UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE EDUCAÇÃO - CE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Figuramento e Ensino de Artes & Ciências FRANCISCO ADAÉCIO DIAS LOPES NATAL 2016 FRANCISCO ADAÉCIO DIAS LOPES Figuramento e Ensino de Artes & Ciências Tese defendida junto ao Programa de Pós- graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação, sob a orientação do Professor Dr. André Ferrer P. Martins. NATAL 2016 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Lopes, Francisco Adaécio Dias. Figuramento e Ensino de Artes & Ciências / Francisco Adaécio Dias Lopes. - Natal, 2016. 359f: il. Orientador: Prof. Dr. André Ferrer Pinto Martins. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Educação. Programa de Pós-graduação em Educação. 1. Ensino de Artes - Ciências – Tese. 2. Contra Indução – Tese. 3. Figuramento – Tese. 4. Chico Science - Nação Zumbi - Tese. 5. Trocas Abertas - Tese. I. Martins, André Ferrer Pinto. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 37.015.31:7 FRANCISCO ADAÉCIO DIAS LOPES Figuramento e Ensino de Artes & Ciências Aprovada em 14 de Junho de 2016. BANCA EXAMINADORA ________________________________________________________ Dr. André Ferrer Pinto Martins Universidade Federal do Rio Grande do Norte ________________________________________________________ Dra. Karyne Dias Coutinho Universidade Federal do Rio Grande do Norte ________________________________________________________ Dr. Marlécio Maknamara da Silva Cunha Universidade Federal do Rio Grande do Norte ________________________________________________________ Dr. Marcelo Gomes Germano Universidade Estadual da Paraíba ________________________________________________________ Dr. Marcos Pires Leodoro Universidade Federal de São Carlos DEDICO ESTE TRABALHO DE DOUTORADO A ÁLVARO LOPES DA SILVA (FIFI) & A FRANCISCA DIAS DE OLIVEIRA (FRANCISQUINHA) Mamãe me mostrou que a linha fazia curva E os ilhoses apresentavam muitas faces Em meio a botões cobertinhos de flores Estampas pretas, brancas, coloridas e azuladas Semicírculos, esquadros e triângulos Trena, agulha, tesouras, boleado Cuidadosa construía seus modelos Com o auxílio das revistas que comprava E assim fazia da nossa vida arte Na casa 211 da rua Lauro Maia Papai, como um lobo, da mata sempre fora amigado Ele guardava seus pertences entre as folhas Como se o mundo todo fosse sua casa Fazia poesia sem parar juntando pedrinhas de todos os tipos E as guardava numa panelinha de barro Ele diz sempre “escritura é para ser interpretada” “Os políticos só pensam neles mesmos” “Esses cientistas erram pra danado” Eu cresci em meio a dragões e rosas Dos folhetos que papai me recitava Adaécio Lopes AGRADECIMENTOS Agradeço a todos e todas que contribuíram para este trabalho: professores e professoras, amigas e amigos, orientadores. Aos muitos coletivos, de diversos lugares, vales, picos e matas. Em especial, ao Prof. Dr. André Ferrer P. Martins que de forma decisiva e amigável muito contribuiu para a realização do trabalho. RESUMO Neste trabalho defende-se a tese segundo a qual as Artes não são algo em separado das Ciências, não apenas por existir uma inter-relação entre as áreas, mas por se basearem em conhecimentos e pressupostos comuns, que se relacionam, inclusive, com outros saberes. Com isso é proposto que se pratique Ensino de Artes & Ciências em vez de Ensino de Ciências – podendo-se utilizar para isso o recurso ao qual se está referindo como Figuramento. O trabalho tem como referencial teórico as discussões e exposições de estratégias contra indutivas apresentadas por Paul Feyerabend em algumas de suas obras, assim como as proposições epistemológicas lançadas por Ludwik Fleck, dentre outros autores. Buscou-se problematizar acerca da relação destas discussões com concepções presentes em outras formas de conhecimento. Como parte do trabalho foram analisadas obras de diversos pensadores e de diversos períodos históricos. Em seguida, trata-se da obra da banda pernambucana Chico Science & Nação Zumbi, por esta ser uma manifestação artístico-cultural recente, e na qual estão presentes concepções diversas, desde aquelas relacionados às ciências como também a conhecimentos diversos. Apresenta-se a obra dessa banda, também, como uma forma de se questionar acerca da educação e seus fins. Ao final, aborda-se a relação do que fora exposto até então com obras, propostas e teorias relacionadas ao ensino, e também de como estas temáticas que foram estudadas e apresentadas poderão estar presentes na atividade de sala de aula. Propõe-se que a obra de Chico Science & Nação Zumbi, e das demais bandas e cenas apresentadas, pode ser utilizada em atividades pedagógicas como forma de problematizar e introduzir tais temáticas. Este trabalho sinaliza para que se atente àquilo que está presente em muitas partes do texto, inclusive no que se refere à obra de Chico Science & Nação Zumbi e às teorias educacionais apresentadas: essas diversas proposições e conhecimentos não são isentos de críticas e problematizações, se configurando, assim, em perspectivas abertas. Palavras-chaves: Contra Indução, Figuramento, Chico Science & Nação Zumbi, Ensino de Artes & Ciências, Trocas Abertas. ABSTRACT In this paper defends the thesis that the Arts are not something separate from Science, because not only there is an interrelationship between the areas, but also both are based on knowledge and common assumptions that relate even with other knowledge. It is proposed to practice Teaching Arts & Sciences rather than the Teaching of Science - can be used for this resource which is concerning as Figurament. The work is based in theoretical discussions and exhibitions and strategies against inductive presented by Paul Feyerabend in some of his works as well as the epistemological propositions presented by Ludwik Fleck, as well as propositions of many other authors. We attempted to discuss about the relationship of these discussions with present conceptions in other forms of knowledge. As part of the study were analyzed works of several thinkers and different historical periods. Then it is the work of Pernambuco band Chico Science & Nação Zumbi, as this is a recent artistic and cultural expression, and which are present different concepts, from those related to the sciences as well as the diverse knowledge. It presents the work of this band, too, as a way of questioning about education and its purposes. In the last chapter it is precisely the relationship of what was exposed previously with works, proposals and theories related to teaching, and also how these issues have been studied and shown may be present in the classroom activity. It proposes that the work of Chico Science & Nação Zumbi and the others bands and scenes presented can be used in educational activities as a way to discuss and introduce such themes. This work suggests to some extent that signals to a move with respect to which it is exposed, including the work of Chico Science & Nação Zumbi and educational theories presented. This work indicates that consideration is given to what is present in many parts of the text, including with regard to the work of Chico Science & Nação Zumbi and educational theories presented: these various propositions and knowledge are not exempt from criticism and problematizations if setting, so in open perspectives. Keywords: Contra Induction, Figurament, Chico Science & Nação Zumbi, Arts & Science Teaching, Open Exchange. RESUMEN En este trabajo se defiende la tesis de que las artes no son algo separado de la ciencia, no sólo porque existe una interrelación entre las áreas, pero se basan en el conocimiento y supuestos comunes que se relacionan incluso con otra conocimiento. Se propone practicar Enseñanza de las Artes & Ciencias en lugar de la Enseñanza de las Ciencias - se puede utilizar para esta función a la que se está refiriendo a Figuramento. El trabajo tiene como referencias as discusiones teóricas y exposiciones e las estrategias contra inductivas presentados por Paul Feyerabend en algunas de sus obras, así como las proposiciones epistemológicas presentados por Ludwik Fleck, así como proposiciones de muchos otros autores. Hemos tratado de hablar acerca de la relación de estas conversaciones con las concepciones presentes en otras formas de conocimiento. Como parte del trabajo se analizaron diversas obras de pensadores y diversos períodos históricos. Entonces es el trabajo de la banda de Pernambuco Chico Science & Nação Zumbi, ya que esta es una expresión artística y cultural reciente, y que están presentes conceptos distintos de los relacionados con las ciencias, así como la diversidad de conocimientos. Se presenta el trabajo de esta banda, también, como una forma de cuestionar acerca de la educación y sus propósitos. A continuación, se ocupa de la relación de lo que habían estado expuestos a lo que con obras, propuestas y teorías relacionadas con la enseñanza, y también cómo se han estudiado estos temas y se muestra puede estar presente en la actividad en el aula. Se propone que la obra de Chico Science & Nação Zumbi, y las otras bandas y escenas presentadas, se puede utilizar en las actividades educativas como una manera de estudiar y establecer dichos temas. Este trabajo indica que se tiene en cuenta lo que está presente en muchas partes del texto, incluso en lo referente a lo trabajo de Chico Science & Nação Zumbi y teorías educativas presentado: estas diversas proposiciones y conocimientos no están exentos de crítica y problematizaciones, ajuste es por lo tanto en las perspectivas abiertas. Palabras clave: Contra Inducción, Figuramento, Chico Science & Nação Zumbi, Enseñanza de las Artes & Ciencias, Intercambios Abiertos. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 - Galileu frente ao tribunal da Inquisição, pintura de Cristiano Banti (1857) 36 Figura 2 - Citação e desenho ilustrativo sobre o Sistema de Ptolomeu 37 Figura 3 - Conhecida imagem das faces e do vaso, exemplo de perspectiva 56 Figura 4 - A soma dos ângulos de um triângulo e o “ângulo reto” 66 Figura 5 - Madona dos olhos grandes, Siena, 1260 67 Figura 6 - A Virgem e Criança Entronizada, com Cenas da Natividade e a Vida dos Santos, Margarito de Arezzo, 1275 68 Figura 7 - Madona do Grão Duque, Rafael, 1504 69 Figura 8 - Ilustração do experimento de Brunelleschi, 1425 70 Figura 9 - Ilustração do Princípio de construção de Leon Battista Alberti 71 Figura 10 - Ilustração de estudos de perspectiva linear (século XVI d. C.) 72 Figura 11 - Ilustração do método de perspectiva de Alberti 72 Figura 12 - Pintura intitulada Assunção, feita por Cigoli em 1612 73 Figura 13 - Representação de um telescópio 73 Figura 14 - Fractal criado por Mark R. Laff e V. Alan Norton 74 Figura 15 - Capa do livro Imposturas intelectuais, de Sokal Bricmont 83 Figura 16 - Diagrama com as componentes da ciência baseado no que fora exposto por Ludwik Fleck em Gênese e desenvolvimento de um fato científico 108 Figura 17 - Capa do folheto de Cordel História do Pavão Misterioso 116 Figura 18 - Primeira página do folheto História do Pavão Misterioso 117 Figura 19 - Representações antigas de esqueletos 122 Figura 20 - A árvore da vida da Cabala 123 Figura 21 - Nota sobre uma doutrina secreta 140 Figura 22 - Música, matemática e outros conhecimentos 141 Figura 23 - Arte e matemática no período clássico 142 Figura 24 - Matemática, arte e outros conhecimentos no período clássico 143 Figura 25 - Matemática, artes e doutrinas no período clássico 144 Figura 26 - Números Figurais Triangulares 145 Figura 27 - Números Figurais Quadrados 145 Figura 28 - Números Figurais Pentagonais 145 Figura 29 - Representação de Números Figurados com “pedras” 145 Figura 30 - Exemplos de mosaicos romanos 146 Figura 31 - Matemática, geometria, pedras, humanos, aves, vegetação etc. 146 Figura 32 - Humano, coração, ave, pedras, justaposição, flores etc. 147 Figura 33 - Tetractys da Década pitagórico 147 Figura 34 - Arte, matemática e vida 148 Figura 35 - Imagem de uma estátua representando Platão (428/427 – 348/347 a.C.) 149 Figura 36 - Misterium Cosmographicum, proposto por Kepler (1596) 162 Figura 37 - Figura representando o movimento de Marte visto da Terra, presente em Astronomia nova, de Kepler 164 Figura 38 - Imagem presente em L’Essayeur de Galileu Galilei 165 Figura 39 - Imagem presente em Dialogue des Grandes Systèmes de Galileu Galilei 165 Figura 40 - Imagem presente em Dialogue des Sciences Nouvelles de Galileu Galilei 166 Figura 41 - Imagem presente em Dialogue des Sciences Nouvelles de Galileu Galilei 167 Figura 42 – Imagem presente em Dialogue des Sciences Nouvelles de Galileu Galilei 167 Figura 43 – Imagem presente em Dialogue des Sciences Nouvelles de Galileu Galilei 168 Figura 44 - Imagem presente em Diálogo dos sistemas de mundo, de Galileu Galilei 170 Figura 45 - Imagem presente em Il Saggiatore, Galileu Galilei 172 Figura 46 - Imagem presente em Il Saggiatore, de Galileu Galilei 174 Figura 47 - Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei 176 Figura 48 - Imagem presente em L’Esercitationi Filosofiche, de Antônio Rocco 177 Figura 49 - Imagem presente em L’Esercitationi Filosofiche, de Antônio Rocco 178 Figura 50 - Imagem presente em L’Esercitationi Filosofiche, de Antônio Rocco 178 Figura 51 - Mapa Celeste de Ignace Gaston Pardeis (1693) 180 Figura 52 - Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci 181 Figura 53 - Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci 181 Figura 54 - Capa do livro Prose, de Leonardo da Vinci 183 Figura 55 - Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci 185 Figura 56 - Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci 186 Figura 57 - Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci 186 Figura 58 - Imagem do quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci 187 Figura 59 - A Última Ceia, de Albrecht Dürer 188 Figura 60 - Imagem presente em Princípios de estática, de Simon Stevin (1586) 189 Figura 61 - Índice de A chave da Alquimia, de Paracelso 191 Figura 62 – Imagem do sistema de mundo proposto por Nicolau Copérnico 195 Figura 63 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 198 Figura 64 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 199 Figura 65 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 200 Figura 66 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 201 Figura 67 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 202 Figura 68 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 203 Figura 69 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 204 Figura 70 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 205 Figura 71 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 206 Figura 72 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 206 Figura 73 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 207 Figura 74 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 208 Figura 75 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno 209 Figura 76 - Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates 210 Figura 77 - Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates 211 Figura 78 - Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates 212 Figura 79 - Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates 213 Figura 80 - Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates 214 Figura 81 - Pintura considerada como sendo referente a Giordano Bruno 217 Figura 82 - Perspectiva, Gestalt etc.: a conhecida figura da “moça” e da “velha” 223 Figura 83 - Imagem referente à noção de “Peixes quânticos” 224 Figura 84 - Imagem representando o paradoxo do “Gato de Schrödinger” 231 Figura 85 - Imagem referente à solução de Eugene Wigner para o paradoxo do “Gato de Schrödinger” 232 Figura 86 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 236 Figura 87 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 237 Figura 88 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 238 Figura 89 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 239 Figura 90 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 240 Figura 91 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 241 Figura 92 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 242 Figura 93 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 243 Figura 94 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 244 Figura 95 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 245 Figura 96 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 246 Figura 97 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 247 Figura 98 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 249 Figura 99 - Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei 250 Figura 100 - Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei 251 Figura 101 - Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei 251 Figura 102 - Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei 252 Figura 103 - Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei 252 Figura 104 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 257 Figura 105 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 259 Figura 106 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 260 Figura 107 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 261 Figura 108 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 262 Figura 109 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 263 Figura 110 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 264 Figura 111 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 266 Figura 112 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 267 Figura 113 - Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking 268 Figura 114 - Capa de Da lama ao caos, primeiro disco da banda Chico Science Nação Zumbi (1994) 272 Figura 115 - Contracapa de Da lama ao caos (1994) 273 Figura 116 - Capa do folheto de Cordel Proezas de João Grilo 277 Figura 117 - Cartaz de divulgação de uma feira de cordel realizada em 2015 279 Figura 118 - Capa de Afrociberdelia¸ segundo álbum de Chico Science Nação Zumbi (1996) 280 Figura 119 - Sobre Afrociberdelia¸ no encarte do cd homônimo 281 Figura 120 - Página do encarte, com as cinco primeiras músicas do cd Afrociberdelia 282 Figura 121 - Bandeira Vodu 284 Figura 122 – Esculápio / Asclépio, para os gregos e os romanos, o deus da medicina 286 Figura 123 - Imagem presente no encarte de Afrociberdelia 288 Figura 124 - Imagem presente no encarte de Afrociberdelia 289 Figura 125 - Imagem presente no encarte de Afrociberdelia 292 Figura 126 - Capa do cd CSNZ da banda Chico Science ε Nação Zumbi 296 Figura 127 - Capa do cd RÁDIO S.AMB.A (Serviço Ambulante de Afrociberdelia), da banda Nação Zumbi (2000) 297 Figura 128 - Capa do cd Fome de Tudo, da Banda Nação Zumbi (2007) 298 Figura 129 - Capa do novo cd da Banda Nação Zumbi, Nação Zumbi (2014) 298 Figura 130 - Capa do cd Samba Esquema Noise, da Banda Mundo Livre S/A (1994) 299 Figura 131 - Capa do Cd Guentando a ôia, da Banda Mundo Livre S/A (1996) 300 Figura 132 - Capa do primeiro disco da banda Mestre Ambrósio (1996) 301 Figura 133- Capa do cd Quanta, de Gilberto Gil (1997) 302 Figura 134 - Capa de O labirinto e o desmantelo, segundo cd de Lira (2015) 304 Figura 135 - Capa do cd Aquele disco massa, do Graxa (2015) 305 Figura 136 - Capa de Super qualquer no meio de lugar nenhum, de Juvenil Silva (2014) 305 Figura 137 - Imagem presente em 10 Novas Competências para Ensinar: Convite à viagem, de Philippe Perrenoud 323 Figura 138 - Capa do livro O Golem: o que você deveria saber sobre ciência, de Harry Collins e Trevor Pinch 325 Figura 139 - Capa da Revista EDUCAÇÃO ealidade (2013) 333 Figura 140 - Gravura no 71, intitulada Contra o bem geral, da série Os desastres da Guerra, de Francisco Goya 336 Figura 141 - Imagem de Chico Science dançando 347 Figura 142 - Imagem de Chico Science no clip de Maracatu atômico 347 Figura 143 - Quadro de temas referentes às músicas de Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ) 350 Figura 144 - Quadro de imagens de várias cenas 351 SUMÁRIO 1 Introdução 16 2 Culturas, práticas sociais e pensamentos: “metodologias”, pressupostos, trocas abertas e mudanças de significado 22 2.1 Paul Feyerabend: tradições vivas, trocas abertas, contra indução e ambiguidade 22 2.1.1 Contra o método 22 2.1.2 Adeus à razão 48 2.1.3 A conquista da abundância 61 2.1.4 Análise de algumas das críticas ao pensamento de Paul Feyerabend 80 2.2 Ludwik Fleck: protoideias, estilos de pensamento, acoplamentos ativos e passivos e mudanças de significado 90 2.3 Culturas & cultura 126 3 Artes, ciências e visões de mundos 136 3.1 Pitagorismo, platonismo e neoplatonismo 136 3.2 Artes, “revolução científica” e pluralidades 159 3.3 O contexto instaurado pela física moderna 220 4 Chico Science & Nação Zumbi, Manguebeat, outras bandas e cenas 269 5 Ensino de Artes & Ciências por meio de Figuramento 306 5.1 Algumas concepções e propostas educacionais da atualidade e suas referências teórico-simbólicas 307 5.2 Com vistas à pluralidade: problematizando o Ensino de Ciências e alguns de seus pressupostos 324 5.3 A obra de Chico Science & Nação Zumbi, bandas do Manguebeat e outras cenas, como recurso didático e de problematização 344 Referências Bibliográficas 353 16 1 INTRODUÇÃO Há o entendimento, corroborado por muitos pensadores e escolas de pensamento de que mediante a racionalidade se reduziria a superficialidade com que as pessoas veem o mundo em que habitam e que se chegaria à realidade última das coisas. Conforme tal visão, homens e mulheres se tornariam microunidades racionais capazes de resolver seus problemas através da sua capacidade lógico-racional, seguindo tal modelo abstrato. No entanto, isso vem sendo questionado, e em certa medida, desconstruído nos últimos tempos. Filósofos da ciência, sociólogos da ciência, estudiosos e pensadores dos mais diversos segmentos (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010; SNOW, 1995; LATOUR, 2000; COLLINS; PINCH, 2003; OVERING, 1995) questionam e problematizam o método científico, a ciência e o fazer científico, buscando entender o contexto e os determinantes de conhecimentos e saberes, como também perscrutando, em grande medida, a relação entre ciência e cultura. Embora tenham vertentes diferentes, objetivos e configurações diferentes, os posicionamentos desses estudiosos com a problemática referente à pós-modernidade, marcada pela noção de fragmentação. A ciência e sua “metodologia” não estão fora dessa discussão. Embora estes autores não compartilhem todos as mesmas posições acerca da pós-modernidade, nem tratem especificamente do tema, nem obrigatoriamente dos mesmos tópicos, estes discutem pontos semelhantes àqueles estudiosos ditos pós-modernos ou defensores da pós-modernidade. O fato de o termo e as primeiras propostas pós-modernas terem surgido nas artes, sendo, em seguida, adotada em outras áreas, torna ainda mais evidente (ou retoma) certo conflito entre as formas de entendimento e representação das artes e aquelas praticadas pelas ciências – embora também, em alguma medida, é um ponto em que essas áreas se encontram, ou mediante o qual se relacionam, como buscar-se-á defender e evidenciar. Nesse sentido, pode-se dizer, que a pós-modernidade (ou o contexto pós-moderno) vem, dentre outras coisas, evidenciar que o debate acerca das diferenças e semelhanças entre arte e ciências, como também questionamentos mais fundamentais, como por exemplo, se a arte pode intervir no real - contribuindo decisivamente para a edificação de visões de mundo, conceituações e percepções -, parecem não estar totalmente esgotados. Posteriormente ao que se convencionou chamar de revolução científica, ou de certo momento da modernidade, houve uma tendência a relegar as artes a um segundo plano em 17 detrimento da ciência e seu suposto método da verdade. Em certa medida os problemas e incertezas trazidos pela física moderna (ou seria pós-moderna?), surgida a partir do fim do século XIX e início do século XX, acabam contribuindo para a discussão acerca dos métodos da ciência, da sua concepção determinística e da sua suposta supremacia - já que não se tem mais uma concepção determinística para as leis da matéria, não faz tanto sentido desconsiderar conhecimentos que também não o tem, diria, por exemplo, Paul Feyerabend . Desta feita, uma proposta educativa que considere o que vem sendo discutido por esses autores e tendências pós-modernas, e que em alguma medida avance nesses temas, é bastante relevante. Afinal, a separação das culturas, ou a noção de que essa separação existe - não parece ter sido amenizada e/ou discutida, nem tampouco o estudante do nível médio, e em certa medida o estudante de nível superior, parece ter um mínimo conhecimento acerca da ciência e da produção de conhecimento que o capacitariam a ter uma posição formada para opinar na chamada sociedade da informação e do conhecimento, já que essas discussões e entendimentos ocorridas em nível acadêmico e nos periódicos não chega aos manuais e nem às formações de professores de forma satisfatória (LOPES; JAFELICE, 2013; LOPES, 2010). Embora se deva considerar que Snow, em As duas culturas (texto escrito há mais de meio século) - em grande medida possivelmente se referindo à realidade da Inglaterra –, tenha tido como objetivo aproximar cientistas e literatos, ele claramente o faz de uma forma bastante unilateral, já que defende que os literatos devem aprender ciência, mas não menciona, por exemplo, que a ciência em alguma medida também tem elementos da arte ou que deva se aproximar daquele saber. Textualmente expõe que a única forma de o mundo melhorar é se as pessoas aprenderem ciência, não tem outro meio. Paradoxalmente, isso coloca a ciência de um lado e tudo que não é ciência de outro, mediante a imposição de que uma delas tem que ceder em detrimento da outra. No entanto, como se buscará mostrar, esse entendimento é por demais realista frente ao que a pós-modernidade e crítica pós-moderna vêm colocando – tendo a pós- modernidade como uma revisão, problematização (e em alguma medida negação) das certezas e prescrições da modernidade (LYOTARD, 1993) – e que deve pelo menos ser discutida, conhecida e problematizada. Jean-François Lyotard, ao traçar relações entre o estatuto do saber, era pós-industrial e a cultura pós-moderna, expõe sobre a problemática da decomposição dos grandes relatos, de atomismo e dos jogos de linguagem wittgensteinianos. Menciona aquilo que é praticamente inevitável, que o contexto pós-moderno tem relação com as teorias trazidas pela física moderna e pelos teoremas matemáticos de Gödel. Segundo o autor, “o traço surpreendente do saber pós- 18 moderno é a imanência a si mesmo, mas explícita, do discurso sobre as regras que o legitimam” (LYOTARD, 1993, p. 100), expondo ainda os seguintes questionamentos: “O que vale o seu argumento, o que vale a sua prova? [...] O que vale o seu ‘o que vale’?” (Ibid., p. 100). Nesse sentido, é exposto ainda por Lyotard que o saber pós-moderno “nos refina a sensibilidade para as diferenças e nos reforça a capacidade de suportar o incomensurável” (LYOTARD, 1993). A ciência parece ser um fazer humano bem mais caótico do que se aceita, avançando muitas vezes de forma contra indutiva e até por acidente - como chamou a atenção Feyerabend nas suas obras e muitos outros autores depois dele -, que não segue por completo racionalidades ou métodos específicos nem está tão separada, como muitas vezes é posto, de outras formas de conhecimento. Pode-se fazer, portanto, os seguintes questionamentos acerca de tudo isso: como se dão, de forma mais pormenorizada (por assim dizer), as relações entre artes e ciências? É possível evidenciar pontos, “zonas” de interseção – representadas, porventura, por conceitos, doutrinas, figuras, narrativas etc. - entre artes e ciências? Como seria uma educação e proposta educativa nesse contexto? De antemão se pode antever, em alguma medida, que uma educação que comtemple essa problemática deve partir da cultura, de temas presentes na cultura enquanto um substrato mais geral do que aquela ciência dissecada que é apresentada em manuais e livros didáticos de ciências. Tem-se como objetivos perscrutar a relação entre artes, ciências e outras formas de conhecimento, por meio do pensamento de Paul Feyerabend e Ludwik Fleck – que propuseram, por exemplo, as noções de tradições vivas, trocas abertas e ambiguidade, e de protoideia, acoplamentos ativos e passivos e mudança de significado, respectivamente -, como também através da análise de algumas obras de períodos diversos, visando assim esboçar os fundamentos norteadores de uma proposta pedagógico-educativa conduzida por meio de temas e concepções presentes na cultura, em que tais discussões e possíveis conclusões acerca destas problematizações possam ser contempladas, contribuindo para que se possa rever minimamente as dicotomias entre epistemologia e cultura, pensamentos e vidas, planejamentos e vivências, evidenciando também, em alguma medida, que a distinção entre ciências e outras formas de conhecimento nem sempre é clara. Tem-se em vista a proposição de uma educação e ensino – entendendo-se educação como algo relacionado a pressupostos mais gerais, não apenas à apresentação de teorias, conceitos e informações técnicas, mas algo como uma vivência que coloque o estudante em contato com visões de mundo, metáforas e narrativas que estão à base de teorias e conceitos, e ensino ou prática educativa como a atividade que está relacionada e que propicia o ato de 19 interação propriamente dito em sala - cujos temas a serem trabalhados partam da cultura, por esta comportar uma abertura inerente, e estar presente a todos e praticamente a todo momento. Muitas vezes considera-se cultura como sinônimo de determinadas manifestações culturais como danças, teatro e arte de uma forma geral, o que em certa medida restringe o entendimento desta como esse substrato maior, que comporta as práticas cientificas e sociais, e que é tanto nascedouro como transformação de saberes – que inclui tanto noções de ciência antiga, quanto de ciência moderna e clássica, como também faz referência a muitos outros saberes. A ciência, portanto, enquanto manifestação da, e, na cultura, é formada também por essa mistura de saberes (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010, FLECK, 2010). Física, por exemplo, também é cultura (ZANETIC, 1989), porque não se constitui como algo separado, é uma parte da cultura. Uma evidência disso, é que a ciência tem presente em suas teorias e entendimentos noções culturais mais gerais, multifacetadas e que comportam ambiguidades – como será exposto nos capítulos seguintes. Uma educação que parta da cultura possibilita um entendimento mais plural do mundo e sobre tudo das disciplinas escolares e para além delas. Umas das formas de transmitir saberes é através de produções artísticas, obras de artes em geral e símbolos. Isso é algo notório. As artes, a cultura, em alguma medida falam por si mesmas. Por meio de símbolos, informações são codificadas há bastante tempo no mundo. Nesse trabalho serão apresentadas algumas imagens, por se considerar que são “artefatos” culturais que, assim como teorias, axiomas e fórmulas, fazem parte do manancial interpretativo diverso acerca do mundo. Inclusive é uma forma de, em alguma medida, problematizar acerca da suposta separação entre culturas (artes e ciências). As obras dos cientistas e pensadores, em sua maioria, apresentam ilustrações, que estão longe de ser apenas figuras que ajudam ao entendimento do que se está tratando em forma de textos ou de esquemas, mas contribuem para criar a noção do que se busca apresentar. As imagens e figuras apresentadas foram escolhidas - decidiu-se por estas, diga-se assim - por possibilitarem que se evidencie a inter-relação entre artes, ciências e outras formas de conhecimento. Além de figurar como referencial teórico, as discussões trazidas por Paul Feyerabend e Ludwik Fleck, sobre epistemologia, teoria do conhecimento (o pensamento, conceituação e explicação do processo de epistemologização), cultura, grupos sociais, escolas ou grupos onde se relacionam pensamentos e entendimentos, linguagens, abstrações, fantasias, ideias e obras de arte, também têm uma contribuição metodológica. Buscou-se desenvolver os temas e proposições desses pensadores e de outros, e abordou-se minimamente os principais temas de que tratam, mediante a apresentação de informações, mas sem ter a pretensão de esgotar o 20 entendimento sobre aquilo de que tratam, nem outras possibilidades de entendimento sobre os temas. Por meio da educação se adquire e se troca informações que em certa medida não estão dadas, mas que se dão pela interação. O educador deve abrir possibilidades. Sendo assim, a educação deve considerar a cultura em geral – em todas as suas formas, inclusive as ciências - como uma tradição viva e aberta. Um dos objetivos da tese é sim mostrar que artes e ciências não são áreas de conhecimento em separado, sendo essa justamente parte substancial do que se está a defender. No entanto, a abordagem não se restringe a mostrar que a arte utiliza pressupostos da ciência nas suas produções e vice-e-versa, mas sobretudo pretende evidenciar que há conhecimentos, metáforas e símbolos que além de serem utilizados por ambas as formas de conhecimento, comportam em si tanto concepções artísticas, estéticas, como pressupostos de racionalidade que caracterizam tanto as ciências como as artes, como por exemplo, os números figurais. E, ainda, que alguns temas e/ou símbolos têm uma pluralidade de significados, inter-relações e possibilidades de percepção, interpretações e um forte potencial heurístico, como no caso da imagem da serpente que morde a própria cauda e muitas outras imagens e figuras. Serão apresentadas, e em certa medida comentadas, figuras, produções artísticas e imagens gráficas presentes em diversas obras - antigas, medievais, renascentistas, modernas e contemporânea – científicas e/ou relacionadas à história do pensamento (por assim dizer) e artísticas (considerando arte em um sentido mais geral), culminando com a apresentação e um breve comentário dos discos Da lama ao caos e Afrociberdelia da banda Chico Science & Nação Zumbi, integrante do Manguebeat. Os discos da banda pernambucana serão também apresentados como uma possível forma de se começar uma conversa em sala de aula sobre as diversas temáticas e saberes que serão abordados. Busca-se com isso evidenciar que a ciência utiliza imagens para construir seu ideário, que as imagens não são apenas ilustrações, mas que são fundamentais para a construção de visões de mundo, e que estão presentes em diversos planos da cultura. Se pode conjecturar que a tentativa de separar as ciências das artes está intimamente relacionada à busca por desconsiderar a ligação da ciências com outras formas de conhecimento, que em alguma medida guardam fortes relações com a artes. Conhecimentos que não podem ser completamente descritos e contemplados pela razão em seu sentido instrumental, como é o caso dos pressupostos, imagens mentais, símbolos, metáforas e analogias presentes na Alquimia, na Astrologia e na Magia, por exemplos. Assim como estes, o fazer científico e demais atividades humanas de cunho coletivo não têm algo como “uma 21 mente” por trás de suas ações, mas agem apenas com uma vaga noção do que estão fazendo ou entendendo, ou têm apenas uma inclinação, para usar um termo posto por Feyerabend, sendo muito mais algo como um quale sobre o qual se pode no máximo perscrutar. Os capítulos seguintes buscam contribuir no sentido de que se possa perceber algumas qualidades e que se tenha algo como uma noção da paradoxal história do saber. Assim, o trabalho também está relacionado, em certa medida, à história do conhecimento e/ou dos saberes (o que é bem mais plural do que história da ciência) e de como se pode trabalhar isso em termos educacionais. Está-se propondo como metodologia o que se passa a chamar de Figuramento. Trata-se da exposição de questões e de temas da história do pensamento por meio de figuras e imagens integrantes das artes e das ciências. Em certa medida um diálogo e uma relação entre blocos de textos e imagens. Os temas nos capítulos que se seguem serão expostos de uma forma livre e aberta, constando da apresentação de informações, com ligações entre temas e sistemas de conhecimento - seguindo em alguma medida a contra indução de que fala Feyerabend -, sendo assim uma mistura ou emparelhamento de concepções que visa evidenciar a relação entre universos e/ou teorias. 22 2 Culturas, práticas sociais e pensamentos: “metodologias”, pressupostos, trocas abertas e mudanças de significado 2.1 Paul Feyerabend: tradições vivas, trocas abertas, contra indução e ambiguidade 2.1.1 Contra o método Para Paul Feyerabend os projetos científicos têm que ser considerados individualmente, pois os eventos, os procedimentos, os resultados que constituem as ciências e os projetos científicos são desiguais, idiossincráticos, não havendo um único método que esteja em todos eles: “os eventos, os procedimentos e os resultados que constituem as ciências não têm uma estrutura comum; não há elementos que ocorram em toda investigação científica e estejam ausentes em outros lugares” (FEYERABEND, 2007, p. 19). Ou seja, Feyerabend coloca a ciência e, principalmente, o método científico em discussão, por meio de sua maneira contra indutiva de proceder. Em seu primeiro livro, Contra o método, ele trata, dentre outras coisas, de controvérsias acerca da revolução copernicana e da física galileana – o experimento da torre, os novos instrumentos que Galileu acrescenta e suas novas interpretações –, mostrando que a ciência e suas teorias nem sempre, ou quase nunca, são construídas de forma linear, utilizando muitos outros atributos além da racionalidade. Ele defende, portanto, “que pode haver muitas espécies diferentes de ciência” (Ibid., p. 21, grifos do autor) e “que o êxito da ‘ciência’ não pode ser usado como argumento para tratar de maneira padronizada problemas ainda não resolvidos” (Ibid., p. 20). Assevera que “[a] ciência é um empreendimento essencialmente anárquico” (Ibid., p. 25), ou pelo menos deveria ser considerada assim, já que não tem um método fixo e determinante, e que muitas vezes se desenvolve de forma contra indutiva – ao tentar evidenciar algo, muitas vezes, estudos e experimentos científicos acabam abrindo novas frentes de estudos e/ou concluindo algo totalmente diferente daquilo que era buscado. O autor defende ainda a 23 desvinculação da ciência de forças propagandísticas e ideológicas e, principalmente, a liberdade para se estabelecer outros sistemas epistemológicos igualmente válidos: Mais uma vez, gostaria de defender dois pontos de vista: primeiro, que a ciência pode ficar em pé sobre suas próprias pernas e não precisa de nenhuma ajuda de racionalistas, humanistas seculares, marxistas e movimentos religiosos semelhantes; segundo, que cultura, procedimentos e pressupostos não-científicos também podem ficar em pé sobre suas próprias pernas e deveria ser-lhes permitido fazê-lo, se tal é o desejo de seus representantes. [...] Em uma sociedade democrática, instituições, programas de pesquisa e sugestões têm, portanto, de estar sujeitos ao controle público; é preciso que haja separação entre Estado e ciência da mesma forma que há uma separação entre Estado e instituições religiosas, e a ciência deveria ser ensinada como uma concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a realidade (FEYERABEND, 2007, p. 8 – 9). O pensamento de Paul Feyerabend problematiza diversos contextos. Critica a ciência enquanto forma de conhecimento e seu método, discorre sobre a componente social e humana das teorias, como também termina por valorizar outras práticas que não estejam pautadas neste ideário. Para o autor, “[a] criação de uma coisa e a criação mais a compreensão plena de uma idéia correta da coisa são com muita freqüência partes de um e o mesmo processo indivisível e não podem ser separadas sem interromper esse processo” (Ibid., p. 12 grifos do autor). Ou ainda que [p]ode-se também perceber, por uma análise da relação entre idéia e ação, que interesses, forças, propaganda e técnicas de lavagem cerebral desempenham, no desenvolvimento de nosso conhecimento e no desenvolvimento da ciência, um papel muito maior do que geralmente se acredita (FEYERABEND, 2007, p. 40). Percebe-se, como o próprio título da obra deixa transparecer, que a questão central para Feyerabend é mostrar que não há um método único na ciência, e que, portanto, “[u]ma descrição universal da ciência, de qualquer modo, pode no máximo fornecer uma lista de eventos” (FEYERABEND, 2007, p. 15). Segundo o autor, este fato determina “[...] que procedimentos ‘não-científicos’ não podem ser postos de lado por argumentos” (Ibid., p. 20, grifos do autor), haja vista que a fluidez metodológica com que se dá a prática científica impossibilita uma demarcação segura. Mas, para além disso, essa citação introduz uma problemática que será muito abordada por Feyerabend em praticamente toda a sua obra: teorias científicas são construções sociais, fruto da relação com outros saberes, sendo que essa relação é parte da teoria 24 e não algo apenas no plano do argumento ou algo acessório que possa ser desconsiderado sem que nada se mude na teoria. Isso precisa ser difundido, para os educadores, e sobretudo para os estudantes, pois a crença de que a ciência possui um método único e de que as teorias são racionalizações de mentes individuais, e, principalmente, que são algo desconectado do contexto do qual emergem, serve à estruturação da ciência enquanto forma hegemônica, contribuindo, inclusive, para subjugar as demais formas de conhecimento. Embora algo nesse sentido venha sendo feito já há um tempo por estudiosos em educação e educação científica, muito pouco tem chegado aos manuais, aos livros textos e à sala de aula propriamente dita (LOPES, 2010). Paul Feyerabend é comumente denominado anarquista epistemológico, ao que este não tem objeção, embora chame a atenção para o fato de que [os anarquistas] engolem sem protestar todos os padrões severos que cientistas e lógicos impõem à pesquisa e a qualquer espécie de atividade capaz de criar ou de modificar o conhecimento. Ocasionalmente, as leis do método científico, ou aquilo que um autor particular julga serem as leis do método científico, são até mesmo integradas ao próprio anarquismo. ‘O anarquismo é um conceito universal baseado em uma explicação mecânica de todos os fenômenos’, escreve Kropotkin. ‘Seu método de investigação é o das ciências naturais exatas ... o método de indução e dedução’ (FEYERABEND, 2007, p. 35). Kropotkin, anarquista russo, foi muito influenciado pelo positivismo e acabou se alinhando ao método positivista, algo comum à época. O anarquismo tem exemplos de perspectivas bem mais arejadas, como as posições defendidas por Noam Chomsky (2011), que é inclusive citado por Feyerabend no livro Adeus à razão (FEYERABEND, 2010). Além disso, é conhecida a posição de Mikhail Bakunin, sobre o possível despotismo do reinado da ciência, algo também abordado por Feyerabend em Contra o método (FEYERABEND, 2007). Assim começa a introdução da terceira edição de Contra o método: O ensaio a seguir é escrito com a convicção de que o anarquismo, ainda que talvez não seja a mais atraente filosofia política, é, com certeza, um excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência (FEYERABEND, 2007, p. 31). Epistemologia deriva de episteme, palavra que já carrega uma carga cultural bem específica. Pode-se objetar, como o faz Feyerabend, acerca do entendimento da epistemologia 25 (enquanto uma subárea da filosofia) segundo o qual seria possível uma teoria geral do conhecimento. Isso, em certa medida, contribui para a ideia de que Feyerabend é anticientífico ou como se veicula em periódicos, “o pior inimigo da ciência”, algo que pesa sobre esse pensador e seu pensamento e que facilmente se pode evidenciar como sendo equivocada (KIDD, 2011). Em muitas passagens de suas obras Feyerabend se coloca como não sendo um pensador necessariamente anticientífico, No prefácio à edição chinesa de Contra o método o autor deixa claro qual a sua posição (que inclusive é semelhante a muitas outras passagens daquela e de várias outras obras suas): ‘Progresso do conhecimento’ significa, em muitos lugares, a matança de mentes. [...] Médicos, antropólogos e ambientalistas estão começando a adaptar seus procedimentos aos valores das pessoas que, supõem aconselhar. Não sou contra uma ciência dessa forma. Tal ciência é uma das invenções mais maravilhosas da mente humana. Mas sou contra ideologias que usam o nome da ciência para o assassínio cultural (FEYERABEND, 2007, p. 23). Por motivos os mais diversos, o conhecimento científico, amparado na ideia de progresso técnico e tecnológico, tornou-se detentor de uma hegemonia inexplicável do ponto de vista sociocultural, ocasionando certa padronização da técnica e do conhecimento. É inexplicável porque a ciência é apenas um dos componentes da cultura, e não o juiz de tudo que existe. Isso é grave, já que aquela forma de entender a atividade científica não é isenta: O ‘progresso do conhecimento e da civilização’ – como está sendo chamado o processo de forçar costumes e valores ocidentais em todos os cantos do mundo – destruiu [...] maravilhosos produtos da engenhosidade e compaixão humanas sem uma única olhadela sequer em sua direção. (FEYERABEND, 2007, p. 22-23). Uma das declarações mais polêmicas e que é mais discutida, citada e criticada por estudiosos do pensamento de Feyerabend é aquela em que ele diz que tudo vale: [e]stá claro, então, que a idéia de um método fixo ou de uma teoria fixa da racionalidade baseia-se em uma concepção demasiado ingênua do homem e de suas circunstâncias sociais. Para os que examinam o rico material fornecido pela história e não têm a intenção de empobrecê-lo a fim de agradar a seus baixos instintos, a seu anseio por segurança intelectual na forma de clareza, precisão, ‘objetividade’ e ‘verdade’, ficará claro que há apenas um princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias e em todos os estágios do 26 desenvolvimento humano. É o princípio de que tudo vale. Esse princípio abstrato precisa agora ser examinado e explicado em detalhes concretos (FEYERABEND, 2007, p. 43, grifos do autor). Ora, esta expressão é parte do seguinte argumento: ao analisar de forma séria e procedente os conhecimentos construídos pela humanidade, e se considerar-se que estes desenvolveram-se mediante um único método de investigação, não ter-se-ia outra saída a não ser postular que tudo é válido, tendo em vista a profusão de formas de estruturação das investigações e teorias. Ou seja, não há como encontrar uma categoria metodológica que reúna em si todos os diversos métodos os quais se pode perceber ao estudar a história do conhecimento. Não há como observar um múltiplo comum entre todos estes métodos, sendo a única saída determinar, então, que tudo vale, que nada mais é do que a consideração de uma categoria virtual, digamos, a única que daria conta da diversidade metodológica da ciência, segundo Feyerabend. Considerando que “[p]odemos fazer avançar a ciência procedendo contra-indutivamente” (FEYERABEND, 2007, p. 45), e didaticamente explicando o que seria sua concepção de contra indução, este autor expõe que se invente um novo sistema conceitual que suspenda os resultados de observação mais cuidadosamente estabelecidos ou entre em conflito com eles, conteste os princípios teóricos mais plausíveis e introduza percepções que não possam fazer parte do mundo perceptual existente. A contra-indução, portanto, é sempre razoável e tem sempre uma chance de êxito. [...] Poder-se-ia, portanto, ter a impressão de que estou recomendando uma nova metodologia que substitua a indução pela contra-indução e utilize uma multiplicidade de teorias, concepções metafísicas e contos de fadas em vez do costumeiro par teoria / observação. Essa impressão certamente seria errônea. Minha intensão não é substituir um conjunto de regras por outro conjunto da mesma espécie: minha intensão, ao contrário, é convencer a leitora ou o leitor de que todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites. A melhor maneira de exibir isso é demonstrar os limites e mesmo a irracionalidade de algumas regras que ela ou ele tendeira a considerar básicas. No caso da indução (inclusive a indução por falseamento), isso significa demonstrar quão bem o procedimento contra-indutivo pode ser apoiado por argumentação. Recorde- se, sempre, que as demonstrações e a retórica empregada não expressam nenhuma “convicção profunda” de minha parte. Elas apenas mostram quão fácil é fazer, de maneira racional, que alguém nos siga cegamente. Um anarquista é como um agente secreto que participa do jogo da Razão de modo que solape a autoridade da Razão (Verdade, Honestidade, Justiça e assim por diante). (Ibid., p. 48 – 49). É possível perceber com esse comentário, sobretudo em seu final, que a intenção de Feyerabend é desenvolver o pensamento, já ele não poupa nem sequer seus próprios comentários de serem considerados jogo de retórica. Ele relata o fato de ter tido estreito contato 27 com as obras de Ludwig Wittgenstein (FEYERABEND, 2007) – tendo sido inclusive aprovado para estudar com ele, não tendo sido possível devido a sua morte (FEYERABEND, 2006, 2010) – o que muito possivelmente contribuiu para o seu estilo de pensamento e escrita. Feyerabend escreve por sentenças, por refutações lógicas, e muitas vezes parece atingir o estágio de discurso em que não defende necessariamente uma posição, mas muito mais propicia o desenvolvimento do pensamento – foi esse o estilo esboçado por Wittgenstein em Investigações Filosóficas, por exemplo. Nesse sentido, considera que “[a] proliferação de teorias é benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade prejudica seu poder crítico. [E que] [a] uniformidade também ameaça o livre desenvolvimento do indivíduo” (FEYERABEND, 2007, p. 51). Nesse sentido expõe ainda: É bem sabido (e também foi demonstrado de modo pormenorizado por Dühem) que a mecânica de Newton é inconsistente com a lei de queda livre, de Galileu, e com as leis de Kepler; que a termodinâmica estatística é inconsistente com a segunda lei da teoria fenomenológica; que a óptica ondulatória é inconsistente com a óptica geométrica; e assim por diante. (Ibid., p. 51). Seguindo essa esteira argumentativa segundo a qual as teorias científicas não são algo harmônico defende que “[n]ão há nenhuma idéia, por mais antiga e absurda, que não seja capaz de aperfeiçoar nosso conhecimento. Toda a história do pensamento é absorvida na ciência e utilizada para o aperfeiçoamento de cada teoria. (Ibid., p. 63). Uma prova disso, pode-se expor, é a lei de Newton para a gravitação, que acaba em grande medida se baseando na antiga teoria da atração de Empédocles. Um dos exemplos abordados por Paul Feyerabend sobre ideias notadamente originárias de outros contextos que estão presentes na ciência é a influência que a cultura hermética exerceu sobre as teorias da revolução cientifica dos séculos XVI e XVII: “[o]s escritos hermetistas desempenharam importante papel nesse revivescimento [da ideia de que a Terra se move], que ainda não foi compreendido de modo suficiente, e foram cuidadosamente estudados pelo grande Newton pessoalmente”. (Ibid., p. 65 - 66). O que impede a percepção da influência dos diversos métodos, concepções, ideias e entendimentos, segundo Feyerabend, é o fato de que [n]enhuma idéia é examinada em todas as suas ramificações e a nenhuma concepção são jamais dadas todas as oportunidades que merece. Teorias são abandonadas e substituídas por explicações que estão mais de acordo com a moda muito antes de terem oportunidade de mostrar suas virtudes. Além disso, 28 doutrinas antigas e mitos ‘primitivos’ só parecem estranhos e sem sentido porque a informação que encerram ou não é conhecida ou é distorcida [...] [Porque] a ciência é importada, ensinada e afasta todos os elementos tradicionais (FEYERABEND, 2007, p. 66 – 67). Após analisar alguns casos da ciência, assinala que “Nenhuma teoria jamais está de acordo com todos os fatos conhecidos em seu domínio; contudo, a culpada nem sempre é da teoria. Os fatos são instituídos por ideologias mais antigas” (Ibid., p. 71). Ao tratar das novas teorias e das novas concepções de mundo trazidas por Galileu Galilei (1564 – 1642 d. C.), expõe: Para onde quer que olhemos, sempre que tivermos um pouco de paciência e selecionarmos nossa evidência de maneira não preconceituosa, descobriremos que as teorias falham em reproduzir de modo adequado certos resultados quantitativos e são qualitativamente inidôneas em grau surpreendente. A ciência oferece-nos teorias de grande beleza e sofisticação. A ciência moderna desenvolveu estruturas matemáticas que excedem em coerência, generalidade e êxito empírico qualquer coisa que tenha até agora existido. Contudo, para realizar esse milagre, foi preciso atribuir todas as dificuldades existentes à relação entre teoria e fato, bem como ocultá-las por hipóteses ad hoc, aproximações ad hoc e ainda outros procedimentos. [...] Os metodólogos podem ressaltar a importância dos falseamentos – mas empregam alegremente teorias falseadas; podem fazer sermões a respeito de quão importante é considerar toda a evidência relevante, mas jamais mencionam aqueles fatos importantes e drásticos que mostram que as teorias que admiram e aceitam talvez estejam em tão má situação quanto as teorias mais velhas que rejeitam. [...] De acordo com nossos resultados atuais, praticamente nenhuma teoria é consistente com os fatos. A exigência de admitir apenas as teorias que sejam consistentes com os fatos disponíveis e aceitos deixa-nos, mais uma vez, sem teoria alguma. (Repito: sem teoria alguma, pois não há uma única teoria que não se encontre em algum tipo de dificuldade.) (FEYERABEND, 2007, p. 84 – 85). Acerca desse comentário que esboça o entendimento do autor, pode-se questionar: todas as teorias falham? Nenhuma teoria é consistente com os fatos? Ao considerar-se que não se está tratando com a “realidade” ao produzir uma teoria essa é a posição esperada. Mas como isso pode ser atestado, “verificado”, embasado? Poder-se-ia dizer que essa é apenas uma nova forma de se colocar a velha questão ontológica. Sendo assim, Feyerabend avança acerca dessa questão ou apenas a coloca de outra forma? A originalidade de Feyerabend está em ele introduzir a história, a cultura, assim como muitas outras (como a política e a propaganda) no contexto de onde emergem as teorias, por meio de concepções presentes em toda a sua obra, com a de ambiguidade (deter-se-á mais à frente sobre tais concepções): 29 O material que um cientista tem a sua disposição, suas leis, seus resultados experimentais, suas técnicas matemáticas, seus preconceitos epistemológicos, sua atitude com relação às consequências absurdas das teorias que aceita são, em muitas maneiras, indeterminados, ambíguos, e nunca estão inteiramente separados do pano de fundo histórico. Estão contaminados por princípios que o cientista não conhece e, se conhecidos, seriam extremamente difíceis de testar. Idéias questionáveis a respeito da cognição, tal como a de que nossos sentidos, usados em circunstâncias normais, dão informação confiável a respeito do mundo, podem invadir a própria linguagem observacional, constituindo tanto os termos observacionais quanto a distinção entre aparência verídica e ilusória. Em consequência, linguagens observacionais podem ficar presas a camadas mais velhas de especulação que afetam, dessa maneira indireta, mesmo a metodologia mais progressiva. (FEYERABEND, 2007. p. 86). Mas poder-se-ia ainda questionar: e se for proposta uma teoria e os dados forem de acordo como prevê a teoria, como se explicaria esse ocorrido? Teria sido uma questão de sorte? Segundo Feyerabend, “a evidência está contaminada [...] [por um] caráter histórico fisiológico” (Ibid., p. 87). Mas, ao considerar que não há nenhuma teoria, estaria ele sendo descritivo ou prescritivo? Estaria ele criando uma noção de realidade (em que as teorias e evidências são sempre “contaminadas”) apenas para justificar seus argumentos? O autor em questão expõe em praticamente toda a sua obra que a forma de analisar a história da ciência é utilizando o recurso da contra indução: “Temos de inventar um novo sistema conceitual que suspenda os resultados de observação mais cuidadosamente estabelecidos ou entre em conflito com eles” (Ibid., p. 48). O que ele faz é criar uma estória “paralela” com elementos diferentes, em alguma medida irracionais. Caso a teoria que se julga que seja totalmente racional e de acordo com os fatos tiver ressonância com essa outra, a sua premissa acerca da racionalidade cairá por terra. Consequentemente, uma ciência tal como a conhecemos, pode existir só se abandonarmos também essa exigência [“de admitir apenas as teorias que sejam consistentes com os fatos disponíveis e aceitos”] e mais uma vez revisarmos nossa metodologia¸ admitindo agora a contra-indução, além de admitir hipóteses não fundadas. O método correto não deve conter nenhuma regra que nos faça escolher entre teorias com base no falseamento. Ao contrário, suas regras devem capacitar-nos a escolher entre teorias que já tenhamos testado e foram falseadas. (FEYERABEND, 2007, p. 85 – 86). O não fundacionismo das hipóteses tanto do modelo contra-indutivo, como daquele que este pretende mostrar as incongruências internas, estão em relação biunívoca com o entendimento de que “todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites.” (FEYERABEND, 2007, p. 49). Poder-se-ia dizer, então, que Feyerabend é um pensador que vai 30 pela via negativa, ou que pensa a realidade por contrários, daí sua crítica ao relativismo – tratar- se-á dessa crítica mais para diante – e ao falseacionismo de Karl Popper. Para Popper, embora a teoria tenha a obrigatoriedade de ser falseável, ela está rodeada por tênue horizonte de verdade, ou a verdade está no horizonte. Feyerabend não joga essa contaminação para uma solução que está no horizonte, no porvir, como faz Popper. Seu pensamento, no entanto, não visa objetivamente criticar Popper, mas Platão, como podemos ver no decorrer de toda a sua obra. Feyerabend, coadunando-se ao entendimento wittgensteiniano de que há sempre algo que não se consegue atingir em termos epistemológicos1, contrariando o pressuposto de que há um Bem absoluto2 - mesmo que de forma indireta ele está fazendo alusão à Platão, que em A República, mais especificamente na passagem que trata do Mito da Caverna, por exemplo -, defende o que ele passou a chamar de contaminação das teorias com algo externos ao que se propõem, sendo a contra indução a forma encontrada para tornar isso evidente. Portanto, o primeiro passo em nossa críticas dos conceitos costumeiros e reações habituais é pular fora do círculo e/ou inventar um novo sistema conceitual – por exemplo, uma nova teoria, que entre em conflito com os resultados observacionais mais cuidadosamente estabelecidos e confunda os princípios teóricos mais plausíveis – ou importar tal sistema de fora da ciência, da religião, da mitologia, das idéias dos incompetentes27 [fazendo referência a Filolau e sua incompetência matemática, que paradoxalmente teria sido o que o favoreceu], ou das divagações dos loucos. Esse processo é, mais uma vez, contra-indutivo. (FEYERABEND, 2007, p. 88). Chamando a atenção para o fato de que “[n]a história do pensamento, as interpretações naturais têm sido vistas ou como pressupostos a priori da ciência, ou então como preconceitos que é preciso eliminar antes de qualquer exame sério possa começar” (Ibid., p. 93), passa a descrever o caso de Galileu e suas posições teóricas, apontando este pensador como aquele que nem conservou, nem eliminou por completo as interpretações naturais (ou primeiras impressões empíricas), mas usou-as em seu benefício3 na sua tentativa de mudar a forma de se 1 “Todo o sentido do livro podia ser resumido nas seguintes palavras: o que é de todo exprimível, é exprimível claramente; e aquilo de que não se pode falar, guarda-se em silêncio.” (WITTGENSTEIN, 2002, p. 27). 2 “[...] o bem absoluto, se é um estado de coisas descritível, seria aquele que todo o mundo, independentemente de seus gostos e inclinações, realizaria necessariamente ou se sentiria culpado de não fazê-lo. Quero dizer que tal estado de coisas é uma quimera. Nenhum estado de coisas tem, em si, o que gostaria de denominar o poder coercitivo de um juízo absoluto” (WITTGENSTEIN, 2005, p. 219). 3 “Galileu é um daqueles raros pensadores que não desejam nem conservar para sempre as interpretações naturais nem eliminá-las completamente. Juízos indiscriminados dessa espécie são totalmente alheios à sua forma de pensar. Ele insiste em uma discussão crítica para decidir quais interpretações naturais podem ser mantidas e quais devem ser substituídas. Isso nem sempre fica claro em seus escritos. Muito ao contrário. Os métodos de reminiscência, a que ele recorre tão livremente, são destinados a criar a impressão de que nada mudou e continuamos expressando nossas observações de maneiras velhas e familiares. Porém, é relativamente fácil averiguar sua atitude: interpretações naturais são necessárias. Isolados, sem o auxílio da razão, os sentidos não 31 ver o mundo no século XVII. Ao analisar o empreendimento de Galileu, que segundo Feyerabend foi uma junção de sensação e linguagem, este pensador passa a considerar que Produzir um enunciado observacional, então, consiste em dois eventos psicológicos diferentes: 1) uma sensação clara e inequívoca e 2) uma conexão clara e inequívoca entre essa sensação e partes de uma linguagem. Essa é a maneira pela qual se faz a sensação falar (FEYERABEND, 2007, p. 95). Como uma forma de evidenciar isso, Feyerabend passa a tratar das proposições, escritos e experimentos feitos por Galileu, como o caso do conhecido experimento da torre, ao que conclui que, [o] primeiro passo de Galileu, em seu exame conjunto da doutrina copernicana e de uma interpretação natural familiar mas oculta, consiste, portanto, em substituir esta última por uma interpretação diferente. Em outras palavras, ele introduz uma nova linguagem observacional (FEYERABEND, 2007, p. 98 – 100). Feyerabend mostra, mediante análise textual,4 que Galileu age contra indutivamente, como também que ele não usou apenas argumentos, mas truques e propagandas, ou seja, vários outros meios para desbancar a teoria anterior. Considera que esses truques o levaram à vitória, mas [o]bscurecem o fato de que a experiência na qual Galileu deseja fundamentar a concepção copernicana não passa do resultado de sua própria imaginação fértil, que ela foi inventada. Obscurecem esse fato ao insinuar que os novos resultados que emergem são conhecidos e admitidos por todos e precisam apenas ser trazidos à nossa atenção para que apareçam como a mais óbvia expressão da verdade (FEYERABEND, 2007, p. 103). nos podem dar uma descrição verdadeira da natureza. O que é necessário para chegar a tal descrição verdadeira são “os ... sentidos, acompanhados pelo raciocinar”. Além disso, os argumentos que tratam do movimento da Terra, é esse raciocinar, é a conotação dos termos observacionais e não a mensagem dos sentidos ou a aparência que causa dificuldades” (FEYERABEND, 2007, p. 94). 4 “‘O movimento’, diz ele, ‘à medida que é e atua como movimento, existe nessa medida relativamente a coisas que dele carecem; e em meio a coisas que, todas elas, participam igualmente de algum movimento, este não atua e é como se não existisse’ (p. 116); ‘Qualquer movimento que venha a ser atribuído à Terra deve necessariamente permanecer imperceptível ... contando que olhemos apenas para movimentos terrestres’ (p. 114); ‘... o movimento comum a muitas coisas móveis é vazio e irrelevante para a relação dessas coisas móveis entre si mesmas ... (p. 116)’” (FEYERBEND, 2007, p. 100). 