquanto as ações afirmativas promovem a inserção dos grupos marginalizados nos espaços públicos e privados, as políticas públicas são complementares, pois fornecem as condições materiais necessárias para que esses sujeitos possam ocupar esses espaços e progredir socialmente. Destaque-se que essa “ação governamental planejada” tem como foco o orçamento público, que deve funcionar como um parâmetro para fixação das diretrizes e prioridades da Administração Pública. Essa premissa advém da própria Constituição Federal de 1988, que, no art. 165, define o plano plurianual, instituído por lei de iniciativa do Executivo, como instrumento para estabelecer os objetivos e metas da Administração Federal para as despesas de capital e 763 INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEXEIRA. Censo da educação superior. Disponível em Acesso em 8 jan. 2017. 241 para os programas de duração continuada. Enquanto a Lei de Diretrizes Orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da Administração pública Federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente e orientará a elaboração da Lei orçamentária anual. 764 Observe-se que o desenho das políticas públicas cabe ao legislativo, embora a iniciativa da lei seja do Executivo. Essa divisão se justifica para evitar que a alternância do poder, típico da democracia, possa sacrificar os objetivos do interesse público. Porém, como programas de ação governamentais, a forma de realização dessas metas não pode ser imposta pelo Legislativo ao Executivo. Destarte, as diretrizes para execução das políticas públicas ficam a cargo do Poder Executivo, emitidas através de Decretos, resoluções, portarias, dentro dos limites aprovados pelo Poder legiferante. 765 Nesse contexto, a Lei n. 7.853/89 foi a primeira legislação sobre políticas públicas para pessoas com deficiência, objetivando “garantir o pleno exercício dos direitos individuais e sociais às pessoas com deficiência e as ações governamentais necessárias ao seu cumprimento” (art. 1ª, § 1º e 2º). Essa norma estabelece diversas medidas no âmbito da educação, saúde, trabalho, recursos humanos, edificações. Todavia, a maioria das medidas referentes à educação encontra-se superada, pois se baseava na ideia de “educação especial” segregada do sistema de ensino regular, enquanto a Convenção de Nova York (2006) prima pela inclusão do aluno com deficiência na escola comum, através da “educação especializada” como forma de apoio oferecido na própria escola.766 Na área de saúde, algumas medidas elencadas são: a criação de uma rede de serviços especializados em reabilitação e habilitação; a garantia de acesso aos estabelecimentos de saúde públicos e privados; a garantia de atendimento domiciliar de saúde ao deficiente grave não internado. No âmbito do trabalho, o apoio à formação profissional, a garantia de acesso aos serviços concernentes; a adoção de legislação específica que discipline a reserva de 764BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e Direito Administrativo. Revista de informação legislativa, v. 34, n. 133, p. 89-98, jan./mar. 1997. p. 94. 765 Ibidem, p. 95. 766 Lei n. 7.853. Art. 2 º I - na área da educação: a) a inclusão, no sistema educacional, da Educação Especial como modalidade educativa que abranja a educação precoce, a pré-escolar, as de 1º e 2º graus, a supletiva, a habilitação e reabilitação profissionais, com currículos, etapas e exigências de diplomação próprios; b) a inserção, no referido sistema educacional, das escolas especiais, privadas e públicas; c) a oferta, obrigatória e gratuita, da Educação Especial em estabelecimento público de ensino; d) o oferecimento obrigatório de programas de Educação Especial a nível pré-escolar, em unidades hospitalares e congêneres nas quais estejam internados, por prazo igual ou superior a 1 (um) ano, educandos portadores de deficiência; e) o acesso de alunos portadores de deficiência aos benefícios conferidos aos demais educandos, inclusive material escolar, merenda escolar e bolsas de estudo; f) a matrícula compulsória em cursos regulares de estabelecimentos públicos e particulares de pessoas portadoras de deficiência capazes de se integrarem no sistema regular de ensino; 242 mercado de trabalho em favor das pessoas portadoras de deficiência nas entidades da Administração Pública e do setor privado. Ademais, o art. 15 determina que para otimizar a sua observância será reestruturada a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação, e serão instituídos, no Ministério do Trabalho, no Ministério da Saúde e no Ministério da Previdência e Assistência Social, órgão encarregados da coordenação setorial dos assuntos relativos às pessoas com deficiência. Ressalte-se que, apesar das boas intenções, a lei apresenta alguns aspectos dissonantes com a Convenção da ONU, como destinar a execução das políticas públicas aos Ministérios da saúde e assistência social e não nas pastas sobre direitos humanos. Progresso este que só foi conquistado após anos de luta das pessoas com deficiência para serem enxergadas como sujeitos de direitos e não como pacientes ou objeto de políticas assistencialistas. Por outro viés, o III Plano Nacional de Direito Humanos, aprovado pelo Decreto n. 7.037/2009, apresenta-se como um documento mais atualizado e em consonância com os propósitos da norma internacional em exame. Por exemplo, ao assegurar o cumprimento do Decreto de Acessibilidade (Decreto no 5.296/2004), atribui a responsabilidade pela sua implementação à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério das Cidades; Institui como responsabilidade da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e do Ministério da Educação implementar o ensino da Língua Brasileira de Sinais como disciplina curricular facultativa. O III Plano Nacional de Direitos Humanos pode ser considerado um avanço na implementação dos direitos das pessoas com deficiência. Entretanto, é importante sublinhar que se trata de um plano genérico e não se constitui como um verdadeiro “Programa de Governo” específico para esse segmento social, vinculando orçamento às ações específicas, estipulando metas concretas a serem cumpridas e acompanhadas por um sistema de avaliação.767 Nesse âmbito, o que se verifica, até então, é que no Brasil existia apenas o primeiro passo para implementação das políticas públicas para esse grupo, ou seja, as 767 Esta tipologia vê a política pública como um ciclo deliberativo, formado por vários estágios e constituindo um processo dinâmico e de aprendizado. O ciclo da política pública é constituído dos seguintes estágios: definição de agenda, identificação de alternativas, avaliação das opções, seleção das opções, implementação e avaliação. SOUZA, C., op cit. p. 29. 243 diretrizes normativas. Mas faltava um plano de execução capaz de transformar os objetivos abstratos em transformações reais na sociedade. Essa lacuna foi preenchida em 2011, com o lançamento do primeiro programa brasileiro para pessoa com deficiência o “Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Viver sem Limite”, instituído através do Decreto n. 7.612.768 Este tem como propósito garantir uma política de promoção dos direitos humanos para a pessoa com deficiência ao longo de toda a sua vida e implementar os objetivos da Convenção de Nova York (2006). Para tanto, adotou-se o pressuposto de que a deficiência envolve uma multiplicidade de dimensões e fatores de origem socioeconômica, cultural, familiar, individual e institucional, o que demanda uma política intersetorial e transversal com abrangência e finalidades diversas. Nessa direção, as ações do plano foram desenvolvidas por 15 órgãos federais,769 cada Ministério elaborou um plano de ação e reservou orçamento específico para sua realizá-lo. A previsão orçamentária global chegou a 7,6 bilhões. O Plano foi organizado em quatro eixos temáticos: Acesso à educação; Atenção à saúde, que cria a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência e contempla ações voltadas para a prevenção e reabilitação; Inclusão social; Acessibilidade, na forma da busca de acesso à tecnologia e ao desenvolvimento tecnológico, moradia e aquisição de equipamentos. Destaque-se que algumas metas específicas foram estipuladas para serem alcançadas até 2014 como: inserir na escola 378 mil pessoas com deficiência de até 18 anos; adaptar 42 mil escolas para receberem esses alunos; atualizar e implantar salas multifuncionais; contratar tradutores e intérpretes de libras; criação pelo Ministério da Educaçã do curso superior de Letras em Libras nas universidades.770 Na área de saúde, as ações envolvem protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para o Sistema Único de Saúde (SUS); qualificação da rede de habilitação e reabilitação; criação de centros de saúde com veículos acessíveis. Ademais, o programa “Minha Casa, Minha Vida” disponibilizará 1,2 milhão de moradias adaptadas para cadeirantes, além de kits de acessibilidade conforme a deficiência do morador. Quanto à acessibilidade, foi prevista a 768 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Viver sem Limite – Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2014. Disponível em:< http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/livro-viver-sem-limite-2014.pdf> Acesso em 9 jan. 2017 769 Casa Civil; Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria-Geral da Presidência da República; Ministérios da Educação; Saúde; Trabalho e Emprego; Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Ciência, Tecnologia e Inovação; Cidades; Fazenda; Esporte; Cultura; Comunicações. (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Viver sem Limite, p. 27.) 770 Ibidem, p. 30. 244 criação de centros de treinamento para cães-guias em todos os Estados; criação de 27 Centros de Referência da Pessoa com Deficiência para oferecer às pessoas com deficiências graves e pobres e às suas famílias cuidados e promoção da autonomia.771 Os orçamentos da União foram designados conforme cada área de atuação do plano: Acesso à Educação R$ 1.840.865.303; Atenção à Saúde R$ 1.496.647.714; Inclusão Social R$ 72.240.000; Acessibilidade R$ 4.198.500.000; Total R$ 7.608.253.018. Ficou determinado que nenhum órgão poderia remanejar esses recursos sem uma justificativa prévia para a Casa Civil.772 Relevante sublinhar que ao estipular metas concretas e destinar recursos específicos para cada ação, o plano possibilita um monitoramento mais eficaz. Nessa direção, cabe ao Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) definir um plano estratégico que estabeleça detalhadamente os procedimentos que cada comissão dos Conselhos seguirá para avaliar as ações do plano Viver sem Limite.773 Ressalte-se que a responsabilidade pela execução do Plano é da “União em colaboração com Estados, Distrito Federal, Municípios, e com a sociedade” (Art. 1º, Parágrafo único), inclusive está prevista a possibilidade de celebração de “convênios, acordos de cooperação, ajustes ou instrumentos congêneres” com órgãos e consórcios públicos e entidades privadas (Art. 10). 774 Nesse contexto, o CONADE deve interagir com a rede de Conselhos estaduais e municipais de defesa dos direitos da pessoa com deficiência. Estes são instâncias de participação e controle social das ações governamentais, em sua maioria órgãos paritários com participação da sociedade civil e governo em igual número, tendo atribuições de consulta, deliberação e fiscalização da política pública direcionada à pessoa com deficiência. São órgãos com a devida autonomia política, porém possuem vínculo administrativo com o órgão gestor, responsável por garantir sua manutenção e funcionamento. 775 771 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Viver sem Limite – Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2014. Disponível em:< http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/livro-viver-sem-limite-2014.pdf> Acesso em 9 jan. 2017. p 49. 772 Ibidem, p. 50. 773 Ibidem, p. 50 774 GASPARDO, Murilo. Políticas públicas de inclusão de pessoas com deficiência. Revista Direito e Liberdade RDL, v. 16, n. 2, p. 111-134, 2014. Disponível em: Acesso em: 4 jan. 2017. p. 121. 775 AMARO, Jorge. Política da pessoa com deficiência: releitura do estado da arte. Inclusive: Inclusão e Cidadania. 6 de agosto de 2015. Disponível em Acesso em: 13 nov. 2016. Não paginado. 245 Os Conselhos têm o papel imprescindível de incluir as pessoas com deficiência e a sociedade civil em geral nas discussões acerca do tema, através da organização de Conferências Nacionais. Estas são um espaço de discussão com caráter deliberativo, no qual é construída a articulação entre os diferentes agentes institucionais da sociedade civil e dos governos, consolidando a gestão participativa das políticas sociais. Destaque-se que a II Conferência Nacional ocorreu já sob a égide da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e grande parte das propostas dela advindas foram incluídas no Plano Nacional Viver sem Limite.776 Nesse âmbito, evidencia-se a importância dos movimentos sociais das pessoas com deficiência e dos setores da sociedade civil para colocar o tema da deficiência como pauta a ser abordada por uma política pública nacional, pois a definição da agenda do governo envolve uma equação complexa de prioridades da plataforma eleitoral, recursos disponíveis, a força dos grupos de interesses articulados às ideologias partidárias. Para que a temática da pessoa com deficiência entrasse nesse circuito foi necessária a construção de uma consciência coletiva de que a situação desses sujeitos representava um problema a ser enfrentado.777 Isso foi conseguido através da mobilização dos movimentos sociais em defesa da Convenção da ONU e da sua natureza de norma constitucional. Destarte, a política não é pública por ser exclusivamente estatal, mas porque é de interesse coletivo,778 envolve vários atores, formais e informais, e níveis de decisão, embora seja materializada através dos governos. Ainda que tenha natureza também jurídica, porque originada a partir da legislação, as políticas públicas abrangem processos subseqüentes após sua decisão e proposição, ou seja, implica também implementação, execução e avaliação.779 No que tange à avaliação do Plano Nacional Viver sem Limite, pode-se elencar alguns resultados ilustrativos (não é objetivo desse trabalho fazer uma análise quantitativa). No campo da educação: 17.500 escolas receberam os equipamentos para o atendimento 776 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Secretaria de Direitos Humanos – SDH. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência – SNPD. Avanços das Políticas Públicas para as Pessoas com Deficiência: uma análise a partir das Conferências Nacionais. 1 ed. Brasília, 2012. p. 29 777 À pergunta de como os governos definem suas agendas, são dados três tipos de respostas. A primeira focaliza os problemas, isto é, problemas entram na agenda quando assumimos que devemos fazer algo sobre eles. O reconhecimento e a definição dos problemas afeta os resultados da agenda. A segunda resposta focaliza a política propriamente dita, ou seja, como se constrói a consciência coletiva sobre a necessidade de se enfrentar um dado problema. Essa construção se daria via processo eleitoral, via mudanças nos partidos que governam ou via mudanças nas ideologias (ou na forma de ver o mundo), aliados à força ou à fraqueza dos grupos de interesse. Segundo esta visão, a construção de uma consciência coletiva sobre determinado problema é fator poderoso e determinante na definição da agenda. (SOUZA, op cit, p.29). 778 RENDÓN, Carmen Liliana Ávila et al. Políticas públicas y discapacidad: participación y ejercicio de derechos. Revista Investigaciones Andina, n. 24, p. 457-475, 2015. Disponível em: Acesso em: 02 dez. 2016. p. 460. 779 SOUZA, C., op cit, p. 30. 246 especializado, nas salas de recursos multifuncionais, mantidas em funcionamento pelas escolas sob orientação da secretaria de educação do município; foram realizadas 21.520 matrículas por pessoas com deficiência, a até 29 de fevereiro de 2016, a partir do atendimento preferencial na ocupação das vagas do Programa de Capacitação Técnica (PRONATEC); foram disponibilizados recursos para 59 universidades federais, diretamente em suas matrizes orçamentárias, através do Programa de Acessibilidade na Educação Superior, que visa apoiar a criação e reestruturação de Núcleos de Acessibilidade em todas as universidades públicas federais..780 No campo das ações relativas à acessibilidade, o Programa de Financiamento da Casa Própria II garante às pessoas com deficiência o direito à moradia através da contratação de unidades adaptáveis, foram 15.082 unidades adaptadas entregues; Foi inaugurado, em julho de 2012, o Centro Nacional de Referência em Tecnologia Assistiva (CNRTA), cujo objetivo é orientar uma rede de núcleos de pesquisa em universidades públicas, foram implementados 91 Núcleos apoiados pelo MCTI e instituída a Rede Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento em Tecnologia Assistiva; o Banco do Brasil, em parceria com o Governo Federal, lançou, em fevereiro de 2012, a linha BB Crédito Acessibilidade, para financiar a aquisição de produtos de tecnologia assistiva, como cadeiras de rodas motorizadas, adaptação para veículos, órteses, próteses, aparelhos auditivos. Foram realizadas 41.008 operações e emprestados R$ 260 milhões até 19 de fevereiro de 2016.781 Em relação à saúde, o plano promoveu a implantação de 136 (entre 2013 e 2016) Centros Especializados em Reabilitação (CER) para ampliar o acesso e a qualidade desses serviços no âmbito do SUS; Foram elaboradas diretrizes terapêuticas (ou diretrizes de atenção à pessoa com deficiência) que colaboram para criar parâmetros clínicos e garantir a prescrição segura e o tratamento eficaz em todo o território nacional, no total foram 10 diretrizes publicadas; Com o objetivo de facilitar o acesso das pessoas com deficiência aos Centros Especializados em Reabilitação, o Governo Federal tem feito doações de veículos (Micro- ônibus e Vans) adaptados, foram 108 veículos adquiridos e entregues. 782 No eixo “Inclusão social”, os beneficiados do Benefício de Prestação Social Continuada (BPC) que querem se qualificar para o mercado de trabalho recebem apoio das equipes do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) para inserção na rede de 780SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Observatório do Programa Viver sem Limite. Disponível em:< http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoa-com- deficiencia/observatorio> Acesso em 9 jan. 2017. 781 Ibidem. 782 Ibidem. 247 serviços das políticas sociais, nos cursos do Pronatec ou outros cursos de qualificação profissional. Com o intuito de propiciar maior inserção profissional dessas pessoas, foram promovidas alterações na legislação referente ao BPC. Com a promulgação da Lei nº 12.470, de 31 de agosto de 2011, e do Decreto nº 7.617, de 17 de novembro de 2011, o beneficiado do BPC passou a ter o benefício suspenso, e não mais cancelado, se contratado para o trabalho. Ademais, para estimular a autonomia e a participação social, foram inauguradas 108 residência inclusivas, modalidade de serviço de acolhimento do Sistema Único de Assistência Social, organizada em pequenos grupos de até 10 pessoas por residência, jovens e adultos com deficiência em situação de dependência, cuja convivência promove o desenvolvimento de capacidades adaptativas à vida diária. 783 De acordo com as informações apresentadas, pode-se considerar que as metas do Plano “Viver sem limite” são condizentes com os princípios e dispositivos da Convenção de Nova York (2006), pois não são medidas assistencialistas, estão direcionadas para promoção da autonomia, incentivando o protagonismo desses sujeitos na sociedade. Dessa forma, pode- se constatar que o Poder Executivo está levando em consideração a norma internacional de natureza constitucional na formulação das políticas públicas. Em relação aos resultados, observa-se que alguns são expressivos e podem realmente promover a mudança social, como a implantação dos Centros de pesquisa em tecnologia assistiva, dos núcleos de acessibilidade nas universidades, as alterações legislativas com relação ao BPC. Outros resultados representam apenas os primeiros passos para avanços a longo prazo, visto que em um país de proporções continentais como o Brasil e com uma população de pessoas com deficiência em torno de 45 milhões, inevitavelmente, muitas delas não vão ter acesso a esses recursos. Por outro viés, além de mudanças estruturais, alguns aspectos não dependem apenas das condições materiais, mas também dos recursos humanos. Não adiantam salas multifuncionais equipadas para realização do atendimento especializado nas escolas, se os professores encontram dificuldades para lidar com a deficiência e a escola está permeada por preconceitos velados. Mas não se pode deixar de destacar que existe um esforço por parte do Governo brasileiro para implementar a Convenção de Nova York (2006) e alguns resultados foram alcançados, mas é preciso ponderar que a transformação social necessária para completa inclusão da pessoa com deficiência exige tempo e conscientização social. 783SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Observatório do Programa Viver sem Limite. Disponível em: Acesso em 9 jan. 2017. 248 Ressalte-se que o fim último das políticas públicas é concretizar as normas de natureza programática,784 caracterizadas por esboçar situações idealizadas, prevendo bens jurídicos ou utilidades a serem alcançadas progressivamente mediante a atuação dos poderes estatais. Estes precisam considerar a escassez dos recursos e eleger prioridades, sob esse aspecto as formas legítimas de pressão da sociedade civil se tornam decisivas.785 As normas programáticas possuem um valor ético que objetiva realizar a justiça social, concretizada através da equitativa distribuição da riqueza da nação. Por esse motivo, possuem eficácia limitada, cuja aplicação plena depende da emissão de uma normatividade futura em termos de regulamentação. Contudo, apresentam uma eficácia mínima, ao prescrever valores a serem seguidos e respeitados na interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; condicionam a atividade interpretativa do Judiciário e os atos discricionários da Administração Pública.786 Nesse contexto, é preciso considerar que a ideia de progressividade não pode representar um adiamento para o futuro ad infinitum, principalmente no caso das pessoas com deficiência cujos direitos mais básicos, como o direito de ir e vir, liberdade de expressão. dependem de prestações positivas do Estado. O caráter progressivo significa que se todas as instalações devem ser totalmente acessíveis às pessoas com deficiência, pelo menos no curto prazo algum tipo de mediação é necessária para minimizar as dificuldades de acesso, de uma forma compatível com a natureza finita dos recursos.787 A Convenção de Nova York (2006) incorporou essa ideia, no art. 2°, através do conceito de “adaptação razoável”, que corresponde às modificação necessárias e apropriadas, requeridas em cada caso, para garantir o gozo e exercício dos direitos humanos pelas pessoas com deficiência e que não acarretem ônus desproporcional ou indevido. Observe-se que essa concepção apresenta elementos absolutos “a necessidade e adequação” e aspectos que relativizam a execução da norma “não implicar ônus desproporcional”. 788 Sob essa perspectiva, o legislativo desempenha papel importante ao atribuir deveres não só ao Administrador público, mas à sociedade em geral, delimitando em que medida todos devem estar comprometidos com a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade, pois, como evidenciado, não cabe mais apenas a declaração de direitos, já existe um largo aparato jurídico sobre o tema no Brasil, a necessidade agora é de tornar as leis efetivas. 784 RENDÓN, op cit, p. 464. 785 BARROSO, Luis Roberto. A efetividade das normas constitucionais revisitada, p. 45. 786 SILVA, Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 164-165. 787 MÉGRET, op cit, p. 12. 788 MÉGRET, op cit, p. 12. 249 Capítulo 5. A IMPLEMENTAÇÃO DA CONVENÇÃO PELO LEGISLATIVO: O ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA O Poder Legislativo desempenha um papel salutar na implementação do paradigma biopsicossocial de compreensão da deficiência. Nesse sentido, a própria Convenção de Nova York (2006) delimita a sua função, ao dispor, no art. 4°, sobre a obrigação dos Estados Partes de adotarem todas as medidas legislativas necessárias para a realização dos direitos contidos no tratado, bem como modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência. Sublinhe-se que o Comitê da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, nas observações do primeiro relatório enviado pelo Brasil (2008-2010), apontou a ausência de uma estratégia coerente e global para implementar o modelo de direitos humanos previsto no tratado.789 A partir dessa constatação, o órgão internacional recomendou ao Estado brasileiro realizar uma revisão sistemática da legislação, políticas e programas existentes, além de adotar providências imediatas para alinhar o Estatuto das Pessoas com Deficiência com a Convenção antes de sua entrada em vigor. Destaque-se que a ideia de um Estatuto da Pessoa com Deficiência no Brasil surgiu bem antes da incorporação da Convenção de Nova York (2006). A sua primeira versão foi apresentada pelo deputado federal Paulo Paim (PT/RS), em 2000, através do PL n. 3.638/2000. Em 2003, o texto foi encaminhado ao Senado (PLS n. 006/2003). Todavia, o projeto ficou sobrestado no Congresso Nacional durante o período de negociações da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Com a conclusão do processo de ratificação do tratado, em 2008, a discussão sobre o projeto de lei voltou à pauta.790 Contudo, em face da Convenção de Nova York (2006), o projeto do Estatuto se tornou ultrapassado e precisou ser reformulado para se adequar ao tratado com status de norma constitucional. Nesse sentido, o PL do Estatuto deixou de ser uma lei geral sobre o tema da pessoa com deficiência para desempenhar também a função de regulamentar a Convenção da ONU. Dessa forma, a Lei n. 13.146 só veio a ser promulgada em 6 de julho de 2015, recebendo a denominação de Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPCD). É importante salientar que mais do que utilizar a Convenção como fundamento, esse diploma cumpre funções relevantes como: unificar a matéria sobre a proteção desse grupo; 789 UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 790 LOPES, L. F, op cit, p. 60. 250 regulamentar a norma internacional; promover a adequação da legislação brasileira à Convenção de Nova York (2006); e apresentar instrumentos para a efetivação desse tratado. No que tange à uniformização da matéria, o Estatuto reuniu em uma única legislação normas sobre os direitos da pessoa com deficiência que se encontravam diluídas em diversas leis, decretos e portarias, construindo, assim, um marco regulatório sobre o tema.791 Este além de facilitar a compreensão e aplicação pelos operadores do direito,792 organiza as normas que passam a estar articuladas à luz da ótica dos mesmos princípios, compondo um conjunto dotado de coerência e unidade, cuja interpretação deve ser sistêmica e não mais isolada.793 Sobre a função de regulamentar a Convenção de Nova York (2006), muitos consideravam desnecessária a edição de uma lei ordinária para aplicar direitos que já se encontravam positivados em um tratado alçado à categoria de norma constitucional.794 Sob essa perspectiva, é preciso considerar que a Convenção apresenta normas com graus de aplicabilidade variados, cabendo a aplicação direta de algumas delas. Porém, um tratado internacional de direitos humanos possui caráter de diretrizes gerais, negociadas para atender as demandas de Estados com realidades distintas e por isso precisa ser regulamentado de acordo com os parâmetros sociais e culturais de cada país. Destarte, a Convenção de Nova York (2006) fornece um quadro no qual a lei interna pode ser reformulada para concretizar os seus preceitos.795 Compondo essa moldura estão normas programáticas, cuja eficácia dependerá da edição de legislação indicativa de como os direitos e deveres devem ser cumpridos,796 e as atribuições e responsabilidades do Estado e dos cidadãos na consolidação da sociedade inclusiva. 797 Nesse âmbito, o presente capítulo busca investigar como o Estatuto da Pessoa com Deficiência cumpre essas funções, quais foram as adequações legislativas por ele promovidas; como ocorreu a regulamentação dos dispositivos do tratado em estudo, quais foram os novos mecanismos de efetivação criados e o papel que ele destina aos atores sociais no cumprimento dessas normas. 791 FEMINELLA, Ana Paula; LOPES, Laís Figueiredo, de. Disposições Gerais: Da igualdade e da não discriminação e cadastro inclusão. In: SETUBAL, Joyce Marquezin Regiane; FAYAN, Alves Costa (orgs.). Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Comentada. Campinas: Fundação FEAC, 2016. Cap.1, p. 9-32. 792 FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. Da igualdade e da não discriminação. In: LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; COSTA FILHO, Waldir Macieira, da. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Sraiva, 2016, Capítulo II, p. 64-82. 793ARAUJO, Luiz Alberto David; COSTA FILHO, Waldir Macieira, da. O Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPCD (Lei 13.146, de 06.07.2015): algumas novidades. Revista dos Tribunais, v. 962, p. 65 - 80, dez . 2015. Disponível em:< http://www.rt.com.br/> Acesso em: 10 fev. 2017. p. 70. 794 LOPES, L.F, op cit, p.41. 795 STEIN e LORD, op cit, p. 472. 796 LOPES, L. F, op cit, p. 45. 797 FEMINELLA e LOPES, op cit, p. 14. 251 Seção 1. Principais alterações legislativas Para a regulamentação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência é necessário não apenas readequar as legislações conflitantes, mas também incluir na sua reformulação o detalhamento de critérios para concretizar as diretrizes gerais do tratado em exame. Dentre as normas que dependem dessa regulamentação, encontram-se aquelas sobre o sistema educacional inclusivo; os dispositivos aplicáveis à capacidade civil e o conceito de pessoa com deficiência para fins de políticas públicas. Observe-se que as incompatibilidades presentes nessas normas foram evidenciadas na Primeira Parte desse trabalho, sob a ótica dos impactos causados pela Convenção na legislação brasileira. Em face desse panorama, a presente seção tem como objetivo demonstrar como a Lei n. 13.146/2015 solucionou essas contradições, evidenciando como a norma pretende aplicar o novo conceito de pessoa com deficiência, quais serão os instrumentos utilizados para identificar tais indivíduos; quais foram as medidas elencadas para a construção do sistema educacional inclusivo; e como foi reformulada a teoria das incapacidades para que o Estado ofereça os suportes necessários para que esses sujeitos possam exercer sua autonomia. 252 § 1. A regulamentação do conceito de pessoa com deficiência A Convenção de Nova York (2006) formulou uma concepção ampla e referenciada de pessoas que se encontram em uma situação de desvantagem em face das limitações impostas pelo ambiente em relação às suas características individuais, conforme art. 1°: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” Não se pode perder de vista que, em verdade, esse tratado internacional não define a deficiência em si, nem apresenta as características inerentes às pessoas com deficiência que justificariam o tratamento diferenciado. Desse modo, a Convenção delegou essa tarefa, propositadamente, aos Estados Partes. A ideia era que o conceito genérico do tratado fosse adotado como referência para cada um compatibilizar a sua legislação doméstica.798 Dessa forma, torna-se pouco viável a aplicação do conceito convencional de pessoa com deficiência para definir os beneficiados das políticas públicas e ações afirmativas promovidas pelo Estado, porquanto esta concepção não apresenta critérios objetivos para identificar esses indivíduos, e as medidas em prol da igualdade material precisam ser estabelecidas a partir de parâmetros conhecidos, para não incidir em violação do aspecto formal desse princípio.799 Importante esclarecer que o objetivo da regulamentação não é restringir direitos, mas evitar que estes se tornem tão difusos a ponto de dificultar o reconhecimento dos beneficiados pela norma. Por isso, é relevante a implementação do modelo social de direitos humanos,800 pois este permite levar em consideração os reais fatores que causam a desvantagem, incluindo aspectos econômicos, sociais, culturais e biológicos. Se por um lado essa definição de pessoa com deficiência é mais justa, por enxergar o fenômeno na sua globalidade, por outro viés, a avaliação da deficiência torna-se mais complexa, visto que será necessário identificar quais são os fatores ambientais, como ocorre a sua interação com as limitações funcionais e em que medida eles influenciam no desempenho e participação da pessoa na sociedade. 798 GABURRI, Fernando. As ações afirmativas e as minorias no Brasil: O princípio da igualdade como meio de viabilização do pleno exercício de direitos humanos de minorias e grupos vulneráveis. In: JUBILUT, Liliana Lyra; MELO, Alexandre Gustavo, et al. (Coord). Direito à diferença. Aspectos institucionais e instrumentais de proteção às minorias e aos grupos vulneráveis. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 195. 799 Ver Segunda Parte, cap. 2, Seção 2, § 2°. Instrumentos de concretização do princípio da igualdade material. 800 LOPES, L. F, op cit, p. 57. 253 Essa necessidade de regulamentação do conceito foi reconhecida pelo Brasil, em seu primeiro relatório sobre o cumprimento da Convenção de Nova York (2006) referente ao período de 2008 a 2010. O Estado declarou que, ao incorporar esse tratado com equivalência de Emenda Constitucional, assumiu o desafio de adequar seu arcabouço legal e suas políticas públicas à definição de pessoa com deficiência consagrada pelo tratado. Ressalte-se que cumprir essa tarefa implica revisar não apenas o conceito de deficiência e incapacidade, mas também estabelecer uma nova metodologia de avaliação da deficiência para ser utilizada como diretriz na concessão de benefícios vinculados aos programas e as ações afirmativas existentes.801 Sob essa ótica, o Estatuto da Pessoa com Deficiência buscou harmonizar a definição da Convenção com critérios objetivos. O artigo 2° da referida lei apresentou um conceito quase idêntico ao positivado no tratado.802 Apesar da aparente repetição, a referida norma avançou ao descrever, no art. 3°, as barreiras como quaisquer entraves, obstáculos, atitudes ou comportamentos que limitem ou impeçam a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à circulação com segurança, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação e ao acesso à informação. Além disso, categorizou essas barreiras em seis espécies, detalhando cada uma delas: urbanísticas, arquitetônicas, nos transportes, nas comunicações, atitudinais e tecnológicas. Como o conceito de pessoa com deficiência, no caput do art. 2º, delimita a deficiência como produto da interação entre o corpo com impedimentos e uma ou mais barreiras, depreende-se que basta a presença de uma única das seis explicitadas para que a pessoa com impedimentos de longo prazo seja considerada com deficiência.803 O Estatuto também prescreveu as diretrizes para a criação de um instrumento de avaliação pelo Poder Executivo, estabelecendo que esta será de caráter biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar, deverá considerar os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação no desempenho de atividades e a restrição na participação. Todavia, concedeu o prazo de 2 anos, a partir da sua vigência, para a criação desse instrumento. Esse tempo foi estipulado como necessário em face do desafio de instrumentalizar uma avaliação técnica e 801 LOPES, L. F, op cit, p. 50. 802 Ibidem, p. 49. Lei 13.146/2015, Art. 2°: Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. 803 SANTOS, Wederson. Deficiência como restrição de participação social: desafios para avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3007-3015, out. 2016. Disponível em: < http://www.scielo.org/php/index.php > Acesso em: 25 jan. 2017. p. 3010. 254 objetiva capaz de mensurar a interação dos impedimentos corporais com as barreiras do ambiente.804 Destaque-se que historicamente a legislação brasileira categorizou a deficiência de acordo com critérios médicos, que possibilitavam a classificação em “tipos de deficiência” (física, visual, auditiva, mental e múltipla), conforme foi positivado nos Decretos n. 914/93, 3.298/99 e 5.296/04. Esses diplomas adotaram como base a “Classificação Internacional de Doenças” (CID), publicada pela Organização Mundial de Saúde em 1980, que consagrava a compreensão da deficiência sob a perspectiva médica.805 O novo paradigma fundamentado na concepção da deficiência no âmbito dos direitos humanos foi traduzido pela OMS na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) publicada em 2001.806 A perspectiva da funcionalidade é centrada nos estados ou condições de saúde de um indivíduo, a partir do exame da relação entre suas funções e estruturas corporais com os fatores ambientais (Produtos e Tecnologias; Apoios e Relacionamentos; Ambiente natural; Atitudes; Serviços, Sistemas e Políticas). A Classificação permite analisar como a partir dessa interação o sujeito desempenha atividades em nove domínios principais da vida relacionados à saúde (1. aprendizado e aplicação dos conhecimentos, 2. tarefas e demandas gerais, 3. comunicação, 4. mobilidade, 5. cuidado pessoal, 6. vida doméstica, 7. interações e relacionamentos interpessoais, 8. principais áreas da vida e 9. vida comunitária, social e cívica). Desse modo, os estados e condições de saúde podem refletir uma interação positiva, que não afeta a participação social, até situações de interação negativa (como incapacidades, doenças crônicas debilitantes ou deficiências), cujo resultado é o não desempenho de atividades e a restrição na participação social. 807 No Brasil, a avaliação com base na CIF foi incorporada, primeiramente, no âmbito da assistência social para a concessão do benefício da prestação continuada, através de alteração, em 2011, no Decreto 6.214/07. Este prevê, no art. 16, que a avaliação da deficiência e do grau de impedimento deverá ser médica e social. A primeira considera os fatores ambientais, sociais e pessoais; enquanto a avaliação médica analisa as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo. E ambas devem examinar os limites no desempenho de atividades e a restrição da participação social, de acordo com as especificidades de cada área. 804SANTOS, W, op cit, p. 3009. 805 FEMINELLA e LOPES, op cit, p. 16. 806 SANTOS, W, op cit, p. 3011. 255 Em 2013, a Previdência Social brasileira, através da Lei Complementar n. 142/2013 , passou a conceder de forma diferenciada as aposentadorias às pessoas com deficiência, considerando os graus variados da deficiência a partir do uso da CIF.808 Contudo, começou a se perceber que a diversidade de recursos da Classificação de Funcionalidade da OMS gerava dificuldades para o seu uso completo. Além disso, a apreciação dos domínios de atividade e participação social depende do contexto sócio-cultural de cada país, de modo que os parâmetros universais da OMS não se adéquam totalmente à realidade brasileira.809 Para solucionar esses problemas, em 2013, foi publicado o Índice de Funcionalidade Brasileiro (IFBr), com base na CIF, composto por 41 atividades, além de apresentar uma métrica para pontuação das atividades de acordo com a medida de independência funcional (MIF). Esta gradua a realização das tarefas a partir do exame da situação de dependência da pessoa para realizá-las. Porém, esse instrumento também está sujeito a críticas, pois a valorização da dependência dos indivíduos para qualificar a pontuação pode reforçar a ideia da deficiência como resultante apenas das condições pessoais e corporais. Uma consequência dessa abordagem é uma pessoa com deficiência sem necessidade de auxílio de outros para o desempenho de atividades, ainda que enfrente outras barreiras, não ter a avaliação de sua restrição na participação social completamente apreciada.810 Ademais, o médico perito e o assistente social apenas utilizam as pontuações que identificam o grau de independência funcional do periciado, de acordo com a MIF, não havendo justificativas adicionais.811 Apenas se cadastra a pontuação de 25 a 100 e selecionam- se eventuais barreiras externas limitadoras da independência funcional. Dessa forma, os critérios em que se baseia a perícia são vagos, não existindo um aprofundamento da análise. Embora existam manuais internos do INSS destinados a auxiliar o exame, estes são desconhecidos pelos periciados. O que fere precipuamente os princípios constitucionais da fundamentação das decisões administrativas, do contraditório e da ampla defesa. 812 Como observado, as técnicas brasileiras de avaliação da pessoa com deficiência precisarão ser revistas para se adequar ao novo conceito introduzido pela Convenção. A Lei 808 SANTOS, W, op cit, p. 2009. 809 BUCHALLA e FARIAS, op cit, p. 95. 810 SANTOS, W, op cit, p. 3011- 3014. 811 Na matriz da MIF há quatro gradações de independência: 25 (totalmente dependente); 50 (realiza a atividade com auxílio de terceiros); 75 (realiza a atividade de forma adequada, sendo necessário algum tipo de modificação, ou realiza a atividade de forma diferente da habitual ou mais lentamente, necessitando de alguma adaptação ambiental ou do mobiliário ou da forma de execução); 100 (totalmente independente). LINO, Leandro Jorge Oliveira. O conceito constitucional e biopsicossocial da pessoa com deficiência visual: as especificidades da visão monocular. Raízes Jurídicas, v. 8, n. 2, p. 31–63, 2016. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2017. p. 45 812 Ibidem, p. 45. 256 n. 13.146/15 fixou o prazo de 2 anos para entrada em vigor desse novo instrumento a ser desenvolvido pelo Poder Executivo. Nesse contexto, surge a questão de saber se nesse período a definição da Convenção pode ser aplicada diretamente e se os Decretos nacionais foram revogados automaticamente pelo tratado. Vale salientar que o STF não admite controle de constitucionalidade de decretos executivos, uma vez que estes não retiram o seu fundamento de validade diretamente da Constituição. Apenas os decretos autônomos são objeto das ações do controle de constitucionalidade, incidindo sobre os decretos regulamentares o controle de legalidade.813 Portanto, os decretos nacionais que definem pessoa com deficiência podem ser considerados revogados apenas a partir da regulamentação do novo conceito pela legislação nacional. Parte da doutrina entende que enquanto não for regulamentado o novo conceito, permanecem válidas as categorias de impedimentos dispostas no Decreto n. 5.296/04, que segue a lógica do modelo médico e define como deficiência apenas as situações mais severas, uma vez que são aquelas que apresentam maiores dificuldades e necessidade de apoio através de políticas públicos.814 Nessa direção, defende-se que o critério do comprometimento de funcionalidade mais grave deve ser mantido, com acréscimo das questões relativas às barreiras ambientais. 815 Por outro viés, admite-se que o conceito da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência já está em vigor, desde a sua incorporação, e com eficácia plena, conforme art. 5°, § 1° da Constituição Federal. O prazo maior estabelecido pela Lei n. 13.146/2015 seria apenas para sua instrumentalização pelo Poder Público. Destarte, caso uma pessoa com deficiência deseje cobrar seus direitos de imediato com fundamento no conceito do tratado, pode pleitear judicialmente a questão, pois não poderia uma lei ordinária, como é a Lei n. 13.146/ 2015, postergar a aplicação imediata de um conceito constitucional.816 Essa ideia é corroborada pelo próprio dispositivo do Estatuto, art. 2º, § 1°, ao estipular que “a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial (...)”, ou seja, a lei admite a dispensa da avaliação em alguns casos. 813 Os atos normativos impugnados são secundários e prestam-se a interpretar a norma contida no art. 69 da Lei n. 9.099/1995: inconstitucionalidade indireta. 2. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pacífica quanto à impossibilidade de se conhecer de ação direta de inconstitucionalidade contra ato normativo secundário. Precedentes. 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade não conhecida. Supremo Tribunal Federal, ADI n. 2862/ SP. Relatora: Ministra Cármen Lúcia.Brasília, 9 de maior de 2008. Lex: Diário da Justiça Eletrônico de 9 de maio de 2008. 814 Ver cap. 2, Seção II, § 2. A inadequação do conceito de pessoa com deficiência dos Decretos Nacionais. 815 LOPES, L. F, op cit, p. 54. 816 ARAUJO, Luiz Alberto David; DA COSTA FILHO, Waldir Macieira. O Estatuto da Pessoa com Deficiência- EPCD (Lei 13.146, de 06.07. 2015): algumas novidades, p. 75. 257 Ressalte-se que a aplicação do novo conceito constitucional não revoga automaticamente os Decretos com ele incompatíveis, uma vez que a Convenção, no art. 4°, esclarece que os dispositivos do tratado não afetarão quaisquer disposições mais propícias à realização dos direitos das pessoas com deficiência contidas na legislação do Estado Parte. Sob esse prisma, se a pessoa se enquadra no conceito do Decreto nacional, pode reivindicar a sua inclusão como pessoa com deficiência. 817 Entretanto, essa legislação não pode ter o condão de redefinir e restringir o que a Convenção de Nova York (2006), enquanto norma constitucional, definiu. Se o conceito do tratado não fixou as causas da deficiência, não pode o Decreto fazê-lo. Assim, na hipótese de alguém não se encaixar nas causas exaustivas mencionadas no Decreto 5.297/04, o conceito convencional mais amplo deve prevalecer. Os Decretos continuam no sistema apenas e tão somente para permitir que a Administração Pública reconheça, com mais facilidade, as pessoas com deficiência. Todavia, se o conceito da legislação infraconstitucional for restritivo e excluir determinada situação do conceito do tratado, este deve ser aplicado. Configura-se, portanto, um caso de interpretação conforme.818 Assim, evidenciado que a solução das incompatibilidades entre as definições infraconstitucionais de deficiência e o novo conceito introduzido pelo tratado internacional encontra-se na interpretação, faz-se necessário analisar como a jurisprudência brasileira está realizando essa atividade hermenêutica para compatibilizar a norma internacional genérica, com status de emenda constitucional, com a legislação ordinária anterior. A principal questão com que se depara a jurisprudência pátria é caracterizar a deficiência através da limitação no desempenho das atividades. A exemplo disso, o Tribunal Superior do Trabalho decidiu, em Recurso Ordinário, que o diagnóstico de esclerose múltipla por si só não caracteriza deficiência. Embora seja uma doença grave e irreversível, deve-se comprovar que acarreta deficiência física ou mental, com comprometimento permanente no desempenho de atividades em face do padrão considerado normal, de acordo com o Decreto n. 3298/ 99.819 817 ARAÚJO, Luiz Alberto David; NEME, Eliana Franco. Proteção das Pessoas Com Deficiência. In: NUNES, Vidal Serrano Júnior. Manual de Direitos Difusos. São Paulo: Editora Verbtim, 2009. Disponível em < http://editoraverb.dominiotemporario.com/doc/Apresentacao_Difusos.pdf> Acesso em: 6 set. 2016. p. 711. 818 ARAÚJO e NEME, op cit, p.711. 819 Tribunal Superior do Trabalho. Recurso Ordinário Trabalhista n. 1-86.2015.5.09.0000. Recorrente: Raquel da Silva Guimarães. Recorrido: União. Relator: Ministro João Oreste Dalazen. Brasília, 7 de dezembro de 2015. Lex: Tribunal Superior do Trabalho. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em:< http://www.tst.jus.br/> Acesso em 14 abril. 2016. 258 Nesse âmbito, a polêmica a respeito da visão monocular e da audição unilateral tem demonstrado a arbitrariedade na aplicação desse parâmetro médico, visto que no primeiro caso, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 377, considerando que o indivíduo com visão monocular tem direito a concorrer em concurso público às vagas reservadas às pessoas com deficiência. Por outro lado, o mesmo Tribunal consagrou entendimento, na Súmula 552, segundo o qual a pessoa com surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência.820 Nos precedentes que serviram de base para o enunciado da súmula 377 do STJ, ressaltou-se que uma pessoa cuja visão é restrita a um olho tem dificuldades para estudar, barreiras psicológicas e restrições para o desempenho da maior parte das atividades laborais.821 Ademais, na jurisprudência, também é recorrente o argumento de que a visão univalente compromete as noções de profundidade e distância, podendo acarretar limitação superior à deficiência parcial que afete os dois olhos.822 Por outro viés, a argumentação utilizada pelo STJ, no caso da surdez unilateral, foi a baseada na alteração do Decreto n. 3.298/99, que abarcava a surdez unilateral: "Art. 4º , II - deficiência auditiva: perda parcial ou total das possibilidades auditivas sonoras, variando de graus e níveis na forma seguinte (....). Contudo, o Decreto n. 5.296/2004 restringiu o conceito de deficiência auditiva ao introduzir a expressão “perda bilateral”. Dessa forma, destacou-se a impossibilidade de menosprezar o fato normativo para realizar uma interpretação sistêmica com o objetivo de negar a referida modificação.823 Nesse caso, preferiu-se privilegiar a literalidade da lei, compreendendo que houve intenção do legislador, com a alteração, de excluir a surdez unilateral da hipótese de deficiência. Diferente do caso da visão monocular, no qual não houve alteração substancial. 820 Súmula 552 do STJ: O portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos. Súmula 377 do STJ: O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes. Disponível em Acesso em 12 maio. 2017. 821 Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Mandado de Segurança n. 22.489-DF (2006/0176423-8). Relator: Ministra Laurita Vaz. Recorrente: Paulina Lemes de França Barbosa. Recorrido: Distrito Federal. Brasília, 28 de novembro, de 2016. Lex: Diário da Justiça, de18 de dezembro de 2006. p. 414. Disponível em < http://www.stj.jus.br/> Acesso em: Acesso em 14 abril. 2016. 822 Supremo Tribunal Federal. Recurso em Mandado de Segurança n. 26.071-DF. Reclamante: José Francisco de Araújo. Reclamado: Tribunal Superior do Trabalho. Relator: Ministro Carlos Britto. 1ª Turma. Brasília, 1 de fevereiro de 2008. Lex: Diário da Justiça, de 1° de fevereiro de 2008. Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp> Acesos em:14 abril. 2016. 823Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no Agravo em Recurso Especial nº 364.588 - PE (2013/0197414-0). Agravante: Departamento Estadual de Trânsito do Estado de Pernambuco - DETRAN⁄PE. Agravado: Fábia Melo Barbosa de Oliveira. Relator: Ministro Humberto Martins. Brasília, 3 de abril de 2014. Lex: Diário da Justiça, de 14 de abril de 2014. Disponível em < http://www.stj.jus.br/> Acesso em: Acesso em 14 abril. 2016. 259 Destaque-se que nos precedentes da súmula sobre a visão monocular como deficiência, percebe-se uma argumentação exaustiva em torno dos aspectos biológicos. Enquanto no entendimento acerca da surdez unilateral predominou a literalidade da norma. Nesse contexto seria necessário verificar em que medida a surdez unilateral influencia no desempenho das atividades, tendo em vista que este tem sido o critério adotado pela jurisprudência brasileira para a caracterização da deficiência. Sob outra perspectiva, decisões do Tribunal Superior do Trabalho observam que o não reconhecimento da surdez unilateral como deficiência é incompatível com o novo conceito de pessoa com deficiência, introduzido pela Convenção de Nova York (2006). Nesse sentido, reconhece que o surgimento de uma deficiência auditiva na infância gera danos irreparáveis ao desenvolvimento nos campos da aprendizagem, emocional e intelectivo, pois a perda da audição em um dos ouvidos dificulta a detenção de sons e sua modulação, tornando extremamente difícil a simples compreensão da voz humana em ambiente de ruído.824 Assim, concluiu o Tribunal Superior do Trabalho que uma vez constatada a condição física ou mental insuficiente a inabilitar para o trabalho, mas capaz de estabelecer diferenças significativas na condição de acesso à educação, formação profissional e ao emprego, justifica-se o recurso à ação afirmativa, assegurando efetividade ao princípio isonômico. Em outra oportunidade, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, o TST decidiu que o fato da Lesão por Esforço Repetitivo (LER/DOR) não se enquadrar nas previsões do artigo 4º, inciso I, do Decreto n. 3.298/99 não exclui a sua qualificação como deficiência, visto que conquanto a LER/DORT não constitua, em regra, moléstia que possibilite a qualificação da deficiência física, é possível o reconhecimento de tal condição, desde que presentes os requisitos previstos na Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Ou seja, a existência de um impedimento de longo prazo no organismo do indivíduo e a obstrução da participação social acarretada pela interação do impedimento com as barreiras ambientais. Entretanto, o julgado ressaltou que embora os laudos apresentados induzam ao reconhecimento da LER/DORT como impedimento de longo prazo, seria necessária a dilação probatória para verificar se a interação deste com as barreiras ambientais está gerando desvantagem. Entretanto, foi ressaltado que esse procedimento não se coaduna com o 824 Tribunal Superior do Trabalho. Recurso Ordinário n. 11687520115020000 (1168-75.2011.5.02.0000). Relatora: Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi. Brasília, 3 de junho de 2013. Lex: Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, de 14 de junho de 2013. Disponível em:< http://www.tst.jus.br/> Acesso em 14 abril. 