32 Feyerabend não critica Galileu por este usar a contra indução. Critica-o, no entanto, por este, segundo ele, ter escondido tal procedimento contra indutivo e ainda considerar suas concepções como verdade absoluta. Para Feyerabend, contra o argumento de que, considerando o movimento da Terra, veríamos a pedra se movendo de forma curva, Galileu constrói o argumento de que não vemos a pedra se movendo de forma curva justamente porque a Terra se move. Segundo Feyerabend, o platonismo totalizante de Galileu (ele faz menção à teoria da anamnese, por exemplo) o faz agir assim, seguindo o “desejo de ver ‘o todo [corresponder] às suas partes com maravilhosa simplicidade’, como o próprio Copérnico já havia dito. Provém da “ânsia tipicamente metafísica” pela unidade de entendimento e apresentação conceitual” (FEYERABEND, 2007, p. 110). A idéia de anamnese funciona aqui como uma muleta psicológica, como alavanca que suaviza o processo de subsunção ao ocultar sua existência. Em consequência disso, vemo-nos agora prontos a aplicar as noções relativas não apenas a barcos, carruagens e pássaros, mas à “sólida e firme” Terra como um todo. E temos a impressão de que essa disposição existia em nós o tempo todo, embora tivesse sido preciso algum esforço para torna-la consciente. Essa impressão é certamente errônea: é o resultado das maquinações propagandísticas de Galileu (FEYERABEND, 2007, p. 110 - 112). A relação entre a ciência dos séculos XVI e XVII com a metafísica, a religião e outros saberes da época é algo do qual já se tem bastantes evidências, como também é algo praticamente consensual a influência exercida pelo pensamento de Platão sobre Copérnico, Kepler e Galileu (KOESTLER, 1989; BURTT, 1991; KOYRÉ, 1986, 2006). Feyerabend enumera ainda as posições de vários referenciais que abordam a problemática do experimento da torre, o que o faz concluir que “[é] preciso notar que o problema não se presta facilmente a uma solução experimental. Experimentos foram realizados, mas seus resultados ficaram longe de ser conclusivos” (FEYERABEND, 2007, p. 116). Isso porque: Além das interpretações naturais, Galileu altera também as sensações que parecem ameaçar a teoria de Copérnico. Ele admite que há tais sensações, louva Copérnico por tê-las ignorado e afirma tê-las eliminado com o auxílio do telescópio. Contudo, não oferece razões teóricas pelas quais se deveria esperar que o telescópio fornecesse um retrato verdadeiro do céu (FEYERABEND, 2007, p. 119). O telescópio é tido como aquilo que ofereceu uma certa segurança em termos de prova para as teorias de Galileu. No entanto, segundo Feyerabend “[e]ssa razão não é correta porque 33 há sérias dúvidas quanto ao conhecimento de Galileu daquelas partes da óptica física de sua época que eram relevantes para o entendimento de fenômenos telescópicos” (Ibid., p. 125), como também, embora, ainda segundo Feyerabend, o telescópio apresentasse êxito quando usado em terra, “[s]ua aplicação às estrelas, contudo, era uma questão inteiramente distinta” (Ibid., p. 128). Segundo Feyerabend, ao buscar romper com a idealização aristotélica, que, inclusive, não se sustenta quando comparada com a obra do próprio Aristóteles (estando ela sim a serviço do conservadorismo eclesiástico), [n]o caso de Copérnico, precisamos de uma nova meteorologia (no velho sentido da palavra, tratando das coisas que se encontram abaixo da Lua), de uma nova ciência da óptica fisiológica que trate dos aspectos subjetivos (mente) e objetivos (luz, meio, lentes, estrutura do olho) da visão, bem como de uma nova dinâmica enunciando em como o movimento da Terra poderia influenciar os processos físicos que se dão em sua superfície. [...] Em suma: o que é necessário para submeter a teste a concepção de Copérnico é uma visão de mundo inteiramente nova contendo uma nova visão do homem e de suas capacidades de conhecer.” (FEYERABEND, 2007, p. 163 - 164). Assim, não podendo negar as evidências nem remover a teoria da percepção já aceita, que diz serem relevantes as observações [...][,] a adesão a novas idéias terá de ser produzida por outros meios que não argumentos. Terá de ser produzida por meios irracionais, como propaganda, emoção, hipóteses ad hoc e recurso a preconceitos de todo o tipo [...] o copernicanismo e outras concepções “racionais” só existem hoje porque, em seu passado, a razão foi posta de lado em algumas ocasiões (Ibid., p. 166 - 169). Feyerabend muda o tom ao se referir a Platão - ao comentar sobre a teoria de Galileu -, que para ele, como expõe em muitos trechos de diversas de suas obras, seria o responsável por ter criado o apego à abstração, algo muito presente no pensamento do Ocidente. Este pensador grego, comumente considerado como um encorajador e edificador do racionalismo, pode, mediante uma análise mais pormenorizada, ser visto como sendo bem mais complexo do que parece, e se pode considerar que Feyerabend também está evidenciando isso em alguma medida. No próximo capítulo tratar-se-á um pouco sobre alguns dos mitos platônicos. Feyerabend pontua ainda que em um determinado momento histórico, ou uma situação em que se está em presença de algo e se quer registrar algum conhecimento referente àquilo – ou que se tem que tomar uma certa decisão e afirmar algo -, dificilmente se saberá por completo 34 se aquele enunciado, hipótese ou teorização é racional ou irracional, que o que se tem é apenas uma inclinação. Será que essa noção de inclinação, no sentido de algo que nos faz seguir por um lado (embora não se saiba ao certo onde isso nos levará) tem relação com a física de Galileu, com o plano inclinado galileano? Ou seria apenas uma coincidência, uma ambiguidade? Seguindo a proposta contra indutiva, chamando mais uma vez a atenção para um certo irracionalismo presente no fazer científico, e contra uma visão empirista estreita, pontua que “[n]enhuma invenção jamais é feita isoladamente, e nenhuma idéia, portanto, é completamente destituída de sentido” (Ibid., p. 170), o que o faz criticar o positivismo lógico de Carnap, quando ele fala que os “termos [de um sistema de postulados] recebem apenas uma interpretação indireta e incompleta pelo fato de que alguns deles estão relacionados por regras de correspondência a termos observacionais” (CARNAP apud FEYERABEND, 2007, p. 172). Trata da problemática referente ao caráter social das teorias, ideias e concepções, e, inclusive, das relações de patronagem à época de Galileu e atualmente5. Na conclusão do capítulo onze Feyerabend expõe que “[q]uando a ‘idéia pitagórica’ do movimento da Terra foi revivida por Copérnico, encontrou dificuldades que excediam as encontradas pela astronomia ptolomaica da época (FEYERABEND, 2007, p. 174). Assim, na visão do autor, Copérnico e Galileu são seguidores de uma tradição antiga que remete à Platão e à Pitágoras. Com relação à Galileu, este considera que “[...] linhas conceituais diferentes são traçadas, de modo que surge uma nova espécie de experiência, manufaturada praticamente com base no nada” (Ibid., p. 175). Como pode ser percebido, desde os primeiros comentários, a posição de Feyerabend sobre Galileu é bem diferente da corrente imagem caricaturesca que se tem dele (que está inclusive em manuais e livros didáticos), como o “pai” da ciência experimental e do “método científico”. Ele mostra, em certa medida, o contexto no qual o pensador italiano estava inserido, suas relações e suas inclinações, ou seja, suas motivações. 5 “Hoje, a maioria dos pesquisadores ganha reputação, salário e aposentadoria por estar associado a uma universidade e/ou a um laboratório de pesquisa. Isso envolve certas condições, como a capacidade de trabalhar em grupo, disposição de subordinar as próprias idéias àquelas de um líder de um grupo, harmonia entre o jeito próprio de fazer ciência e aquele do restante da profissão, certo estilo, maneira de apresentar a evidencia – e assim por diante. Nem todos se ajustam a condições como essas; pessoas capazes permanecem desempregadas porque falham em satisfazer a algumas delas. Inversamente, a reputação de uma universidade ou de um laboratório de pesquisa aumenta com a reputação de seus membros. Na época de Galileu, a patronagem desempenhava papel similar. Havia certas maneiras de obter um patrocinador e de mantê-lo. O patrocinador crescia em apreço apenas se tivesse êxito em atrair e conservar indivíduos de realizações destacadas. Segundo Westfall, a Igreja permitiu a publicação do Dialogue de Galileu com pleno conhecimento dos assuntos controversos nele contidos ‘[n]ão menos porque um papa [Urbano VIII], que se vangloriava de sua reputação como um mecenas, não estava disposto a colocá-la em risco dizendo não ao luminar de sua época’, e Galileu caiu porque violou seu lado das regras de patronagem” (FEYERABEND, 2007, p. 173 – 174). 35 Algo que é perceptível na escrita de Feyerabend é que esta é constituída por uma inerente incompletude. É como se ele deixasse, em certa medida, sempre algo a cargo do leitor, embora se possa potencialmente perceber as nuances gerais presentes em suas colocações. Por exemplo, na última citação destacada acima, em certa medida ele parece está criticando a “falsidade” e uma certa limitação de Galileu (e muito possivelmente o está fazendo). No entanto, pode-se considerar que ele está sendo irônico ao fazer essa colocação, e que estaria chamando a atenção para a primeira questão, mas justamente desconsiderando a segunda, já que ele termina pontuando que Galileu teria exibindo algo que nenhum outro pensador teria feito quando se analisa a história da ciência, ao ter recuperado “aspectos do conhecimento que não apenas informam, mas também nos deleitam”. Feyerabend representa uma perspectiva aberta. Não se restringe a conceitos, nem à racionalidades, e nem mesmo à história no sentido de algo metodológico. Assim, ele não é contrário a métodos ou metodologias, como muitos de seus críticos acabam entendendo, mas a um único método ou uma única metodologia, ou seja, ele é contra o método, o que fica claro ao declarar: “O método de Galileu funciona também em outros campos. [...] Não se segue que deva ser universalmente aplicado. [...] [N]em as regras, nem os princípios, nem tampouco os fatos são sacrossantos (FEYERABEND, 2007, p. 178). Feyerabend apresenta posições que causam certa surpresa, quando lidas ou vistas de forma isolada. Como quando declara, por exemplo, que “[q]ualquer crítica da Igreja Católica Romana também aplica-se a seus sucessores modernos, tanto científicos quanto ligados à ciência” (Ibid., p. 187 - 188). Ele fala isso após citar que “[a] atitude da Associação Médica Americana com relação a praticantes leigos é tão rígida como o era a atitude da Igreja para com intérpretes leigos” (Ibid., p. 187). Pode-se concordar, embora não se tem conhecimento de que tal Associação tenha incendiado pessoas. Estaria Feyerabend falando em defesa da Igreja? Estaria ele sendo irônico, ambíguo, ou algo do tipo? Igualando religião e ciência e deixando tudo por isso mesmo? Faça-se a ressalva de que este pensador é em muitos aspectos um dadaísta, como veremos adiante, e que ele próprio confessa um certo exagero proposital em suas colocações, bem ao modo do que postulava o Dadaísmo, e que defende a contra indução. A contra indução vale tanto para uma a análise da ciência como da igreja e também de uma figura histórica como Galileu (independentemente de se considerar uma inter-relação entre ambos ou não). Segundo Feyerabend, Galileu era uma figura um tanto quanto egocêntrica, e que usava de meios diversos para conseguir firmar suas posições, e, sobretudo, que tinha o entendimento de que estava tratando da verdade. Tendo consciência disso se pode compreender 36 melhor o que é posto ao fim e em todo o capítulo treze de Contra o método e de forma resumida ao final do livro (que tem uma correspondência biunívoca com o que fora posto no cabeçalho e que deve ser percebido como um retroalimentar-se, inclusive para se analisar as colocações de Feyerabend, estando-se atento à contra-indução): Para Resumir: a avaliação dos peritos da Igreja estava cientificamente correta e tinha a intenção social certa, a saber, proteger as pessoas das maquinações de especialistas. Desejava proteger as pessoas de serem corrompidas por uma ideologia estreita que podia funcionar em domínios restritos, mas era incapaz de sustentar uma vida harmoniosa. Uma revisão da avaliação poderia conquistar à Igreja alguns amigos entre os cientistas, mas prejudicaria severamente sua função como preservadora de importantes valores humanos e sobre-humanos. (FEYERABEND, 2007, p. 193). Mais uma vez, destaque-se, que se pode notar na citação acima um “apreço” de Feyerabend com relação às posições da Igreja Católica. Muitas são as pinturas que retratam o julgamento de Galileu, tanto da época como nos séculos seguintes, fazendo referência nos moldes típicos das artes, aos diversos contextos aos quais ele estava envolvido. Na figura abaixo, vê-se Galileu sendo questionado sobre suas teorias pelos representantes da Igreja Católica Romana, como também se pode perceber a relação desse pensador com temáticas, personagens e figuras religiosas. 37 Figura 1 - Galileu frente ao tribunal da Inquisição, pintura de Cristiano Banti (1857) Sobre as mudanças na forma de ver o mundo naquele período, Feyerabend expõe que “diferentes personalidades, profissões e grupos guiados por crenças diferentes e sujeitos a restrições diferentes contribuíram para o processo que está agora sendo descrito, um tanto sumariamente, como ‘Revolução Copernicana’” (FEYERABEND, 2007, p. 194), sendo muitas as questões envolvidas (vide figura a seguir). Figura 2 – Citação e desenho ilustrativo sobre o Sistema de Ptolomeu (FEYERABEND, 2007). Mediante este estudo feito por Feyerabend, o qual ele utiliza para criticar algumas teses de outros estudiosos, como a do falseamento de Popper, por exemplo, pode-se perceber que “a 38 velha astronomia tornou-se cada vez mais complicada – [e que] assim foi no final substituída por uma teoria mais simples” (Ibid, p. 206). Ou seja, que “a astronomia encontrava-se em crise [...] [, e que] [e]ssa crise conduziu a uma revolução que causou o triunfo do sistema copernicano” (Ibid., p. 216), embora a passagem de um sistema para o outro não seja algo claro em todos os seus aspectos nem isenta de problemas. Comentando sobre críticas feitas por Feigl, sobre sua defesa do entendimento de que não há separação entre contexto de descoberta e o de justificação – crítica corrente feita a seu pensamento - Feyerabend rebate pontuando que Mesmo as histórias mais surpreendentes acerca da maneira em que cientistas chegam a suas teorias não podem excluir a possibilidade de que procedam de maneira inteiramente diferente uma vez que as tenham encontrado. Mas essa possibilidade jamais é realizada. Ao inventar teorias e contemplá-las de maneira relaxada e “artística”, os cientistas com frequência empregam procedimentos proibidos por regras metodológicas. Por exemplo, interpretam a evidência de modo que se ajuste a suas idéias extravagantes, eliminam dificuldades mediante procedimentos ad hoc, colocam-nas de lado ou simplesmente recusam-se a leva-las a sério. Portanto, as atividades que, segundo Feigl, pertencem ao contexto da descoberta não são apenas diferentes do que os filósofos dizem a respeito da justificação, mas estão em conflito com ela. A prática científica não contém dois contextos movendo-se lado a lado; ela é uma complicada mistura de procedimentos, e defrontamo-nos com a questão de se essa mistura deveria ser deixada como está, ou se deveria ser substituída por um arranjo mais “ordenado”. Essa é a primeira parte do argumento. Ora, vimos que a ciência, como a conhecemos hoje em dia, não poderia existir sem uma freqüente desconsideração do contexto de justificação. Essa é a segunda parte do argumento. A conclusão é clara. A primeira parte mostra que não temos uma diferença, mas uma mistura. A segunda parte mostra que substituir a mistura por uma ordem que contém a descoberta, de um lado, e a justificativa, de outro, teria arruinado a ciência: estamos lidando com uma prática uniforme cujos ingredientes são todos igualmente importantes para o desenvolvimento da ciência. Isso liquida a distinção (FEYERABEND, 2007, p. 209). Algo que chama a atenção é o uso muitas vezes da expressão clara ou claramente por Feyerabend, o que à primeira vista pode ser considerado meio paradoxal. Como também a forma contundente com que ele fala da prática dos cientistas em relação à ciência, embora logo em seguida ele use o termo “frequentemente”. Obviamente ele não é contrário a que se utilizem regras fora da metodologia, está justamente evidenciando esta forma de proceder. Ou seja, que a ciência foi construída sem estar tão presa a metodologias e procedimentos fixos, como muitas vezes se considera, embora isso não seja abordado pelos manuais e demais materiais de divulgação científica, por exemplo. Segundo Feyerabend, a ciência de “hoje em dia” quer se separar daquilo que a fez surgir. Nesse sentido ele não é um inimigo da ciência como 39 comumente o taxam, mas está sim mostrando através de exemplos que a ciência é uma atividade que requer a abertura: “Mais uma vez, o progresso pode ser feito somente se a distinção entre o deve e o é for considerada um dispositivo temporário em vez de uma linha delimitadora fundamental” (FEYERABEND, 2007, p. 210). Nesse ponto de Contra o método ele expõe o argumento, que vai permear toda a obra, de que cientistas e artistas procedem de forma muito semelhante. Segundo ele, “[u]ma distinção que talvez tenha tido alguma vez um propósito, mas que agora definitivamente o perdeu, é a distinção entre termos observacionais e termos teóricos.” (Ibid., p. 210)6. Embora Feyerabend pareça colocar as coisas de uma forma bastante finalista, pode-se considerar que ele está se referindo a procedimentos que se observa, que várias evidências podem comprovar. Não está falando de uma teoria ou de uma abstração, a qual necessitaria uma verificação para ver se procede. Está falando de uma forma de conduzir as coisas, de ações humanas. Há sempre algo que escapa, tanto à experiência, como ao método, como à razão. Há um caráter de abertura inerente às teorias, para este pensador, inclusive um de seus núcleos argumentativos é a noção de trocas abertas. Como isso se relaciona com o posto pela lógica do terceiro excluído? Essas são questões abertas também. Afinal o mundo caminha mais com perguntas do que com respostas. Feyerabend se baseia com frequência nas noções de potencialidade, inclinação e possibilidade, o que consequentemente, possivelmente, fez surgir o seu interesse por estudar a física moderna e sua relação com a física clássica e seus condicionantes anteriores, como a astrologia, por exemplo (embora não faça um estudo aprofundado). Ainda segundo este autor: Esses desvios, esses “erros”, são precondições do progresso. Permitem que o conhecimento sobreviva no mundo complexo e difícil que habitamos, permite que nós permaneçamos agentes livres e felizes. Sem “caos” não há conhecimento. Sem um frequente abandono da razão, não há progresso. [...] Temos, então, de concluir que, mesmo no interior da ciência, não pode e não se deve permitir que razão seja abrangente, e que ela, com frequência, precisa ser posta de lado, ou eliminada, em favor de outros instrumentos. Não há uma única regra que permaneça válida em todas as circunstâncias, nem um único meio a que se possa sempre recorrer. (Ibid., p. 219 – 220). 6 “Hoje em dia admite-se, geralmente, que essa distinção não é tão nítida quanto se pensava ser há apenas poucas décadas. Também admite-se, em completa concordância com as opiniões de Neurath, que tanto teorias quanto observações podem ser abandonadas por causa de observações, as observações podem ser suprimidas por razões teóricas. Finalmente, descobrimos que o aprendizado não vai da observação para a teoria, mas sempre envolve ambos os elementos. A experiência surge com pressupostos teóricos, e não antes deles, e uma experiência sem teoria é tão incompreensível quanto o é (presumidamente) uma teoria sem experiência: elimine parte do conhecimento teórico de um sujeito perceptivo e você tem uma pessoa completamente desorientada e incapaz de executar a mais simples das ações” (FEYERABEND, 2007, p. 210). 40 Poder-se questionar, no entanto, o que é progresso. Considerando que progresso é algo bom, que reputamos como salutar, vantajoso ou algo do tipo, pode-se dizer que é um conceito, uma criação abstrata? Qual a relação de Feyerabend com a noção de progresso? Ele de forma recorrente está pontuando que o progresso na ciência muitas vezes vem mediante um processo de volta a determinados pressupostos e concepções que ela nega, mesmo depois de relacionar- se com eles. Assim, pode-se pensar a noção de progresso científico como sendo o resultado de como a ciência resolveu, no sentido de dar uma explicação (o que não significa esgotar o tema ou ter descoberto a verdade) uma determinada situação problema, embora esse problema nem sempre surja do próprio seio da ciência, mas pode e muitas vezes está ligado a questões externas. No entanto, inclusive de acordo o que pontua aquele autor, não se tem como saber se algo é progressivo até que ocorra. Feyerabend inverte a noção que está arraigada à ideologia do progresso. Ao invés de se estipular, teorizar, idealizar o que é o progresso, e o que seria determinante para atingi-lo, ele convida a perceber o que gerou o progresso. Conclui, expondo exemplos, que uma análise da história da ciência evidencia que não é só a razão ou a atividade racional que contribui para o desenvolvimento das teorias. Ou seja, progresso é aquilo que se tornou relevante cultural e historicamente, justamente por ter contribuindo para um determinado tipo de conhecimento, como, por exemplo, a ciência, seu corpo teórico e suas instituições. Mas, o progresso não seria uma linha, uma reta que vai sempre para frente, mas se dá em termos de pontos, de focos, comporta inclusive uma ruptura. Assim, “[a] ciência precisa de pessoas que sejam adaptáveis e inventivas, não rígidos imitadores de padrões comportamentais ‘estabelecidos’”. (FEYERABEND, 2007, p. 221), já que esta é tão só um dos muitos instrumentos que as pessoas inventaram para lidar com seu ambiente. Não é o único, não é infalível e tornou-se poderosa demais, atraente demais e perigosa demais (FEYERABEND, 2007, p. 222 – 223). Ao tratar das noções de uso manifesto [overt] e das classificações cobertas [covert], referentes à linguagem, propostas por Benjamim Whorf em Linguagem, pensamento e realidade7, Feyerabend pontua que 7 “[o]s substantivos que têm um gênero, como boy [menino], girl [menina], father [pai], wife [esposa], uncle [tio], woman [mulher], lady [senhora], que incluem milhares de nomes próprios como George, Fred, Mary, Charlie, Isabel, Isadore, Jane, John, Alice, Aloysius, Esther, Lester, não portam em cada processo motor, uma marca distintiva de gênero, como o -us ou -a latinos. Não obstante, cada uma dessas milhares de palavras tem um vínculo invariável de conectando-a, com precisão absoluta, ou à palavra “he” [ele] ou à palavra “she” [ela], que, contudo, 41 Classificações cobertas [covert] (que, por causa de sua natureza implícita, são “mais sentidas do que compreendidas – o ter consciência [delas] possui uma qualidade intuitiva” – que “são inteiramente capazes de ser mais racionais que as manifestas” e talvez sejam muito “sutis” e não relacionadas “a qualquer grande dicotomia”) criam “resistências padronizadas a pontos de vista altamente divergentes”. Se essas resistências se opuserem não apenas à verdade das alternativas a que resistem, mas à presunção de que uma alternativa tenha sido apresentada, então teremos um exemplo de incomensurabilidade (FEYERABEND, 2007, p. 228 – 229). Ele utiliza os estudos de Whorf para analisar questões relacionadas à epistemologia, à incomensurabilidade entre teorias e visões de mundo. Embora Feyerabend não descarte ou até defenda a incomensurabilidade, ou seja, que em última instância não há como exatamente ou racionalmente mensurar a realidade (o mundo, o que se nos apresenta), ele considera que só há incomensurabilidade entre culturas, saberes, discursos ou enunciados se eles não conseguirem se comunicar em nenhum dos níveis nos quais os discursos, as culturas ou os saberes conflitantes se estruturam. Ou seja, incomensurabilidade como processo. As discussões que preparam a transição a uma nova era na física, ou na astronomia, dificilmente restringem-se aos traços manifestos do ponto de vista ortodoxo. Revelam, com frequência, idéias ocultas, substituem-nas por idéias de espécie diferente e modificam tanto as classificações manifestas quanto as cobertas. [...] (Como a incomensurabilidade depende de classificações cobertas e envolve grande mudanças conceituais, quase nunca é possível dar uma definição explícita dela. Nem as costumeiras “reconstruções” terão sucesso em torna-la conspícua. O fenômeno deve ser exibido, o leitor deve ser levado a ele pelo confronto com uma grande variedade de exemplos, e deve então julgar por si mesmo. [...] Casos interessantes de incomensurabilidade ocorrem já no domínio da percepção. Dados estímulos apropriados, mas sistemas de classificação diferentes (diferentes “conjuntos mentais”), nosso aparato perceptual poderá produzir objetos perceptuais que não possam ser facilmente comparados. Podemos comparar os dois objetos em nossa memória, mas não enquanto tivermos olhando para o mesmo quadro. [...] Nem mesmo a memória consegue nos dar, agora, uma visão completa das alternativas (FEYERABEND, 2007, p. 229 - 230). Cita, em seguida, casos de incomensurabilidade que ocorrem no domínio da percepção, da relação e da interação com objetos. Na sua análise mostra algumas figuras conhecidas, como aquela em que se pode ver três bastões em uma extremidade e apenas duas ramificações se encontrando na base. Ao analisar exemplos como esse, concluindo que “[n]ão há maneira não aparecem no quadro de comportamento manifesto até que, e a menos que, situações especiais do discurso o requeiram” (WHORF apud FEYERABEND, 2007, p. 228). 42 alguma de ‘apanhar’ a transição de um caso para outro” (Ibid., p. 231), sugere que a incomensurabilidade é algo como uma suspensão na qual não se pode necessariamente e/ou racionalmente decidir por uma das alternativas. Como forma de analisar a relação entre incomensurabilidade e percepção ele trata ainda dos estudos de Piaget sobre os vários estágios de desenvolvimento pelos quais passa uma criança até alcançar a fase adulta, por considerar que “[u]m interessante exemplo de conjuntos fisiologicamente determinados que conduzem à incomensurabilidade é fornecido pelo desenvolvimento da percepção humana” (FEYERABEND, 2007, p. 232). O aparecimento do conceito e da imagem perceptual de objetos materiais muda a situação de maneira bastante dramática. Ocorre uma drástica reorientação de padrões de comportamento e, pode-se conjecturar, de pensamento. Imagens residuais, ou coisas de algum modo semelhantes a elas, continuam a existir, mas são agora difíceis de encontrar e têm de ser descobertas por métodos especiais (o mundo visual anterior, portanto, literalmente desaparece). [...] Nem imagens residuais, nem pseudo-imagens- residuais têm uma posição especial no mundo novo. [...] O campo perceptivo jamais contém imagens residuais com pseudo-imagens-residuais. É preciso admitir que cada estágio possui uma espécie de “base” observacional à qual se presta atenção especial e da qual é recebida uma profusão de sugestões. No entanto, essa base a) modifica-se de estágio a estágio e b) é parte do aparato conceitual de determinado estágio, e não sua única fonte de interpretação como alguns empiristas gostariam que acreditássemos. Considerando desenvolvimentos como esses, podemos suspeitar que a família de conceitos centrada em “objeto material” e a família de conceitos centrada em “pseudo- imagem-residual” são incomensuráveis precisamente no sentido que está aqui em questão; essas famílias não podem ser utilizadas de modo simultâneo e não se pode estabelecer entre elas nem conexões lógicas nem perspectivas. (FEYERABEND, 2007, p. 232 - 233). Pelo exposto pode-se conjecturar que segundo Feyerabend, a noção corrente de incomensurabilidade se dá por não se considerar as múltiplas possibilidades de entendimento relacionadas à apresentação de um tema ou de um objeto, ou ainda por determinadas mudanças que mudam a noções gerais de entendimento sobre algo. E nesse sentido, a incomensurabilidade seria algo salutar, já que: a) em alguma medida não apenas separa estágios diferentes, mas também os une, pois ao se deter-se acerca da incomensurabilidade entre dois estágios ou sistemas de conhecimento, há a possibilidade de se perceber inclusive quais as condicionantes que os tornaram incomensuráveis; b) existe incomensurabilidade porque há mudanças, criação. Passa a questionar, considerando esse enfoque, se as mudanças conceituais e de percepção propostas pela teoria de Piaget ocorrem apenas na infância ou se se pode considerar que acontecem também na fase adulta (dentre outras questões): 43 Não seria mais realista assumir que mudanças fundamentais, acarretando incomensurabilidade, são ainda possíveis e devem ser encorajadas a fim de que não fiquemos para sempre excluídos do que poderia ser um estágio mais avançado de conhecimento e consciência? Além disso, a questão da mobilidade do estágio adulto é, de qualquer maneira, uma questão empírica que deve ser atacada mediante pesquisa e não pode ser decidida por um fiat metodológico. A tentativa de romper as fronteiras de dado sistema conceitual é parte essencial de tal pesquisa (devia também ser parte essencial de qualquer vida interessante) (FEYERABEND, 2007, p. 233 -234). Nesse sentido, passa a criticar Karl Popper, a quem faz referência explícita em nota, como também problematizar acerca da maneira como as mudanças são recebidas pelo status quo, e, sobretudo sobre aquilo que se conhece como teoria e verdade: Essa tentativa envolve muito mais do que uma prolongada “discussão crítica”, como algumas relíquias do Iluminismo gostariam que acreditássemos. Deve- se ser capaz de produzir e aprender novas relações perceptivas e conceituais, inclusive relações que não são imediatamente aparentes (relações cobertas – ver anteriormente) e isso não pode ser realizado só por meio de discussão crítica (cf. também capítulos 1 e 2). A explicação ortodoxa negligencia as relações cobertas que contribuem para seu significado, desconsidera mudanças perceptivas e trata o restante de maneira rigidamente estandardizada, de modo que qualquer debate de idéias incomuns é bloqueado de imediato por uma série de respostas rotineiras. Agora, contudo, esse grupo inteiro de respostas está posto em dúvida. Todo conceito que nele ocorre é suspeito, em especial conceitos “fundamentais” como “observação”, “teste” e, claro, o próprio conceito de “teoria”. E no que diz respeito à palavra “verdade”, podemos neste estágio, dizer apenas que certamente tem deixado as pessoas em um estado de perturbação, mas que não realizou muita coisa mais (FEYERABEND, 2007, p. 234). Essa problemática acerca da incomensurabilidade e das noções de verdade e teoria culmina em Contra o método na análise do “‘estilo arcaico’, como definido por Emanuel Loewy em sua obra sobre a arte grega antiga” (Ibid., p. 234): Lado a lado com as imagens que a realidade apresenta ao físico existe um mundo inteiramente diferente de imagens que vivem, ou melhor, que ganham vida em nossa mente apenas, e, embora sugeridas pela realidade, são totalmente transformadas. Cada ato primitivo de desenho ... tenta reproduzir essas imagens, e somente elas, com a regularidade instintiva de uma função psíquica (LOEWY apud FEYERABEND, 2007, p. 236). 44 Por Feyerabend abordar com tanta ênfase a maneira como se estrutura o mundo arcaico8, poder-se-ia pensar que ele defende que se volte a ser arcaico? Pode-se considerar, ao que se vê, que ele faz essa análise do período arcaico, basicamente, por três motivos: 1) para mostrar que o mundo nem sempre foi da forma que é, em termos linguísticos e epistemológicos inclusive; 2) para mostrar que a noção comumente difundida de que conhecimentos de uma época anterior seriam menos interessante ou menos válidos, não se sustenta (inclusive porque, como ele mostra em vários exemplos, a ciência recorre muito mais ao passado do que se julga); 3) defender que a maneira aberta de dar sentido e nomear a realidade, característica do período arcaico, parece ser uma alternativa não tão descabida, já que a forma conceitual que se desenvolveu após aquele período, além de não conseguir um esquema racionalmente coerente e sem problemas (embora relute em assumir tal falha, ou coloque a sua consecução sempre para o futuro) que é a promessa do racionalismo, se entrincheira por meio da incomensurabilidade. Ele expõe que deuses homéricos, por exemplo, não têm vontade própria, mas seguiam a certas conjecturas gerias que o faziam agir de determinada maneira. E mais, que [...] a religião olimpiana, em sua forma moralizada, tendeu a tronar-se uma religião do medo, tendência que é refletida no vocabulário religioso. Não há uma palavra para “temente a deus” na Ilíada. É desse modo que a vida foi desumanizada pelo que a algumas pessoas agrada chamar “progresso moral” “ou progresso científico”. Observações similares aplicam-se à “teoria do conhecimento” que está implícita nessa visão inicial de mundo. As musas na Ilíada, 2.284ss, têm conhecimento porque estão próximas às coisas – não precisam confiar em boatos [...] Para repetir e concluir: os modos de representação empregados durante o início do período arcaico na Grécia não são somente reflexos de incompetência ou de interesses artísticos especiais, mas oferecem um retrato fiel do que se sentia, via e pensava serem características fundamentais do mundo do homem arcaico. Esse mundo é um mundo aberto (Ibid., p. 256) (FEYERABEND, 2007, p. 253 - 256). O caráter aberto de que fala Feyerabend se refere muito provavelmente, por exemplo, ao fato de as sentenças serem organizadas em termos de listas longas que caracterizavam os objetos e as ações, e não no circuito fechado (ou supostamente fechado) dos conceitos. Ele sugere que esse modelo arcaico é muito similar às proposições cosmológicas de Mach - embora 8 “O homem arcaico carece de unidade “física”, seu “corpo” consiste em uma multidão de partes, membros, superfícies, conexões; e carece de unidade “mental”, sua “mente” é composta de uma variedade de eventos, alguns deles nem mesmo “mentais” em nosso sentido, que ou habitam o corpo-títere como constituintes adicionais, ou são introduzidos do exterior. Os eventos não são moldados pelo indivíduo, mas são arranjos complexos de partes nas quais o corpo títere é inserido no lugar apropriado. [...] Seus traços principais são experienciados pelos indivíduos que utilizam os conceitos. Esses indivíduos vivem, de fato, na mesma espécie de mundo que é construída por seus artistas” (FEYERABEND, 2007, p. 251 – 252). 45 repute a este último certa abstração – e, sobretudo, à antropologia, alertando que “de forma alguma deve ele [o pesquisador] tentar uma reconstrução lógica” (FEYERABEND, 2007, p. 258). Tratando, por exemplo, do conhecido estudo de Evans-Pritchard sobre os nuer, ele expõe: Se o pesquisador deseja obter conceitos que sejam tanto claros quanto nuer, então ele tem de manter suas noções-chave vagas e incompletas até que a informação correta apareça, isto é, até que um estudo de campo forneça os elementos faltantes, os quais, tomados em si mesmo, são tão obscuros quanto os elementos já descobertos (Ibid., p. 259). Retornando ao tema da incomensurabilidade, ele aponta que esta está diretamente relacionada ao conceito de lógica que se adota, pois, segundo o autor, por ‘lógica’ pode-se querer dizer pelo menos duas coisas diferentes. ‘Lógica’ pode significar o estudo, ou resultados do estudo, das estruturas inerentes a certo tipo de discurso. E pode significar um sistema lógico particular, ou conjunto de sistemas (Ibid, p. 260). Retomando, de certa forma, aquilo que foi posto mediante a análise das proposições de Galileu, chamando a atenção para o caráter ilógico da ciência – explicitando algo que é também uma marca de sua obra, o caráter antropológico - Feyerabend pontua que [t]emos de abordar a ciência como um antropólogo aborda os processos mentais tortuosos de um pajé de uma recém-descoberta associação de tribos. E temos de estar preparados para a descoberta de que esses processos tortuosos são extremamente ilógicos (quando julgados do ponto de vista de um particular sistema de lógica formal) e têm de ser extremamente ilógicos a fim de funcionar como funcionam (Ibid., p. 262). Toda a obra de Feyerabend é repleta de análises histórico-antropológicas como esta, que chamam a atenção como o irracional do processo histórico, sobretudo com relação às ciências. Muitos são os estudos que mostram o caráter ilógico e irracional da ciência, como por exemplo, Gênese e desenvolvimento de um fato científico, de Ludwik Fleck, que inclusive é citado alguns vezes por Feyerabend em Adeus à razão, obra subsequente à Contra o método, e da qual tratar- se-á mais adiante. Fleck, em seu livro, mostra – sobretudo ao analisar o caso da doença de Sífilis, meio utilizado pelo autor para discutir o “desenvolvimento de um fato científico” - como pressupostos irracionais presentes na cultura influenciam e estão presentes em teorias científicas, e em muitos coletivos de pensamento. Irracional no sentido de ser algo sem 46 justificativa, que não segue uma lógica ou um método, que não é algo fechado, como busca ser a razão – algo que remete à matemática, à proporção, a relação exata entre partes. Ao considerar que “[n]enhuma enumeração de aspectos é idêntica ao objeto (problema da indução)” (FEYERABEND, 2007, p. 274), e que “[o] homem é um alvo aberto a uma grande quantidade de força que o invadem e penetram seu próprio cerne” (SNELL apud FEYERABEND, 2007, p. 274), menciona ainda o que ele chama de “teoria dos buracos” ou “a teoria do queijo suíço”: “toda cosmologia (toda linguagem, todo modo de percepção) tem lacunas consideráveis que podem ser preenchidas, deixando-se inalterado todo o restante” (FEYERABEND, 2007, p. 275). Após discorrer sobre vários casos em que há a presença da irracionalidade, analisando os enunciados e princípios universais envolvidos, conclui que “não é exequível, portanto, definir ‘incomensurabilidade’ por referência a enunciados” (Ibid., p. 280). E prossegue, na sua maneira contra indutiva de sempre: Como é superada a “irracionalidade” do período de transição? É superada da maneira usual (cf. item 8), isto é, pela produção determinada de absurdos até que o material produzido seja rico o suficiente para permitir que os rebeldes revelem, e todos os demais reconheçam, os novos princípios universais. (Tal revelação não precisa consistir em escrever os princípios na forma de enunciados claros e precisos.) A loucura transforma-se em sanidade, desde que seja suficientemente rica e suficientemente regular de modo que funcione como a base de uma nova visão de mundo. E quando isso acontece, temos um novo problema: como pode a visão antiga ser comparada com a nova? (Ibid., p. 281). Ou seja, o problema ou os problemas, não se extinguem apenas por se mudar de visão de mundo, pois há sempre novos problemas, novas conjecturas e limitações. Sempre algo entra em ressonância, faz com que as histórias se relacionem, o que ocasiona mudanças de entendimento, e que é algo salutar. Feyerabend fala a favor da interação e da abertura, por isso sua defesa de que a incomensurabilidade depende da forma metodológica que se adota ou da noção que se tem acerca de conhecimento e do conhecer: Creio que a incomensurabilidade surge quando aguçamos nossos conceitos da maneira exigida pelos positivistas lógicos e seus herdeiros, e que ela solapa as idéias deles sobre explicação, redução e progresso. A incomensurabilidade desaparece quando utilizamos os conceitos como os cientistas os usam, de maneira aberta, ambígua e com frequência antiintuitiva. A incomensurabilidade é um problema para os filósofos, não para os cientistas, embora os últimos possam ficar psicologicamente confusos por coisas incomuns. Cheguei a esse fenômeno enquanto estudava os primeiros trabalhos sobre enunciados básicos e ao considerar a possibilidade de percepções radicalmente diferentes da nossa (FEYERABEND, 2007, p. 285 - 286). 47 Feyerabend, assim como Wittgenstein, está em batalha contra o entendimento de que a realidade é fechada e que se pode atingir esse absoluto pelo pensamento e de uma vez por todas. Uma ciência que acredite nisso não é ciência, mas filosofia da essência. Feyerabend, inclusive, é contrário ao estabelecimento de um relativismo extremo que negue visões de mundo (no sentido de se fechar em si mesmo e não permitir a troca entre culturas) (FEYERABEND, 2010), destacando que o “[...] relativismo oferece uma excelente explicação da relação entre visões de mundo dogmáticas, mas é apenas um primeiro passo em direção ao entendimento de tradições vivas” (FEYERABEND, 2007, p. 359). Em seu entender: Uma troca aberta respeita o parceiro, seja ele um indivíduo ou uma cultura inteira, ao passo que uma troca racional promete respeito somente dentro da estrutura conceitual de um debate racional. Uma troca aberta não dispõe de um órganon, embora possa inventar um; não há uma lógica, embora novas formas de lógica possam surgir em seu corpo. [...] Ao manter as tradições vivas em face de influências externas, agimos de maneira parcialmente consciente. Podemos descrever resultados depois que ocorreram, não podemos incorporá-los em uma estrutura teórica duradoura (como o relativismo). Em outras palavras, não pode haver nenhuma teoria do conhecimento (exceto como parte de uma tradição parcial e razoavelmente estável), pode haver no máximo, uma estória (bastante incompleta) das maneiras em que o conhecimento mudou no passado (FEYERABEND, 2007, p. 361). Logo, em uma tradição viva se destaca o caráter ambíguo e lacunar dos enunciados, concepções e considerações “teóricas” que emergem dela. É aberta, não tem a pretensão de esgotar o que se possa falar, das associações que se pode fazer e os possíveis problemas que podem surgir de tais empreendimentos. É viva nesse sentido, não é algo em separado mas mantém viva a potencialidade inerente à cultura enquanto nascedouro, estando presente, por exemplo, a ambiguidade e a mudança de significado de que fala Fleck. Isso, pode-se dizer, caracteriza tanto Fleck quanto Feyerabend como pensadores pós-modernos, ou pelo menos que suas colocações e proposições se coadunam com muitos dos entendimentos e pressupostos da agenda pós-moderna. Sobre a relação entre cultura e natureza, sobre ontologia, ciência e método: não apreendemos esses próprios ambientes: Cultura e Natureza (ou Ser, para usar um termo mais geral) estão sempre emaranhados de um modo que pode ser investigado só entrando em emaranhados adicionais e ainda mais complicados. [...] Ora, considerando que os cientistas usam métodos de pesquisa diferentes e até mesmo contraditórios (descrevo alguns deles no capítulo 19 desta edição), que a maioria desses métodos é bem-sucedida e 48 numerosas formas de vida não-científicas não apenas sobreviveram, mas protegeram e enriqueceram seus habitantes, temos de concluir que o Ser reponde diferente, e positivamente, a muitas abordagens distintas. [...] Permitam-me repetir que são as culturas que originam certa realidade e essas próprias realidades nunca são bem definidas. As culturas mudam, interagem com outras culturas, e a indefinição resultante disso é refletida em seus mundos. Isso é o que torna possível o entendimento intercultural e a mudança científica: potencialmente, cada cultura é todas as culturas. Podemos, é claro, imaginar um mundo em que culturas sejam bem definidas e estritamente separadas e em que termos científicos tenham sido, por fim, claramente estabelecidos. Em tal mundo, apenas milagres ou revelações poderiam reformar nossa cosmologia (FEYERABEND, 2007, p. 362 - 365). Portanto, uma tradição viva é aquela baseada em trocas abertas, e que mantém em seu horizonte a possibilidade e nunca a certeza ou a noção de que chegou à verdade ou ao fim das coisas. Considerando que cada cultura possui semelhanças – mesmo que sejam mínimas - nos pressupostos e/ou nas suas práticas, e tendo em vista a noção de possibilidade, pode-se sim estabelecer essa imagem de que “potencialmente, cada cultura é todas as culturas”, esboçada por Feyerabend. Mesmo que não possuam semelhanças manifestas, as culturas podem se comunicar ainda mediante as lacunas que seus enunciados e discursos comportam. 2.1.2 Adeus à razão Em Adeus à razão, como de costume, Paul Feyerabend, evidenciando que sua intenção é privilegiar pessoas e culturas e não puras abstrações e depurações epistemológicas, declara: “irei criticar duas ideias que foram muitas vezes utilizadas para tornar a expansão ocidental intelectualmente respeitável – a ideia da Razão e a ideia da Objetividade” (FEYERABEND, 2010, p.12). Segundo ele, [o] que os gregos inventaram não foi apenas o argumento, mas uma maneira especial e padronizada de argumentar, que, acreditavam, era independente da situação em que ocorresse e cujos resultados tinham autoridade universal. [...] E ser racional ou usar a razão passou a significar usar essas maneiras e aceitar seus resultados (Ibid., p. 15). Defende, como em partes de Contra o método - que “a variedade cultural não pode ser domesticada por uma noção formal de verdade objetiva, por que ela contém uma variedade dessas noções” (FEYERABEND, 2010, p. 16). Sinaliza logo que irá aprofundar de certa maneira algo que fora abordado superficialmente naquela primeira obra – Feyerabend menciona 49 inclusive por várias vezes que estava sempre reescrevendo o mesmo livro -, a noção de ambiguidade: As noções são ambíguas e nunca explicitadas claramente, e tentar segui-las ao pé da letra seria contraproducente: procedimentos “irracionais” muitas vezes levam ao sucesso (no sentido daqueles que os chamam de “irracionais”), enquanto procedimentos “racionais” podem causar problemas terríveis (Ibid., p. 18). Expondo que um de seus objetivos “é mostrar que o relativismo é razoável, humano e mais difundido do que normalmente se presume” (Ibid, p. 21), considera que não há nada na natureza da ciência que exclua a variedade cultural. A variedade não está em conflito com a ciência vista como uma investigação livre e irrestrita; ela está em conflito com filosofias como o “racionalismo” ou o “humanismo científico” e com uma força, às vezes chamada de Razão, que usa uma imagem congelada e distorcida da ciência para obter aceitação para suas próprias crenças antediluvianas. [...] Tudo o que ele faz [o Racionalismo] é emprestar categoria ao impulso geral na direção da monotonia. É hora de desprender a Razão desse impulso e, como ela já ficou totalmente comprometida pela associação, dar-lhe adeus. O que contei até aqui é um lado da história; muitas coisas foram conseguidas apesar da Razão, e não com sua ajuda. O outro lado é que a Razão realmente deixou sua marca. Ela deformou as conquistas, esticou-as além de seus limites e é, portanto, pelo menos em parte, responsável pelos excessos que estão sendo propagados sob seu nome. (Ibid., p. 20 - 21). Embora Feyerabend seja bastante enfático na sua crítica à razão, é salutar perscrutar até que ponto ele dá “de fato” adeus à razão e/ou o que significa fazê-lo, em termos feyerabendianos. Ressalte-se que, embora a noção de razão sempre ou quase sempre vá remeter à matemática e a algo exato, veremos a seguir que mesmo a matemática comporta certa imponderabilidade, incomensurabilidade ou irracionalidade que não se consegue expurgar por completo. No primeiro capítulo de Adeus à razão, intitulado Notas sobre o relativismo, ao tratar do que chama de “Relativismo prático (oportunismo), analisando casos das ciências, pesquisas sobre culturas diversas e se amparando em grande medida no pensamento de Stuart Mill, conclui que “não há qualquer conflito entre a prática científica e o relativismo cultural” (FEYERABEND, 2010, p. 50). Como “consequência política” disso, destaca que sociedades dedicadas à liberdade e à democracia devem ser estruturadas de uma forma que dê a todas as tradições oportunidades iguais, ou seja, o mesmo 50 acesso aos recursos federais, às instituições educacionais, às decisões básicas. A ciência deve ser tratada como uma tradição entre muitas, não como um padrão para avaliar aquilo que é aceito, aquilo que não é, aquilo que pode e aquilo que não pode ser aceito (Ibid., p. 50 - 51). Registre-se que ele deixa claro em seguida que sociedades que não vivem de acordo com os pressupostos democráticos devem ser preservadas como são, caso não necessitem de mudar sua dinâmica social e política. Feyerabend, com o objetivo de chamar a atenção para o caráter social e humano do conhecimento, e também como uma forma de criticar Platão, recorre à conhecida tese de Protágoras, segundo a qual “[o] homem é a medida de todas as coisas, daquelas que são por aquilo que são e daquelas que não são por aquilo que não são” (PROTÁGORAS apud FEYERABEND, 2010, p. 57). Segundo o autor, aquela sentença teria um caráter mais social, cultural, falando de homem em termos de ser humano, e Platão teria levado-a mais para o lado do pessoal, subjetivando e relativizando-a. Segundo Feyerabend, Platão teria “reescrito” o dito protagoriano para o seguinte “R5: seja o que for que pareça a uma pessoa, é para aquela pessoa a quem parece” (FEYERABEND, 2010, p. 58), objetivando mais facilmente refutá-la. Platão com isso teria reduzido a abrangência do que Protágoras estaria querendo dizer, já que para o autor de Contra o método, “interpretar a afirmação é parte de sua aplicação, ou da argumentação sobre ela” (Ibid., p. 58). Resumindo, podemos dizer que a crítica principal de Platão parte de uma interpretação indevidamente restrita do dictum de Protágoras combinada com uma crença dogmática na excelência do conhecimento especializado (FEYERABEND, 2010, p. 62). A seu ver, “Protágoras reintroduziu meios do senso comum para estabelecer a verdade e os defendeu contra as reivindicações abstratas de alguns de seus predecessores” (Ibid., p. 65), expondo ainda que Protágoras estaria mais para um engenheiro, do que para um objetivista: A ciência mais fundamental, a física, até hoje não foi capaz de nos dar uma explicação unificada do espaço, do tempo e da matéria. O que temos, portanto (além de promessas grandiloquentes e popularizações superficiais), é uma variedade de abordagens baseadas em uma variedade de modelos que têm sucesso em áreas restritas, ou seja, o que temos é a prática de Protágoras (Ibid., p. 67). Ao tratar do que chama de relativismo democrático, expõe que “os cidadãos, e não grupos especiais, têm a última palavra na decisão daquilo que é verdadeiro ou falso, útil ou 51 inútil para a sociedade”. (Ibid., p. 74). Essa é a condição básica do relativismo democrático, que segundo Feyerabend, “é favorável à pesquisa dedicada à descoberta de fatos objetivos, mas a controla por meio da opinião pública (subjetiva)” (Ibid., p. 75). A tentativa de impor uma variedade universal (uma maneira universal de descobrir a verdade) provocou desastres no domínio social e levou a formalismos vazios combinados com promessas que nunca serão cumpridas nas ciências naturais (Ibid., p. 77). Com isso, passim, Feyerabend está tocando em um tema caro que permeia toda a sua obra, que é a noção de que a ciência não consegue por si mesmo criar as bases para suas teorias e concepções. Ele passa em seguida a fazer um “tratamento histórico” acerca de verdade e realidade, onde expõe que Parmênides teria sido o responsável pela separação entre aparência e realidade, entre abstrações e a cultura. No entanto, segundo ele: Aqueles que seguiram Parmênides foram os primeiros a reincidir. Eles readmitiram o senso comum, embora com certa hesitação e em pequenas doses. Os atomistas, Empédocles e Anaxágoras, todos aceitaram a ideia de Parmênides sobre o ser, mas também tentaram reter a mudança. Para alcançar seu objetivo, introduziram um número (finito ou infinito) de coisas, cada uma possuindo algumas das propriedades parmenidianas; os átomos de Leucipo e Demócrito, eram indivisíveis e permanentes, mas infinitos em número; os elementos de Empédocles eram finitos em número, permanentes, divisíveis em regiões, mas não divisíveis em outras substâncias (os quatro elementos de Empédocles, o Quente, o Frio, o Seco e o Úmido eram, portanto, diferentes de qualquer substância conhecida); enquanto Anaxágoras presumia a permanência de todas as substâncias. A teoria (filosófica) estava agora um pouco mais próxima da experiência – mas a distância que ainda permanecia entre ela e o senso comum e as ciências da época era enorme (FEYERABEND, 2010, p. 84). Segundo Feyerabend, Aristóteles rejeita a abordagem de Parmênides por considerar que se há um “Bem uno” em separado, isso não nos teria grande valia, já que ele não teria relação com os seres humanos. Segundo ele, o conhecimento grego era disposto na forma de listas abertas, mencionando que “Platão estava bem ciente da dificuldade de estender conceitos simples a questões complexas” (Ibid., p. 90), o que o faz concluir que “a ideia de uma verdade objetiva independentemente da situação tem validade limitada [...] ela governa em alguns domínios (tradições), mas não em outros”. (Ibid., p. 90). Ao abordar a problemática do relativismo epistêmico, seguindo na linha de argumentação anterior, considera que “para cada afirmação (teoria, ponto de vista) que 52 acreditamos ser verdadeira por bons motivos, é possível que existam argumentos mostrando que ou a afirmação oposta ou uma alternativa mais fraca é verdadeira” (Ibid., p. 92). Pode-se perceber nessa citação de maneira bem clara como se confugira o “relativismo” segundo Feyerabend. Ele é baseado na possibilidade, por isso que ele fala, em Contra o método, que o relativismo “é apenas um primeiro passo em direção ao entendimento de tradições vivas” (FEYERABEND, 2007, p. 359), e que “o relativismo é uma quimera, tanto quanto o é o absolutismo [a idéia de que existe uma verdade objetiva], seu gêmeo impertinente” (Ibid., p. 359). Assim, tratar o relativismo enquanto possibilidade “livra-o” de uma condição objetivista que o igualaria ao absolutismo, que embora estando em trincheiras diferentes, ambos estariam mergulhados em certezas (opostas). O relativismo não se sustenta porque sempre se pode agir de forma contra indutiva, mostrando as falhas dos argumentos, evidenciando que eles não são inteiros, e que logo, não se pode falar propriamente em relação a eles, como se fossem objetivos, algo em separado. Rebatendo as críticas de Popper, que, seguindo o entendimento comum acerca desse tema, expôs que o relativismo seria indulgente e o meio pelo qual qualquer entendimento poderia ser considerado certo ou verdadeiro, ou seja, relativismo como sinônimo de confusão, Feyerabend expõe que o relativismo não significa arbitrariedade (essa questão foi discutida na seção 3 e outra vez na seção 8) e não é “válido” apenas para relativistas. Ao revelar lacunas importantes no arcabouço objetivista, ele dissolve o objetivismo de dentro pra fora, segundo os próprios critérios dos objetivistas (FEYERABEND, 2010, p. 106). O autor trata de muitos assuntos e personagens em Adeus à razão. Aborda as mudanças feitas por Xenófanes na religião grega, ou para a concepção de divindade; se detém um pouco sobre O conhecimento e o papel das teorias e sobre a criatividade. Sobre esse último tema, ele explicita como será o transcurso de suas colocações (na grande maioria das vezes ele explica a “metodologia” que vai ser seguida), que, como de outras vezes, será uma maneira contra indutiva de proceder: Para que minha crítica seja a mais concreta possível, vou me concentrar em um argumento específico a seu favor. E para torna-la o mais clara possível usarei um argumento que tenta mostrar o papel da criatividade individual nas ciências. Se esse argumento claro e detalhado fracassar, a retórica que emerge de áreas mais nebulosas perderá sua força completamente (Ibid., p. 159). 53 Feyerabend se ampara em exemplos, como as ideias de Einstein, para argumentar que essa noção de “criatividade” está associada ao entendimento de que há um mundo real oculto, e que quem trata das coisas desse mundo seriam pessoas intuitivamente mais capazes. Sobre isso ele pontua que “[é] preciso uma forte fé e uma atitude profundamente religiosa para acreditar em uma conexão desse tipo e tremendos esforços criativos são necessários para estabelece-la” (Ibid., p. 161). Sobre o argumento acerca da necessidade da noção de criatividade, a qual se recorre quase sempre para explicar novas criações, este expõe que “a existência de uma lacuna lógica por si só não mostra ainda que seja preciso um ato criativo individual para preenchê-la” (Ibid., p. 162). Segundo Feyerabend, Einstein recorre à noção de criatividade porque começa a partir de uma entidade abstrata, o sujeito pensante, em um ambiente fictício, o “labirinto de [suas] sensações” [...] Substitua o modelo por este mundo e o espectro da criatividade individual irá desaparecer como um pesadelo (FEYERABEND, 2010, p. 169). Ainda segundo este autor: A ideia arrogante de que alguns seres humanos, tendo o dom divino da criatividade, podem reconstruir a Criação para que ela se enquadre com suas fantasias não só levou a problemas sociais, ecológicos e pessoais terríveis, mas também tem credenciais muito duvidosas, cientificamente falando. Devemos reexaminá-las, fazendo uso pleno das formas de vida menos beligerantes que ela afastou (Ibid., p. 171). Ao tratar do Progresso na filosofia, na ciência e nas artes, Feyerabend chama a atenção para o caráter qualitativo presente na ciência, que quase sempre é depreciado ou negado. Ele expõe, como o fez em outros escritos, que a noção de progresso como algo linear e único não se sustenta, pois muitas são as formas com se age e procede, tanto nas artes, como nas ciências e na filosofia. Logo, só se pode analisar o progresso caso a caso, e, mesmo assim, em cada caso há componentes de natureza imprevisível que impedem uma demarcação ou análise em termos de intencionalidade. O que o faz concluir que “as ciências verdadeiras, como praticadas por cientistas, têm pouco a ver com o monstro monolítico “ciência” que serve de base à afirmação de progressividade” (Ibid., p. 187). E nesse sentido, critica os filósofos por terem criado uma imagem falsa do mundo e das teorias, segundo ele, pontuando que a noção de progresso foi parte disso: “o mito do progresso foi introduzido por filósofos, eles insistem na precisão, eles 54 devem admitir que o desenvolvimento das ciências contém muitas descontinuidades” (Ibid., p. 191). No livro ao qual se está fazendo referência ele aborda ainda a filosofia de Karl Popper, A teoria de pesquisa de Ernst Mach e sua relação com Einstein e Algumas observações sobre a teoria da matemática e do continuum de Aristóteles. O nono capítulo tem como título Galileu e a tirania da verdade. Como já fora exposto, Feyerabend considera que Galileu ao propor suas teorias e ideias, usou a contra indução, o que ele reputa como salutar. No entanto, chama a atenção para o caráter um tanto quanto egocêntrico do astrônomo e pintor: Galileu era um especialista em uma área especial que compreendia a matemática e a astronomia. Na classificação da época, ele era um matemático e um filósofo. Galileu afirmava que as questões de astronomia deveriam se deixadas totalmente para os astrônomos. Somente “daqueles poucos que merecem ser separados do rebanho” poderíamos esperar que encontrassem o significado correto das passagens bíblicas que tratavam das questões da astronomia, como escreveu ele em sua carta a Castelli de 14 de dezembro de 1613 (Copérnico, antes dele, e Spinoza, depois dele, usaram uma linguagem semelhante; esse é um tema antigo, como mostra Voigtländer, 1980: ela [sic.] ocorre na antiguidade). Além disso Galileu exigia que as ideias dos astrônomos fizessem parte do conhecimento público, exatamente sobre a mesma forma com que tinham surgido na astronomia (FEYERABEND, 2010, p. 297). A modernidade, embora tenha trazido mudanças, não foi um período de total ruptura com o que se tinha antes, longe disso, afinal, os estudiosos citados acima estavam às voltas com questões místicas, religiosas ou teológicas – e, mediante isso que expõe Feyerabend, muitos dos entendimentos ou buscas desses filósofos se faziam presentes desde a antiguidade. E ainda, eles não foram necessariamente pensadores que romperam com o totalitarismo (em termos epistemológicos). Com isso não se está querendo reviver o passado, nem tampouco desconsiderar o que foi feito naquele período no sentido de introduzir mudanças com relação àquele período anterior, apenas se está evidenciando as nuances do processo. Para usar termos modernos: os astrônomos estão totalmente seguros quando dizem que um modelo tem vantagens preditivas sobre outro modelo, mas se complicam quando afirmam que essa é, portanto, uma imagem fiel da realidade. Ou, de uma maneira mais geral: o fato de que um modelo funciona não mostra por si só que a realidade é estruturada como esse modelo (Ibid., p. 298). Ou seja, isso é bem diferente de dizer que “tanto faz”, que qualquer teoria tem o mesmo status, que não se pode fazer diferenças entre teorias ou entre modelos – como muitos críticos 55 de posturas como aquelas defendidas por Feyerabend, por exemplo, consideram. Além de a teoria é um modelo - e não um retrato fiel da realidade – há de se considerar ainda que a ciência segue muitos métodos e técnicas de modelagem diferentes ao mesmo tempo, e, ainda, que a experiência da história da filosofia e da ciência tem mostrado que, tampouco, se pode considerar a tão defendida aproximação assintótica acerca da “realidade”. Aproximações são lugares-comuns na ciência. São usadas porque facilitam os cálculos em um domínio restrito. Suas simetrias-propriedades muitas vezes diferem daquelas da teoria subjacente. Portanto, se presumirmos que a teoria corresponde à realidade, as aproximações não podem corresponder a ela no mesmo sentido. As teorias, no entanto, são muitas vezes desenvolvidas como passos para uma visão mais satisfatória mas ainda desconhecida. Elas podem ser bem sucedidas, mas o próprio objetivo para o qual foram introduzidas nos proíbe de tirar consequências realistas a partir delas [...] Mesmo uma teoria formalmente perfeita com poderes preditivos surpreendentes pode falhar se for vista como uma expressão direta da realidade (FEYERABEND, 2010, p. 298 - 299). Feyerabend, ao analisar os estudos de Evans-Pritchard sobre os zande e o caso de Aquiles, que segundo ele teria se afastado da tradição ao ter em mente outra noção do conceito de honra - o que, “[u]sando a terminologia de Putman [...] é ‘incomensurável’ com a ideia tradicional” (FEYERABEND, 2010, p. 319) – considera que: No entanto, Aquiles introduz sua ideia exatamente na mesma linguagem que parece excluí-la. Como isso é possível? Isso é possível porque, como Evans- Pritchard, Aquiles pode mudar os conceitos mesmo mantendo as palavras associadas. E ele pode mudar conceitos sem deixar de falar grego porque os conceitos são ambíguos, elásticos, passíveis de reinterpretação, de extrapolação e de restrição; usando um termo da psicologia da percepção, os conceitos, como os perceptos, obedecem às relações figura-fundo (Ibid., p. 319). O pensamento de Paul Feyerabend, nesse ponto, é bastante semelhante ao de Ludwik Fleck - como se poderá perceber mais adiante quando da apresentação e problematização do pensamento de Fleck -, já que ambos chamam a atenção para as contribuições trazidas pela psicologia da Gestalt para a problemática referente ao conhecimento e ao conhecer. Para ambos um determinado entendimento acerca de algo não esgota as possibilidades interpretativas e perceptivas referente àquilo. Outra semelhança entre eles é a noção de que palavras e conceitos são ambíguos e que se pode mudar os significados sem alterá-los. 56 Figura 3 – Conhecida imagem das faces e do vaso, exemplo de perspectiva Acerca disso se pode pensar: mas, então, se tudo é ambíguo e não tem como se estabelecer minimamente uma caracterização de algo, tudo se torna confuso. Mas, de certa forma, pode-se considerar que a ambiguidade a que se refere Feyerabend, por exemplo, é algo potencial – o que é melhor esclarecido pelo autor em A conquista da abundância, obra abordada no tópico a seguir. Ou seja, há sempre uma possibilidade de um grupo ou uma pessoa, ao se defrontar com um conceito ou uma palavra, ter um entendimento acerca daquilo bastante diferente daquele que terão pessoas de um outro referencial. Ao tratar da questão do caos – ou seja, sobre aqueles pensadores que criticam e são em certa medida contra o status quo – e do entendimento de que isso seria nocivo ou perigoso, ou algo do tipo, Feyerabend convida que se “comparem a quantidade de dinheiro que está sendo usada para manter o caos com quantidade de dinheiro que apoia a monotonia (FEYERABEND, 2010, p. 329)”. Ele trata ainda da problemática envolvendo o financiamento de artistas, de autonomia e de liberdade acadêmica. Em algum sentido, pode-se considerar que o conhecimento só avança mediante a liberdade e uma certa anarquia, como este autor pontua em outros momentos. Não se pode dizer que todos eram como Giotto, o qual Feyerabend cita, mas que existiram mecenas, no período do Renascimento que possibilitavam uma certa liberdade e autonomia aos seus artistas apadrinhados. Em parte, é pertinente o comentário de Feyerabend, pois ele está pontuando que, se o financiamento das universidades é público, então o que se pesquisa nessas instituições deve ter um certo controle da sociedade, deve ser pesquisado algo 57 que dê retorno às comunidades. Mas, assim como dar total liberdade aos institutos de pesquisa é algo totalitário, já que seus integrantes podem trabalhar à revelia da sociedade, negar por completo a autonomia dessas instituições é algo também bastante restritivo e nocivo, até porque, como ele mesmo expõe, “[a] pesquisa bem-sucedida não obedece a padrões gerais; ela ora utiliza um truque, ora outro, e os movimentos que a fazem avançar nem sempre são conhecidos por aqueles que os fizeram” (Ibid., p. 334). Critica o neopositivismo do Círculo de Viena – embora considere que tinha caraterísticas iconoclastas – por eles terem se apegado a noção de que a filosofia poderia dar as bases para o conhecimento. Nas palavras do autor, eles “retiraram-se para uma fortaleza restrita e mal construída.” (Ibid., p. 335). Tudo o que temos é o processo de pesquisa, e, ao lado dele, todos os tipos de regras práticas que podem nos ajudar em nossa tentativa de fazer avançar o processo, mas que também podem nos levar para o caminho errado. (Quais os critérios que nos informam que fomos mal-orientados? São critérios que parecem se enquadrar com a situação que temos nas mãos. Como determinamos enquadramento? Nós o constituímos pela pesquisa que fazemos: os critérios não apenas avaliam eventos e processos, muitas vezes eles também são constituídos por esses eventos e processos e devem ser introduzidos dessa maneira para que a pessoa possa pelo menos começar: AM, p. 26.) Essa é minha resposta simples aos vários críticos que ou me puniram por me opor às teorias da ciência e, ao mesmo tempo, desenvolver uma teoria própria, ou me censuram por não ter dado uma “determinação positiva sobre de que deve consistir uma boa ciência”: se uma coleção de regras práticas é chamada de uma “teoria”, bem, então é claro que tenho uma “teoria” – mas ela difere consideravelmente dos castelos de areia antissépticos de Kant e Hegel e das casas de cachorro de Carnap e Popper (Ibid., p. 336). Está-se criticando uma noção de teoria científica que não considera a prática como algo inerente ao processo. Que possa haver uma concepção geral, unificada, de ciência e/ou do conhecimento. Sobre a polêmica de “tudo vale”, Feyerabend expõe: “não é um princípio que defendo, é um princípio forçado sobre um racionalismo que ama princípios, mas que também leva a história a sério” (FEYERABEND, 2010, p. 337). Se se quiser um princípio geral, a única saída seria considerar que tudo vale ou vale tudo, dada a multiplicidade de métodos e abordagens, já que “nem mesmo as leis da lógica são isentas de seu escrutínio, pois as circunstâncias podem força-los a mudar a lógica também (algumas circunstâncias assim surgiram na teoria quântica)” (Ibid., p. 338). 