2017. 260 Mandado de Segurança, dados os limites de cognição, razão pela qual o Recurso Ordinário não foi provido.825 Observe-se que a utilização do novo conceito de pessoa com deficiência demanda uma comprovação mais detalhada, pois envolve diferentes fatores econômicos, sociais e biológicos. Enquanto o reconhecimento da deficiência conforme as definições infraconstitucionais podem ser atestadas por laudos médicos que comprovem a deficiência e o seu enquadramento nos parâmetros normativos. Indubitavelmente, o uso exclusivo de critérios biológicos facilita a identificação das pessoas com deficiência. Contudo, não é um critério justo para atribuição de um tratamento diferenciado que objetiva suprir desvantagens que não se encontram apenas no organismo do indivíduo, mas, sobretudo, nas causas sociais da sua discriminação. Dessa forma, resta evidenciado que o novo conceito constitucional de pessoa com deficiência só terá o mesmo grau de efetividade, para fins de ações afirmativas e políticas públicas, que a definição dos Decretos nacionais, quando a avaliação biopsicossocial for regulamentada. Não se pode deixar de notar que o Estatuto avança na implementação do conceito convencional de pessoa com deficiência, ao propor as diretrizes gerais para a sua operacionalização e determinar prazo para o Poder Executivo criar o instrumento de avaliação para aplicá-lo. Como ferramenta adicional para auxiliar a identificação da pessoa com deficiência, o Estatuto prevê a criação do Cadastro Nacional de Inclusão da pessoa com deficiência. Um repositório de registro eletrônico que coleta, processa e sistematiza informações georreferenciadas para identificar e caracterizar socioeconomicamente os indivíduos pertencentes a esse grupo. 826 O Cadastro será útil para os Entes Federais criar, avaliar e monitorar as políticas destinadas a concretizar os direitos das pessoas com deficiência.827 Ressalte-se que esse dispositivo cumpre a obrigação do art. 31 do tratado internacional sobre a fundamentação das políticas públicas em dados estatísticos. Destaque-se que as providências para criação do instrumento de avaliação biopsicossocial e do Cadastro de inclusão já foram 825Tribunal Superior do Trabalho. Mandado de Segurança 55422320135000000 (5542-23.2013.5.00.000). Embargante: União. Embargada: Karla Cristina Chaves Coelho. Relator: Ministra Maria Cristina Irigoyen Peduzzi. Órgão especial. Brasília, 7 de outubro de 2013. Lex: Diário Eletrônico da Justiça do Trabalho, de 18 de outubro de 2013. Disponível em:< http://www.tst.jus.br/> Acesso em 14 abril. 2016. 826 LOPES, L. F, op cit, p. 58. 827 COSTA FILHO, Waldir Macieira, da. Disposições Finais e Transitórias. , 2016, p. 407 - livro comentários. In: LEITE, Flávia Piva Almeida et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. 261 tomas. O Decreto n. 8.954, de 10 de janeiro de 2017, instituiu o Comitê do Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência, no âmbito do Ministério da Justiça e Cidadania. Como observado o Estado brasileiro tem demonstrado esforços legislativos para tornar efetiva a nova definição de pessoa com deficiência. Por outro lado, o judiciário ainda encontra dificuldades no que tange à aplicação direta desse conceito, sobretudo, no caso de demandas envolvendo ações afirmativas. Mas, sem dúvidas, não se pode olvidar que os mecanismos para a sua operacionalização estão sendo delineados no campo legislativo através do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Nesse contexto, o novo conceito de pessoa com deficiência pode ser considerado o pilar de todas as mudanças a serem realizadas no ordenamento jurídico brasileiro, pois além de enfatizar as causas sociais da deficiência, retira esses indivíduos da condição de passividade para colocá-las como sujeitos de direitos. Nesse sentido, imperiosa era revisão da teoria das incapacidades na legislação civil brasileira. E como será analisada a seguir, foi empreendida pelo Estatuto. § 2. O novo modelo de capacidade civil O modelo de capacidade civil brasileiro consagrado no Código Civil de 2002, como analisado em capítulo anterior, apresentava varias incompatibilidades em relação à Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. A mais grave delas consistia na possibilidade de interdição absoluta do incapaz para todos os atos da vida civil (tanto patrimoniais, como existenciais), violando claramente o art. 12 da Convenção. Este impõe como dever dos Estados Partes garantir às pessoas com deficiência o reconhecimento da sua capacidade legal e dispor sobre os suportes necessários para que elas possam exercê-la em condições de igualdade com os demais. Nesse contexto, o Comitê da Convenção emitiu a Observação Geral n. 1 acerca do referido dispositivo, fornecendo algumas diretrizes para implementação dessa nova teoria da capacidade civil, que tem como pressuposto geral o direito das pessoas com deficiência de gozar de capacidade jurídica, incluindo a capacidade de agir. Desse modo, a deficiência 262 (mesmo a mental ou intelectual) não pode ser o único motivo para a negação dessa capacidade, pois tal conduta consiste em discriminação.828 Sob esse prisma, o Comitê evidencia a distinção entre capacidade jurídica e capacidade mental, ressaltando o fato desta última não ser um fenômeno apenas biológico, pois depende de diversos fatores sociais e políticos, como as disciplinas, profissões e práticas que desempenham um papel preponderante na avaliação.829 Todavia, acrescente-se que esse entendimento não implica negar as eventuais dificuldades desses indivíduos para exercer sua capacidade jurídica, visto que o emprego da expressão “em igualdade de condições”, no art. 12, faz referência à igualdade material e, portanto, admite a necessidade de apoio adequado para esse exercício. Com relação ao sistema de apoios, o Comitê o entende como um termo amplo que engloba instrumentos formais e informais de distintos tipos e intensidades e varia de acordo com a diversidade das pessoas com deficiência,830 a sua principal finalidade é evitar o sistema de substituição para a tomada de decisões. O órgão do tratado faz alguns esclarecimentos: os apoios devem orientar-se pela vontade da pessoa com deficiência; o reconhecimento jurídico dos apoiadores deve ser disponível e acessível; o apoio não pode ser exercido para limitar outros direitos, especialmente o direito de votar, de contrair matrimônio, entre outros; a pessoa com deficiência deve ter o direito de mudar ou revogar o apoio a qualquer momento; a prestação do suporte não deve depender das avaliações da capacidade mental.831 Ademais, a Convenção determina, no art. 12, que esse sistema de suportes deve ser acompanhado por salvaguardas para garantir que as medidas respeitem os direitos, vontades e 828 NACIONES UNIDAS. Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Comité de los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general n.1, Artículo 12: Igual reconocimiento como persona ante la ley. 19 de mayo de 2014. Disponível em: < http://www.un.org/en/sections/news-and- media/index.html> Acesso em 27 jan. 2017. p. 3 829 Ibidem, p. 4. 830 Por ejemplo, las personas con discapacidad pueden escoger a una o más personas de apoyo en las que confíen para que les ayuden a ejercer su capacidad jurídica respecto de determinados tipos de decisiones, o pueden recurrir a otras formas de apoyo, como el apoyo entre pares, la defensa de sus intereses (incluido el apoyo para la defensa de los intereses propios) o la asistencia para comunicarse. El apoyo a las personas con discapacidad en el ejercicio de su capacidad jurídica puede incluir medidas relacionadas con el diseño universal y la accesibilidad (...)El apoyo también puede consistir en la elaboración y el reconocimiento de métodos de comunicación distintos y no convencionales, especialmente para quienes utilizan formas de comunicación no verbales para expresar su voluntad y sus preferencias. Para muchas personas con discapacidad, la posibilidad de planificar anticipadamente es una forma importante de apoyo por la que pueden expresar su voluntad y sus preferencias, que deben respetarse si llegan a encontrarse en la imposibilidad de comunicar sus deseos a los demás. (NACIONES UNIDAS. Convención sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. Comité de los Derechos de las Personas con Discapacidad. Observación general n.1, Artículo 12: Igual reconocimiento como persona ante la ley. 19 de mayo de 2014. Disponível em: < http://www.un.org/en/sections/news-and- media/index.html> Acesso em 27 jan. 2017. p. 5.) 831 Ibidem, p. 4. 263 preferências da pessoa; sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida; sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias individuais; se apliquem pelo período mais curto possível e submetam-se à revisão periódica por autoridade ou órgão judiciário competente. Na Observação Geral n.1, destaca-se, ainda, que as medidas de apoio devem contemplar o direito da pessoa com deficiência de assumir riscos e cometer erros, visto que o objetivo do sistema de suporte é construir a confiança e a capacidade desses sujeitos para que no futuro possam prescindir dos mesmos.832 Ressalte-se que a recomendação do Comitê é para os Estados extirparem dos seus ordenamentos jurídicos qualquer forma de tomada de decisão por substituição. Nesse sentido, o referido órgão enfatizou que criar sistemas de apoio paralelos à manutenção de regimes substitutivos não é suficiente para cumprir com o comando normativo do art.12, uma vez que os Estados têm a obrigação de suprimir esse modelo incompatível com a Convenção de Nova York (2006) e elaborar alternativas para implementação dos mecanismos de suporte.833 Destarte, nas observações do relatório brasileiro sobre o cumprimento do tratado, o Comitê declarou como motivo de preocupação a existência no ordenamento jurídico pátrio da tomada substitutiva de decisão em algumas circunstâncias.834 Buscando cumprir essas determinações, o Estatuto (Lei n. 13.134/2015) declara, no art. 6°, que a deficiência não afeta a plena capacidade civil, inclusive para os atos existenciais como casar, constituir união estável, planejamento familiar, o direito à guarda, tutela, curatela e adoção. E, no art. 84, assegura o direito ao exercício da capacidade legal pelas pessoas com deficiência, enunciando como sistemas de apoio o processo de tomada de decisão apoiada e a curatela quando necessária. Para assegurar a plena capacidade civil das pessoas com deficiência, o Estatuto reformulou os dispositivos do Código Civil de 2002. Com o intuito de combater o estigma da pessoa com deficiência como incapaz, todos os artigos que faziam referência a esses indivíduos como incapazes foram revogados. No art. 3º, foi retirado do rol de incapacidades absolutas o inciso I “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos” e mantida como única hipótese de incapacidade absoluta a condição de menor de 16 anos. 832 Ibidem, p. 5. 833 Ibidem, p. 5. 834 UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 264 Enquanto, no art. 4º, eliminou-se das incapacidades relativas o inciso I “os que por deficiência mental tenham o discernimento reduzido” e o III “os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo.” Como hipóteses de incapacidade relativa foram mantidos os casos do menor de 18 anos e maior de 16, os ébrios habituais, os viciados em tóxico, os pródigos e foi acrescentada a condição “daqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”, que anteriormente estava elencada no art. 3° como incapacidade absoluta. Observe-se que a lei deixa de apresentar a ausência ou redução do discernimento para a prática dos atos da vida civil como critério para a declaração de incapacidade.835 Assim, mesmo a deficiência mental acompanhada da redução do discernimento não será causa para declaração de incapacidade relativa. Salvo se a pessoa com deficiência mental se enquadrar em um dos incisos do art. 4°. Por exemplo, um tetraplégico que sofra um AVC e entre em estado vegetativo. Nesse caso, a condição de pessoa com deficiência era anterior a causa da incapacidade, esta foi o acidente vascular cerebral. Outra hipótese seria a pessoa com deficiência que se torne viciada em tóxicos.836 Em suma, não existe mais, no sistema jurídico brasileiro, pessoa absolutamente incapaz maior de idade. Todas as pessoas com deficiência passam a ser, em regra, plenamente capazes,837 pois não estão contempladas em nenhum dos dispositivos sobre incapacidade (seja relativa ou absoluta), uma vez que a deficiência por si só não pode ser, em abstrato, apresentada como causa automática de incapacidade, conforme dispõe a Convenção de Nova York.838 Ao que parece, o Brasil buscou cumprir as recomendações do órgão do tratado, deixando como única hipótese de incapacidade absoluta o menor de 16 anos. Sob esse prisma, pode-se observar que essa norma possui eficácia jurídica, pois cumpre o objetivo abstrato fixado pelo art. 12 da Convenção, a plena capacidade das pessoas com deficiência. Contudo, em relação à eficácia social, a possibilidade dessas alterações legislativas serem efetivamente 835 SOARES, Thiago Rosa. A capacidade de fato das pessoas com deficiência. Consultoria Legislativa. Câmara dos Deputados. Estudo, abril. 2016. Disponível em: Acesso em: 13 fev. 2017. p. 20. 836 TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte I. Migalhas, 29 de julho de 2015. Disponível em: Aceso em: 11 fev. 2017. Não paginado. 837 Ibidem, não paginado. 838 Interferir na capacidade de exercício com base tão somente em um diagnóstico médico representa uma limitação arbitrária. É equiparável a uma medida baseada em raça, sexualidade, gênero, religião, etc. Configurando-se em discriminação por motivo de deficiência, conforme preceituado no artigo 4° § 1° da Lei Brasileira de Inclusão, uma vez que a diversidade funcional estaria sendo utilizada como fator de indevida desigualação, cujo efeito evidente seria restringir o exercício de direitos na comparação com as demais pessoas. (FERRAZ e LEITE, op cit, p. 80.) 265 cumpridas pelos operadores do Direito e pela sociedade, existem alguns impasses que precisam ser esclarecidos. Um deles diz respeito ao enquadramento da “pessoa que não pode, por causa transitória ou permanente, expressar sua vontade” no rol das incapacidades relativas, pois esta enseja a curatela parcial, nesta o curador presta assistência para que o curatelado participe da prática do ato, expressando sua vontade. Porém, se o interditado está impossibilitado de manifestar sua vontade, a nova legislação criou um óbice para a sua aplicação, uma vez que o curador não pode representá-lo, porque não se trata de incapacidade absoluta. Por outro lado, é inviável a assistência, uma vez que a pessoa não pode externar seus interesses.839 Nesses termos, a interdição parcial que deveria proteger o incapaz, na prática, não funciona.840 Uma das soluções apontadas pela doutrina, caso o Estatuto não seja modificado, seria admitir uma hibridização de institutos, para permitir a existência de incapacidade relativa com representação do incapaz e não assistência.841 Essa seria uma forma de sanar o equívoco do legislador em localizar a referida hipótese como incapacidade relativa, quando seria razoável ter permanecido como incapacidade absoluta.842 Nesse âmbito, é preciso verificar se a correção dessa inadequação violaria o art. 12 da Convenção de Nova York (2006), que assegura a plena capacidade civil das pessoas com deficiência como regra. E, de acordo com a interpretação atribuída pelo Comitê, nenhum modelo de tomada de decisão por substituição, como é o caso da representação, deve ser aplicado a esses indivíduos. Estes devem ter a sua disposição apenas sistemas de apoio, que respeitem sua autonomia. É importante considerar que, de acordo com o conceito convencional de pessoa com deficiência, os indivíduos pertencentes a esse grupo são aqueles que apresentam impedimentos (físicos, sensoriais, mentais ou intelectuais), os quais em interação com as barreiras sócio-ambientais têm sua participação na sociedade obstruída. Sob esse prisma, a pessoa impossibilitada de exprimir sua vontade não será necessariamente uma pessoa com deficiência de acordo com a Convenção. Se o seu impedimento for apenas biológico e a 839 CORREIA, Atalá. Estatuto da Pessoa com Deficiência traz inovações e dúvidas. Revista Consultor Jurídico: Direito Civil atual. ago. 2015. Disponível em: Acesso em: 11 fev. 2017. Não paginado. 840SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte II). Revista Consultor Jurídico, 7 de agosto de 2015. Disponível em: Acesso em: 13 fev. 2017. Não paginado. 841 TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte I. Migalhas, 29 de julho de 2015. Disponível em: Aceso em: 11 fev. 2017. Não paginado. 842 Ibidem. 266 eliminação das barreiras contextuais (como falta de acessibilidade, preconceito e discriminação) não facilite em nada a sua inclusão, como por exemplo uma pessoa em coma vegetativo, não se trata de pessoa com deficiência à luz desse tratado internacional. Portanto, considerar esses indivíduos que não podem expressar sua vontade como absolutamente incapazes não viola o art. 12 da Convenção. Nesse contexto é preciso ressaltar que embora as pessoas em coma não se enquadrem no conceito de pessoa com deficiência da Convenção (concepção que tem como referência as barreiras contextuais), ela é considerada pessoa com deficiência à luz do Decreto n. 5.297/2004, que tem como parâmetro apenas os fatores biológicos, visto que, como evidenciado no tópico anterior, a Convenção de Nova York (2006) afirma, no art. 4°, que as normas do tratado não afetarão disposições nacionais mais favoráveis a realização dos direitos das pessoas com deficiência. Seria uma inversão da lógica de todo o sistema inaugurado pela Convenção, imaginar haver, nesta hipótese de incapacidade relativa, uma “brecha” para que as pessoas com deficiência ainda fossem consideradas incapazes.843 Dessa forma, conclui-se que de fato ocorreu um erro do legislador, passível de ser solucionado sem nenhum prejuízo ao cumprimento do tratado em estudo. Entretanto, permanece a dúvida: Se uma pessoa com deficiência mental ou intelectual grave não tiver condições mínimas para compreender a dinâmica das relações e da organização social, nem as conseqüências dos seus atos, não seria somente a declaração de incapacidade absoluta meio de proteção eficaz?844 Destaque-se a inexistência de consenso completo entre os Estados Partes sobre a plena capacidade civil das pessoas com deficiência. A Alemanha indicou que não compartilha da premissa básica do Comitê sobre o art. 12 da Convenção de considerar a capacidade jurídica no sentido de capacidade de gozo. França e Dinamarca afirmaram, por sua vez, que o Comitê pretendeu suprimir o modelo de substituição em vários casos nos quais não era possível alcançar um modelo de acompanhamento.845 A posição radical do Comitê de vedar a aplicação do modelo de tomada de decisão por substituição para pessoas com deficiência suscitou resistência em diversos Estados. Todavia, é preciso considerar o conceito de pessoa com deficiência adotado por esse tratado, 843 STOLZE, Pablo. Deficiência não é causa de incapacidade relativa: a brecha autofágica. Direito UNIFACS – Debate Virtual, n. 195, 2016. p. 5. 844 O autor Fernando Gaburri (2016, p.127) coloca essa questão como uma afirmação, defendendo que em determinados casos seria razoável a declaração de incapacidade absoluta. 845 SALMÓN, op cit, p. 213. 267 que não abrange os casos graves, nos quais a participação social não é possível, mesmo em face da superação das barreiras sociais. No Brasil, embora a Lei n. 13.146/2015 pareça ter obstado a declaração de incapacidade da pessoa com deficiência, ela permite a sua sujeição à curatela. Conforme art. 84, § 1º, a pessoa com deficiência pode ser submetida à curatela quando necessário. Conforme art. 85, essa medida será proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, estabelecida pelo menor tempo possível e restrita aos atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. Assim, o Estatuto promove a eliminação da relação entre medidas de proteção e reconhecimento da incapacidade, pois a pessoa com deficiência poderá ser curatelada independente de ser declarada incapaz. Observe-se que nesse caso trata-se de curatela de pessoa capaz, porquanto o Estatuto, no art. 84, declara a plena capacidade das pessoas com deficiência, ainda que submetidas extraordinariamente à curatela.846 Sob essa ótica, não faz mais sentido o raciocínio com base na relação causa-efeito: aos absolutamente incapazes se aplica a curatela com representação e para os relativamente incapazes a curatela sob assistência. Abandona-se o paradigma enfermidade/interdição para serem oferecidos instrumentos de auxílio e proteção flexíveis,, adequados às características concretas de cada beneficiário, de modo a valorizar a margem de autonomia decisória realizável por cada pessoa. Assim, cumprem-se os objetivos da Convenção de Nova York (2006), 847 visto que caberá ao juiz definir na sentença os limites da curatela, baseado-se principalmente na avaliação da equipe multiprofissional.848 Esta auxiliará na criação de um projeto terapêutico individualizado, com regras específicas voltadas àquele indivíduo, no qual serão definidos os atos e atividades que serão objeto de preservação da autonomia; as situações envolvendo 846SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte II). Revista Consultor Jurídico, 7 de agosto de 2015. Disponível em: Acesso em: 13 fev. 2017. Não paginado. 847 ROSENVALD, Nelson. Aplicação no Brasil da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Actualidad Jurídica Iberoamericana- IDIBE, n. 4. Jul. 2016. Disponível em: Acesso em 26 fev. 2017. p. 140 848 ARAUJO, Luiz Alberto David; DA COSTA FILHO, Waldir Macieira. A Lei 13.146/2015 (o estatuto da pessoa com deficiência ou a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência) e sua efetividade. Direito e Desenvolvimento, v. 7, n. 1, p. 12-30, 2016. Disponível em Acesso em: 27 fev. 2017. p. 24 268 questões patrimoniais nas quais a pessoa será assistida; e, finalmente, as hipóteses em que será representada.849 Observe-se que se uma pessoa com deficiência mental ou intelectual grave não tem condições de compreender o significado dos seus atos, o magistrado poderá definir a representação para todos os atos na esfera patrimonial. Contudo, essa restrição não corresponde àquela praticada na interdição absoluta, na qual o curador tinha poder de decisão para todas as esferas da vida do interditado, podendo inclusive pleitear a sua esterilização forçada.850 O Estatuto é cristalino ao ressaltar que a curatela é restrita aos atos patrimoniais e em assegurar, no art. 6°, o direito das pessoas com deficiência a vida sexual e reprodutiva; a conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; a constituição de casamento e união estável, dentre outros direitos que não podem ser retirados de qualquer ser humano. Portanto, não existe mais, no ordenamento jurídico brasileiro, a interdição absoluta nos moldes praticados anteriormente, ou seja, um desproporcional processo de supressão de direitos fundamentais. Uma vez que a real capacidade da pessoa não era avaliada para servir de parâmetro para o grau da restrição em seus direitos, bastava um diagnóstico médico para que toda a sua autonomia fosse retirada. Ademais, o tempo de duração dessa medida não era previsto, nem hipóteses de levantamento da interdição em caso de progresso do interditado. 851 Com o Estatuto, a curatela deixa de ser uma medida de restrição de direitos para se tornar um mecanismo de apoio, cuja intensidade dependerá das necessidades de cada indivíduo. Dessa forma, atinge-se o equilíbrio entre a exigência de proteção da autonomia do sujeito e a sua proteção e segurança jurídica.852 De modo que o contrato assinado exclusivamente por deficiente capaz, mas sob curatela, será nulo se o juiz tiver fixar em 849 Ibidem, p. 21. 850 Nas observações sobre o relatório do Brasil, o Comitê ressaltou está profundamente preocupado que as crianças e adultos com deficiência, cuja capacidade legal é restrita através de interdição possam ser esterilizados sem o seu consentimento livre e esclarecido, de acordo com a Lei nº 9263/1996. O Comitê recomenda ao Estado Parte tomar medidas para: rever imediatamente a Lei nº 9263/1996 e explicitamente proibir incondicionalmente a esterilização de pessoas com deficiência, na ausência de seu consentimento prévio, livre e plenamente informado. (UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016.) 851 “Nos moldes do Código Civil de 2002, a “interdição” seguramente ostentava o posto de mais grave sanção punitiva do direito brasileiro: ao contrário da prisão, não havia proporcionalidade entre o delito e o apenamento; inexistia previsão de duração da pena, assim como progressão de regime, revisão de condições ou qualquer benefício no transcurso de seu cumprimento. Em regra, ela era vitalícia e desprovida de controle sobre a situação pessoal do interdito e fiscalização do comportamento do curador.” (ROSENVALD, Nelson. Aplicação no Brasil da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, p.141). 852 ROSENVALD, Nelson. Aplicação no Brasil da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, p. 132. 269 sentença a competência do curador para representação (aplicação do art. 166, I do CC por analogia) ou anulável se o juiz tiver lhe atribuído o encargo da assistência (aplicação do art. 171, I do CC por analogia).853 Importante ressaltar que em consonância com essa ideia, o Novo Código de Processo Civil de 2015 prevê, no art. 755, que os limites da curatela deverão ser fixados pelo juiz, de acordo com o estado e o desenvolvimento mental do interdito e considerando suas características pessoais, potencialidades, habilidades, vontades e preferências. Embora utilize o termo “interdição”, instituto revogado pelo Estatuto, o diploma processual apresenta dispositivos que vão ao encontro dos objetivos da Convenção. Como, por exemplo, o art. 753 determina que o laudo pericial deve indicar especificadamente, se for o caso, os atos para os quais haverá necessidade de curatela. Sublinhe-se que o novo CPC reflete as ideias da Convenção da ONU de que a deficiência é o resultado das interações entre as disfunções biológicas do indivíduo e as condições socioambientais em que vive. Nesse contexto, a deficiência pode ser superada através do rompimento das barreiras ambientais que dificultam a integração plena e efetiva da pessoa com deficiência. Essa concepção encontra-se implícita na previsão, do art. 756, sobre o levantamento parcial da interdição, quando demonstrada a capacidade do interdito para praticar alguns atos da vida civil. Consolidando, ainda mais, esse entendimento, o art. 758 estabelece que o curador deverá buscar tratamento e apoio apropriado para a conquista da autonomia pelo interdito. Contudo, apesar do novo CPC e do Estatuto terem buscado se alinhar a Convenção de Nova York (2006), constata-se alguns descompassos entre eles, pois o diploma processual revogou os artigos 1.768 a 1.773 do Código Civil sobre a curatela. Enquanto o Estatuto, publicado posteriormente ao diploma processual, restaura os artigos do Código Civil revogados por este, atribuindo-lhes nova redação.854 Outro descompasso diz respeito ao art. 748 do CPC, que estabelece a legitimidade do Ministério Público para promover a interdição apenas nos casos de doença mental grave e de forma subsidiária, se os demais legitimados não o fizerem. Enquanto o Estatuto é mais 853SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte II). Revista Consultor Jurídico, 7 de agosto de 2015. Disponível em: Acesso em: 13 fev. 2017. Não paginado. 854 LÔBO, Paulo. Com avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes. Revista Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2015. Disponível em: Acesso em: 3 abril. 2016. Não paginado. 270 amplo ao mencionar a legitimidade do Parquet, determinando esta para qualquer caso de deficiência mental ou intelectual e não apenas subsidiariamente. Ademais, o Estatuto acrescenta a legitimidade da própria pessoa com deficiência, criando a figura da auto- curatela. Esse é apenas um exemplo dos diversos “atropelamentos legislativos” entre os dois diplomas.855 A solução para essas questões parece residir nas regras de direito intertemporal, na medida em que as duas normas estabelecem vocatio legis distintas: o Estatuto entrou em vigor no dia 3 de janeiro de 2016 (180 dias) e o novo CPC no dia 17 de março de 2016 (um ano). Assim, os artigos 1.768 a 1.773 do Código Civil, relativos à curatela, terão nova redação pelo Estatuto, mas apenas produzirão efeitos durante dois meses e quatorze dias, sendo revogados com a entrada em vigor do novo CPC.856 Esse é o raciocínio com base no critério cronológico, considerando que as normas são de mesma hierarquia. Entretanto, alternativa mais razoável seria adotar o critério da especialidade, visto que o Estatuto é norma especializada para as pessoas com deficiência, cuja proteção tem força constitucional, portanto, deve prevalecer sobre a norma de processo. Por exemplo, o art.753, §1º do CPC dispõe que “poderá ser realizada a perícia por equipe multidisciplinar”; mas por força do Estatuto, quando for uma pessoa com deficiência a ser curatelada, existe a obrigatoriedade da presença da equipe multidisciplinar e da aplicação da avaliação biopsicossocial.857 Como observado, será através da prática que as contradições entre os dois diplomas serão solucionadas, sempre tendo em vista a razoabilidade da aplicação das normas. Destaque-se que a curatela é um dos mecanismos de apoio, o Estatuto também prevê a “tomada de decisão apoiada” para as pessoas com deficiência que possuem capacidade de agir e tem legitimidade para pessoalmente requerer essa medida.858 Trata-se de um suporte mais flexível que a curatela, pois só pode ser solicitado pela própria pessoa com deficiência, e 855O termo “atropelamento legislativo é utilizado pelo civilista Flávio Tartuce: “Todas essas considerações e comparações revelam uma grande confusão legislativa, um verdadeiro caos pelo atropelamento de leis sucessivas e sem o devido cuidado dos seus elaboradores. (...) Como se nota, o trabalho dos civilistas e processualistas – sem falar dos operadores e julgadores que lidam com os casos práticos no seu cotidiano jurídico – será grande e intenso nos próximos anos, com o fim de sanar todas essas controvérsias e curar os feridos pelos atropelamentos da lei. Tudo está muito confuso, deixando-nos perdidos.” TARTUCE, Flávio. Alterações do Código Civil pela lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Repercussões para o Direito de Família e Confrontações com o Novo CPC. Parte II. Migalhas, 29 de julho de 2015. Disponível em: Aceso em: 11 fev. 2017. Não paginado. 856 LÔBO, op cit, não paginado. 857 ARAÚJO e COSTA FILHO. A Lei 13.146/2015 (o Estatuto da Pessoa com Deficiência ou a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) e sua efetividade, p. 28. 858 GABURRI, Fernando. Capacidade civil e tomada de decisão apoiada: implicações do Estatuto da Pessoa com Deficiência no Direito Civil. Direito e Desenvolvimento, v. 7, n. 13, p. 118-135, 2016. 2016. Disponível em: < https://periodicos.unipe.br/index.php/direitoedesenvolvimento/article/view/711> Acesso em: 10 fev. 2017. p. 130. 271 cabe a esta estabelecer os seus termos através de um acordo com os apoiadores. Enquanto a curatela pode ser promovida pela pessoa com deficiência, mas também por terceiros como cônjuge, familiares e pelo Ministério Público nos casos de deficiência mental ou intelectual; e os limites são estabelecidos pelo magistrado. A tomada de decisão apoiada, prevista no art. 183-A do Código Civil, acrescentado pelo art. 114 do Estatuto, é um negócio jurídico plurilateral859 firmado entre a pessoa com deficiência e duas ou mais pessoas de sua confiança, com as quais mantenha vínculos, para auxiliá-la no exercício da sua capacidade civil. Importante salientar que os atos serão realizados pelo sujeito com deficiência, o papel dos apoiadores é prestar as informações necessárias e esclarecer dúvidas para o apoiado tomar suas decisões com segurança e sem riscos de prejuízos. A formalização desse negócio jurídico ocorre através de requerimento ao juiz competente, acompanhado do termo do acordo, no qual deve constar a indicação dos apoiadores pela pessoa com deficiência, os limites do apoio, o compromisso daqueles de respeitar a vontade, os direitos e os interesses do apoiado e o prazo de vigência. Antes de proceder à homologação, o juiz irá avaliar se o pedido é pertinente e se os acompanhantes indicados possuem condições legais, técnicas e morais para assumir a responsabilidade de orientar o interessado nos atos que demandem suporte. 860 Ademais, o apoio prestado deve estimular a capacidade de agir e a autodeterminação da pessoa beneficiada,861 cumprindo com os objetivos da Convenção de promover a autonomia desses indivíduos, possibilitando-lhes aprender a fazer escolhas e se responsabilizar por elas. Pode-se considerar que esse tratado internacional, ao determinar o dever dos Estados de providenciar os sistemas de apoio necessários para as pessoas com deficiência exercerem a sua capacidade civil, adota o pressuposto de acordo com o qual a autonomia não se encontra ausente nessas pessoas, mas apenas não desenvolvida. Como observado, as alterações legislativas empreendidas pelo Estatuto para adequar as normas sobre capacidade civil à Convenção de Nova York, pelo menos em abstrato, buscam efetivar os objetivos estabelecidos no tratado com status constitucional. No entanto, ainda possuem algumas lacunas que dificultam a sua aplicação na prática, principalmente em 859 Ibidem, p.13. 860 COSTA, FILHO, Waldir Macieira da Costa. Do reconhecimento igual perante a lei. In: In: . LEITE, Flávia Piva Almeida et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. Cap. II – Parte Especial, p. 362-379. p. 365. 861 ROSENVALD, Nelson. A tomada de decisão apoiada – primeiras linhas sobre um novo modelo jurídico promocional da pessoa com deficiência. In: Revista IBDFAM: Família e Sucessões, Belo Horizonte, v. 10, jul./ago. 2015. p. 14. 272 relação ao instituto da curatela. Estas serão preenchidas não apenas por novas alterações legislativas, mas também pela jurisprudência e pela doutrina, que constroem paulatinamente o entendimento sobre a lei, tornando-a adequada à realidade social. Nesse contexto, é importante colocar em relevo que o preparo das pessoas com deficiência para o exercício da sua autonomia não está restrito à capacidade civil, é uma questão de maior amplitude que abrange fundamentalmente a educação. Dessa forma, passa- se a analisar os mecanismos dispostos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência para efetivar esse direito. § 3. A construção de um sistema educacional inclusivo O Direito das pessoas com deficiência à educação no Brasil era permeado por uma série de ambigüidades legislativas, que permitiam a existência de um sistema educacional misto, ou seja, um sistema regular de ensino para as pessoas sem deficiência e uma rede de instituições especializadas para os alunos com deficiência. A articulação entre esses dois arranjos encontrava-se implícita em uma expressão dúbia, no art. 208, III, da Constituição Federal, que determina como dever do Estado garantir “o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente, na rede regular de ensino.” Assim, a inclusão do educando com deficiência no ensino regular foi incorporada na Lei Nacional de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/1996) como uma possibilidade e não como um direito. 862 Enquanto a Convenção de Nova York (2006) apresenta como obrigação dos Estados Partes implementar um sistema educacional inclusivo e assegurar o direito dos alunos de não serem excluídos da rede geral de ensino por motivo de deficiência. Vale salientar a diferença significativa entre o que vem a ser educação inclusiva e sistema educacional inclusivo. Este exige ações direcionadas e planificadas no âmbito político, pedagógico, administrativo e financeiro e requer uma visão global da educação ao invés de uma compreensão particularizada.863 O maior desafio é repensar o modo de educar para incluir não apenas as pessoas com deficiência, mas todo e qualquer aspecto do ser humano que representa a diversidade. 862 Vide: Cap. 2, Seção II, § 4º A ambiguidade da legislação interna sobre educação inclusiva. 863 FERREIRA , Luiz Antônio Miguel. Do Direito à Educação. In: . LEITE, Flávia Piva Almeida et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 158. 273 Ao dividir os alunos por classes, utilizando como critério a faixa-etária, a escola se estruturou com base na ideia do ensino homogêneo, igual para todos. Dessa forma, alicerçando-se na suposição de que as salas de aula eram compostas por alunos iguais, com o mesmo ritmo de aprendizagem, nível escolar e econômico, a escola desconsiderava as diferenças existentes, seja do ponto de vista biológico, cultural, racial ou econômico, aniquilando quase completamente o processo de formação da identidade pessoal.864 Esse mecanismo era uma forma da instituição não se responsabilizar pelo fracasso escolar, pois presente condições semelhantes, se um dos alunos não consegue acompanhar a turma, o problema está nele, que não se esforça o suficiente ou tem alguma disfunção de ordem biológica a ser tratada fora do âmbito escolar.865 Sob essa ótica, a escola adentrou na era da inclusão sem precisar desconstruir os valores com que atribuía significado às dificuldades escolares do aluno a partir de uma perspectiva excludente, pois não se chegou a discutir o sujeito da educação inclusiva. Uma vez que o processo político de inclusão ocorreu exclusivamente nas esferas formal, legislativa e administrativa.866 É no sentido inverso que preleciona a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e a Lei 13.146/2015, art. 27, ao dispor sobre o dever da educação de desenvolver ao máximo os talentos e habilidades do aluno com deficiência, de acordo com as suas características, interesses e necessidades de aprendizagem. Esse comando normativo exige uma reformulação no modo de compreender o processo de ensino e aprendizagem. Reconstruir os fundamentos e a estrutura organizacional das escolas na direção de uma educação de qualidade para todos remete a questões relacionadas à especificidade dos conteúdos escolares e a subjetividade do aprendiz. Sob essa ótica, requer um sistema duplo de interpretação do ato de educar, referendado por pressupostos de natureza epistemológica e psicológica, para possibilitar a concretização de propostas inovadoras capazes de reverter a prática tradicional das salas de aula. Assim, transformar o meio escolar em ambientes acolhedores implica adotar uma dialética educativa que respeite os caminhos das descobertas 864 OLIVEIRA, Anna Augusta Sampaio de; LEITE, Lucia Pereira. Construção de um sistema educacional inclusivo: um desafio político-pedagógico. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, n. 57, p. 511-524, out/dez. 2007. Disponível em: Acesso: 5 dez.2016. p. 517. 865 O problema está, então, no fato de que a adoção dos inúmeros distúrbios de aprendizagem para explicar estados de fracasso escolar exige que se compreenda a experiência de ensino-aprendizagem da mesma forma que as demais ciências compreendem a experiência de desenvolvimento humano. Os conteúdos programáticos deixam, portanto, de ser saberes culturalmente motivados, para serem compreendidos como experiências essenciais de desenvolvimento. SENNA, Luiz Antônio Gomes, Formação docente e educação inclusiva. Cadernos de Pesquisa. v. 38, n. 133. Jan/abril. 2008. p. 199. 866 SENNA, op cit, p.202. 274 e, portanto, as respostas que o aluno é capaz de dar para resolver uma situação-problema ou para realizar uma tarefa. Trata-se de não acelerar o processo de aprendizagem em nome de uma suposta homogeneidade da classe, e sim propiciar a todos o tempo necessário para a aprendizagem efetiva. 867 É seguindo essa perspectiva, que deve ser oferecido ao aluno com deficiência os suportes necessários para a aprendizagem do conteúdo ensinado na sala regular. Como dispõe o inciso III do art. 27 do Estatuto, não é necessário criar um currículo a parte para os alunos com deficiência, mas redefinir o projeto pedagógico para que através do atendimento educacional especializado e demais suportes seja garantido o pleno acesso ao currículo regular.868 O referido dispositivo inclui dentre os apoios: medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social (inciso V); medidas de que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, de acordo com o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência (IX); tradutores e intérpretes de Libras (X); oferta de ensino de Libras, do Sistema Braille e do uso de recursos de tecnologia assistiva, de forma a ampliar habilidades funcionais dos estudantes, promovendo sua autonomia e participação (XII); e oferta de profissionais de apoio escolar (XVII). Com efeito, a escola inclusiva se caracteriza por receber, simultaneamente, na mesma sala de aula, pessoas com e sem deficiência, fomentando a interação entre ambos para construção de uma prática educativa fundamentada nos direitos humanos e nos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade. A escola inclusiva trabalha a disciplina com base em "combinados" entre os alunos e dirigentes, oriundos da conscientização do respeito aos direitos de todos, atendendo ao valor da liberdade com responsabilidade. E para lidar com diferentes habilidades e limitações na mesma turma, os educadores estimulam a cooperação 867 MANTOAN, Maria Teresa Egler. Abrindo a escola às diferenças. In: MANTOAN, Maria Teresa Egler (Org). Pensando e fazendo educação de qualidade. São Paulo: Moderna, 2001. Cap. 5. p. 40. 868 A Declaração de Salamanca, realizada em 1994, ao abordar a Educação de pessoas com necessidades especiais, dispôs, no art. 26, que o currículo deveria ser adaptado às necessidades das crianças e não o contrário. Escolas deveriam, portanto, prover oportunidades curriculares que sejam apropriadas à criança com habilidades e interesses diferentes. O art. 27 estabelece que crianças com necessidades especiais deveriam receber apoio instrucional adicional no contexto do currículo regular e não de um currículo diferente. O Princípio regulador deveria ser o de providenciar a mesma educação a todas as crianças e também prover assistência adicional e apoio às crianças que assim o requeiram. FARIAS, Cristiano Chaves, de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO. Do Direito à educação. In: FARIAS, Cristiano Chaves, de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado: artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodvm, 2016. Cap. IV. p. 96-119. 275 entre os alunos, fazendo com que cada um sinta empatia pelo outro, em um verdadeiro exercício de fraternidade. 869 Destaque-se que a inclusão não está restrita à sala de aula, construir um sistema educacional inclusivo significa expandir o processo de inclusão a todos os âmbitos da vida escolar. Para isso, o Estatuto (Lei. n. 13.146/2015) determina a participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias nas diversas instâncias de atuação da comunidade escolar (art. 27, VIII); o acesso da pessoa com deficiência, em igualdade de condições, aos jogos e às atividades recreativas, esportivas e de lazer desenvolvidas pela e na escola (XV); acessibilidade para todos os estudantes e demais integrantes da comunidade escolar às edificações, aos ambientes e às atividades concernentes a todas as modalidades, etapas e níveis de ensino (XVI). Não só os espaços físicos e o currículo escolar devem ser acessíveis, mas, sobretudo, os recursos humanos compostos por professores, técnicos e funcionários. Todos devem estar aptos para acolher os alunos com deficiência, respeitar os seus limites e estimular a convivência saudável com as diferenças. Esse é um dos aspectos mais problemáticos da almejada inclusão, pois o “despreparo” para lidar com o educando com necessidades específicas é utilizado, muitas vezes, como pretexto para se afastar das metas da inclusão plena previstas na Convenção da ONU e no Estatuto da pessoa com Deficiência. O álibi da falta de preparo permite aos críticos da educação inclusiva não se colocar abertamente contra essa prática, ao afirmarem que são a favor de uma inclusão "com responsabilidade". A consequência desse discurso bastante palatável é a permissão para a escola continuar selecionando apenas os alunos para os quais ela se julga previamente capacitada para receber.870 Para contornar essa situação, o Estatuto prevê, no art. 27, a reformulação da grade curricular dos cursos de magistério, determinando a inserção de temas relacionados à pessoa com deficiência nos cursos de nível superior e de educação profissional, técnica e tecnológica (XIV); bem como a adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento educacional especializado (X). Ademais, o art. 28 do Estatuto destaca como dever do Poder Público criar, desenvolver, implementar e avaliar o sistema educacional inclusivo, pois a educação inclusiva já foi deveras abordada no plano legislativo, agora é necessário efetivá-la. Para isso a Lei n. 13.146/15 especifica as ações do Estado que abrange todo o ciclo de uma política pública. 869 FÁVERO, op cit, p. 33. 870 FÁVERO, op cit, p. 33. 276 Observe-se que o dispositivo acrescenta os verbos “assegurar, incentivar e acompanhar,” ações desempenhadas em relação aos atores não estatais que também devem estar comprometidos com essa implementação. Nessa direção, o § 1° do referido dispositivo enuncia que as instituições privadas de qualquer nível e modalidade de ensino devem cumprir com todos os deveres enunciados no art. 27, com exceção da oferta do ensino de Libras e do sistema Braille (XII) e de educação bilíngüe (IV); e pesquisas para o desenvolvimento de recursos de tecnologia assistiva (VI). Além disso, veda-se a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza nas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações. Dessa forma, o Estatuto estabelece a responsabilidade compartilhada do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade para assegurar a educação de qualidade à pessoa com deficiência, protegendo-a de todas as formas de discriminação, conforme o parágrafo único do dispositivo citado. Sublinhe-se que essas disposições atingiram as raízes mais profundas da problemática da educação inclusiva, pois implicam o dever de todos de arcar com os custos das mudanças necessárias para incluir esse grupo em todo o sistema educacional e não apenas na rede pública. Isso desencadeou a resistência das escolas particulares, que através da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN), impetraram a Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI n. 5.357 contra o § 1º do art. 28 e o art. 30 do Estatuto da Pessoa com Deficiência.871 As escolas particulares alegaram que o art. 206, III, da Constituição Federal, ao enumerar os princípios do ensino, inclui “o pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.” A partir desse enunciado normativo, foi defendida a existência de duas redes ou sistemas: uma mantida diretamente pelo Estado, no modelo e padrões que adotar; e outra mantida pela livre iniciativa, nos moldes que escolher. Sustentou-se que o art. 209 da Carta Magna dispõe ser o ensino livre a iniciativa privada, desde que cumpridas as normas gerais da educação nacional, tenha autorização de funcionamento e avaliação de qualidade pelo Poder Público. Ademais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, no art. 7°, acrescenta a esses requisitos a capacidade de autofinanciamento. A CONFENEM destaca que, de acordo com os comandos legais, a atividade desenvolvida pelas escolas particulares não é concedida ou delegada pelo Poder 871Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5357- DF (0005187-75.2015.1.00.0000). Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, 18 de novembro de 2015. Lex: Diário da Justiça Eletrônico, de 20 de novembro de 2015. Disponível em:< http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp> Acesso em: 10 fev. 2017. 277 Público, portanto, não cabe ao Estado exigir contraprestação. Ele simplesmente autoriza o exercício de serviço de natureza pública pelo particular, na forma da lei. A petição inicial ressaltou que, no art. 208 da Carta Magna, o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência (preferencialmente, na rede regular de ensino) é apresentado como dever do Estado. Assim, os dispositivos atacados da Lei n.13.146/2015, que não é uma norma geral sobre educação, buscam repassar ao ensino de livre iniciativa uma responsabilidade conferida constitucionalmente ao ente estatal. Nesse sentido, foi alegado que a rede estadual tem melhores condições de atender ao aluno com deficiência, uma vez que a inclusão requer equipamentos, serviços de profissionais especializados, recursos didáticos, acompanhantes, atendentes. Recursos que se traduzem em custos inimagináveis, impossíveis de serem suportados e rateados por todos os alunos através das anuidades escolares. Enquanto o Estado pode trabalhar em economia de escala, centralizando pessoal e equipamentos em instituições próprias, capazes de atender todos os alunos com deficiência das inúmeras escolas de sua imensa rede pública, inclusive com convênio dos vários entes da Federação. Ademais, enfatizou-se a ofensa ao princípio da razoabilidade em obrigar a escola comum, não especializada e despreparada, a receber todo e qualquer portador de necessidade especial, de qualquer natureza, grau ou profundidade. Causando, além de desequilíbrio orçamentário, a instabilidade emocional dos professores e funcionários em face da frustração de não estarem capacitados para prestar esse serviço, o que irá gerar desemprego e fechamento de varias escolas particulares. Por outro viés, também se colocou em relevo a violação ao princípio da igualdade, pois para assegurar a dignidade de um grupo, estava sendo desrespeitado os direitos das famílias dos demais alunos, cujo orçamento doméstico será comprometido com o aumento das mensalidades; dos professores e gestores da escola, sujeitos a processo criminal pela recusa de matrícula, Lei 7.853/89, art. 8°; e dos próprios educandos com deficiência a quem será prometida uma educação inclusiva impossível de ser efetivada na prática. A Petição inicial foi acompanhada de pedido de concessão de liminar para afastar a aplicação dos dispositivos questionados até o julgamento do mérito, permitindo às escolas particulares realizarem a matrícula para o próximo período letivo sem cumprir a obrigação de acolher os alunos com deficiência. Como observado, o Estatuto da Pessoa com Deficiência dispôs detalhadamente sobre os mecanismos para efetivar a inclusão escolar, estando essa lei apta a produzir efeitos jurídicos e cumprir com os objetivos da Convenção de Nova York (2006). Essa norma possui, 278 portanto, eficácia jurídica. Contudo, é preciso considerar, como ressaltou o Ministro Gilmar Mendes, em seu voto, que a eficácia social da norma, mais precisamente o seu cumprimento espontâneo pelos destinatários, depende da convicção destes da sua obrigatoriedade e esta nasce a partir de uma consciência social872 acerca da necessidade de realizar o valor traduzido pelo comando normativo.873 A impetração dessa Ação Direta de Inconstitucionalidade demonstra que embora a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência tenha supremacia constitucional, os valores por ela veiculados ainda estão passando por um processo de sedimentação e assimilação pela sociedade brasileira, uma vez que representam um rompimento com o modelo médico de compreender a deficiência, já consagrado na legislação e incorporado pela consciência coletiva. Destaque-se que a exclusão dos alunos com deficiência e sua educação segregada em instituições especializadas é uma concepção construída no curso sócio-histórico e naturalizada como prática atemporal.874 Assim, a desconstrução dessa ideia demanda tempo e esforço dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário que devem positivar, implementar e assegurar, respectivamente, os novos valores do paradigma biopsicossocial da deficiência introduzido pela Convenção em exame. Vale salientar que a Supremacia da Constituição depende de um ato humano de reconhecimento traduzido em duas vertentes interpretativas: uma existencial e outra intelectual. Esta consiste no ato de intelecção do discurso constitucional praticado pelo destinatário da norma. Enquanto o reconhecimento no campo existencial está atrelado à conduta das pessoas, consciente ou não, no sentido do cumprimento das disposições contidas naquele discurso, de modo a efetivar a referida supremacia. 