58 Considerando que “os cientistas também produzem obras de arte – a diferença é que seu material é o pensamento, não a tinta, nem o mármore, nem metais nem sons melodiosos” (Ibid., p. 349), Feyerabend expõe de forma enfática: As tradições abstratas se transformam em tradições históricas em épocas de crise e revolução, o que sustenta minha tese de que boas ciências são artes ou humanidades, e não ciências no sentido dos livros escolares. [...] A ciência funciona às vezes, muitas vezes ela fracassa e muitas das histórias de sucesso são rumores e não fatos. Além disso, a eficiência da ciência é determinada por critérios que pertencem à tradição cientifica e assim não podem ser considerados juízes objetivos (FEYERABEND, 2010, p. 351 - 352). Sobre a devastação das culturas, ele defende a interação com saída, afirmando que “precisamos viver a vida que queremos mudar” (Ibid., p. 362), negando por e com certa agressividade a noção de objetividade, por considerar que a política é sempre uma atividade que comporta muita subjetividade e que não há teoria científica que não seja em algum sentido política, o que em alguma medida as torna também subjetivas: Tenho pouco carinho pelo educador ou pelo reformador moral que trata suas malditas efusões como se elas fossem um novo sol iluminando a vida daqueles que vivem na escuridão; desprezo os chamados professores que tentam despertar o apetite de seus alunos até que, perdendo todo o autorrespeito e autocontrole, chafurdam na verdade como porcos na lama; só tenho menosprezo por todos os planos excelentes para escravizar as pessoas em nome de “Deus” ou da “verdade” ou da “justiça”, ou outras abstrações, especialmente porque seus perpetradores são covardes demais para aceitar responsabilidade por essas idéias e se escondem por traz de sua suposta objetividade (Ibid., p. 365). Feyerabend assume: “[o] modelo é vago – é bem verdade -, mas a indefinição é necessária, pois ele supostamente deve ‘abrir caminho’ (EFM, p. 160) para as decisões concretas daqueles que o usam” (Ibid., p. 366). Seus escritos são em grande medida provocações, que não devem ser tomados como algo a ser seguido, refletidos como uma imagem no espelho, mas que é lacunar, algo que não se pode fazer utilizando enunciados bem definidos e/ou impositivos. Fazendo a seguinte provocação, “presuma que nós conseguimos implantar o Bem em todas as pessoas – como é então que poderíamos voltar para o mal?” (Ibid., p. 367), passa a transcorrer sobre a inevitável presença do mal. Pode-se considerar (e isso o que se percebe) que ele não está defendendo o mal (o irracional)9 de uma forma deliberada, mas 9 O próprio Feyerabend, em Adeus à razão, apresenta o mal, ou o Diabo, na Idade Média como sinônimo do mal, no capítulo “O conhecimento e o papel das teorias”. Nicômaco de Gerasa, em Introdução à Aritmética, do 59 chamando a atenção para a sua existência. Assim como Wittgenstein e Fleck, Feyerabend parte do que existe, do que se apresenta, nunca de uma essência abstrata. Em suas próprias palavras: “o Mal é parte da Vida, assim como foi parte da Criação. Nós não abrimos os braços para ele – tampouco nos satisfazemos com reações infantis. Nós o delimitamos - mas deixamos que ele permaneça em seu território” (FEYERABEND, 2010, p. 373). Feyerabend é um pensador controverso. Como ele mesmo assume em seus escritos, ele busca ser algo como um provocador, de forma que suas colocações possibilitem tomadas de decisões. Logo, é extremamente difícil – em alguns assuntos mais do que em outros, inclusive –dizer com certeza qual é de fato sua posição, embora ele sinalize em boa parte dos temas para alguma posição. Talvez ele considerasse a narrativa criacionista em algum aspecto – ele inclusive elogia a Igreja Católica em muitas passagens de seus livros -, mas também cita as teorias de Darwin: Antes dele [Darwin], era normal considerar que os organismos foram criados divinamente e, portanto, eram soluções perfeitas para o problema da sobrevivência. Darwin chamou a atenção para inúmeros “erros”: a vida não é uma realização de objetivos claros e estáveis, cuidadosamente planejada e meticulosamente desempenhada; ela é irracional, esbanjadora, produz uma imensa variedade de formas e deixa para o estágio específico que alcançou (e para o ambiente natural que existe naquele momento) o papel de definir e eliminar as falhas (Ibid., p. 225). Negando uma total separação entre Bem e Mal, o autor trata do fascismo mediante a seguinte problematização: “existirá um “núcleo objetivo”, que me permitiria combater o fascismo não apenas porque ele não me dá prazer, mas porque ele é inerentemente mal? E minha resposta é: nós temos uma inclinação – nada mais” (Ibid., p. 367). Ou seja, o que ele parece estar colocando é que manifestações históricas como o fascismo, muitas vezes são usadas como pano de fundo, como eventos pontuais objetivos, como apenas acontecimentos históricos que estariam bem distantes do mundo atual, como se fosse algo separado, o que impossibilita de ver a sua ação ainda hoje, por exemplo. Em sua própria forma de expor: movimento dos planetas, faz a seguinte relação entre o movimento retrógrado e incerto dos planetas com a noção de mal: “E no mundo sublunar, em torno e acima de nós, tudo é mudança e movimento, e como diz o poeta: ‘Aqui embaixo vê-se apenas ira e morte e todos os outros males’ [Empédocles]. Na verdade não há nada além de geração e decadência, crescimento e declínio, o processo de alteração em todos os tipos e mudando de lugar. Os planetas, diz Adrastus, são a causa de todos esses fenômenos.” (NICOMACHUS, 1926, p. 97, tradução livre). O irracional, a mudança e o incomensurável era visto como sinônimo do mal na antiguidade e na renascença. Há no Tarô de Ferrara e nos demais - representação pictórica que fora criada inicialmente para ser exposta na parede, como uma peça de arte e no qual foram resumidos muitos conhecimentos e doutrinadas presentes até então -, assim como nos demais exemplares do Tarô, uma carta referente ao Diabo, remetendo a essa noção de mal como mudança e imprevisibilidade a se referira Nicômaco de Gerasa e muitos outros. 60 Ora se combinarmos esses sonhos [de uma vida melhor] (que eu tenho) com uma ideia de valores objetivos (que eu rejeito) e chamarmos o resultado de consciência moral, então não tenho qualquer consciência moral e, felizmente, diria eu, pois a maior parte da desgraça em nosso mundo – guerras, destruições de mentes e corpos, carnificinas sem fim – é causada não por indivíduos maus, mas por pessoas que objetivaram seus desejos pessoais e suas inclinações e assim as tornaram desumanas. [...] Digo que Auschwitz é uma manifestação extrema de uma atitude que ainda prospera em nosso meio. Ela se mostra no tratamento das minorias nas democracias industriais; na educação, inclusive a educação de um ponto de vista humanitário, que na maior parte do tempo consiste em transformar jovens maravilhosos em cópias coloridas e hipócritas de seus professores; ela se manifesta na ameaça nuclear, o aumento constante do número e do poder de armas letais e a disposição de alguns chamados patriotas para começar uma guerra que comparativamente fará o holocausto parecer insignificante. Ela se mostra na matança da natureza e das culturas “primitivas” sem um único pensamento por aqueles que assim foram privados do significado de sua vida; no convencimento gigantesco de nossos intelectuais e seus esforços incansáveis para recriar pessoas à sua própria e triste imagem; na megalomania infantil de alguns de nossos médicos que chantageiam nossos pacientes com o medo, os mutilam e os perseguem com contas gordas; na falta de sentimento de muitos dos chamados pesquisadores da verdade que sistematicamente torturam animais, estudam seu desconforto e recebem prêmios por sua crueldade (FEYERABEND, 2010, p. 370 - 372). Posicionamentos como esse de Feyerabend são relevantes como forma de fomentar a discussão, jamais como um ponto a ser defendido como verdade. Assim como é difícil concordar com ele por completo, é bem improvável que se o desconsidere em sua totalidade, haja vista que seu discurso toca em pontos bastante pertinentes. É nesse sentido que Feyerabend problematiza acerca de dar adeus à razão, por considerar que concepções de natureza extremamente objetiva têm se mostrado como edificadoras de monstros, pode-se colocar. Que praticamente nada é apenas Mau ou Bom, como muitas vezes se faz acreditar, mas praticamente todo acontecimento tem seus condicionantes, sendo um ponto de partida para se entender as formas de ação que geraram aquele estado de coisas.10 Por isso ele usa o termo inclinação, pois no caminhar em determinado sentido, o que tem “de fato” é um arcabouço, nunca se sabe ao certo o que surgirá ao final ou no momento seguinte. E na sua sagacidade habitual, Feyerabend declara ao fim do livro: 10 Não se está interessado aqui em abordar a problemática envolvendo o fascismo – esse foi um tema que Feyerabend abordou, talvez por motivações pessoais, por ter sido convocado pelo exército alemão para a segunda guerra (algo pelo qual sempre fora criticado e do qual se defendera sempre, e que não se abordou aqui por fugir do objetivo do trabalho) – mas de acontecimentos sociais, políticos e científicos de uma forma geral. 61 Fiquei muito surpreso e profundamente emocionado quando percebi que as pessoas de culturas diferentes, cujas ações eu respeitava, tinham lido algumas das coisas que eu tinha escrito e as acolhido bem. Então finalmente desisti do meu autocinismo e decidi escrever um último livro [...] É claro, para escrever esse [último] livro vou ter que cortar as cordas que ainda me prendem à abordagem abstrata ou, para reverter à minha maneira normalmente irresponsável de falar, terei de dizer ADEUS À RAZÃO (FEYERABEND, 2010, p. 378). 2.1.3 A conquista da abundância O livro A conquista da abundância, que foi editado após a morte de Paul Feyerabend, tendo sido organizado por Bert Terpstra e contendo um prefácio assinado por Grazia Borrini- Feyerabend – companheira do autor – é composto por O manuscrito inacabado e Ensaios sobre os temas do manuscrito. De uma forma geral os temas do manuscrito são os mesmos já tratados por Feyerabend nas demais obras anteriores. Tratam das proposições feitas por Xenófanes, Parmênides, e o que ele nomeia como “Conjectura apaixonada de Aquiles”. Há ainda um capítulo intitulado Brunelleschi e a invenção da perspectiva e outro sobre a “ambiguidade das interpretações”. Os ensaios versam sobre temas gerais, como, conhecimento, visões de mundo, realismo, teoria quântica, ética, arte e filosofia. Com vistas a dar uma caracterização do período filosófico dos Pré-socráticos (séculos VII e VI a.C.), Friedrich Nietzsche em A filosofia na época trágica dos gregos faz uma descrição do que significava ser filósofo naquela época. Esses pensadores que se dedicavam ao estudo da Physis, termo grego para designar o mundo físico, a natureza - que em alguma medida guarda relações fonéticas e linguísticas com a palavra fuso, mencionada por Platão em A República, quando este trata do fuso da necessidade, no décimo capítulo do livro. Nietzsche propõe que as teorias fisicistas, na sua busca pelo princípio de todas as coisas, não têm um fundamento abstrato: O que o verso é aqui para o poeta é para o filósofo o pensar dialético: é deste que ele lança mão para fixar-se em seu enfeitiçamento, para petrificá-lo. E assim como, para o dramaturgo, palavra e verso são apenas o balbucio em uma língua estrangeira para dizer nela o que viveu e contemplou e que, diretamente, só poderia anunciar pelos gestos e pela música, assim a expressão daquela profunda intuição filosófica pela dialética e pela reflexão científica é, decerto por um lado, o único meio de comunicar o contemplado, mas um jeito miserável, no fundo uma transposição metafórica, totalmente infiel, em uma esfera e língua diferentes. Assim Tales contemplou a unidade de tudo que é: e quando quis comunicar-se, falou de água! (NIETZSCHE, 1983, p. 33). 62 Tal problemática também é tratada por Feyerabend no livro A Conquista da Abundância: uma história da abstração versus a riqueza do ser, no qual o autor apresenta a conclusão de que “[o] processo ocasionalmente denominado como o surgir do racionalismo certamente não evoluiu de uma forma muito racional (FEYERABEND, 2006, p. 40 - 41). Segundo ele, dentro do contexto de mudança lógica introduzida por Xenófanes e Parmênides, “[...] o Ser é o lugar em que a lógica e a existência se encontram: cada declaração que envolva a palavra ‘é’ também é uma declaração sobre a essência das coisas” (Ibid., p. 96). Para este autor isso contribuirá para a construção de um discurso verdadeiro para explicar tudo que compõe a existência, sem que o mecanismo interno seja explicitado. Ou seja, teria se passado a considerar a noção de Ser em termos abstratos, não comportando mais toda uma riqueza e multiplicidade que lhe seria inerente. Para Feyerabend, Xenófanes seria um pensador importante por este ter “tentado construir uma visão de mundo totalmente baseada na experiência” (Ibid., p. 85), sendo um exemplo de como as nossas ideias e as coisas que nos afetam condicionam nossa forma de agir e de explicar o mundo. Algumas mudanças ocorridas no mundo antigo contribuirão para que a lógica se torne um sistema rígido, que vai fazer parte da vida da cidade11. Um artifício decisivo para a sua instituição neste período foi a escrita, que “[...] em seu uso literário difunde-se depois da metade do século VI a.C. e permanece ligada particularmente à vida coletiva da cidade, nas formas e nos conteúdos” (COLLI, 1996, p. 87). Segundo Giorgio Colli, na esteira do que fala Feyerabend, [n]a discussão dialética, não só as abstrações, mas as próprias palavras do ‘logos’ autêntico aludem a fatos da alma, que só são captados se deles participamos, numa mescla que não se pode decompor. Na escrita, ao contrário, a interioridade se perde (COLLI, 1996, p. 91). É nesse contexto, expõe Giorgio Colli, em O nascimento da Filosofia, que surge o pensamento de Górgias, “[...] que declara encerrada a idade dos sábios, daqueles que puseram 11 “‘Este mundo’ mudou gradualmente durante o período geométrico [de 1100 a.C. a 800 d.C.] tardio. As pessoas se tornaram ‘autônomas’, as suas relações mais distantes e problemáticas. Lingüisticamente, a mudança é bastante óbvia: os conjuntos de termos epistêmicos que haviam caracterizado o período precedente encolheram, ‘as palavras [sobreviventes] (...) tornaram-se empobrecidas no seu conteúdo, elas (...) tornaram-se unilaterais e formas vazias’. Novas disciplinas, especialmente a epistemologia, tentaram ligar, teoricamente e com meios insuficientes, o que na prática tinha se tornado separado: a ‘descoberta da mente’, o surgimento da ciência e da filosofia ocidentais, as reflexões associadas sobre a natureza do conhecimento, o empobrecimento do pensamento e da linguagem – todos esses processos faziam parte de um único e idêntico desenvolvimento abrangente. Esse desenvolvimento se anuncia na resposta de Aquiles aos seus visitantes e enfatiza a posterior separação entre aparência e realidade” (FEYERABEND, 2006, p. 54). 63 os homens e os deuses em comunicação” (COLLI, 1996, p. 84), e teria iniciado a crença no educador como estadista, buscando o filósofo a retórica e a política. Sobre essa gradativa separação entre experiência e intelecto, sobre as transformações pelas quais passou a linguagem, Feyerabend destaca que, [u]sando as fórmulas, o poeta homérico construía cenas típicas ‘acrescentando a parte em uma fileira de palavras, em justaposição’. Os eventos que mais tarde foram articulados por meio de hierarquias gramaticais eram dispostos como contas em um colar (FEYERABEND, 2006, p. 49). Essa estrutura inicial, em que a comunicação era feita através de listas, foi, segundo o autor - gradativamente sendo deixada de lado em detrimento de uma nova forma de organização mediante conceitos lógicos. Acerca de números, listas, irracionalidade e conceitos, na Grécia antiga, ele expõe ainda: Theaetetus introduz quatro novos termos: comprimento, potência, número quadrado, número oblongo. O comprimento é definido como sendo o lado de um quadrado cuja área é um número quadrado; a potência como o lado de um quadrado cuja área é um número oblongo. Essas definições levam ao teorema (que não está presente, mas implícito) de que os números irracionais são potências. Em vez de uma lista, temos uma propriedade (criada por uma definição) partilhada por todos os números irracionais, e que nos permite “reuni-los sob um só termo”. A descoberta de que listas longas e abertas ou estoques podem ser mudados para teoremas curtos e fechados por meio de uma nova entidade, um conceito, e que as esquematizações que levam a essa maneira concentrada de falar, isto é, os conceitos, podem ser construídos e utilizados com a ajuda de seqüências especiais de palavras, ditas definições, foi recente e representou uma extensão do senso comum. Essa extensão leva a uma unificação somente se a nova coisa, a potência no nosso exemplo, situar-se em uma relação mais íntima com as coisas que devem ser reunidas (os números) do que o antigo conceito de irracionalidade – pois de outro modo teríamos novamente de provar a irracionalidade de cada número, apenas, dessa vez, sob um nome diferente (FEYERABEND, 2006, p. 339). Nicômaco de Gerasa, em Introdução à Aritmética, trata de números oblongos. É dito por ele que aqueles são formados pelo produto de dois números, sendo um maior do que o outro por pelo menos uma unidade. Ele mostra que o número 40 é oblongo, por exemplo, pois é formado pelo produto entre 10 e 4, pelo produto entre 8 e 5, e pelo produto entre 20 e 2. (NICOMACHUS, 1926). O caráter de potencialidade de que fala Feyerabend possivelmente advém do fato de ter várias possibilidades para se obter um mesmo número oblongo. Segundo Feyerabend tais acontecimentos foram devidos a certa mudança na forma de o homem se relacionar com tudo que o cerca, uma alteração na trajetória intelectual humana, 64 motivada por questões das mais diversas e que não pode ser entendido de uma forma restritiva, apenas pela via racional: “Os argumentos sobre a realidade tem um componente ‘existencial’: consideramos como reais as coisas que desempenham um papel importante na espécie de vida que preferimos.” (FEYERABEND, 2006, p. 108). Ainda segundo ele, a “estrutura” lógica sequenciada de um argumento gira em torno de uma determinada premissa considerada a priori: “[...] o ‘caminho da verdade’ pode ser subdividido em quatro seções: (1) enunciado referente ao procedimento que deve ser seguido, (2) a premissa usada, (3) o programa da prova e (4) a prova” (Ibid., p. 100). Esse modo apresentado por Feyerabend tem o seguimento com que se estava acostumado acerca da noção de prova (que considera que se vai da prova ao enunciado explicativo) alterado. Isso reforça o entendimento que considera que há um caráter condicionado na pesquisa, que esta não se dá por acaso, mas seguindo uma determinada intencionalidade. O que antes eram adivinhações e enigmas, se transformou em algo cristalizado, petrificado, a ponto de a filosofia ter se transformado em discurso (pretensamente) verdadeiro, e não um discurso acerca de algo, um exercício de pensamento e retórica. Feyerabend, ao analisar entendimento de alguns estudiosos, de que “os filósofos superaram a visão de mundo ingênua dos seus predecessores e a substituíram por uma visão racional” (FEYERABEND, 2006, p. 70 – 71), declara: O que me interessa é que essas idéias reduziram a abundância e, entre elas, as idéias que se assemelhavam à separação entre realidade e aparência: o realismo é o meu tópico. Tais idéias, afirmo, não foram inventadas em um único golpe de imaginação, mas evoluíram lentamente a partir de um material mais uniforme. Os filósofos as aceitaram, até mesmo as congelaram com a ajuda de um novo instrumento, a prova, mas ao fazer isso seguiram a história e não a razão (FEYERABEND, 2006, p. 71). No ocidente parece existir uma dificuldade quanto à coexistência de mais de um modelo que guie a interação com a experiência, haja vista toda a metafísica platônica ter sido construída sobre a ideia de um único ponto central, tendo Platão expulsado os poetas da cidade. Outra certa evidência acerca disso é a dificuldade ainda presente atualmente de se considerar algumas consequências da teoria quântica – como a dualidade onda-partícula, por exemplo. Muito possivelmente por isso, os estudos e proposições feitas por Paul Feyerabend ainda são muito pouco abordadas em sua profundidade, sendo ele muitas vezes incompreendido ou até mesmo rechaçado, visto que busca trilhar um caminho repleto de tensões, mostrando sempre o caráter não objetivo de teorias e conceitos. 65 Considerando-se o que é exposto por Feyerabend, a ciência, e grosso modo, o conhecimento e as criações humanas em geral, nem sempre surgem como fruto da filosofia, ou de uma filosofia especifica (seguindo uma lógica determianda), mas que muitas são parte de um acontecimento maior, do qual não se pode prever todas as condicionantes e consequências. Para este pensador, as mudanças epistemológicas não são determinadas por proposições filosóficas ou ideias individuais, mas sim como fruto de mudanças em um plano prático, como por exemplo, a invenção da escrita e outros acontecimentos expostos acima. Ou seja, tais mudanças não surgem como fruto apenas da ação do pensamento, mas podem surgir inclusive por acaso (atente-se, por exemplo, para o caso do modelo de átomo proposto por Rutherford, que tentando provar o modelo anterior, de Thompson, teve ao invés disso que criar um outro modelo atômico), devido a questões políticas, ideológicas e propagandistas ou por mudanças estruturais gerais da comunidade (como aquelas que aconteceram no período geométrico tardio). Algo que é bem frequente no manuscrito inacabado deixado por Feyerabend é a noção de que imagens, representações pictóricas e demais práticas relacionadas à arte, à prática, e não apenas à abstração têm um papel importantíssimo para o avanço do conhecimento de uma forma geral, e das ciências. Como também, que a abstração reduz o horizonte de aplicação daquilo que circunscreve: Até mesmo provas matemáticas que tentavam introduzir uma determinada quantidade de coerência consistia em desenhar diagramas ou criar padrões que revelavam propriedades ainda insuspeitas de números, linhas, figuras. A figura 1 [Figura abaixo], que mostra que a soma dos ângulos em um triângulo é o “ângulo reto”, é um exemplo disso. O conhecimento divino não era diferente, mas somente mais compreensivo que o conhecimento humano. Era sobre “mais fatos”. Xenófanes parecia concordar com isso. “O conhecimento completo”, diz, “não é dado aos humanos – nenhum ser humano o ‘viu’” (B34 - 1). Isso continua a concepção intuitiva do conhecimento. “Mesmo se alguém conseguisse pronunciar ‘o que foi completado’”, continua, “não estaria consciente disso” (B34 – 3 s.). A informação parece ainda ser enumerativa, e o conhecimento pleno (ou “o que é verdadeiro”; como muitos intérpretes traduzem a frase) é uma enumeração que atinge o seu fim. O fragmento B34 diz que o conhecimento nesse sentido é inacessível aos humanos e que em seu lugar eles estão usando apenas conjecturas (B34 - 4) (FEYERABEND, 2006, p. 81). 66 Figura 4 – A soma dos ângulos de um triângulo e o “ângulo reto” (FEYERABEND, 2006, p. 81). Contrariamente a uma noção de intuição como algo que, embora não permita por completo a apreensão do todo, pelo menos favorece um mínimo contato com um estágio considerado final e/ou mais privilegiado – estando o conhecimento humano sempre relacionado a um estágio abaixo deste, por não conseguir descrever ou demonstrar o contato intuitivo -, Xenófanes, segundo Feyerabend, passa a considerar que as nossas escolhas, sentimentos ou preferencias acabam por conduzir o foco da visão, sendo, assim, algo como uma restrição em alguma medida. Segundo é exposto por ele, é nossa relação com o amarelo - fazendo-se referência aqui ao trecho B38 escrito por Xenófanes e mencionado por Feyerabend12 -, algo de cunho bastante inexplicável (o como se dá essa preferência, ou o que faz com que passemos a ligar a cor amarelo com o caráter de doçura) que faz com que se passe a considerar que o mel é mais doce que os figos. Assim, o fato de o mel ter sido feito amarelo seria apenas um acontecimento, nossa preferência pelo amarelo é que desencadeia a escola entre os dois alimentos. No que se refere à soma dos ângulos internos do triângulo, poder-se-á considerar que é a inexplicável ligação entre aritmética e geometria - e o apego e preferência, também não claramente explicitada, pelo 12 “Se Deus não tivesse feito o mel amarelo, eles acreditariam que os figos são muito mais doces” (XENÓFANES apud FEYERABEND, 2006, p. 82). 67 número noventa, que faz com que noventa graus seja automaticamente ligado ao ponto de encontro de duas retas perpendiculares - que faz com que se considere aquilo que é exposto no conhecido teorema. Há uma gama de outras situações envolvendo triângulos e seus ângulos internos e que não se encaixam nesta regra, possibilitando desequilíbrio, abertura. No capítulo cujo título é Brunelleschi e a invenção da perspectiva, ele mostra como a mudança de visões de mundo influenciam na arte que se constrói, mudando os padrões utilizados. Considera, assim, que “[u]m artista expressa visualmente o que é geralmente pensado ser a natureza das coisas; real é o que é assumido, pensado e, portanto, visto como real, em uma determinada época” (FEYERABEND, 2006, p. 134 - 135). Chamando a atenção para o relevante papel da imitação para a arte visual, e abordando a complexidade (inclusive envolvendo muitos padrões matemáticos e geométricos) da arte medieval, Feyerabend analisa a mudança de estilo referente a produções do século XIII e do período renascentistas subsequente (Figuras abaixo). Figura 5 – Madona dos olhos grandes, Siena, 1260 (apud FEYERABEND, 2006, p. 130). 68 Figura 6 - A Virgem e Criança Entronizada, com Cenas da Natividade e a Vida dos Santos, Margarito de Arezzo,1275 (apud FEYERABEND, 2006, p. 132) 69 Figura 7 – Madona do Grão Duque, Rafael, 1504 (apud FEYERABEND, 2006, p. 131). Segundo o autor, a [primeira figura da madona] pode ter incorporado um elemento de realidade que desaparecera na época de Rafael, - mas isso deve ser determinado pela pesquisa e não por especulações metafísicas sobre a natureza da realidade. Um olhar mais atento para esse processo de imitação [Figuras mandonas seguintes] mostra o quão complexa essa situação realmente é (Ibid., p. 135). Ao analisar o palco criado por Filippo Brunelleschi, em 1425 d. C. (Figura seguinte), considera que aquele é “um experimento científico simples e bastante direto [...] [o experimentador] não simplesmente olha, mas analisa o assunto sob condições rigorosamente especificadas” (FEYERABEND, 2006, p. 136). Colin Ronan, no seu livro História ilustrada da ciência, no terceiro volume, que abarca a Renascença e o período marcado pela revolução científica, trata, além de outras coisas, do florescimento da matemática na Renascença, pontuando que a “nova arte [da perspectiva] estimulou algumas investigações geométricas, primeiro, ao que parece, por Filippo Brunelleschi (1377 - 1446), embora o primeiro livro sobre o assunto seja creditado ao pintor do século XV, Paolo Uccello”. (RONAN, 2001, p. 59). 70 Figura 8 – Ilustração do experimento de Brunelleschi, 1425 (apud FEYERABEND, 2006, p. 137) Em seguida passa a analisar aspectos referentes à “nova ciência da pintura” introduzida por Leon Battista Alberti, baseada em conceitos geométricos (Figura abaixo). Segundo Feyerabend, o trabalho de Alberti ao transformar “a pintura em uma ciência, ‘foi quase uma subversão’. Mas ele atingiu o seu propósito, pintores, escultores e arquitetos ganharam status” (Ibid., p. 139). Aborda, ainda, ao analisar as colocações feitas por Graber, o “empobrecimento gráfico” e a “decadência” da linguagem gráfica na passagem da antiguidade para a Idade Média e a épocas subsequentes: “Os artistas do primeiro período da Idade Média viam, por assim dizer, menos coisas em uma face do que os predecessores do fim da Antiguidade” (GRABER apud FEYERABEND, 2006, p. 148). Figura 9 - Ilustração do princípio de construção de Leon Battista Alberti (apud FEYERBEND, p. 138) Samuel Edgerton, ao abordar a teoria da perspectiva e sua relação com outras áreas do conhecimento, inicia o seu artigo Brunelleschi’s mirror, Alberti’s window, and Galileo’s ‘perspective tube’ [O espelho de Brunelleschi, a janela de Alberti e o ‘tubo de perspectiva’ de Galileu] expondo uma figura de uma pintura, do século dezesseis, baseada na perspectiva linear 71 (Primeira figura abaixo), e uma outra figura que mostra a nave espacial Apollo 11 no espaço. Ele expõe ainda o seguinte: a construção de tais dispositivos mecânicos complexos, e até mesmo a possibilidade de que a Águia possa estar em tal corpo extraterrestre, nunca poderia ter sido realizado sem a técnica artística humilde diagramada na Figura 1. Na verdade, a perspectiva linear para pintores, primeiramente concebida pelo italiano artesão Filippo de Ser Brunelleschi em Florença (1377-1446), foi uma das ideias mais decisivas na história da tecnologia e da ciência, bem como da arte do Ocidente (EDGERTON, 2006, p. 152). Nesse artigo, como o próprio título faz alusão, o autor pretende demonstrar como se deu a passagem da contemplação do espelho à janela (em referência à “Janela de Alberti”) e desta ao espaço, expondo, dentre outras coisas, que para a construção da perspectiva se teve alguns aparatos anteriormente pensados e desenhados, como, por exemplo, um manuscrito islâmico do século XIV, do qual é mostrada uma imagem no artigo. Como pode ser percebido, mesmo o tubo de Galileu comporta perspectiva. O autor busca evidenciar que em todos esses casos, desde os primeiros estudos de perspectiva até a engenhosa e metálica águia espacial denominada Apollo 11, tem-se semelhanças capitais envolvendo pontos, linhas e perspectivas: Figura 10 – Ilustração de estudos de perspectiva linear (século XVI d. C.) (EDGERTON, 2006) 72 Figura 11 – Ilustração do método de perspectiva de Alberti (EDGERTON, 2006) 73 Figura 12 – Pintura intitulada Assunção, feita por Cigoli em 1612 d. C. (EDGERTON, 2006) Figura 13 – Representação de um telescópio (EDGERTON, 2006) Ao tratar dos estudos de Galileu Galilei, evidenciando que nem sempre a igreja os desprezou ou desconsiderou por completo, o autor expõe e discute questões envolvendo a penúltima das vinte e duas imagens que apresenta no artigo (a penúltima figura acima). Trata- se do caso em que um pintor chamado Cigoli, amigo de Galileu, fora comissionado para pintar na Capela Paulina na Basílica de Santa Maria Maggiore uma obra que, em vez de ser chamada de Imaculada Concepção, foi nomeada como Assunção. Após analisar vários exemplares da arte egípcia, como também uma imagem que gera ilusionismo óptico, e ainda comentar sobre realismo ingênuo e realismo relativista (nos moldes do que fez em Adeus à razão), tratar de diversas outras pinturas e ilustrações de um livro de Descartes, Feyerabend expõe uma imagem fractal, que segundo ele “[é] um possível objeto de imitação por estruturas” (FEYERABEND, 2006, p. 165). De maneira geral, de fato pode-se perceber relações em termos de estruturas entre essa imagem do fractal e aquelas do período medieval presentes acima. 74 Figura 14 - Fractal criado por Mark R. Laff e V. Alan Norton. (FEYERABEND, 2006, p. 166). Há no mundo moderno uma tendência à epistemologizar e positivar, como fora apontada por Michel Foucault13 (LOPES; JAFELICE, 2013). No que se refere à ciência, pode- se dizer que quase sempre se questiona apenas as concepções que estão em contrariedade com o modelo hegemônico. Não se analisa a “verdade” em suas últimas consequências, determinantes e pormenores, mas apenas aquilo que se torna inevitável. Agir em ciência de forma negativa, ou contra indutivamente no sentido feyerabendiano, é justamente estar atento a esse fato, buscando sempre analisar também aquilo que é tido como certo. A Teologia Positiva, na Idade Média, buscou a natureza de Deus, assim como a corrente hegemônica da ciência busca hoje a teoria do tudo, ou a realidade última por trás do mundo, de que a realidade observável seria regida leis específicas e que se pode por determinados meios subir os degraus que nos leve ao ponto em que se entenda tudo que existe. Pressupostos religiosos ainda são muito presentes no fazer da ciência – são bem conhecidas, por exemplo, as declarações de que “Deus não joga dados”, e que “a ciência sem a religião é manca, a religião 13 De uma forma geral o pensamento de Michel Foucault está bastante presente nesse trabalho, podendo ser percebido como algo implícito em muitos dos trechos e temas abordados. Por motivo de um recorte teórico- metodológico – figurando os referenciais escolhidos como mais específicos ao que se tem como objetivos -, não se deteve aqui de forma tão direta ao pensamento do autor de A história da loucura na Idade Clássica e As palavras e as coisas, dentre outras grandes obras. 75 sem a ciência é cega”, proferidas por Albert Einstein. Assim, como hoje se sabe cada vez mais da relação de Isaac Newton com a religião e outros conhecimentos, tendo ele, inclusive, durante toda a sua vida buscado maneiras de negar a noção de trindade cristã. Logo, pode-se pontuar que o mundo moderno ocidental, embora tenha negado historicamente a autoridade política da Igreja, parece ter mantido em muito sua metodologia metafísica. No entanto, na Idade Média, além do surgimento da Teologia Positiva, cujos pressupostos têm bastante ligação com o realismo ingênuo seguido muitas vezes pelos cientistas, floresceu também a Teologia Negativa, que em linhas gerais concebia que a natureza de Deus, ou da realidade última a qual as coisas estavam circunscritas, não poderia ser conhecida. Como aponta Feyerabend (ao abordar as concepções lançadas por Pseudo-Dionísio Areopagita), noções referentes à Teologia Negativa ainda estão presentes na cultura e sobretudo na ciência, estando em ressonância, em alguma medida, por exemplo, em muitos dos pressupostos da física moderna. Pseudo-Dionísio Areopagita, “ateniense convertido por São Paulo no Areópago (Atos XVII, 16-34) [que] foi provavelmente um monge sírio que escreveu no fim do século V” (BRANDÃO, 2005, p. 82). É conhecido como o autor do conjunto de textos Corpus Areopagiticum, lidos, por exemplo, pelo Abade que construiu a basílica de Saint-Denis (que significa Pseudo-Dionísio em português), primeiro grande exemplar da arquitetura Gótica no ocidente. Ele expõe em suas obras, e sobretudo na Teologia Mística e em As Hierarquias Celestiais, que a natureza última de Deus é a Divina Escuridão. Que, em última instância, a experiência com a realidade última não pode ser revelada ou compreendida. Ou seja, o insight, a ideia, não pode ser comunicada ou transmitida em última instância, já que sua natureza é a Divina Escuridão, que, segundo ele não seria devido à falta de claridade, mas sim pela abundância de luz, o que impossibilitaria um entendimento racional da divindade (DIONYSIUS THE AREOPAGITE, s/d). Em alguma medida esse entendimento remete a Platão, sendo exposto algo semelhante em seus diálogos, como quando ele fala dos profetas nunca poderem lembrar dos sonhos com perfeição ou quando menciona o fato de o prisioneiro ao sair da caverna, ficar obnubilado e cego ao contemplar a natureza última do Ser. Feyerabend faz referência a Pseudo Dionísio em vários textos (FEYERABEND, 2006, 2007), sendo mais recorrente em A conquista da abundância. Para além das controvérsias acerca da existência de Dionísio e da autoria do texto que lhe é atribuído, é certa a existência do texto, e que se tem conhecimento que fora traduzido do grego para o latim por Escoto 76 Erígena (810 – 877 d. C.), tendo influenciado ao que parece autores do medievo como Jakob de Böhme e Mestre Eckhart. Feyerabend relaciona as concepções teológicas pseudo-dionisianas com os pressupostos da física quântica, já que de acordo com a nova física não se pode deterministicamente ter informações precisas, por exemplo, sobre as partículas elementares, como acreditava a física clássica. Em ambas, nas ideias atribuídas a Pseudo-Dionísio e na física quântica, se tem um caráter inefável inerente, pode-se considerar. Assim, seguindo de certa maneira a forma feyerabendiana de proceder no discurso, pode-se considerar que, sendo Pseudo-Dioniso Areopatgita um platonista (YATES, 1964) a noção defendida por Feyerabend de que este pensador é a base para se vislumbrar um pensar mais aberto fica comprometida, caso se considere que o autor de Contra o método está de fato se opondo a Platão. Caso se opte por uma posição contrária – destaque-se, por exemplo, que Feyerabend tem uma obra cujo título é “Por que não Platão?”, sendo esse título algo bastante ambíguo – o argumento muda de figura. Ao discorrer “sobre a ambiguidade das interpretações”, expõe que [o] mundo está cheio de mensagens dispersas, cartas não terminadas e registros danificados. Novamente há muitas maneiras de se lidar com o problema, cada uma delas com suas vantagens e desvantagens (FEYERABEND, 2006, p. 121). Utilizando o caso de Aquiles como exemplo, ele expõe que “o caso muda de caráter quando é extraído do seu habitat natural e julgado por idéias vindas de um meio diferente” (Ibid., p. 122), ao que propõe que se pode proceder de muitas maneiras diferentes, inclusive das três formas seguintes, frente a um determinado julgamento: aceitar o julgamento; mudar as ideias que sustentam o argumento, para assim mudá-lo; ou, separar os argumentos e negar aquele que não se está de acordo. E ainda, chamando a atenção para o pragmatismo: Assim, os filósofos normativos argumentam que o conhecimento é um resultado da aplicação de certas regras; propõem regras que, na sua opinião, constituem conhecimento e rejeitam tudo o que colide com elas. Os pragmatistas e o falecido Wittgenstein, por outro lado, apontam para a complexidade da prática científica ou de um modo mais genérico, epistêmica, e nos convidam a “ver e não pensar”. (FEYERABEND, 2006, p. 122 – 123). Considerando que “ver não é uma coisa fácil [...] [expõe que] [a] paixão leva a um cenário; a falta de paixão a outro – isso é tudo que temos a dizer quando tentamos ‘ver e não pensar’ (Ibid., p. 123). Faz um grande resumo de seu pensamento acerca da noção de 77 ambiguidade – citando o caso de Aquiles –, buscando com isso uma forma de discurso livre de fundacionismo: usei noções externas, tais como “linguagem” (no sentido moderno), “cultura”, “visão de mundo”, “estrutura” e “ambigüidade” para apresentar minhas descobertas. Todo esse ensaio, dos exemplos ao resumo final, foi escrito dessa maneira. Devemos ter isso em mente ao ler afirmações como as seguintes: as culturas contém ingredientes que podem parecer bem definidos, mas têm muito em comum com as quimeras; elas contém caminhos abertos, desconhecidos para qualquer um; os domínios reunidos por esses caminhos freqüentemente conectam-se como as partes de uma paisagem de Escher; uma mudança cultural, que não seja o resultado de pragas, guerras e desintegração, é iniciada por um impulso, mediada por uma das muitas estruturas conflitantes (ou conectadas à maneira de Escher) que a cultura contém e compreendida pelas analogias inerentes ao ponto de partida, e assim por diante. Todos esses aspectos (e as estórias que escolhi para dar-lhes um sentido) são resultados de uma abordagem particular. São “fatos” enquanto a abordagem se encaixa no grupo ou na tradição que está sendo tratada. Esses fatos se dissolvem com uma leitura diferente da “história”, ou de qualquer outra entidade usada para se dar um sentido aos eventos. De uma certa forma, cada leitor está na posição de Aquiles. Bombardeado por palavras e confuso com os eventos extraordinários, ele pode descobrir/inventar situações nunca sonhadas nos sistemas populares de pensamento (Ibid., p. 124 – 125). É possível notar que o pensamento de Feyerabend contribui de forma contundente para questões como a separação entre culturas, para discussões referentes ao relativismo e, sobretudo, no tocante à problemática acerca da objetividade – sobretudo a noção de que os universais devem ser tomados como mediadores, e não reflexos da verdade -, do realismo e outros temas. Chamando a atenção para a complexidade que envolve a “realidade”, os enunciados, os argumentos e as teorias, ele buscou fazer algo que de certa forma não é tão novo assim - embora comporte uma certa originalidade -, que foi considerar mais de uma perspectiva e ter consciência da natureza apenas mediadora do conhecimento. Ao analisar a “aparente” confusão de Aquiles, que ele aborda em boa parte de sua obra, o autor está possivelmente buscando evidenciar que incongruências e coisas sem sentido ou tidas como irracionais estão presentes tanto nas teorias matemáticas como em narrativas ou formas poéticas, como as de Homero, que algum sentido ambas comportam perspectivas abertas. Ao tratar de Parmênides – como também de Hesíodo (e da noção de chaos), de Anaximandro (e seu apeiron) - e do poema em que está descrito que este recebe a verdade de uma Deusa, Feyerabend expõe que 78 podemos descrever Parmênides de uma maneira mais análoga com as histórias cosmológicas que o rodeavam. [...] Até mesmo a parte lógica [que é quando a Deusa trata do que é subjacente a tudo] permite uma interpretação mais histórica daquela habitualmente dada (Ibid., p. 126). Nesse sentido, ele está chamando a atenção para o fato de que mesmo com relação a Parmênides, que ele critica exaustivamente em toda a obra, pode se ter uma interpretação diferente daquela comumente exposta. Seguindo em seu modo habitual de se expressar, buscando sempre a visão alternativa e utilizando a contra indução, ele continua - sempre caminhando por entre, por dentro e por fora do discurso, sempre mostrando ambos os lados (em um instante estando a favor, diga-se, em outro momento se colocando contrariamente àquela posição, o que lembra a forma em que foi escrita as Investigações Filosóficas de Wittgenstein) -, ele expõe ainda, sobre Parmênides: Há um começo. Ele é sancionado por uma Deusa e é tão desprovido de conteúdo aberto quanto são o chaos e o apeiron. Há um modo de se contar a estória e há resultados. Dado o uso contemporâneo de einei, não era difícil aceitar o início – talvez mais facilmente que o chaos ou o apeiron, embora o primeiro fosse conhecido também fora da filosofia (Ibid., p. 126- 127). Feyerabend destaca que se deve estar atento à forma como determinados assuntos e temas presentes em produções antigas, seja na forma de texto ou de obra de arte, são “transpostos” ou abordados atualmente - ou como o foram na modernidade -, pois é justamente mediante esse processo de “planificação” que muito da riqueza, abundância e abertura presentes no original são perdidas: A existência de analogias da espécie que acabei de mencionar (que são descartadas por uma explicação puramente lógica) nos adverte para não nos deixarmos satisfazer com reconstruções de textos antigos que somente se baseiem na lógica e na matemática. Tais reconstruções podem soar “racionais” – mas são irracionais no sentido de eliminarem aspectos que mobilizam o julgamento de contemporâneos: a sua “racionalidade” é apenas para consumo moderno. O modelo deve considerar todos os elementos (por exemplo, deve considerar o prefácio de Parmênides), bem como as implicações textuais ou extratextuais para os contemporâneos (Ibid., p. 127). Ele destaca, no último capítulo, A respeito de um apelo à filosofia, fazendo uma ressalva à filosofia pragmatista, herdeira de Wittgenstein em sua fase mais tardia, que o conflito entre senso comum e ciência (ou filosofia) seria algo semelhante ao embate entre filosofia e poesia: 79 Numerosos ataques à vida, à liberdade e à felicidade, têm tido um forte fundamento filosófico. O surgimento da filosofia no Ocidente, ou “a persistente batalha entre a filosofia e a poesia” (Platão, República, 607b), é o mais antigo e mais influente ataque dessa espécie (FEYERABEND, 2006, p. 356). Feyerabend defende que o senso comum do qual tratam os filósofos seria diferente do senso comum em sua forma mais geral e ambígua, e expõe que “justificar algo não significa relacioná-lo com uma entidade abstrata como experiência, experimento, um princípio da razão ou um ingrediente do Lebenswelt [mundo da vida] de Husserl” (FEYERABEND, 2006, p. 335). A própria mudança contribuiu [segundo o autor feita pelos filósofos com relação ao senso comum] para o congelamento das visões de mundo. Um agente que efetue uma mudança revela a ambiguidade do status quo. Ele usa a ambiguidade para introduzir elementos novos que então esclarece, confrontando-os com um passado bem definido. Tendo sido limitado dessa forma, um modo de vida pode realmente começar a parecer um sistema de pensamento. É esse sistema, um tal artefato, e não a sua fonte irrefletida, que vou comparar com os modos dos filósofos (Ibid., p. 335). Como pode existir algo bem definido? Segundo o entendimento que presa por definição, toda mudança parte da ambiguidade antes existente e a suplanta. O elemento novo, partindo da ambiguidade, é algo que deixa ou tenta deixar de ser ambíguo. Ou seja, da ambiguidade, surge tanto o novo elemento como o passado, que o afasta tanto do contexto ambíguo anterior como de si mesmo, pois ao moldar o passado está moldando o próprio elemento novo. Toda tentativa de definição reduz a abundância em algum sentido e/ou medida. Mas, pode ser colocado que isso é algo inevitável e inclusive que essa redução gerou desenvolvimentos. Mas, essa noção de inevitabilidade muito possivelmente vem do apego a algo que já fora vivido - a cultura estabelecida falando de si mesma e de seu desenvolvimento – ou algo mais ligado ao pensamento enquanto conjectura, sistema, estrutura. Embora se tenha conquistado algo com essa redução da abundância, esse algo é bem diferente do que se tinha no estágio anterior, já que perdeu essa condição de potencialidade da qual se gozava. Não se quer com isso que se empreenda uma volta ao passado, mas uma ampliação das possibilidades. Segundo Feyerabend, o relativismo, quando “inscrito” nesse sistema objetivante e redutor se torna parte dele, não sendo algo totalmente efetivo: Agora os críticos dos tiranos universais querem defender o “tema”: eles adotaram o que alegavam rejeitar, as categorias e os métodos dos seus opositores. (O relativismo também, na medida em que não é simplesmente um 80 chamado à tolerância, opõe-se ao objetivismo dentro da filosofia, ele perdeu a sua conexão com as visões de mundo que tenta defender.) (Ibid., p. 346). 2.1.4 Análise de algumas das críticas ao pensamento de Paul Feyerabend Muitas são as oposições ao pensamento de Paul Feyerabend. Roberto Martins, conhecido por suas contribuições à história da ciência e sua interface com o ensino de ciências, tece críticas a seu pensamento. Martins, em alguns trabalhos de forma mais explícita do que em outros - como em “O que é a ciência do ponto de vista da epistemologia?” -, tenta esboçar “critérios de demarcação entre ciência e não-ciência” (MARTINS, 1999, p. 14). Encontra-se muitas vezes inclusive uma tentativa de separação entre ciência e pseudociência, estando tal entendimento presente em materiais destinados à professores (KNOBEL, 2008). O presente trabalho vai na contracorrente disso, por considerar que, se há conhecimentos presentes nas ditas pseudociências que estão presentes também na ciência, não há como separá- las por completo. Segundo Roberto Martins, para Feyerabend “[...] tudo é permitido e não se pode fazer nenhuma diferença entre astronomia e astrologia, entre medicina e curandeirismo” (MARTINS, 1999, p. 15). Ora, mas Feyerabend não está de forma alguma dizendo que estes conhecimentos são a mesma coisa, muito pelo contrário. O que ele defende é que essas produções humanas, conhecimentos validados por comunidades para quem esses entendimentos fazem sentido e funcionam, comportam sempre uma certa ambiguidade e inter- relações. Isso é muito diferente de dizer que todos os conhecimentos são iguais. E além disso, se a ciência também está repleta de saberes de cunho simbólico e de base não racional desde a sua estruturação até às teorias e posições mais recentes, por que não oportunizar outras formas de conhecimento? Ou, ainda, se a ciência se constrói mediante saberes de outros conhecimentos que não são ciência, como se pode separar ciência do que não é ciência, como pretende Martins? Martins embora considere que a ciência não detém a verdade, em suas análises, tem sempre a ciência como parâmetro de balizamento e comparação com outras formas de conhecimento, o que em última instância acaba por considerar que esta superou os diversos outros saberes e sistemas de conhecimento, considerados pseudociência. Ou seja, parte da ciência para os demais conhecimentos, como sendo um referencial que ele considera privilegiado. No artigo A situação epistemológica da epistemologia, Roberto Martins, ao tecer críticas a Feyerabend, coloca o anarquismo epistemológico do autor como sinônimo de “nenhuma metodologia” (MARTINS, 1984, p. 88). O fato é que para quem considera a 81 epistemologia científica como superior – ou no mínimo como algo totalmente separado e ligado a pressupostos totalmente diferentes de outros saberes -, ou a única metodologia a ser considerada, o fato de ver várias epistemologias e metodologias serem defendidas como igualmente válidas ou ligadas em vários sentidos à ciência, lhe parece o mesmo que negar a existência da metodologia. Se a própria ciência se vale de diferentes formas metodológicas, inclusive em estreita relação com formas de conhecimento consideradas por Martins e outros estudiosos como pseudociência (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010), como se pode considerar que esta mesma ciência sirva de balizamento para uma demarcação epistemológica? No artigo já citado, como forma de negar o caráter intrinsecamente sócio-cultural da ciência – desconsiderando em grande medida que a ciência como uma parte da cultura é composta por muitos elementos comuns a outros saberes e sistemas de conhecimento -, Martins demarca cada território de aplicabilidade de cada subitem de que a seu ver trata do conhecimento, de forma a enquadrar cada um no seu devido lugar: A minha proposta é a seguinte: identificar a epistemologia com a abordagem analítica, mas manter o nome composto ‘epistemologia analítica’, a fim de enfatizar sua natureza; enquadrar a metodologia científica dentro da axiologia, paralelamente à estética e à ética; e deixar a ciência da ciência dentro do campo científico, fora da filosofia, e conseqüentemente fora da epistemologia, que pertence à filosofia (MARTINS, 1984 p. 106). Com isso, Martins deixa claro o seu intento: à epistemologia analítica seria dada a tarefa de decidir o que é conhecimento e o que não é; à metodologia científica, como representante da axiologia, portanto, que trata dos valores, filosoficamente falando, caberá determinar a hierarquia entre as diferentes formas de conhecimento, sempre baseando-se na ciência como fiel da balança ou critério de diferenciação; e a ciência se autoanalisaria acerca das incongruências presentes no processo de conhecer (buscando sempre, claro, aquilo que tem maior significado, e que está restrito, portanto, ao conhecer científico, conforme a proposta sugerida pelo autor). Mencione-se ainda, por exemplo, os termos utilizados pelo autor, como, “identificar” e “enquadrar”. Como Feyerabend e outros autores apresentam – Collins e Pinch (2003) e Bruno Latour (2000) , por exemplo –, cada teoria tem um interesse diferente, que, por sua vez, determina o seu fim específico (cujo caráter é transitório) e uma forma de trilhar seu caminho também diferente, sendo impossível determinar uma única metodologia para o que se considera ciência, nem separar o caminho seguido pela teoria da teoria que trilha esse caminho. Ou seja, não há a ciência, mais muitas formas de ciências. 82 Algo também recorrente entre os críticos é aquilo que é colocado, por exemplo, por Sokal Bricmont em Imposturas Intelectuais: “[...] o problema é que Feyerabend rejeita explicitamente a validade da distinção entre descoberta e justificação” (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 88). O que é posto por Feyerabend é que a “descoberta” já está justificada, ou seja, muitos elementos que possuem caráter de justificação (por assim se dizer) estão presentes já na “descoberta” – do contrário, inclusive, seria bastante difícil justificar -, e que esta tal “justificação” é conduzida metodologicamente de formas diversas. Toda a polêmica envolvendo Sokal Bricmont começou quando os autores escreveram, e publicaram na revista americana Social Text, uma paródia, uma farsa, intitulada Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica. O objetivo era mostrar que muitos estudiosos das ciências humanas e sociais muitas vezes utilizam termos e terminologias referentes a teorias as quais eles não dominam ou nem sequer sabem o mínimo sobre elas – destaque-se que estudiosos de ciências exatas, muitas vezes, agem desta mesma maneira com relação a teorias ou concepções das ciências humanas. A investida dos autores é bastante pertinente e elogiável, por assim dizer. No entanto, o uso que eles fizeram dessa situação, culminando com a publicação do livro Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos, tem, no mínimo, pontos bastante questionáveis. A tese, ou uma das teses dos autores, é que - como pode ser compreendido em alguma medida mediante a observação da figura presente na capa do livro (Figura abaixo) - boa parte dos filósofos e pensadores pós-modernos brincam, abusam e/ou utilizam de maneira displicente, e sem seriedade, conhecimentos, teorias e pressupostos das ciências exatas. Ao que parece os autores estão dando pouca ou nenhuma ênfase à importância de o caráter alegre e brincante para ao pensamento, a vivência e o conhecimento. Nesse texto, almejam colocar no mesmo lado, e tratar como sendo parte de um mesmo grupo, aqueles que de fato se ancoram nas terminologias e chavões da ciência para falar algo do qual não sabem e aqueles que estão fazendo um trabalho crítico contundente acerca dos pressupostos modernos. 83 Figura 15 – Capa do livro Imposturas intelectuais, de Sokal Bricmont Sokal Bricmont abertamente declaram que um dos principais objetivos do estudo que empreenderam, “[...] é entender as causas dessa histórica reviravolta [a esquerda ter abandonado a ciência que a ajudou contra o obscurantismo” (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 216), demonstrando uma tendência dos críticos do pós-modernismo em colocar na conta do obscurantismo formas de conhecimento e manifestações que não rezam pela cartilha da ciência e da ideia de um suposto progresso contínuo - que foi marca da modernidade. E ainda, a ciência é tida como algo libertador, atitude que beira o messianismo. Diga-se de passagem, que essa ciência livre de simbolismos e completamente racional, que teria as provas de si mesma, é uma fantasia, como se verá mais pormenorizadamente adiante. A história da ciência mostra que esta é um amálgama, uma liga com muitas componentes, que não se desenvolveu de forma muito linear e utilizando apenas certos métodos ou certos procedimentos. 84 Embora declarem que O Transgredindo as fronteiras é “[...] um artigo satírico cheio de citações sem sentido, porém infelizmente autênticas, sobre física e matemática, proferidas por proeminentes intelectuais franceses e americanos” (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 9), os autores, porém, deixam bem clara sua filiação ao realismo científico e à racionalidade instrumental, ao declarar abertamente que estão em defesa dos cânones da ciência: Nosso objetivo não é, portanto, ridicularizar críticos literários que cometem enganos ao citar a relatividade ou a teoria de Gödel, mas defender os cânones da racionalidade e da honestidade intelectual que são (ou deveriam ser) comuns a todas as disciplinas eruditas (Ibid., p. 21). Sobre a relação entre ciência clássica iluminista, mais especificamente o que concerne à pessoa de Isaac Newton e suas teorias, e outras formas de conhecimento da época, comentam: estima-se que 90% de seus escritos tratam de alquimia ou misticismo. Mas e daí? O resto sobrevive porque está baseado em sólidos argumentos empíricos e racionais. Do mesmo modo, a maior parte da física de Descartes é falsa, porém algumas das questões que ele levantou ainda hoje são pertinentes (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 21). Os trabalhos científicos de Newton não tratam apenas de conhecimentos “empíricos e racionais”, estando presente em suas teorias noções e concepções simbólicas como as de atração e ação, nem foi apenas o êxito acadêmico do autor que o fizeram tão aclamado - haja vista seus embates com contemporâneos da época, como ainda uma série de outros trabalhos, também inscritos dentro dos critérios de racionalidade, que foram desconsiderados à época e pelos autores em seus comentários. Silva e Moura (2008), por exemplo, expõem que o prestígio, por assim dizer, a popularidade de Newton indubitavelmente influenciou no sucesso de suas teorias: Provavelmente, se Newton não fosse tão famoso e exaltado no século XVIII, suas teorias não teriam atraído tantos adeptos, como aconteceu com idéias de outros autores, por exemplo, a concepção ondulatória para a luz de Christiaan Huygens (1629 - 1695), ignorada pela maioria dos filósofos naturais no século XVIII [HAKFOORT, 1995]. Além disso, a grande fama e reconhecimento de Newton como um grande filósofo natural ao longo do século XVIII contribuiu para que muitos aspectos problemáticos de suas idéias não fossem analisados criticamente e, muitas vezes, relevados (SILVA e MOURA, 2008, p. 8). 85 Vale lembrar ainda as considerações feitas por Boris Hessen (HESSEN; GROSSMANN, 2009) no conhecido texto As raízes sociais e econômicos do Principia de Newton, em que o autor mostra, dentre outras coisas, a relação das teorias do pensador inglês com a indústria em geral e, sobretudo, com indústria de armas. Muitas condicionantes contribuíram para a projeção das teorias de Newton, inclusive a religião. Afinal, na Abadia de Westminster, onde fora sepultado, está o seguinte epitáfio: “A natureza e as leis da natureza estavam imersas em trevas; Deus disse ‘Haja Newton’ e tudo se iluminou”. Mas pode-se conjecturar que isso não configura que Newton era um religioso. É algo de que se tem conhecimento que ele fora um grande estudioso da bíblia, chegando ao entendimento de que o fim do mundo se daria em 2060, por exemplo. Newton acreditava que um ser supremo seria o responsável pela harmonia do mundo, e isso permeava os seus estudos e esforços intelectuais, o que vai de encontro ao argumento segundo o qual as qualidades pessoais dos cientistas e suas crenças extracientíficas são irrelevantes para a avaliação de suas teorias. [E de que] A alquimia e o misticismo de Newton, por exemplo, são importantes para a história da ciência e mais amplamente para a história do pensamento humano, mas não para a física (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 214 – 215). Considerando-se a ciência como uma tradição viva, que tem influências dos mais diversos contextos e que é feita mediante trocas abertas, deve-se estar atento e combater certo dessecamento da obra de Newton – que além de filósofo natural era astrônomo, teólogo e alquimista, como atestam várias obras recentes (Cf. FEYERABEND, 2007) – quando esta é apresentada em manuais ou textos didáticos (assim como as teorias de muitos outros pensadores contemporâneos dele e de outras épocas). Isso se configura em uma tremenda perda cultural e em grande medida uma alteração do que são as obras dos pensadores. Pode-se dizer que, em alguma medida, não se ensina as teorias de Newton nas escolas e universidades, mas uma caricatura, um resumo ou um recorte dos seus pensamentos e proposições. Segundo Sokal Bricmont, “[a] melhor maneira de explicar a coerência de nossa experiência é supor que o mundo exterior corresponde, ao menos, aproximadamente, à imagem dele fornecida pelos nossos sentidos” (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 64). Mas, tal suposição é uma hipótese, um ponto de vista, como o é toda suposição, já que não tem como se provar em termos racionais, sendo a racionalidade um dos pressupostos que embasam as teses dos autores. É o próprio golpe de “filosofia” ao qual Feyerabend se reporta em basicamente toda a sua obra. Não há nenhuma garantia objetiva que sustente esse pressuposto. Ou seja, a base de toda a 86 argumentação daqueles autores, de que a ciência é um aprofundamento do senso comum e que conseguiu algo que outros saberes não conseguiram, cai por terra visto que tal base é uma suposição, o que impossibilita também o entendimento de que “[a] principal razão para acreditar nas teorias científicas (pelo menos as mais bem comprovadas) é que elas explicam a coerência das nossas experiências” (Ibid., p. 65 – 66), como tratar-se-á logo adiante. Segundo os autores de Imposturas intelectuais, [...] os cientistas devem tentar conjeturar da melhor forma possível, qual é o bom caminho a seguir – a vida é, afinal de contas, curta -, e decisões provisórias devem ser tomadas, com frequência, na ausência de provas empíricas suficientes. Isso não abala a racionalidade do empreendimento científico, mas contribui certamente para tornar fascinante a história da ciência” (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 82). Mas, isso se parece com uma lei moral a qual a ciência deveria seguir. Um juízo de valor, uma universalização que só se sustenta devido ao que de mais dogmático ainda há na filosofia, se se considera o dito wittgensteiniano, por exemplo, segundo o qual, [...] o bem absoluto, se é um estado de coisas descritível, seria aquele que todo o mundo, independentemente de seus gostos e inclinações, realizaria necessariamente ou se sentiria culpado de não fazê-lo. Quero dizer que tal estado de coisas é uma quimera. Nenhum estado de coisas tem, em si, o que gostaria de denominar o poder coercitivo de um juízo absoluto (WITTGENSTEIN, 2005, p. 219). Ou seja, “a melhor forma possível” ou “o bom caminho a seguir” são critérios em essência totalmente subjetivos, assim como a decisão sem provas é algo que em última instância não é racional, pois se trata de um salto para o desconhecido, é uma conjectura, que pode, dependendo do que for “encontrado” na experiência, se configurar em algo que nem sequer era esperado. A “fascinante história da ciência” não pode servir para encobertar lacunas, isso é no mínimo jogo de retórica, nada mais. Nesse sentido, criticando Feyerabend, considerando-o como um relativista, Sokal Bricmont (2006) propõem a seguinte analogia: “existem muitas maneiras de nadar, e todas elas têm suas limitações, porém, não é verdade que todos os movimentos corporais sejam igualmente bons (se preferimos não nos afogar)” (Ibid., p. 86). Como em vários momentos do texto Imposturas, esta é uma clara alusão à conhecida máxima tudo vale – seguindo um entendimento equivocado acerca da proposição daquele autor (como já fora tratado). 87 Sokal Bricmont consideram que há sim um método baseado em determinados passos e pressupostos, segundo o qual a ciência procede, mesmo que com algumas falhas. Isso está esboçado inclusive nesse trecho em que tratam da analogia com a natação. Da maneira como é exposto pelos autores, é como se existisse uma forma já conhecida e comprovada de fazer algo, em que já se percebe de longa data os benefícios de se fazer aquilo daquela forma, e mesmo assim se decidisse fazer de outra forma. Desta feita, acabam por querer induzir o entendimento de que as críticas de Feyerabend, e de outros (que compõem os capítulos do livro), são como essa possível decisão sem sentido. Mas a ciência não é como a natação ou outra atividade já estabelecida e rotineira. Os métodos e as interpretações são feitos à medida que a teoria é construída, avançando muitas vezes contra indutivamente (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010, LATOUR, 2000, COLLINS; PINCH, 2003). Sokal Bricmont veem a ciência como um teste para verificar ou revelar as leis da natureza, são realistas, por isso defendem o método (que é por onde, segundo a visão realista, a verdade do mundo se nos apresenta) do contrário não será comprovado o que está na experiência. Os defensores da validade da distinção entre o contexto de descoberta e a justificação, de uma forma geral (corrente seguida por Sokal Bricmont) consideram que sem tal distinção tudo estaria circunscrito ao plano da justificação e, que, portanto, não existiriam mais fenômenos e tudo se passaria no plano da teoria, da especulação etc. Ou seja, a teoria “criaria os fenômenos”, expressão recorrente na fala dos realistas ontológicos. Por defenderem a distinção entre descoberta e justificação, ou entre o fenômeno e a explicação deste, têm implícito que a “descoberta” é algo separado da procura, como se se estivesse procurando encontrar algo sem ter consciência do que se está procurando ou mesmo de que se está procurando, e só quando se achar ou perceber o fenômeno é que surge a necessidade e o interesse para explica-lo. A descoberta será justificada, explicada, seguindo o entendimento de que é a justificação que clareia a descoberta, que faz a ligação entre a descoberta e o já existente em termos de significado e teorias. Além de considerar que são estágios separados, desconsideram que a procura é feita guiada por certos pressupostos que segundo eles só seriam mobilizados quando iniciado o dito processo de justificação. A perspectiva de Feyerabend é aquela que considera uma forte componente histórica e social para o desenvolvimento da ciência. Seguindo esse raciocínio não faz sentido pensar em termos da distinção entre “descoberta” e justificação, devido ao fato de que no geral, em ciência, a procura já delimita aquilo que está sendo procurado, ou seja, sempre se projeta uma intensão carregada de informação e pressupostos. Ou seja, a “descoberta”, em alguma medida, é guiada 88 pela justificação, ou pelo que depois receberá esse nome. Como se pode considerar algo como descoberta se já se anseia e age na direção daquilo que se pretende encontrar? O programa ou a metodologia delimita, cria as condições, para que apareça aquilo que depois será considerado uma descoberta (LATOUR, 2000). Na visão de Feyerabend, ao se conhecer algo não se está falando do fenômeno “em si”, mas daquilo que o fenômeno representa para determinado contexto sócio-histórico-cultural, já que o entendimento que se tem do fenômeno muda se muda o contexto em que ele aparece ou está inserido. Mesmo nos casos como o experimento de Rutherford, onde a experiência mostra algo diferente do que se pensava, não é o novo fenômeno observado que guia a descrição futura ou a justificação, mas o que já se tinha como aceito como visão de mundo ou teoria - convém lembrar que Rutherford se vale do sistema físico de mundo moderno (mecanicista newtoniano) para propor o seu modelo de átomo. Portanto, pode-se dizer que o que se chama de justificação é a configuração ou circunscrição do fenômeno por meio dos termos linguísticos e epistemológicos presentes naquele determinado contexto sócio-histórico-cultural, comportando uma certa intencionalidade, e que o que se convencionou chamar de justificação, não se dá em um momento final, mas está presente em todo o processo. Com isso não se está criando um método ou uma teoria acerca da justificação, inclusive porque muitas teorias nem sequer possuem justificação (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010; COLLINS, PINCH, 2003). Sokal Bricmont postulam: Afim de analisar esses ataques [sofridos pela ciência], é fundamental distinguir pelo menos quatro significados da palavra “ciência”: um esforço intelectual visando a uma compreensão racional do mundo; um conjunto de idéias teóricas e experimentais aceitáveis; uma comunidade social com costumes específicos, instituições e vínculos com a sociedade mais ampla; e, finalmente, ciência aplicada e tecnologia (com a qual a ciência é amiúde confundida) (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 220, grifos nossos). No entanto, não se pode separar as coisas assim só pela força do discurso, como se a ciência que é aplicada à tecnologia não fosse a ciência que permeia instituições vínculos e costumes específicos, que tem ideias teóricas e que visa uma compreensão racional do mundo. Essa divisão da ciência em partes, em grande medida, parece algo tão ingênuo ou descabido como a noção de que as teorias se edificam mediante descobertas. Usam os significados e definições da palavra como se a ciência - um fazer humano, social e cultural - se processasse assim de forma separada, onde cada “parte da ciência” teria sua atribuição, sendo territórios 89 intercomunicáveis. Ou seja, separam a ciência em quatro segmentos como parte de uma estratégia maior de torná-la algo exemplar e sem controvérsia, limpa. Consideram o pós-modernismo apenas como sendo sinônimo de um movimento em que pessoas falam chavões de outras áreas de forma desfocada, ou “[...] o espetáculo de uma comunidade intelectual em que todos repetem frases que ninguém entende” (Ibid., p. 222). No entanto, pode-se estar de acordo com a perspectiva de pós-modernidade como um momento histórico no qual se passou a adotar uma postura revisionista, que busca dar evidência aos pressupostos políticos, propagandísticos e ideológicos da ciência e do saber de uma forma geral, questionando o fato de que a ciência seria um conhecimento uniforme e que teria se distanciado por completo de saberes e práticas considerados “irracionais” (no sentido de serem subjetivas e de não poderem ser quantificadas ou exprimidas seguindo determinados pressupostos e abstrações. Sokal e Bricmont tratam o pós-modernismo apenas como um mal-entendido, se baseando na noção de seta do tempo da teoria quântica, e considerando que o apego ao método e a procura pela verdade foram e ainda serão os nortes da ciência. Eles falam do “[...] efeito nefasto que o abandono do pensamento claro e da escrita clara tem sobre o ensino e a cultura” (SOKAL; BRICMONT, 2006, p. 224), como se toda essa claridade fosse dada por algo externo ao mundo e que do lado de tal entidade luminosa está a ciência. Nem a realidade nem a natureza parecem ser algo tão claro assim, haja vista que as respostas trazem consigo quase sempre novos problemas. Um pensador cuja obra tem muita relação com a de Feyerabend – que inclusive foi publicada algumas décadas antes da sua – é Ludwik Fleck. Ambos criticam, por exemplo, o positivismo lógico – Fleck até mais diretamente do Feyerabend – e, em linhas gerais, à tentativa de se chegar a um fechamento lógico acerca do conhecimento, chamando a atenção para a componente eminentemente social das teorias. Serão expostos, comentados e explicados a seguir os principais conceitos trazidos por Ludwik Fleck (FLECK, 2010, 1986a, 1986b) como protoideia, coletivo de pensamento, estilo de pensamento, mudança de significado, e acoplamentos ativos e passivos. Será também evidenciado, em alguma medida, as aproximações e diferenças entre Feyerabend e Fleck. 