875 Nesse contexto, emerge a importância da Corte Constitucional em reafirmar a superioridade das normas constitucionais, principalmente, nas ocasiões de mudança dos paradigmas norteadores da legislação. Através da atividade hermenêutica exercida pelos 872Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5357- DF (0005187-75.2015.1.00.0000). Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, 18 de novembro de 2015. Lex: : Diário da Justiça Eletrônico, de 20 de novembro de 2015. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp> Acesso em: 10 fev. 2017. 873 Existe sempre um valor iluminando a regra jurídica, como fonte primordial de uma obrigatoriedade. Todo o ordenamento jurídico de um povo origina-se de valores e deles recebe seu sentido e significado. Se tirarmos do Direito Civil ou do Direito Penal a força axiológica que os sustém, será impossível compreender satisfatoriamente o problema da "normatividade". (REALE, op cit, p.594). 874 ASSUNÇÃO, Candice Aparecida Rodrigues. A ideologia na legislação da educação inclusiva. Dissertação (Mestrado em Lingüística)- Universidade de Brasília, Brasília, 2007. p. 97. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/1151> Acesso em: 24 fev. 2017. 875 FERRAZ, júnior; SAMPAIO, Tércio et al. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989. p. 100. 279 ministros do Supremo Tribunal Federal são tecidos novos modos de pensar o direito, dissipando as resistência que insurgem em face das mudanças legislativas que implicam novas práticas e desafios. Destarte “o reajustamento permanente das leis aos fatos e às exigências da justiça é um dever dos que legislam, mas não é dever menor por parte daqueles que têm a missão de interpretar as leis para mantê-las em vida autêntica.”876 Sob essa perspectiva, ressalta-se a importância de apresentar as principais considerações dos Ministros da Suprema Corte no julgamento da ADI n.5357/2015. O Relator Ministro Edson Fachin destacou, em decisão monocrática sobre a cautelar, que a liberdade da iniciativa privada para prestar o serviço público educacional é limitada pelos condicionantes do art. 209 da Carta Magna, a saber, autorização, avaliação de qualidade pelo Poder Público e cumprimento das normas gerais da educação nacional. Estas incluem não apenas a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, mas também as normas gerais dispostas na própria Constituição. Nesta encontra-se prevista, em diversos dispositivos, a proteção da pessoa com deficiência; bem como as normas de status constitucional como a Convenção de Nova York (2006), cujos dispositivos estabelecem a meta da inclusão plena e veda a exclusão desses indivíduos do sistema educacional geral sob o pretexto de sua deficiência. Foi ressaltado que a inclusão não é apenas um direito das pessoas com deficiência, mas também dos demais cidadãos de conviver com a pluralidade. Esta é a base de uma democracia, através da qual se desenvolve a tolerância e a solidariedade. Lembrou-se do objetivo fundamental da República, art. 3° da CF, “construir uma sociedade livre, justa e solidária.” No que tange à limiar, o juízo de improcedência pautou-se no fato de que o ensino inclusivo não é uma ideia recente no Brasil, mas uma política pública estável, produto de um processo evolutivo no âmbito nacional e internacional e foi incorporada como regra à Constituição de 1988. Ademais, o Ministro ponderou que os argumentos econômicos apresentados pela requerente são desprovidos de dados concretos que lhes dê sustentação. Portanto, foram usados de maneira meramente retórica, não restando demonstrado o “periculum in mora”. Contudo, sublinhou-se a existência do perigo inverso de, ao se conceder às escolas particulares a permissão para discriminar os alunos com deficiência, criar um “privilégio odioso” o qual será reivindicado pelos demais agentes econômicos. 876 REALE, op cit, p.611. 280 No julgamento do mérito, foi decidido, por unanimidade, pela improcedência da ação. A Ministra Rosa Weber ressaltou que a alusão, no inciso III do artigo 206 do texto constitucional, à “coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” sinaliza que ambas as instituições encontram-se no mesmo patamar e igualmente submetidas às normas gerais da educação nacional. A Ministra destacou o compromisso internacional assumido pelo Brasil com a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, inclusive citou trechos das observações do relatório do Comitê da Convenção: 44. O Comitê está preocupado que a matrícula de crianças com deficiência seja recusada em escolas, ou sejam cobradas taxas extras. Além disso, o Comitê está preocupado com a falta de acomodação razoável e ambientes escolares acessíveis no sistema de ensino regular. 45. O Comitê recomenda que o Estado Parte intensifique os seus esforços com dotações orçamentárias adequadas para consolidar um sistema de educação inclusiva de qualidade. Ele também recomenda a implementação de um mecanismo para proibir, fiscalizar e sancionar a discriminação com base na deficiência nos sistemas de ensino público e privado, e de prever adaptações razoáveis e acessibilidade em todas as instalações educacionais.877 O Ministro Luiz Fux observou que a educação enquanto direito de todos para se efetivar depende da colaboração de toda a sociedade, o que abrange as escolas públicas e privadas. Estas últimas, exatamente por se manterem a partir do lucro, têm condições de receberem os alunos com deficiência. E embora tenham sido levantadas hipóteses extremas como o caso de crianças com surtos psicóticos que poderiam eventualmente abalar a saúde emocional das outras crianças. O Ministro afirmou que, na prática, esse não é um caso recorrente, pois os pais não “relegam os filhos a própria sorte” deixando-os sem tratamento. Antes de buscar inseri-los no ambiente escolar, os problemas psicológicos e psiquiátricos são acompanhados por profissionais da saúde. Nesse contexto, acrescente-se ao discurso do eminente Ministro, que nessa hipótese evidencia-se a exatidão do conceito de pessoa com deficiência do tratado internacional, porquanto o obstáculo à inclusão da criança com problemas psiquiátricos não são os seus sintomas, visto que estes podem ser controlados com os tratamentos médicos, mas sim o preconceito e o estigma social. Como explicitado, os Ministros buscaram fundamentar seus votos de modo a evidenciar a supremacia da Convenção enquanto norma incorporada com o status de emenda 877 UNITED NATIONS, Convention on the Rights of Persons with Disabilities. Committee on the Rights of Persons with Disabilities. Concluding observations on the initial report of Brazil, 4 September 2015. Disponível em: Acesso em: 04 abr. 2016. 281 constitucional. Mas sem deixar de ressaltar os fundamentos existentes na própria Constituição de 1988 que garantem a proteção e inclusão desse grupo. Assim, realizou-se o diálogo entre as fontes nacional e internacional. O único voto dissidente foi o do Ministro Marco Aurélio, que suscitou a superioridade da Constituição de 1988 sobre o texto convencional: A Convenção Internacional citada, não há a menor dúvida, é a única que ganhou envergadura de emenda constitucional. Mas será que a Convenção Internacional chegou ao ponto de interferir, com grandeza maior, na iniciativa privada? Chegou ao ponto de colocar, em segundo plano, a lei das leis, a Constituição Federal? Não, Presidente. Conforme consta do artigo 24 da Convenção, tem-se direcionamento: a adoção de providências, não pela iniciativa privada, mas pelos Estados Partes que viessem a subscrever a Convenção.878 O Ministro abordou os artigos 170 e 174 da Constituição, enfatizando os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República e da ordem econômica. Foi ressaltado que, no âmbito desta, o Estado atua como agente normativo e regulador, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento. Evidenciou-se a cláusula final do art. 174 “o planejamento é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.” Portanto, concluiu o Ministro, conforme a Carta Magna, as múltiplas providências previstas nos artigos 28 e 30 do Estatuto da Pessoa com Deficiência não são obrigatórias para as escolas particulares. Conforme constatado, o julgamento da ADI n. 5357/2015 é um importante precedente sobre a efetivação da Convenção de Nova York (2006), pois lança luzes sobre vários aspectos importantes acerca da sua eficácia normativa e social. Além de suscitar a problemática do papel a ser desempenhado pelos atores estatais e não estatais na implementação desse tratado, tema que merece ser analisado mais detidamente na seção a seguir. 878Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5357- DF (0005187-75.2015.1.00.0000). Relator: Ministro Edson Fachin. Brasília, 18 de novembro de 2015. Lex: Diário da Justiça Eletrônico, de 20 de novembro de 2015. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarConsolidada.asp> Acesso em: 10 fev. 2017. 282 Seção 2. A inclusão das pessoas com deficiência como dever da sociedade A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, ao consagrar o paradigma social, situa a deficiência como produto das barreiras sócio-ambientais que impõem dificuldades a participação desses indivíduos na sociedade. Dessa forma, a esta é atribuído o papel de remover esses obstáculos e possibilitar a inclusão desse grupo. Destaque- se que não se trata apenas de promover a integração, mas sim de construir uma sociedade inclusiva. Para tanto, será necessário o empenho de todas as funções estatais nas suas diversas esferas, bem como dos cidadãos, uma vez que a inclusão ocorre não apenas através dos espaços físicos, mas, sobretudo, por meio das relações pessoais. Nesse sentido, a presente seção aborda os mecanismos apresentados pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.246/2015) para efetivar os direitos desses sujeitos através da atividade Administrativa do Estado, evidenciando a nova perspectiva do Direito Administrativo que, permeada pelos valores constitucionais, busca a concretização da dignidade da pessoa humana. Por outro viés, analisa-se quais os fundamentos da intervenção do Estado nas relações entre os particulares para impor a estes o respeito pelos direitos das pessoas com deficiência. Sob esse prisma, enfatiza-se a teoria do efeito horizontal dos direitos fundamentais, principalmente, nas relações caracterizadas por um desequilíbrio de forças entre as partes, como é o caso das relações entre consumidor/empresário e trabalhador/empregador. Nesse âmbito, examina-se como o Estatuto da Pessoa com Deficiência protege esses sujeitos nesses contextos específicos. No que tange aos direitos das pessoas com deficiência nas relações entre particulares em igualdade de condições, serão explorados os dispositivos da Lei n. 13.146/2015 no campo do Direito Penal, abordando os novos tipos criados por essa legislação, bem como as modificações promovidas nas tipificações já existentes. 283 § 1. A inclusão como dever da Administração Pública O comprometimento de todas as funções estatais (Executiva, Legislativa e Judiciária) com os objetivos da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência encontra-se enunciado, no art. 4°, alínea (a), que determina a obrigação dos Estados Partes de adotar “todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção.” Ademais, a alínea (d) do referido dispositivo faz alusão expressa ao dever das autoridades públicas e instituições atuarem em conformidade com o tratado. A partir desse dispositivo, pode-se depreender que o Poder Executivo tem um compromisso com a efetivação das normas da Convenção de Nova York (2006) também através do desempenho das atividades administrativas. A administração pública compreende a estrutura estatal formada por pessoas jurídicas e órgãos responsáveis pela execução da vontade do Estado expressa na lei, com a finalidade de satisfazer os interesses públicos por meio da prestação de serviços essenciais à população, direta ou indiretamente; da restrição aos interesses e direitos individuais em prol do bem-estar coletivo por intermédio da atividade de polícia administrativa; intervenção no domínio econômico através, por exemplo, das empresas públicas e sociedade de economia mista; e pela atividade de fomento, que consiste na concessão de favores fiscais, financiamento e subvenções.879 Buscando concretizar os comandos da Convenção em estudo, o Estatuto da Pessoa com Deficiência instituiu mecanismos para a Administração Pública promover e proteger os direitos desses indivíduos em todas as suas áreas de atuação. Dessa forma, a referida lei contribui também para o processo de constitucionalização do Direito Administrativo. Este consiste em uma nova perspectiva dessa disciplina que revisa os seus pressupostos para transformar a atividade administrativa estatal também em um instrumento para a realização dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, valores consagrados pela Constituição de 1988 como estruturantes do ordenamento jurídico.880 Nessa seara, um dos conceitos basilares a ser reformulado é a concepção de interesse público, visto que em um Estado Democrático, no qual existe uma pluralidade de sujeitos com interesses contrapostos, aquele deixa de corresponder ao interesse privado comum e homogêneo da maioria da população. De modo que não existe um interesse público único e 879 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 55-57. 880 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009. p. 71. 284 cabe ao Estado promover o bem estar de todos, inclusive das minorias.881 Assim, a fórmula da supremacia e indisponibilidade do interesse público como critério para as decisões administrativas deve ser ponderada com a proteção dos direitos fundamentais. Ressalte-se que não se trata de defender a supremacia do indivíduo em face da coletividade,882 visto que os direitos fundamentais passam a ser mais um critério a ser considerado no exercício do poder discricionário do administrador, que deverá definir o conteúdo do interesse público, quando este não vier especificado na lei, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Sob esse prisma, o dever da Administração Pública de considerar os direitos das pessoas com deficiência em face de conflitos com o interesse público foi matéria analisada pelo Comitê da Convenção de Nova York (2006) em decisão, de 19 de abril de 2012, sobre o caso Sra. H.M. vs. Suécia. A autora apresenta um transtorno crônico dos tecidos conjuntivos (síndrome de Ehlers- Danlos) caracterizado por subluxações graves, deslocação das articulações, vasos sanguíneos frágeis, facilmente lesionados, e uma grave neuralgia crônica que a impossibilita de sair do seu domicílio, até mesmo para ser transportada para o hospital. A hidroterapia seria o único tipo de reabilitação capaz de deter o avanço da síndrome. Contudo, para construir uma piscina em sua casa seria necessário utilizar 65 metros quadrados de uma parcela do terreno vizinho, cuja construção estava proibida pelo plano urbanístico da cidade, que o classificou como área de proteção.883 A Sra. H.M pediu à prefeitura uma autorização para realizar a obra, que seria essencial para melhorar o seu estado de saúde. Todavia, a Prefeitura de Orebro negou o pedido e a decisão foi confirmada pelo Tribunal Administrativo de Apelação. Esgotados todos os recursos no plano nacional, a autora apresentou comunicação individual ao Comitê da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.884 O órgão do tratado destacou que esse ato administrativo configurou-se como discriminação contra a autora, pois, conforme a definição de “discriminação por motivo de 881 Um exemplo disso pode encontrar-se na hipótese do aumento do tráfego tornar necessária a duplicação de uma rodovia, devido ao congestionamento rodoviário que provoca atrasos, acidentes e poluição. É inegável a existência de interesse público em promover a duplicação. No entanto, a obra acarretará a necessidade de desmatamento de uma área florestal de preservação permanente, de grande valor ecológico, e existem sítios arqueológicos de valor inestimável que serão destruídos em virtude da duplicação. Ou a duplicação exige o deslocamento de grande quantidade de moradores de baixa renda, remetendo ao constrangimento do total afastamento desse grupo do núcleo urbano. Seria inquestionável a existência de interesses públicos potencialmente lesados em virtude dessa duplicação. Ou seja, as situações concretas demonstram a existência de vários interesses públicos, inclusive em conflito entre si. Logo, a decisão a ser tomada não poderá ser fundada na pura e simples invocação do interesse público. Pois estão em conflito diversos interesses públicos, todos em tese merecedores da qualificação de supremos e indisponíveis. (JUSTEN, 2009, p. 65) 882 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009. p. 69-71 883 SALMÓN, op ct, p. 222. 884 Ibidem, p. 222. 285 deficiência” do art. 2° da Convenção, impossibilitou o exercício de direitos e liberdades fundamentais pela pessoa com deficiência, em igualdade de oportunidade com as demais pessoas. Além disso, o Estado não evidenciou o ônus desproporcional ou indevido que a construção da piscina poderia ocasionar e se recusou a permitir a realização de uma adaptação razoável, que garantiria uma melhor qualidade de vida para a Sra. H.M. O Comitê sublinhou que uma lei aplicada com imparcialidade pode ter um efeito discriminatório, se não considerar as circunstâncias particulares dos indivíduos as quais se aplica. Desse modo, não houve proporcionalidade na decisão, que violou os artigos 3 a 5, 19, 25, 26 e 28 da Convenção de Nova York (2006).885 Esse caso evidencia a importância da atividade administrativa estatal também está atenta a observância e promoção dos direitos desse grupo. Nesse sentido, o Estatuto dispõe sobre vários mecanismos para efetivação dos direitos das pessoas com deficiência através das atividades da Administração Pública. Dessa forma, esta deixa de ter um papel coadjuvante, apenas respeitando tais direitos, e assume o dever de concretizá-los, condicionando financiamentos, licitações, contratos e licença para obras ao cumprimento, por exemplo, dos requisitos de acessibilidade. 886 Saliente-se que a Convenção considera a acessibilidade como princípio (art. 3°), portanto, diretriz para a aplicação e interpretação de todo o texto convencional; e também como direito (art. 9°), devendo ser implementado como garantia que possibilita à pessoa com deficiência viver com autonomia e participar de todos os âmbitos da vida social, visto que a acessibilidade se configura como porta de entrada para todos os demais direitos humanos, pois não tem como a pessoa com deficiência freqüentar a escola, o posto de saúde, a residência de amigos e familiares, se os espaços não forem acessíveis.887 Destaque-se que a Constituição de 1988, nos art. 227, § 2° e 244, remete ao legislador ordinário a disposição sobre normas que garantam acesso adequado a esses indivíduos nos logradouros e edifícios de uso público e a fabricação de veículos de transporte coletivo. Nesse sentido, a Lei n.10.048/2000 estabeleceu, no art. 4°, que os logradouros públicos e edifício de uso público deverão ser construídos de acordo com normas destinadas a facilitar o acesso das pessoas com deficiência. 885 SALMÓN, op cit, p. 222. 886 ARAUJO, Luiz Alberto David; COSTA , Waldir Macieira Filho, da. O Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPCD (Lei 13.146, de 06.07.2015): algumas novidades, p. 5. 887LEITE, Flávia Piva Almeida. Da Acessibilidade. In: LEITE, Flávia Piva Almeida. et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo:Saraiva, 2016. Cap. I, Título III, p. 236-239. p. 243. 286 O art. 5°, por sua vez, estabelece que os veículos de transporte coletivo a serem produzidos após doze meses da publicação desta lei serão planejados de forma a facilitar o acesso das pessoas com deficiência. As normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade foram definidas pela Lei n.10.098/2000, que estipulou o primeiro ano de sua vigência como início da implementação das adaptações, eliminações e supressões de barreiras arquitetônicas dos edifícios públicos. Entretanto, o Decreto Executivo n. 5.296/2004, extrapolando os seus limites regulamentares, estendeu o prazo para a adaptação dos veículos de transporte coletivo para 120 meses. Também o prazo para que os fabricantes passassem a produzir veículos acessíveis foi alterado para 24 meses, contados a partir da edição da norma técnica respectiva.888 Como observado, não falta no ordenamento jurídico brasileiro legislação sobre acessibilidade, o que se encontra ausente são instrumentos de fiscalização e coerção para garantir que tais normas sejam cumpridas, uma vez que todos os prazos para sua observância já foram esgotados e com a incorporação da Convenção de Nova York (2006), o Brasil pode ser responsabilizado internacionalmente pela negligência em promover um direito essencial como este.889 Para suprir esse déficit, o Estatuto acrescentou o inciso IX ao artigo 11 da Lei n. 8429/1992, definindo como ato ímprobo, por ofensa aos princípios da Administração Pública, o não cumprimento dos requisitos de acessibilidade previstos na legislação. Dessa forma, a Estatuto obriga o administrador público a construir, em caráter prioritário, obras de acessibilidade,890, sob pena de perder a função pública, sofrer a suspensão dos direitos políticos por três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, pelo prazo de 3 anos (art. 11 da Lei n. 8.429/1992). Para ser retirada a eficácia máxima desses dispositivos, é imprescindível a atuação do Ministério Público Estadual e Federal, das Defensorias Públicas e das associações de pessoas 888 ALMEIDA, Luiz Cláudio Carvalho, de. Do Direito ao Transporte e à mobilidade. In: LEITE, Flávia Piva Almeida. et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo:Saraiva, 2016. Cap. X, Título II, p. 220-235. p. 224. 889 O art. 120 da Lei n. 13.146/2015 determina que “cabe aos órgãos competentes, em cada esfera de governo, a elaboração de relatórios circunstanciados sobre o cumprimento dos prazos estabelecidos por força das Leis n. 10.048, de 8 de novembro de 2000, e Lei n.10.098, de 19 de dezembro de 2000, bem como o seu encaminhamento ao Ministério Público e aos órgãos de regulação para adoção das providências cabíveis.” 890 ARAÚJO e COSTA FILHO. A Lei 13.146/2015 (o Estatuto da Pessoa com Deficiência ou a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) e sua efetividade, p. 20. 287 com deficiência, que devem fiscalizar e exigir a aplicação das sanções.891 Observe-se que o caráter prioritário de cumprimento da norma significa que o administrador terá sempre o dever de ponderar se é razoável a aplicação dos recursos públicos no atendimento de outras necessidades em detrimento da implementação da acessibilidade. A título de ilustração, quando o administrador público não realiza obras de acessibilidade, mantendo o estabelecimento de atendimento ao público sem rampas e banheiros adaptados, mas promove uma campanha de valorização da gestão de determinado governo, configura-se um ato de improbidade administrativa,892 pois o gestor elegeu, de modo arbitrário, a prioridade para o investimento público. O Estatuto também determinou a submissão do Estado às normas sobre acessibilidade, no exercício dos atos de concessão, permissão, autorização, habilitação ou renovação de linhas e de serviços de transporte coletivo (art. 46). Esse dispositivo fixa a responsabilidade da Administração, enquanto poder concedente do serviço de transporte, para zelar pela implementação da acessibilidade nos serviços, desde a elaboração dos editais para convocação dos candidatos até a fiscalização do cumprimento das normas. 893 O objetivo é evitar que as empresas apresentem uma “acessibilidade falsa”, na qual a adaptação dos veículos é feita sem critérios, desconectada do plano de mobilidade da cidade. Por exemplo, é inútil escolher um tipo de veículo adaptado, se o mesmo não é adequado para o ponto de ônibus . Para afastar esse tipo de artifício, o Estatuto, no art. 46, §1°, esclarece que integram o serviço de transporte não só os veículos, como também os terminais, estações, os pontos de parada, o sistema viário e a prestação de serviço. 894 Essa obrigação de observar os requisitos de acessibilidade é estendida, pelo art. 54 da referida Lei, aos atos de outorga ou a renovação de concessão, permissão, autorização ou habilitação de qualquer natureza; inclusive a concessão e a renovação de alvará de funcionamento de atividades (art. 60). Nessas hipóteses, o legislador impõe obrigações específicas de igualdade de tratamento, o que inclui a acessibilidade, como contrapartida da outorga de vantagens ou da concessão de licenças. Destarte, o exercício de atividades como táxi, exploração de estabelecimentos comerciais como cafés, restaurantes, hotéis e outros. Estas mesmo não sendo atividades de monopólio do Estado, devem garantir a acessibilidade 891ARAUJO, Luiz Alberto David; DA COSTA FILHO, Waldir Macieira. A Lei 13.146/2015 (o estatuto da pessoa com deficiência ou a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência) e sua efetividade, p. 20. 892 Ibidem, p. 20. 