90 2.2 Ludwik Fleck: protoideias, estilo de pensamento, acoplamentos ativos e passivos e mudanças de significado Ludwik Fleck lança em 1935 seu único livro em epistemologia, tendo influenciado muitos dos pensadores que tratam deste tema - como também de pensadores que se dedicam à sociologia e filosofia da ciência, como, por exemplo, Thomas Kuhn. Por ser um dos pensadores precursores em defender a influência básica e decisiva do social e da cultura sobre o conhecimento, o pensamento e o saber - sendo seu pensamento, em alguma medida, se pode considerar, de cunho até antropológico -, Fleck se apresenta como sendo um referencial fundamental para este trabalho. Enquanto, com relação a Feyerabend foram analisadas três obras – e ainda algumas críticas ao seu pensamento -, no tocante a Fleck analisar-se-á apenas o que está contido em seu livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico, recorrendo-se de forma bastante pontual a artigos escritos pelo autor. Ludwik Fleck (1896 - 1961), médico e microbiologista polonês, na obra supracitada, estudou o conceito de sífilis e da reação de Wassermann, evidenciando o caráter social, cultural e, em certa medida, irracional do conhecimento científico (sobretudo por ele destacar a importância para a edificação das teorias, do papel do erro e do que não é conhecido, objetivado, quantificado, comportando um componente de irracionalidade), tendo assim contribuindo significativamente para a epistemologia, a filosofia da ciência e a sociologia da ciência. Assim como o fez posteriormente Feyerabend, ele faz referência à economia de pensamento proposta pelo físico Ernst Mach (1838 - 1916), e às condicionantes sociais para o conhecimento e para a teoria do conhecimento. Serão reproduzidas algumas citações literais do texto, seguindo o mesmo critério usado para muitas outras citações anteriores, como também para outras que serão apresentadas ainda no texto: por se considerar que nestes trechos estão sendo postas de forma concisa e contundente diversas informações importantes, que em uma descrição mais resumida não estariam presente em todas as suas nuances. Fleck utiliza a história da “passagem” do conceito místico da doença de Sífilis para um estágio científico-patológico da doença, por meio da reação de Wassermann, como meio para trazer à tona questões relacionadas à natureza da ciência, sobre a relação entre ciência e cultura e entre outras formas de conhecimento e/ou saberes. Uma das marcas de seu pensamento é a 91 noção de que há, de forma indissociável, tanto pressupostos de natureza ativa como passiva no que se refere à proposição de conceitos, concepções, entendimentos e conhecimentos. No lugar da escolha livre e racionalista, surgem condições específicas. Mesmo assim, encontram-se sempre no conteúdo do conhecimento outras relações que não se explicam psicologicamente (seja no plano individual, seja no coletivo), nem historicamente. Por isso, elas passam a impressão de serem relações “reais”, “objetivas” ou “efetivas”. Nós as denominamos de relações passivas, em oposição àquelas outras, que denominamos ativas. Assim, na nossa história da sífilis, a união de todas as doenças venéreas sob o conceito da “epidemia venérea” representava um acoplamento ativo dos fenômenos, que se explica pela história cultural. Ao contrário disso, a descrição do efeito do mercúrio na frase citada acima, “em alguns casos, o mercúrio não cura a doença venérea, mas chega a piorá-la”, representa, em relação ao ato do conhecimento, um acoplamento passivo. É claro, ainda, que esse acoplamento passivo sozinho, sem o conceito da epidemia venérea, nem poderia ter sido formulado, assim como o próprio conceito “epidemia venérea”, ao lado dos elementos ativos, também contém elementos passivos (FLECK, 2010. p. 50) De acordo com o que ele expõe, as relações passivas são aquelas componentes ou conteúdos não explicados ou não evidenciados, consideradas “reais”, “objetivas” e “efetivas”, e que se tornam presentes mediante as relações ativas. Pelo que ele expõe acima sobre o mercúrio, pode-se dizer que os acoplamentos passivos e relações passivas surgem mediante o recorte teórico feito pelos acoplamentos ativos. Aquilo que não se encaixa nesse recorte, nesse mundo teórico esboçado, ao ser confrontado de forma objetiva com o aparato teórico impresso pelo recorte acaba se tornando algo passivo. Ou seja, acoplamentos passivos e relações passivas, são conhecimentos, informações, que acabam objetivadas devido certo distanciamento de seu mundo contextual, por se configurarem em algo que não é comportado por um determinado recorte teórico-epistemológico. Por ser inevitável sua existência, recebem a denominação de passivos. Pelo exposto por Fleck, pode-se perceber que ele considera que há sempre algo que sobra, algo como um resquício. Ou seja, há sempre uma dissidência ou algo que não se consegue alcançar por completo, presente em ramificações periféricas - ou não tão periféricas – ou algo que se mistura, que se liga a outro ou outros sistemas de conhecimento. Essa, diga-se de passagem, é uma das muitas semelhanças entre os pensamentos de Paul Feyerabend e Ludwik Fleck, como também a noção de que não há como separar por completo conhecimentos – aquele conhecimento que surge posteriormente tem inevitavelmente elementos do conhecimento precedente. Nas palavras do autor, 92 [t]emos que interromper constantemente a continuidade temporal da linha descrita das ideias para introduzir outras linhas; temos que deter o desenvolvimento, para isolar as interligações; e, ainda, temos que deixar muita coisa de lado para obter as linhas principais. Um esquema mais ou menos artificial entra então no lugar da apresentação da vivacidade de efeitos mútuos (FLECK, 2010. P. 56). No entanto, esse isolamento entre áreas nunca se dá por completo. Ao analisar o caso da Sífilis, Fleck mostra que muitos são os procedimentos, condicionantes e conhecimentos envolvidos, desde a “cristalização da ideia do agente patológico a partir da ideia do espírito místico-simbólico e do verme da doença, passando pela ideia do material tóxico da doença e pelo conceito do contagium vivum até chegar ao conceito moderno da bactéria” (Ibid. o. 56). Isso o faz concluir que [...] a noção de agente entrou em contato com a ideia da sífilis, como se afastou dela por um tempo, voltando de novo em uma nova forma (Gestalt) e ficando definitivamente atrelado a ela. [...] O agente da sífilis deve sua descoberta, em primeiro lugar, aos conhecimentos sobre bactérias de outras áreas. De maneira inversa, a reação de Wassermann surgiu da doutrina da sífilis, sendo elaborada, posteriormente, como uma ciência particular (Ibid., p. 56). Segundo o relato do autor, após várias tentativas de vários pesquisadores, de muita política institucional, chegou-se à descoberta da spirochaeta pallida, da ideia de agente patológico para a doença e de um novo conceito de sífilis. No entanto, após discorrer sobre bacteriologia e teorias bacteriológicas, micróbios, microrganismos, agente e doenças, pontuando que “[a] ocorrência de um micro-organismo não significa, portanto, estar com a doença, de modo que a noção de agente perde o monopólio que tinha durante o período clássico da bacteriologia” (FLECK, 2010l, p. 59), este autor expõe ainda o seguinte: Não se trata, portanto, de afirmar que, em termos de uma teoria do conhecimento, a sífilis estaria definida apenas pela spiroch. pallida. A noção de agente da sífilis leva à incerteza do conceito bacteriológico de espécie e participará do seu destino. Em consequência disso, o desenvolvimento do conceito da sífilis enquanto doença específica não é concluído, nem o pode ser, pois esse conceito participa de todas as descobertas e inovações da patologia, da microbiologia e da epidemiologia. Seu caráter passou por transformações a partir do místico, passando pelo empírico e o patogênico geral, para terminar no predominantemente etiológico, sendo que esse processo não se caracterizava apenas por um grande enriquecimento em detalhes, mas também pela perda de muitos elementos da doutrina antiga. Assim, aprendemos e ensinamos muito pouco ou nada atualmente sobre a dependência da sífilis em relação ao clima, às estações e à constituição geral dos pacientes, enquanto, nos textos antigos, podemos encontrar muitas 93 observações a esse respeito. Com as transformações do conceito de sífilis, porém, surgiram também novos problemas e novos domínios do saber, de modo que, na verdade, nada está encerrado (FLECK, 2010, p. 60). Ou seja, mudando-se uma concepção sobre algo sempre há mais alterações do que se pode perceber. Ao se optar por um enfoque ou recorte se tem a possibilidade de ganho em um sentido, mas, também de perda em outro sentido, não é apenas algo cumulativo, como muitas vezes se pensa e é veiculado pelos meios de divulgação científica. Como é evidenciado por Fleck na citação cima, um conceito ou uma nova concepção de uma área do conhecimento pode passar a ser motivo para mudanças gerais naquela área e, por ventura, em outras áreas. Fleck não se restringe, em sua exposição, apenas a casos da ciência médica, mas mantém interlocução com outras áreas, inclusive com a física e as ciências exatas. Tratando da importância dos erros para a edificação das teorias, menciona, por exemplo, as ideias de Robert Mayer para a conservação da energia, considerando o seguinte: em primeiro lugar, é provável que não existam erros completos nem tampouco verdades completas. Mais cedo ou mais tarde será necessário reformular o teorema da conservação da energia – e então talvez tenhamos que retomar um “erro” abandonado. Em segundo lugar, querendo ou não, não conseguimos deixar para trás o passado – com todos os seus erros. Ele continua vivo nos conceitos herdados, nas abordagens de problemas, nas doutrinas das escolas, na vida cotidiana, na linguagem e nas instituições. Não existe geração espontânea (Generatio spontanea) dos conceitos; eles são, por assim dizer, determinados pelos seus ancestrais. O passado é muito mais perigoso, isto é, só é perigoso, quando os vínculos com ele permanecem inconscientes e desconhecidos (FLECK, 2010, p. 61 – 62). Assim como Feyerabend, Fleck convida para que não se descarte o passado ou outros conhecimentos, mas que estes sejam estudados, conhecidos, percebidos. O perigo estaria não em considerar determinados saberes, entendimentos e práticas, mas em desconectar ou desvincular por completo as teorias do passado e as teorias atuais, porque isso possibilita a noção de total ruptura entre o passado histórico e o momento atual, contribuindo para que, por ventura, se estabeleça uma nítida dicotomia, que pode gerar valorizações e considerações posteriores. Obviamente o conhecimento se processa por rupturas muitas ou quase sempre, mas essa ruptura (no sentido de algo novo), pelo que se pode ver, não se dá por completo. Como será exposto adiante, há muitas referências a saberes antigos na ciência em todas as épocas desde o seu surgimento. 94 É uma ilusão acreditar que a história do conhecimento tenha tão pouco a ver com o conteúdo da ciência quanto digamos, a história do telefone com o conteúdo das conversas telefônicas: pelo menos três quartos, talvez a totalidade, do conteúdo das ciências são condicionados e podem ser explicados pela história do pensamento pela psicologia e pela sociologia. [...] Não seria hora de tomar uma postura menos egocêntrica e mais universal e de falar de uma teoria comparada do conhecimento? Um princípio de pensamento que permite a apercepção de um número maior de detalhes e de acoplamentos compulsórios merece ser priorizado, como mostra a história das ciências exatas. Acredito que os princípios aqui utilizados tornam uma série de relações negligenciadas visíveis e dignas de serem estudadas (Ibid., p. 62 - 64). Seguindo esse raciocínio, Ludwik Fleck passa a tratar do que ele chama de Protoideias: “Muitos fatos científicos e altamente confiáveis se associam, por meio de ligações evolutivas incontestáveis, a protoideias (pré-ideias) pré-científicas afins, mais ou menos vagas, sem que essas ligações pudessem ser legitimadas pelos conteúdos” (Ibid., p. 64). Assim, a protoideia não seria uma ideia que ainda não se desenvolveu, ou uma ideia em seu estágio inicial, mas sim um entendimento cultural que passa a figurar em uma dada comunidade ou grupo, e que sua existência não está obrigatoriamente atrelada à comprovação científica, sendo que “a sua gênese deve ser fundamentada na sociologia do pensamento (denksozial)” (Ibid. p. 66). Pode-se destacar o fato de que sociologia do pensamento é algo diferente de sociologia do conhecimento, por exemplo, pois demonstra algo de social para o próprio pensamento e não apenas ao conhecimento como consequência de um pensar. Assim, como é posto por Fleck, a noção de protoideia é algo como uma predisposição histórico-evolutiva. A objeção de que, na história, ocorreria um grande número de ideias mais ou menos confusas, das quais a ciência simplesmente adotaria as “corretas” e descartaria as “incorretas”, é insustentável. Se assim fosse, seria inexplicável porque tantas imagens “corretas” de objetos desconhecidos são possíveis. De um modo geral, a afirmação, implicitamente contida naquela opinião de que se pudesse aplicar às ideias antigas e confusas as categorias da verdade e da inverdade, é equivocada. A ideia do “sangue sifilítico corrompido” – “sangue corrompido ou melancólico, exageradamente quente e espesso” – estava correta? “Corrompido” não é uma designação científica e exata; não podemos decidir se essa designação procede para a sífilis ou não, pois é confusa e ambígua. [...] O valor dessa pré-ideia não reside em seu conteúdo lógico e “objetivo”, mas unicamente em seu significado heurístico enquanto potencial a ser desenvolvido. E o desenvolvimento gradativo de um fato dessa protoideia confusa, nem correta, nem incorreta, está acima de qualquer dúvida (FLECK, 2020. P. 66 – 67). Fleck chama a atenção de que pressupostos de natureza não científica estão incluídos nas teorias científicas, e que essa noção de correção é algo posterior à teoria ser aceita, visto 95 que no período de sua construção os procedimentos são bem mais caóticos do que normalmente se considera. Há nesse ponto mais uma semelhança entre os pensamentos de Fleck e Feyerabend. Destaque-se ainda que, mediante o que é exposto, nem tudo que é considerado correto é conhecido (a física moderna é um exemplo disso), e nem tudo que é conhecido é correto de acordo com o que se esperava (do contrário o conhecimento não se modificava). Então, pode-se considerar que de um momento confuso e não verdadeiro se chegou à verdade para o caso da sífilis – e não só nesse caso, como se verá mais à frente, as proposições de Kepler, por exemplo, seguiram um modelo muito semelhante a esse. É de grande importância destacar ainda que Fleck considera que a protoideia tem um caráter heurístico e potencial, sendo um território em aberto, que de forma alguma pode ser enquadrado ou restringido ao que posteriormente veio a ser considerado por uma determinada teoria. Vê-se bastante semelhança com esse pensamento as considerações de autores que publicaram posteriormente a Fleck. Michel Foucault destaca em Arqueologia do saber que o conhecimento, fruto da epistemologização, emerge de um substrato mais geral que é o saber, e que, logo, não o comporta por completo e nem pode circunscreve-lo ou ressignificá-lo por completo (LOPES; JAFELICE, 2013). Feyerabend expõe que a física moderna retoma a noção de potencialidade de Aristóteles. Embora não se vá analisar isso aqui, percebe-se que essa noção heurística de potencialidade, que era considerada como sendo arquivo da história das ciências, volta a ser tema de discussão. Para Fleck, ao se considerar um determinado entendimento, se está em acordo com um determinado coletivo de pensamento, que, por sua vez, é caracterizado por um estilo de pensamento, isso porque, “[o] processo de conhecimento não é o processo individual de uma “consciência em si” teórica; é o resultado de uma atividade social, uma vez que o respectivo estado do saber ultrapassa os limites dados a um indivíduo” (FLECK, 2010, p. 81 – 82). O estilo de pensamento seria uma forma de entender e perceber o mundo e os procedimentos, que irá determinar a forma como o conhecimento será estruturado, o que será enfatizado e o que será deixado de lado, por exemplo. Assim como acontece com um estilo de escrita de um escritor, o estilo de pensamento possibilita que se perceba de onde aquele grupo fala, quais as suas características. O entendimento entre estilos de pensamento diferentes nunca se dá por completo, justamente porque cada estilo de pensamento, segundo Fleck, tem o que o autor passou a chamar de harmonia das ilusões, que, como o próprio nome sinaliza, são entendimentos que 96 mesmo sendo ilusórios ajudam a manter o coletivo unido e a manter o estilo de pensamento de um coletivo de pensamento. Isso, porque, segundo o autor, [a]pesar de consistir em indivíduos, o coletivo de pensamento não é a simples soma deles. O indivíduo nunca, ou quase nunca, está consciente do estilo de pensamento coletivo que, quase sempre exerce uma força coercitiva em seu pensamento e contra a qual qualquer contradição é simplesmente impensável (Ibid., p. 84). Feyerabend, como fora exposto, considera que os filósofos não criam as mudanças, historicamente falando, mas as explicam e as dão significado. Em algum sentido esses autores estão em contato. Fleck reconhece que há considerações, teorias e proposições feitas por mentes individuais, mas pontua que mesmo nessas situações tais teorias têm uma conotação social, haja vista que se fossem deslocadas do seu tempo e do meio social no qual emergiram não teriam nenhum sentido. Ele destaca ainda a presença do sentimento nas ciências de uma forma geral e nas ciências exatas, expondo que “[a] noção de um pensamento livre de sentimentos não faz sentido” (Ibid., p. 93), e critica ainda as proposições generalizantes, universalizantes e racionalizantes, próprias da lógica, como parte de sua crítica ao positivismo lógica do círculo de Viena. As objeções de Fleck às teses da lógica são diversas, se referindo tanto a pressupostos de natureza lógica, diga-se, ao expor que “[o] resultado de um desenvolvimento, portanto, não pode ser representado como conclusão lógica a partir de premissas do passado” (Ibid., p. 99), como de natureza sócio-históricos-culturais: A percepção de propriedades cientificamente reconhecidas (desde que Levy- Bruhl as concebe como “objetivas”) tem que ser aprendida e não acontece por si só; é uma capacidade que tem que ser adquirida. Sua constatação inicial, a descoberta, acontece de uma maneira confusa e determinada pelas condições sociais, do mesmo modo que o surgimento de outros imaginários coletivos. [...] Da mesma maneira que não existe um “tudo”, não existe um “último”, algo fundamental que servisse de base para o conhecimento lógico. O saber, portanto, não se baseia em nenhum fundamento. A engrenagem das ideias e verdades somente se conserva mediante um movimento constante e efeitos recíprocos (Ibid., p. 91 - 95). Com isso ele está expondo que os pressupostos lógicos não se auto significam e/ou se auto justificam e que essa complementaridade, no sentido de que falta algo à lógica, deve ser buscada na cultura e no social. Hámuitas semelhanças entre o pensamento de Fleck e de 97 Wittgenstein (CONDÉ, 2012). Assim como Wittgenstein, Fleck estabelece que a cultura é aquele substrato que complementa o pensamento. Embora Wittgenstein fale em linguagem e não propriamente de cultura, esta não é algo apartado ou sem relação com a cultura. Esse é mais um ponto de confluência entre o pensamento de Fleck e de Feyerabend, colocando-os como parte de um mesmo coletivo de pensamento, já que Feyerabend cita Wittgenstein em muitos de seus textos, tendo inclusive sido aceito para ser aluno daquele pensador, o que não se efetivou por motivo do falecimento de Wittgenstein. Logo, Fleck faz parte de um coletivo de pensamento que considera que a verdade e o conhecimento comportam sempre mudanças, movimentos e relações, [...] pois não há, provavelmente, um fim do desenvolvimento do saber, assim como, provavelmente, não há um fim do desenvolvimento de outras formas biológicas. Trata-se unicamente, de mostrar que até mesmo o saber especializado não apenas aumenta, mas também passa por mudanças fundamentais. Não queremos, contudo, contentar-nos com a constatação banal do caráter passageiro do saber humano. Qualquer conhecimento significa, em primeiro lugar, constatar, a partir de determinados pressupostos ativamente adotados, as relações que resultam de maneira coercitiva e passiva. A investigação das mudanças das pressuposições somente alcança seu objetivo com base na análise do estilo de pensamento. O estilo de pensamento que já é sugerido na introdução em uma ciência e que atinge os menores detalhes das ciências especializadas, exige o uso de um método sociológico na teoria do conhecimento. O estilo de pensamento não é apenas esse ou aquele matiz dos conceitos e essa ou aquela maneira de combiná-los. Ele é uma coerção definida de pensamento e mais: a totalidade das disposições mentais, a disposição para uma e não para outra maneira de perceber e agir. Evidencia- se a dependência do fato científico em relação ao estilo de pensamento (FLECK, 2010, p. 110). A utilização de um enfoque sociológico para a teoria do conhecimento é algo necessário, pois só assim se poderá evidenciar o caráter coercitivo, em termos socioculturais, na forma de ver e agir, como expõe Fleck. Do contrário, o que fora escolhido e dado importância, a visão que passou a ser adotada, passará a figurar como uma inevitabilidade. E sobretudo, o enfoque sociológico para a teoria do conhecimento é bastante eficaz para se combater a coerção exercida pelo estilo de pensamento. No entanto, Fleck muitas vezes coloca a coerção como algo quase intransponível, o que pode ser a evidência de um estruturalismo exagerado ou exacerbado de sua parte, afinal comportamentos de grupos humanos podem ser alterados, mudados ou combatidos, independentemente de quais são esses comportamentos ou grupos. 98 Um outro ponto a se destacar no pensamento de Fleck, e com o qual o pensamento de Feyerabend também tem bastante relação é a noção de imprevisto, de irracionalidade e de mudança presente nas teorias cientificas: Finalmente nasceu um edifício de conhecimentos que, na verdade, ninguém havia previsto e intencionado e até mesmo contra as previsões e as intenções de cada um. Wassermann e seus colaboradores passaram, portanto, pela mesma experiência que Colombo: procuravam a Índia e tinham a convicção de estarem no caminho certo, mas encontraram a América. E mais: sua viagem não era um velejar contínuo na direção intencionada, mas uma odisseia com constantes mudanças de direção. E o que conseguiram não era seu objetivo, a saber, a comprovação de antígenos ou amboceptores, mas a realização de um velho desejo coletivo: a comprovação da existência do sangue sifilítico (FLECK, 2010, p. 115). No entanto, Fleck adverte que não se constroem teorias por acaso, embora não descarte a presença e o papel da sorte na edificação das teorias, assim como também daquilo que ele chama de “inspiração intuitiva”: Wasserman não encontrou sua reação por acaso, mas porque procurava por ela, procedendo de maneira totalmente sistemática e baseando-se, evidentemente, no estado do nosso saber da época. Mas há de se convir que ideias inteligentes muitas vezes também são ideias afortunadas e que uma mão habilidosa muitas vezes também é uma mão de sorte. Isso faz parte do inexplicável na essência de um grande pesquisador, isto é, escolher, entre um grande número de possibilidades de se abordar um problema, exatamente aquela que, graças a uma inspiração intuitiva, leva ao sucesso (Ibid., p. 122). Pode-se considerar que Feyerabend e Fleck em alguma medida trabalham na interface entre o pessoal e o coletivo – Feyerabend talvez mais do que Fleck. Embora chamem a atenção para o lado coletivo do pensamento, do conhecimento e do saber, estão sempre tratando especificamente de pessoas, indivíduos – Galileu, Brunelleschi, Aristóteles, Xenófanes, Parmênides e muitos outros tratados por Feyerabend; Paracelso, Wassermann, Citron, Nietzsche e muitos outros por parte de Fleck. Pessoas, que tem ideias, propõem modelos, embora isso tudo não seja algo livre em absoluto, tenha um substrato cultural que os dá sustentação. Mas, como os próprios autores tratam, há aqueles personagens que se destacam, logo, não se pode considerar que tudo é teleguiado por um grande grupo, pois há sim pessoas que se destacam no grupo e que isso muda em algum sentido o pensar do grupo – mesmo que para isso se use de meios propagandísticas etc. Assim, se pode, em acordo com Fleck, 99 [...] fazer a seguinte constatação, que pode ser considerada paradigma de muitas descobertas: a partir de pressuposições falsas e de muitos primeiros experimentos irreproduzíveis surgiu, após muitos erros e desvios, uma descoberta importante. Os protagonistas da ação não têm mais como nos ensinar como esse processo se deu: racionalizam e idealizam o caminho. Entre as testemunhas oculares, algumas falam em coincidência feliz, e os bem- intencionados, em intuição genial. Não há dúvida de que as afirmações das duas partes não possuem valor científico. No caso de um problema científico muito menos importante, as mesmas pessoas não o descartariam simplesmente com palavras como nesse caso. Será, então, que a teoria do conhecimento não é uma ciência? O nosso problema não tem solução do ponto de vista epistemológico-individual. Para tornar uma descoberta analisável como tal temos que adotar um ponto de vista social, isto é, considera-la como acontecimento social (FLECK, 2010, p. 123 – 124). Assim, aquele suposto irracionalismo e niilismo, a que se reporta quando evidências como essas são colocadas, acaba por ser relativizado, pois o humano, os grupos, não tem obrigação de ser lógicos ou apenas lógicos, muito pelo contrário, humanos possuem demandas existenciais, que os fazem criar narrativas, estórias, histórias e explicações as mais diversas para as demandas que se lhe apresentam. E como fora exposto pelo autor, e se pode constatar mediante outras fontes, conhecimentos antigos e de outros contextos, interferem nas proposições da ciência. As discussões feitas por Fleck, são, sem dúvida relevantes, em algum sentido: A questão é como, com base em pressuposições falsas, de primeiros ensaios confusos, de muitos erros e desvios, pode surgir um conhecimento “verdadeiro”. É possível responder a ela por meio de uma comparação: como todos os rios, apesar da direção inicial errônea, apesar de todos os desvios e meandros, encontram sempre o mar? Não existe um “mar em si”, mas o lugar embaixo, o único onde as águas se juntam, chama-se mar! Basta haver água suficiente no rio e ter um campo gravitacional para que os rios necessariamente encontrem o mar. O campo gravitacional corresponde à atmosfera que determina o rumo; a água corresponde ao trabalho de todo o coletivo de pensamento (FLECK, 2010, p. 126). No entanto, pessoas não são como gotas. As gotas são todas iguais, por assim dizer, pessoas não. Se pode considerar que Fleck tira a noção de certeza, de verdade e de exatidão do individual. Segundo a analogia proposta por ele, tudo vai para o mar. No entanto, há operações, escolhas, desenganos e mudanças, decisões as quais devem ser levadas em consideração tanto o peso do coletivo como de proposições individuais, embora elas tenham um lastro e uma relação com temas, termos e entendimentos que em última instancia estão vinculados à cultura e ao social, também há uma componente individual. 100 Fleck menciona que “as velhas linhas também não permanecem inalteradas: [que] sempre surgem novos laços e os velhos se deslocam mutuamente. [E que isso forma] [u]ma rede de flutuação constante, que se chama realidade ou verdade” (Ibid., p. 127), embora considere que tudo que é água sempre corre para o mar, metáfora utilizada para se referir ao coletivo de pensamento. Como é mencionado pelo autor, o mar é algo que não “está lá”, o que remete a um processo, porém, em ciência e em outras atividades humanas se pode chegar em algo que não era o que o próprio coletivo pensava, cogitava ou imaginava, e mesmo assim esse algo ser acatado, como o próprio demonstrou e sinalizou em sua obra. Assim, pode-se dizer, em alguma medida, que o coletivo também pode mudar pelas determinações individuais. Einstein quando propôs a teoria da relatividade quase ninguém compreendeu suas proposições, nem o deu crédito. Isso aconteceu também com o próprio Fleck, que teve a obra descoberta bem depois de sua publicação. Rutherford ao fazer o experimento deu algo totalmente diferente do que ele queria, o que fez com que se mudasse a noção de modelo atômico. Há evidências que nem mesmo a coerção do social ou do coletivo pode ir de encontro, e isso não necessariamente tem a ver com o que Fleck denomina por acoplamentos passivos – se faz menção aqui a acontecimentos, evidências e entendimentos imprevistos, que não podem passar despercebidos ou ignorados. Isso não quer dizer que individualmente se encontrou a verdade, mas apenas uma evidencia em contrário. Assim, se não se tem como chegar a uma verdade definitiva em termos individuais, também não se deve considerar que apenas por se estar em coletivo haverá um consenso sempre. Não é jogando para a coletividade que resolver-se-á o problema da verdade, pode-se considerar ainda que algo continua em aberto. Nesse sentido, se pode estar de acordo com Fleck, quando este expõe que: Podemos definir o fato científico provisoriamente como uma redução de conceitos conforme o estilo de pensamento, que, embora possa ser investigável por meio de pontos de vista históricos e da psicologia individual e coletiva, nunca poderá ser simplesmente construída, em sua totalidade, por meios desses pontos de vista. Assim fica constatado o fenômeno da associação inseparável das partes ativas e passivas do saber, e ainda o fenômeno de o número das duas partes crescer com o número de fatos (FLECK, 2010, p. 132). Quanto mais se entra numa área cientifica mais aumentam os elementos ativos e passivos do saber. Essa talvez seja a maior contribuição do pensamento de Fleck, considerar que sempre as alterações acontecem em mais de um sentido ou direção, que a ação se dá sempre em dois sentidos, e não apenas unilateralmente. Ao combater a ideia de que os experimentos são ações desbravadoras do real, e que são sempre interconectados e que seguem um crescente 101 refinamento, ele aponta que “[...] os primeiros experimentos de Wassermann não são reproduzíveis. Seus pressupostos eram insustentáveis, e, mesmo assim, ambos tinham um valor altamente heurístico” (Ibid., p. 134). E ainda: Também não há dúvida de que Wassermann ouvia, no meio desses sons confusos, aquela melodia que estava no seu interior, mas que não era audível para os não envolvidos. Ele e seus colaboradores ficavam à escuta e manipulavam seus aparelhos até estes se tornarem seletivos e a melodia se tornar perceptível também para os não enolvidos (imparciais). Quem saberia definir o momento em que isso se tornou possível pela primeria vez? A comundiade daqueles que tornaram a melodia audível e aquela dos ouvintes crescia incessantemente. É inadequado dizer que os primeiros experimentos tivessem sido corretos ou incorretos, porque, de imediato, algo muito correto surgiu deles, sem que eles mesmos pudessem ser chamados de corretos (Ibid., p.135). Com isso, Fleck está chamando a atenção para o caráter subjetivo para a edificação do conhecimento, como também, e sobretudo, para a força dos condicionamentos dos coletivos de pensamento. E ainda, a dificuldade de se estabelecer qual foi o momento exato em que a teoria passou a figurar como algo que fazia sentido, “pois agora possuímos conceitos acabados com os quais não se consegue mais expressar pensamentos inacabados (FLECK, 2010, p. 136). Destaca também que, para a manutenção das teorias há sempre uma certa harmonia das ilusões, de acordo com estilo de pensamento: é “o efeito das ilusões (ou, como podemos chama-lo agora, da harmonia interior do estilo de pensamento) que gera a aplicabilidade dos resultados científicos e a crença numa realidade que existe independentemente de nós” (Ibid., p. 136). Como já fora destacado, a noção de forma (Gestalt), que está diretamente relacionada ao estilo de pensamento, tem um papel muito importante no pensamento de Fleck, como também no pensamento de Feyerabend. Fleck assinala que [a] percepção da forma (Gestaltsehen) imediatamente exige experiência (Erfahrensein) numa determinada área do pensamento: somente após muitas vivências, talvez após uma formação prévia, adquire-se a capacidade de perceber, de maneira imediata, um sentido, uma forma e uma unidade fechada. Evidentemente, perde-se, ao mesmo tempo, a capacidade de ver aquilo que contradiz a forma (Gestalt). Mas essa disposição à percepção direcionada é a parte mais importante do estilo de pensamento. Sendo assim, a percepção da forma é uma questão que pertence marcadamente ao estilo de pensamento. O conceito de experiência (Erfahrensein) ganha, junto com a irracionalidade nela contida, um significado epistemologicamente fundamental, como ainda será exposto. [...] Qualquer descoberta empírica, portanto, pode ser concebida como complemento, desenvolvimento e transformação do estilo de pensamento (Ibid., p. 142). 102 Logo, segundo Fleck a experiência é algo irracional, o que dá a racionalidade à atividade empírica são as concepções integrantes de um determinado estilo de pensamento, que mediante a noção de forma, dá significado à experiência. Para o presente trabalho, que objetiva mostrar as intricadas relações entre ciência, arte e outras formas de conhecimento, o entendimento de que a percepção ou apreensão do que se nos apresenta se dá mediante a noção de forma é bastante importante, já que esse entendimento está presente tanto na arte quanto na ciência. Fleck faz uma descrição de como a seu ver se daria esse processo: As seguintes três etapas: (1) a percepção pouco clara e a inadequação da primeira observação; (2) experiência (Erfahrenheit) irracional que forma novos conceitos e transforma o estilo; (3) a percepção da forma (Gestaltsehen) desenvolvida, reprodutível e conforme a um estilo. [...] O trabalho do pesquisador consiste em diferenciar, no meio da confusão incompreensível, no caos que enfrenta, entre aquilo que obedece à sua vontade e aquilo que resulta de si mesmo e que resiste à sua vontade. Esse é o solo firme que ele, ou melhor, o coletivo de pensamento procura e não cansa de procurar. É o que já denominamos acima de acoplamentos passivos. A tendência geral do trabalho de conhecimento é, portanto: um máximo de coerção de pensamento (Denkzwang) com um mínimo de pensamento baseado na própria vontade. Assim nasce o fato: primeiro um sinal de resistência no pensamento inicial caótico, depois uma certa coerção de pensamento e, finalmente, uma forma (Gestalt) a ser percebida de maneira imediata. Ele sempre é um acontecimento que decorre das relações na história do pensamento, sempre é resultado de um determinado estilo de pensamento. Para todas as ciências, a finalidade é a elaboração desse “solo firme dos fatos”. Em termos epistemológicos, duas coisas são importantes: em primeiro lugar, não há um fim, assim como não há um começo demonstrável desse trabalho, que sempre consistirá em continuações. O saber vive no coletivo e é continuamente retrabalhado. O fundo de fatos também muda, isto é, aquilo que antigamente pertencia aos elementos passivos de um saber mais tarde pode fazer parte dos ativos. [...] Em segundo lugar, entretanto, é impossível reproduzir apenas os elementos passivos do saber, como já dissemos antes. Os elementos passivos e ativos não podem ser distinguidos pelo viés histórico, nem pelo lógico. Não se inventa nem um conto de fadas que não contenha acoplamentos coercitivos. Nesse sentido, o mito se diferencia da ciência apenas pelo estilo: a ciência procura absorver, em seu sistema, um máximo daqueles elementos passivos, sem consideração pela transparência; o mito contém apenas poucos desses elementos, porém na forma de uma composição artística. A necessidade da experiência (Erfahrenheit) traz um elemento irracional, logicamente não legitimável para o saber. A iniciação, uma espécie de benção que outros proporcionam, abre o ingresso no saber; somente a experiência, que pode ser adquirida apenas de modo pessoal, possibilita um conhecimento ativo e autônomo. O inexperiente apenas aprende, mas não adquire conhecimento (FLECK, 2010, p. 144 – 145). 103 Assim, o que é passivo pode se tornar ativo e vice-versa, os elementos passivos e ativos são sempre algo inseparável, não podendo ser distinguidos nem pelo viés histórico nem pelo lógico; não há tanta diferença ou uma total diferença entre o mito (como composição artística) e a ciência. Destaque-se, da citação acima o trecho que pontua que “a necessidade da experiência traz um elemento irracional, logicamente não legitimável para o saber”, que o ingresso no saber se dá por meio de uma iniciação (que é proporcionada por outros), e que a experiência, que é atingida de forma pessoal, possibilita um conhecimento ativo e autônomo. Logo, o coletivo influencia na apreensão do conhecimento, mas a relação com a experiência (que traz sempre um elemento irracional para o conhecimento) sempre se dá de forma pessoal. Ainda segundo Fleck, “[o]s insucesso de muitos experimentos e os erros cometidos também fazem parte do material de construção do fato científico” (Ibid., p. 148). Fleck também chama a atenção, para além do caráter coercitivo relacionado ao pensamento e às teorias científicas, que, “[u]ma vez que o coletivo de pensamento é o portador do estilo de pensamento, podemos designá-lo, de maneira resumida, como sinal de resistência do coletivo de pensamento” (Ibid., p. 148). Segundo ele: Transforma-se [o estilo de pensamento] em coação para indivíduos, definindo ‘o que não pode ser pensado de outra maneira’, fazendo com que épocas inteiras vivam sob a coerção de um determinado pensamento, queimando aqueles que pensam diferente, que não participam da atmosfera (Stimmung) coletiva e que são considerados pelo coletivo como criminosos, a não ser que uma outra predisposição não gere um outro estilo de pensamento e um outro sistema de valores. Mas alguma coisa de cada estilo de pensamento permanece. A começar por pequenas comunidades que mantêm o estilo antigo inalterado. Assim, existem astrólogos e magos ainda hoje: figuras excêntricas que, nas camadas inferiores da sociedade, associam-se às pessoas sem formação e se transformam em impostores por falta de uma comunidade predisposta (Stimmungsgemeinschaft). Em segundo lugar, em cada estilo de pensamento há sempre traços da descendência de muitos elementos da história evolutiva. Provavelmente, poucos conceitos novos se formam sem qualquer relação com estilos de pensamento anteriores. Apenas seus matizes mudam na maioria dos casos, assim como o conceito científico de força é um derivado do conceito cotidiano de força ou o conceito novo de sífilis procede do místico (FLECK, 2010, p. 150). Não se deve entender essa noção de coerção no sentido de algo inevitável ou que comporte uma certa inevitabilidade ou naturalidade, mas estar-se sempre em combate contra hegemonias. É destacado pelo autor que “alguma coisa de cada estilo de pensamento permanece”, embora ele relegue a esse saber anterior, em certo ponto do trecho exposto, um lugar apenas periférico. No entanto, se pode perceber, inclusive pelos trabalhos do próprio autor 104 (e pelo que será exposto nos capítulos seguintes), que tais conhecimentos muitas vezes permeiam as teorias de forma muito mais substancial. Ou seja, Fleck liga os saberes não hegemônicos, como a magia e a astrologia às camadas inferiores e/ou periféricas da sociedade. Mas, não necessariamente só nessas classes há esses conhecimentos, sobretudo porque foram nas classes mais abastadas que eles historicamente frutificaram. Tampouco não se pode assegurar que estes se transformaram apenas em impostores, nem que não há uma comunidade para eles – o próprio autor mencionara, em um outro momento, que para se ter um coletivo de pensamento não é necessária uma grande ou específica quantidade de pessoas. Fleck, na citação transposta acima, acaba por considerar ainda que há uma relação entre o saber cotidiano, do senso comum, e o saber científico, ao tratar do conceito de força, assim como há também uma relação entre o pensamento místico e ciência ao tratar da sífilis. E, sobretudo, expõe que a verdade, embora seja algo relacionado a um determinado estilo de pensamento, “não é convenção, mas um acontecimento no corte longitudinal no contexto do momento: coerção do pensamento conforme ao estilo” (Ibid., p. 151). Destaca que o sistema de um saber pode ser muito ou pouco coeso. Que é esse grau de coesão que vai determinar, mediante o sistema considerado, se a realidade é mágica ou miraculosa, ou se é estável, pois “[q]uanto menos coeso é o sistema de um saber, tanto mais ele é mágico, tanto menos estável e mais miraculosa é a realidade: sempre de acordo o coletivo de pensamento” (FLECK, 2010, p. 153). E ainda, que o coletivo de pensamento tem um caráter funcional, que apenas estando juntos é que conseguem chegar aquilo que é determinado e/ou entendido pelo coletivo. Ou seja, “surge uma predisposição (Stimmung) peculiar, de que nenhum dos envolvidos consegue apoderar-se de outra maneira, mas que volta com frequência assim que determinadas pessoas se reúnem” (Ibid., p. 154). Segundo Fleck, ao se fixar, o estilo de pensamento se torna formal, e a simples realização e prática daquilo que é considerado pelo coletivo passa a dominar a predisposição à criatividade. É possível considerar que o conceito de ciência normal de Thomas Kuhn tem alguma ou bastante semelhança com essa colocação de Fleck sobre a prática de um coletivo de pensamento. Algo recorrente no pensamento de Fleck é a noção de iniciação do aprendiz ao conhecimento, algo que possivelmente remete à sua ligação com a cultura judaica. Nesse sentido, o autor considera que os conceitos mais antigos acabam sendo aqueles utilizados pela pedagogia, pois já são em alguma medida conhecidos do grande público, e possivelmente pelo próprio iniciado. 105 A iniciação em um estilo de pensamento, portanto também a introdução em uma ciência são epistemologicamente análogas àquelas iniciações que conhecemos da etnologia e da história cultural. Não surtem apenas um efeito formal: o Espírito Santo desce no novato, e algo até então invisível se lhe torna visível. Esse é o efeito da assimilação de um estilo de pensamento (Ibid., p. 155). Passa então a tratar do que passou a chamar de círculo esotérico e círculo exotérico, e da tendência dos estilos de pensamento e dos sistemas de conhecimento ao fechamento. Considera que os sistemas de conhecimento, incluindo as ciências exatas modernas, “distinguem entre ‘problemas reais’ e ‘pseudoproblemas’. [E que] [d]essa postura surge uma atribuição específica de valores e uma intolerância característica, que são traços comuns de qualquer comunidade fechada” (FLECK, 2010, p. 156). O círculo esotérico é aquele dos iniciados, enquanto que o termo exotérico remete àqueles que não fazem parte daquele círculo. Destaque-se, a propósito, que o termo esotérico também era, e ainda é, utilizado para designar círculos de sociedades e academias de iniciados em mistérios ou em certos conhecimentos específicos, como a academia grega, por exemplo. Fleck utiliza possivelmente esse termo para fazer alusão a isso, talvez com um teor irônico. Outros termos bastante utilizados por Fleck em Gênese e desenvolvimento de um fato científico são tráfego intracoletivo de pensamento – que se dá entre os membros de um determinado coletivo - e tráfego intercoletivo de pensamento – que se dá entre coletivos de pensamento. Considera que os círculos esotéricos – marcados pelo tráfego intracoletivo - sofrem menos coerção, pois “podem se permitir uma ou outra inovação, que somente depois se transforma numa coerção no tráfego do coletivo de pensamento” (Ibid., p. 160). Pontua que no tráfego intercoletivo de pensamento há a mudança de significado das palavras, dando como exemplos as palavras, “força”, “energia”, “teste”, “explicar”, “lei” e “raio”, e considerando que “[a] palavra como tal representa um bem intercoletivo peculiar” (Ibid., p. 161). Assim, as ciências exatas adotaram muitos fatos particulares da alquimia. Da mesma maneira, o chamado bom senso, que é a personificação do coletivo de pensamento da vida cotidiana, transforma-se numa fonte universal para muitos coletivos específicos. [...] Resumindo, podemos dizer, portanto, que qualquer tráfego intercoletivo de pensamentos traz consigo um deslocamento ou uma alteração dos valores de pensamento. Do mesmo modo que a atmosfera (Stimmung) comum dentro do coletivo de pensamento leva a um fortalecimento dos valores de pensamento, a mudança de atmosfera durante a migração intercoletiva provoca uma mudança desses valores em toda sua escala de possibilidades: da pequena mudança matizada, passando pela mudança completa de sentido até a aniquilação de qualquer sentido (cf. o 106 destino do absoluto dos filósofos no coletivo dos pesquisadores da natureza) (FLECK, 2010, p. 161). Mais uma vez ele destaca o senso comum – ou “bom senso”, como ele chama – como uma fonte de saber para coletivos específicos, como o fato de a ciência ter relação com outros conhecimentos, como a alquimia, por exemplo, o que em algum sentido evidencia a inter- relação entres ambos os conhecimentos. Destaca ainda que o deslocamento intercoletivo leva a uma mudança de valores. Acaba por considerar, ou sinalizar, que a noção de absoluto dos filósofos não se coaduna com as proposições do coletivo dos pesquisadores da natureza. Essa alteração do estilo de pensamento – isto é, a alteração na disposição à percepção direcionada – oferece novas possibilidades de descobertas e cria fatos novos. Esse é o significado epistemológico mais importante do tráfego intercoletivo de pensamento. [...] [D]o grande número de fenômenos do tráfego de pensamento destaco aqui esses poucos [a relação entre profissionais de certas áreas com algumas outras áreas, e com outras não – sendo mencionadas as seguintes áreas: religião, física, espiritismo, medicina, biologia e estética], tenho plena consciência do caráter fragmentário da apresentação. Mas talvez seja suficiente para mostrar especialmente aos teóricos orientados pelas ciências exatas que a simples comunicação de um saber não é, de maneira alguma, comparável ao deslocamento de um corpo rígido no espaço euclidiano: nunca acontece sem transformação, mas sempre com uma modificação de acordo com determinado estilo; no caso intracoletivo, com o fortalecimento; no caso intercoletivo, com uma mudança fundamental. Quem não entender isso, nunca alcançará uma teoria positiva do conhecimento (FLECK, 2010, p. 162 – 163). Logo, o que se tem de mais destacável no tráfego intercoletivos de pensamento são as alterações que este tráfego pode causar, e que isso quase sempre é desconsiderado pelas ciências exatas, mas não apenas por estas ciências, também por outros sistemas de conhecimento. No tráfego intracoletivo, que acontece no interior de determinado coletivo, que é baseado na coerção mútua exercida pela coletividade, as mudanças geram um fortalecimento de uma determinada visão, o contrário do que ocorre no tráfego intercoletivo. Segundo Fleck é esse o procedimento adotado por uma teoria positiva do conhecimento, sendo necessário entende-lo para poder alcança-la. Passa a tratar da questão de se é possível a existência de algo não tão definido mas que pode ser considerado como existente, com vistas a entender em alguma medida o que condicionaria ou motivaria as práticas de um determinado grupo social, ou, inclusive, se faz sentido se fazer essa pergunta. Acaba por considerar, que a noção de uma “alma das massas” não se sustenta. Ou seja, segundo o autor, não há como objetivar aquilo que faz com que grupos 107 pensem dessa ou daquela maneira. E não vê problema com relação a essa característica dos coletivos de pensamento, lançando o seguinte argumento: Pois não há dúvida de que, na vida cotidiana, percebemos facilmente (com vários sentidos, a saber, o do tato, o da dor, o dos corpos, o dos músculos, e o dos olhos) “corpos”, sem conclusões e convenções. A análise, contudo, faz com que esses “corpos” se diluam em funções. Se ciências muito exatas, como a física, não hesitam em trabalhar com dados estatísticos, por exemplo, com médias e probabilidades, que não correspondem a uma aparência “efetiva”, mas a uma ficção hipostasiada – considerando uma aparência “efetiva” até mesmo como muito menos “real” que essa ficção -, certamente não temos motivo para temer qualquer prejuízo por causa da introdução do conceito de coletivo de pensamento. Se for útil para o conhecimento, como espero, é legitimado. Considero inoportunas objeções de princípio, como as mencionadas, pois os princípios filosóficos são como o dinheiro: ótimos servidores, porém péssimos senhores. Deve-se deixar servir por eles, mas nunca se deixar seguir cegamente. Traçamos uma fronteira demasiado nítida entre o que pensamos e o que existe: temos que reconhecer no pensamento uma certa força criadora de objetos, e nos objetos, uma origem a partir do pensamento – entende-se: do pensamento conforme ao estilo de um coletivo (FLECK, 2010, p. 164). Fleck propõe que a ciência tem como componentes a ciência popular e a ciência especializada (embora exponha de forma confusa o que quer dizer com ciência popular, que as vezes é posta como sinônimo do que se convencionou chamar de senso comum e as vezes como conhecimentos gerais sobre ciência). Segundo ele: A riqueza da área, no entanto, faz com que, mesmo no interior do círculo esotérico dos profissionais, o setor dos profissionais especializados tenha que ser separado daquele dos profissionais gerais: sugerimos falar em ciência dos periódicos e ciência dos manuais, que compõem a ciência especializada. Uma vez que a iniciação na ciência ocorre de acordo com métodos pedagógicos particulares, há de se mencionar ainda a ciência dos livros didáticos enquanto quarta forma social de pensamento [...] A ciência simplificada, ilustrativa a apodítica – estas são as marcas mais importantes do saber exotérico. [...] o auge, o objetivo do saber popular, é a visão de mundo (Weltanschauung), uma formação peculiar que tem suas origens numa seleção emotiva de um saber popular de diversas áreas. [...] ela forma, assim mesmo, o pano de fundo que determina os traços gerais do seu estilo de pensamento [...] Dessa maneira, fecha-se o círculo da dependência intracoletiva do saber: a partir do saber especializado (esotérico), surge o saber popular (exotérico). O saber popular forma a opinião pública específica e a visão de mundo, surtindo, dessa forma, um efeito retroativo no especialista [...]” (FLECK, 2010, p. 165 – 166). A partir dessas ideias pode-se propor, de forma livre, o seguinte diagrama: 108 Figura 16 – Diagrama com as componentes da ciência baseado no que fora exposto por Ludwik Fleck em Gênese e desenvolvimento de um fato científico (FLECK, 2010) Importante pontuar que para Fleck o saber popular tem um papel importante e basilar para a ciência: “Certeza, simplicidade, plasticidade somente surgem do saber popular, pois o especialista busca nele a crença nesses valores enquanto ideal do saber. Aí reside a importância epistemológica geral da ciência popular” (FLECK, 2010, p. 168). Há um caráter cíclico no que está aí exposto. E ao mesmo tempo uma certa impossibilidade de objetivar por completo esse mecanismo que envolve o saber popular, o especialista e os valores que este credita a tal saber. Isso porque, ao mesmo tempo que o especialista busca no saber popular a crença nos valores, se espera que esse saber já detenha em si os valores. Segundo Fleck, “[n]esse âmbito, não se exigem mais provas coercitivas para o pensamento, pois a palavra já se tornou carne” (Ibid., p. 171). O autor cita um exemplo de como o saber popular afeta o saber do especialista, dentre outras temáticas: Lembro-me de um exemplo dessa ciência grosseiramente popular: trata-se de uma reprodução que apresenta o fato higiênico da transmissão aérea. Um homem sentado, com um rosto cinza-roxo e emagrecido até o esqueleto, está tossindo. Como uma mão [sic.], ele mal consegue se apoiar no encosto da poltrona, coma outra, aperta o peito dolorido. De boca aberta, os maus bacilos estão voando na forma de diabinhos... Uma criança corada encontra-se ao seu lado, sem desconfiar de nada. O bacilo-diabo chega cada vez mais perto da boca da criança... Metade símbolo, metade questão de fé, o diabo dessa figura é reproduzido em sua aparência física. Mas ele assombra também a ciência especializada, as visões da imunologia e suas imagens de combate e de defesa. Ao contrário da ciência popular, que visa à plasticidade (Anschaulichkeit), a ciência especializada, em sua forma de manual, exige um resumo crítico num sistema ordenado (Ibid., p. 171). 109 Essa imagem de combate e defesa, de cunho popular-simbólico, e irracional (já que não tem uma prova lógica que baseie o seu uso), influencia de forma direta os pressupostos em que se baseiam a imunologia. Diabos e dragões, em termos simbólicos, não assombram apenas a imunologia, mas também as ciências exatas, como a física, como veremos mais à frente quando será analisado o livro O Universo numa casca de noz, de Stephen Hawking. Acerca da ciência especializada, acerca de seu caráter diretivo, coercitivo e determinante, o autor pontua o seguinte: A ciência dos periódicos, portanto, carrega a marca do provisório e do pessoal. [...] Somente a ciência impessoal dos manuais traz expressões como: “não existe isso e aquilo” ou “há algo como”, “não há dúvida de que...”. É como se cada pesquisador sério quisesse reivindicar, não só do próprio controle da adequação de seu trabalho ao estilo, mas também o seu controle e processamento coletivos. É como se ele tivesse consciência que apenas o tráfego intracoletivo de pensamento poderia levar da insegurança cautelosa à certeza. [...] Um manual nasce de trabalhos isolados como o mosaico nasce de muitas pedrinhas coloridas: por meio de seleção e composição ordenada (FLECK, 2010, p. 172 – 173). Assim, a ciência dos periódicos teria ainda uma certa carga pessoal envolvida, mesmo sendo produto de um coletivo de pensamento. A ciência dos manuais é o produto de uma certa planificação e seleção, sendo ainda mais carregada de “certeza”. Na acepção de Fleck, que caracteriza as teorias cientificas em aquelas de vanguarda e a tropa principal, a ciência dos periódicos seriam de vanguarda e a dos manuais seriam a “tropa principal”. Ainda segundo o autor, [n]unca se pode prever qual direção a tropa principal escolherá das muitas direções sugeridas pelas vanguardas. Além disso, trilhas são transformadas em estradas, o terreno é nivelado etc., de modo que a paisagem passa por uma mudança significativa, até se tornar o local da tropa principal. [...] Para a teoria do conhecimento, é particularmente importante que a posição fixa tenha um caráter mais exotérico do que aquela tida como mais provisória, o que é significativo para a hegemonia da massa sobre a elite no coletivo democrático do pensamento. Se entendermos por fato apenas algo firme e comprovado, ele existe somente na ciência dos manuais: antes, no estágio do sinal solto de resistência da ciência dos periódicos, ele é, na verdade, apenas predisposição do fato. Depois, no estágio do saber cotidiano e popular, ele se torna carne: uma coisa imediatamente perceptível, isto é, realidade (Ibid., p. 178 - 179). Assim, a tropa principal, no objetivo de se tornar hegemônica, nivela o terreno que será trilhado. Pelo exposto, pode-se perceber que a teoria do conhecimento se interessa mais pela 110 estrutura fixa da tropa principal. E ainda, que a hegemonia das massas sobre a elite é na verdade algo meio fictício, já que é fruto de uma planificação. Nesse sentido, se pode entender que Fleck está utilizando de um certo teor irônico em sua fala – ao demonstrar que a hegemonia das massas sobre a elite do coletivo de pensamento só ocorre no âmbito da teoria do conhecimento -, ou ainda, em caso contrário, discordar do autor quando este pontua que há uma hegemonia das massas sobre o coletivo de pensamento, já que essa ciência da massas, a ciência popular, embora influencie a ciência especializada, é fruto da transformação do que antes fora de vanguarda na ciência em tropa principal, ou seja, é fruto de uma planificação. No fim da obra, Fleck informa que, após ter descrito a estrutura moderna do coletivo de pensamento, e no intuito de tornar o conceito ainda mais “palpável”, passará a comparar “sua forma científica moderna com algumas mais antigas” (FLECK, 2010, p. 179). Recorrendo a uma citação de Samuel Brown, passa a tratar, por exemplo, da química medieval: “Naqueles dias, para citar as palavras de Samuel Brown, os metais eram sóis e luas, reis e rainhas, pretendentes vermelhos e noivas de lírio. O ouro era Apolo, o sol do céu altivo; a prata era Diana, a bela lua em seu curso infatigável, maliciosamente incitada pela floresta celeste; o mercúrio era o planeta Mercúrio, com seus sapatos alados, o mensageiro dos deuses, recém- inflamado numa colina banhada pelos céus; o ferro era o Marte vermelho em toda sua armadura; o chumbo era Saturno com suas pálpebras pesadas, calmo como uma pedra na floresta emaranhada das formas materiais; o estanho era o diabolus metallorum [diabo dos metais], o verdadeiro diabo dos metais, e assim por diante numa mística repleta de significados, na qual há pássaros voadores, dragões verdes e leões vermelhos. Havia fontes virgens, banhos reais e a água da vida. Sais da sabedoria e essências espirituais etc.”. Assim nos é apresentada a química medieval. Das alegorias e comparações místicas, das imagens altamente emotivas, chega até nós uma atmosfera completamente estranha ao nosso pensamento científico. Apenas na representação popular a comparação do ouro com o sol e da lua com a prata ainda está viva. Perdemos qualquer percepção, inclusive no pensamento popular, da ligação do chumbo com o Saturno e do estanho com o diabo. Trata-se de um estilo peculiar, um estilo consequente e internamente fechado, dessas visões. Aquelas pessoas pensavam e visualizavam as coisas diferentemente de nós. Adotavam determinados símbolos que nos aprecem fantásticos e arbitrários. Impõe-se a pergunta: como seria se pudéssemos apresentar os nossos símbolos, por exemplo, o potencial, as constantes físicas, os genes da genética aos pensadores da Idade Média? É de se supor que estes, impressionados pela sua “correção”, aceitariam esses símbolos corretamente? Ou achariam os nossos símbolos, de maneira inversa, tão fantásticos, artificias e arbitrários como nós achamos os seus? (FLECK, 2010. p. 179 – 180). Fleck acaba recorrendo a um certo relativismo ao comparar esses saberes medievais com os saberes modernos, como mostra o questionamento acima transposto. No entanto, fica sempre no terreno da especulação tal questionamento, uma vez que não temos como de fato compará- 111 los. Pode-se considerar, como é de costume em trabalhos sobre esses temas, que essas construções medievais eram construções fechadas, tidas como verdade, e que não comportavam mudanças e proposições adicionais, sendo consideradas entidades reais. No entanto, pode-se ainda contrapor e problematizar esse argumento apontando que também conceitos modernos como “as constantes físicas”, como o próprio nome deixa transparecer, são colocadas como algo fixo e que não comporta a mudança, e que os genes da genética, são considerados como entidades reais. Ou seja, por meio desse argumento é praticamente impossível optar por um dos sistemas de pensamento e descartar por completo o outro. Ao analisar mais pormenorizadamente os sistemas antigos, trata da importância da fé no pensamento de Paracelso, e da correlação com este faz entre a medida da fé e as medidas habituais, como, por exemplo, o tamanho de frutas, como também da importância da fé para o enfrentamento dos espíritos. Em certo momento Fleck questiona: “E qual era o caso de Paracelso? Ele considerava seu sistema de medidas para a fé como metáforas ou também como um sistema de medidas adequado?” (FLECK, 2010, p. 181). Passa a descrever as explicações de Paracelso para a infertilidade das mulheres idosas, com base na teoria do quente e do frio. Entendia aquele alquimista, que o útero (Matrix) da mulher idosa era frio, daí sua infertilidade. “Para ele, o frio da idade não é uma descrição metafórica da insensibilidade, mas é quase idêntico ao frio físico. Assim, lemos frequentemente em escritos antigos que, por exemplo, a fome compulsiva cozinha alimentos crus, como o fogo, torna-os digestíveis” (Ibid. 181). Tem- se aí um conhecimento muito baseado na analogia, e que considera que a fé em termos de ação pode causar alterações no mundo. Isaac Newton, por exemplo, era um dos que comungava desse entendimento. Fleck, em seguida, trata do livro Studiosus Jovialis (O estudante alegre), escrito em 1755 por Odilon Scherger. Naquela obra o autor analisara a relação entre o peso de um corpo e a presença de espíritos naquele corpo. A relação “dessas variáveis” com os elementos terra, água, ar e fogo, considerando que ao comer, uma pessoa aumentaria o número de espíritos presentes, ficando assim, mais leve, já que espíritos são mais leves “em virtude de sua natura área e ígnea” (Ibid., p. 181). Ar e fogo são considerados elementos leves, e terra e água elementos pesados. O autor também analisa a relação entre a alegria de uma pessoa e seu peso com o número, de espíritos que está munida essa pessoa, considerando que a pessoa alegre é sempre mais leve por comportar mais espíritos. Scherger faz a mesma análise para o caso de a pessoa estar viva ou morta, o qual chega à conclusão que “‘[u]m defunto também é muito mais pesado do que uma 112 pessoa ainda viva, por esta se encontrar repleta de pequenos espíritos e aquele, porém, privado deles’” (SCHERGER apud FLECK, 2010, p. 181). Resume Fleck: Temos aqui um sistema fechado e lógico, construído com base numa espécie de análise das sensações, (ou pelo menos com base na identidade das sensações). E, mesmo assim, é muito dessemelhante do nosso. Essas pessoas faziam observações e reflexões, encontravam e associavam semelhanças e estabeleciam princípios gerais – e, mesmo assim, construíram um saber muito diferente do nosso. O “peso” do último exemplo e o nosso peso físico são coisas completamente diferentes. Podemos apresentar muitos exemplos desse tipo, provando que, para aquela maneira de pensar, a compreensão semelhante à nossa era completamente estranha: a nossa realidade física não existe para aquelas pessoas. Por outro lado, estavam dispostas a considerar muitas outras coisas, para as quais não temos mais nenhuma sensibilidade, como reais, o que gera aqueles símbolos, paralelos, comparações profundas e proposições estranhas. Para compararmos um estilo antigo de pensamento, estranho para nós, com o estilo de pensamento científico de hoje, escritos médicos, principalmente os de anatomia e de fisiologia, são particularmente apropriados, pois são menos distantes da nossa compreensão do que os de física ou de química, que se tornaram muito incompreensíveis (FLECK, 2010, p. 182). Assim, como se vê, esses conhecimentos antigos não podem ser desconsiderados utilizando para isso o argumento de que não são lógicos, nem que eles não faziam observações ou que não estabeleciam princípios gerais em suas teorizações. Pelo que se vê parece muito mais algo como uma mudança de mentalidade, como aquelas que Feyerabend aponta que teriam acontecido em outros períodos históricos. Destaque-se a opção sutil feita por Fleck em sua apresentação, quando ele diz que “a nossa realidade física não existe para aquelas pessoas”, e não o contrário. Com isso, ele aponta para algo que ele chama a atenção em outros momentos: quando se passa de um sistema de conhecimento para outro, não há apenas acréscimo em termos epistemológicos, mas também perdas. Fleck traz à tona algo – ao colocar que é mais conveniente e apropriado analisar escritos médicos de anatomia e fisiologia antigos do que de física - que Feyerabend destacará de forma exaustiva em sua obra: as diversas ciências têm métodos diversos e maneiras diversas de proceder, como também o tempo é diferente no que concerne à mudança de “paradigmas”. Utilizando um estilo semelhante ao da prosa francesa, presente tanto nos escritos de Descartes como nos de Merleau Ponty, por exemplo – estilo segundo o qual o autor faz menção ao seu próprio estado ou posição no espaço, ou seja, em que se coloca em cena – Fleck passa a analisar uma obra de Joseph Löw: 113 Tenho na minha frente o livro do médico e cirurgião Dr. Joseph Löw, Über den Urin [Sobre a Urina], Landhut 1815. Ele não fazia parte dos precursores do estilo de pensamento de hoje: o livro é imbuído pelo espírito da filosofia natural do século XVIII. Lê-se, por exemplo: “A revelação da vida é realizada somente mediante sua própria criação, a própria vida nada mais é do que procriação e criação, e o exemplo visível e acabado dessa animalização pela vida é o corpo orgânico enquanto fundamento da mesma...” “Pois, por meio da união mais estreita com esta (a vida), ela (a matéria orgânica) a recebe em toda a sua plenitude, chegando assim à sua perfeição na forma daquela substancia primeva e original que procria e gera tudo, que os antigos chamavam de prima matéria e que, entre os autores mais novos, é conhecida como nitrogênio, azoto ou então como fósforo” (FLECK, 2010, p. 182 - 183). Animalização no sentido que está sendo apontado por Löw remete à anima ou a espiritualização. Fleck descreve as semelhanças estabelecidas por Löw entre a consistência e a formação da urina com a consistência e a formação dos ossos, relacionando a produção de ambos com o fósforo, e relacionando ainda a existência desse mecanismo com a perfeição humana: ‘A quantidade de ácido fosfórico aumenta (com a idade), e agora a urina também se apresenta de forma animizada, na forma de ácido úrico, que se encontra unicamente na urina do ser humano, anunciando a sua perfeita animalidade (Animalität) deste como homem’ (LÖW apud FLECK, 2010, p. 183). E expõe que, apesar da inconsistência das ideias de Löw, até mesmo em comparação com outras teorias do seu tempo, sua postura tem grandes semelhanças com a postura de pesquisadores das ciências naturais da atualidade (mesmo que se considere que Fleck publicou Gênese e desenvolvimento de um fato científico em 1935, essa análise continua sendo válida ainda hoje): Löw não apenas não é precursor, mas é nitidamente um retardatário. Até o flogístico (p. 128) ainda assombra seu livro e seu conceito de peso é completamente desatualizado: “... assim como o descanso letal dos falecidos também é um retorno ao mundo metálico e todos os seres vivos se tornam, na morte, mais pesados ou metálicos” (p, 43). Mesmo assim, seu estilo de pensamento pode ser comparado ao moderno, porque muitos detalhes do seu livro são diretamente comparáveis com detalhes das ciências modernas. O autor se considera a si mesmo como um pesquisador sóbrio e apenas tem palavras de condenação para uromancia fantasiosa da Idade Média (p. 246): “Somente no século XVI, quando a uromancia fantasiosa e luxuosa dos árabes suscitou desconfiança, retornaram à simples contemplação natural da urina...” Ele considera sua doutrina como simples contemplação natural, exatamente 114 como muitos pesquisadores da natureza atuais consideram a sua (Ibid., p. 183). Fleck aponta que, embora não exista nem sequer uma “palavra científica para designar esse fósforo” (Ibid., p. 185), sendo ele ao mesmo tempo um princípio, uma substancia e algo simbólico, “é inegável que o conceito atual de fósforo possui algum parentesco com o de Löw” (Ibid., p. 185). E ainda, que, [e]sse “algum” dificilmente pode ser designado na linguagem exata das ciências naturais; o melhor seria tomar emprestada, do âmbito da arte, a palavra “motivo” e falar da igualdade de alguns motivos das duas formações. A localização, a relação particular com o fogo e o odor seriam, portanto, motivos comuns que ocorrem tanto no conceito de fósforo de Löw quanto no científico de hoje (Ibid., p. 185). Com isso Fleck, em alguma medida, está sinalizando, de forma sutil, para a relação entre arte e ciência, já que sugere tomar de empréstimo algumas categorias da arte para tratar de um tema da ciência. Assim, não seriam coisas tão diferentes e não intercomunicáveis, já que as categorias utilizadas em uma (no caso, da arte) podem ser utilizadas para caracterizações da outra (no caso, a ciência). Quando Fleck trata da relação desses conhecimentos antigos com os modernos, muitas vezes parece que ele adere a um certo relativismo e contextualismo, como se apenas ao fazê-lo estivesse resolvendo o embate ou os questionamentos acerca da relação entre esses saberes e épocas. Isso pode em grande medida sugerir ainda o seguinte questionamento: não há nada para além do contextual? Ou seja, o fato de considerarmos o contexto em que um saber está inserido é suficiente para considera-lo como algo válido ou não? Pode-se considerar que não. Portanto, como se empreender uma análise mais pormenorizada acerca daquele saber? Ou ainda, pode- se fazer um outro questionamento: tudo é baseado no contexto e na convenção, não tendo como se tecer uma opinião ou um entendimento de cunho mais “objetivo” sobre um determinado saber? Como já fora evidenciado, esse relativismo e contextualismo não é algo a ser considerado sempre e com total crédito. Ainda no intuito de dar uma caracterização acerca das ideias e concepções presentes não proposições científicas de Löw, Fleck menciona o seguinte: Tudo, em sua realidade, possui o valor de um símbolo, que apresenta uma forma externa e menos importante, e um sentido interno e profundo. O objetivo do seu saber é adivinhar esse sentido como um mistério profundo, e 115 não esclarecê-lo simplesmente. Assim, lemos, por exemplo, “gerados pela membrana mucosa dos genitais, os rins encontram-se em um parentesco e uma simpatia secreta e peculiar com o sistema sexual” (p. 43). “Mas é a procriação, a preparação daquela substância procriadora e geradora de tudo, no processo vital dos órgãos genitais, do fósforo em sua transfiguração e animização máxima, que conecta ambos os sistemas sexual e urinário, de uma maneira tão profunda quanto misteriosa”. (p. 44) O mistério profundo que o autor encontra aqui não possui o valor de um enigma a ser solucionado ou de uma relação a ser esclarecida mediante a pesquisa. Pelo contrário, o conhecimento dessa relação consiste em declará-la como sendo profunda e misteriosa: em experimentar o mistério simplesmente como mistério. O arrepio ao olhar para a Ísis velada – este é o gozo intelectual que o autor procura e que o satisfaz. Quando Löw encontra, em um caso, uma relação puramente mecânica, como diríamos nós, ele não se dá por satisfeito e passa a procurar uma relação mais profunda. [...] Não se trata aqui simplesmente de arroubos emotivos, pois há, nesses casos, um paralelo expresso entre as propriedades dos sintomas descritos e do significado do quadro inteiro, como se em cada parte fosse assinalado, de modo conforme, o significado do todo: a urina traz consigo, na coloração preta, a signatura do prognóstico sombrio, da mesma maneira, que “a cor, temperatura, consistência, quantidade e qualidade da urina” assinalam, de forma imediata e “indubitável”, “a grande formação de fósforo”. Essas signaturas do significado profundo, que Löw está disposto a ver de forma imediata e universal (ele fala também na “série de signos da urina” numa doença e da “signatura biliar da urina”), conferem aos seus objetivos o caráter de símbolos (FLECK, 2010, p. 186 – 187). Logo, percebe-se que o pensamento ou a ciência de Löw está baseado em outro pressuposto, que sua busca está sendo conduzida tendo como pressuposição básica algo diferente daquela que considera que há na realidade uma lei que pode ser conhecida mediante a pesquisa: sua ciência e visão é baseada no mistério, uma condição misteriosa para e sobre o mundo e sobre a vida. Essa é uma concepção de mundo muito relacionada ainda à alquimia, que tinha como um de seus símbolos o pavão (RONAN, 2001). A História do Pavão Misterioso ou Romance do Pavão Misterioso é um dos mais conhecidos romances da literatura de cordel do Nordeste do Brasil, que muito influenciou e continua a influenciar a cultura musical e literária – sendo, por exemplo, tema da música Pavão Mysteriozo, do disco O Romance do Pavão Mysteriozo, do cantor cearense Ednardo, lançado em 1974. A autoria do folheto é mergulhada em mistério. Se tem conhecimento que a obra tem como plagiador João Melquíades Ferreira da Silva (O cantador da Borborema), sendo o autor José Camelo de Melo (Figuras a seguir). 