893 ALMEIDA, Luiz Cláudio Carvalho, de. Do Direito ao Transporte e à mobilidade. In: LEITE, Flávia Piva Almeida. et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo:Saraiva, 2016. Cap. X, Título II, p. 220-235. p. 226. 894 Ibidem, p. 225. 288 em obediência ao princípio da igualdade, porque são serviços de interesse direto da população.895 Nessa seara, o Estado, através do poder de polícia, condiciona e limita o exercício da liberdade e da propriedade dos administrados, a fim de compatibilizá-la com o bem-estar social. Ademais, a Administração deve realizar atos preventivos, fiscalizadores e repressivos para assegurar que a atuação dos particulares se mantenha de acordo com as exigências legais.896 Ademais, cabe ao Estado, conforme art. 54, exigir o cumprimento das normas sobre acessibilidade na aprovação de projeto arquitetônico e urbanístico ou de comunicação e informação e na execução de qualquer obra, quando tenha destinação pública ou coletiva. Nesse caso, a Lei n. 13.146/2015 também atribui às entidades de fiscalização profissional das atividades de Engenharia, Arquitetura e correlatas o dever de exigir a declaração de atendimento às regras de acessibilidade, ao anotarem a responsabilidade técnica de projetos de construção, reforma, ampliação ou a mudança de uso de edificações abertas ao público, de uso público ou privadas de uso coletivo. Nesse contexto, é importante sublinhar que a Constituição de 1988, no art. 21, XX, estabelece a competência da União para elaborar as diretrizes gerais do desenvolvimento urbano. Enquanto o Município, conforme art. 30, VIII, é competente para promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. O art. 182 da Carta Magna, por sua vez, estabelece como objetivo da política de desenvolvimento a plena concretização das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar dos habitantes. O dispositivo define o Plano Diretor como principal instrumento do ordenamento urbano, aprovado pela Câmara Municipal e obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes. As funções sociais da cidade incluem as utilidades urbanísticas de moradia, trabalho, recreação e de circulação humana. Esta última passou a ser denominada de “mobilidade” e pode ser compreendida como um atributo das cidades que expressa a facilidade de deslocamento de pessoas ou bens pelo seu espaço; corresponde as diferentes respostas dadas por indivíduos e agentes econômicos às suas necessidades de movimentação para realizar 895 ANDRADE, José Vieira, de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2006. p. 279. 896 MELLO, Celso Antônio Bandeira, de. Curso de Direito Administrativo. 29 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 699. 289 atividades sociais, culturais, políticas e econômicas. Tais deslocamentos são feitos por meio de veículos, vias, calçadas e toda a infraestrutura que possibilita este movimento cotidiano. 897 Sob essa perspectiva, a Lei n. 12.587/2012 consagra a acessibilidade universal à condição de princípio da política nacional de mobilidade. Assim, esta deve fazer parte do planejamento urbano, ou seja, a sua implementação e formulação devem ser definidas a partir da eleição de prioridades dentro de um quadro de objetivos específicos, e realizada através da elaboração de cronograma, escolha dos meios adequados, reserva de recursos, de modo que o planejamento seja contínuo e sistemático.898 Nesse âmbito, buscando dotar de efetividade esse comando normativo, o Estatuto acrescentou o §4° ao art. 24 da Lei n.12.587/2012, estabelecendo o prazo máximo de 6 anos, a partir da sua entrada em vigor, para os Municípios que ainda não tenham elaborado o Plano de Mobilidade Urbana fazê-lo, sob pena de ficarem impedidos de receber recursos orçamentários federais destinados à mobilidade urbana, após o esgotamento do prazo e até que atendam às exigência legais. Outro mecanismo instituído no contexto da atividade administrativa para efetivar os direitos da pessoa com deficiência foram as alterações realizadas na Lei n.8.666/1993. A licitação consiste no processo administrativo utilizado pelos entes públicos para contratar obras, serviços, compras e alienações com os particulares, que ao se sujeitarem às condições do instrumento convocatório, têm a oportunidade de fazer suas propostas. Dentre estas, o administrador selecionará a mais vantajosa para a celebração do contrato.899 Destarte, o processo licitatório concretiza o princípio da igualdade perante a Administração Pública,900 visto que a Carta Magna, no art. 37, XXI, dispõe que a licitação deve assegurar a igualdade de condições a todos os concorrentes, sendo permitidas somente as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Todavia, em 2010, a Lei n. 8.666/93 foi alterada para possibilitar a concessão de vantagens competitivas às empresas produtoras de bens manufaturados ou prestadoras de serviços nacionais que atendam às normas técnicas brasileiras. A instituição dessa margem de 897PIRES, Teresa Cristina Vieira. A cidade sem barreiras é para todos? Avaliação das condições de deslocamento no bairro Cidade Alta, Natal/RN, face as intervenções em acessibilidade processadas entre 1993 e 1998. Dissertação de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, RN, 2007. p. 40 898LEITE, Flávia Piva Almeida. Da Acessibilidade. In: LEITE, Flávia Piva Almeida. et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. Cap. I, Título III, p. 236-239. p. 266 899 DI PIETRO, op cit, p. 356. 900MELLO, op cit, p. 86. 290 preferência tem como finalidade promover o desenvolvimento nacional sustentável, que passou a figurar, no artigo 3° da Lei n.8666/93, como um dos objetivos da licitação. O Estatuto, por sua vez, promove uma releitura do princípio da igualdade nos processos licitatórios, ao criar uma nova margem de preferência, através do art. 104, § 5°, que acrescentou o inciso II ao art. 3° da Lei de Licitações. Tal alteração concede vantagem competitiva às empresas que comprovem a observância das cotas para as pessoas com deficiência e que atendam às regras de acessibilidade previstas na legislação. Esses requisitos também foram alçados a critérios de desempate pelo acréscimo do inciso V ao § 2° do mesmo dispositivo. Para evitar que a empresa seja beneficiada na fase classificatória e depois descumpra com as condições, o art. 66-A prevê o dever da contratada de cumprir tanto a reserva de vagas quanto as regras de acessibilidade durante toda a execução do contrato. E atribui ao ente público contratante a obrigação de fiscalizar a observância dos requisitos de acessibilidade nos serviços e nos ambientes de trabalho.901 Desse modo, o descumprimento da exigência legal, no curso do contrato, poderá acarretar a sua rescisão com a aplicação das sanções respectivas.902 Assim, a Lei n. 13.136/2015 utiliza-se do “Poder de contratação” do Estado para instaurar um importante mecanismo de efetivação das cotas para pessoas com deficiência em empresas privadas, estabelecidas pela Lei n. 8.213/1991, bem como a observância das regras sobre acessibilidade. Observe-se que o Estado, por intermédio das contratações públicas, tem capacidade para mobilizar os mais variados setores da economia, podendo inclusive induzir a transformações no comportamento empresarial para se adequar às políticas sociais, sem qualquer ameaça de sanção.903 Em face dessa constatação, o mecanismo estabelecido pelo Estatuto tem potencial para gerar bons resultados, dotando de eficácia social normas que só possuíam eficácia jurídica, mas não eram de fato cumpridas pelos atores sociais. 901 ARAÚJO, Luiz Alberto David; COSTA , Waldir Macieira Filho, da. O Estatuto da Pessoa com Deficiência - EPCD (Lei 13.146, de 06.07.2015): algumas novidades, p. 7. 902OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações inclusivas: os impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência nas contratações públicas. Gen Jurídico- Grupo Editorial Nacional, 27 jul. 2015. Disponível em: Acesso em: 5 março. 2017. Não paginado. 903 CALADO, Veronica; FERREIRA, Daniel. O Estatuto da pessoa com deficiência e a busca pela promoção do desenvolvimento nacional (sustentável). XXV ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI. Anais eletrônicos... Florianópolis: CONPEDI, 2016. Disponível em: P Acesso em: 5 jan. 2017. p. 243. 291 Essa função dos contratos administrativos de gerar efeitos sociais indiretos relevantes904 corresponde a uma mudança no papel da Administração Pública. Esta, além das atividades tradicionais de contenção e fiscalização, passa a contribuir de forma determinante no direcionamento de políticas públicas de fomento, sustentabilidade e inclusão social.905 Ademais, ao relativizar a economicidade dos contratos públicos, o Estado está concretizando valores constitucionais sensíveis, insculpidos no art. 1°, III da Constituição, como o combate as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração dos setores desfavorecidos.906 Ressalte-se que a política social também é um fator produtivo, atuando como alavanca do próprio crescimento econômico, via sustentação da demanda e qualidade da mão de obra.907 Contudo, não se pode pensar que as contratações públicas serão a solução para a ineficiência do Estado em cumprir os comandos constitucionais. É preciso não perder de vista o interesse público de selecionar a melhor proposta para o atendimento das necessidades administrativas. Por esse motivo, a inserção dos objetivos de caráter social nos processos de seleção pública deve ser compatível com o princípio da proporcionalidade e não pode inviabilizar a obtenção, pelo Estado, dos bens e serviços necessários para o funcionamento da máquina administrativa e prestação dos serviços públicos.908 Sob esse prisma, é importante destacar que a Lei n.8.666/93, ao dispor sobre a margem de preferência para empresas nacionais, pondera, no § 8° do art. 3°, que esta não poderá ultrapassar 25% "sobre o preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros". Além disso, deverá ser definida com base em estudos periódicos que considerem, por exemplo, a geração de emprego e renda por tais empresas, o efeito na arrecadação de tributos, o custo adicional dos produtos e serviços, dentre outros. 904 FARIA, Juliana Campos de. Contratação de entidades de portadores de deficiência física: releitura da dispensa de licitação à Luz da função social do contrato administrativo, do direito à educação especial e conforme ADPF nº45. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, no 188. Disponível em: Acesso em: 11 abr. 2017. Não paginado. 905 FERREIRA, Daniel; MACIEL FILHO, Fernando Paulo da Silva. O trabalho dos discriminados estimulado pelas licitações e contratos administrativos. Revista Jurídica. v.1, n. 42, Curitiba, 2016. Disponível em: Acesso em: 5 jan. 2017. p. 335. 906 OLIVEIRA, Ricardo Carvalho Rezende. Licitações Inclusivas: os impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) nas contratações públicas. Direito do Estado. Rio de Janeiro, 2015. Disponível em:< http://www.direitodoestado.com.br/home> Acesso em 10 março. 2017. Não paginado. 907 IZERROUGENE, Bouzid. Efetividade do direito fundamental à saúde no MERCOSUL (preliminar). In: BAHIA, Saulo José Casali (coord). A efetividade dos direitos fundamentais no MERCOSUL e na União Europeia. Salvador: Paginde, 2010. Cap. IV, p. 63-72. p. 66 908OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende Oliveira. Licitações inclusivas: os impactos do Estatuto da Pessoa com Deficiência nas contratações públicas. Gen Jurídico- Grupo Editorial Nacional, 27 jul. 2015. Disponível em: Acesso em: 5 março. 2017. Não paginado. 292 Dessa forma, constata-se que falta ao dispositivo acrescentado pelo Estatuto uma regulamentação que delimite os fatores determinantes para o estabelecimento da margem de preferência aplicável às empresas que cumprem as cotas sociais para pessoas com deficiência e as normas de acessibilidade. Aliás, o regulamento deverá estabelecer, inclusive, como serão compatibilizadas as duas margens de preferência, que podem ser aplicadas simultaneamente.909 Em relação ao critério de desempate, essa harmonização já está expressa na Lei n. 8.666/93, ao prever a aplicação dos critérios de desempate em ordem sucessiva. O que implica o uso do critério “contratação de pessoas com deficiência ou reabilitados da Previdência Social” em quarto lugar, após o esgotamento das alternativas anteriores: bens ou serviços produzidos no País; bens ou serviços produzidos ou prestados por empresas brasileiras, ou por aquelas que invistam em pesquisa e no desenvolvimento de tecnologia do País.910 Como constatado, o Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê vários instrumentos, aplicáveis através das atividades administrativas do Estado, para tornar efetivas legislações já existentes no ordenamento pátrio. Para tanto, o Estatuto dispôs sobre as responsabilidades não só da Administração pública, mas também do administrador, que pode ser condenado por improbidade administrativa, caso não cumpra as normas de acessibilidade. Como também condicionou as relações contratuais dos particulares com a Administração à observância dos direitos da pessoa com deficiência. Por outro viés, surge a questão de saber como o Estado pode intervir nas relações dos particulares entre si para promover a inclusão social desse grupo, bem como quais os deveres dos particulares estabelecidos pela nova legislação que regulamenta a Convenção de Nova York (2006). 909 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos. 5. ed., São Paulo: Método, 2015. p. 183. 910 CALADO e FERREIRA, op cit, p. 243. 293 § 2. A inclusão como dever dos particulares A construção de uma sociedade inclusiva tem seus alicerces lançados pelas ações estatais. O Estado fornece as condições básicas para que as pessoas com deficiência possam desfrutar do exercício dos seus direitos, através de políticas públicas, ações afirmativas, benefícios sociais, prestação de serviços públicos essenciais como saúde, educação, transporte. Contudo, “inclusão” é mais do que o exercício de direitos ou a presença em espaços coletivos. Está incluído em uma sociedade implica o senso de pertencimento, significa se reconhecer e ser reconhecido como ator social, que, em constante interação com os demais, compartilha os valores sociais, crenças, cultura, sentimentos e a co-responsabilidade pelos destinos de todos. Em suma, o substrato da vida social ocorre através das relações interpessoais, que se originam a partir das atividades cotidianas como trabalho, consumo, lazer. Assim, é necessário que não apenas os ambientes, mas as relações acolham as diferenças,911 pois são as atitudes que rompem as barreiras e desmistificam os estigmas, permitindo o conhecimento indispensável para uma interação social genuína.912 E somente através desta será possível construir uma cultura inclusiva com impactos positivos sobre toda a sociedade.913 Nesse sentido, a Convenção de Nova York (2006) destaca, no preâmbulo, a ideia de que as pessoas com deficiência poderão participar plenamente da sociedade, através do exercício dos seus direitos, contribuindo de forma valiosa para a diversidade da mesma e para o bem-estar comum. Este será impulsionado pelo desenvolvimento humano, social, econômico e pela erradicação da pobreza. Ressalte-se que “no mundo contemporâneo, a lei pode dar o tom, porém, sem sociedade não há música e sem Estado não há orquestra.”914 É sob essa perspectiva, que o tratado em estudo considera a inclusão como responsabilidade de todos, ao ressaltar, nas considerações do preâmbulo, a consciência dos deveres do indivíduo para com as outras pessoas e para com a comunidade a que pertence e a sua responsabilidade na promoção e observância dos direitos humanos. 911 FEMINELLA e LOPES, op cit, p.26. 912 COELHO, Renata. Do direito ao trabalho. In: SETUBAL, Joyce Marquezin Regiane; FAYAN, Alves Costa (org). Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Comentada. Campinas: Fundação FEAC, 2016. Cap. 6, p. 89-134. p.101. 913 FEMINELLA e LOPES, op cit, p.26. 914 COELHO, op cit, p.101. 294 Em consonância com essa afirmação, a Lei n. 13.146/2015, no art. 8°, enuncia como dever do Estado, da sociedade e da família assegurar, com prioridade, a efetivação dos direitos fundamentais da pessoa com deficiência. Assim, o Estatuto avança em relação às legislações anteriores, ao definir o compromisso de todos com a concretização de tais direitos e não apenas a abstenção em violá-los. Nesse âmbito, vale sublinhar que na Constituição Federal de 1988 consta menção expressa aos deveres fundamentais (Título II, Capítulo I – “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”) remetendo à ideia de que a vida jurídica pressupõe a interdependência social, cuja manutenção está intimamente associada à imposição de deveres individuais.915 Portanto, a participação ativa dos cidadãos na vida pública reclama um mínimo de responsabilidade social. Esta acompanha a liberdade dos indivíduos, que devem exercê-la com respeito aos valores constitucionais e aos direitos fundamentais, inclusive nas relações privadas.916 Destaque-se que a Carta Magna apresenta deveres do tipo conexo ou correlato, quando relacionados diretamente à conformação de um direito subjetivo. Por exemplo, o direito à propriedade e o dever de observar a função social da mesma; o direito ao meio ambiente equilibrado que implica o dever de preservação e defesa. Por outro viés, os deveres de pagar impostos, colaborar na administração eleitoral, prestar serviço militar, entre outros, são enquadrados na categoria dos deveres autônomos.917 Além destes, existem deveres não formalizados, que correspondem à obediência de todos os homens a um conjunto de princípios axiológicos e deontológicos regentes das relações com os outros e com a sociedade. Todavia, tal afirmação não pode ser compreendida de modo irrealista, desconsiderando a margem de arbítrio inerente à liberdade individual proveniente do aspecto emotivo das atitudes humanas. Por essa razão, não se pode exigir que nas relações com os seus semelhantes, o ser humano os trate sempre com estrita igualdade, fundamentando juridicamente seus atos, pois faz parte da natureza do homem agir em prol dos próprios interesses em detrimento dos demais.918 Nesse contexto, emerge a importância do caráter objetivo dos direitos fundamentais, na medida em que são valores constitucionais que aos poderes públicos cabe respeitar, mas 915ANDRADE, op cit, p. 167. 916SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais:uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 227. 917Ibidem, p.228. 918ANDRADE, op cit, p. 167. 295 igualmente fazer respeitar como interesses públicos,919 visto que os indivíduos encontram-se expostos não só a constrangimentos gerados pelas ações do Estado, mas também a uma pressão social crescente por parte de grupos com poder de influência sobre a sua conduta. Destarte, não se justifica a criação de duas concepções distintas de dignidade humana, uma para ser respeitada no âmbito das relações públicas, outra para os vínculos privados.920 Deve-se partir da premissa segundo a qual os direitos fundamentais produzem efeitos tanto no plano vertical (indivíduo- Estado), quanto no plano, também verticalizado, das relações entre particulares detentores de parcelas expressivas de poder social, bem como das relações entre cidadãos em circunstâncias de igualdade fática (relações horizontais), ainda que nesse contexto exista um maior impacto da autonomia privada.921 Nesse sentido, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência estabelece, no art. 4°, o compromisso dos Estados Partes de adotarem todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada na deficiência, por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada. Dessa forma, o tratado abrange todos os planos de eficácia dos direitos desse grupo, atribuindo ao Estado a obrigação de impor aos particulares o respeito a tais direitos. Importante destacar que cabe precipuamente ao legislador regular, em caráter preventivo,922 as limitações à autonomia da vontade em prol da promoção e defesa dos direitos fundamentais. Essas disposições devem atender ao princípio da proporcionalidade, graduando a proteção conforme os valores ou bem jurídicos em causa, a intensidade da ameaça e a possibilidade de auto-defesa pelo particular de valores como o livre desenvolvimento da personalidade, a livre iniciativa econômica, a liberdade negocial, a propriedade privada.923 Destarte, a legislação é responsável por estabelecer um equilíbrio aceitável entre os valores em conflito. Na hipótese de inexistir norma aplicável diretamente ao caso, incumbe ao juiz definir a norma de decisão, atendendo aos preceitos constitucionais. Para isso, pode o magistrado recorrer aos conceitos abertos do Direito Privado (boa-fé, bons costumes, função social do contrato.).924 Esse seria o efeito de irradiação dos direitos fundamentais, ou seja, 919ANDRADE, op cit, p. 248. 920 DRAY, op cit, p. 128. 921SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, p. 340. 922DIMOULIS e MARTINS, op cit, p. 121. 923ANDRADE, op cit, p. 257. 924ANDRADE, op cit, p. 272. 296 mesmo quando o legislador não considerou a situação de desigualdade entre os particulares, os comandos normativos infraconstitucionais devem ser interpretados à luz desses direitos.925 Embora a questão não seja pacífica, a maioria dos doutrinadores advoga a incidência desse efeito horizontal apenas nas relações em que existe uma desproporção de forças entre as partes, pois nesses casos, uma delas disporia de um poder semelhante ao do Estado, capaz de determinar os comportamentos da outra. A consequência de tal raciocínio seria a obrigatoriedade de vincular os detentores desse poder social diretamente às disposições que garantem direitos fundamentais.926 Tratando-se de relações equilibradas entre indivíduos situados no mesmo plano, seria desnecessária a aplicação direta desses direitos, bastando a incidência do efeito irradiante. Nesse contexto, a autonomia da vontade deve ser preservada, desde que não afete o núcleo essencial, o conteúdo mínimo, desses direitos.927 Sublinhe-se que esse desequilíbrio negocial primeiro se revelou nas relações laborais. Após a revolução industrial, tornam-se evidente as condições degradantes dos trabalhadores: a ausência de limitação máxima da jornada de trabalho, a prática de baixos salários, a falta de proteção contra acidentes de trabalho, dentre outros fatores que atingiam a dignidade daquele que precisava vender sua força de trabalho para garantir os meios de subsistência. Assim, tornou-se indubitável a necessidade de proteção do operário em face do poder do empregador, através da imposição de normas garantidoras dos direitos fundamentais desse grupo. 928 Ressalte-se que sob o prisma das relações trabalhistas, a pessoa com deficiência é duplamente vulnerável, visto que está sujeita a pressão social da relação de trabalho e também é passível de sofrer discriminação em virtude da sua deficiência. Além da dificuldade de partida para conseguir uma colocação no mercado de trabalho, esses sujeitos encontram obstáculos para se manter trabalhando, em face da ausência de acessibilidade, do preconceito dos colegas de trabalho e do próprio empregador, que muitas vezes contrata a pessoa com deficiência apenas para cumprir as cotas legais, ocupando-a com atividades inferiores a sua capacidade, pagando salários menores. Dessa forma, a simples contratação de um indivíduo pertencente a esse segmento social não significa a sua inclusão de fato no ambiente de trabalho. Contornando esses problemas, a Convenção de Nova York (2006), art. 27, ultrapassa o mero reconhecimento do direito ao trabalho e apresenta sua articulação com os princípios da dignidade, autonomia individual, e liberdade para fazer as próprias escolhas, uma vez que 925 DIMOULIS e MARTINS, op cit, p. 106. 926 Ibidem, p. 105. 927 DRAY, op cit, p.144-145. 928 Ibidem, p. 186 e 204. 297 específica que o direito ao trabalho se concretiza com a possibilidade da pessoa com deficiência se manter em um trabalho de sua livre escolha, aceito no mundo do trabalho e em ambiente inclusivo e acessível. Assim, o Estado deve adotar medidas que perpassam a proibição da discriminação, a proteção de direitos e a promoção de oportunidades.929 Ao garantir a liberdade da pessoa com deficiência de escolher o próprio trabalho, a norma objetiva acabar com a prática estigmatizante de relacionar certos ofícios e profissões a determinados tipos de deficiência, desrespeitando a dignidade inerente à pessoa e a sua autonomia individual. O resultado esperado dessa livre escolha é a conquista da independência financeira e pessoal.930 Para efetivar os preceitos da Convenção de Nova York (2006), a Lei n. 13.146/2015, no art. 34, § 3°, proíbe restrições ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação baseada na sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, e ascensão profissional. Estando, igualmente, vedada a exigência de aptidão plena para qualquer trabalho, ofício ou profissão, porquanto se reconhece que a aptidão é diretamente proporcional às condições de acessibilidade e apoios disponibilizados para que a pessoa desenvolva suas potencialidades e não a natureza da deficiência.931 Não se pode olvidar a importância das cotas para esses indivíduos nas empresas privadas, definidas no art. 93 da Lei 8.213/91. Esse comando normativo continua sendo imprescindível para inserção desse grupo no mercado de trabalho. Contudo, as normas da Convenção sinalizam a necessidade de avançar nesse âmbito, para garantir além da inserção, a permanência no mercado de trabalho e a construção de uma carreira profissional,932 pois essas pessoas não querem trabalhar apenas para ocupar o tempo e sim produzir, se sentir útil, mostrar eficiência e conquistar a independência econômica.933 Nesse sentido, o Estatuto, no art. 34, enuncia o direito da pessoa com deficiência a condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo igual remuneração por trabalho de igual valor. Ademais, assegura o acesso a cursos, treinamentos, educação continuada, planos de 929 GUGEL, Maria Aparecida. O direito ao trabalho e ao emprego: a proteção na legislação trabalhista. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. 7, p.396-411. p. 416. 930 GUGEL, Maria Aparecida. Do direito ao trabalho. In: In: LEITE, Flávia Piva Almeida et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. Cap. VII, Título II, p. 180- 196. p. 184. 931 Ibidem, p. 184. 932 COELHO, op cit, p. 96. 