116 Figura 17 – Capa do folheto de Cordel História do Pavão Misterioso 117 Figura 18 – Primeira página do folheto História do Pavão Misterioso Fleck expõe: É significativo que Löw mencione, entre as propriedades visíveis da urina descrita, a “falha de cozedura” como sendo uma qualidade imediatamente visível, o que já não é uma falha para nós: trata-se de uma configuração (Gestalt) construída de acordo com uma teoria – uma configuração que Löw enxergava de maneira imediata, diferentemente de nós. Há também muitas outras designações que nos são estranhas, como a mencionada urina jumentosa, que corresponde a configurações teoricamente acabadas, que nós não percebemos, mas que Löw, com a disposição de percebê-las conforme um estilo, percebia de maneira imediata – em analogia às configurações e qualidades perceptíveis de forma imediata e fácil dos conhecimentos atuais, dos quais tratamos no capítulo sobre observação e experiência. Resumindo: Löw era conduzido pela disposição de perceber as coisas de uma maneira diferente da nossa e de fazer outro uso da percepção para o saber. Para evitar mal-entendidos: ele certamente não é uma luz no seu tempo, nem pode ser 118 pode ser considerado como seu representante típico. Apenas quero mostrar aqui o exemplo de um pensamento científico que é diferente do atual. Löw está disposto a perceber, mediante sua atmosfera (Stimmung) peculiar, que para nós é um tanto fantástica e mística, relações profundas e misteriosas, sendo que as coisas do seu mundo possuem um matiz específico e simbólico. Essa é sua coerção de pensamento, que se intensifica na percepção imediata de formas correspondentes. Nesse processo, ele se considera como um pesquisador sóbrio, uma vez que não faz nada mais a não ser descrever suas percepções (FLECK, 2010, p. 188 - 189). Pode-se dizer que Fleck desenvolve em grande parte de Gênese e desenvolvimento de um fato científico uma teoria comparada do conhecimento. Se o saber proposto por Joseph Löw é baseado na noção de forma e configuração (Gestalt) e pela coerção de pensamento, e o conhecimento considerado moderno também o é, isso faz com que eles possam ser considerados como semelhantes ou intercomunicantes em algum sentido. Assim, mesmo Löw não sendo “uma luz no seu tempo”, muitos outros pensadores que tinham suas pesquisas baseadas nos mesmos pressupostos ou em pressupostos semelhantes, foram pensadores e pesquisadores influentes. E ainda, não é apenas Löw que ao “descrever suas percepções” pensa estar sendo um pensador sóbrio e imparcial. Muitos pensadores “modernos” e contemporâneos são acometidos do mesmo exagero e megalomania intelectual. Para se chegar a uma representação ainda mais clara da diferença na observação científica realizada em dois estilos de pensamento, talvez seja indicado comparar descrições anatômicas e reproduções de livros didáticos antigos e atuais. Nesse intuito, rastreei vários livros didáticos anatômicos dos séculos XVII e XVIII, e quase não imposta saber qual deles servirá de exemplo. Cito a descrição da clavícula do livro Anatomia de Thomas Bartholino, a partir das observações de todos os antigos e dos mais recentes, sobretudo das Instituições do benemérito autor Caspar Bartholino, para a Circulação harveyana e Vasos Linfáticos, renovada pela quarta vez (4. Ed.), Leiden, 1673. (p. 745): “Clavículas, Kleides, pelo fato de que abarquem o tórax e, tal como uma chave, firmem a escápula com o esterno, ou porque se refiram a chaves antigas de casas, vistas por Spigelio nas antigas casas de Pádua. Celso as chama de “jugula” (= pequenas trelas) pelo fato de que atrelam; outros, de “colheres”, osso forcado (estrutura em Y, parecendo um forcado), forcado superior. Estão situadas transversalmente na parte inferior do pescoço, na parte alta do peito, lado a lado, aos pares. A forma é de um S latino alongado, isto é, de dois semicírculos conjuntos em posição contrária; junto ao pescoço têm uma forma convexa, voltada para fora, levemente cava, para que aí os vasos largos não se comprimam” (FLECK, 2010, p. 189). Como pode ser percebido, a nomeação que se dá às coisas muitas vezes se dá de forma meio absurda, sem sentido ou de forma a estabelecer relação com coisas e objetos costumeiros, meio que por analogia, embora muitas vezes, para aqueles que o fazem, tais nomes e nomeações 119 estejam “carregadas” de sentido, de emoção, sentimento e significado. Fleck, de forma reiterada, está sempre chamando a atenção – ou deixando aberto para que se possa fazê-lo - para os detalhes, para as palavras e imagens, e as interligações e ramificações que elas comportam. Em certa medida da sua obra, Fleck faz uma certa defesa do pensamento de Nietzsche (ou pelo menos o cita, lhe dando algum crédito). Nietzsche era um filólogo, logo possivelmente tinha conhecimento dessa dimensão mais radical (no sentido de raiz) que possuem as palavras, assim como Fleck, que irá propor que há coletivos e saberes em que nome, símbolo, letra e número tem um papel mais importante do que apenas servir como uma legenda ou uma descrição – e é um certo engano achar que isso se perdeu ou é algo apenas do passado. Trata de algumas imagens, evidenciando que estas não são representações realistas dos órgãos ou do esqueleto humanos, mas que são de certa forma “ideogramas”. Ou seja, segundo o autor, são “representações gráficas de determinada ideias, de um determinado sentido, de uma maneira de entender as coisas: nesses ideogramas, o sentido é representado como uma propriedade daquilo que foi reproduzido”. (FLECK, 2010, p. 194). Pode-se argumentar que essa representação é bem diferente do que se pode observar, logo não teria nenhum sentido e é apenas um erro, devendo ser abandonado por não ter nenhuma serventia atualmente. No entanto, como o autor irá chamar a atenção, esses são demonstrações claras de como um coletivo de pensamento, em acordo com um determinado estilo de pensamento, produz uma coerção ao representar a experiência. Tais coerções ainda acontecem. Inumeráveis foram os modelos de átomo até agora, como vários também foram os sistemas de mundo e descrições do universo, cada uma carregando suas idiossincrasias dos respectivos coletivos de pensamento. Fleck faz menção à contagem do número de palavras em outras obras mais de uma vez em Gênese e desenvolvimento de um fato científico, como no seguinte trecho: A concepção das reproduções anatômicas como símbolos (ideogramas) tanto mais se nos impõe quanto mais estranho se torna o estilo de pensamento do autor, quanto mais distante é a época da nossa. Em reproduções medievais, persas ou árabes, vemos apenas uma linguagem esquemática de signos, quase nada de realismo. A diferença entre um desses estilos de pensamento alheio e do moderno não reside simplesmente no fato de termos mais conhecimentos: aquilo que, na realidade dos outros estilos de pensamento, possui mais valor do que no nosso, é também motivo de relatos maiores. Encontramos em Bartholino um capítulo “Sobre os ossos sesamoides” (p. 756), que é um pouco maior que o capítulo “Sobre os músculos da cérvix, ou do pescoço” e que consiste em 20 até 30 vezes mais palavras que o pouco que as anatomias modernas dizem sobre esses ossos. Esses ossos são importantes para sua osteologia; para a nossa não têm importância, pois hoje estão, por assim dizer, 120 além do sistema ósseo. Em Bartholino, ainda consta viva a velha lenda fantástica da importância desses ossinhos como semente, da qual os corpos cresciam novamente – “Tal como planta, que se origina de uma semente”. Ele não acredita muito nisso, mas é obrigado a citar os outros autores, a discutir a finalidade desses ossos, a tratar de sua forma e localização, a ficar espantado com a variação do seu número etc. Resumindo: ele tem mais coisas a dizer sobre eles do que nós, até mais do que sobre os músculos do pescoço, que, hoje em dia, representam uma área rica da miologia (FLECK, 2010, p. 194 – 195). É possível que se questione: dizer mais coisa, ter um relato maior e com mais elementos é algo de fato importante? Ou seja, até que ponto a quantidade de conhecimento e o número de palavras é algo importante? Pode-se dizer que se se considera e se tem uma postura que visa contemplar um número maior de conhecimentos acerca de algo, e se não se está com uma perspectiva que considera que apenas um viés ou visão de mundo é que deve ser priorizada, então ter mais relatos e mais perspectivas é algo sim interessante. E no mais, há coletivos para os quais – tendo a ciência, como ver-se-á adiante, uma forte intersecção com tais conhecimentos – o número de palavras é importante. Muito espaço custa à anatomia a contagem das partes anatômicas. Fontanus, p. 36: “Os ossos do crânio são vinte, oito da cabeça (parte frontal) e doze da maxila superior”, que há 28 ossos dos dedos do pé, que o número dos ossos humanos soma 364, que sete pares de músculos movimentam o olho e quatro pares movimentam as bochechas e os lábios, que a veia porta forma cinco ramificações etc. Hoje em dia, essa contagem é impossível, uma vez que é considerada arbitrária a questão se, por exemplo, distinguem-se três ou quatro ossos num conjunto ósseo. Mas existem estilos de pensamento em que o número não é um meio de descrição, mas é considerado como importante em si – assim como o nome das partes descritas. Em Fontanus, temos ainda resquícios da mística dos números. Muitos estilos de pensamento, o indiano e o chinês, por exemplo, elaboram tal sistema na forma de uma vasta cabalística numérica, conferindo aos números um sentido particular e produzindo combinações significativas. Quando o estilo de pensamento está distante do nosso, já não há nenhuma possibilidade de entendimento. As palavras não podem ser traduzidas, os conceitos não têm nada em comum com os nossos, não há nem motivos em comum, que encontramos no caso do conceito de fósforo de Löw e do nosso. Ao pesquisador ingenuamente preso no próprio estilo de pensamento, os estilos de pensamento alheios se apresentam como produtos de uma fantasia livre, pois aquele percebe nestes somente a parte ativa, quase arbitrária. Em contrapartida, o próprio estilo de pensamento se lhe apresenta como algo compulsivo, pois, embora tenha consciência da própria passividade, a própria atividade se torna para ele algo óbvio, quase inconsciente como a respiração, em virtude da educação, a formação prévia e da participação no tráfego intracoletivo. Se Vesálio ou seus precursores e contemporâneos representam o esqueleto quase sempre como símbolo da morte, o anatomista moderno considera esses elementos como acessório atmosférico (Stimmungsbeiwerk) inútil. Entretanto, podemos aprender a 121 perceber também nas nossas reproduções anatômicas sua atmosfera intelectual peculiar (FLECK, 2010, p. 195 – 196). Mas, se pode objetar que essa perspectiva numérica pode não se encaixar sempre, ou seja, que nem tudo pode ser colocado de acordo com o que se quer, já que a experiência, o mundo físico, pode fornecer números diferentes de partes ou de objetos. No entanto, como se pode perceber mediante a citação acima, a contagem pode ser em pares, ou se agrupar ainda de outra maneira, de forma que se chegue a um número que esteja de acordo com o estilo de pensamento do coletivo, com a numerologia que se quer alcançar. Embora Fleck exponha que essa contagem hoje é impossível, em seguida, ao tratar de anatomia, ele pontua: “mas existem estilos de pensamento em que o número não é um meio de descrição, mas é considerado como importante em si – assim como o nome das partes descritas.” Ou seja, Fleck não desconsidera – ou até sinaliza para - a existência de coletivos no presente, em que ainda se tem esse tipo de mentalidade. Destaque-se que a sua escrita – como também a de Feyerabend – comporta sempre uma complementaridade do leitor. Acerca do caráter simbólico das representações anatômicas do tórax feitas por Heitzmann, por exemplo, e, pode-se dizer, das representações de realidade em geral, Fleck afirma que “[e]ssas figuras modernas são símbolos - exatamente como no caso de Vesálio. Não existe outro olhar a não ser o olhar conforme o sentido e não existem outras reproduções a não ser as imagens-sentido”. (FLECK, 2010, p. 196). Em nota, os tradutores da obra para o português expõem: Sinn-Bilder [imagens-sentido], no original. Fleck joga com o termo alemão Sinnbild, normalmente usado como sinônimo de Symbol, “símbolo”. Com o uso do hífen, chama a atenção para cada um dos seus elementos, a saber Sinn (sentido) e Bild (imagem) (Ibid., p. 196). Fleck era um neologista, criava novas palavras e alterava outras para expressar suas proposições, entendimentos e imagens, sendo muitas vezes difícil traduzir seus escritos (CONDÉ, 2012). Nesse caso específico da citação acima, é claro o intuito do autor em evidenciar o caráter não arbitrário dos símbolos, pontuando que o símbolo é uma mistura de imagem e sentido, sendo esse sentido dado de acordo com o estilo de pensamento ou a forma de ver (Gestalt). Por exemplo, ao tratar da anatomia medieval, Fleck reproduz as seguintes figuras mostradas abaixo. 122 Figura 19 – Representações antigas de esqueletos (FLECK, 2010, p. 199) Uma coisa que se observa são as diferentes posições e disposições das pernas e dos braços na figura do esqueleto de 1323 e aquela feitas pelos persas. Na primeira representação os braços e pernas do esqueleto estão dispostos em forma de estruturas que lembram hexágonos (a base para se construir uma estrela de seis pontas), tendo inclusive muita semelhança com a árvore da cabala (Figura abaixo) se se dispõe esta de forma invertida – a cabeça do esqueleto coincidindo com a esfera dez e os pés com as esferas dois e três e considerando-se apenas algumas linhas que ligam as esferas. 123 Figura 20 – A árvore da vida da Cabala (KAPLAN, 1978, p. 17) Já, na segunda representação, persa, formada por duas figuras, tem-se, em uma, um esqueleto disposto em forma quadrada ou retangular, e outra com os braços e o tronco em forma retangular e as pernas em forma hexagonal, pode-se considerar – já que as penas estão abertas e não fecharia o hexágono. Na primeira figura da segunda representação tem-se a menção a uma figura felina. Na segunda figura também se pode notar uma certa menção a animais, sendo que nos ombros se pode ver algo como bicos e olhos de pássaro. A menção a animais está 124 presente também na cultura egípcia, na Grécia antiga, no medievo, no Renascimento, na ciência moderna - sendo inclusive um tema caro ao pensamento de Galileu em dado momento (ROSSI, 1992) -, na ciência contemporânea, e em muitas outras produções culturais de uma forma geral, como no manguebeat dos homens-caranguejo. Isso demonstra que as ciências, inclusive as ciências tidas como exatas, não são práticas marcadas apenas por objetividade, embora seja esse o seu ideal, como destaca Fleck: Definimos o estilo de pensamento como disposição a uma percepção direcionada e um processamento correspondente do percebido. [...] Aqui, gostaríamos de discutir apenas mais um aspecto do estilo de pensamento científico moderno: a atmosfera intelectual específica do pensamento científico moderno, principalmente no âmbito do pensamento das ciências exatas. [...] Ela se expressa na forma da veneração de um ideal comum, a saber, do ideal da verdade objetiva, da clareza e da exatidão. Consiste na fé de que o ideal venerado somente se tornará alcançável em um futuro distante, talvez infinitamente distante; no voto de se sacrificar em seu serviço; num certo culto heroico e em uma determinada tradição. Isso seria a dominante da atmosfera comum, na qual transcorre a vida do coletivo de pensamento das ciências exatas. Nenhum iniciado afirmará que o pensamento científico esteja livre de sentimentos. Em decorrência das explanações feitas até aqui, também é incontestável que uma determinada atmosfera não apenas influa no modo de trabalhar, mas também nos resultados do trabalho, o que significa que se manifesta concretamente como disposição para uma percepção direcionada (FLECK, 2010, p. 198). No texto On the crisis of reality, escrito em 1929, antes de sua obra mais conhecida, que seria publicada em 1935, Fleck esboça já muitas das ideias que estarão presentes no Gênese e desenvolvimento de um fato científico, demonstrado qual a sua posição no que concerne a problemática acerca da noção de realidade: De acordo com o postulado quântico cada observação de fenômenos atômicos constitui uma interação não negligenciável com o instrumento de medição, e que nenhuma realidade física independente, no sentido comum, pode ser atribuída, seja ao fenômeno ou aos meios de observação. De um modo geral, o conceito de observação tem um elemento de arbitrariedade, essencialmente sobre que objetos têm de ser incluídos no sistema que está a ser observado (BOHR apud FLECK, 1986a, p. 53, tradução livre). Fleck chama a tenção para um caráter de arbitrariedade que a ciência daquele início de século trazia na sua agenda. Niels Bohr, em um artigo destinado a responder Einstein, Podolsky e Rose, expõe o seguinte: 125 Uma característica bem conhecida do formalismo atual da mecânica quântica é o fato de não ser jamais possível, na descrição do estado de um sistema mecânico, atribuir valores definitivos a duas variáveis canonicamente conjugadas, eles consequentemente dizem que tal formalismo é incompleto, e exprimem a crença de que uma teoria mais satisfatória pode ser desenvolvida. No entanto, é difícil ver como tal argumentação poderia afetar a correção da descrição quântica, que se baseia num formalismo matemático coerente, que cobre automaticamente qualquer processo de mensuração como o indicado. Na verdade, a aparente contradição só põe a nu uma inadequação essencial da perspectiva costumeira da filosofia natural em fornecer uma descrição racional dos fenômenos físicos do tipo que estamos interessados na mecânica quântica. Com efeito, a interação finita entre objeto e agências de medida, condicionada pela própria existência do quantum de ação, implica – devido à impossibilidade de controlar a reação provocada pelo objeto nos instrumentos de medida, se estes devem servir a seus objetivos – a necessidade de uma renúncia final às idéias clássicas de causalidade, e uma revisão radical de nossa atitude perante o problema da realidade física. Na verdade, como veremos, um critério de realidade física como o proposto pelos autores mencionados contém - apesar de sua formulação aparentemente cuidadosa – uma ambiguidade essencial, quando aplicado aos problemas reais que nos interessam aqui (BOHR, 1981, p. 98 – 99). Bohr problematiza que tal impossibilidade de indefinição não parece ser uma questão de formalismo. Fala de uma inadequação no modo como a filosofia natural racional matemática - quando faz referência, em alguma medida, ao conto Kejserens nye Klæder [A roupa nova do rei], dos irmãos Grimm – lida com o problema da realidade física. Segundo ele, ao se manter as ideias de causalidade e de realidade (como algo que pode se atingir por completo mediante o formalismo matemático), surge, inevitavelmente, uma ambiguidade, com também uma irracionalidade e, por assim dizer, abertura. Para os defensores do realismo de correspondência, “[s]e, sem de modo algum perturbar um sistema, pudermos prever com certeza o valor de uma quantidade física, então existe um elemento de realidade física correspondente a essa quantidade física” (EINSTEIN, PODOLSKY, ROSEN apud BOHR, 1981, p. 97). É contra esse entendimento que Bohr se posiciona, mencionando que o caráter irracional evidenciado por ele está presente inclusive nas formalizações matemáticas da mecânica quântica, as quais ele expõe no artigo: “[q1p1] = [q2p2] = ih/2π, [q1q2] = [p1p2] = [q1p2] = [q2p1] = 0” (BOHR, 1981, p. 98). Ao ser evidenciado que os pressupostos realistas e racionalizantes das ciências exatas tem problemas, pode-se considerar que isso coloca em cheque o fato de que se use tais pressupostos como argumento para separar por completo tais ciências de outras formas culturais (curiosamente por ser entendido que esses conhecimentos são subjetivos ou irracionais), como 126 a arte e outras formas de conhecimento presentes na cultura. A ciência também é uma manifestação cultural, como expos Fleck, não sendo algo que supera o mundo da cultura. 2.3 Culturas & cultura Está-se considerando cultura para os fins deste trabalho como sendo as diversas manifestações da vivência humana, refletidas em produções materiais e imateriais, concepções e entendimentos significativos que movem uma determinada comunidade ou coletivo de pessoas. A cultura é justamente aquilo que fica como evidência do viver humano e engloba tanto as artes como as ciências e demais saberes, fazeres, práticas e pensamentos que gerem significado e interesse. Nesse sentido, não deter-se-á aqui em torno do termo cultura, de se definir ou perscrutar acerca das definições do tema – território de filósofos, e, sobretudo, de sociólogos e antropólogos -, mas apresentar, a seguir, alguns artefatos figurais de determinadas épocas. No cordel, no repente e nas formas poéticas delas derivadas, como aquelas presentes no movimento Manguebeat, não há uma separação tão nítida entre cultura elaborada e cultura primeira como coloca, por exemplo, Snyders (apud MARTINS, 2009). No repente e no cordel trata-se tanto de histórias locais, como de lendas, teorias da ciência, cultura urbana, ficção cientifica e outros temas atuais (BATISTA, 1977). Nesse sentido, é uma produção que envolve contradições, sendo a contradição algo salutar, segundo o próprio Snyders, para o desenvolvimento da aprendizagem. O cordel é mais um espetáculo do que um gênero literário, assim como o repente, é um saber carregado de ambiguidades. Há em alguma medida ainda o entendimento de que poesia, dança e outros saberes ligados à diversão, por exemplo, estariam relacionados a uma certa irresponsabilidade, caos ou barbárie. Embora não se pretenda trata disso aqui, poder-se-ia dizer que a história do mundo poderia ser contada mediante a história do combate a essas práticas vivenciais - a objeção e proibição de manifestações culturais e formas de vida e de ser, como mostram Michel Foucault e Mikhail Bakhtin, dentre muitos outros (que aconteceram em tempos idos, mas que continuam presentes hoje), são evidências e registros disso. Desconsidera-se com isso o fato de que muitas culturas têm como base esses saberes, e, embora implicitamente, há o entendimento de que no mundo dito civilizado e científico tudo está resolvido e sem problemas, já que a “realidade” é vista pelas lentes de um projeto, tendo como endossante a experiência, o mundo físico. Assim, pode-se questionar como seria o mundo caso os poetas não tivessem sido expulsos da cidade, 127 por Platão. Se de Platão a Snow os poetas estão sendo expulsos da cidade, isso suscita ainda o seguinte: se pode intervir no mundo, na história, inclusive politicamente, por meio de poesia? Quando o mangue se torna um ritmo ele vira metafisica, vira símbolo e musicalização (MARKMAN, 2007), embora, no movimento mangue ou manguebeat, a poesia esteja muito presente. Este movimento tem afinidades poéticas com o repente nordestino de origem ibérica (MARKMAN, 2007), mas também com a poesia urbana atual, psicodélica e quântica. Algo separa poesia e ciência (GLASERSFELD, 1998), mas muita coisa também as une. Pode-se considerar que há de fato uma poesia de cunho mais realista, descritiva e mimética, uma outra poesia, que se pode chamar poesia código-desconstrução, que tem semelhanças com a física moderna por ser enigmática, permeada de incertezas, imprevisibilidade e ambiguidades – embora em alguma medida a poesia de uma forma geral tem sempre algo que está sendo colocado para além de suas linhas, sendo em alguma medida ambígua. Se se considera, como Glasersfeld, que a poesia é algo incomensurável com a ciência, por se tratar de algo que remete ao simbólico, a imagens mentais ou algo do tipo, a história da física moderna, mais recentemente, e a história da ciência de uma forma geral, mostram que o fazer cientifico está, portanto, longe de ser algo diferente da arte e da poesia, já que também recorrem a metáforas, imagens simbólicas e ideias que inicialmente não têm praticamente nenhuma correlação com a realidade. Mencione-se ainda, que: a) grandes pensadores e cientistas, edificadores da ciência moderna eram também poetas, como é o caso de Giordano Bruno; b) muitas das obras em que são descritas concepções nas quais estão baseadas boa parte das ciências eram poemas, como a dos atomistas gregos, de Parmênides, e de Platão, por exemplo; c) poesia também é pensamento, ou que, o pensamento e a construção de conhecimento também está presente no âmbito da poesia. Muito da poesia que se faz hoje, a poesia que é feita nos múltiplos espaços das diversas partes do mundo, e que podem se comunicar de forma mais rápida do que antes, não é apenas sinônimo de conservadorismo, contrariamente ao que sugere Snow. Os processos da poesia são caóticos, podem partir de qualquer coisa, tendo uma forma indeterminada de tratar dos temas. A questão que se apresenta sempre é: a estrutura, o formato por onde esses enunciados e os seus anunciantes transitam, o mundo, tem uma forma de organizar-se (diga-se) diferente dessa que a poesia tem? Depois da física moderna, a ciência não pode mais ser tida como o conhecimento que determina a forma como as coisas são. A poesia em alguma medida é considerada ainda, nessa perspectiva conservadora, algo apenas como um reflexo, quando muito, da multiplicidade do mundo. Não seria, segundo esse 128 entendimento, do escopo dos poetas o tópico acerca da estrutura do Ser, ou da realidade última, que é a pedra filosofal do realismo. A poesia é tida apenas como um simulacro. Um dos objetivos desse trabalho é mostrar que o manguebeat, movimento poético-cultural da cidade do Recife, mostra como a poesia, pode tanto trazer à tona temas da ciência, como inclusive opinar e contribuir com esses temas. Considerando que não há um método único a ser seguido e que não há, portanto, uma única forma de ciência ou a ciência enquanto um corpo hegemônico (FEYERABEND, 2007) e que as teorias cientificas comportam questões dos mais diversos tipos na sua constituição (LATOUR, 2000), e, ainda, que a física moderna reintroduz a incerteza como algo presente na realidade (FEYERABEND, 2006; HEISENBERG, 1969), torna-se evidente que a poesia não e a única produção humana que se relaciona com conhecimentos e pressupostos não- quantificáveis. Pode-se considerar que foi devido a esse caráter indefinido e subjetivo que as artes comportam que elas foram consideradas conhecimentos diferentes das ciências, contribuindo para o distanciamento entre arte e ciência, embora segundo a física moderna a estrutura da matéria não é algo totalmente definido, definível e contínuo. Como é perceptível, essa noção de poesia é bem diferente daquela conhecida acepção que a considera apenas como algo a serviço dos valores, que conta uma história, que remete aos poetas gregos antigos – que também produziam a história por meio a suas epopeias e lendas - e que ainda reverbera no tempo presente. Embora por vezes ou quase sempre através da poesia se tenha um seguimento de fatos e concepções ali expostos, ela quase nunca é algo que está completo, que tem um direcionamento totalmente consciente, mas sim de caráter enigmático. Logo, a poesia parece ser em alguma medida independente da metafísica, ser anterior (inclusive historicamente) – se considerarmos a metafísica como um sistema de conceitos como propõe Martin Heidegger. Ou seja, a poesia tal como se está tratando aqui estaria mais próxima da atividade praticada nos santuários de adivinhação da antiga Grécia, por exemplo (COLLI, 1996). A questão de se a poesia como canto tem uma relevância e significação que está além da questão de métrica e rima (que só viriam com a matemática, mediante o terceiro estágio da linha dividida) é algo que também não se está desconsiderando aqui, embora não se aprofunde este tópico por agora. Contra o entendimento de que a ciência seria algo diferente ou superior epistemologicamente por se basear em parâmetros lógico-matemáticos, pesa o fato de que a matemática e a lógica não conseguem ser colocadas uma em função da outra, o que por sua vez impossibilita de a matemática dar conta de suas próprias bases – afinal o projeto de Frege de 129 aritmetização da análise não teve êxito, sobretudo pelo que mostrou o teorema de Gödel. Como diria Feyerabend, “[o] processo ocasionalmente denominado como o surgir do racionalismo certamente não evoluiu de uma forma muito racional” (FEYERABEND, 2006, p. 40 - 41). Os números, diga-se de passagem, não têm seu significado totalmente definido, por exemplo. Tem relação com processos de mensuração, mas são ao mesmo tempo peças estéticas no mundo, signos, “objetos” com os quais se pode interagir, gerando significado. Ao considerar que mediante a poesia se pode tecer concepções explicativas e de entendimento sobre o mundo, não se está querendo dizer que a poesia é algo semelhante à ciência, mas justamente que um potencial as separa, mas em certa medida também as une, como acontece com todas as culturas. E é justamente isso, o fato de uma cultura ser em potência todas as demais culturas, como proposto por Feyerabend, que possibilita que temas das ciências sejam apropriados pelos poetas, como foi feito pelo manguebeat. Um exemplo disso é a ideia de antena fincada na lama, característica daquele movimento, que pode por vezes ser considerada como sendo o próprio homem-caranguejo. Não há culturas que não sejam ambíguas, “afinal potencialmente cada cultura é todas as culturas” (FEYERABEND, 2006, p. 287), logo, isso as coloca em um mesmo patamar, senão de abrangência ou de possibilidade de transformação material, mas pelo menos em potencialidade significativa na interação com o real. Obviamente há padrões que podem ser verificados. No entanto, isso não é condição determinante para que para aquilo que se nos apresenta mediante a experiência seja sempre inscrita nesses padrões, como mostra a física quântica, por exemplo. Se uma teoria é válida para explicar a experiência, não significa que o que se nos apresenta deva ser explicado apenas por essa abordagem. Sokal e Brinkmont (2006) ao que parece não atentam para isso, ou preferiram usar de ironia e sarcasmo em defesa de seu realismo. Considere-se tradição viva quando a ambiguidade dos seus pressupostos, condicionantes e bases não é negada. Ao negar-se a ambiguidade inerente às tradições, nega-se também a potencialidade que é inerente a cada cultura e tradição, tornando-as algo fechado em si mesmas - ciência é uma tradição viva, embora aqueles que a querem tornar separada e superior à cultura e às demais tradições o façam tentando negar essa condição. Com isso, as bases organizacionais e epistemológicas da cultura ou tradição passam a agir como tiranos e não como mediadores (FEYERABEND, 2006), pois consideram que possuem tanto a prerrogativa epistemológica quanto a ontológica. A ambiguidade inerente às culturas e às tradições advém da condição de que em outros contextos, determinados conceitos e concepções 130 adquirem outros significados e sentidos, como também do fato de que não se é totalmente consciente do enunciado e teorizações proferidas (FEYERABEND, 2006, 2007). Sendo o manguebeat uma criação cultural em que ciências, artes e poesias se misturam e se transmutam, isso possibilita, por conseguinte, a sua utilização para a proposição de uma prática pedagógica envolvendo artes e ciências em que se parta da cultura, como será exposto no último capítulo. O manguebeat, assim, se configura tanto em metodologia em um sentido geral, com o qual se pode evidenciar a relação intrínseca entre artes, ciências – como evidenciará também mediante a análise de várias obras de diversos estágios do pensamento, no capítulo seguinte -, como em um meio, um recurso, para que se possa introduzir essa discussão na educação, no ensino. Tratar-se-á em alguma medida de física moderna, como forma de mostrar a relação dos seus pressupostos com artes, simbolismos, ideias e imagens. Embora possa se considerar que já existe pesquisa sobre tais temas, esse ainda é um assunto pouco trabalhado e com poucas propostas didáticas contundentes e relevantes (sobretudo se se considera o enfoque proposto neste trabalho). Ao mesmo tempo se está criticando também temas relacionados ao realismo (no sentido de que existe um padrão de realidade que subjaz o que se vê ou percebe, entendimento no qual se baseia toda a grande maioria dos temas e teorias da física). “Mas não se pode, por exemplo, fazer uma cadeira com uma poesia!”, dirá o realista de plantão. Esse é um suposto argumento em favor da supremacia das ciências lógicas e matemáticas – por considerar que tais saberes são instrumentais, e que lidam com algo material e “concreto” - como também de que existe duas culturas. O fato é que também não se pode fabricar uma cadeira com os pressupostos da mecânica quântica. Em certa medida, tanto a física quântica como a poesia estão tratando da mesma coisa, de algo mais geral, que remete à uma questão ontológica ou a seu contrário: a incerteza e o imprevisível. Parte-se do ponto de que não há duas culturas, que essa concepção advém do fato de os conceitos e teorias serem apropriados muitas vezes de forma tirânica, para usar uma terminologia de Feyerabend, quando este pontua que os universais podem ser considerados como mediadores ou como tiranos (FEYERABEND, 2006). Os literatos sabem ciência à sua maneira, se apropriam, são influenciados, se utilizam daqueles conhecimentos sim. Algo relevante de se mencionar é que a ciência se empobreceu em termos simbólicos, isso é apontado inclusive por Snow. Curioso ele assumir esse fato e ao mesmo propor que a única saída para o mundo é aprender ciência, sem mencionar nada relacionado à cultura de uma forma mais geral, da qual a ciência é apenas uma parte. 131 Se está dando o direito à invenção, e intervenção, à criatividade e inventividade humana, e que a ficção científica, por exemplo, tem dado bem mais contribuições à ciência e à cultura de uma forma geral do que se tem admitido ou considerado – diga-se de passagem que as teorias recentes da física, por exemplo, se assemelham em muitos sentido as relatos de ficção científica, dada sua imponderabilidade. Como mostra Paul Feyerabend, a ciência está longe de ser um todo homogêneo e tampouco conseguiu extirpar por completo componentes existenciais e simbólicos. Logo, o fato de literatos deverem aprender conceitos de ciência, como diz Snow, não os tornariam certos ou detentores de um conhecimento seguro, já que mesmo os conceitos científicos quando analisados em toda a sua complexidade possuem aberturas, ambiguidades e controvérsias (COLLINS; PINCH, 2003). Snow considera a ciência como algo separado e diferente de outras formas de conhecimento, sendo em seu entender “o trabalho coletivo mais belo e fascinante da mente humana” (SNOW, 1995, p. 32). Mas, a ciência como pensada por ele não existe, é uma quimera, uma criação literária, um conto. O que há uma atividade intelectual humana multifacetada e cultural. Embora se possa considerar que Snow (a) escreve o referido texto em 1959 (o que não impede da discussão suscitada ser ainda bastante atual e importante), (b) estando muito possivelmente em grande parte relacionado ao contexto da Inglaterra daquele período, e (c) que, com tal obra busca evidenciar a separação entre a cultura dos literatos (e artes de uma forma geral) e dos cientistas, é bastante relevante que se perceba que ele pouco fala das contribuições dos artistas, declarando que não tem outro meio senão abraçar a ciência, como se evidenciou acima. O pensamento de Snow ao ser em grande medida unilateral não contribui como poderia para unir as “duas culturas” ou mostrar pontes entre elas, já que declara abertamente que literatos tem de conhecer os pressupostos das ciências, mas nada fala sobre a necessidade de cientistas ter uma incursão pelas artes, por exemplo, nem tampouco menciona as muitas das concepções e conhecimentos das artes que estão pressentes na ciência desde seu surgimento. Educação para Snow se resume a aprender ciência, pois a ciência é pelo menos mais verdadeira, senão a verdade. Embora esse texto tenha sido escrito há décadas, ele ainda circula com frequência – dado as novas traduções feitas da obra e quanto ela ainda é citada em trabalhos recentes - e ainda é tido como um marco sobre a relação entre ciência e cultura, por isso a necessidade de comentá-lo. Mesmo considerando-se que a motivação de Snow era chamar a atenção para a necessidade de se combater certa postura conservadora que nega a ciência (o que é algo relevante e louvável), a forma como este autor o faz é bem caricata e não avança tanto, 132 já que, além de reforçar a separação entre os polos da ciência e da cultura (considerando-as como culturas mortas, fechadas), cria um certo messianismo com relação à ciência que vai de encontro ao que se tem como ciência e prática científica atualmente. Ou seja, embora se possa até fazer alguma ressalva considerando o momento histórico e social em que a obra foi escrita, isso não é motivo suficiente para relativizar críticas àquele texto. Sendo a ciência formada por construções teóricas, simbólicas, estas recebem críticas e reelaborações do plano da cultura, sobretudo quando se trata da nova física, que é repleta de imagens e experimentos mentais. Não se está querendo expor que apenas escrevendo se possa prescindir da experiência, mas que as conclusões acerca dos experimentos, os entendimentos para o plano geral que os fenômenos possibilitaram são sim também abertos. Nesse sentido, considerando a ciência como uma tradição viva, não faz sentido falar em duas culturas já que esta, além de comportar simbolismos e metáforas diversas que atestam seu caráter cultural mais geral, não é mais entendida hoje como uma caixa preta (LATOUR, 2000), mas como um saber que sugere temas e entendimentos para a cultura e que também acaba em contrapartida sendo resignificada pelo substrato cultural, sendo os cientistas também artesãos (FEYERABEND, 2006). Essa interação deve ser em via dupla. Não só a arte deve entender de ciência, como defende Snow, mas o contrário também deve ser considerado. A ciência é aberta, controversa, ela não tem a verdade sobre as cosias! Não há uma mente científica que possa ser implantada nas pessoas, e se houvesse ter-se-ia ainda que estar atento às questões “éticas” dessa ação. Snow coloca a ciência como um conhecimento superior por ela estar à base da revolução industrial e por, em sua visão, ela ter transformado a vida das pessoas para melhor. No entanto, um acontecimento central para a revolução industrial foi o advento da termodinâmica, cujo desenvolvimento partiu da prática, vindo só posteriormente a sua teorização (SANTOS, 2009), corroborando a tese de que a ciência muda devido a tropeços e crises que surgem relativas às teorias e devido a acontecimentos relativos à dinâmica social, como aquelas transformações ocorridas no período geométrico tardio (FEYERABEND, 2006, 2007). C. P. Snow é um realista, defende que há um método a ser seguido, entende a ciência como um saber fechado e superior. Para ele o grande problema que se apresenta é que a ciência não é compreendida, seu discurso ainda teria pouca abrangência. Assevera que os literatos são em certa medida responsáveis pelo surgimento da cultura não-científica, embora não tomem a decisão. Chama a atenção para o conhecimento científico e acaba depreciando a importância dos artistas. Por ser um realista entende que há uma maneira correta de proceder no mundo, postura de quem considera os universais como tiranos e não como mediadores 133 (FEYERABEND, 2006). Como o autor de Duas culturas pode estar tão convicto dessas questões, por exemplo, inclusive no que concerne a praticamente determinar como é ou será o mundo: Nas condições de nossa época, ou de qualquer época que possamos antever, o homem da Renascença não é viável. Mas ainda podemos fazer alguma coisa. O principal meio que se abre para nós é a educação; principalmente nas escolas primárias e secundárias, mas também nas universidades. Não há desculpas para deixar que mais uma geração seja tão profundamente ignorante, ou tão desprovida de compreensão e simpatia, como é a nossa (SNOW, 1995, p. 85). Em linhas gerais, o autor deixa transparecer que considera que só há simpatia e compreensão pela via da ciência, como se a ciência fosse detentora de uma auto compreensão, não tivesse suas bases conhecimentos não-científicos ou até considerados irracionais (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010). Como Snow pode justificar a afirmação acima ou a seguinte, ambas repletas de messianismo ufanista com relação à ciência, sendo realista e fatalista ao extremo? Não há necessidade de mais descoberta científica, embora novas descobertas cientificas devam ajudar-nos. Precisa apenas que a revolução científica seja disseminada por todo o mundo. Não há outro meio. Nisso reside a esperança para a maioria dos seres humanos. E certamente se tornará realidade. Talvez demore mais do que os pobres estão dispostos a esperar pacificamente (SNOW, 1995, p. 103). O entendimento esboçado por Snow vem da crença de que os todos problemas (da ciência – e do mundo, já que para a concepção realista a ciência é o novo e único método de caminhada ascendente em direção à luz) serão resolvidos em breve. Tanto em Lord Kelvin como em Heisenberg, passando por Einstein e por Stephen Hawking, encontra-se esse entendimento. Não há motivo autossustentável que assegure que se deva conceber os processos e a linguagem da ciência como se eles fossem a linguagem da natureza. Haja vista que os processos, métodos e procederes da ciência mudam com frequência e existem muitos tipos diferentes de ciência com múltiplas influências, como fora discutido acima. Isso se justificaria se se pudesse assegurar que a ciência é um reflexo da natureza ou que todas as culturas vivas no mundo só pudessem viver se soubessem ciência. David Hume (1711 - 1776) já alertava que considerar que os entendimentos sobre o que se nos apresenta (a experiência) como verdade se deve a fatores como o costume, alertando ele sobre os enganos com relação à noção de causalidade e de indução (HUME, 1989). 134 Há a ideia corrente, que está comtemplada na fala de Snow, de que a ciência está do lado dos pobres ou que é condição suficiente (ou quase suficiente) para a evolução humana, e de que as artes são conservadoras (desconsiderando a componente de crítica muito presente nas obras de artistas e literatos). Snow, por exemplo, menciona Dostoievski como exemplo de conservadorismo, desconsiderando por completo que ele passou anos preso na Sibéria por ir de encontro às posições do governo russo da época. Como se vê, tais proposições são facilmente contestáveis, para não dizer sem sentido. Assim como há diversas formas de ciência (FEYERABEND, 2007), há diversas formas de poesia. Há a poesia que é mais ligada a uma descrição do real, como pretende ser a física clássica. Mas há uma poesia sobre a qual paira algo, que deixa algo indefinido, ou incerto (para além do que em geral comporta a poesia), assim como acontece com alguns postulados da física quântica. Uma das premissas que compromete a análise de Snow é seu apego à ciência enquanto técnica, à tecnologia e à noção de progresso técnico, algo que é criticável em vários aspectos (DUPAS, 2006). Esse é um entendimento contrário àquele defendido por Feyerabend, segundo o que as mudanças comportam certa ruptura e incertezas, advindo de acontecimentos de ordem mais geral, que tem a ver com os costumes e as formas de vida das pessoas (FEYERABEND, 2006, 2007). Não se está aqui propondo que não se ensine ciência, mas sim que se empreenda um ensino de ciências por meio da cultura, emergindo daí diversas concepções relacionadas à ciência e formas de ciência, assim como pressupostos inerentes a cada uma dessas concepções. Snow acaba defendendo a tese de que seguir a ideologia do progresso, epistemologicamente e ontologicamente falando, do contrário a única alternativa é voltar a um era pré-industrial, uma volta que nos levaria à barbárie, ou coisa do tipo. O fato de a ciência ter um substrato material inerente à sua prática não pode ser um argumento para a considerar como uma atividade livre de erros ou dos baixos instintos humanos, já que no mercado vendem-se produtos vindos da indústria, dentre outras coisas, como fetiches e promessas. Há ainda um certo exagero em considerar que literatos são ricos e abastados e cientistas são pobres que buscam justiça social e qualidade de vida das pessoas (muito messiânico esse discurso), desconsiderando, inclusive, que os cidadãos pouco opinam sobre os ramos da ciência (COLLINS; PINCH, 2003). Deteve-se um pouco em comentários acerca da obra de C.P. Snow por esse continuar sendo um forte referencial nessa questão da separação entre culturas – tendo seu livro sido editado nas últimas décadas. Não se está com isso desconsiderando que outros autores 135 contribuam para essa vasta problemática, nem que tais posições de Snow são algo particular e totalmente original daquele autor. Assim, as culturas não são cultura apenas na acepção de que são parte de uma categoria a qual elas fazem parte, mas sobretudo porque essas culturas se comunicam, tem pontos comuns. Uma se utiliza de pressupostos da outra para tecer seu raciocínio, seu pensar e seu saber, em acordo com o dito de Feyerabend, de que “cada cultura é potencialmente todas as culturas”. Esse é o contexto no qual as tradições são vivas. O capítulo seguinte visa evidenciar ou contribuir para que se perceba – mediante um certo painel lacunar, incompleto e alguma medida de cunho heurístico (sobretudo por ser essa característica aberta algo inerente aos temas tratados, assim como àquilo a que tais saberes fazem referência, sendo muitas as relações entre eles) – diversas tradições e conhecimentos tratados como tradições vivas, ao elucidar algumas das relações entre esses diversos saberes e concepções. 136 3 Artes, ciências e visões de mundo 3.1 Pitagorismo, platonismo e neoplatonismo Na introdução de O manual de Harmônicos, de Nicômaco o pitagórico, Flora Levin trata da relação das doutrinas matemáticas com a religião, da relação de Nicômaco com cultos persas e egípcios, e menciona que tanto ele como Pitágoras se interessaram, estudaram e escreveram sobre Aritmologia. Esta ciência, segundo a autora, como ela foi praticada por Nicômaco e Pitágoras, envolve dois tipos de atividade mental: matemático e místico insight. O principal proponente do método na qual esses dois tipos de atividade mental estão intimamente combinados foi, certamente, Platão. Compreensivelmente, foi em Platão que Nicômaco foi obrigado a fundar a lógica de desenvolvimento do aritmológico pitagórico ponto de vista. Na verdade, toda a tradição pitagórica persiste embebida numa profunda fusão de intelecto e misticismo, mas é com Platão, acima de tudo, que misticismo finalmente ganha vantagem (LEVIN, 1994, p. 18, tradução livre). Passa a falar curiosidades sobre Pitágoras, como o relato feito por Nicômaco, segundo o qual Pitágoras pode ser visto em vários lugares ao mesmo tempo. Em seguida passa a tratar do pensamento de Kepler como forma de apresentar a relação deste com os pitagóricos, considerando que ele teria conseguido estabelecer a relação entre microcosmos e macrocosmos ao planificar a numerologia celeste, ao relacionar números, velocidades e períodos com áreas espaciais. Ao que passa a tratar das mudanças ocorridas com a lira, o instrumento musical. É conhecido o caráter sagrado dos números, sobretudo à época. Mas, segundo Flora Levin, a lira já tinha tido 3 cordas apenas, a lira de Lino, filho de Apollo. Depois que surgiu a lira de 4 cordas. Foi dessa última que toda a música grega se desenvolveu. E então passa a tratar do concerto de Terpander, no século 8 a. C., como o primeiro grande estágio da música grega. Relata que Terpander foi poeta, compositor, inventor de instrumentos, cantor, um inovador, e vencedor da competição Pitiana. Talvez sua mais vasta contribuição tenha sido o desenvolvimento do heptacorde. Terpander e muitos outros tentaram mudar a lira, mas apenas Pitágoras escapou da censura por colocar uma oitava corda. Para muitos isso se deve ao fato de, como ele era um mestre reverenciado e profeta religioso, todo ato seu foi sentido pelos antigos como tendo uma especial afinidade com a revelação divina ou verdade universal. [...] A proposta de Pitágoras foi para ensinar ao homem o unificante princípio e as imutáveis leis da harmonia (LEVIN, 1994, p. 76, tradução livre). 137 Levin expõe que o motivo que fez Pitágoras mudar a lira é obscuro. Fala que essa história oferecida por Nicômaco é nada clara e nem fácil de seguir e que até onde se pode verificar a história nunca tinha sido comentada, ou falada, antes de Nicômaco escrevê-la. Segundo ela, se aquilo que é narrado não foi refeito nem criticado é porque foi considerado pelos posteriores como um conto popular. Logo, isso não deve ser analisado, mas aceito como um meio de dar forma “a um evento real e importante: a descoberta por Pitágoras das bases matemáticas da música” (Ibid., p. 87, tradução livre). No entanto, menciona que essa história de Nicômano tem antecedentes. Porfírio associa Pitágoras com os Dactyls da Montanha Ida em Frígia, os ferreiros anões. É relatado que eles teriam, através das várias notas de suas bigornas, chegado às bases matemáticas da música. Segundo Porfírio, Pitágoras não só os teria visitado, “mas tendo estado um tempo suficiente com eles (vinte dias, para ser exato) teria aprendido todos os seus segredos, musicais e diversos” (Ibid., p. 87, tradução livre). Lendas à parte, segundo a autora, Pitágoras foi um imponente músico, inclusive sendo o primeiro a reconhecer o valor terapêutico da música e seus éticos efeitos para a alma. A lira, como um instrumento adequado para acompanhar hinos a deus, foi prezado por Pitágoras. Para desenvolver o octacorde Dórico ele confiou no esforço mais da mente do que do ouvido, já que estava de acordo com o entendimento de que “‘a mente é o que vê e escuta todas as coisas, tudo o resto é surdo e cego’” (IÂMBLICO apud LEVIN, 1994, p. 88, tradução livre). Os sentidos podem apenas estimar o tamanho de um intervalo mas não podem ajudar em termos de verdade e harmonia, segundo Pitágoras. Se ele descobriu alguma coisa nova isso se deve ao fato de em encarnações anteriores (a metempsicose era algo muito relatado por este pensador) ele ter visitado a Montanha dos Dactyl, tendo a informação sido forjada pela mente mediante conceitos matemáticos (NICOMACHUS, 1994): [...] quando, portanto, Pitágoras encontra ou estabelece um meio para expressar essas relações musicais em termos matemáticos, ele construiu uma utopia ideal, um totalmente incluso e autônomo cosmos, no qual todas as partes se encaixam para formar uma perfeita unidade” (LEVIN, 1994, p. 112, tradução livre). Em nota, Levin declara ainda que, de acordo com Diogenes Laertius 8.48, Pitágoras foi o primeiro a falar de céus (ouranos) como um cosmos, literalmente, uma “bem ordenada” construção, 138 no sentido de uma totalidade complexa de sol, lua, planetas e terra perfeitamente arranjados (Ibid, p. 121, tradução livre). Expõe, ao se deter sobre tons, semitons e intrigas relativas às mudanças ocorridas na música, que, “[d]e acordo com uma estória, Hippasus, um discípulo de Pitágoras, foi expulso da sociedade de pitagóricos por revelar esta irracionalidade do semitom, enquanto outra conta que tinha ele se afogado no mar por este delito (Ibid., p. 123, tradução livre). Mediante essa informação é possível perceber que a incomensurabilidade ou a irracionalidade era algo conhecido na antiguidade, e que a sua “presença” era incômoda aos pitagóricos, já que Pitágoras teria sido senão o percursor, um dos precursores em considerar o mundo celeste – o que incluía a Terra também – como algo ordenado. Assim como é obscuro o motivo pelo qual Pitágoras mudou o número de cordas da lira, e a forma como ele chegou às bases matemáticas da música - embora se possa considerar a mencionada lenda referente aos ferreiros anões da montanha da Frigia –, também não há um motivo evidente para o fato de ele ter passado a considerar o cosmos como algo ordenado. E vale ainda ressaltar que, como fora mencionado acima, muitos outros estudiosos tentaram alterar a constituição da lira, mas apenas à Pitágoras foi dado o devido crédito para fazê-lo. Assim, pressupostos de natureza política, cultural e social estão relacionados ao avanço do conhecimento bem mais do que muitas vezes se considera, sendo essa mais uma evidencia disso dentre muitas, embora seja esta uma das mais importantes, pela posição que o pitagorismo tem para a história do conhecimento e do pensamento. Ou seja, a matemática antiga e a sua história se confundem, portanto, com as doutrinas às quais ela está vinculada e ao prestígio de seus principais personagens, à sua história, por exemplo. Levin comenta ainda sobre Filolaus. Segundo ela ele foi “a mais antiga testemunha”, “o sucessor direto do próprio Pitágoras”, “o mais antigo a publicar algo sobre a doutrina pitagórica”, tendo escrito um “tratado intitulado Sobre a Natureza”. Nesse tratado ele menciona que “‘Natureza no cosmos é composta de uma harmonia entre o ilimitado e o limitado e assim também é o cosmos em sua totalidade e tudo nele’” (FILOLAUS apud LEVIN, 1994, p. 129, tradução livre). É exposto por esta autora que: Em última análise, é isto que as análises harmônicas dos Pitagóricos para o universo mostra: a descoberta da incomensurabilidade. E não importa como eles puderam justapor os números, não importa em que comprimentos eles puderam estender seus circunlóquios matemáticos, o mesmo fato permaneceu, um fato desde então provou ser resistente à racionalização matemática: não há 139 nenhuma fração m/n que possa dividir o tom em duas partes iguais (LEVIN, 1994, p. 136). Há um entendimento, acerca da filosofia neoplatônica, segundo o qual a simetria, a beleza e a harmonia presentes na matemática e nos números sinalizaria para a possiblidade de que se pense – e se tenha por certo muitas vezes – uma realidade onde não exista a corruptibilidade, a mudança, ou a irracionalidade. Ou seja, dentro dessa concepção, a matemática é onde o divino se manifesta, onde as coisas se encaixam, e a incomensurabilidade é algo como uma mancha, que estaria presente apenas no mundo material e não algo inerente à matemática. Está implícito nesse entendimento que a realidade material, o mundo, é apenas o estágio menos nobre, o mais grosseiro – seguindo a ideia da linha dividida, um dos quatro níveis cujos último é a intuição (PLATÃO, 2001, 2011). No entanto, a presença da incomensurabilidade sinaliza para um processo de volta, passando-se a considerar que para além dessa noção de perfeição, de simetria e harmonia inerentes, em certos arranjos, à matemática, há também a presença da irracionalidade no pensar e no saber, o que acarreta inevitavelmente uma abertura. Pode-se considerar, que a doutrina pitagórica de que tudo é número é uma “variante da doutrina do nome - se uma coisa não porta um nome, não existe” (ALMEIDA, 2003, p. 163)14. Ainda segundo Manoel de Campos Almeida: Os pitagóricos pensavam que os números possuíam extensão espacial, confundindo o ponto geométrico (do desenho) com a unidade abstrata. Esses pontos-unidades funcionavam também como a base da matéria física: eram contemplados de fato como forma primitiva de átomo (ALMEIDA, 2003. p. 164). Assim, o número se torna materialmente e simbolicamente – por meio de símbolos – nome, se insere no mundo como figura. Muito do que se sabe sobre Platão, sobretudo sobre os pressupostos matemático- geométricos de seu pensamento, se deve a Nicômaco de Gerasa e a Theon de Smyrna. No livro Mathematics useful for understanding Plato (Matemática útil para entender Platão), entre outras coisas, distingue as várias formas de matemática, ou o que chama de cinco ciências: Aritmética, Geometria, Estereometria, Música e Astronomia (ou Harmonia). Na Nota pública presente na obra consta o seguinte: 14 “Era doutrina amplamente difundida por todo o Oriente Próximo antigo, principalmente entre os povos mesopotâmicos, e cujas raízes provavelmente mergulham no neolítico dessa região, imersas na pré-história” (ALMEIDA, 2003, p. 163) 140 Figura 21 – Nota sobre uma doutrina secreta (THEON, 1926, vii) Na Introdução encontra-se escrito ainda que esta tradição transmitida por Theon é uma integração indistinta de ciência, metafísica e cosmologia mística, que isso remente à Egito, Índia, Babilônia, e às culturas do Oriente e do Oriente médio, e que “é com Euclides que a antiga integração do místico com a geometria precisa e a especulação numérica aparece completamente dissolvida” (THEON, 1979, x). E ainda, que: Nós podemos ver que um sistema de especulação numérica o qual fornece uma ininterrupta conexão entre as coisas da mente, do corpo e de natural ética e espiritual não são antiquados equívocos religiosos, mas fala de um refinamento humanístico e filosófico (Ibid., p. xiii-xiv). Segundo Theon, “podemos comparar filosofia à revelação de autênticos mistérios” (Ibid., p. 8), expondo ainda que os pitagóricos (sendo isso adotado também por Platão) definiam a música, por exemplo, como uma “perfeita união de coisas contrárias” (THEON OF SMYRNA, 1979, p. 7). Algo a se questionar é se essa teoria pitagórica da música (figura baixo) tem relação com a doutrina dos triângulos pitagóricos - que tem como parte substancial o conhecido Teorema de Pitágoras -, cujo menor triângulo tem como medidas em números inteiros, respectivamente, três, quatro e cinco. 141 Figura 22 – Música, matemática e outros conhecimentos (THEON, 1979, p. 32) É descrito por ele a existência de vários estágios para o iniciado, referindo-se ao ciclo esotérico (interno) da academia platônica. Expõe que, “de acordo com a doutrina dos Pitagóricos, os números são, por assim falar, o princípio, a fonte e a raiz de todas as coisas (Ibid., p. 12). E nesse trecho do livro passa a falar da mônada, como ideia de unidade, embora, segundo ele, “o um difere da mônada, na medida em que ele é definido e determinado, enquanto as mônadas são indefinidas e indeterminadas” (Ibid., p. 14). Theon, ao tratar de números pares e ímpares ou algo como mesmos e diferentes (ou singular e estranho), expõe que, se “a unidade adicionada a um número par dá um número ímpar, a unidade não é par, mas ímpar. Entretanto, [menciona que] Aristóteles fala, em O Pitagórico, que um participa em ambas as naturezas” (Ibid., p. 14 - 15). Ainda obre ímpares e pares, chega a uma importante constatação: A primeira ideia do ímpar é, portanto, a Mônada, como também no mundo, a qualidade de ímpar é atribuída ao que é definido e bem ordenada. Por outro lado, a primeira ideia de par é a díade indefinida, o que faz com que o que é indefinido, desconhecido e desordenada seja atribuído à qualidade de par, no mundo também. É por isso que a díade é chamada indefinida, porque não é definida, como o é a unidade (ou mônada) (Ibid., p. 15). 