933 GUGEL, Maria Aparecida. O direito ao trabalho e ao emprego: a proteção na legislação trabalhista, p. 416. 298 carreira, promoções, bonificações e incentivos profissionais oferecidos pelo empregador, em igualdade de oportunidades com os demais empregados. Para facilitar a plena inclusão das pessoas com deficiência nas empresas, o Estatuto, no art. 37, IV, dispõe que será ofertado aconselhamento e apoio aos empregadores, com o objetivo de definir estratégias para superar as barreiras, inclusive atitudinais. . Essa foi uma relevante tática do Estatuto para acabar com o pretexto utilizado pelas empresas de que não contratam pessoas com deficiência porque estas não estão habilitadas para o trabalho. É importante destacar que de nada adianta contratar um trabalhador com deficiência para cumprir as cotas legais, sem garantir acessibilidade para que este possa desempenhar suas atividades. Em face disso, o art. 34, § 1° do Estatuto determina como obrigação das pessoas jurídicas, de qualquer natureza, garantir ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos. Observe-se que o direito a um ambiente de trabalho seguro e salubre é tutelado pela Constituição Federal e garantido, no art. 7°, XXII, aos trabalhadores urbanos e rurais a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.934 Tal previsão também se encontra na CLT no art. 157. Destaque-se que saúde e segurança não diz respeito apenas ao aspecto físico, também abrange a saúde mental do trabalhador, suscetível de ser comprometida por atitudes e práticas de discriminação e assédio, por exemplo.935 Sob essa perspectiva, constitui discriminação por motivo de deficiência a recusa ou negligência do empregador para implementar a acessibilidade ou as adaptações necessárias no ambiente de trabalho. Vale destacar que estes são conceitos distintos, a acessibilidade refere- se aos padrões, definidos em abstrato, que tornam o ambiente acessível para a maioria das pessoas, de acordo com a concepção de desenho universal disposta no art. 2º da Convenção de Nova York (2006).936 Enquanto as adaptações razoáveis remetem às modificações e ajustes específicos para a natureza de determinada deficiência. Por exemplo, modificar a iluminação do local de trabalho de uma pessoa com deficiência visual que requer, devido ao seu problema de visão, um tipo de luz especial.937 A adaptação razoável é, portanto, um direito personalíssimo a ser efetivado no caso particular.938 Considerando esse aspecto, a Convenção introduz nessa concepção a razoabilidade dos ajustes, que não devem acarretar ônus desproporcional ou indevido. 934 GUGEL, Maria Aparecida. O direito ao trabalho e ao emprego: a proteção na legislação trabalhista, p. 419. 935 COELHO, op cit, p. 102. 936 GUGEL, Maria Aparecida. Do direito ao trabalho, p. 186. 937 PALACIOS, op cit, p. 9. 938 GUGEL, Maria Aparecida. Do direito ao trabalho, p. 186. 299 Entretanto, isso não significa que apenas as adaptações menos custosas serão realizadas a critério da empresa. Em verdade, a razoabilidade corresponde a ideia de que dentre as varias soluções adaptativas existentes, deve-se procurar aquelas que tenham valores de implementação compatíveis com o orçamento daquele que tem o dever de efetivá-las. Um exemplo de adaptação razoável ocorre quando uma pessoa cega trabalha em uma empresa cujas instalações ambientais estão de acordo com as regras de saúde e segurança do trabalho e as normas técnicas de acessibilidade. Entretanto, o trabalhador cego utiliza em suas atividades leitor de tela de computador e está habituado a utilizar o leitor X , que tem o maior custo no mercado. O empregador oferece leitores de tipo Y, de custo médio e que oferece as mesmas condições para o trabalhador realizar as suas tarefas.939 Outro campo das relações entre particulares no qual está presente um desequilíbrio de forças são as relações de consumo. Por conseguinte, nestas também é necessária a intervenção do Estado para garantir os direitos fundamentais da parte mais vulnerável. Nesse caso, o consumidor encontra-se submetido ao poder de controle dos empresários e produtores, aos contratos de adesão e as fórmulas prontas do mercado globalizado. Em face desse contexto, o Código de Defesa do Consumidor regulamenta a adequação dos produtos e serviços disponíveis, impondo aos empresários e fabricantes um dever legal de qualidade, que se expressa no atendimento às necessidades e na realização das expectativas do consumidor ao adquirir o produto e o serviço contratado.940 Sob essa perspectiva, a pessoa com deficiência enquanto consumidora apresenta um plus de vulnerabilidade (são hipervulneráveis),941 pois esses indivíduos, muitas vezes, não têm como avaliar previamente se determinado produto ou serviço lhe será útil, visto que as informações não estão acessíveis; necessitam de produtos essenciais para sua autonomia como cadeira de rodas, próteses, órteses, cujo defeito pode lhe causar vários transtornos; estão mais suscetíveis a serem induzidos ao erro através de propagandas enganosas; estão sujeitos a cobrança de preços diferenciados pelos serviços prestados. Em face desse panorama, os consumidores com deficiência devem contar com salvaguardas para seus direitos, sendo vedado o tratamento desigual quando discriminatório. Nesse sentido, o Estatuto, no art. 69, dispõe sobre o dever do Poder Público de assegurar que as ofertas de produtos ou serviços, por qualquer meio de comunicação, apresentem as 939 Ibidem, p. 186. 940 COSTA FILHO, Waldir Macieira, da. A pessoa com deficiência no contexto das relações de consumo: tutela jurídica decorrente do Código de Defesa do Consumidor. In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. 7, Parte III, p.396-411. p. 401. 941Ibidem, p. 401. 300 informações corretas de forma clara, contendo as especificações de quantidade, qualidade, características, composição e preço, bem como sobre os eventuais riscos à saúde e à segurança do consumidor com deficiência. O § 1° desse dispositivo determina que os canais de comercialização virtual e os anúncios publicitários, veiculados por qualquer meio de comunicação, disponibilizem, a expensas do fornecedor do produto ou serviço, os recursos de acessibilidade como subtitulação por meio de legenda oculta, janela com intérprete da Libras, audiodescrição e outros. No que tange aos serviços de saúde privados, o art. 22 do Estatuto institui a obrigação das operadoras de planos e seguros privados de saúde de garantir a pessoa com deficiência, no mínimo, todos os serviços e produtos ofertados aos demais clientes. E proíbe, no art. 23, a cobrança de valores diferenciados para o segurado com deficiência. Além da acessibilidade física nos serviços públicos e privados de saúde, o art. 24 do Estatuto garante à pessoa com deficiência o acesso às informações prestadas e recebidas, por meio de recursos de tecnologia assistiva. Tais disposições se justificam na medida em que um dos problemas notórios do sistema de saúde é a falta de intérprete de libras, o que compromete a comunicação entre o paciente surdo e o médico, podendo ocasionar erros no diagnóstico e tratamento. Além de violar a autonomia da pessoa com deficiência, que necessita esperar a disponibilidade de alguém da sua família para acompanhá-la ao serviço de saúde.942 A Lei n.13.146/2015 também se preocupou em garantir o acesso das pessoas com deficiência, em igualdade de oportunidades, aos serviços de lazer, cultura, esporte e turismo. Para tanto, o art. 42 do Estatuto veda a recusa de oferta de obra intelectual em formato acessível, inclusive sob alegação de proteção dos direitos de propriedade intelectual. Nos teatros, cinemas, auditórios, estádios, ginásios de esporte, locais de espetáculos, conforme art. 44, deverão ser reservados espaços livres e assentos para a pessoa com deficiência. As salas de cinema devem oferecer, em todas as sessões, recursos de acessibilidade para a pessoa com deficiência e não poderão cobrar ingresso de valor superior para esse público. Os hotéis, pousadas e similares, de acordo com o art. 45, serão construídos observando-se os princípios do desenho universal, além de adotarem todos os meios de 942 CHAVEIRO, Neuma; PORTO, Celmo Celeno; BARBOSA, Maria Alves. Relação do paciente surdo com o médico. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, v. 75, n. 1, p. 147-50, 2009. p. 149 301 acessibilidade. Os estabelecimentos já existentes deverão disponibilizar pelo menos 10% de seus dormitórios acessíveis, garantida no mínimo 1 unidade acessível.943 Pelo exposto, pode-se observar que a Lei n.13.146/2015 buscou garantir a proteção das pessoas com deficiência nas relações entre particulares, sobretudo, naquelas caracterizadas pelo desequilíbrio de forças, como as relações laborais e de consumo. Ressalte- se que no plano das relações paritárias, aplicam-se as normas de direito civil e penal. Este último é uma importante ferramenta para induzir os particulares ao cumprimento das normas e, portanto, faz-se necessário explicitar quais as disposições do Estatuto nesse campo. § 3. A tutela penal em face do descumprimento do dever de inclusão Apesar do status constitucional da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência no ordenamento jurídico brasileiro, é preciso considerar que esses indivíduos sofreram por anos a fio violações a sua dignidade, perpetradas sob a égide de um modelo exclusivamente médico que apresentava subsídios para a segregação em hospitais psiquiátricos, escolas especiais, interdição absoluta, destituição da autonomia. Em face disso, a mudança de concepção introduzida por esse tratado encontra resistências culturais, na medida em que o preconceito encontra-se enraizado na sociedade e por muito tempo foi legitimado. Nesse contexto, é necessário que o Estado não apenas promova, proteja, incentive a inclusão desses sujeitos, mas também disponha de um sistema punitivo para intimidar e sancionar as violações. Sublinhe-se que entre os processos que regem a conduta social (a moral, a religião, as regras de trato social.) apenas o Direito é coercível, ou seja, tem a sua disposição a força organizada do Estado para garantir o respeito aos seus preceitos. Embora a via comum de cumprimento das normas jurídicas seja a adesão espontânea, visto que os comandos normativos veiculam valores estimados pela sociedade. Se o sujeito passivo de uma relação, portador de um dever jurídico, opõe resistência ao mandamento legal, a coação é imprescindível para garantir a sua efetividade.944 Nesse âmbito, cabe distinguir coerção de coercibilidade. A primeira consiste na aplicação da sanção no caso concreto de inobservância da norma. Enquanto a segunda é 943 Art. 125. Devem ser observados os prazos a seguir discriminados, a partir da entrada em vigor desta Lei, para o cumprimento dos seguintes dispositivos: II - § 6o do art. 44, 48 (quarenta e oito) meses; III - art. 45, 24 (vinte e quatro) meses. 944 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense. 2008. p. 41. 302 apenas a possibilidade de coerção, seria a punição em abstrato capaz de influenciar os comportamentos individuais.945 Destaque-se que devido à intensidade da intervenção do Direito penal, que pode atingir a liberdade do infrator, ele tem caráter subsidiário e fragmentário,946 devendo incidir somente quando as soluções disponíveis por outros ramos do Direito (civil, trabalhista, econômico, tributário.) mostrarem-se ineficazes.947 Nesse contexto, ressalte-se que o Código Penal não apresenta nenhuma tipificação específica para a tutela da pessoa com deficiência. Todavia, em alguns dispositivos faz referência à circunstância da vítima pertencer a esse grupo como causa de aumento da pena. Nesse sentido, dispõe o art. 129, no § 11, ao tipificar as lesões corporais; os art. 140 e 141 a respeito do crime de injúria, calúnia e difamação; no campo dos delitos contra a organização do trabalho, é causa de aumento de pena furtar direito assegurado por lei trabalhista contra vítima com deficiência física ou mental ou aliciar trabalhadores com deficiência; a vulnerabilidade da pessoa com deficiência também foi lembrada pelo legislador nos crimes contra a dignidade sexual, no estupro de vulnerável e no favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual.948 Sob essa perspectiva, um dos grandes avanços do Estatuto foi tipificar como crime a discriminação por motivo de deficiência, preenchendo uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que ao atribuir nome a esse tipo específico de prática, amplia-se a visibilidade para o tema e operacionaliza-se uma importante estratégia de combate.949 O art. 88 do Estatuto apresenta como conduta típica os atos de “Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência” apenados com reclusão de 1 a 3 anos e multa. A pena pode ser aumentada em 1/3, se a vítima encontrar-se sob cuidado e responsabilidade do agente. Em relação ao meio empregado para a execução do delito, ocorrendo a publicação por qualquer meio de comunicação social, o crime se torna qualificado, ou seja, mudam-se os parâmetros das penas mínima e máxima, passando para 2 945Há, portanto, a propósito de Tomasius de Pufendorf, uma distinção oportuna a fazer-se entre coação in potentia, entre atualização e virtualidade da coação, entre coercitividade e coercibilidade. (REALE, op cit, p.655). 946FARIAS, Cristiano Chaves, de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO. Do Direito à educação. In: FARIAS, Cristiano Chaves, de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado: artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodvm, 2016. Cap. IV. p. 96-119. p. 247. 947 BIANCHINI, Alice; MARQUES, Ivan Luís. Tutela penal da pessoa com deficiência. In: In: FERRAZ, Carolina Valença. et al. Manual dos Direitos das Pessoas com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012. Cap. I, Parte III, p.271-285. p. 280. 948 Ibidem, p.283. 949 FEMINELLA e LOPES, op cit, p. 24. 303 a 5 anos de reclusão e multa. Esse aumento de punibilidade se justifica em face das conseqüências danosas geradas na vida das pessoas com deficiência. 950 Observe-se que embora a discriminação pública tenha uma punição majorada, o crime se consuma apenas com o ato de discriminar, independentemente de quantas pessoas tenham acesso ao conteúdo da ofensa. Portanto, trata-se de crime formal, pois dispensa o prejuízo efetivo à vítima, basta haver a possibilidade de se produzir o dano para que esteja caracterizada a infração e o agente possa ser punido.951 Em consonância com a Convenção de Nova York (2006), a Lei n. 13.146/2015 não faz referencia à discriminação contra a pessoa com deficiência, mas conceitua a “discriminação em razão da deficiência.” O significado dessa expressão é a possibilidade do ato cometido pelo agente ter como causa uma suposição sobre determinada pessoa ter uma deficiência. Dessa forma, ainda que o autor tenha incidido em erro, está caracterizada a infração, pois prevalece o propósito do agente de separar, segregar ou marginalizar, com base em um juízo de valor negativo que utiliza a deficiência como critério para o cerceamento de direitos.952 Esse delito não se confunde com o crime de injúria do artigo 140, § 3° do Código Penal, cujo propósito do sujeito ativo é ofender a honra subjetiva da pessoa em razão de sua deficiência. Assim, não é suficiente haver a ofensa, é necessário que a vítima tenha a sua honra subjetiva e dignidade afetadas. Na discriminação do artigo 88 do Estatuto, a ação penal é pública incondicionada, enquanto no crime de injúria, é pública condicionada à representação. 953 Além de criar novos tipos penais, o art. 98 do Estatuto modificou a redação de crimes previstos no art. 8° da Lei n. 7853/1989.954 Essa legislação punia com reclusão de 2 a 5 anos e 950 RIBEIRO, Guilherme Braga da Rocha; PEDRO, Mariana Silva. Dos Crimes e das infrações administrativas. In: SETUBAL, Joyce Marquezin Regiane; FAYAN, Alves Costa (orgs.). Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Comentada. Campinas: Fundação FEAC, 2016. Cap. 17, p. 267. 951 Ibidem, p. 268. 952 FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão. Da igualdade e da não discriminação. In: LEITE, Flávia Piva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes; COSTA FILHO, Waldir Macieira, da. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Sraiva, 2016, Capítulo II, p. 64-82. p.75 953 RIBEIRO e PEDRO, op cit, p. 267. 954 Art. 98. A Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, passa a vigorar com as seguintes alterações: Art. 8°: Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa: I - recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência; II - obstar inscrição em concurso público ou acesso de alguém a qualquer cargo ou emprego público, em razão de sua deficiência; III - negar ou obstar emprego, trabalho ou promoção à pessoa em razão de sua deficiência; IV - recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial à pessoa com deficiência; 304 multa a recusa, óbice, ou dificuldades impostas ao acesso da pessoa com deficiência ao ensino, a saúde e ao trabalho.955 Contudo, tratava-se de um tipo penal aberto, visto que as condutas apenáveis eram acompanhadas da expressão “sem justo motivo” e sendo este de natureza cultural, tornava difícil a aplicação da norma.956 Com a adoção pelo Brasil da Convenção de Nova York (2006), a não realização das adaptações necessárias para evitar a discriminação não comporta mais qualquer espécie de justificativa. Nesse sentido, o Estatuto eliminou essa expressão do dispositivo citado. Destaque-se que embora a Lei n. 7.853/89 tenha estabelecido normas gerais para a garantia do exercício dos direitos da pessoa com deficiência, os tipos penais inseridos no art. 8° apenas se referiam a condutas comissivas e omissivas relacionadas à forma de acesso aos serviços, de modo que diversas situações de cunho discriminatório não foram alcançadas pelo tutela penal, porquanto, em razão do princípio da reserva legal e da consequente vedação ao emprego da analogia in malam partem, somente seriam apenadas as hipóteses expressamente prevista na lei.957 Ademais, o Estatuto também buscou proteger a integridade física desses sujeitos, ao configurar, no art. 89, o crime de “abandono de pessoa com deficiência em hospitais, casas de saúde, entidades de abrigamento ou congêneres.” Incluiu também, no parágrafo único, o abandono material, que consiste em “deixar de prover as necessidades básicas de pessoa com deficiência, quando obrigado por lei ou mandado.” A primeira conduta viola a obrigação de guarda e assistência. Pode ser praticada mediante ação, como levar a vítima a um hospital e deixá-la; ou omissão, quando o agente afastar-se do lugar onde se encontra a vítima, deixando-a entregue a própria sorte. Observe-se que é indiferente se o abandono foi temporário ou definitivo, desde que tenha ocorrido por tempo juridicamente relevante.958 O abandono material, por sua vez, apresenta a forma especial do crime do artigo 244 do diploma Penal. Esse dispositivo objetiva punir a pessoa obrigada, por lei ou por ordem V - deixar de cumprir, retardar ou frustrar execução de ordem judicial expedida na ação civil a que alude esta Lei; VI - recusar, retardar ou omitir dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil pública objeto desta Lei, quando requisitados. § 3o Incorre nas mesmas penas quem impede ou dificulta o ingresso de pessoa com deficiência em planos privados de assistência à saúde, inclusive com cobrança de valores diferenciados. 955 ROSSINI, Augusto Eduardo de Souza; RANGEL, Leonardo Carvalho. Dos crimes e das infrações administrativas. In: LEITE, Flávia Piva Almeida et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo: Saraiva, 2016. Cap. I, Título II, Parte Especial, p. 380-388. p. 388. 956 FONSECA, Ricardo. O novo conceito constitucional de pessoa com deficiência: um ato de coragem, p. 25. 957 ROSSINI e RANGEL, op cit, p. 383. 958FARIAS, Cristiano Chaves, de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO. Dos crimes e das infrações administrativas. In: FARIAS, Cristiano Chaves, de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado: artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodvm, 2016. Título II, Parte especial. p. 247-258.p. 256. 305 judicial, a cuidar da vida e da saúde da pessoa com deficiência, é o caso dos pais e do curador. Logo, a existência da condição de garante ou garantidor é imprescindível para a configuração do crime. Destarte, se um vizinho, por exemplo, tem conhecimento da situação de privação de uma pessoa com deficiência e nada faz para ajudá-la, não comete a referida infração. Pode, a depender do caso, se configurar o delito de omissão de socorro do art. 135 do Código Penal.959 Por necessidades básicas compreendem-se as condições para a manutenção da pessoa com dignidade, abrange o rol de recursos materiais necessários a sobrevivência como alimentação, vestuário, tratamento de saúde. Para caracterizar a infração deve está presente o dolo de perigo, ou seja, o agente deve ser movido pela vontade consciente de abandonar a vítima, colocando-a em risco. Se, por outro lado, existir o dolo de dano, a natureza do crime é alterada para tentativa ou consumação de homicídio, lesão corporal.960 Ressalte-se que esse o crime é classificado como de mera conduta, pois se consuma com o abandono do ofendido independente das consequências. Mesmo que o agente, depois de efetivar o abandono, resolva reassumir a assistência, a infração penal encontra-se consumada, visto que o delito é instantâneo. Enquanto o abandono material é crime permanente, a infração consuma-se com o não provimento das necessidades básicas da vítima, alongando-se a consumação durante todo o período de inação. 961 Saliente-se que a tipificação do crime específico de abandono de pessoa com deficiência pelo Estatuto está em harmonia com as alterações realizadas pelo mesmo nos dispositivos sobre incapacidade do Código Civil, através das quais os indivíduos desse grupo deixaram de ser considerados absolutamente incapazes, não estando mais protegidos pelo tipo “abandono de incapaz”, enunciado no art. 133 do Código Penal.962 Nessa esteira, o legislador teve a cautela de não deixar essas pessoas desprotegidas em face das modificações realizadas. A Lei n.13.146/2015 aborda também os crimes contra o patrimônio da pessoa com deficiência, sancionando, no art. 189, as condutas de apropriação ou desvio de bens, proventos, pensão, benefícios, remuneração, ou qualquer outro rendimento desses indivíduos. Incide o aumento de pena quando o sujeito ativo estiver na condição de tutor, curador, síndico, liquidatário, inventariante, testamenteiro, depositário judicial ou por aquele que se apropriou em razão de ofício ou profissão.963 959 Ibidem, p. 256. 960 FARIAS, CUNHA e PINTO, op cit, p. 257. 961 Ibidem, p. 257. 962 RIBEIRO e PEDRO, op cit, p. 272. 963 ROSSINI e RANGEL, 2016, p. 385. 306 Nesse âmbito, o legislador foi mais específico, ao prever, no art. 91, a hipótese de retenção ou utilização de cartão magnético ou documento de pessoa com deficiência para receber benefícios, proventos, pensões ou remunerações ou realizar operações financeiras, com o objetivo de obter vantagem indevida para si ou para outrem. Sublinhe-se que o delito é formal, dispensando nas duas condutas (“reter” ou “utilizar”) o enriquecimento do agente.964 Importante evidenciar que esse dispositivo é passível de críticas, quando comparado com o art. 168 do Código Penal, que dispõe sobre a apropriação indébita (“Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção”), uma vez que o crime especial do Estatuto poderia ter sanção mais severa devido à maior vulnerabilidade da vítima. No entanto, o legislador se utilizou dos mesmos critérios de gravidade e aumento de pena previstos para o crime comum da legislação penal. A mesma crítica se aplica ao art. 91 do Estatuto, no qual consta uma sanção menor para o delito de abandono de pessoa com deficiência que aquela prevista para o crime de abandono material no art. 244 do diploma penal.965 Ademais, note-se que as infrações penais criadas pela Lei n. 13.146/15 são, na sua maioria, de médio potencial ofensivo, com pena mínima não superior a 1 ano de reclusão, admitindo, em tese, o benefício da suspensão condicional do processo, conforme art.89 da Lei n.9.099/95.966 Sob essa ótica, é relevante sublinhar que a medida adequada da sanção é elemento imprescindível para que o Direito Penal desempenhe a função de induzir ao cumprimento das normas. Poderia o legislador da Lei n. 13.146/2015 ter estabelecido um melhor diálogo com as normas penais existentes, para que de fato a possibilidade de punição pudesse figurar como um mecanismo para concretizar os direitos das pessoas com deficiência, um segmento social que tem sido vítima da ausência de efetividade do arcabouço jurídico. Outro lapso dos dispositivos em comento foi não ter alterado o art. 183 do Código Penal, que permite a incidência das imunidades, positivadas no art. 181, nos crimes contra o patrimônio sem violência ou grave ameaça contra a pessoa. Estas isentam o agente de pena quando o delito é cometido em prejuízo: do cônjuge, na constância da sociedade conjugal e de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural. A Lei n. 13.146/2015 poderia ter feito como o Estatuto do idoso, que incluiu nas hipóteses de exceções da referida imunidade, no art. 183 do Código Penal, a prática de crime contra pessoa idosa.967 964 FARIAS, CUNHA e PINTO, op cit, p. 258. 965 RANGEL e ROSSINI, op cit, p. 386. 966 FARIAS, CUNHA e PINTO, op cit, p.248. 967 Ibidem, p.255. 307 Embora, possa ser defendida a tese de que não existindo norma que excepcione a regra, a imunidade deve ser aplicada em razão da analogia in bonam partem. Em face do princípio da especialidade, os crimes que tenham como vítima pessoa com deficiência não são alcançados pelas citadas imunidades. Entendimento diverso resultaria em uma proteção deficitária do Estado, porquanto não se pode olvidar que, na maioria dos casos, o patrimônio da pessoa com deficiência é tutelado por parente próximo, cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.968 Apesar dos deslizes do Estatuto, é importante ressaltar que a criminalização dessas condutas veio suprir uma lacuna existente na responsabilização de atos atentatórios à dignidade das pessoas com deficiência, cuja tutela foi estabelecida desde a Constituição de 1988. Além de representar o cumprimento pelo Estado do mandamento do art. 5° da Convenção de Nova York (2006) de proteger esses indivíduos contra qualquer forma de discriminação. 