142 Se para os pitagóricos, como ele coloca, tudo era números, ou uma sucessão de números, e os números pares comportam uma certa indefinição, pelo seu caráter de díade, então pode-se concluir que há um caráter de indefinição inerente à concepção pitagórica de mundo – sem falar que a noção de mônada é algo totalmente pertencente ao plano da ideia e, embora seja considerado como sendo ímpar, é algo indefinido, como foi destacado. Ou seja, mediante o estudo do texto de Theon de Smyrna pode-se perceber que a matemática na Grécia antiga (com seus múltiplos tipos de números: equilaterais, poligonais, quadrados, triangulares, oblongos, deficientes, abundantes e perfeitos e etc) é uma forma de organizar o entendimento do mundo – inclusive objetos e altares de cultos religiosos, sobretudo, naquela época -, mas que comporta uma certa abertura, no que concerne à divisão inerente à Aritmética (a primeira ciência matemática) entre números pares e ímpares, como também na própria noção de mônada primordial. Problemáticas como essa, assim como uma presença de uma mistura entre matemática e arte estão presentes em produções da época ou que a ela fazem referência (Figuras abaixo). Figura 23 – Arte e matemática no período clássico (THEON, 1979, p. 11) 143 Figura 24 – Matemática, arte e outros conhecimentos no período clássico (THEON, 1979, p. 80) 144 Figura 25 – Matemática, artes e doutrinas no período clássico (THEON, 1979, p. 81) Pode-se perceber nesse panorama pitagórico antigo tem algo de indefinido também, de incompleto, de inconcluso, que se reflete em um constante desdobrar-se. Como se verá adiante isso repetirá em muitos outros momentos da história dos conhecimentos, dos saberes, das artes, das ciências. Theon trata também “dos vários significados da palavra logos” (λoγός) na cultura grega. Expõe, após analisar várias acepções e entendimento sobre esse termo para os gregos, que, de acordo com Platão, a palavra λoγός é usado com quatro significados diferentes: para o pensamento mental com palavras; para o discurso proveniente da mente e expressa pela voz; para a explicação sobre os elementos do universo; e a relação de proporção (THEON, 1979, p. 48, tradução livre). Como pode ser observado, logos tem tanto a ver com matemática, número, operação, razão, como com nome, palavra, descrição, explicação sobre elementos, discurso. Pitágoras e a tradição pitagórica é conhecida pelo teorema sobre o triângulo retângulo, o conhecido Teorema de Pitágoras. Mas outra tradição ou doutrina pitagórica de grande importância é Teoria de Números Figurais ou Figurados (NICOMACHUS, 1926; ALMEIDA, 2003). Os Figurados, como o nome já sinaliza, acaba por relacionar número (matemática) e figura (geometria, símbolo), como pode ser percebido ao analisar as figuras a seguir: 145 Figura 26 – Números Figurais Triangulares (NICOMACHUS, 1926, p. 242) Figura 27 – Números Figurais Quadrados (NICOMACHUS, 1926, p. 242) Figura 28 – Números Figurais Pentagonais (NICOMACHUS, 1926, p. 242) 146 Figura 29 – Representação de Números Figurados com “pedras” (apud ALMEIDA, 2003, p. 121) Figura 30 – Exemplos de mosaicos romanos (apud ALMEIDA, 2003, p. 126) As figuras abaixo, aparentemente diferentes, foram listadas aqui como mais uma forma de evidenciar a relação entre número, geometria, figura, desenho, letra, arte e muitos outros temas. Essa relação da matemática com formas e imagens presentes no mundo vai ser retomada e aprofundada no período do Renascimento, estando em grande medida presente na Filosofia Natural, nas Artes e nas Ciências. 147 Figura 31 – Matemática, geometria, pedras, humanos, aves, vegetação etc. (apud THEON, 1979, p. 132) Figura 32 - Humano, coração, ave, pedras, justaposição, flores etc (apud THEON, 1979, p. 157) Figura 33 – Tetractys da Década pitagórico (apud ALMEIDA, p. 126) 148 Figura 34 – Arte, matemática e vida (apud THEON, 1979, p. 174) Platão, o autor de A República, é tido como o pensador que mais teria influenciado o Ocidente, pela posição que esse texto ocupa no cânone literário ocidental. Há bastante evidência de que ele seria um pitagórico, sobretudo na fase madura de seu pensamento, como atentam tanto Theon de Smirna como Nicômaco de Gerasa. Embora tenha sido aluno, por exemplo, de Crátilo. Platão se vale bastante de imagens, mitos em sua descrição geométrica do mundo, e, possivelmente remete à teoria pitagórica dos Números Figurais ou Figurados, tendo também muito de Índia na cabeça de Platão (Figura abaixo) – embora correntes de pensamento mais recentes originárias da Índia, como o Budismo, considerem que o instante presente é tudo o que se tem, há sim na tradição hindu a forte presença da noção de trindade, representada por Brahma, a deidade criadora do mundo, Vishnu a entidade mantenedora e Shiva, que remete à destruição, à mudança. Como veremos a seguir, Platão em A República, no último capítulo da obra, trata das três deusas relacionadas, respectivamente, ao passado, ao presente e ao futuro. 149 Figura 35 – Imagem de uma estátua representando Platão (428/427 – 348/347 a.C.) (apud PLATÃO, 2001) É possível ainda considerar, mediante a análise dos diálogos presentes em suas obras, que ele não acreditava muito na possibilidade de desvendar de uma vez por todas as leis que supostamente governam o mundo. Ou pelo menos que não em termos matemáticos. Nesse sentido, sem pretensões de estar criando tal dicotomia, poder-se-ia considerar que as denominações platonista e platônico são duas concepções diferentes acerca da figura de Platão e de seu pensamento. O mito da Caverna talvez seja a passagem mais conhecida de A República. Descrita no capítulo VII, narra uma estória hipotética, segundo a qual prisioneiros se encontram em uma caverna, de onde só vêm as sombras de supostos objetos “reais” que passam no lado exterior 150 da caverna. No trecho que vai de 515c a 517c, do diálogo entre Sócrates e Glauco15, no referido capítulo VII, são abordadas várias situações e ideias. Sócrates coloca, por exemplo, que o 15 “- Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar, e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cuja sombra via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o forçasse com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam? - Muito mais – afirmou. - Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam? - Seria assim – disse ele. - E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir até o arrastarem até a luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos ser os verdadeiros objetos? - Não poderia, de fato, pelo menos de repente. - Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na água, e por último, para os próprios objetos. A partir de então, seria capaz de comtemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e seu brilho de dia. - Pois não! - Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o comtemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar. - Necessariamente! - Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos, e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo. - É evidente que depois chegariam a essas conclusões. - E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros? - Com certeza. - E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para os que distinguisse com mais agudeza os objetos que passavam, e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo “servir junto de um homem pobre, como servo da gleba”, e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo? - suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira. - Imagina ainda o seguinte - prossegui eu -. Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol? - Com certeza. 151 verdadeiro conhecimento só pode ser atingido mediante a vontade do aprendiz, e nunca de forma forçada – a conhecida maiêutica socrática. Tentar fazê-lo conhecer mediante a força, causaria sofrimento e incompreensão. Em seguida, ele faz uma alusão, através de uma metáfora, à teoria da Linha Dividida, segundo a qual a realidade é entendimento como sendo formada por quatro estágios, sendo o último o estágio intuitivo das ideias transcendentais. No mito da caverna, descrito por Sócrates, os quatros estágios (eikasia, pistis, dianoia e noesis) estão sendo representados naquela alegoria, respectivamente, por sombras, objetos terrestres, objetos celestes, e, por fim, pelo Sol (que, segundo Platão é a luz, relativo ao Bem). Após a discussão de alguns outros pontos, Sócrates atribui a veracidade acerca da ascensão da alma ao mundo inteligível “ao Deus”, dizendo que é a custo que se avista a ideia do Bem, que ela é senhora, que a sua contemplação é condição para que se seja sensato na vida particular e pública. Em seguida, Glauco deixa a entender que considera a fala de Sócrates como sendo de natureza imagética e que não consegue segui-la por completo (PLATÃO, 2001). Embora a obra de Platão seja ambientada em uma outra época histórica, e não se possa ao certo saber o que ele de fato estava falando, sobretudo pelo fato de que o texto a que se tem acesso hoje é fruto de inumeráveis traduções – tendo-se como referência aquelas feitas por árabes na Idade Média - é possível considerar que esse trecho a que se fez referência busca conduzir ao entendimento de que o ato de conhecer relaciona-se a algo como uma fronteira, acerca da qual não se pode estar muito certo. O que sugere que o próprio Platão, em alguma ou em grande medida não seria um “platônico”, ou seja, não estava totalmente ciente da existência de ideias como algo que teria inclusive um caráter material, como réplicas de algo verdadeiro. - E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-lo até cima, se pudessem agarrá-lo e mata-lo, não o matariam? - Matariam, sem dúvida – confirmou ele. - Meu caro Glaucon, esse quadro, prossegui eu, deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública. - Concordo também, onde sou capaz de seguir a tua imagem” (PLATÃO, 2001, p. 316 – 319). 152 O recurso à matemática permeia toda A República. No livro X, ao discorrer sobre o Mito de Er, que é dito ser um armênio, Platão faz uma descrição matemática e geométrica detalhada para cada estágio habitado por Er. Para esse mito, Platão também estaria utilizando a teoria da Linha Dividida, assim como no mito da caverna, sendo reservada a imponderabilidade para o último estágio. O autor faz alusão por mais de uma vez ao número onze nesse capítulo do livro (que trata do processo de ascensão e descida da alma de Er ao estágio divino). O número onze pode ser obtido pela soma de um, três e sete, ou pela soma de quatro e sete, ou ainda pela soma de dez e um. Destaque-se que todos esses números são primos entre si, ou seja, geram razões irredutíveis. Várias são as referências a tais números no último capítulo de A República. É dito, ainda, por exemplo, que a viagem repleta de sofrimentos por debaixo da terra durava mil anos e que, independentemente de qualquer coisa que acontecesse, “as pessoas prejudicadas, pagavam a pena de tudo isso sucessivamente, dez vezes por cada uma, quer dizer, uma vez em cada cem anos, sendo esta a duração da vida humana” (PLATÃO, 2001, p. 486). Er, o Armênio, após ser morto em combate, passa dez dias morto e que no décimo segundo dia volta a viver: Contava ele que, depois que saíra do corpo, a sua alma fizera caminho com muitas e haviam chegado a um lugar divino, no qual havia, na terra, duas aberturas contiguas uma à outra, e no céu, lá em cima, outras em frente a estas. No espaço entre elas, estavam sentados juízes que, depois de pronunciarem a sua sentença, mandavam os justos avançar para o caminho à direita, que subia para o céu, depois de lhes terem atado à fronte a nota do seu julgamento; ao passo que, aos injustos, prescreviam que tomassem a esquerda, e para baixo, levando também atrás a nota de tudo quanto haviam feito. Quando se aproximou, disseram-lhe que ele devia ser o mensageiro, junto dos homens, das coisas do além, e ordenaram-lhe que ouvisse e observasse tudo o que havia naquele lugar (PLATÃO, 2001, p. 485). Esse trecho, e os relatos subsequentes, tem por vezes sido identificados com a doutrina cristã (do qual o Apocalipse de João é obra muito significativa e talvez basilar), seus preceitos, suas alegorias e metáforas: julgamento, divisão entre justos e injustos, marca na fronte dos justos, a figura do mensageiro junto aos homens que fala de coisas de um outro mundo. É bastante conhecida a citação de Friedrich Nietzsche, filólogo do século XIX, por meio da qual ele pontua que o cristianismo seria um platonismo para as massas. Este escritor, muito conhecido pelo seu Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém, pôs em destaque – embora praticamente nada para este pensador estivesse isento de críticas - muitos pressupostos relacionados à cultura e à arte, assim como a figura do artista e do poeta. Ele se autodenominou em muitas de suas obras como um psicólogo. 153 Voltando ao mito de Er, se há duas aberturas contíguas na terra e no céu e outras duas defronte a essas, isto é sinal de que as almas podem fazer ambos os percursos, subida e descida, como inclusive relata Er. De acordo com a descrição, umas almas vinham da terra e outras do céu, umas se conheciam e se cumprimentavam, e relatavam coisas referentes aos lugares de onde vinham – as da terra falavam de sofrimentos e as que vinham do céu descreviam belezas. Segundo é relatado, as almas “pareciam vir de uma longa travessia e regozijavam-se por irem para o prado acampar, como se fosse uma panegíria [reuniões gerais de festivais religiosos onde se cultuava vários deuses]” (PLATÃO, 2001, p. 485). Depois de cada um deles ter passado sete dias no prado, tinham que se erguer dali e partir ao oitavo dia, para chegar, ao fim de mais quatro dias, a um lugar de onde se avistava, estendendo-se desde o alto através de todo o céu e terra, uma luz, direita como uma coluna, muito semelhante ao arco iris, mas, mais brilhante e mais pura. Chegaram lá, depois de terem feito um dia de caminho, e aí mesmo, viram, no meio da luz, pendentes do céu, as extremidades das duas cadeias (efectivamente essa luz é uma cadeia do céu, que tal como as cordagens da trirremes, segura o frimamamento na sua revolução); dessas extremidades pendia o fuso da Necessidade, por cuja acção giravam as esferas (PLATÃO, 2001, p. 487 - 488). Sete era o número de planetas para o mundo antigo, sendo sete também as notas musicais e sete cabeças tem a besta apocalíptica. É descrito ainda que, como era natural para tal instrumento, o fuso tinha um contrapeso formado por oito partes, uma dentro da outra, no formato de oito círculos e que cada um deles girava com velocidades diferentes e que também cada um tinha cor diferente dos demais. Os sete círculos interiores giravam em direção oposta ao resto - embora não seja esclarecido o que seja “o resto” – e que o de maior velocidade é o oitavo círculo. No cimo de cada um dos círculos, andava uma Sereia que com ele girava, e que emitia um único som, uma única nota musical; e de todas elas, que eram oito, resultava um acorde de uma única escala. Mais três mulheres estavam sentadas em círculo, a distancias iguais, cada uma em seu trono, que eram as filhas da Necessidade, as Parcas, vestidas de branco, com grinaldas na cabeça – Láquesis, Cloto e Átropos – as quais cantavam ao som da melodia das Sereias, Láquesis, o passado, Cloto, o presente, e Átropos o futuro. Cloto, tocando com a mão direita no fuso, ajudava a fazer girar o círculo exterior, de tempos a tempos; Átropos, com a mão esquerda, procedia do mesmo modo com os círculos interiores; e Láquesis tocava sucessivamente nuns e noutros com cada uma das mãos (PLATÃO, 2001, p. 89 – 90). Como já fora mencionado, é descrito que Er passa dez dias morto e que ressuscita no décimo segundo dia. No total, contando o período anterior ao momento em que o Armênio 154 ressuscita e o dia da ressureição (sendo a ressureição já parte de um outro tempo), esse período de tempo poderia ser dividido da seguinte forma: 10 + 1 + 1 = 11 + 1 = 12. Em seguida, ao narrar o percurso que as almas fazem indo do prado ao caminho da luz que vem do céu, é dito que elas passam sete dias no prado e dali se erguem ao oitavo dia, e que depois de um total de mais quatro dias (entendendo-se que está sendo contando com o oitavo dia) chegaram ao lugar onde se avistava a luz. É registrado que as almas chegaram onde está a luz que vinha do céu depois de um dia de caminhada. E por último, é relatado que o fuso da Necessidade, que pendia das extremidades do céu, tem um contrapeso que se divide em várias partes ou regiões: sete círculos interiores, um círculo exterior e três Parcas. A última Parca está no alto, tocando tanto os círculos interiores como o círculo exterior. Pode-se também considerar que essa descrição feita no parágrafo anterior trata de uma linha dividida (PLATÃO, 2001), sendo o quarto estado o estado da intuição, do insight, da luz, da vibração, o qual não se tem acesso nem mesmo por meio da matemática mais sublime: mundo / prado / esferas / luz É dito a Er que ele está ali para observar e depois voltar para contar o que viu no além, e que não poderá ser incluído no sorteio que decidirá sobre a vida que cada alma terá ao voltar para a terra. Essa relação entre mundos é recorrente nas obras de Platão. Os personagens, ao iniciarem os diálogos quase sempre mencionam, reverenciam, cultuam ou fazem menção a deuses e deusas, ou sonham com um mundo com o qual não conseguem descrever por completo ao voltar. O livro A República tem início, por exemplo, com Sócrates relatando o fato de ter ido, no dia anterior, ao Pireu dirigir as suas preces à deusa. No Timeu, obra também escrita no período de maturidade do autor, sendo para muitos estudiosos uma extensão de A República, Platão faz a seguinte observação: Caso não tenhamos perdido por completo o discernimento, é inevitável que invoquemos deuses e deusas, bem como roguemos que tudo o que dissermos seja conforme ao seu intelecto e esteja em concordância com o nosso (PLATÃO, 2011, p. 93). Mediante esse trecho vê-se a noção de que o homem é entendido como um microcosmos em consonância e harmonia com o macrocosmo, rogando o homem para que o intelecto esteja em consonância com os deuses e deusas – embora, se ele roga é porque existe uma esperança que isso ocorra, ou seja, que há uma possibilidade. Platão, ao que parece, foi um construtor de 155 discursos coerentes, um orador e retórico forte, um genuíno filósofo e um brilhante homem público, cujo discurso adquiria, por sua circularidade, coerência e harmonia, a condição de verdade. O fato de estar sempre evocando deuses e deusas seria, possivelmente, uma forma irônica de expor ou fazer alusão a esse caráter evocativo do discurso, ou ainda uma forma de chamar a atenção para a caráter apenas plausível do discurso (algo que não iria muito além disso, da plausibilidade). Ou seja, em vários trechos das obras de Platão é possível perceber que ele está chamando a atenção para furos, lacunas e imperfeições, seja do discurso, seja no que se refere à relação entre mundos, seja na própria matemática (muito provavelmente em alusão à incomensurabilidade matemática). Em um trecho do Timeu, por exemplo, Platão passa a definir o que seria, o profeta: Eis um indício suficiente de que o deus concedeu a divinação à insensatez humana; é que ninguém participa da divinação inspirada e verdadeira em consciência, mas sim quando o seu pensamento é suspenso durante o sono ou pela doença, ou se for adulterado por qualquer tipo de delírio. Por outro lado, é em consciência que o Homem deve compreender o que foi dito – depois de o trazer de novo à memória – em sonhos ou em estado de vigília sob o efeito da natureza da divinação e do delírio; quanto aos simulacros que tenha visto, deve, por meio da reflexão, explicar de que modo e por que motivo cada um deles possa significar algo de mau ou de bom, quer pertença ao futuro, ao passado ou ao presente. Enquanto aquele que está possuído se mantiver neste estado, não cumprirá a tarefa de distinguir por si próprio o que lhe foi dado a conhecer ou a ouvir, pois está certo o velho dito: “Pertence somente ao sábio cumprir a sua tarefa de se conhecer a si mesmo”. Daí que a norma tenha estabelecido que o género dos profetas seja intérprete das divinações inspiradas. Há quem lhes chame “adivinhos”, ignorando por completo que eles interpretam revelações e aparições por meio de enigmas, e de modo algum são adivinhos, pelo que será mais justo chamar-lhes “profetas de assuntos divinatórios (PLATÃO, 2011, p. 174 – 175). Isso remete a uma noção de verdade ou conhecimento como algo enigmático, ainda aberto à certa complementação, uma chave, algo como uma dica apenas. A tradição grega antiga estava relacionada com os cultos à fertilidade, cultos órficos e muitos outros cultos e iniciação a mistérios, como também é conhecida a relação entre estes cultos e a matemática (COSMOPOULOS, 2003, ROSA, 2010; THEON, 1979). É atribuída a Platão a criação do termo filosofia, sendo o filósofo aquele que é amigo, ou que tem afinidade com a sabedoria. Ou seja, nessa acepção, o filósofo não seria aquele que busca saber em última instância o que é o mundo ou a verdade além do observável, mais aquele que busca restabelecer uma ligação entre a época atual e a época dos sábios. Platão faz referência em vários momentos em suas obras a isso. 156 Sendo um pitagórico em sua última fase, tinha conhecimento da noção de incomensurabilidade matemática (presente no caso de se buscar encontrar a diagonal de quadrado, por exemplo). É possível considerar que, naquilo que está sendo descrito no Livro VIII (546 B - D), Platão está justamente abordando tal problemática, ou seja, expondo a impossibilidade de se descrever por completo a realidade em termos matemáticos, axiomáticos e racionais. Esse é inclusive o capítulo sobre o qual o matemático, médico e filósofo renascentista Marsilio Ficino (1433 – 1499 d. C.) tece o comentário sobre o Número Fatal. Para Ficino a razão tinha inevitavelmente um caráter de abertura para algo divino - como também o tinha pra Newton e Einstein. Embora a matemática seja parte inerente ao pensamento grego na sua busca por organizar a cidade, Platão deixa claro naquele trecho que mesmo se tomando todas as precauções e escolhendo os melhores matrimônios, nas idades certas, responsáveis por gerar os melhores nascimentos, a República irá sempre degenerar. Se os diálogos platônicos são uma forma pedagógica ou literária de expor temas e temáticas de caráter matemático e as questões com as quais aqueles que a praticavam estavam envolvidos, não é descabido pensar que nesse enigmático trecho da República, seu autor estava chamando a atenção para a inevitável presença da incomensurabilidade, e de como o mundo divino não pode ser aprendido por meio dos mesmos atributos, pressupostos e mecanismos que se utiliza para interagir com a realidade observável. Marsilio Ficino, que foi um grande estudioso da obra de Platão, considerava que nenhuma forma sublunar estaria imune aos ciclos da fortuna (ALLEN, 1994). Fortuna, sorte ou destino pode ser entendido e/ou relacionado a algo imprevisto, à impossibilidade de medida, apreensão, controle ou clarificação. Se estar nesse contexto pode gerar um certo desconforto e temor, em certa medida. No entanto, é possível pensar que guiar-se segundo a fortuna não é algo necessariamente negativo, mal, um destino sem resolução ou expectativa de bonança ou possibilidade de um próximo passo. Mas sim, que, ao invés de buscar conhecer a última instância das coisas, pode-se aceitar a mudança, a diferença, estando-se aberto a algo como uma complementaridade presente no devir. No medievo e no Renascimento, em certa medida, a fortuna foi dada como sinônimo dessa natureza incerta e complementar do mundo, estando relacionada aos pressupostos franciscanos, por exemplo - que pregavam o desapego, pontuando que se poderia viver como vivem os pássaros -, e em muitas outras tradições e representações artísticas da época. A noção de fortuna não está muito distante da noção de probabilidade que emergirá com a física moderna, nem das rodas combinatórias de Raimundo Lúlio, as quais, Giordano Bruno fez 157 bastante referência. Ou melhor, embora sejam ideias diferentes, desenvolvidas em contextos teóricos e históricos diferentes, as noções de fortuna e probabilidade têm em comum o entendimento de que algo foge à objetividade e ponderabilidade, como comumente se considera. A noção de fortuna está presente na doutrina platônica em mais de uma situação. No último capítulo de A República, Platão narra que aqueles que veem do prado, chegando no ponto em que se encontram as Parcas, são encaminhados à Láquesis, a Parca que canta o passado ao ouvir o som das sereias, e que assim se deu a distribuição das vidas: Primeiro um profeta dispô-los por ordem. Seguidamente, pegou em lotes e modelos de vidas que estavam no colo de Láquesis, subiu a um estrado elevado e disse: “Declaração da virgem Láquesis, filha da Necessidade. Almas efêmeras, vai começar outro período portador da morte para a raça humana. Não é um génio que vos escolherá, mas vós que escolhereis o génio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficará ligado pela necessidade. A virtude não tem senhor; cada um a terá em maior ou menor grau, conforme a honrar ou desonrar. A responsabilidade é de quem escolhe. O deus é isento de culpa.” Ditas estas palavras, atirou com os lotes para todos e cada um apanhou o que caiu perto de si, excepto Er, a quém isso não foi permitido. Ao apanhá-lo, tornara-se evidente para cada um a ordem que lhe cabia para escolher. Seguidamente, dispôs no solo, diante deles, os modelos de vidas, em número muito mais elevado do que o dos presentes (PLATÃO, 2001, p. 490). Destaque-se a primazia da fortuna ou da sorte para a distribuição de cada vida, já que a vida de cada um será aquela que cair mais próxima de si, que é dito ainda que “A virtude não tem senhor” e que “O deus é isento de culpa”. Platão declara ainda no Timeu que os profetas são interpretes de assuntos divinatórios. Com isso ele chama a atenção para uma parcela de imperfeição e incompletude na atividade do profeta, que interpreta os assuntos divinos através de enigmas – algo semelhante ao que entendia Ficino, que a relação entre o mundo humano e o mundo divino se dava por uma certa complementaridade que comportava uma ruptura (ALLEN, 1994). É descrito no mito da caverna, em A República, que o prisioneiro estando à presença do Bem ficou ofuscado, com a visão obnubilada, imagem que tem relação com a doutrina da Divina Escuridão, presente no Corpus Areopagiticum creditado a Pseudo-Dionísio, o Areopagita, segundo a qual não se pode apreender a natureza divina. Pode-se considerar que Platão construía seus mitos por ter sido influenciado pela cultura de sua época, sendo essas narrativas meios de transmitir a doutrina pitagórica e outras tradições e conhecimentos que este tenha tido acesso. É ressaltado, por exemplo, no fim do capítulo X de 158 A República, que, devido o desconhecimento em relação ao sofrimento, ou à falta de lembrança das vidas passadas “e também devido a sorte da escolha, [que] o que mais acontecia às almas era fazerem a permuta entre males e bens” (PLATÃO, 2001, p. 493). É dito ainda que depois de escolher a sua vida cada alma era mandada ao gênio (que é um dos sinônimos e significados da palavra daemon, diga-se de passagem), e que depois de ir à Parca Àtropos e tornar irreversível o que fora feito, cada alma ia para a planura do Letes, e ao Rio Âmeles, “cuja água nenhum vaso pode conservar” (PLATÃO, 2001, p. 496). Todas são forçadas a beber uma certa quantidade dessa água, mas aquelas a quem a reflexão não salvaguarda bebem mais do que a medida. Enquanto se bebe, esquece-se tudo. Depois que se foram deitar e deu a meia noite, houve um trovão e um tremor de terra. De repente, as almas partiram dali, cada uma para seu lado, para o alto, a fim de nascerem, cintilando como estrelas. Er, porém, foi impedido de beber. Não sabia, contudo, por que caminho nem de que maneira alcançara o corpo, mas, erguendo os olhos de súbito, viu, de manhã cedo, que jazia na pira (Ibid, p. 496). Marsilio Finico, estando a tratar do número perfeito e da Idade de Ouro, mencionando um trecho da profecia de Cumaean e aludindo à passagem do livro Sabedoria de Salomão, segundo a qual todas as coisas teriam sido dispostas “em número, peso e medida” (ALLEN, 1994, p. 3, tradução livre), finaliza seu De Numero Fatali com a seguinte afirmação: “Nós temos debatido o suficiente em companhia de Platão e das Musas como eles jogam com tão séria e inextricável matéria” (FICINO apud ALLEN, 1994, p. 232). É interessante destacar essa afirmação de que há algo inextricável nesses saberes antigos, algo da natureza do jogo, enigmático, oracular. Em nota referente a esse trecho é especificado que no prefácio do livro, é mencionado por Michael Allen que “semonem vero hominibus inexplicabilem merito Musis attribuit”16 (FICINO apud ALLEN, 1994, p. 254), sendo exposto ainda por ele que “é ‘inexplicável’ porque é ‘inextricável’” (ALLEN, 1994, p. 254). Há, como pode ser percebido, referências no pensamento de Ficino ao caráter misterioso dos saberes antigos e da relação do pensamento de Platão com tais mistérios. O número fatal, estaria, por exemplo, relacionado a certo caráter profético e a muitas outras nuances: […] he viewed prophecy as culminating in the soul’s ascencion from the body and “comprehension of the all place and time”. At the moment the intuitive intellect flooded with the splendor of the Ideas, the radiant Beauty that is the 16 “A palavra inexplicável para os homens e merecidamente atribuída às musas” (FICINO apud ALLEN, 1994, p. 254, tradução livre). 159 emanating light of the Truth. But the prophetic “art” involves more than the initiatory rapture and then the intellectual skill and the insight to interpret it correctly. In the Argumentum, Ficino claims, perhaps extravagantly or facetiously, that the mysteries of the passage on the fatal geometric number and the mystery of that number itself not only defy interpretation by the process of normal discursive reasoning (the ratio) and require intuitive or even mantic powers, but demand ultimately the descent of a god, of a divine and overwhelming force. Perhaps we should bear in mind a claim that Ficino had made elsewhere, namely that mathematics is the particular domain of the daemons and that skill with numbers is in essence a daemonic skill and the gift of the daemons, something that most of us have suspected since childhood (ALLEN, 1994, p. 16)17. Ficino atribuía sim um caráter demoníaco à matemática, no sentido de estar-se tratando de cosias da natureza do gênio, sendo exposto por ele que “nós vivemos a vida dos demônios quando nós engajamos em especulações matemáticas” (FICINO apud ALLEN, 1994, p. 17). Destaque-se, acerca deste trecho, que a atividade profética é considerada como sendo uma arte e que a palavra daemon de onde surgiu o vocábulo demônio também tem relação com alegria, transe e estados sutis da consciência. 3.2 Artes, “revolução científica” e pluralidades Sobre as mudanças ocorridas nos séculos XVI e XVII, referindo-se aos seus Estudos Galilaicos, expõe Alexandre Koyré: “Essas mudanças me pareciam ser redutíveis a duas ações fundamentais e estreitamente relacionadas entre si, que caracterizei como a destruição do cosmos e a geometrização do espaço” (KOYRÉ, 2006, p. 2). Evidencia ainda relações entre as proposições de Copérnico, Pitágoras e Platão e considera que Galileu e os demais pensadores daquela época deram um consistente passo para um novo mundo e uma nova ciência (KOYRÉ, 1986).18 Nesse sentido, pode-se considerar que Koyré está também pontuando, em algum 17 “[...] ele via profecia como culminando na ascensão da alma do corpo e "compreensão do todo lugar e tempo". Em um tal momento, o intelecto intuitivo se encontra inundado com o esplendor das Ideias, a Beleza radiante que é a luz que emana da Verdade. Mas a "arte" profética envolve mais do que o arrebatamento de iniciação, tendo ainda a ver com a habilidade intelectual e o conhecimento para interpretá-la corretamente. No Argumentum, Ficino afirma, talvez extravagantemente ou jocosamente, que os mistérios da passagem sobre o número geométrico fatal e o mistério desse número em si não apenas trazem resistência a uma interpretação pelo processo de raciocínio discursivo normal (a razão), requerendo intuitivos ou mesmo mânticos poderes, mas demanda, em última análise, a descida de um deus, de uma força divina e esmagadora. Talvez devamos ter em mente a afirmação de que Ficino tinha feito em outros lugares, ou seja, de que a matemática é o domínio particular dos demônios e que a habilidade com números é em essência uma habilidade demoníaca e o dom dos demônios, algo que a maioria de nós tem suspeitado desde a infância” (ALLEN, 1994, p. 16). 18 Segundo o autor, por exemplo, foi uma “audácia paradoxal [a] de Galileu ao declarar que o livro da natureza está escrito em caracteres geométricos” (KOYRÉ, 1986, p. 42). 160 aspecto, assim como Feyerabend, que muitas vezes algo novo é criado por um ato de invenção, ou ainda pela força do argumento, do prestígio ou do gênio (ou egoísmo) de quem propõe. Sabemos bem que Galileu, como Descartes, um pouco mais tarde e pela mesma razão, foi obrigado a suprimir a noção de qualidade, a declará-la subjetiva, a bani-la do domínio da natureza. O que implica, ao mesmo tempo, ter sido obrigado a suprimir a percepção dos sentidos como fonte de conhecimento e a declarar que o conhecimento intelectual e até mesmo a priori o nosso único meio de apreender a essência do real (KOYRÉ, 1986, p. 47). Feyerabend considera que Galileu não elimina por completo as sensações, as primeiras impressões ou interpretações, como ver-se-á a seguir no que concerne ao uso do telescópio como prova por parte de Galileu. Segundo Feyerabend, este teria agido contra indutivamente, e se baseando em muitas outras coisas do que apenas na razão, o que vai de encontro, em certa medida, ao que defende Koyré. No entanto, se pode conjecturar até que ponto o pensamento de Feyerabend é ou não contraditório, já que muitas vezes este pensador defende em alguma media a primazia da individualidade na construção das teorias assim como também considera que estas se dão como sendo parte de processos socioculturais mais abrangentes. Pode-se acerca disso considerar que este autor, assim como Fleck, está destacando que o conhecimento comporta, concomitantemente, componentes ativas e passivas. Pode ser defendido que essa noção esboçada por Koyré vai de encontro à sua própria tese de que a revolução científica teria sido um momento histórico em que se deu “a destruição do Cosmos”. Galileu, por exemplo, não teria abandonado essa que é a base, a premissa do racionalismo, que é a ideia de cosmos, mas a confirmado, já que buscava a ordenação matemática do mundo. É o entendimento de que o mundo é ordenado e não algo desorganizado, que possibilita que se conceba que há uma lei geral que explica todo o mundo e a realidade, a qual se encontraria agindo de maneira racional. Tal ideia não tem como ser provada, é uma pressuposição. Ainda segundo Koyré: É acerca desta ciência, o verdadeiro conhecimento «filosófico», que é conhecimento da própria essência do Ser, que Galileu proclama: «E eu digo- vos que, se alguém não conhece a verdade por si próprio, é impossível a quem quer que seja dar-lhe esse conhecimento, Com efeito, é possível ensinar coisas que não são nem verdadeiras nem falsas; mas as verdadeiras - ou seja, as necessárias -, isto é, as que não podem ser de outra maneira, ou qualquer espírito médio as conhece por si mesma, ou não pode jamais compreendê-las.» Certamente. Um platônico não pode ter opinião diferente, dado que, para ele, 161 conhecer e compreender. [...] O Diálogo e os Discursos falam-nos da história da descoberta, ou, melhor ainda, da redescoberta da linguagem falada pela natureza. Explicam-nos a maneira de a interrogar, isto é, a teoria dessa investigação científica, na qual a formulação dos postulados e a dedução de suas consequências precedem e guiam a recurso o observação. Isto é também, pelo menos para Galileu, uma prova «de facto». A ciência nova é, para ele, uma prova experimental do platonismo (KOYRÉ, 1986, p. 52 – 55). Pode-se considerar que para um platônico, conhecer e compreender sejam a mesma coisa, embora, para um platonista talvez não. Por platônico está-se considerando aqui o entendimento que concebe Platão como o filósofo que separou o bem do mal, o racional do irracional, que foi o portador de uma doutrina baseada em um mundo ideal e não contaminado, longe da matéria, sendo a matemática a condição sine qua non para ter acesso àquilo que seria a verdade. Por plantonista está-se tratando do entendimento que considera aquele grego como um pensador que desenvolveu um pensamento mais complexo do que se considera habitualmente, que destaca inclusive na sua obra a inevitável presença da necessidade. Koyré parece ser mais platônico, o que o faz ver um Galileu também platônico. Feyerabend, ao que se viu, apresenta um Galileu mais platonista. Segundo Koyré, não foi a insuficiência técnica que impossibilitou que ocorressem mudanças em termos epistemológicos nesse período, mas sim a falta de ideia: E não é a impossibilidade material de executar as medidas que detém o alquimista; ele não se serve delas, mesmo quando as tem à mão. Não é o termômetro que lhe falta, é a idéia de que o calor seja susceptível de medida exacta. Assim, contenta-se com os termos do senso comum: fogo vivo, fogo lento, etc., e não se serve, ou quase nunca, da balança. E, todavia, a balança existe; ela própria – a dos ourives e joalheiros - relativamente precisa. É justamente por isso que o alquimista a não usa. Se a usasse, seria um químico. Mais: para que se lembrasse de a usar teria sido necessário que já o fosse (KOYRÉ, 1986, p. 72). Para que esse argumento se sustentasse, para que se considerasse esse período como uma total ruptura com o que se tinha antes, se teria que “eliminar” todo tipo de conhecimento tido como senso comum (como os apontados acima por Koyré), crendice ou misticismo que está presente tanto em Galileu, como em Kepler, Copérnico, Newton e demais pensadores desse tempo. E ainda, esses conhecimentos de que fala Koyré (“fogo vivo”, por exemplo) era parte de um vasto saber da época, não era algo banal, ao que ele nomeia pejorativamente de senso comum. Ele coloca a balança como o centro da mudança da alquimia para a química. Mas para fazer isso ele teria também que eliminar tudo que é saber que a química pega da alquimia, desde 162 os nomes e os símbolos dos elementos (que está longe de ser algo sem importância) a noções de significado geral, como o conceito de ligação, sem os quais a química não existiria. Ainda segundo Koyré, [t]ratava-se justamente de ensinar aos «técnicos» qualquer coisa que eles nunca tinham feito e de inculcar na profissão, na arte, na technê, regras novas, as regras de precisão da equistêmê [...] E é pela supremacia da teoria sobre a prática que poderíamos caracterizar a técnica da segunda revolução industrial, para empregar a expressão de Friedmann, como a da indústria neotécnica da idade da eletricidade e da ciência aplicada. É pela sua fusão que se caracteriza a época contemporânea: dos instrumentos que têm a dimensão de fábricas e de fabricas que possuem toda a precisão dos instrumentos (KOYRÈ, 1986, p. 88 - 89). Ou seja, de acordo o que ele coloca, a “transição” teria ocorrido devido a adoção da precisão nas medidas, ou na matematização ou geometrização do mundo. Embora se possa argumentar que ele está falando da relação entre química e alquimia, e generalizando a partir desse exemplo. No entanto, não houve uma mudança geral, um total abandono de concepções anteriores e adoção de outras totalmente diferentes. A teoria Harmônica de Kepler, por exemplo, apresentada na sua obra Mistérios do Universo, é baseada nos sólidos geométricos platônicos, portanto, tem uma forte componente matemática e geométrica, como pode ser visto na imagem abaixo, e, no entanto, busca evidenciar que o universo tem uma harmonia, uma lei geral. É possível se perceber ainda, mediante a figura, que na base do arranjo, dando sustentação à abóbada externa, tem-se a representação de algo como uma letra ou um número, algo imprevisto ou indefinido. 163 Figura 36 – Imagem referente a Misterium Cosmographicum, proposto por Kepler (1596) (apud RONAN, 2001, p. 88) Kepler com sua Astronomia nova, lança algo novo (ou não tão novo assim, já que a noção de causa é a base da filosofia de Aristóteles) para as discussões cosmológicas da época, que é procura pela causa dos movimentos dos astros (ITOKASU, 2006). Em sua teoria ele se vale do uso da hipótese vicária: Como explicar o sucesso da hipótese vicária no cálculo das longitudes, se as latitudes mostram que essa hipótese geométrica não corresponde ao percurso descrito por Marte em torno do Sol? A explicação depende da distinção entre hipóteses geométricas e astronômicas. Uma determinada hipótese astronômica, verdadeira, pode ser expressa por diversas hipóteses geométricas, que não o são necessariamente. Caso uma determinada hipótese geométrica seja falsa mas ainda assim exprima a hipótese astronômica em questão, sua falsidade poderá ser revelada pela análise do problema do ponto de vista da física celeste ou pela aplicação a outros problemas correlatos. Este último é o caso da hipótese vicária, que quando aplicada à determinação das latitudes revela-se falsa. Na discussão que ocupa o capítulo 21 da Astronomia nova, Kepler mostra como as hipóteses geométricas são construídas a partir de um número limitado de observações, e posteriormente refinadas através da consideração sucessiva de outros pontos, até que seja atingido o limite da precisão experimental. [...] Assim, agora fica patente até que ponto e de que maneira a verdade pode seguir de princípios falsos: seguramente o que quer 164 que seja falso nestas [hipóteses] é peculiar a elas e pode encontrar-se ausente, enquanto o que produz necessariamente a verdade é em geral verdadeiro em todos os aspectos, e nada mais (KEPLER apud ITOKASU, 2006, p. 254 - 156). O fato de uma hipótese geométrica falsa poder ser usada para provar ou dar sustentação a uma tese astronômica em questão, é mais uma evidencia do caráter aberto das teorias, de que elas não são descobertas ou reflexos da “verdade”. Afinal, as pressuposições feitas por Kepler, e transcritas acima, não podem ser provadas racionalmente, são premissas tomadas como verdade. Isso remete de certa forma à tese de Bohr, de que os arranjos experimentais criam os fenômenos em alguma medida (BROWN, 1981). O sucesso da hipótese vicária na determinação das longitudes deriva portanto do fato de que essa hipótese representa aspectos gerais do movimento do planeta que são reais. As particularidades da hipótese que por fim serão demonstradas falsas não entram em jogo na demonstração, ou seria impossível obter as longitudes corretas (ITOKASU, 2006, p. 156). Ou seja, por ser impossível que algo seja feito em termos descritivos se recorreu a um mecanismo lógico em que a verdade foi produzida mediante uma falsa hipótese (ITOKASU, 2006). Só assim Kepler conseguiu “equacionar” uma incongruência descrita já por Ptolomeu. 165 Figura 37 – Figura representando o movimento de Marte visto da Terra, presente em Astronomia nova de Kepler (apud ITOKASU, 2006, p. 114). Essa é uma evidência do que fora exposto por Paul Feyerabend, quando ele pontua que Galileu fez uma junção de duas teorias com problemas, a de Copérnico e a de Kepler. Que, Galileu, mediante o uso da contra indução, de instrumentos ainda não conhecidos, de retórica e de muitos outros meios, fizera surgir algo, em certa medida, novo. Aquele pensador, como expõe Alexandre Koyré, contribuiu para o projeto de geometrização do espaço, embora se encontre referência em suas obras a muitos outros conhecimentos. A Renascença foi um período onde se tinha bastante consciência do potencial da linguagem gráfica. As grandes questões daquele tempo eram muitas vezes dispostas em obras de arte, haja vista a importância das obras de pintores como Rafael Sanzio, Michelangelo, Leonardo da Vinci, Bosch, e Dürer, por exemplo. Nas figuras abaixo, reproduzidas de várias obras de Galileu, se pode ver referência clara à geometria, tanto presentes nas formas de algumas figuras – como na figura em que se tem um cilindro de base circular inscrito em uma base quadrada, ao qual está ligado um gancho que por meio de uma argola mantém um cubo suspenso -, ou muitas vezes de forma abstrata, como, exemplo, na figura em que um triângulo retângulo (ou pitagórico) se subdivide em dois outros triângulos também pitagóricos. Há ainda menção a curvas, tanto naquela reproduzida de L’Essayeur – em que se tem algo parecido com um A e um B -, como naquela transcrita de Dialogue des Sciences Nouvelles. 166 Figura 38 – imagem presente em L’Essayeur (GALILÉE, 1966, p. 104 – 105) Figura 39 – Imagem presente em Dialogue des Grandes Systèmes (GALILÉE, 1966, p. 120 – 121) As figuras representadas abaixo têm algo em comum. Em todas têm em evidência uma certa busca por relacionar triângulos e círculos, afinal, um hexágono pode ser decomposto ou formado por seis triângulos equiláteros. Na segunda figura abaixo há vários triângulos 167 retângulos ou pitagóricos, o que atesta a influência pitagórica sobre Galileu. Como se viu, os pitagóricos, além da afeição ao estudo dos triângulos – pelo que são inclusive mais conhecidos -, também praticavam a doutrina relacionada aos números figurais ou figurados (ALMEIDA, 2003; NICOMACHUS, 1926). Pode-se então conjecturar que essas duas doutrinas, do triângulo retângulo, que gerou o famoso Teorema de Pitágoras, e a dos números figurais, faziam parte de uma teoria maior, ou que se relacionavam, ou que pelos menos tentavam. Em favor disso, tem-se, por exemplo o fato de que os números figurais formam, como se viu acima, mediante o arranjo de pedras, figuras geométricas como triângulos, quadrados, heptágonos, hexágonos. Figura 40 – Imagem presente em Dialogue des Sciences Nouvelles (GALILÉE, 1966, p. 264 – 265) 168 Figura 41 – Imagem presente em Dialogue des Sciences Nouvelles (GALILÉE, 1966, p. 264) Figura 42 – Imagem presente em Dialogue des Sciences Nouvelles (GALILÉE, 1966, p. 264) 169 Figura 43 – Imagem presente em Dialogue des Sciences Nouvelles (GALILÉE, 1966, p. 296) Há referência aos números figurais na obra de Galileu, como também à incomensurabilidade, como se pode ver na figura que “apresenta” o livro Diálogos sobre os dois sistemas de mundo. Postas de forma central na parte de cima vê-se seis esferas organizadas fazendo referência a um hexágono, embora as esferas não se toquem, estando, pode-se dizer, livres, e a mais eleva delas seja diferente das demais, tendo um aspecto de rosto, com algo como olhos, e um aspecto sombrio. Há ainda referência a outros temas no palco em que estão representados Aristóteles, Ptolomeu e Copérnico. A disposição do ambiente parece ser uma referência ao teatro, prática combatida à época por ser considerado subversivo. Ao fundo, barcos, no chão, pedras, conchas e flechas. Também se pode notar que a figura que representa Aristóteles está com o pé direito reclinado. As conchas remetem possivelmente à filosofia natural, cujos adeptos buscavam “aproximar” matemática e natureza, mediante a constatação da simetria presente no mundo natural. As flechas muito possivelmente são uma alusão à astrologia, mais precisamente ao signo de Sagitário, cuja representação simbólica para o mapa astral é uma flecha. Como fora sinalizado por Feyerabend, o pensamento de Galileu dialoga como muitas fontes e visões de mundo. Na figura a que se está fazendo referência (disposta abaixo), 170 Ptolomeu e Copérnico seguram representações de seus sistemas de mundo. Pode-se ainda perceber por meio da figura, que Ptolomeu, com a mão erguida, segura uma representação da Terra, e que o eixo de rotação da terra para aquela representação apresenta-se inclinado. Aristóteles está com a mão direita inclinada também e apontando para a representação da Terra. Copérnico segura uma representação de seu modelo de mundo heliocêntrico com a mão esquerda, ao lado do corpo, enquanto a mão direita, aberta e erguida (em relação à mão esquerda e ao corpo), está disposta na horizontalmente (paralelamente ao chão), e na direção dos demais interlocutores. 171 Figura 44 – Imagem presente em Diálogo dos sistemas de mundo, de Galileu Galilei (RONAN, 2001, p. 91) 172 No livro Il Saggiatore, O ensaiador, há também diversas imagens. Em uma delas apresentam-se lado a lado duas figuras, cada uma sobre um pórtico. No pórtico da direita está escrito Matemática, e no pórtico da esquerda, Filosofia Natural. A “Matemática”, figura, ao que indica, masculina, com a mão direita segura um globo que parece representar a Terra - muito semelhante àquele presente na figura anterior presente em Diálogos, embora na figura de O Ensaiador, o eixo de rotação da Terra não se apresente inclinado. Com a mão esquerda a “Matemática”, que olha para cima, segura um instrumento, como uma haste (que se apresenta inclinada), e, ao que parece, aponta também para cima. Sobre a cabeça tem uma coroa de pontas verticais. Mais para baixo do pórtico tem-se incrustado em um entalhe de forma retangular instrumentos, ao parece, duas lunetas e um espelho. As lunetas apontam para cima e estão dispostas na diagonal, dividindo o retângulo ao meio em dois triângulos retângulos. A “Filosofia Natural”, figura feminina à esquerda, com a mão direita segura algo como um livro e parece apontar para baixo, seguindo o seu olhar. Com a mão esquerda segura algo como uma representação de um sistema de mundo em que se pode ver a representação da Terra, da Lua e de muitas estrelas – remetendo em alguma medida às conhecidas representações de mundo alquímicas. Tem a cabeça coberta com algo como uma toca. A cabeça se encontra em meio e ao centro de uma estrutura raiada. Um pouco abaixo do pórtico tem-se incrustado em um entalhe também retangular, algo como um buquê de flores ou rosas, com duas menores de cada lado e uma maior ao centro. Ao centro da figura, na parte mais alta, tem-se, ladeado por duas crianças, e no meio de duas chaves entrecruzadas, algo como um brasão, um símbolo, ou uma coroa com uma estrutura pontiaguda. Há também três moscas, ou algo como insetos, que dão um aspecto grotesco à figura em forma de cabeça sobre a qual elas estão - no lugar do que seriam os olhos e a boca da figura – e na qual os anjos se apoiam. Ao lado do anjo à esquerda, no canto, incrustado em um espaço retangular, um semblante fechado, triste. Ao lado do anjo à direita, também ao canto, incrustado em um espaço retangular, um semblante alegre, aberto. Na parte de baixo têm-se um animal (algo como um felino ou uma raposa) em postura de caminhada, circundado por ramos em forma elipsoidal. Acima do animal há uma coroa e do lado esquerdo da coroa algo com a cabeça de um outro animal em perfil, remetendo a uma circularidade. 173 Figura 45 – Imagem presente em Il Saggiatore, Galileu Galilei (GALILEI, 1623) 174 Em outra figura também presente em Il Saggiatore (O ensaiador) tem-se presente referências a muitas ideias. Na parte de baixo avista-se a figura de algo como um demônio ao centro de duas estruturas arqueadas para cima. De cada lado da boca sai uma cobra ou serpente, assim como de cada lado da cabeça. Da boca também brotam, de cada lado, algo como cipós espiralados. No queixo do ser há ainda a presença de algo como dois sinais, duas bolinhas, separadas uma da outra. Sobre a cabeça, estruturas em forma de círculo ou espiral que se entrelaçam, se embaralham. Ao subir, de cada lado, há desenhos em zig-zag, até que se chega em três representações de pirâmides. Ao centro da figura, tem-se como que na moldura de um espelho, um retrato de Galileu. Este é apresentado com uma gola em forma de retângulo. Em volta do retrato tem-se informações sobre Galileu e uma reverência ao Duque de Toscana. 175 Figura 46 – Imagem presente em Il Saggiatore, de Galileu Galilei (GALILEI, 1623) 176 No centro, acima do retrato, tem uma figura que olha de soslaio, com ramos sobre a cabeça e estruturas que lembram asas, de cada lado da face. Sobre a cabeça tem–se algo com uma pequena concha marinha virada, com cinco subdivisões, e uma outra maior acima que conta sete subdivisões. Essa figura em soslaio ocupa o centro de onde partem duas estruturas encaracoladas em sentido horário. De cada lado do topo figuras que remetem a anjos. Ambos possuem cabelos encaracolados. O da direita tem um livro aberto em sua frente e utiliza algo como uma luneta em forma de corneta, apontando-a para o céu. O da esquerda segura com a mão esquerda um instrumento que parece um compasso em forma de A e escreve em um caderno ou livro com mão direita. No livro A Mensagem das Estrelas há também uma figura, que mais do que ser apenas uma ilustração, tem o objetivo de informar e aguçar a percepção de quem contempla a obra. De acordo com Carlos Ziller Camenietzki, tradutor, [a] Mensagem das Estrelas vem demarcar uma importantíssima virada na produção do mestre florentino; não apenas em sua vida, mas na própria natureza dos debates filosófico-científicos do século XVII. O brevíssimo relato sai editado originalmente em latim, língua culta comum aos estudiosos de todos os países, com quinhentas e cinquenta cópias; um número bastante elevado para a época. O sentido disso é claro, Galileu desejava ver seu livro circulando pelos sábios do mundo. De fato ele o conseguiu: no mesmo ano o texto é reeditado em Frankfurt” (GALILEI, 1987, p. 16). Quanto ao trabalho propriamente dito, foi considerada a opção que mais se relaciona ao conjunto da obra galileana. Em primeiro lugar o próprio título: A mensagem das Estrelas, que é fonte de algumas controvérsias. A tradição entende que Siderius Nuncius significa “o mensageiro das estrelas”. Porém o próprio autor refere-se à obra como “avviso sidereo” em cartas e notas à margem de um livro. Em segundo lugar foi mantida a ordem de parágrafos original e, ao máximo possível, a alocação dos desenhos. Os entretítulos – As observações da Lua, Observações das estrelas fixas, Observações de Júpiter – foram colocados com o objetivo de facilitar o leitor (Ibid., p. 24). Na figura supracitada há imagens que também estão presentes nas mostradas anteriormente, e também muitas outras coisas. Há anjos, ramos de arvores e caracóis – inclusive uns que partem de um centro comum, mas tomam direções contrárias. Cada anjo segura um vaso. Na figura há, entre as muitas coisas que se pode perceber, uma mulher, algo como uma rainha, que tem uma coroa de três níveis sobre a cabeça. Há referência aí também aos números figurais triângulos dos pitagóricos. No pescoço há um colar de pedras ou perolas e algo que parece ser uma aranha ou outro inseto como pingente. No colo da mulher está possivelmente a maior referência aos números 177 figurais, pois se tem uma sequência de coroas, organizadas de forma decrescente, embora na última posição não se tenha uma coroa. Há menção à vegetação, à perspectiva, assim como à cidade na figura e contrariedades na imagem da mulher, na sua face. A mão direita sinaliza para a matemática e seu lado esquerdo ao que parece para a natureza (embora ainda haja ali sinais de matemática), já que ela segura um cacho de frutas. Na borda que a envolve (que não é circular, mas uma elipse, diga-se de passagem) está escrito em latim Hinc Religion Vera (Uma Religião Verdadeira), destacando-se que palavra Religio está separada, dividida ao meio em Reli Gio. Figura 47 – Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei (GALILEU, 1987, p. 28). Uma figura bastante diferente, mas que em alguns aspectos lembra essa última, pode ser encontrada na obra do escritor e professor de filosofia, também italiano Antônio Rocco (1586 – 1653 d. C.), intitulada L’Esercitationi Filosofiche. Na figura do livro de Rocco a imagem central é um homem. Nas vestes que estão por sobre seus ombros tem-se uma referência gráficas aos números figurais. Na mão direita segura um cetro e não mão esquerda estrutura tripartida, 178 algo como uma flor em broto. À esquerda do homem, no chão, há um homem derramando água de um vazo e um leão, e por trás destes, nove lanças. Pode-se observar flores, vasos e ainda muitos outros tipos de imagens, como espelhos, animais, faces e perspectivas. A borda da figura se apresenta dividida em cinco partes, e no lugar onde estaria possivelmente a sexta divisão está escrito Toscana. Figura 48 – Imagem presente em L’Esercitationi Filosofiche, de Antônio Rocco (ROCCO, 1633, p. 1) Há ainda outras figuras no livro de Antônio Rocco, como por exemplo, aquela (Primeira figura abaixo) em que ao centro um homem toca um instrumento, tendo em ambos os lados, a presença de anjos, aves, flores e arbustos - como também algo como um roedor em cada canto superior. Em outra figura se vê um anjo segurando arbustos e galhos diferentes, sentado sobre algo como uma serpente, semelhante à uma figura da astrologia da época (Segunda figura abaixo). 179 Figura 49 - Imagem presente em L’Esercitationi Filosofiche, de Antônio Rocco (ROCCO, 1633, p. 3). 180 Figura 50 - Imagem presente em L’Esercitationi Filosofiche, de Antônio Rocco (ROCCO, 1633, p. 13) Há registros de que no período da Renascença e no princípio da Idade Moderna se tinha como constelações a constelação da águia, e a constelação da serpente. No mapa celeste ilustrado de autoria de Ignace Gaston Pardeis, por exemplo, datado de 1693 (Figura), tem-se a presença destas constelações. É possível perceber no mapa, que por sobre a asa direita da águia há uma flecha, Sagitta, que a causa da serpente toca a asa esquerda da águia, e que aquele que se debate com a serpente¸ Serpentarius, está com o seu pé direito sobre a constelação de escorpião, o que interliga, de certa forma, estas imagens que referentes às constelações – a águia que habita o ar e o escorpião animal terrestre. A serpente, presente em todas essas obras a que se fez referência, possivelmente, tem relação ou faz alusão à astronomia em alguma medida, sendo essa uma das formas de matemática – e como abordou-se, a astronomia e a cosmologia sempre foram e continuam sendo fronteiras especulativas abertas (como veremos no próximo tópico). Serpentes, demônios, dragões e seres disformes em geral são quase sempre, pode-se considerar, uma referência à incomensurabilidade, que como se viu foi tema de importantes discussões da ciência e da matemática da antiguidade, e, que, pelo exposto, reverberaram na Renascença e na Modernidade. Muitas vezes questões de natureza científico-matemática são tratadas de forma estilística. Um exemplo disso é o livro neoplatônico do Apocalipse, cujo autor se considera ter sido João. Naquele livro é mencionado o aparecimento de uma Fera ou Dragão que possui sete cabeças e dez chifres, muito possivelmente fazendo referência aos sete planetas conhecidos à época – considerados para os antigos como entidades “errantes”, já que tinham movimento irregular em relação às estrelas fixas – e ao Tetratrix (ou Tetractys) pitagórico, o terceiro número triangular, que contem dez pedras como fora apresentado acima. O número dez tem forte presença em muitas culturas antigas (ALMEIDA, 2003), sendo a base do sistema decimal. Serpente também tem relação com algo cíclico, ou espiral, inclusive pelas radicais da palavra. 181 Figura 51 – Mapa Celeste de Ignace Gaston Pardeis (1693) Referências a vasos – que servem para guardar grãos e estão relacionados muito possivelmente à fertilidade e/ou cultos à fertilidade, à agricultura – e à estruturas arqueadas, flora, flores e a seres disformes encontram-se também na obra de Leonardo da Vinci, de título Prose. 182 Figura 52 – Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci (DA VINCI, 1928, p. vii) 183 Figura 53 – Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci (DA VINCI, 1928, p. 3, 183, 201, 253) Há nessa obra, em alguma medida, também referência aos números figurais, tanto no escudo (com esferas incrustadas, pequenas e separadas) ao lado dos vasos da figura anterior – que consta como ilustração do início das unidades Ricordi Frammenti Autobiografici ed Epistolari [Memórias autobiográficas e fragmentos de cartas], Favole [Fábulas], Allegorie ed Emblemi [Alegorias e Emblemas] e Novelle e Bizzarrie [Histórias e Curiosidades) -, como na figura que apresenta a obra, de capa (Figura abaixo). Esta é composta por uma estrutura circular central constituída de elementos arredondados como frutos, e também por flores. Em posições diametralmente opostas estruturas menores tocam em alguma medida o círculo maior – algo como se fosse golfinhos feitos de ramagem, dispostos de forma curvada (parte de baixo) e algo como ramos de vegetação em forma circular (em cima). A formação circular é sustentada por um vaso, fonte ou taça. 184 Figura 54 – Capa do livro Prose, de Leonardo da Vinci (DA VINCI, 1928) O livro é constituído por nove unidades, que se subdividem nos seguintes capítulos: Ricordi Frammenti Autobiografici ed Epistolari [Memórias autobiográficas e fragmentos de cartas], La Natura [A Natureza], L’Uomo [O Homem], L’Arte [A Arte], La Scienza [A Ciência], Favole [Fábulas], Allegorie ed Emblemi [Alegorias e Emblemas], Profezie [Profecias], Novelle e Bizzarrie [Histórias e Curiosidades]. No primeiro capítulo, da Vinci faz referência a muitas pessoas e personalidades. Por mais de uma vez cita Ludovico, O Mouro, da Família Sforza, por exemplo. Presta agradecimentos a vários clérigos, como, por exemplo, ao Cardeal Ippolito D’Este. O capítulo é iniciado com a citação “... mentre scrive sul volo del nibbio [... como ele escreve no voo da águia]” (DA VINCI, 1928, p. 3). No primeiro parágrafo ele cita que seu destino parece estar 185 ligado a uma águia, ou ave de rapina, desde as recordações da infância e que essa “ave” possui também uma cauda.19 Na unidade cinco, La Scienza, Leonardo discute sobre a esterilidade da ciência que não tem aplicação prática, pontua que o saber tem um valor intrínseco, que o prazer nasce da contemplação da natureza, sendo o saber, segundo ele, o supremo bem, exaltando a verdade, a ciência e a necessidade da experiência e da matemática para ciência: “La sapienza é figliola della sperienza [A sabedoria é filha da experiência]” (Ibid., p. 165). Trata ainda da relação entre perspectiva e matemática, do engano da mente quando se deixa abandonada a si própria e posiciona-se contra a metafísica. A seu ver: A perspectiva, portanto, há de ser anteposta a todo o tratamento e disciplina humana, no campo da qual a linha radiosa é complicada por modo de demonstração, na qual se encontra a glória não tanto da Matemática, quanto da Física, com flores de uma e de outra (Ibid., p. 170, tradução livre).20 É possível perceber a forte presença da Astrologia no pensamento e na arte de Leonardo, como ela permeia sua visão de mundo e sua prática. No tópico “SUPERIORITÀ DEGLI ANIMALI SULL'UOMO”, do capítulo Principii Generali, que compõe La Scienza, ele expõe que “[o] homem tem um grande discurso, do qual a maior parte é vão e falso; os animais têm pouco, mas é útil e verdadeiro; e melhor é a pouca certeza, que a grande mentira” (Ibid., p. 172, tradução livre).21 O autor muito provavelmente está tratando da Astrologia, ou em alguma medida fazendo alusão a este saber, quando defende os animais no trecho mencionado acima e em muitos outros, já que as constelações em sua maioria têm nomes e formas de animais. O livro é composto de muitas sentenças aforísticas. Leonardo expõe, por exemplo, que “il muto è maestro del pittore” [o mudo é maestro do pintor] (Ibid., p. 140), que “la pittura è una poesia muta [a pintura é uma poesia muda]” (Ibid., p. 106), e que “la pittura è un discorso fugurato [a pintura é um discurso figurado] (Ibid., p. 130). Há uma figura que se repete no livro e que ilustra o início das unidades La Natura, L’Uomo, L’Arte, La Scienza, Profezie (Figura seguinte). Essa figura faz claramente uma alusão 19 “Questo scriver sì distintamente del nibbio par che sia mio destino, perchè ne la prima ricordazione della mia infanzia e' mi parea che, essendo io in culla che un nibbio venissi a me, e mi aprissi la boca colla sua coda, e molte volte mi percotessi com tal coda dentro alle labbra.” (DA VINCI, 1928, p. 3). 20 “La Prospettiva adunque è da essere preposta a tutte le trattazione e discipline umane, nel campo della quale la linia radiosa è complicata dai modi delle dimostrazioni, nella quale si truova la gloria non tanto della Matematica, quanto della Física, ornata co' fiori dell'una e dell'altra.” (Ibid., p. 170). 21 “L'uomo ha grande discorso, del quale la più parte è vano e falso; li animali l'hanno piccolo, ma è utile e vero; e meglio è la piccola certezza, che la gran bugia.” (Ibid., p. 172). 186 à Astrologia, como também aos números figurais, em alguma medida. No último capítulo do livro, cujo título é Novelle e Bizzarrie [Histórias e Curiosidades], tem um subtítulo Novelle, embora não tenha um com Bizarrie. Há sim o subtítulo Viaggio in Oriente, no qual o autor trata do Monte Tauro e do rio Eufrates, e termina o livro fazendo menção ao Infinito como “aquilo que não é dado” (DA VINCI, 1928, p. 267, tradução livre). Em ambas as figuras que apresentam os capítulos há sempre a representação de uma figura híbrida, em uma delas parte homem e parte animal e em outra parte homem e parte vegetação. Figura 55 – Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci (DA VINCI, 1928, p. 23, 63, 97, 157, 225) É clara a posição de Leonardo acerca das ciências de seu tempo. Ele opta pela Astrologia e pela Perspectiva em detrimento da Metafísica e da Alquimia, por exemplo. Segundo ele, “[n]enhuma parte é na Astrologia, que não seja o ofício das linhas visuais e Perspectiva, filha da Pintura - porque é o artista, que, por necessidade de sua arte, faz nascer a Perspectiva, e que não pode ser feito sem linhas” (DA VINCI, 1928, p. 180, tradução livre)22. Pelo que ele expõe, percebe-se que em seu entender a Astrologia e/ou a Perspectiva não são propriamente criações 22 “Nessuna parte è nell'Astrologia, che non sia ufficio delle linee visuali e della Prospettiva, figlioula dela Pintura - perchè il pittore è quello, che, per necessitá della sua arte, ha partorito essa Prospectiva, e no si può fare sanza linee” (DA VINCI, 1928, p. 180). 187 da mente, mas que elas se reportariam em alguma medida a “linhas já traçadas”, embora haja sempre alguma contribuição daquele que percebe, que muda de perspectiva. Figura 56 – Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci (DA VINCI, 1928, p. 269) Figura 57 – Imagem presente no livro Prose, de Leonardo da Vinci (DA VINCI, 1928, p. 270) Leonardo se coloca “contro gli alchimisti” [contra os alquimistas], considerando-os “[i]ntérpretes mentirosos da natureza [que] dizem que o mercúrio é semente comum em todos 188 os metais, sem se lembrar que a natureza das sementes varia de acordo com a diversidade de coisas, que se pretende produzir no mundo” (DA VINCI, 1928, p. 180, tradução livre)23. Ou seja, ele se opõe aos alquimistas por considerar que eles partem sempre de fundamentos abstratos, pode-se dizer, sem considerar muitas vezes o que se lhes apresenta a natureza. No entanto, o autor - que utilizou, ao produzir suas pinturas, as técnicas Chiaroscuro [luz e sombra ou claro/escuro] e Sfumato (algo como um esfumaçado, onde não dá muito pra saber ou identificar a fronteira entre tonalidades de cor, ou de luz e sombra), e que segundo Feyerabend “não pinta para observadores de um olho só ou que mantenham seu olho em uma posição fixa” (FEYERABEND, 2006, p. 140) - também faz referência em suas obras à metafísica, como quando faz menção ao triângulo retângulo ou triângulo pitagórico no quadro A Última Ceia, por exemplo. Pode-se perceber que há algo como uma linha que partindo do canto superior do quadro, tanto do lado claro como do lado escuro, divide o retângulo formado pelo quadro em dois triângulos retângulos, e que as linhas se interceptam justamente na face do Cristo representado ao centro no quadro. Figura 58 – Imagem do quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci 23 “I bugiardi interpreti di natura affermano lo argento vivo essere comune semenza a tutti i metalli, non si ricordando che la natura varia le semenze, secondo la diversità delle cose, che essa vuole produrre al mondo” (DA VINCI, 1928, p. 179). 189 Diga-se, de passagem, que Leonardo não foi o único a pintar A Última Ceia, destaque- se tambem o quadro, de mesmo nome, pintado por Albrecht Dürer (Figura abaixo). Colin Ronan, e, seu livro História Ilustrada da Ciência, traça semelhanças e diferenças entre os pintores24, sendo possivel que se perceba uma disputa, em alguma medida, entre estilos e tradições acerca de temas semelhantes e/ou relacionados, o que pode ser evidenciado mediante a percepção de muitas referências presentes em ambos os quadros. Figura 59 – A Última Ceia, de Albrecht Dürer 24 “[Para Leonardo] ter o necessário para as suas necessidades parece ter sido sua única ambição material. Nisso ele foi muito diferente de seu contemporâneo mais jovem, Albrecht Dürer. Nascido em Nuremberg, em 1471 e, portanto, quase vinte anos mais moço que Leonardo da Vinci, Dürer também estava convencido de que a ‘nova’ arte da Renancença devia basear-se na ciência, embora desse mais ênfase à matemmática, pois sua lógica... até quarenta anos antes”(RONAN, 2001, p. 17). 190 Pelo exposto é possível perceber que arte e ciencia não eram algo tão separados assim, como muitas vezes se considera. Temas das ciências não só são retratados nas obras de arte, como também se beneficiam, são retroalimentadas em termos de significado, já que a arte é uma produção heuristica, cria em alguma medida realidades. No livro Princípios de estática, de Simon Stevin (1586), vê-se a referência tanto aos caracóis presentes nos livros de Theon, Kepler, Galileu e Rocco e demais pensadores que o antecederam, como à geometria pitagórica, aos números figurais, e à metáfora do espelho. Sobre a inscrição “O que parece ser uma maravilha não é uma maravilha”, vê-se o que possivelmente é uma alusão à incomensurabilidade. Note-se ainda que o triângulo representado na figura não tem o ângulo reto. Representação semelhante é encontrada em muitas outras obras da época e contemporâneas. Figura 60 - Imagem presente em Princípios de estática, de Simon Stevin (1586) – (RONAN, 2001, p. 53) 191 É possível concluir, embora não se possa traçar uma linha tão nítida, que há diferenças entre Astrologia e Alquimia, ou uma querela entre seus seguidores. Paracelso, em A chave da Alquimia – obra formada por doze capítulos, distribuídos em três seções (Livro dos Prólogos, Livro das Entidades e Livro dos Paradoxos), no qual se misturam conhecimentos pagãos com não-pagãos (paradoxos) -, considera que “[os] astros com efeito não ocupam nenhuma parte do corpo e nem lhe infundem temperamentos, calor, natureza ou substância” (PARACELSO, 1973, p. 52), embora defenda a existência, do que ele chama, entidade astral, que em alguma medida, se pode considerar, está relacionada aos astros e/ou à astrologia.25 25 “Devem então admitir a entidade astral como aquela coisa indefinida e invisível que mantém e conserva nossa vida, assim como a de todas as coisas no universo dotadas de sentimento e que provém (profluit) dos astros. [...] Em compensação é preciso que o corpo tenha algo que impeça sua consumação pela vida e que o faça perdurar (perduret) em sua própria substância. Este ‘algo’ de que estamos falando é o mesmo que emana dos astros ou do firmamento: justamente a entidade astral” (PARACELSO, 1973, p. 61), 192 Figura 61 – Índice de A chave da Alquimia, de Paracelso (PARACELSO, 1973). Expõe ainda o seguinte: Dirão com muita verdade que se não existisse o ar todas as coisas cairiam no chão e que morreriam por asfixia todas as que tivessem vida própria. Devo dizer sobre isto que ainda há algo que sustenta o corpo e que o mesmo corpo alimenta, que se acabasse seria tão insuportável como a perda do ar. Este “princípio” que faz viver o firmamento, que conserva e acalenta o ar e sem o qual se dissolveria a atmosfera e morreriam os astros, chamamos de M” (PARACELSO, 1973, p. 61 – 62). Algo no mínimo curioso é o fato de uma das teorias hegemônicas atuais, que busca uma teoria unificada para a Física, se chama justamente teoria M. Abordar-se-á melhor isso no próximo tópico. Sobre ar, “princípio M” e entidade astral, Paracelso pontua ainda: Pode-se afirmar que se todos os firmamentos deixassem de existir o ar continuaria existindo, pois somente por falta de ar poderia perecer o mundo e o firmamento inteiro, incluindo o homem e todos os elementos. Concluímos assim que a universalidade das coisas se sustenta no ar e pelo ar (PARACELSO, 1973, p. 63 - 64). Percebe-se que os alquimistas estavam em busca de um elemento unificador, assim como os Pré-socráticos - para Tales a água era esse elemento, já para Anaximandro era um elemento ideal, o apeyron. Paracelso entendia que “em verdade existem duas classes de seres, uma composta pelo céu e a terra (macrocosmos) sendo a outra, o homem (microcosmos)” (Ibid., p. 97). Embora considerasse “que a virtude e o poder do alquimista se encontram dentro do homem” (Ibid., p. 85), não descartava a existência da entidade espiritual, tendo se dedicado à anatomia e à fisiologia dos espíritos, e acreditando no castigo divino sobre as doenças, já que, segundo seu entendimento, “[u]ma vez que o homem e todas as criaturas do mundo estão submetidas à vontade divina, compete a Deus fazê-las felizes ou desgraçadas” (Ibid., p. 147). Comumente se vê falar que a Alquimia ou os alquimistas buscavam o elixir da longa vida e a pedra filosofal, ou seja, que estavam à busca por desvendar os mecanismos que regem a natureza, o que possibilitaria o domínio da transmutação dos elementos, da realidade. Paracelso, em alguma medida em consonância com isso, considera que há cinco entidades que 193 estão relacionadas às doenças26: Entidade Astral (De Ente Astrorum), Entidade do Veneno (De Ente Veneni), Entidade Natural (De Ente Naturali), Entidade Espiritual (De Enti Spirituali), Entidade de Deus (De Ente Dei). Chamando a atenção para a arte, baseada na experiência, em contrapartida ao que nomeia como fantasia, faz uma crítica àqueles que considera como “charlatães que andam por ai vestidos de vermelhos (purpuratus phantasta)” (PARACELSO, 1973, p. 154). Ele considera, no entanto, que “o enxofre, o mercúrio e o sal são as três primeiras substâncias que durante a vida permanecem ocultas e que com a separação da vida se revelam, e se manifestam” (Ibid. p. 170). Pode-se perceber que, embora se posicione contra a teoria dos quatro humores e contra os hermetistas, Paracelso não estava se baseando apenas na experiência ao fazê-lo. Há algo de oculto e inexplicável nesse entendimento, assim como há algo de dogmático na seguinte colocação: Aprendam pois a alquimia, também chamada de spagíria, porque ela lhes ensinará a distinguir o falso do verdadeiro. Com ela possuirão a luz da natureza e poderão provar todas as coisas claramente, dissertando sobre elas de acordo com a lógica e não pela fantasia, de onde nada de bom pode sair. A não ser coisas assim como essas histórias infundadas e artificiais sobre quatro humores, impróprias de um gênio rico e brilhante (PARACELSO, 1973, p. 177). Como se vê ele não está tão livre assim da fantasia, já que há uma certa megalomania ao defender a alquimia. Tampouco ele pode garantir que a fantasia seja algo sem serventia, já que ele admite, por exemplo, que sendo “o corpo é o domicílio da alma, a teologia e a medicina devem caminhar juntas, iluminando-se mutuamente” (Ibid., p. 195) – afinal, como se pode separar por completo simbolismos e fantasias? -, não tendo ele como garantir tais afirmações, a não ser mediante sua fé e crença nessas “verdades”. Muitas são as semelhanças entre o pensamento de Paracelso e o de Giordano Bruno, sendo muitas vezes o pensamento deste considerado um complemento das ideias daquele (PARACELSO, 1976). No entanto se pode traçar diferenças entre seus pensamentos, como veremos a seguir. 26 “Descobrimos nele [parênteses sobre as cinco entidades, ou seja, a segunda unidade] as entidades de onde vem todas as doenças. E agora vamos começar verdadeiramente a nossa obra. Ela será constituída de cinco partes. Os médicos naturalistas e os astrólogos sentirão necessidade de nos criticar ou menosprezar. Mas eu digo que anda – nem os escritos dos teólogos – conseguirá perturbar o nosso espírito nem tirá-lo do caminho que tomamos, já que até agora (se vamos falar dos fundamentos e dos verdadeiros princípios) não encontramos grandes coisas nas doutrinas defendidas por eles” (PARACELSO, 1973, p. 153). 194 Algo que liga o pensamento de ambos é a noção de concórdia, por exemplo, e que os liga a muitas outras tradições e doutrinas. Para Paracelso, “a concórdia existe onde há paz, acabando esta e a própria vida tão logo a concórdia se dissolva” (PARACELSO, 1973, p. 174 - 175). Antes de ver a posição de Bruno acerca disso, trate-se da própria noção de magia feita por ele em seu Tratado da magia, já que se pode considerar, há um caráter mágico inevitável na noção de concórdia. Ao considerar que “existem tantos sentidos da palavra magia quanto tipos de magos” (BRUNO, 2008, p. 29), ele enumera dez acepções para o vocábulo. Ainda segundo Bruno, mago era sinônimo de sábio para várias tradições: egípcios, druidas, indianos, hebreus, persas, gregos e romanos. Há vários tipos de magia: magia natural, magia matemática, magia transnatural ou metafísica ou teurgia, e profecia, dentre outros. Após mencionar que há no livro cinco do Tópicos de Aristóteles, “um significado mais nobre e elevado” para o termo magia, e que é algo bastante vulgar a ligação desse saber apenas com a noção de um demônio maléfico e malvado – acepção corrente entre as crendices do povo – o autor expõe o seguinte: “Em filosofia e entre os filósofos, esta palavra mago designa um homem que alia o saber ao poder de agir. [...] Uma vez feita essa distinção preliminar, concebemos a magia enquanto tripla: divina, natural e matemática” (Ibid., p. 35). Aos três sobreditos graus da magia correspondem três mundos: o arquetípico, o físico, e o racional. No arquetípico, encontram-se a amizade e a luta; no físico, o fogo e a água; no matemático, a luz e as trevas. A luz e as trevas têm origem no fogo e na água, o fogo e a água na concórdia e na discórdia; em consequência, o primeiro mundo produz o terceiro por intermédio do segundo, e o terceiro reflete-se através do segundo no primeiro (BRUNO, 2008. p. 39). Paracelso considera que há três estágios também, alma, corpo e saber (teologia, medicina), sendo que pela discórdia eram liberadas as três substâncias ocultas, o mercúrio, o enxofre e o sal. Uma outra semelhança em termos de quantidade entre Paracelso e Bruno: assim como há cinco entidades relacionadas às doenças para o primeiro (indo da entidade natural à entidade de Deus), e há cinco vínculos dos espíritos para o segundo (indo da matéria à faculdade intelectiva ou intelecto). Ainda segundo Bruno, requer-se do mago uma tripla faculdade: física, matemática e metafísica. Sobre a primeira repousa a base, sobre a segunda, os degraus, e sobre a terceira, o cume da escada. A primeira contém a razão dos princípios ativos e passivos segundo o seu gênero; a segunda, a razão dos tempos, dos lugares e das proporções; a terceira, a razão dos princípios e das causas universais. É uma tripla corda que dificilmente se romperia (Ibid., p. 93). 195 Nota-se nesse ponto, como em muitas outras exposições do autor, uma ligação do pensamento de Bruno com o Neoplatonismo, sobretudo no que se refere ao entendimento de que se pode ascender ao absoluto, ao inominável, a Deus, à verdade e de lá voltar, ou seja, que é possível ascender à luz por meio de um certo trajeto e número de passos a seguir, assim como também seria possível voltar seguindo o mesmo número de passos. Embora tal entendimento já esteja presente em Platão, em alguma medida, é com o Neoplatonismo do início da era cristã, difundido na Idade Média e no Renascimento que tal entendimento será aprofundado - a Cabala, mediante as hierarquias angélicas, também tem relação com esse entendimento. Várias são as obras que expõem que seriam vinte e um, ou por volta disso, os estágios desse trajeto de ascensão e volta – Apocalipse de João e La Celestina, por exemplo, remetem a esse número em termos de capítulos e atos, respectivamente. Como se viu ao tratar do pensamento de Theon de Smirna, o número vinte remete a doutrinas ainda mais antigas. No seu Tratado da magia, Bruno expõe o seguinte: Passemos agora a questões mais precisas. Têm os magos por axioma que se deve, em cada ato que tivermos ante os olhos, atentar na influência que Deus possui sobre os deuses; os deuses sobre os corpos celestes ou astros, que são divindades corporais; os astros sobre os demônios que são guardiões e habitantes dos astros – entre os quais se conta a Terra; os demônios sobre os elementos; os elementos sobre os corpos compostos; os corpos compostos sobre os sentidos; os sentidos sobre o ânimo; e o ânimo sobre todo o ser vivente: assim se desce na escala. Volta então o ser vivo a subir por meio do ânimo até aos sentidos, pelos sentidos até os corpos compostos, pelos corpos compostos até aos elementos, através destes até aos demônios, dos demônios aos elementos, dos elementos aos astros, dos astros aos deuses incorpóreos, de substância ou corporeidade etérea, através destes até a alma do mundo ou espírito universal, e deste último até à contemplação do Uno, do Simplíssimo, do Excelente, do Altíssimo, Incorpóreo, Absoluto, Que a si Mesmo se Basta. Eis como se desce de Deus, pelo mundo, até ao animal, e como o animal volta a subir pelo mundo até Deus (BRUNO, 2008, p. 37 – 38). Muito provavelmente ele está fazendo referência no trecho supracitado ao sistema de mundo de Nicolau Copérnico. Sendo o trajeto mencionado aquele que vai das estrelas fixas até o sol e deste de volta às estrelas fixas. Os estágios mencionados por Bruno na escala coincidem, por exemplo, com as órbitas dos planetas. 196 Figura 62 – Imagem do sistema de mundo proposto por Nicolau Copérnico - (RONAN, 2001, p. 55) O pensamento de Bruno parece também ter relação com a Astrologia, sobretudo no tocante ao viés de perspectiva que esta comporta, sendo aquele nolano muito ligado à noção de imagem, fazendo ele ainda muita referência nas suas obras a figuras animalescas diversas. Em nota, Rui Tavares, tradutor da obra do latim para o português, menciona que a “repetição do termo ‘elementos’ na escala encontra-se assim na edição crítica de Tocco &Vitelli” (Ibid., p. 38). Possivelmente a repetição pode ser motivada por considerar o número de passagens igual a vinte um no trajeto ou escala, o que aproximaria o pensamento de Bruno do fenômeno neoplatônico cristão de sua época. Embora Bruno pareça defender que há um conhecimento mais refinado, a verdade, e que essa deveria ser mantido fora do alcance da maioria27, suas teses sobre infinito parecem 27 “Toda ciência pertence ao conjunto das coisas boas; assim escreveu Aristóteles no prólogo do De anima, com o que concordam Tomás [de Aquino] e outros teólogos dos mais contemplativos. Convém, contudo, manter tais matérias fora do alcance do profano, do celerado e da multidão: pois nada de bom existe no mundo que uma raça de gente ímpia, sacrílega e naturalmente criminosa não consiga usar mais para ruína que para vantagem dos nossos semelhantes” (BRUNO, 2008, p. 40). 197 sinalizar para algo diferente. Em Sobre a causa, princípio e unidade - texto reunido juntamente com outros no livro Mundo, Magia, Memória, escrito na forma de diálogo, onde Teófilo representaria Bruno -, tem-se presente, por exemplo, as seguintes questões, trazidas à tona pelas indagações iniciais do personagem Dicsono Arelio: DICSONO ARELIO – É isso que diz, Teófilo, que tudo que não é primeiro principio nem causa primeira tem princípio e causa? TEÓFILO – Sem dúvida nem controvérsia alguma. DICSONO ARELIO – Crês, portanto, que quem conhece as coisas que tem causa ou princípio, conhece a causa e o princípio? TEÓFILO – Não facilmente; dificilmente, mesmo em seus vestígios. DICSONO ARELIO - Mas, como entender que as coisas que têm causa e principio primeiros e próximos, são conhecidas, se, segundo o ponto de vista da causa eficiente – que é uma das causas que tomam parte do conhecimento real das coisas – eles permanecem ocultos? TEÓFILO – Admito que é coisa fácil construir um método demonstrativo, mas demonstrá-lo é difícil. É muito fácil ordenar as causas, circunstâncias e métodos doutrinais, mas depois nossos metodólogos e analistas aplicam de forma defeituosa seu corpo, seus princípios metodológicos e sua arte das artes (BRUNO, 2007, p. 71 – 72, tradução livre). Estes primeiros diálogos tratam da questão da causa e princípios primeiros e da relação entre ambos. Logo de início, Teófilo chama a atenção para o fato de que se considerando que princípio e causa primeira são um todo, são Hum, isso é não facilmente cognoscível, mesmo em se tratando de seus vestígios. Segundo o expositor, isso seria ocasionado por um mau entendimento com relação aos métodos e a seu real limite de utilização, à sua aplicação inapropriada. Acerca de tais questões continuam: DICSONO ARELIO – [...] em primeiro lugar, já que se acostumara a dizer causa e princípio, quero saber se para você estas palavras são sinônimas. TEÓFILO – Não. DICSONO ARELIO – Então, que diferença há entre um e outro termo? TEÓFILO – Respondo que, quando dizemos que Deus é primeiro princípio e causa primeira, entendemos a mesma coisa com pontos de vistas diferentes; quando na natureza dizemos princípios e causas, entendemos coisas diversas com pontos de vista diversos. Dizemos Deus primeiro princípio, no sentido de que todas as coisas são depois dele, de acordo com certa ordem de prioridade e posteridade, ou de acordo com a natureza, ou a duração ou a dignidade. Dizemos que Deus é primeira causa no sentido de que todas as coisas são distintas dele, como o efeito o é daqueles que são afetados, a coisa produzida do que o produz. E estes pontos de vista são diferentes porque nem tudo que é anterior e mais digno é causa daquilo que é posterior e menos digno; nem 198 tudo que é causa é anterior e mais digno que aquilo que é causado, o que nos parece razoável (BRUNO, 2007, p. 76 – 77). Aqui está presente um importante tema do pensamento de Bruno: a relação do Um com a multiplicidade. Interessante destacar o fim da citação “nem tudo que é anterior e mais digno é causa daquilo que é posterior e menos digno; nem tudo que é causa é anterior e mais digno que aquilo que é causado, o que nos parece razoável”, no diálogo acima. Há um certo desmembramento nesse entendimento, um certo desprendimento, algo como um intervalo, que vai permear o pensamento de Bruno, sendo inclusive a base de seu conceito de infinito, ou melhor de seu questionamento acerca do infinito. Ele mantém a ligação, inclusive a noção de causa, mas quebra a hierarquia e/ou a obrigatoriedade de se ver apenas em um sentido. Em certo ponto da obra os personagens passam a tratar de questões relacionadas às faculdades vegetativa, sensitiva e intelectiva, evidenciando a ligação do pensamento de Giordano com as proposições feitas por Raimundo Lúlio, por exemplo. À referência ao pensamento de Lull em praticamente toda a obra de Bruno (YATES, 1964), sobretudo às suas rodas combinatórias e à arte da memória (Figuras abaixo). Figura 63 – Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 55) 199 Figura 64 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 60) É possível perceber também que tanto nas obras de Bruno como de Lúlio há referência à perspectiva (Três figuras seguintes). 200 Figura 65 – Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 65) 201 Figura 66 – Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 28) 202 Figura 67 – Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 34) Como pode ser notado, as figuras aqui reproduzidas não são da obra De magia ou Tratado da magia, mas de outras. Elas foram reproduzidas pelo tradutor e organizador por questão de ajudar no entendimento da obra, ou por estar relacionada com esta, como ele expõe na introdução. Ao todo são vinte e uma figuras, que de uma forma geral são uma mescla de arte da memória, arte da perspectiva, geometria, matemática, fazendo menção a animais, ao Sol e conhecimentos diversos - como se pode perceber nas figuras que integram o livro Cantos a Circe e nas demais figuras anteriormente apresentadas e nas seguintes, presentes originalmente em De umbris idearum. 203 Figura 68 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 37) 204 Figura 69 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 42) Em maior número, contando ao todo nove figuras, as que foram retiradas de Ars reminiscendi, que poderia ser traduzido por Arte da reminiscência (figuras abaixo). Embora não se descarte a possibilidade de ver tais figuras pelo viés da perspectiva, elas têm um caráter mais geométrico que as anteriores. Na primeira figura abaixo, por exemplo, pode-se perceber a presença tanto de quadros, círculos e retângulos, como de triângulos isósceles, de triângulos retângulos e de paralelogramos, como também uma menção ao pitagorismo. As figuras são bastante simétricas, assim como as demais da série reminiscências. A figura onze, a segunda mostrada abaixo, possivelmente faz alusão ao mapa astral e aos quatro elementos (embora não necessariamente se restrinja a isso) - tratados, diga-se de passagem, por Platão em suas obras - e a última a algum código referente à arte da memória. 205 Figura 70 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 67) Figura 71 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 72) 206 Figura 72 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 80) A figura abaixo, que presente originalmente em Ars reminiscendi, mostra um retângulo sendo dividido em dois triângulos retângulos por uma “faixa” na qual estão presentes as vinte e duas letras do alfabeto hebraico, com a numeração correspondente – tanto ao número de letras como aos raios que brotam do ângulo. Como é visível, em cada ângulo reto tem algo como um sol, de onde saem raios. É possível perceber ainda que os ângulos, e os raios advindos de cada um deles, são diferentes. 207 Figura 73 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 103) As últimas figuras apresentadas no livro De magia são originalmente de De imaginum compositione, A composição das imagens. A primeira imagem abaixa, pode-se considerar, faz menção à formação de pirâmides, podendo ser tanto de base quadrada como de base triangular, uma possível alusão de Bruno ao Egito antigo. É também minimamente clara a ligação com o neoplatonismo. Os triângulos não possuem lados iguais, podendo-se assim, ao percorrer a figura, notar outras simetrias e assimetrias diversas. Essa figura, diferentemente das demais acima, dá a noção de volume mediante perspectiva, remetendo a algo como uma pedra entalhada. 208 Figura 74 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 113) Já, na última figura transcrita, a figura vinte e um, se vê uma grande quantidade de retas, por meio das quais se pode formar muitas figuras e imagens. Tem-se um retângulo, na lateral maior há quatro pontos de onde saem retas, já na lateral menor do retângulo, há três pontos de onde saem retas. Há ainda três pontos na região interna do retângulo por onde podem passar retas, ou apenas se ligar a esses pontos. Como pode ser visto, dos pontos localizados nos vértices do retângulo, considerando todos os pontos aos quais as retas teriam alcance, só se pode traçar cinco retas. Já dos dois outros pontos de cada lado da lateral maior, se podem traçar seis retas, e dos pontos localizados nos pontos médios das laterais menores, se pode traçar sete retas. Das figuras regulares que se pode observar, destaque-se, por exemplo, a formação de sete quadrados pequenos, que juntos formam dois quadrados maiores que se interceptam, tendo um dos quadrados pequenos em comum. Pode-se observar ainda que, os lados desse quadrado pequeno que é comum aos dois quadrados maiores, e que tem como ponto central o ponto N, coincidem com os catetos menores de quatro triângulos retângulos, formando algo como uma estrela de quatro pontas, em algum sentido guardando semelhança com a configuração da imagem 209 mostrada anteriormente acima. Pode-se seguir formando imagens e figuras, dependendo da perspectiva que se tenha. Figura 75 - Imagem presente em Tratado da magia, de Giordano Bruno (BRUNO, 2008, p. 120) Além da referência ao pitagorismo e da problemática envolvida com a formação do triângulo, pode-se perceber que Bruno também tinha conhecimento da numeração figural, que remete também à tradição pitagórica - como nos evidenciam as figuras presentes no livro Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates. Em De magia, ele trata de analogia e de vínculos (que são apresentados em número de vinte) “a começar por aquele que tem origem na tripla razão do agente, da matéria e da aplicação” (BRUNO, 2008, p. 97). Na imagem abaixo, tem-se duas figuras. Tanto no centro das três estrelas que estão do círculo da figura à esquerda, como no centro e em volta das quatros estrelas presentes na figura à direita (há ainda duas flores completando a figura), pode-se perceber uma formação feita com 210 pedras, número figural – em uma das três estrelas à esquerda as pedras estão organizadas de forma diferente das demais. Figura 76 – Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates (YATES, 1964, p. 345) Na figura seguinte, pode-se também observar referências aos números figurais, mas também a muitos outros conhecimentos. Nota-se a presença da formação de imagens por luz e sombra e pela sobreposição das pedras, pelo negativo, pelos intervalos e espaços entre as pedras. Há também a presença de flores e outras figuras. A imagem à esquerda, no canto alto, tem-se um quadrado meio deformado que se subdivide por meio de retas inscritas em vários outros quadrados menores. Destaque-se a figura do canto direito baixo. Nesta há no meio um instrumento musical que acaba por dividir o quadrado em duas partes triangulares. Nessa figura há ainda rosas, flores e símbolos semelhantes aos símbolos dos naipes do baralho. As três primeiras figuras tratam, respectivamente, de mente, intelecto, amor e vida, sendo a última figura aquela cuja legenda é Zoemetra, a figura 11d. 211 Figura 77 – Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates (YATES, 1964, p. 342) Símbolos semelhantes a alguns destes estão presentes na figura seguinte e, em alguma medida, nas demais apresentadas a seguir. Giordano construiu inclusive um tarô. O tarô tem 212 sua origem atribuída aos egípcios, embora se reconheça a influência de muitos outros povos e culturas, cuja origem está imersa em mistérios e incertezas, cabendo constantes novas interpretações. Fora construído na forma que conhece hoje no fim da Idade Média para o Renascimento. Incialmente, para ser exposto, afixado em paredes (como se pode ver pelos buracos que possuem os exemplares), e só depois foi transposto para a forma de cartas. Nas imagens do Tarô de Ferrara, um dos primeiros construídos naquela época, faz-se, por exemplo, muita referência a figuras geométricas e questões de natureza metafísica e gnóstica (KAPLAN, 1978). Há também a presença nessa figura de imagens de luas acopladas de tonalidades diferentes, flores e corações. Linhas onduladas formam a figura central, que lembra uma taça pendida, fazendo, pode-se considerar, alusão a uma luneta ou telescópio, a temas e concepções astronômicas. Figura 78 – Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates (YATES, 1964, p. 343) 213 Na imagem seguinte há ainda a referência a figura geométricas, como hexágonos, pentágonos, flores, serpentes e símbolos diversos. Pode-se notar ainda uma natureza um tanto errante das retas presentes na figura acima à esquerda, numerologias, menção à inclinação e ao infinito nas demais figuras. Figura 79 – Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates (YATES, 1964, p. 344) 214 E na última figura, do bloco daquelas apresentadas por Yates, há em alguma medida referência à perspectiva, ao sol e à lua. Há em ambas as figuras, tanto na direita como na da esquerda, alusão ao número três, seja pela presença dos três sois na figura à esquerda, seja pelo triângulo na figura à direita. E as figuras foram extraídas, como é informado, de uma obra cujo título é Mônoda, número e figura, evidenciando essa inter-relação que há entre número e figura, e destes com a noção de mônada, algo do qual já se tratou aqui (THEON, 1979; ALMEIDA, 2003). E ainda há uma alusão ao triângulo pitagórico na figura da direita. Figura 80 – Imagem presente em Giordano Bruno e a tradição hermética, de Francis Yates (YATES, 1964, p. 345) Giordano reiteradas vezes refere-se ao número três. Como se viu, para este estudioso são três mundos, três faculdades, o que o faz concluir que a realidade é formada por três planos, o arquetípico, o físico e o racional (BRUNO, 2008), tendo isso relação com as faculdades mencionadas. E ainda, para ele: 215 A natureza é dupla: intrínseca e extrínseca. A natureza intrínseca é, em si mesma, dupla: a matéria, ou sujeito, e a forma, com a sua virtude natural. A natureza extrínseca é também ela dupla: é tanto a imagem da natureza, vestígio, sombra ou luz, como aquilo que sobra ou está à superfície do objeto (como o calor e a luz no Sol e noutros corpos quentes), e ainda aquilo que do sujeito emana e se escapa (como a luz, que, espalhada pelo Sol, se encontra nos corpos iluminados, e o calor, que, associado à luz no Sol, se encontra também nos corpos aquecidos). [...] a causa universal, que não diz respeito a um sujeito mais do que a outro e que, tendo em vista um efeito particular, não usa de um determinado sujeito que para tal não tenha sido usado antes; permanecendo esta causa a mesma, e mantendo-se o seu poder imutável, é em razão da diversidade da dependência e organização da matéria que ela produz efeitos diversos, ou mesmo contrários. Basta para tal um único e simples princípio eficiente: assim como um único sol – único calor, luz única -, através de um jogo de conversão e aversão, de aproximação e afastamento, por ação mediata ou imediata, faz o inverno e o verão, faz as disposições contrárias e a sucessão delas (BRUNO, 2008, p. 40 – 41). Essa noção de causa que cria um par de contrários, ou de efeitos diversos, está presente na teoria newtoniana de atração dos corpos, como também em alguma medida nas recentes teorias físicas, que pontuam a existência de matéria e de antimatéria. O fato de considerar que há uma duplicidade inerente à natureza, de que a causa universal não diz mais respeito a uma coisa do que a outra, possibilita se pensar causa como algo infinito, que comporta um movimento, um distanciar-se, ou algo de intervalar. Em Sobre o infinito, o universo e os mundos (Filoteo é agora o porta-voz da filosofia de Bruno, semelhante a Teófilo, personagem dos diálogos apresentados anteriormente), tem-se o seguinte diálogo, bastante elucidativo acerca da concepção bruniana de infinito: ELPINO – Como é possível que o universo seja infinito? FILOTEO – Como é possível que o universo seja finito? ELPINO – Pretendeis que esta infinitude seja demonstrável? FILOTEO – Pretendeis que esta finitude seja demonstrável? ELPINO – Que classe de dilatação é esta? FILOTEO – Que classe de limitação é esta? [...] FILOTEO – Não há sentido que veja o infinito, não há sentido a que se exija essa conclusão, porque o infinito não pode ser objeto do sentido; e por isso quem busca conhecê-lo por via do sentido é semelhante àquele que quisesse ver com os olhos a substância e a essência; e quem o negasse - por não o ser sensível ou visível -, viria a negar sua própria substância e ser (BRUNO, 2007, p. 167 – 168). O infinito seria assim algo como uma relação, um intervalo que não se “inscreve” no tempo, nem no espaço, embora seja inerente a estes. Mas também tem algo de existencialidade 216 imagética, pois o infinito, na fala de Bruno, parece estar entre nós. Se pode questionar inclusive qual seria a relação do pensamento de Giordano, sobre o infinito e múltiplos mundos, com as teorias indianas presentes em textos antigos, por exemplo. Este pensador está sempre chamando a atenção para o caráter indizível de certas coisas, sendo uma das evidências de sua ligação com os antigos, com o platonismo e com o neoplatonismo, e como muitas outras tradições. A proposição da existência de multiplos e infinitos mundos, pode-se considerar como sendo uma consequencia das teses expostas até este momento acerca do infinito. E que, embora Bruno considere essa perspectiva dos vários mundos (que diga-se de passagem hoje está na agenda, já que se conjectura atualmente a existência de múltiplos universos, segundo as teorias físicas contemporâneas), ele expõe isso como sendo algo possível, não há algo determianante da parte dele: FILOTEO – Como, pois, neste espaço, à par igual à grandeza do mundo - chamado matéria pelos platônicos -, se encontra este mundo, assim, outro qualquer pode estar nesse espaço e em inumeráveis espaços além deste e iguais a este (BRUNO, 2007, p. 172). Logo, a provocação feita por Bruno advém da condição material do mundo. Sendo assim, nada desconsidera que haja outros mundos. E, se não se pode garantir que esse mundo é igual a algo, por não se poder compará-lo com outro, pois teria que ao fazê-lo sair do mundo e obviamente não o posso fazê-lo, não se pode dizer com absoluta certeza que esse é o único padrão, ou único mundo. Podem exisitr muitos outros nessa mesma condição, iguais a esses inclusive. Isso é uma possibilidade advinda do caráter especulativo do pensamento de Bruno. Assim, se uma total finitude e limitação não pode ser demosntrável, isso abre a possibilidade para que se considere a noção de infinito, e consequentemente, de infinitos mundos. A noção de possibilidade ou de probabilidade, embora em alguma medida diferente desta proposta por Giordano, é uma das bases da física moderna. Algo interessante, destacável, é o fato de a imagem de Bruno ser possivelmente bem diferente daquela que se tem dele habitualmente. A imagem de Bruno exposta por Danhoni Neves é recente, e segundo ele fora apresentada por um professor da Universidade de Lund (Suécia) em 2002 (NEVES, 2004). O autor expõe que, embora não se possa garantir por completo que tal imagem (Figura abaixo) é mesmo de Giordano - por esta não estar nomeada - , tudo indica que se trata do estudioso nolano. Segundo Neves, “o ar que ele revela na pintura não permite antever a acusação de vilão herético que seus críticos e detratores lhe impuseram. De fato a serenidade parece ter-lhe sobrevivido” (NEVES, 2004, p. 203). 217 Figura 81 – Pintura considerada como sendo referente a Giordano Bruno (NEVES, 2004, p. 203) No De magia Bruno trata das noções de atividade e passividade. É exposto em vários trechos da obra que princípios ativos, qualidades ativas, operação ativa, possibilitam o surgimento de princípios, qualidades e operações passivas. Os princípios, qualidades e operações ativas, como o próprio nome faz entender, são ações primeiras, ações que fazem algo acontecer, possibilitando inclusive as suas respectivas componentes passivas. Ludwik Fleck, como já fora exposto, no seu livro Gênese e desenvolvimento de um fato científico, faz alusão e menção a muitos outros conhecimentos presentes na cultura e na história do pensamento, como alquimia e astrologia, por exemplo. Uns dos termos com os quais Fleck constrói sua argumentação em prol do caráter cultural dos conhecimentos são as concepções de acoplamento ativo e acoplamento passivo: Conhecer, portanto, significa, em primeiro lugar, constatar os resultados inevitáveis sob determinadas condições dadas. Estas condiçoes correspondem aos acoplamentos ativos, formando a parte coletiva do conhecimento. Os resultados inevitáveis equivalem aos acoplamentos passivos e formam aquilo que é percebido como realidade objetiva. O ato da constatação compete ao indivíduo (FLECK, 2010, p. 83). 218 Não é descabido considerar que há bastante semelhança entre as noções de operações ativas e passivas com as de acoplamentos ativos e passivos, propostas por Fleck. Afinal, como é dito por ele, os acoplamentos ativos são determinadas condições a serem consideradas para que se conheça ou se possa interagir com o meio, e que geram resultados inevitáveis, ou passivos. Diga-se, de passagem, que Fleck faz textualmente referência à magia, inclusive.28 Uma outra noção bem presente no pensamento de Fleck (além de muitas outras proposições), que evidencia a relação entre a ciência e esses demais conhecimentos no que toca à organização institucional e prática social, é conceito de estilo de pensamento: Tudo está conforme com o estilo de pensamento, por mais que sintamos a falta da lógica. Basta ter empatia pelo mundo de um Paracelso! Por um mundo onde cada objeto, cada acontecimento são símbolos e onde cada símbolo, cada metáfora têm um valor objetivo. Por um mundo repleto de sentido escondido, de espíritos e de poderes misteriosos. Repleto de resistência e respeito, de amor e de ódio. Como se pode viver numa realidade tão passional, tão insegura e tão perigosa a não ser acreditando em milagres? Esse milagre, o princípio mais fundamental, a vivência mais imediata de sua realidade, olha-nos de todos os cantos e de todas as lacunas de sua ciência. Ele está presente antes de cada uma das observações e surge de qualquer uma delas. Tal sistema fechado e em conformidade com o estilo não está imediatamente acessível a qualquer inovação: ele interpretará tudo conforme o estilo. O grau mais ativo da tendência à persistência dos sistemas de opinião é formado pela ficção criativa, pela objetivação mágica das ideias, ou seja, pela declaração de que os próprios sonhos científicos são realizados. No fundo, aqui também qualquer doutrina pode servir de exemplo, pois cada uma contém os sonhos dos pesquisadores. [...] Para quem essa ficção, perfeitamente moldada no estilo científico, não for suficiente para provar a existência da realização de sonhos científicos, é possível consultar “ficções mais objetivas” na forma de reproduções gráficas (Ibid., p. 74 – 75). O estilo de pensamento, tem uma componente inerentemente cultural, é o estilo que torna possível uma específica visão de mundo. Destaque-se que Fleck expõe no trecho transcrito acima que metáforas podem ter valor objetivo, dependendo do coletivo ou do estilo de 28 “As palavras e as ideias são originalmente, equivalências fonéticas e intelectuais das vivências, que são dadas de forma concomitante. Isso explica o significado mágico das palavras” (FLECK, 2010, p. 69). “A força mágica desses lemas alcança até as profundezas da investigação de especialistas: “vitalismo ” na biologia, “especificidade” na imunologia e “transformação das bactérias” na bacteriologia. Quando uma dessas palavras é encontrada num texto científico, ela não é verificada pelo seu teor lógico, ela divide imediatamente as pessoas entre amigos e inimigos [...] Qualquer teoria do conhecimento que não leva em conta esse condicionamento social de todo conhecimento é uma brincadeira (Ibid., p. 86). 219 pensamento; fala ainda de contrários, resistência e respeito, amor e ódio. Trata ainda de ficção criativa, objetivação mágica das ideias, sinalizando que “é possível consultar ‘ficções mais objetivas’ na forma de reproduções gráficas.” As suas observações sobre a existência de milagres, e da relação entre milagre e ciência em alguma medida remete ao exposto por Wittgenstein, na sua Conferência sobre Ética: Está claro que, no momento em que olhamos as coisas assim [cientificamente], todo o milagroso haveria desaparecido; a menos que entendamos por este termo simplesmente um fato que ainda não tenha sido explicado pela ciência, coisa que significa por sua vez que não temos conseguido agrupar este fato junto com outros num sistema científico. Isso mostra que é absurdo dizer que ‘a ciência provou que não há milagres’. A verdade é que o modo científico de ver um fato não é vê-lo como um milagre” (WITTGENSTEIN, 2005, p. 223). Há trabalhos já publicados que mostram as relações entre os pensamentos de Wittgenstein e Fleck (CONDÉ, 2012). Uma das coisas que os une é a ideia de que as teorias têm sempre uma base cultural. Fleck entende, por exemplo, que “[n]as ciências exatas, assim como na arte e na vida, não existe outra fidelidade à natureza, senão a fidelidade à cultura” (FLECK, 2010. p. 76), o que o faz, diga-se, romper com a separação entre natureza e cultura. Fleck, usando uma certa ironia, expõe que embora a lógica se arvore superior por lidar com coisas “mais seguras”, por não tratar de metáforas, ela não fornece razão última sobre os pontos de vista: “Para nós, o organismo não é nenhuma metáfora e coleção de símbolos, apesar de não podermos fornecer a razão lógica por que mudamos o estilo dos pontos de vista” (Ibid., p. 78). Isso liga, Fleck, Wittgenstein e Feyerabend já que ambos estão se posicionando contrariamente ao positivismo lógico do círculo de Viena - por motivos e seguindo procedimentos e considerações em pequena ou grande medida diferentes daqueles propostos por outros autores contrários ao positivismo lógico, como Kuhn e Bachelard. Fleck utiliza a história do desenvolvimento da explicação e diagnóstico da doença de sífilis para mostrar o caráter eminentemente cultural da ciência29, o que o faz considerar, de uma forma geral, que: 29 “A história da doutrina da sífilis relatada, no primeiro capítulo, deixa bem claro o quanto todo trabalho científico é trabalho coletivo. Em primeiro lugar, todos os motivos do andamento das ideias são oriundos de ideias coletivas: a doença como punição pelo desejo (Lust) – esta é a ideia coletiva de uma comunidade religiosa. A doença decorrente da influência das estrelas pertence à comunidade dos astrólogos. A metaloterapia especulativa de médicos clínicos gerou a doutrina do mercúrio. A doutrina do sangue foi tomada de empréstimo pelos teóricos da medicina da velha voz do povo (“O sangue é um líquido muito especial”). A doutrina do agente remonta, através da etapa etiológica moderna, à representação coletiva do demônio que estaria por detrás de uma doença. Todas as etapas do conceito do desenvolvimento do conceito de sifilis e não apenas as ideias principais são resultado de um trabalho coletivo, e não individual” (FLECK, 2010, p. 84). 220 Há de se objetar que ninguém possui um sentimento ou um conhecimento daquilo que seja fisicamente possível ou impossível. O que sentimos como impossível é apenas uma incongruência com o estilo de pensamento habitual. A transfromação dos elementos e outros aspectos da física moderna, sem falar da teoria das ondas da matéria, eram considerados, até pouco tempo atrás, como completamente “impossíveis”. Não existe uma “experiência em si”, à qual se teria acesso ou não. Cada ser vive as coisas à sua maneira. Vivências atuais se conectam com vivências antigas, alterando assim as condições das futuras. Cada ser, portanto, tem “experiências” no sentido de que, durante sua vida, muda a maneira de reagir. A experiência especificamente científica decorre de condições particualres, historica e socialmente dadas. Estamos sendo treinados para ela, mas ela não nos é simplesmente dada (FLECK, 2010, p. 91 -92). Expõe que a noção de impossível ou impossibilidade depende do contexto, como também que as vivências de um tempo estão sempre se relacionando com vivência antigas, e que algo que se considera como sendo atual e novo, na verdade é um mistura de vivências. Embora seja-se treinado por uma determina experiência específica, esta pode não mudar concepções mais reconditas. Em resumo (demonstrando a relação de seu pensamento com conhecimentos diversos), Fleck expõe ainda o seguinte: Da mesma maneira que não existe um “tudo”, não existe um “último”, algo fundamental que servisse de base para o conhecimento lógico. O saber, portanto, não se baseia em nenhum fundamento. A engrenagem das ideias e verdades somente se conserva mediante um movimento constante e efeitos recíprocos (Ibid., p. 95). 3.3 O contexto instaurado pela física moderna Mediante a análise de colocações de alguns autores realistas, incluindo Alan Sokal e Jean Bricmont e C. P. Snow, pode-se considerar o seguinte entendimento por parte destes: muitas conquistas epistêmicas históricas automaticamente desapareceriam e voltaríamos a um estágio anterior da humanidade, onde supostamente só existiria barbárie, caso se aderisse, por exemplo, a algo como a noção de tradições vivas, ambiguidade e troca aberta (FEYERABEND, 2006, 2007). No entanto, tal entendimento considera que as construções e entendimentos humanos produzidos até então seriam desprezados, o que não procede – se está aqui muito mais 221 de acordo com as colocações de Fleck e outros autores, considerando que, inevitavelmente, o conhecimento se constitui sempre de uma mistura de vivências antigas e novas. Tratar os universais como mediadores implica destrona-los de seu posto de verdade absoluta, de retrato fiel da realidade, embora não se desconsidere por completo sua condição de relevância e potencial explicativo. Em linhas gerais, as teorias passam a ser algo com que se pode interagir e não algo fechado. Embora possa ser dito que isso já acontece e que as revoluções são os momentos em que as teorias e concepções mudam, essas mudanças ao que parece são sempre acompanhadas da pressuposição de que a partir daquele instante a verdade fora alcançada. Ou seja, toda revolução parece trazer em sua gênese uma nova forma tirânica – no sentido feyerabendiano - de ver a realidade. No contexto de trocas abertas, em situações em que se considera a ambiguidade do que é proposto, e nas tradições vivas, tem-se presente a noção de possibilidade e não de verdade como correspondência, de mediação e não de universalidade. O entendimento de que há duas culturas, na acepção dada por Snow, é devido ao modo como se interage com a ciência ou com a história da ciência, por exemplo. Como buscar-se-á mostrar, o manguebeat é um exemplo de que essa noção de duas culturas não procede, que a cultura se apropria de terminologias das ciências, e de outros conhecimentos como Alquimia, por exemplo, bem mais do que se considera. A ciência é permeada de conhecimentos que também estão presentes em outros contextos, isso é notório, sendo uma atividade cultural que guarda muitas relações com as obras de arte, além da existência de componentes socioculturais inerentes às teorias (LATOUR, 2000, FEYERABEND, 2006, 2007, 2010, COLLINS, PINCH, 2003, FLECK, 2010). Nesse sentido, é no mínimo estranho ver o físico que lançou o Princípio da Incerteza Werner Heisenberg terminar uma de suas mais conhecidas palestras com uma frase semelhante àquela proferida por Lord Kelvin no final do século XIX (para quem os problemas da física estavam a poucos passos de serem definitivamente resolvidos), que considera a ciência como o conhecimento que vai desvendar a realidade de forma definitiva, como se conhecer fosse apenas uma atividade que busca uma resposta, e não uma atividade de em alguma medida também cria realidade ao proceder: Parece-me fascinante pensar que hoje, nos mais diversos países do mundo e com os meios mais poderosos de que dispõe a moderna tecnologia, se desenvolve uma luta para resolver em conjunto problemas colocados há dois milênios e meio pelos filósofos gregos e cuja resposta talvez venhamos a 222 conhecer dentro de poucos anos ou, quando muito, em uma década ou duas (HEISENBERG, 1969, p. 27). Em outro texto, Heisenberg defende que a busca da física quântica se ligaria mais à busca pelos elementos materiais de Platão do que aquela dos atomistas materialistas gregos (HEISENBERG, 1987), mostrando sua inclinação para considerar a não separação completa entre ciência e metafísica, por exemplo. Embora, ao preconizar esse caráter metafísico acerca da realidade, acaba considerando que há uma separação entre sujeito e objeto, que mediante um método com base na lógica e na matemática, se pode chegar à formula geral do mundo mediante a atividade intelectual: E, desde que a estrutura matemática é, em última análise, um conteúdo intelectual, podemos afirmar, usando as palavras de Goethe no Fausto, “No princípio era a palavra” – o logos. Conhecer este logos em todas as suas particularidades e com total clareza em relação à estrutura fundamental da matéria constitui a tarefa da física atômica de hoje e de seu aparelhamento infelizmente muitas vezes complicado (HEISENBERG, 1969, p. 27). É possível perceber que apesar de todas as incertezas que nos legou a física moderna, algo não se desfez para alguns estudiosos que contribuíram para suas teorias (embora não se possa necessariamente limitar seu pensamento a isso): a noção de que há uma lei geral que se precisa encontrar. No entanto, as leis agora não estão mais descrevendo a coisa em si, mas um ponto limite que não se sabe bem o que é. É notável também, por essa citação de Heisenberg, que para ele número e letra não são coisa tão separadas – e com isso ele se liga a toda a uma tradição que tem o mesmo entendimento. Destaque-se ainda a ligação que Heisenberg estabelece entre arte e ciência ao citar um trecho do Fausto. Nas palavras do autor do princípio da incerteza: [A teoria quântica] é... um exemplo maravilhoso da situação que se pode entender claramente como um estado de coisas e, contudo, saber que ela somente pode ser descrita por meio de imagens e símiles (HEISENBERG apud FEYERABEND, 2006, p. 286). Ou seja, as teorias da física moderna voltam a chamar a atenção para a imagem, para a inseparável relação entre simbolismo e abstração. A física moderna está sempre às voltas com tentavas didáticas de representar suas teorias por meio de imagens, como quando utiliza figuras para tratar do princípio da incerteza (figura abaixo), sendo que essas tentativas não são apenas formas de transposição, mas contribuem para criar entendimento sobre as teorias. 223 Figura 82 – Perspectiva, Gestalt etc.: a conhecida figura da “moça” e da “velha” Além das discussões acerca da incerteza, há ainda, diga-se de passagem, um grande debate no âmbito da Física moderna com relação ao que se chama de variáveis ocultas e variáveis ocultas não locais, por exemplo. Ou seja, há um embate atual envolvendo materialistas e idealistas, que gira em torno de noções de indistinguibilidade e indeterminação (ORTOLI; PHARABOD, 1986). Os materialistas quânticos, embora entendam (considerando-se a metáfora visual do peixe e do lago, por exemplo, proposta por Ortoli e Pharabod) que o peixe é algo como uma “densidade de probabilidade de peixe”, que está “dissolvido” no lago, admitem que ao morder o anzol este se torna definido enquanto peixe. Já para os idealistas quânticos o peixe só é de fato identificado quando ele é retirado da água, não sendo suficiente o contato dele com o anzol (figura abaixo). 224 Figura 83 – Imagem referente à noção de “Peixes quânticos (ORTOLI; PHARABOD, 1986, p. 16) Os embates se dão entre teorias clássicas e quânticas, entre subjetividade e objetividade. Não se pode negar que há no seio da edificação da física moderna muito de subjetivismo30 e de hipóteses ad hoc, o que de certa forma compromete a noção de uma ciência isenta de subjetividades e que refletiria as leis da natureza descobertas por meio de experiências. É conhecido, por exemplo, que [o] problema da existência de uma realidade objectiva para lá da observação criou profundo desacordo entre Bohr e Einstein. Para Bohr, que não queria 30 “O francês Louis de Broglie teve em 1923 uma ideia genial: visto que, no caso dos fotões, as ondas podiam ser consideradas como corpúsculos, por que é que a recíproca não seria verdadeira? E, assim, propôs que a todo e qualquer corpúsculo (a toda e qualquer partícula) material se associasse uma onda de comprimento de onda λ= h / p (sendo h a constante de Plank e p a quantidade de movimento do corpúsculo, isto é, o produto da sua massa pela velocidade). Essa ideia era tão ousada para a época que, com excepção de Einstein, os raros físicos que deram por ela a acharam perfeitamente estapafúrdia: alguns deles falavam, até, com ar de troça, de comédie française” (ORTOLI; PHARABOD, 1986, p. 34). 225 sair dos princípios da física quântica, o electrão não teria posição nem velocidade senão no momento em que fosse observado [...] Em contrapartida, Einstein recusou-se a abandonar a ideia de uma realidade física com existência independente da observação (ORTOLI; PHARABOD, 1986, p. 44). Esse debate entre Einstein e Bohr é possivelmente um dos capítulos mais longos da história da física moderna. (BROWN, 1981; EINSTEIN, PODOLSKY, ROSEN, 1981; BOHR, 1981). O embate ao que parece se deve basicamente a mudanças de pontos de vista, de visões de mundo e de crenças: Apesar de havermos mostrado que a função de onda não fornece uma descrição completa da realidade física, deixamos em aberto a questão de se existe ou não uma tal descrição. Acreditamos, contudo, que uma descrição dessas é possível (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSE, 1981, p. 96). A descrição completa da realidade física, de que falam os autores é tida já como uma premissa, e que segundo eles não é atingida pela teoria quântica. Em contrapartida, Bohr chama a atenção para o que se observa, enfatizando inclusive que nem todos os experimentos podem ser utilizados para estudar os fenômenos quânticos. A escolha de determinado experimento visa justamente diminuir a ignorância acerca do fenômeno observado: De fato, em todos os arranjos experimentais adequados ao estudo de fenômenos quânticos propriamente ditos, temos não apenas simplesmente de lidar com uma ignorância acerca dos valores de certas quantidades físicas, mas com a impossibilidade de definir tais quantidades de modo inequívoco (BOHR, 1981, p. 102). Einstein representa em certa medida uma visão idealista que acaba por considerar que a teoria quântica não dá conta da realidade tal como ele considera que seja, fechada. Bohr em tendo se deparado com uma realidade diferente, daquela que comumente se considerava - em que figura a ruptura -, advoga que se deve procurar os melhores meios experimentais para se investigar essa realidade fugidia. Bohr, na sua tentativa de rebater as colocações de Einstein e ao mesmo tempo estabelecer diálogo, pontua que [n]a verdade essa nova característica da filosofia natural significa uma revisão radical de nossa atitude perante a realidade física, que encontra paralelismo nas modificações fundamentais de todas as idéias concernentes ao caráter absoluto dos fenômenos físicos, trazidas à luz pela teoria da relatividade generalizada (BOHR, 1981, p. 106). 226 Destaque-se que Bohr utiliza o termo filosofia natural (ultimamente em desuso) para se referir à física. A filosofia natural, pode-se considerar, parte do mundo e da percepção que se pode ter dele e não da matemática apenas, da abstração. Embora Newton tenha proposto os Princípios matemáticos da Filosofia Natural – o que em si não inviabiliza a existência de outros princípios, mas apenas apresenta aqueles princípios que seriam de natureza matemática -, vê- se que as discussões acerca do tema perduram, como, por exemplo, aquelas envolvendo Bas van Fraassen e Ian Hacking. Segundo Bas van Fraassen, em A imagem científica, há um enunciado ingênuo do realismo científico, que é aquele que “[...] caracteriza uma teoria científica como um relato sobre o que realmente existe e a atividade científica como um empreendimento de descoberta, em vez de invenção” (FRASSEN, 2007, p. 25). Ele expõe ainda que o realismo, livrando-se do seu caráter ingênuo, concebe que “[a] ciência visa dar-nos em suas teorias um relato literalmente verdadeiro de como o mundo é, e a aceitação de uma teoria científica envolve a crença de que ela é verdadeira” (Ibid., p. 27, grifos do autor). O que o faz defender, em contrapartida, o que chama de empirismo construtivo, segundo o qual, “[a] ciência visa dar- nos teorias que sejam empiricamente adequadas; e a aceitação de uma teoria envolve como crença, apenas aquela de que ela é empiricamente adequada” (Ibid., p. 33, grifos do autor). Embora ele substitua o termo realista literalmente verdadeira por empiricamente adequada no que concerne às teorias científicas, acaba por se declarar um realista em algum sentido, mesmo que ele considere verdade como sinônimo de algo empiricamente adequado e não no seu sentido puramente ontológico. Há uma tomada de posição diferente, a crença não é que se encontrou a verdade, mas que a teoria é empiricamente adequada. Ele está a todo tempo criticando o realismo e criando sua própria concepção de realismo, ou um realismo demasiadamente humano. Algo a se destacar é o fato de o autor expor que o cientista é “guiado por imagens” e que um contexto ausente de ambiguidades é uma porta aberta para o realismo (que no caso não seria o realismo no qual ele se insere, mas uma concepção realista mais grosseira), como mostra a citação abaixo: Nosso jeito de falar e de falarem os cientistas é guiado por imagens fornecidas por teorias anteriormente aceitas. [...] Mas isso significa que devemos ser realistas científicos? Certamente, podemos suportar ambigüidades um pouco mais que isso. O fato de deixarmos nossa linguagem ser guiado por certa imagem em algum ponto não mostra o quanto cremos nessa imagem (Ibid., p. 37). 227 Na sua defesa do empirismo construtivo, van Frassen chama a atenção para algumas nuances ao se tratar da “observação” a nível subatômico: A teoria diz que se uma partícula carregada atravessa uma câmara preenchida com vapor saturado, alguns átomos nas vizinhanças de sua trajetória são ionizados. Se esse vapor é descomprimido e, portanto, se torna supersaturado, ele condensa em gotículas onde estão os íons, criando assim a trajetória da partícula. A linha cinza-prata resultante é similar (fisicamente, assim como em aparência) à trilha de vapor deixada no céu quando um jato passa. Suponhamos que eu aponte tal trilha e diga: ‘Olhe, lá está o jato!’ Alguém poderia dizer: ‘Vejo a trilha de vapor, mas onde está o jato?’ Então eu responderia: ‘Olhe logo à frente da trilha ... lá! Você o vê?’ Ora, no caso da câmara de vapor, essa resposta não é possível. Assim, apesar de ser a partícula detectada por meio da câmara de vapor, e essa detecção estar baseada em observação, claramente, esse não é um caso de estar a partícula sendo observada (Ibid., p. 41). Para este autor, portanto, não há observação sem teoria, sendo que aquilo que muitas vezes se chama de observação se configura em uma mistura de observação e teoria. Ou seja, em seu entender, “não há qualquer argumento que vá diretamente do senso comum ao que é inobservável (Ibid., p. 51). Ou seja, “[...] o ponto é que a verdadeira exigência sobre a ciência não é a de explicação enquanto tal, mas de imagens criativas, que dêem a esperança de propor novos enunciados das regularidades observáveis e de corrigir os antigos” (Ibid., p. 71), sendo que “toda teoria científica nasce em uma vida de competição feroz, uma selva de dentes e garras ensangüentadas. Apenas as teorias bem-sucedidas sobrevivem – aquelas que, de fato, agarram as reais regularidades da natureza” (Ibid., p. 81). Assim, mediante e imagens e construções teóricas é que os cientistas “agarram” as regularidades da natureza. Tais regularidades só se configuram mediante a interação. Em consonância com aquilo que pontuara Feyerabend, de quem inclusive fora aluno, van Fraassen considera que as teorias determinam as respostas que almejam, o que o leva a considerar: “A real importância da teoria para o cientista profissional é que ela é um dos elementos da elaboração de experimentos. Isso é inteiramente oposto ao retrato feito pela filosofia da ciência tradicional” (Ibid., 136). Assim, dentro desse modo de entender, não há separação entre teoria e prática. E ainda, segundo van Fraassen, “[u]ma explicação não é o mesmo que uma proposição, ou um argumento, ou uma lista de proposições; ela é uma resposta” (Ibid., p. 237), o que o faz concluir que “a explicação cientifica não é ciência (pura), mas uma aplicação da ciência” (Ibid., p. 274). Segundo este pensador esse entendimento não “requer a crença de que todos os aspectos importantes dos modelos tenham correlatos 228 correspondentes na realidade. [...] [Mas, que] [o] lugar da possibilidade é o modelo, não a realidade por traz dos fenômenos” (Ibid., p. 352). As proposições lançadas por Bas van Fraassen estimularam muitas discussões e embates teóricos, sendo Ian Hacking um de seus principais opositores. Em seu livro, Representação e Intervenção, no capítulo que dedica a rebater van Fraassen, intitulado Microscópios, Hacking advoga que deveríamos acreditar nas imagens que nos dão microscópios independentemente da teoria na qual se baseiam os microscopistas (GAVA, 2010). Segundo Hacking, foi por meio desses instrumentos que “nós aprendemos a nos mover no mundo microscópico” (HACKING apud GAVA, 2010, p. 91), defendendo, portanto, que os microscópios são aparelhos que “desvendam” ou descobrem realidades, independentemente de teorias. Diferentemente de Bas van Fraassen, portanto, “Hacking argumenta que podemos muito bem comprovar a existência de entidades inobserváveis independentemente de teorias” (CROTEAU, 2005, p. 52). No intuito de sustenta sua tese, Hacking divide o realismo em dois tipos, “o Realismo de Entidades e o Realismo de Teorias, os quais podem ser adotados independentemente um do outro” (Ibid., p. 53). Segundo ele, […] one can believe in some entities without believing in any particular theory in which they are embedded. One can even hold that no general deep theory about the entities could possibly be true, for there is no such truth (HACKING apud CROTEAU, 2005, p. 56)31. No entanto, o fato de uma teoria não conseguir jamais provar a verdade sobre a realidade, não faz com que exista uma realidade independe de teorias ou de concepções de natureza teórica, como defende Hacking, que “nega especificamente que as entidades teóricas sejam meras ferramentas intelectuais” (CROTEAU, 2005, p. 55). Embora, se possa considerar que, sim, “o mundo estava lá antes de qualquer representação ou linguagem humana” (HACKING apud CROTEAU, 2005, p. 62), não se pode por esse motivo concluir que as teorias sobre o mundo refletem justamente como e o que é o mundo, pois aqueles que esboçam as teorias carregam pressuposições de como o mundo é. Assim, as teorias servem em última instância para quem as constrói e não para a realidade (no sentido de desvendá-la). Para Hacking, “a experimentação tem vida própria” (HACKING apud CROTEAU, 2005, p. 63). No entanto, a experiência fala por si só, sem teoria. Quando, por exemplo, 31“[...] pode-se acreditar em algumas entidades sem acreditar em qualquer teoria em particular na qual elas estão inseridas. Pode-se mesmo afirmar que nenhuma teoria geral profunda sobre as entidades poderia ser verdade, pois não há tal verdade (HACKING apud CROTEAU, 2005, p. 56).” 229 Rutherford bombardeou a folha pouco espessa de ouro buscando evidenciar a teoria de Thompson, isso não o fez perceber o modelo atômico que veio depois a propor, mas foi o peso do substrato teórico no qual estava imerso que o fez propor tal modelo. Acerca de experimentos envolvendo o mundo subatômico e defendendo seu realismo de entidades, Hacking expõe: Experimental work provides the strongest evidence for scientific realism. This is not because we test hypotheses about entities. It is because entities that in principle cannot be ‘observed’ are regularly manipulated to produce a new phenomena and to investigate other aspects of nature. They are tools, instruments not for thinking but for doing (HACKING apud CROTEAU, 2005, p. 67 - 68)32. Porém, Hacking parece apenas inverter. Considera que os elétrons ao serem observados geram um fenômeno novo. Onde, em acordo com o que pontuara van Fraassen, o que se tem são vestígios, com os quais, e por meio de uma teoria, se propõe um modelo explicativo. O próprio entendimento de Hacking, de que os elétrons são ferramentas é uma teorização, uma hipótese, uma pressuposição. No sétimo e último capítulo de A imagem científica, intitulado Amáveis polêmicas, Bas van Fraassen esboça de forma conclusiva as ideias que discutira no livro até então, mencionando, por exemplo, o que teria feito com que ele se “convertesse” o realismo33: O que vi foi que as tentativas medievais para provar a existência de Deus possuem análogos atuais, que demonstram a correção do realismo científico. De fato, exatamente onde a invalidade das provas da existência de Deus são mais óbvias, a verdade do realismo cientifico verdadeiramente salta aos olhos (FRAASSEN, 2007, p. 356). Van Fraassen acaba por colocar que a sua concepção de realismo, o empirismo construtivo – fundamentado na noção de que uma teoria é aceita mediante a crença de que ela é empiricamente adequada -, é uma “alternativa” à questão da prova da existência de Deus, já que, em seu modo de ver, um ganha força à medida que o outro perde terreno. No sentido de defender essa sua proposição, ele passa a analisar os Cinco Modos propostos por Tomás de 32 O trabalho experimental fornece a mais forte evidência para o realismo científico. Não porque estamos a testar hipóteses sobre entidades. É porque as entidades que, em princípio, não podem ser observadas, são regularmente manipuladas para produzir um fenômeno novo e investigar outros aspectos da natureza. Elas são ferramentas, instrumentos não para pensar, mas para o fazer (HACKING apud CROTEAU, 2005, p. 67). 33 “Essa mudança de opinião foi um acontecimento repentino, que me pegou desprevenido, quando eu estava lendo Tomás de Aquino. Como Saul na estrada para Damasco, fui atingido por uma luz ofuscante e vi” (FRAASSEN, 2007, p. 356). 