969 Ademais, é preciso chamar a atenção para o fato de que os casos de violência sofrida pelas pessoas com deficiência são "subnotificados". Dentre as causas para a ausência de registro das denúncias está a falta de acesso à informação sobre direitos ou de acessibilidade na comunicação com as autoridades policiais. A título de ilustração, a pessoa com surdez não encontra intérprete de Libras nas delegacias; as pessoas cegas têm dificuldade para garantir a autenticidade do seu depoimento, pois as delegacias, em geral, não dispõem de tecnologias assistivas; os boletins de ocorrência não têm campo próprio para informar se a vítima tem deficiência. Além disso, muitas vezes, a violência é cometida no âmbito doméstico e o indivíduo com deficiência depende dos cuidados do autor do crime, o que embaraça o processo de denúncia.970 Em face desse panorama, parece acertado o comando normativo do art. 7° do Estatuto que atribui a todos o dever de comunicar às autoridades competentes qualquer forma de ameaça ou violação aos direitos da pessoa com deficiência. Acrescenta-se, no parágrafo único, o dever dos juízes e tribunais de remeter peças ao Ministério Público, quando tiverem conhecimento, no exercício de suas funções, sobre violações aos preceitos da Lei n. 13.146/2015. Nesse mesmo sentido, o art. 26 determina o dever de notificação compulsória dos serviços de saúde públicos e privados à autoridade policial e ao Ministério Público, além 968 FARIAS, CUNHA e PINTO, op cit, p. 255. 969 ROSSINI e RANGEL, op cit, p. 382. 970 FEMINELLA e LOPES, op cit, p. 25. 308 dos Conselhos dos Direitos da Pessoa com Deficiência, dos casos de suspeita ou de confirmação de violência praticada contra a pessoa com deficiência. Destaque-se que para garantir o cumprimento dessa norma, é primordial a promoção, pelo Poder Público, de campanhas educativas a toda a população, informando, inclusive em formato acessível, quais são os direitos desse grupo. Bem como a capacitação dos agentes públicos para receber e encaminhar denúncias de forma adequada. 971 Sublinhe-se que em relação a estes últimos, a negligência ou omissão no cumprimento desse dever legal pode configurar a prática de infração administrativa ou mesmo penal, em razão do conceito do crime de prevaricação apresentado no art. 319 do Código Penal.972 Como observado, o Estatuto da Pessoa com Deficiência apresenta importantes mecanismos na esfera penal para resguardar e promover o respeito aos direitos desse grupo. Embora se ressalve as muitas dificuldades ainda existentes e algumas contradições presentes nos comandos normativos, a criminalização de condutas perpetradas especificamente contra esses sujeitos representa um dos primeiros passos para alcançar a efetividade dos preceitos da Convenção de Nova York (2006). 971 FEMINELLA e LOPES, op cit, p.26. 972 FARIAS, CUNHA e PINTO, op cit, p. 47. 309 CONCLUSÃO Conforme explicitado, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência surgiu para suprir uma lacuna jurídica nos tratados de direitos humanos do sistema global, que não abordavam especificamente a questão da deficiência, estando esse tema restrito aos documentos não vinculantes. Constatou-se que a explicação para esse fato tem suas raízes mais profundas no modelo de compreensão do fenômeno da deficiência, visto que esta era percebida como um problema de ordem biológica e individual, o que justificava a abordagem centrada nos tratamentos médicos e assistenciais. Nesse contexto, a exclusão consistia em um processo natural, pois sob o pretexto de “proteger”, o Estado e a sociedade perpetuavam a segregação desses indivíduos. Observou-se que para inserir esse grupo no âmbito da proteção dos tratados de direitos humanos, a Convenção de Nova York (2006) precisou empreender uma ruptura com o modo de perceber a deficiência. Para tanto, o tratado apresentou uma nova definição de pessoa com deficiência. Nesta, as causas foram deslocadas do organismo do indivíduo para os fatores sócio-ambientais. A partir dessa premissa, a norma não apenas garante o gozo de direitos a esse grupo, mas, sobretudo, assegura o seu exercício. Dessa forma, retira-se essas pessoas de uma posição de passividade e as reconhece como sujeitos de direito. Para efetivar esse novo paradigma, constatou-se que a própria Convenção de Nova York (2006) apresenta alguns instrumentos. Dentre estes, o delineamento detalhado, no art. 33, de um sistema de monitoramento e implementação, que atuam tanto no âmbito internacional como no contexto doméstico. O protocolo facultativo, por sua vez, estabelece o mecanismo subsidiário de recebimento de petições individuais com denúncias sobre violações de direitos nos Estados Partes. E o art. 32 prevê a cooperação jurídica internacional entre Estados, organizações internacionais e regionais e sociedade civil para consecução dos objetivos do tratado. Ressaltou-se que embora o sistema de monitoramento desempenhe um importante papel, ao possibilitar que a Comunidade Internacional exerça pressão política para que os Estados cumpram o pactuado. O Comitê da Convenção não dispõe de poder coercitivo para impor suas recomendações. Assim, diante das transformações visadas pelas normas do tratado, seria salutar um mecanismo judicial de efetivação. No entanto, verificou-se a ausência de uma “cláusula de jurisdição obrigatória” no texto da Convenção, indicando a Corte Internacional competente para a sua aplicação. 310 Com base no estudo acerca da jurisdição internacional, concluiu-se que por ser um tratado do sistema global, a sua aplicação poderia ser realizada pela Corte Internacional de Justiça, desde que os Estados Partes assim consentissem através de um acordo especial ou declaração unilateral. Contudo, o contencioso nessa jurisdição é exclusivamente interestatal, o que reduz a eficácia da proteção dos direitos humanos nesse tribunal. Sob esse prisma, defendeu-se que a falta de delimitação, no tratado, da competência da Corte Internacional de Justiça não é um fator que comprometa de forma grave a sua efetividade, uma vez que essa Corte não receberia queixas de pessoas ou organizações independentes e não é uma prática comum as denúncias entre Estados contra violações aos direitos dos indivíduos. Entretanto, não se pode negar que um Tribunal com competência para aplicar a Convenção de Nova York (2006) seria um mecanismo importante, pois possibilitaria suprir as falhas dos Estados em tutelar os direitos desses grupos. A contribuição dessa pesquisa, nesse aspecto, foi evidenciar a alternativa das pessoas com deficiência ou os seus representantes acionarem os Tribunais Regionais de Direitos Humanos, que embora não possam aplicar diretamente a Convenção da ONU, poderiam fazê- lo de forma reflexa, através da interpretação dos instrumentos regionais à luz da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Tal raciocínio foi confirmado a partir da análise do caso Alajos Kiss vs. Hungria julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos em 2010 e o caso Sebastian Furlan vs. Argentina decidido, em 2012, pela Corte Interamericana. Para além desses mecanismos de efetivação, destacou-se, em especial, as obrigações gerais impostas aos Estados Partes, no art. 4°: adotar todas as medidas necessárias para assegurar os direitos das pessoas com deficiência; modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituam discriminação contra esse grupo; tomar medidas para eliminar a discriminação por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada; considerar, em todos os programas e políticas, a proteção e a promoção dos direitos das pessoas com deficiência, bem como adotar outras medias administrativas; e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com as normas convencionais. Na análise desse dispositivo, evidenciou-se que a Convenção busca comprometer todas as funções estatais com a sua implementação. Nesse contexto, buscou-se examinar como o Executivo, o Legislativo e o Judiciário brasileiro estão cumprindo esse comando normativo. No âmbito do Poder Judiciário, comprovou-se que apesar do status de emenda constitucional da Convenção, apenas duas ações do controle de constitucionalidade concentrado foram impetradas até o momento, a ADPF n.182 de 2009 sobre a Lei Orgânica 311 de Assistência Social e a ADI n.5.265 ajuizada em 2015, questionando a Lei. n. 8.112/90. Em face disso, pode-se concluir que o controle concentrado de constitucionalidade está sendo pouco utilizado como instrumento de implementação do tratado. Isso revela que o status de emenda constitucional por si só não é suficiente para assegurar a supremacia da Convenção de Nova York (2006). A sua baixa densidade eficacial pode está relacionada com o desconhecimento dos dispositivos da Convenção pelos legitimados a propor esse tipo de ação e dos magistrados em reconhecer eventual inconstitucionalidade de ofício no controle difuso. Outra justificativa plausível seria o fato da declaração de inconstitucionalidade de algumas leis ordinárias não surtir efeitos práticos diante de normas convencionais que dependem de regulamentação para serem aplicadas. Acrescente-se que nas duas ações, a decisão da Suprema Corte ainda não foi emitida e a questão foi solucionada pelo controle de constitucionalidade legislativo, através da promulgação de novas legislações, Lei n. 12.470/11 e Lei n. 13.370/ 2016 respectivamente. Estas dispõem sobre a matéria, revogando os dispositivos em conflito com o tratado. Cabe refletir sobre quais seriam os motivos dessa tendência do ordenamento pátrio de realizar o controle de constitucionalidade pela via legislativa e não judicial. Pode-se considerar que além do Parlamento está em contato mais direto com as demandas da população, sendo a instância democrática por excelência. O aumento da presença de congressistas com deficiência ou seus familiares, como os Deputados Federais Romário e Mara Gabrilli, contribuem para a elaboração de projetos de lei sobre o tema. O que reforça a importância da garantia dos direitos civis e políticos às pessoas com deficiência, assegurada pela Convenção de Nova York (2006), como fundamental para promover a efetivação dos direitos desse grupo. No que tange ao grau de aplicabilidade das normas do tratado aos casos concretos, demonstrou-se que muitos dispositivos da Convenção possuem caráter genérico e dependem de regulamentação para serem implementados. Todavia, não são desprovidos de eficácia, pois devem ser considerados na aplicação e interpretação das normas internas. Tal ideia foi afirmada no Recurso em Mandado de Segurança RMS 32732 AgR/DF, julgado pelo STF em 2014. Dessa forma, destaca-se a importância da atividade interpretativa do juiz, porquanto através dela pode-se imprimir ao texto convencional maior ou menor incidência nos casos em análise. Por outro ângulo, saliente-se que o tratado em estudo tem a peculiaridade de apresentar conceitos operacionais como “adaptação razoável”, “discriminação por motivo de 312 deficiência” e “desenho universal” que podem ser aplicados diretamente às situações concretas. Essa possibilidade foi ilustrada através do Recurso Especial n. 1315822/ RJ, julgado pelo STJ, em 2015. No qual empregou-se o conceito de “adaptação razoável” para condenar o réu a disponibilizar versões em Braille dos contratos de adesão e todos os demais documentos fundamentais para a relação de consumo. Sublinhe-se que tais conceitos também funcionam como instrumentos de efetivação, na medida em que figuram como pressupostos para elaboração de políticas públicas e leis nacionais; preenchem eventuais lacunas das legislações internas e diminuem a margem de discricionariedade dos Estados na implementação da norma internacional em estudo. Em relação ao Executivo, evidenciou-se que este atua na esfera da eficácia social da Convenção, promovendo a dignidade e igualdade de oportunidades para as pessoas com deficiência, por meio de políticas públicas e ações afirmativas. Nesse âmbito, constatou-se que foi elaborado, em 2009, o “Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Viver sem Limite”, o primeiro programa brasileiro específico para esse grupo. Instrumento que tem potencial para transformar a vida de muitos indivíduos com deficiência, visto que o programa cumpriu o ciclo de uma política pública que se pretende eficaz, estipulou metas a serem cumpridas, vinculou orçamentos e criou um sistema de avaliação e acompanhamento. Entretanto, é importante destacar que a efetividade desse mecanismo depende do constante policiamento da sua execução. Este deve ser desempenhado pelos sistemas internos responsáveis pela implementação e monitoramento da Convenção de Nova York. Ressalte-se que o órgão designado para a atividade de monitoramento foi o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE), cuja composição inclui representantes de instituições governamentais. Tal fato compromete a sua autonomia, gerando a situação contraditória do Estado ser fiscalizado pelos próprios agentes e viola os requisitos mínimos estabelecidos na Convenção de Nova York (2006) pra criação desse sistema. Esse aspecto foi declarado como preocupante pelo Comitê da Convenção, em sua análise do relatório do Brasil (2008-2010). Este, por sua vez, reconheceu que o CONADE não cumpre integralmente as funções estabelecidas no art. 33 do tratado e que é necessária a reformulação futura dos mecanismos existentes ou a criação de novos instrumentos. Por outro lado, o órgão ao qual se destinou o encargo de acompanhar a implementação da Convenção foi a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE). De acordo com o art. 33 da norma internacional, este deve fazer parte da estrutura do governo. Porém, verificou-se que a CORDE não tem uma alocação fixa e já 313 foi transferida para diversos Ministérios e Secretarias. O que pode prejudicar a continuidade e estabilidade do trabalho desenvolvido. Sob esse prisma, ressalta-se a importância da participação da sociedade civil na atividade de fiscalização. A própria Convenção, no art. 33 (3), determina aos Estados envolver as pessoas com deficiência e suas organizações representativas nesse processo. Nesse sentido, o art. 36 (4) dispõe sobre a necessidade dos Estados disponibilizarem seus relatórios ao público e facilitar a apresentação de sugestões. Além disso, quando os documentos oficiais não corresponderem à realidade, as ONGs podem elaborar relatórios alternativos e encaminhá-los ao Comitê. Dessa forma, pode-se concluir que o próprio tratado prevê mecanismos adicionais para suprir as possíveis falhas do sistema de monitoramento. No campo das ações afirmativas, embora exista previsão de cotas para pessoas com deficiência na Lei n. 8.213/91, o Comitê da Convenção, na análise do relatório apresentado pelo Brasil (2008-2010), observou os baixos níveis de conformidade a essa norma e recomendou o desenvolvimento de uma estratégia coordenada para aumentar o emprego das pessoas com deficiência no mercado de trabalho aberto. Nesse mesmo sentido, a reserva de vagas para pessoas com deficiência em concursos públicos, positivada na Lei n. 8.112/90, não tem se mostrado um instrumento com elevado grau de eficácia, uma vez que os dados do censo do IBGE de 2010 revelaram que do total de pessoas com deficiência ocupadas (23,6%) somente 5,9% eram servidores públicos estatutários.973 Vale salientar que a esse arcabouço jurídico acerca das ações afirmativas foi acrescentada a Lei n. 13.409, promulgada em 28 de dezembro de 2016, responsável por incluir a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnicos de nível médio e superior das instituições federais de ensino e o Decreto n. 9.034, de 20 de abril de 2017, altera o Decreto anterior que regulamentava a Lei n.12.711/2012 para incluir as pessoas com deficiência entre os beneficiados pelo sistema de contas nas Universidades Federais. Como evidenciado, tanto o Executivo como o Judiciário apresentam algumas ações no sentido de concretizar a Convenção em estudo, embora ainda existam equívocos e dificuldades. Um fato notório é a prática comum no Brasil da atuação predominante do Legislativo no que concerne à elaboração de leis voltadas para a proteção das pessoas com deficiência. Contudo, constatou-se que se não houver o envolvimento das demais funções estatais e da sociedade, essas normas permanecem apenas como marcos teóricos, incapazes de modificar a realidade. Portanto, mais do que leis assegurando direitos são necessários 973 Cartilha do Censo 2010, Pessoa com deficiência. Disponível em < http://www.sdh.gov.br/assuntos/pessoa- com-deficiencia/dados-estatisticos/pesquisas-demograficas 314 instrumentos de implementação, fiscalização e de punição. Sob esse prisma, o Comitê da Convenção destacou a ausência de uma estratégia coerente e global para implementar o novo paradigma introduzido pela Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. E recomendou ao Brasil realizar uma revisão sistemática da legislação, políticas e programas existentes. Nesse sentido, o Legislativo assumiu, de forma diferente, o seu papel no contexto da implementação desse tratado. Não mais preocupado em declarar direitos, mas estabelecer meios para a concretização dos mesmos, através da promulgação, em 2015, do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Este para além de regulamentar a Convenção, solucionar as incompatibilidades existentes na legislação infraconstitucional, também apresentou diversos instrumentos para efetivá-la, envolvendo, nesse processo, as demais funções do Estado e toda a sociedade. No plano da regulamentação, o Estatuto reafirmou o conceito de pessoa com deficiência da Convenção de Nova York (2006) e atribuiu ao Poder Executivo a elaboração, no prazo de 2 anos a partir da sua vigência, de um instrumento de avaliações biopsicossocial da deficiência e a administração de um Cadastro Nacional de Inclusão com informações eletrônicas georeferenciadas sobre esse segmento social. As providências para a criação desses instrumentos foram adotadas através do Decreto n. 8.954, de 10 de janeiro de 2017, que instituiu o Comitê do Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência no âmbito do Ministério da Justiça e Cidadania. Importante sublinhar que para concretizar o novo conceito de pessoa com deficiência era imprescindível uma reformulação da teoria das incapacidades para compatibilizar a legislação civil com o tratado em estudo. Cabe frisar que a orientação do Comitê da Convenção, através da Observação Geral n. 1 de 2014 sobre o art. 12, é para os Estados Partes eliminarem qualquer modelo jurídico de capacidade civil que admita a tomada de decisão por substituição. Assim, para assegurar a plena capacidade civil das pessoas com deficiência, o Estatuto revogou todos os dispositivos do Código Civil (2002) que faziam referência a esses indivíduos como incapazes e manteve como única hipótese de incapacidade absoluta a condição de menor de 16 anos. Conquanto o Estatuto incidiu no equívoco de ter inserido a hipótese da “pessoa que não pode exprimir sua vontade” no rol dos relativamente incapazes, o que comprometeu a eficácia social desse dispositivo. Porque é inviável aplicar a assistência em vez da representação a uma pessoa impedida de exprimir sua vontade. 315 Outro aspecto suscetível de questionamentos é o fato da Lei n. 13.146/2015 não ter previsto a incapacidade absoluta nem mesmo para os casos de deficiência mental ou intelectual mais graves. No entanto, foi averiguado que o Estatuto eliminou apenas a declaração de incapacidade absoluta da pessoa com deficiência, mas a curatela continua existindo, conforme art. 84 § 1°. Porém, não é mais uma medida restritiva de direitos, como ocorria na interdição total, mas sim um instrumento de suporte aplicado somente quando necessário, para auxiliar a pessoa com deficiência a exercitar sua capacidade legal na medida das suas possibilidades. Ressalte-se que essas modificações introduzidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência são muito recentes e os juristas ainda estão tentando compreendê-las, não existindo consenso sobre as soluções para suas lacunas e contradições. Nesse âmbito, é relevante o papel da doutrina e da jurisprudência que vão paulatinamente encontrando alternativas de interpretação e aplicação para melhor adequar a norma à realidade social. Por outro viés, concluiu-se que o judiciário também tem a função de impor as transformações necessárias, quando as normas encontram resistência por parte dos atores sociais. Fato ilustrado pela ADI n. 5.357 de 2015, ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN). Esta alegou a inconstitucionalidade dos dispositivos do Estatuto que impõem às escolas particulares obrigações com o objetivo de promover a inclusão dos alunos com deficiência. Imprescindível notar que essas disposições também foram provenientes de recomendações do Comitê da Convenção. Este se declarou preocupado com a prática de recusa da matrícula de crianças com deficiência pelas escolas brasileiras e a cobrança indevida de taxas para aceitá-las. E orientou o Estado a implementar um mecanismo para proibir, fiscalizar e sancionar a discriminação com base na deficiência nos sistemas de ensino público e privado. Essa Ação Direta de Inconstitucionalidade revelou que os valores veiculados pela Convenção de Nova York (2006) ainda estão sendo assimilados pela sociedade brasileira, pois representam um rompimento com o modelo médico consagrado na legislação e incorporado à consciência coletiva, o que afeta o cumprimento espontâneo da norma pelos seus destinatários. Sob essa perspectiva, emerge a importância da função do Supremo Tribunal Federal como “Guardião da Constituição” para elaborar novos modos de pensar os direitos das pessoas com deficiência, dissipando as resistências provocadas pelas mudanças legislativas. 316 Para auxiliar na efetivação do tratado, o Estatuto atribuiu ao Executivo a fiscalização e o uso de mecanismos administrativos para forçar aos particulares a observar as normas de proteção desse segmento social. Nessa esteira, a Lei n. 13.146/2015 condicionou a outorga ou a renovação de concessão, permissão, autorização ou habilitação de qualquer natureza ao cumprimento das normas de acessibilidade; estabeleceu a observância de tais normas e das cotas legais para pessoas com deficiência como critérios de desempate e margem de preferência nas licitações. Ademais, determinou como dever do administrador público a promoção da acessibilidade, sob pena de incidir no ilícito de improbidade administrativa por ofensa aos princípios da Administração Pública. Defende-se que esses mecanismos têm potencial para gerar bons resultados, dotando de eficácia normas que não eram de fato cumpridas pelos atores sociais. Agora, estes são forçados a mudar o seu comportamento, se desejarem contratar com a Administração Pública ou exercer atividades dependentes do seu consentimento. Entretanto, é fundamental a fiscalização para que esses dispositivos sejam aplicados pelos agentes públicos. O Estatuto também buscou garantir os direitos da pessoa com deficiência na esfera das relações entre os particulares. A referida lei apresentou diversas garantias dos direitos desse grupo nas relações em que existe um desequilíbrio entre as partes, como os vínculos laborais e de consumo. Evidenciou-se que nesses contextos, a pessoa com deficiência precisa de proteção específica para não ter sua vulnerabilidade acentuada. Por fim, verificou-se que a Lei n. 13.146/2015 positivou sanções de natureza penal para os casos de graves violações dos direitos desse grupo. Foram criados novos tipos penais específicos para as situações vivenciadas pelas pessoas com deficiência e realizadas alterações nos dispositivos sobre crimes existentes na legislação penal extraordinária, mas que tinham pouca efetividade. Em face de todo o exposto, pode-se concluir que existem evidencias que corroboram a ideia formulada na presente pesquisa de que a incorporação da Convenção de Nova York (2006) pode contribuir com a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil, na medida em que orienta a sua implementação de forma coordenada, sistemática e em todas as esferas da atividade estatal. Nesse sentido, observa-se que tanto os dispositivos da Convenção, como as recomendações emitidas pelo Comitê direcionam a atuação das funções estatais para a concretização desse tratado. Sob essa ótica, constatou-se que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário têm empreendido esforços para concretizar as normas da Convenção. Porém, os mecanismos de efetivação ainda se encontram em fase de desenvolvimento, existindo dificuldades a serem 317 contornadas, que serão melhor compreendidas a partir da aplicação desses instrumentos na prática. Um grande avanço foi a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que sistematiza as atividades de prevenção, fiscalização e sanção e as distribui entre as esferas do Estado. Importante salientar que esse trabalho é apenas um mapeamento teórico dos mecanismos existentes no ordenamento jurídico brasileiro para tornar efetivos os comandos normativos da Convenção de Nova York (2006). Longe de esgotar a temática, pretende-se dar continuidade a pesquisa, através da investigação das principais dificuldades encontradas na atuação das funções estatais; como o sistema de freios e contrapesos pode otimizar o desempenho de cada uma delas; e analisar melhor como as pessoas com deficiência estão participando desse processo. Por fim, destaca-se que o Brasil ainda tem um longo caminho para avançar na efetivação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e o alcance dos seus objetivos depende da desarticulação da visão retrógrada sobre a pessoa com deficiência; da aplicação de recursos humanos e financeiros; de ações estratégicas que incidam sob os problemas evidenciados para eliminá-los e não apenas escondê-los; e, sobretudo, da conscientização social para que os cidadãos possam também promover a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade brasileira. 318 REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Martin de. Da igualdade. Coimbra: Livraria Almedina. 1993. ALMEIDA, Luiz Cláudio Carvalho, de. Do Direito ao Transporte e à mobilidade. In: LEITE, Flávia Piva Almeida. et al. (Coord). Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. São Paulo:Saraiva, 2016. Cap. X, Título II, p. 220-235 AMARAL JÚNIOR. José Levi Mello do. Tratados Internacionais e Bloco de Constitucionalidade. 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