230 Aquino para provar a existência de Deus, criando, ele van Fraassen, análogos com relação ao realismo científico. Passa a considerar, portanto, o seguinte: 1) “Tudo que deve ser explicado deve ser explicado por alguma outra coisa” (Ibid., p. 358); 2) “Em uma explicação, as premissas estabelecem a verdade das linhas intermediárias, que estabelecem a verdade da conclusão” (Ibid., p. 361 - 362); 3) “Encontramos na natureza diversas regularidades, e podemos encará- las como coincidências ou como algo que proceda necessariamente de razões subjacentes” (Ibid., p. 364); 4) “[H]á regularidades estritas discerníveis naquilo que os bolsos e bolsas contém? O mais provavelmente, não - simplesmente porque as regularidades estão em um nível mais baixo” (Ibid., p. 368); 5) “E, assim, devemos aceitar, como uma representação literalmente verdadeira, o retrato revelado por nossas melhores teorias científicas aceitas” (Ibid., p. 370). Atente-se para os termos utilizados. Para o autor de A imagem científica, as teorias científicas são retratos revelados. A ciência, pode-se dizer, cria imagens, gera retratos, assim como o fazem as artes. Ele argumenta ainda “que são as regularidades dos fenômenos apenas aquilo a cujo respeito a questão da explicação surge. [...] Em nenhum dos casos, são regularidades por traz dos fenômenos que ipso fato requerem uma explicação” (Ibid., p. 372), e que “uma diferença importante (em aspectos relevantes) entre as entidades teóricas e não teóricas é crucial para anular o contra-argumento anti-realista” (Ibid., p. 374). O realismo, como colocado por van Fraassen, é “reflexo” dessa separação entre entidades teóricas e não teóricas. Assim, o realismo não é um desvendar da realidade, mas, uma resposta com bases empíricas a uma pergunta. Caso não se considerasse essa separação entre entidades teóricas e não teóricas, se cairia em um realismo ingênuo ou grosseiro, segundo o qual as teorias são sim respostas ontologicamente verdadeiras acerca da realidade. Nesse sentido, van Fraassen acaba dando também uma resposta ao questionamento acerca da superioridade do conhecimento cientifico sobre outras formas de conhecimento, como o senso comum, por exemplo. Para este pensador, a ciência descreve uma estrutura subjacente de maior unidade, coerência, simplicidade e regularidade que os fenômenos jamais poderiam esperar ter, então esse próprio grau de unidade sustenta que o retrato científico é um retrato mais verdadeiro e que o mundo cientifico – e a mesa de Eddington – possui maior realidade que o mundo do senso comum (Ibid., p. 368). Embora se possa concordar com essa colocação, pode-se ainda objetar que van Fraassen se trai um pouco ao fazer essa colocação e recai nesse ponto em um certo realismo “totalitário” 231 e generalista. Pois, uma vez que, como colocado por ele, são os questionamentos e as premissas que determinam as perguntas, e que as perguntas do senso comum ou de uma comunidade autóctone, por exemplo, em alguma medida não são as mesmas que as de um cientista, não teríamos como efetivamente comparar de forma absoluta esses contextos e optar por um deles. Ainda sobre a presença de imagens nas teorias da física moderna, pode-se dizer que um dos experimentos mentais e imagéticos mais conhecidos da física quântica é aquele comumente nomeado de O gato de Schrödinger. É um “experimento mental” que retrata uma situação segundo a qual um gato está trancado numa caixa com um dispositivo ligado a uma ampola contendo veneno e com um martelo apontando para a ampola. Quando o dispositivo passa a funcionar o martelo quebra a ampola (Figura abaixo). Tal mecanismo é acionado ao ser atingido por um próton de spin indeterminado. Segundo a física moderna o spin de uma partícula está relacionado ao sentido de giro da partícula sobre seu próprio eixo. Sendo assim, a partícula pode ter dois tipos de spins, já que ela pode girar em dois sentidos em relação ao eixo vertical. Mas, “o conjunto formado pelo protão e o dispositivo é descrito por uma função de onda muito complicada que representa a sobreposição dos estados ‘dispositivo que funcionou’ e ‘dispositivo que não funcionou’” (ORTOLI; PHARABOD, 1986, p. 72), o que possibilita que se tenha o entendimento de que o gato está ao mesmo tempo vivo e morto, daí o caráter de paradoxo. Figura 84 – Imagem representando o paradoxo do “Gato de Schrödinger” (ORTOLI; PHARABOD, 1986, p. 72) 232 Tem como saber se o gato morreu ou não? Uma das soluções é dada pelo Nobel de Física Eugene Wigner, ao considerar que “a superposição dos estados cessa devido a um ato transcendente da consciência” (ORTOLI; PHARABOD, 1986, p. 73) (figura abaixo). Não bastasse essa saída por si já questionável por coletivos que consideram a ciência com algo sem subjetividade, a explicação não está livre de problemas, como aqueles concernentes à relação e ligação entre o observador e o vigia (ORTOLI; PHARABOD, 1986). No entanto, a solução materialista também não resolve o impasse sem problemas, já que comporta a “possibilidade de uma acção à distância instantânea e incapacidade ou grande dificuldade de precisar o momento da concretização de onda de probabilidade” (ORTOLI; PHARABOD, 1986, p. 74). Figura 85 – Imagem referente à solução de Eugene Wigner para o paradoxo do “Gato de Schrödinger” (ORTOLI; PHARABOD, 1986, p. 73) Como se pode ver, mesmo se utilizando de experimentos imagéticos, a física moderna está longe de resolver os problemas os quais se coloca, mesmo quando se permite a presença da subjetividade nas explicações. Em alusão ao que expõe Feyerabend em uma de suas obras, não há problema que a ciência seja assim, complicado é, frente a esse estado de coisas, pregar que o recurso a imagens, ficções e subjetividades, presentes no fazer científico, é algo superado pela ciência. Feyerabend, como fora exposto, considera que o conhecimento não pode ser desvinculado da experiência – sendo isso parte de uma interação mediada pela cultura -, em acordo com Fleck, quando este demonstra que todo conhecimento tem uma base sócio-cultural, ambos sinalizando para o fato de que a relação entre pensamento e experiência/cultura é algo aberto. Ou seja, cultura e experiência se retroalimentam, num fluxo de interação aberto. 233 As discussões sobre física moderna têm relação com as culturas, e contribui para que pense sobre questões relacionadas a esse tema.34 Ilya Prigogine, em As leis do caos, além de adotar a distinção feita por Snow, das duas culturas - citando-o, inclusive -, tem o seguinte posicionamento: “creio que essa dicotomia viva de uma motivação mais profunda e se baseie no modo como a noção de tempo é incorporada em cada uma dessas duas culturas” (PRIGOGINE, 2002, p. 13). Prigogine coloca ainda que a ciência clássica perseguia a certeza associada a uma descrição determinística, tanto, que até a mecânica quântica persegue esse ideal. Ao contrário, as noções de incerteza, de escolha e de risco dominam as ciências humanas, quer se trate de economia, quer de sociologia (Ibid., p. 13). O autor parece desconsiderar que um dos mais relevantes “capítulos” da física moderna foi o princípio da incerteza. Ele chama a atenção para a seta do tempo, que, em seu entender, teria origem cosmológica, mediante a simetria do caos. Propõe, assim, o seguinte “esquema conceitual: instabilidade (caos) → probabilidade → irreversibilidade” (PRIGOGINE, 2002, p. 72), para evitar o elemento subjetivo e a inserção do observador, devido sobretudo à cosmologia quântica. Ao invés de sistemas estáveis, como na mecânica clássica, sistemas instáveis (determinísticos) na física moderna do caos. Considera, retomando o tema das duas culturas, que os literatos e as ciências humanas estariam ainda na ciência clássica, no dualismo, e na possibilidade de reversibilidade do tempo. Faz isso citando Descartes (como se em torno dele se pudesse aglutinar tudo que se faz em artes ou humanas): No início dessa exposição, mencionamos o problema das duas culturas. A ciência clássica nasceu sob o signo do dualismo. Numa de suas Respostas às terceiras objeções (ou seja, na resposta à segunda objeção sobre a segunda meditação, intitulada Da natureza do espirito humano), Descartes confirma contra Hobbes a distinção entre duas substâncias, o corpo e o espírito, que nos são conhecidos pelos atos ou acidentes que lhes são próprios (PRIGOGINE, 2002, p. 81). De acordo com o que é colocado pelo autor, a ciência moderna teria extirpado o realismo e ao mesmo tempo criado uma forma de introduzir em definitivo a seta do tempo na 34 Em Física e Filosofia, no capítulo em que que trata do papel da física moderna na evolução atual do pensamento humano, Heisenberg passa a falar do conflito entre o que ele chama de “processo de unificação” histórico do qual a física moderna é parte e a reação das comunidades tradicionais a esse processo. Trata de armas, conflitos e bombas, mas não trata, como era de se esperar da ressignificação das metáforas culturais que a nova física possibilitou e continua possibilitando. Ao que parece, os físicos têm medo de perder terreno e só falando de ciência imersa na cultura se for confinada na sua caixa preta (LATOUR, 2000). 234 instabilidade. Logo, para Prigogine, pelo exposto, a cultura não matematizada, estaria ainda no realismo, negando a materialidade do mundo, com o pensamento dissociado da realidade. A ciência estaria com o provável, enquanto as humanas e as artes com o suposto certo. Será que de fato tudo que as ciências clássicas e as artes têm feito está fora do tempo (é uma ilusão ou algo apenas metafísico), no sentido de que não interage contundentemente com a realidade, como Prigogine sugere? É uma pergunta a se fazer. Como se viu até agora, a perspectiva, por exemplo, é um exemplo de que a noção de possibilidade sempre esteve presente na arte, unindo inclusive arte e ciência, já que tinha muito de ciência na criação da prática da perspectiva (como fora exposto acima) – recentemente a psicologia da Gestalt (cuja relevância é destacada tanto por Fleck, como por Feyerabend) recolou em cena a importância da perspectiva e da imagem. Algo a se problematizar é o seguinte: segundo Prigogine, Descartes teria sido o pensador, ou um dos pensadores, que teriam impossibilitado a inserção do pensamento no tempo, por este ter considerado uma separação de substâncias e de mundos. No entanto, Descartes foi o mesmo pensador que cogitou que o ato de pensar tem intrínseca relação com o existir, sendo, em alguma medida, um dos precursores do existencialismo – o que gera mais um paradoxo, já que este é considerado muitas vezes e/ou por muitos apenas um racionalista extremo. Prigogine considera que a teoria do caos possibilitou que o pensamento tivesse espaço no universo. No entanto, com esse esquema exposto acima ele acaba por criar algo que se arvora generalizante, pois mesmo que considere a presença da probabilidade no seu esquema, ela vem depois do estágio de instabilidade, descrito por equações determinísticas, diga-se de passagem. Além disso, com seu esquema sobre o caos, Prigogine está sendo por deveras realista, já que tenta de uma vez por todas resolver a questão de até que ponto o pensamento tem relação direta, diga-se, com a realidade. Nesse sentido, é algo bem diferente do realismo/empirismo construtivo proposto por van Fraassen, por exemplo, pois segundo aquele autor, o realismo (como ele o considera) nasce da crença de que a teoria é empiricamente adequada, não tratando da verdade, ontologicamente falando, como parece propor Prigogine. Destaque-se que, se a ciência não pode dar o substrato geral sobre o qual as culturas se edificam, já que é parte da cultura, esta não tem a prerrogativa de ser uma metodologia privilegiada. A ciência é parte de uma cultura maior, já que sempre está reportando a algo, a dêiticos históricos, linguísticos, simbólicos, a visões de mundo. E, se o conjunto da cultura é multifacetado e plural, por assim dizer, logo, toda forma de conhecimento é algo que se liga e se separa das demais. São a mesma coisa em potencial. Mas esse potencial é aberto, não 235 fechado. Prigogine quer encontrar algo, que segundo ele, está para ser achado. O pensamento é agora parte do tempo, o que faz do tempo uma possibilidade (antecedida por algo de caráter determinista). Esse, em grande medida, é o entendimento de Popper, da falseabilidade. O novo realismo prigogineano fica bem claro nessa citação seguinte: O triunfo da ciência [clássica] estaria associado à demonstração de que a nossa vida – inseparável do tempo – seria apenas uma ilusão. Este é, por certo, um conceito grandioso, mas também profundamente pessimista: a eternidade não conhece mais eventos, mas como se pode dissocia-la da morte? A mensagem deste livro, que ser otimista. A ciência começa a estar em condições de descrever a criatividade da natureza, e o tempo, é também o tempo que não fala mais de solidão, mas sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve (PRIGOGINE, 2002, p. 84). Embora se possa por um instante pensar que esse é um entendimento semelhante àquele exposto por van Fraassen, a separação entre entidades teóricas e não teóricas defendida por ele é algo bem diferente de considerar que há uma aliança do homem com a natureza, no sentido de que as teorias reflitam exatamente como seria a natureza. Prigogine, embora fale muito em probabilidade, pensa por contrários, sendo, em alguma medida um extremista. Nos seus sete capítulos, o livro O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking, apresenta muitas imagens, espirais, cones, e muitas figuras geométricas. O autor tenta abordar no livro as várias teorias atuais sobre o universo (Figura seguinte). 236 Figura 86 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. ix) Hawking segue com a busca, anteriormente empreendida por muitos outros, e sobretudo, por Einstein, de encontrar a lei geral que rege os fenômenos físicos e o universo. Segundo seu entender “[u]ma lei não é uma lei se só vale às vezes. Temos que tentar compreender o início do universo com base na ciência. Pode ser uma tarefa além de nossa capacidade, mas deveríamos ao menos tentar” (HAWKING, 2001, p. 79), embora não aborde de forma clara o porque desse dever. Hawking segue ancorado naquele ditame do realismo científico que acredita que mesmo que não se esteja conseguindo o que almeja está-se a caminho ou utilizando os meios corretos, mesmo sem justificativa plausível que sustente tal afirmação. O autor adota o experimento de Michelson-Morley, referente à rotação da Terra (Figura abaixo) como sendo aquele que provou a inexistência do éter, embora, esse experimento possa ser contestado, sendo um exemplo de quão controversa é a ciência (COLLINS; PINCH, 2003). 237 Figura 87 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 7) Hawking considera que o universo está em expansão e que a distância entre as galáxias está aumentando (figura abaixo), estando de acordo com a teoria de buracos negros, segundo a qual corpos muito massivos sofrem contração e implodem devido sua grande massa. 238 Figura 88 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 22) Seguindo a teoria da relatividade, considera que o tempo tem uma forma e se inscreve como figura no mundo – assim como o coração que bate no peito de qualquer animal vivo - (Figura abaixo), embora tenha um sentido, assim como o spin das partículas subatômicas (Segunda figura abaixo). Hawking faz alusão a muitas outras imagens ou saberes, demonstrando, por exemplo, que ele não abandonara a perspectiva por completo. Ao tratar do giro do spin ele o faz utilizando cartas de baralho, mais especificamente falando, apresenta imagens do rei de espadas e da dama de copas - símbolos que fazem referências a produções estéticas que remetem a muitas outras produções de épocas diversas. 239 Figura 89 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 33) 240 Figura 90 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 48) Hawking trata no seu livro da teoria de cordas ou das p-branas. Segundo o autor “as diferentes teorias das cordas são apenas expressões diferentes da mesma teoria básica, que foi denominada de teoria M” (HAWKING, 2001, p. 56). Como a figura abaixo mostra, é exposto que a teoria M é uma junção das várias teorias de cordas ou de supergravidade. É algo a se destacar o fato de esta teoria ter essa designação, semelhante ao “‘princípio’ que faz viver o firmamento, que conserva e acalenta o ar e sem o qual se dissolveria a atmosfera e morreriam os astros (PARACELSO, 1973, p. 62), proposto por Paracelso, o representante da Alquimia, saber cujo símbolo representativo mais difundido é a imagem da serpente mordendo ou tentando morder a própria calda. Outra questão a se destacar se deve especificamente às figuras construídas e utilizadas para representar a relação entre os vários tipos de teorias de cordas e a teoria M (Figuras abaixo), compostas, por exemplo, por anéis entrelaçados e figuras curvas. A figura maior possui seis pontas, remete à um hexágono, e a menor a um pentágono, podendo se considerar que ambas 241 estão fazendo alusão aos números figurais, e às diferentes formas de dispor as pedras: com pedra no centro, sem pedra no centro, com seis pedras circundando a pedra do centro, com cinco pedras circundando a pedra do centro. Figura 91 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 56 - 57) Ao tratar da problemática acerca da possibilidade de informações serem guardadas em um buraco negro, por exemplo, faz menção à música, aos sólidos geométricos, e às estrelas, já que a parte que projeta o som remete a uma estrela de doze pontas (Figura abaixo). 242 Figura 92 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 62) Muitas são as figuras apresentadas no livro, desde maças e peras até figuras cônicas, semelhantes a monumentos indianos ou vasos, como os mostrados na figura seguinte. As figuras do tipo a representam universos fechados, os demais, b, c1, c2 e d representam universos abertos, em expansão ou inflacionários (HAWKING, 2001). E nesse trecho da obra Hawking aborda o princípio antrópico (mais uma concepção atual que considera a natureza subjetiva ou no mínimo interativa do conhecimento, já que tal princípio afirma que a existência do universo está relacionada à existência humana), que, segundo o autor, tem versões absurdas, mas também tem versões plausíveis: Grosso modo, o princípio antrópico afirma que o universo é do jeito que é, pelo menos em parte, porque nós existimos. É uma perspectiva diametralmente oposta ao sonho de uma teoria unificada, com total poder de previsão, na qual as leis da natureza são completas e o mundo é do jeito que é porque não poderia ser diferente. Há muitas versões diferentes do princípio antrópico, variando daquelas tão fracas a ponto de serem triviais, àquelas tão fortes a ponto de serem absurdas. Embora a maioria dos cientistas relute em 243 adotar uma versão forte do princípio antrópico, poucos questionariam a utilidade de alguns argumentos antrópicos fracos (HAWKING, 2001, p. 86). Figura 93 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 86) Ou seja, “[o] princípio antrópico diz que o universo tem de ser mais ou menos como o vemos, porque se fosse diferente, não haveria ninguém para observá-lo” (HAWKING, 2001, p. 85 - 87). Essa discussão acerca do princípio antrópico inevitavelmente traz à tona o questionamento sobre seres inteligentes, por exemplo. Acerca deste tema, se posiciona o autor: Na verdade, não importa realmente quantas histórias que não contém seres inteligentes podem existir. Estamos interessados somente no subconjunto das histórias no qual a vida inteligente se desenvolve. Essa vida inteligente não precisa ser como os seres humanos (Ibid., p. 87). Ao tratar das múltiplas dimensões da realidade, em acordo com a teorias de cordas, chamando a atenção para o fato de que o número de dimensões depende da distância que se está do que é observado, Hawking expõe que “[n]a teoria M, o espaço possui nove ou dez dimensões, mas pensa-se que seis ou sete das dimensões sejam enroladas muito pequenas, minúsculas, restando três dimensões grandes e quase planas” (Ibid., p. 88). O que o faz problematizar: Por que não vivemos em uma história na qual oito das dimensões seriam enroladas bem pequenas, restando apenas duas dimensões perceptíveis? Um 244 animal bidimensional teria dificuldade para digerir comida. Um intestino que o atravessasse dividiria o animal em dois, e a pobre criatura se desmantelaria. Portanto, duas direções planas não são suficientes para algo tão complicado quanto a vida inteligente (HAWKING, 2001, p. 88). Figura 94 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 88) Ou seja, Hawking está defendendo que duas dimensões são insuficientes para que se tenha vida inteligente, propondo então as três dimensões. O autor usa para exemplificar o que expõe no texto transcrito acima uma figura – embora, ele não faça referência à figura textualmente - na qual um dromedário se alimenta de uma maçã, embora não se tenha registros de que dromedários, animais que habitam desertos, se alimentem de maçãs. Ele pontua ainda o seguinte: Por outro lado, se houvesse quatro ou mais direções quase planas, a força gravitacional entre dois corpos aumentaria mais rapidamente há medida que se aproximassem um do outro. Isso significaria que os planetas são teriam órbitas estáveis ao redor de seus sóis; ou eles cairiam no sol (Fig. 3 .12A), ou escapariam para a escuridão e frio externos (Fig. 3.12B) [Figura abaixo] (HAWKING, 2001, p. 88). 245 Figura 95 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 89) Pelo que expõe, Hawking, amparado em muitas outras teorias, considera que o universo não poderia ter surgido de uma espiral de um único ponto. No entanto, sai de cena a imagética da espiral e entra em cena a do tempo imaginário: “A história mais simples do universo no tempo imaginário é uma esfera, como a superfície da Terra, mas com duas dimensões a mais” (Ibid., p. 90). Segundo é exposto por ele, “[p]ara a vida inteligente conseguir se desenvolver, o achatamento do polo sul deve ser bem sutil” (Ibid., p. 93), ou seja, tem que haver uma deformação de tal esfera. 246 Figura 96 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 92) Em resumo, acerca disso, continua Hawking: A história correspondente no tempo imaginário do universo que continua se expandindo de maneira inflacionária para sempre é uma esfera perfeitamente redonda. Mas em nosso próprio universo a expansão inflacionária diminuiu após uma fração de um segundo, e galáxias puderam se formar. No tempo imaginário, isso significa que a história de nosso universo é uma esfera com um pólo sul ligeiramente achatado. [...] Por causa do princípio da incerteza, não haverá apenas uma estória do universo contendo vida inteligente. Ao contrário: as histórias no tempo imaginário serão toda uma família de esferas ligeiramente deformadas, cada uma correspondendo a uma história no tempo real na qual o universo infla por um longo tempo, mas não indefinidamente. Podemos então perguntar qual dessas histórias possíveis é a mais provável. Descobre-se que as histórias mais prováveis não são completamente lisas, mas têm pequenos relevos e depressões (Fig. 3.17). As ondulações nas histórias mais prováveis são realmente minúsculas. Os desvios da lisura são da ordem de uma parte em cem mil. Todavia, embora extremamente pequenas, conseguimos observá-las como pequenas variações nas microondas que vêm até nós de diferentes direções no espaço (Ibid., p. 92 - 94). 247 Figura 97 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 94) O que o faz concluir: “[o universo é] como a casca de noz de Hamlet, mas essa noz codifica tudo que acontece no tempo real. Assim, Hamlet estava certo. Poderíamos viver reclusos numa casca de noz e nos considerar reis do espaço infinito” (HAWKING, 2001, p. 99). Para além da questão de se Hamlet estava certo ou não, ou se se pode ou se se deve considerar- se rei do espaço infinito, algumas coisas podem ser tornadas evidentes e problematizadas acerca dessa fala. Há uma manutenção da noção de espaço, o infinito é algo que não necessariamente está distante, mas pode ser algo que pode ser desse mundo. E, sobretudo, há o entendimento por parte do autor que a arte pode sim dar contribuições explicativas acerca do mundo – não por acaso o seu livro é todo figurado. No capítulo quatro, Prevendo o futuro, há a discussão sobre o aniquilamento de partículas quando próximas a um buraco negro, o fim de buracos negros e também acerca da astrologia. Assim como Carl Sagan faz na série Cosmos, Hawking parece seguir um entendimento – pelo menos é isso que expõe – até certa medida vulgar desse saber. Desconsidera, assim, como fora sinalizado por Leonardo, que a Astrologia tem muita relação com a noção de perspectiva, por exemplo – e nesse sentido não há tanta diferença assim entre astrologia e ciência, já que como viu-se a ciência, inclusive na física moderna, tem pressupostos relacionados à teoria da perspectiva -, e que é uma forma de conhecimento mais contextual do que instrumental. Algo a se destacar é que o fato de a Astrologia ainda ser tópico. Ou seja, como 248 se pode perceber, a querela entre alquimia e astrologia não se deu apenas em épocas passadas, ela continua. Segundo Stephen Hawking, o verdadeiro motivo por que a maioria dos cientistas não acredita em astrologia não é a existência de provas científicas ou a falta delas, e sim o fato de ela não ser compatível com outras teorias testadas pela experiência. Quando Copérnico e Galileu descobriram que os planetas orbitam o Sol em vez de a Terra e Newton as leis que governam seus movimentos, a astrologia tronou- se extremamente inaceitável (HAWKING, 2001, p. 103). No entanto, esse argumento não se sustenta, afinal, muitas são as teorias científicas que não são compatíveis com outras teorias. Áreas diferentes da ciência adotam métodos diferentes (FEYERABEND, 2007) - o que as tornaria, dentro dessa falsa concepção de que há um método fixo, ou de uma lei geral, como defende Hawking, incompatíveis -, pois mesmo em áreas distintas se tem incompatibilidades. A maior prova disso é o debate já mencionado entre a física quântica e a teoria da relatividade – os grandes esforços da pesquisa atual na física (ou seja, em uma mesma área) é a tentativa de construir uma teoria na qual as duas concepções sejam contempladas. E dentro desse caldo de discussão e concepções que a física moderna, muitas são as teorias válidas que não são provadas pela experiência – inclusive, a noção de prova é uma construção que envolve muitas “nuances” (LATOUR, 2000, FEYERABEND, 2007, COLLINS; PINCH, 2003). Problematize-se, ainda, e sobretudo, que essa noção de que a astrologia teria perdido terreno pelas novas descobertas científicas também não se sustenta. Juliana Ferreira, por exemplo, nos seus consistentes estudos acerca da astrologia aponta justamente para o contrário disso. Em O caso das “reformas” e reformas da astrologia no século XVII expõe que o certo é que não pareciam ter origens [as propostas de reformulação da astrologia] em pressões externas a essa área, tais como possíveis repercussões das novas idéias da astronomia. As sugestões pareciam provir do próprio descontentamento desses autores [Francis Bacon, William Lilly, Joshua Childrey, John Partridge, Robert Godson] em relação a certos aspectos da astrologia e não eram implicações das novas descobertas ou da adoção de uma cosmologia específica (FERREIRA, 2008, p. 247). 249 Figura 98 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 103) Tanto Copérnico, como Galileu, quanto Newton estavam às voltas com questões místicas de naturezas diversas. Galileu, de quem se pode ter muitas imagens (Penúltima figura abaixo) – peça de grande relevância na história da revolução científica –, estudou detalhadamente a Lua e as formas das manchas de sua superfície, tendo inclusive feito pinturas referentes a essas observações (Figura abaixo). Estudou também as constelações de Órion (Figura abaixo) e das Plêiades (Figura abaixo), Sirius (Cão Maior) e Júpiter35 – apresentando reiteradamente o símbolo que o caracteriza, astronômica e astrologicamente (Última figura abaixo) - no seu A mensagem das estrelas, o que sinaliza, em alguma medida, para a relação entre seus estudos e interesses e a astrologia, saber baseado na noção de perspectiva. Essas são mais evidências contrárias ao entendimento de Hawking de que a astrologia se tornara algo “inaceitável” devido às teorias desses estudiosos, como se uma coisa estivesse totalmente desvencilhada da outra. 35 Frances Yates fala do que significava Júpiter na Idade Média e no Renascimento: “O soberano do céu é Júpiter, que, por intermédio do céu, distribui a vida para todos os seres. (Possivelmente, a primitiva afirmação, segundo a qual o sopro ou spiritus mantém a vida de todos os seres do mundo, relaciona-se com essa supremacia de Júpiter, o deus do Ar.) Júpiter é o intermédio entre o céu e a terra” (YATES, 1964, p. 48). 250 Figura 99 – Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei (GALILEU, 1987, p. 44) 251 Figura 100 – Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei (GALILEU, 1987, p. 54) Figura 101 – Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei (GALILEU, 1987, p. 55) 252 Figura 102 – Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei (GALILEU, 1987) Figura 103 – Imagem presente em A mensagem das estrelas, de Galileu Galilei (GALILEU, 1987, p. 69) 253 Em um sentido histórico-epistemológico, Ludwik Fleck, em Sobre a crise da “Realidade”, expõe o seguinte sobre a astrologia: Era uma vez, havia existido uma grande ciência que estava relacionada com quase todos os ramos do conhecimento naquele período, que estava baseada sobre fundamentos teórico-filosóficos sólidos, e que teve a maior influência sobre a vida político-econômica e pessoal. Eu acredito que nenhuma ciência tão universalmente predominante nunca tenha existido antes ou depois; em todas as áreas ela explicou o passado, o presente e previu o futuro. Esta ciência foi chamada astrologia. Hoje em dia ela leva apenas uma existência lamentável no pensamento de alguns malucos não educados, nada comparáveis com a sua grandeza de outrora, semelhante ao que são nossos lagartos para o que foram os dinossauros. Ela foi substituída por um sistema diferente de pensar construído pela sociedade, ou seja, pela ciência natural. Certamente não tinha existido sempre o pensamento típico das ciências naturais. Ele foi sendo fundado entre os artesãos, os marinheiros, os barbeiros (Wundärzte), os tratadores de couro e seleiros, os jardineiros e provavelmente também entre crianças brincando. Onde quer que um trabalho sério ou lúdico foi feito por muitos, onde os interesses comuns ou opostos os reunira repetidamente, esta forma excepcionalmente democrática de pensar foi indispensável (FLECK, 1986a, p. 50, tradução livre). Essa citação está colocando algo com o qual a tese feyerabendiana concorda – segundo a qual as grandes mudanças epistemológicas não são fruto de uma mudança de pensar individual nem devido a mudanças de cunho racional empreendidas por filósofos, por exemplo, mas resultado de mudanças mais gerais que acabam afetando a vida das pessoas e, por conseguinte, sua forma de organizar o pensamento e representar o mundo, a realidade, o que se lhes é apresentado. Segundo Fleck, a astrologia foi substituída por um outro sistema de conhecimento de caráter mais social e democrático, as ciências sociais. Pelo que ele expõe, se teria ganhado em popularização e perdido em profundidade. Em Gênese e desenvolvimento de um fato científico, ele pontua o seguinte: pela minha experiência de médico, não podemos diferenciar exatamente entre normalidade e anormalidade; a anormalidade muitas vezes é apenas uma intensificação da normalidade. Além disso, sabemos que os efeitos sociais de ambos, tanto da normalidade quanto da anormalidade, muitas vezes são os mesmos. Se os motivos da filosofia de Nietzsche, por exemplo, tinham um caráter patológico, seu efeito social não é diferente de uma visão de mundo em condições normais. De qualquer forma, uma proposição, uma vez publicada, pertence aos poderes sociais que formam conceitos e criam hábitos de pensamento, junto com todas as outras proposições; ela determina “o que não pode ser pensado de outra maneira”. Mesmo quando combatida, as pessoas crescem com a problemática levantada por tal posição, que circulando na sociedade, acaba sendo socialmente fortalecida. Ela se transforma numa realidade evidente, que, por sua vez, gera novos atos de conhecimento. Assim 254 surge um sistema fechado e harmonioso dentro do qual a origem lógica de determinados elementos não pode mais ser encontrada (FLECK, 2010. p. 80). Destaque-se que, se em “um sistema fechado e harmonioso”, “a origem lógica de determinados elementos não pode mais ser encontrada”, não se pode negar a importância e relevância de outros sistemas de conhecimento com base em questões lógicas, como frequentemente se faz ou defende. E ainda, se “a normalidade muitas vezes é apenas uma intensificação da normalidade”, quer dizer que o normal, o generalizante, também é uma patologia, ou no mínimo uma limitação. E mais, se os efeitos da normalidade e da anormalidade são muitas vezes idênticos, não se pode impossibilitar um ato criador relevante, que estabelece ressonância social e cultural, apenas por considera-lo algo anormal. Como pode ser percebido, a discussão aqui se processa em torno da questão se há um ato subjetivo referente ao conhecimento (algo considerado como anormal pela metodologia generalizante) ou se o processo de conhecer é algo eminentemente de natureza social. Assim como Fleck, Feyerabend também aborda essa questão - o que mais uma vez os une em termos de interesses -, inclusive também fazendo menção a Nietzsche: Para Nietzsche, a transição é o trabalho dos gigantes que se comunicaram através de um abismo povoado por anões espirituais. Escritores mais prosaicos, como Mircea Eliade ou W. K. C. Guthrie, falam de uma descoberta fundamental, feita por indivíduos de inteligência superior. O que foi que realmente aconteceu? [...] Lentamente essa situação deu lugar a definições generalizadas de direitos e deveres. Essa mudança não foi intencional. Foi o efeito lateral não intencionado de arranjos especiais (Solon, Cleistenes) destinados a resolver problemas políticos especiais. Essas soluções coalesceram - e a democracia foi seu resultado. Até mesmo a linguagem perdeu gradualmente em conteúdo: “As palavras empobreceram quanto ao seu conteúdo, transformaram-se em fórmulas, tornaram-se vazias e unilaterais”. Os novos críticos sociais, os filósofos, não se opuseram a essas tendências. Eles as louvaram, agindo como se houvessem iniciado esse processo, e elevaram o resultado – a pobreza conceitual – a um princípio. Eles eram parasitas de mudanças que haviam ocorrido sem qualquer interferência criadora de sua parte (FEYERABEND, 2006, p. 302 – 303). As questões de natureza política tratadas no trecho acima não serão abordadas aqui com a pujança necessária pelo motivo de que se fugiria em demasia do objetivo presente, embora não se deixe de pontuar que se algo estabelece uma generalização por completo e uma impossibilidade de mudança de forma de ver a realidade, e se esse caráter se perdura, acaba por impossibilitar a mudança e o surgimento do novo e de posições alternativas, o que não deve ser buscado por uma comunidade de seres inteligentes. 255 Muito possivelmente é acerca dessa suposta perda que há com a generalização referente ao conhecimento que Nietzsche se reporta em várias de suas obras, haja vista sua crítica aberta aos filósofos e “sábios”, por exemplo. Destaque-se que ele fora um pensador muito irônico, como se pode perceber, sobretudo, em Ecce Homo; e que, embora Zaratustra - personagem principal da obra em que ele condensa, por assim se dizer, seu pensamento -, se arvore um ser que se projeta além dos demais, sendo em alguma medida um legislador e um líder religioso, este sai de cena ao final da obra (com a chegada dos animais). Pode-se dizer que Feyerabend não se pauta tanto pela subjetividade e apego à figura do gênio, e que Nietzsche em alguma medida possivelmente adere a isso? Feyerabend considera, com base no pensamento de Mach, que “é a natureza, tal como se manifesta em uma pessoa em particular, que mostra o caminho, e não uma misteriosa criatividade” (FEYERABEND, 2006, p. 304). Considerando-se esse entendimento, se pode ter alguma liberdade com relação à metodologia generalizante da ciência enquanto algo superior historicamente, o que possibilita inclusive uma abertura para outras formas de conhecimento. Hawking conclui esse quarto capítulo, Prevendo o futuro, pontuando que, “se o determinismo científico for válido, deveríamos, em tese, ser capazes de prever o futuro e não precisaríamos da astrologia” (HAWKING, 2001, p. 104). No entanto, ele expõe: A descrição de uma partícula por uma função de onda não possui uma posição ou uma velocidade bem definida. Ela satisfaz o princípio da incerteza. Percebemos agora que a função de onda é tudo aquilo que pode ser bem definido. Não podemos nem sequer supor que a partícula possua uma posição e uma velocidade conhecidas por Deus, mas ocultas para nós. Tais teorias de “variáveis ocultas” preveem resultados que destoam da observação. Mesmo Deus está limitado pelo principio da incerteza e não pode conhecer a posição e a velocidade. Ele só pode conhecer a função de onda. [...] Contudo, dentro desse sentido restrito ainda é possível alegar que existe determinismo (HAWKING, 2001, p. 107 – 108). Tanto a astrologia como a ciência, ao que parece, querem prever o futuro, a diferença é como isso se dá. Para a astrologia, o futuro é construído com pedaços e imagens do agora. Não é algo que foge da experiência, como muitas vezes é considerado. Pode-se arriscar dizer que a experiência imaginária de Einstein-Podolsky-Rosen, por exemplo, é algo bem mais abstrato. E sobre resultados que destoam da observação, eles são muitos na física moderna, não apenas aqueles episódios envolvendo as variáveis ocultas não locais. Não é porque se consegue “colar” algo de natureza imaginária com um correspondente material que aquilo deixa de ser imaginário ou subjetivo! Se é dito que a astrologia não tem uma condição material ou determinística, pode- 256 se argumentar que a teoria quântica em certa medida também não consegue resolver esse ponto. Segundo ao autor, “na verdade essa experiência imaginaria é exatamente o que acontece com a radiação do buraco negro. O par de partículas virtuais terá uma função de onda que prevê que os dois membros definitivamente terão spins opostos” (Ibid., p. 124). O que o faz considerar que “não há nenhuma medição fora do buraco negro que possa ser prevista com certeza [...] Então talvez a astrologia não seja pior que as leis da ciência na previsão do futuro (Ibid., p. 125 – 126). Caso se recorra às p-branas para resolver esse impasse, “[l]embre-se que uma forma de imaginar as p-branas é como superfícies que se movem pelas três dimensões do espaço e também por sete dimensões extras que não notamos” (HAWKING, 2001, p. 126). Não se trata de defender a astrologia ou a ciência, mas chamar a atenção para a condição de perspectiva que lhe é inerente a ambos, como também à cultura. A ciência continua salvando os fenômenos, utilizando para isso bastante imaginação, enunciados e proposições sem explicação, algo não tão diferente de outros momentos históricos (DUHEM, 1984), e ainda com bastante dúvida sobre o que está falando36. Não é porque temos uma noção de futuro aberto e que comporta novos entendimentos que ele é menos fantasioso do que outra forma de entender. A ciência, pelo que se vê também tem suas profecias – como também se relaciona com profecias já existentes. Se arvora participante das leis da natureza, por ter formado uma relação entre previsão e imprevisão, é mister salientar que há aí também uma componente de certeza que está baseada em um imperativo de futuro. Ou seja, há um movimento para frente, algo ad hoc. Conhecimentos antigos, como aqueles propostos por Ficino (ALLEN, 1994), também tinham um caráter semelhante, também se baseavam em uma mescla de previsão e imprevisão. A física moderna não é tão moderna como parece, assim como a ciência moderna de tempos atrás também não foi. Curiosamente, o capítulo cinco do livro tem o título Protegendo o futuro, vindo logo acompanhado da seguinte questão: “uma civilização avançada poderia voltar no tempo e mudar o passado?” (HAWKING, 2001, p. 131). O capítulo inicia com a apresentação de um documento, no qual é mencionado que Hawking fez uma aposta com John Preskill e Kip Thorne37 (e da qual teria saído derrotado inclusive): 36 “Parte da função de onda se perde dentro dos buracos negros ou todas as informações saem novamente, como sugere o modelo da p-brana? Essa é uma das perguntas sem resposta na física teórica atual”. (HAWKING, 2001, p. 129). 37 “Visto que Stephen W. Hawking (tendo perdido uma aposta anterior relacionada a este assunto, por não requisitar genericidade) ainda acredita firmemente que singularidades nuas são um anátema e deveriam ser 257 Figura 104 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 132). Ao tratar do físico Kip Thorne, a quem chama de colega e amigo, Hawking menciona: “Poucos cientistas são imprudentes o suficiente para trabalhar em um tema tão politicamente incorreto nos círculos da física. Nós disfarçamos o fato usando termos técnicos que são um código para viagens no tempo” (HAWKING, 2001, p. 133). Após discutir sobre viagens no tempo, livre arbítrio, se uma nave pode voltar ao passado, “cordas cósmicas”, e sobre o entendimento segundo qual a simetria do espaço em estágios iniciais do Universo teria sido proibidas pelas leis da física clássica, e visto que John Preskill e Kip Thorne (tendo vencido a aposta anterior) ainda consideram singularidades nuas objetos gravitacionais quânticos que podem existir, descobertos pelos horizontes, para que todo o Universo os veja, Portanto Hawking oferece, e Preskill/Thorne aceitam um desafio pelo qual quando alguma forma de matéria ou campo clássico, incapaz de tornar-se singular no espaço-tempo plano, é acoplada À teoria da relatividade geral via equações clássicas de Einstein, uma evolução dinâmica das condições genéricas iniciais (isto é, de um conjunto de dados iniciais) nunca poderá produzir uma singularidade nua (geodésico nulo de passado incompleto de I+). O perdedor recompensará o ganhador com um traje para cobrir a nudez do ganhador. O traje deve ser enfeitado com uma mensagem apropriada, verdadeiramente concessionária. Stephen Hawking W. Hawking John P. Preskill & Kip S. Thorne Pasadena, Califórnia, 5 de Fevereiro de 1997 (N. do T.)” (Ibid., p. 132).” 258 rompida em regiões diferentes – “cordas cósmicas são as configurações da matéria nos limites estre essas regiões” (Ibid., p. 138) -, curvas temporais fechadas e “anéis de tempo”38, Hawking chama a atenção um importante capítulo da matemática: Gödel mostrou que certos problemas não podem ser solucionados por nenhum conjunto de regras ou procedimentos. O teorema de Gödel fixou limites fundamentais para a matemática. Foi um grande choque para a comunidade científica, pois derrubou a crença generalizada de que a matemática era um sistema coerente e completo, baseado em um único fundamento lógico. O teorema de Gödel, o princípio da incerteza de Heisenberg e a impossibilidade prática de seguir a evolução até mesmo de um sistema determinado que se torna caótico formam um conjunto fundamental de limitações ao conhecimento científico que só veio a ser reconhecido durante o século XX (HAWKING, 2001, p. 139) 38 “[...] o espaço-tempo admite curvas temporais fechadas – isto é, que retornem ao seu ponto de partida repetidamente? Eu me referirei a essas trajetórias como ‘anéis de tempo’. Há três níveis em que podemos tentar discutir essa questão. O primeiro é a teoria da relatividade geral de Einstein, que pressupõe que o universo tenha uma história bem definida, sem nenhuma incerteza. Para essa teoria clássica, temos um quadro razoavelmente completo. Mas, como vimos, ela não pode estar totalmente certa, porque observamos que a matéria está sujeita à incerteza e a flutuações quânticas” (HAWKING, 2001. P. 138). Os demais níveis tratados por ele são a teoria semiclássica e a teoria plenamente quântica da gravidade. 259 Figura 105 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 134) E continua tratando de viagens no tempo, dos perigos envolvidos em tais aventuras, fala de cunhas a serem removidas do espaço-tempo, e de que já tem um neto – embora diga que não revelará a sua idade -, chegando à conclusão de que “[a] resposta é que as viagens no tempo estão realmente ocorrendo em escala microscópica, mas não as percebemos” (Ibid., p. 148). E ainda, que: Embora os anéis de tempo sejam permitidos pela soma de histórias, as probabilidades são mínimas. [...] É uma probabilidade bem baixa, mas, se você examinar a foto de Kip [Figura abaixo] bem de perto, notará uma ligeira imprecisão no contorno. Ela corresponde à remota possibilidade de que algum canalha do futuro retornasse e matasse seu avô, de modo que Kip não esteja realmente aqui (HAWKING, 2001, p. 173). 260 Figura 106 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 133) No capítulo seis, Nosso futuro: jornada nas estrelas, Hawking trata bastante do tema Guerras nas estrelas, mas também do índice populacional do planeta, DNA, como ter cérebros maiores e com mais inteligência (embriões fora do corpo), sobre a evolução dos computadores, engenharia genética e novas questões éticas, além de fazer referência por meio de imagens a temáticas que envolvem conhecimentos e perspectivas diversas (Figuras abaixo). 261 Figura 107 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 155) 262 Figura 108 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 170) No último capítulo do livro, o capítulo 7, Admirável mundo novo das branas, ele trata, como evidencia o título, das branas, mas também trata de outras temáticas. Iniciando o capítulo com a seguinte indagação “Vivemos em uma brana ou somos apenas hologramas?”, Hawking diz que a teoria M é na verdade “uma rede de teorias aparentemente diferentes, que parecem aproximações da mesma teoria fundamental básica em limites diferentes” (Ibid., p. 175). O que faz considerar que: 263 A teoria M é como um quebra-cabeça: é mais fácil e juntar as peças em torno das bordas do quebra-cabeça, os limites da teoria M em que uma ou outra quantidade é baixa. Temos agora uma idéia muito boa dessas bordas, mas ainda resta um buraco no centro do quebra-cabeça da teoria-M, onde não sabemos o que está acontecendo (Fig. 7.1) [Figura abaixo] (HAWKING, 2001, p. 175). Figura 109 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 174) 264 Há algo que pode ser destacado sobre o que fora mencionado por Hawking. O fato de diversas teorias diferentes se aproximarem da teoria M não faz com que obrigatoriamente se pode considerar que elas fecham um perímetro, mantendo algo aberto e desconhecido apenas no meio – o que o próprio autor chamou de dragões. Esse é mais um exemplo típico de utilização da arte não apenas para apresentar, mas contribuir para as “formatações” científicas, assim como os experimentos de laboratório. É algo passível de destaque que Hawking apresenta uma imagem semelhante – embora menor em tamanho - àquela presente na página cinquenta e seis (e reproduzida aqui, um pouco acima) – referentes às branas, só que ao invés de no centro ter aquela imagem que lembra uma estrela de seis pontas, ele coloca a figura de um dragão (Figura abaixo). Figura 110 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 175) Em seguida, após tratar de modelos atômicos e de algumas das novas teorias sobre a estrutura da matéria, ele expõe o seguinte: 265 Pode parecer que poderíamos prosseguir para sempre, descobrindo estruturas em escalas de comprimento cada vez menores. Entretanto, essa série tem um limite, assim como a série de bonecas russas contidas dentro de bonecas russas cada vez menores” (HAWKING, 2001, p. 177). Não tem muito como saber o porquê de Hawking tratar especificamente de bonecas russas (Figura abaixo) na sua ilustração. Possivelmente, assim como Platão em A República, quando este informa diversas vezes que Er é armênio, Hawking está com isso fazendo menção à região e às práticas culturais daquele país ou região – isso é apenas uma conjectura. Embora não se tenha ao certo como saber o número de bonecas, se pode defender que está sendo feito alusão ao número seis, já que é apresentado seis partes superiores de bonecas. A legenda da figura informa o seguinte: Cada boneca representa uma compreensão teórica da natureza descendo a certa escala de comprimento. Cada uma contém uma boneca menor, correspondente a uma teoria que descreve a natureza em escalas menores. Mas existe um comprimento fundamental mínimo na física, o comprimento de Planck, uma escala na qual a natureza pode ser descrita pela teoria M (HAWKING, 2001, p. 177). O fato de Hawking na figura, fazendo referência às bonecas, estar destacando quatro estágios significativos da física (Física clássica, Física nuclear, Física atômica, Teorias da grande unificação), e de mencionar que “cada boneca representa uma compreensão teórica da natureza”, possibilita que se pense que há por parte dele uma referência aos quatro estágios da linha dividida platônica (PLATÃO, 2001). Uma segunda parte da figura, diga-se assim, relaciona a boneca menor com geometria e aritmética, já que o número que representa o comprimento de Planck – 1,616199(97) × 10−35 m - está posicionado no lugar que corresponde à hipotenusa de um triângulo - que lembra um triângulo retângulo, mas, não possui ângulo reto. Em alguma medida o autor usa esta constante como uma prova ou evidência de determinismo ou “comprimento fundamental mínimo”. No entanto, essa medida de comprimento é definida a partir da constante de Planck, que é fruto de uma teoria ad hoc – como o próprio Planck confessou – que relaciona a energia (um dos conceitos mais “virtuais” da física, e porque não dizer oculto, teórico) com a frequência. Novamente, não se está aqui com niilismo ou negação da ciência ou algo parecido, apenas confrontando concepções, fatos e informações, visando uma problematização, que visa uma imagem mais plural da ciência. 266 Figura 111 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 177) Há na obra toda de Hawking muita referência a imagens e conhecimentos presentes na cultura – que envolve assuntos de ciências, mas também muitas outras referências e simbologias - muitas vezes de forma clara e seguida de explicação e outras vezes de forma sutil. 267 Figura 112 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 195) Essa mistura entre cultura, ciência e arte está presente quase constantemente em todo o livro, como quando ele, parafraseando Shakespeare, expõe: “Oh! Admirável mundo novo das branas, de onde provêm tão maravilhosas criaturas!” (HAWKING, 2001, p. 200). Em fonte maior do que é utilizada no texto, Hawking afirma “Esse é o universo numa casca de noz” (Ibid., p. 200) - na versão original, em inglês, o título é The universe in a Nutshell, tendo relação com o trocadilho “in a nut shell” - ao que parece deixando aberto o ciclo ou o círculo (Figura abaixo). 268 Figura 113 – Imagem presente em O universo numa casca de noz, de Stephen Hawking (HAWKING, 2001, p. 201). 269 4 Chico Science & Nação Zumbi, Manguebeat, outras bandas e cenas A cena que passou a ser denominada como Manguebeat, se deu tanto em termos de música, como de expressão artística de uma forma geral, tendo ainda uma conotação política – no sentido de discutir temáticas referentes à cidade de Recife. Não se tem o intuito de abordar aqui o Movimento Manguebeat propriamente, por este comportar diversas nuances, e por não ser este o principal foco do trabalho. Tratar-se-á dos dois primeiros cds da banda Chico Science & Nação Zumbi, liderada pelo olindense Francisco de Assis França - que incialmente usou a alcunha de Chico Vulgo, e que posteriormente ganhou notoriedade como Chico Science – fazendo ainda brevemente menção a outras bandas e artistas do Manguebeat e de outras cenas. Essa foi a banda que teve maior projeção no movimento, mas não foi esse o critério que gerou a escolha, mas sim por esta, mediante suas músicas, tratar de uma infinidade de temas, termos e teorias, das ciências, das artes e de outros sistemas de conhecimento que em alguma medida foram apresentados nos capítulos anteriores deste trabalho. Esse movimento poético-político-cultural que brotou da cidade do Recife (PE) / Brasil na década de 90 (MARKMAN, 2007), foi feito por jovens da periferia – e outros que não venham necessariamente da periferia - que não se calaram aos desmandos feitos pelos governantes e que objetivavam mudar a dinâmica da cidade-estuário. Longe de desconsiderar as teorias das ciências e suas concepções, eles as aglutinaram, e em certa medida as utilizaram como mote para, juntando-as com outros saberes e conhecimentos, comunicar e criar terminologias, significados e ações. O Manguebeat, ou mangue, que tanto significa uma cena urbana, como um ritmo (TELES, 2012), influenciou e continua influenciando as artes (cinema, literatura e artes plásticas) e a cultura de uma forma geral, em Olinda, Recife, Pernambuco e outras localidades e regiões. O lançamento do Manifesto Caranguejos com Cérebro, assinado por Fred Zero Quatro e Renato L, é um de seus marcos. Nesse texto os autores falam de eletricidade, caos, cultura pop, “colapso da modernidade” e expõem aquela que é nomeadamente por eles a “imagem símbolo do movimento”, que é a parabólica fincada na lama, como forma de fazer a cidade sair do estado de estagnação: “Como devolver o ânimo, deslobotizar / recarregar as baterias da cidade? Simples, basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife” (TELES, 2012, p. 138). 270 As bandas deste movimento, como, por exemplo, Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, retomam os ritmos locais sendo isso, no entanto, parte de um fenômeno urbano, antenado e experimental. Mestre Ambrósio, banda também considerada como umas das bandas que integraram o movimento, é mais ligada aos costumes e ritmos da mata, conhecimentos indígenas, sincrética, apresentando em alguma medida, também, a herança árabe do Nordeste do Brasil. No entanto, a cultura árabe também está presente na banda Chico Science & Nação Zumbi (CSNZ), haja vista músicas como Samidarish, do segundo cd, Afrociberdelia, que tanto pelo ritmo quanto pelo próprio nome e outras referências remete à cultura árabe. Na cultura pernambucana e nordestina, e de uma forma geral na cultura brasileira, muitas são as referências ao manancial cultural trazido pelos mouros. Essas referências, que estão também presentes em praticamente toda a obra de Ariano Suassuna, criador do Movimento Armorial (MARKMAN, 2007), mas não se restringe a essa cena. O desejo e a imaginação podem ter espaço em questões epistemológicas e estéticas, como mostram tanto o Manguebeat como o Armorial (movimento do qual fez parte Ariano Suassuna, da década de 70 do século passado, que buscou criar uma identidade cultural pura, baseada nos saberes locais e em suas influências ibéricas), mesmo sendo movimentos culturais bem diferentes. Como poderá ser percebido, muitos dos temas, formas, imagens e conhecimentos aos quais CSNZ recorre, são em alguma medida semelhantes àqueles tratados por Ariano Suassuna em suas obras - e a muito do que fora exposto até agora neste trabalho. Ou seja, alguns dos interesses e os universos estéticos pelos quais esses artistas transitaram não são tão diferentes como pode parecer. Ambos fazem alusão, por exemplo, à matemática e à numerologia pitagórica e ao neoplatonismo – com isso não se está querendo propor um Chico armorial ou algo do tipo, mas apenas mostrando traços comuns entre as cenas, seguindo o que se está propondo neste trabalho. E, embora seja conhecido que eles tinham posturas diferentes em termos político-culturais – Ariano negava a mistura de ritmos e a introdução de expressões e músicas cantadas em outra língua que não fosse o português, o que foi algo bem presente no Manguebeat -, Chico e Ariano tinham pontos em comum. No Manguebeat há uma forte presença da poesia, que, diga-se de passagem, não é apenas a descrição de determinada coisa. A poesia é sempre ou em grande medida aberta a interpretações e associações, comportando ambiguidades e pluralidades. Nas músicas de CSNZ há referência às revoluções políticas, à personagens e influências diversas, obras e cenas daquele tempo ou de épocas passadas, saberes antigos, filosofias, ao 271 cangaço, etc. Há muitas referências à cultura científica, à computação, tecnologia e transmissão de informação. Uma das mais marcantes evidências da relação do Manguebeat com a cultura científico-tecnológica é o fato de no início o nome do movimento ter sido grafado como Manguebit, por exemplo, além de toda a relação com antena e eletricidade – sendo estas palavras em letras das músicas. Bit é a menor unidade de informação que pode ser transmitida ou armazenada em um computador. A nova música foi inicialmente chamada de mangue bit, em alusão a seu traço de contemporaneidade, que mesclava elementos culturais populares com os globais, representados, entre outros, pelos símbolos da tecnologia informática. A imprensa não entendeu o simbolismo e, confundida com a grafia, passou a chamar a música de mangue beat, fazendo uma associação a beat generation que inspirou toda a rebeldia e os câmbios de costumes iniciados pela juventude do século XX. A grafia usada neste trabalho é uma concepção mais moderna e livre da música (MARKMAN, 2007, p. 142). Muitas são as referências de que os envolvidos com o Manguebeat, que eram muitos e de diversas áreas, sendo que, segundo um dos envolvidos na cena, “o grupo pioneiro era formado por artistas plásticos, jornalistas e músicos, todos de uma forma ou de outra, desejando canalizar sua criatividade para alguma coisa” (RENATO L apud MARKMAN, 2007, p. 139). Embora tivesse uma noção do que estava acontecendo, não tinham total controle sobre os desdobramentos, algo que se coaduna com o entendimento de que “ao manter as tradições vivas em face de influências externas, agimos de maneira apenas parcialmente consciente” (FEYERABEND, 2007, p. 361). Em termos de arte, e mais especificamente de arte visual, percebe-se a presença forte da perspectiva, por exemplo, tanto nas capas dos cd’s de Chico Science & Nação Zumbi como de Mundo Livre S/A. A seguir comentar-se-á sobre as músicas presentes nos dois cd’s lançados por Chico Science & Nação Zumbi antes da morte de Chico Science, sendo as colocações acerca das músicas uma das muitas interpretações possíveis. Não se tem o intuito, obviamente, de esgotar o que essas obras de arte possuem de heurístico - característica de toda obra de arte -, nem aquilo que pode ser percebido acerca delas, mas apenas expor pontos e temas que gerem possíveis relações dessas produções com o que já se discutiu até o momento. Se visa utilizar essas exposições e colocações como meios pedagógicos, e como nenhuma obra de arte é também tão hermética que dela não se possa falar algo, se fará essa descrição interpretativa. Na capa do cd Da Lama ao caos há um pontilhado cruzado que está presente em toda a imagem. Há também muitos retângulos irregulares, de cores diferentes, por exemplo. Um 272 contraste entre cores, imagens e formas, menção a animais e símbolos diversos (presentes também na contracapa). Figura 114 – Capa de Da lama ao caos, primeiro disco da banda Chico Science Nação Zumbi (1994) 273 Figura 115 – Contracapa de Da lama ao caos (1994) A primeira faixa de Da lama ao caos, primeiro cd de Chico Science Nação Zumbi, intitulada Monólogo ao pé de ouvido, começa com uma batida forte tendo ao fundo algo como um coaxar de sapos em um pântano, em um mangue, ou algo como um lugar distante: “Modernizar o passado É uma evolução musical Cadê as notas que estavam aqui Não preciso delas! Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos O medo dá origem ao mal O homem coletivo sente a necessidade de lutar o orgulho, a arrogância, a glória Enche a imaginação de domínio São demônios, os que destroem o poder bravio da humanidade Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi! Antônio Conselheiro! Todos os panteras negras Lampião, sua imagem e semelhança Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.” 274 Faz alusão a diversos tipos de revoltas populares para em seguida defender a supremacia do canto como forma eficaz de estar e agir no mundo, como também do improviso. Há uma forte presença em Pernambuco da figura do brincante. O riso, o canto e a dança são parte significativa da história do mundo, embora, sejam alvo de controle em defesa de um saber sério. Nietzsche, diga-se de passagem, em seu Gaia Ciência (2001), defende a volta de uma ciência alegre, da dança – ele que é um dos pensadores mais provocativos e originais dos últimos séculos. Chico Science e a cena mangue mostram que a comédia, a diversão e o riso, podem ser parte de uma atitude política e de pensamento, como Nietzsche já asseverara, e não apenas uma forma de negar a existência ou aliviar o seu fardo, nem tampouco ser mote para deixar a resolução das coisas para um outro mundo, como é feito pela comédia cristã – presente em toda a obra de Ariano Suassuna, inclusive. Algo também presente na letra da canção é a noção de que o mal e o orgulho podem surgir quando se vive em coletividade, mas que se deve lutar contra isso, que deve ser combatido – embora deixe transparecer em alguma medida que o mal tem também sua utilidade. É salutar essa menção à arte, à dança e à diversão como atividades relevantes para um enfrentamento mais sutil do viver. Afinal, como colocou Schiller, em A educação estética do homem, chamando destacando a pertinência daquilo que ele chamou de impulso lúdico e forma viva, “com o agradável, com o bem, com a perfeição, o homem é apenas sério; com a beleza, no entanto, ele joga” (SCHILLER, 2002, p. 79). Na letra da música da CSNZ também está presente a noção de modernizar o passado, e em alguma medida um descrédito na noção de representação moderna. Ao mesmo tempo que fala em modernizar o passado cita que não há necessidade das notas musicais, por exemplo. As músicas da banda chamam atenção para a maquinização do mundo, falam de tradições locais, de samba, e ao mesmo tempo de tecnologia, ciência, lendas e ficções. Tratam da cidade - tema recorrente em contextos poéticos, proféticos e diversos -, como lugar físico e seus problemas. Da desigualdade social, da Revolução Praieira e de potencialidade, ao defender que “no caminho é que se vê a praia melhor para ficar”, na música A Praieira, por exemplo. É nessa música também que está a expressão “fronteiras dos jardins da razão”. Na sétima faixa, Da lama ao caos, encontram-se as seguintes passagens: “Posso sair daqui para me organizar Posso sair daqui para desorganizar 275 Posso sair daqui para me organizar Posso sair daqui para desorganizar [...] Que eu me organizando posso desorganizar Que eu desorganizando posso me organizar Que eu me organizando posso desorganizar” Como o título da música, que também é o título do cd, faz referências a Caos. Jorge Mautner, músico e escritor brasileiro, autor de Fundamentos do Caos e Kaos (MAUTNER, 1963, 1983), exerceu uma notável influência sobre a musicalidade de Chico Science Nação Zumbi. Organização e desorganização têm relação com as leis da termodinâmica. Embora a discussão acerca de cosmos e caos se dê desde bastante tempo, não sendo muito claro quando se começou a considerar essas noções. Com as teorias físicas da termodinâmica se tem um novo e importante capítulo dessa história, pois, de acordo com a lei da entropia o universo tende à desordem. Pode-se questionar o seguinte: a noção de caos presente na cultura é ressonante com a ideia de caos da ciência ou se trata de um desenvolvimento diferente? Os trocadilhos dos versos da canção cuja letra fora transcrita acima têm sim relação com a teoria do caos, já que trata de organização e desorganização e certa instabilidade eminente. Organizando posso me desorganizar? Desorganizando posso me organizar? Esse trecho da música pode suscitar tal questionamento, sobretudo, quando se considera a ambiguidade como fator mediador entre as pessoas e a cultura e o saber de uma forma geral. Em que medida a teoria científica atual do caos interage ou se relaciona com esses questionamentos? Diga-se de passagem que muitos foram os estudiosos que se interessaram por estudar esse tema do caos, dentre eles Francis Bacon e Giordano Bruno, por exemplos. Em Computadores fazem arte, música da autoria de Fred Zero Quatro, da banda Mundo Livre S/A, está dito (diga-se de passagem, que Fred canta uma versão em Guentando a ôia que é diferente daquela que Chico Science canta, usando, por exemplo, ao invés de “computadores avançam”, “pesquisadores avançam”): “Computadores fazem arte êêêê Artistas fazem dinheiro, ôôôô dinheiro. Computadores fazem arte Artistas fazem dinheiro, dinheiro. Computadores avançam Artistas pegam carona. Cientistas criam o novo Artistas levam a fama” 276 Essa letra está repleta de toda a ironia e ambiguidade que são inerentes a muitos tipos de manifestação poética, sobretudo no que se pode chamar de poesia pós-moderna, fragmentada, presente também em muitos outros contextos poéticos, não sendo algo criado ou trazido pelo Manguebeat – embora se reconheça a originalidade do movimento. Na música tem- se os computadores como representantes da tecnologia e da ciência, que criam as coisas e os artistas como aqueles que apenas lucram e nada fazem, que pegam carona? Atente-se que no verso final há um “tropo”, “cientistas criam o novo / artistas levam a fama”. Na última das catorze faixas de Da lama ao caos, tem-se a música Coco Dub (Afrociberdelia), já antecipando o que seria o segundo disco da banda, Afrociberdelia. Esta canção que volta a fazer menção em alguma medida à Teoria do Caos, agora tratando de quantização, de ruptura, de física quântica: “Cascos, cascos, cascos Multicoloridos, cérebros, multicoloridos Sintonizam, emitem, longe Cascos, cascos, cascos Multicoloridos, homens, multicoloridos Andam, sentem, amam Acima, embaixo do Mundo Cascos, caos, cascos, caos Imprevisibilidade de comportamento O leito não-linear segue Para dentro do universo Música quântica” A física moderna foi um acontecimento relevante em vários aspectos, inclusive por ter mostrado que os cientistas argumentam, defendem e criam discurso ao defenderem suas teorias. Recorrem à escrita, a determinadas palavras, expressões, e todo o ideário que elas carregam, ao verbo, embora falem apenas em logos. Mas a pergunta é: e o verso? Afinal, o universo, o mundo, a totalidade de tudo que existe, pela etimologia da palavra, comporta tanto a unidade, o uno, como a mudança. Nessa canção Chico Science Nação Zumbi tratam da não- linearidade, tocando num dos temas caros à física moderna, que é reversibilidade ou irreversibilidade do tempo, seta do tempo etc. Em Afrociberdelia, o segundo disco de Chico Science Nação Zumbi, a banda apresenta muitas referências, desde o Pastoril do Velho Faceta à Jorge Bem & Os Mutantes, passando por Jorge Mautner e Nelson Jacobina, pela ficção científica de Issac Asimov, e pela mente inventiva de Santos Dumont. A versão em cd, que será aquela apresentada aqui, tem 277 vinte e três faixas, sendo que as três últimas são remixes de Maracatu Atômico, composta por Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Chico Science, principal compositor da banda, utilizou muito nas letras a métrica do cordel, em ambos os cd’s. É interessante notar que algumas das temáticas e simbologias presentes nas letras de música e nas artes de CSNZ figuram também nos cordéis (o que pode ser evidenciado a seguir, quando se fará referências a alguns folhetos). Na literatura de cordel, como também na cultura de uma forma geral – como em desenhos animados, quadrinhos etc. -, como se mostrou na sessão anterior, estão presentes conhecimentos envolvendo aritmética, geometria, perspectiva e fantasia (embora não obrigatoriamente estejam todos esses conhecimentos presentes em todas as obras), como podem atestar os nomes dos folhetos, e, sobretudo, as capas: O testamento da Cigana Esmeralda, O casamento do bode com a raposa, O casamento do calango, Uma viagem ao céu, História de Juvenal e o Dragão, História do cachorro dos mortos, História do boi Misterioso, Proezas de João Grilo (Figura abaixo). Uma das coisas que diferenciam os quadrinhos do cordel, por exemplo, é que eles apresentam tanto diálogo como desenho em toda a obra. No cordel figuras e imagens aparecem apenas na capa. Figura116 – Capa do folheto de Cordel Proezas de João Grilo 278 O cordel prima pela métrica na construção dos versos, tendo pouca presença nesse gênero a ambiguidade no sentido de algo criativo e heurístico, aberto, que caracteriza outras formas poéticas, embora esteja sempre presente um certo jogo com as palavras, como trocadilhos e etc. O uso da rima em alguma medida contribui para que se considere a literatura de cordel como uma cultura fechada, embora seja parte do que se convencionou chamar de cultura popular. Há um entendimento defendido por muitos estudiosos e autores, segundo o qual, aquilo que se chama de cultura popular é na verdade uma apropriação dos saberes de um povo ou comunidade pela classe dominante como uma forma de manter uma certa distância e uma constância na forma e no conteúdo. Segundo esse entendimento, a noção de “popular” atuaria como blindagem e manutenção da desigualdade e conservação de tal modelo desigual, contribuindo para evitar mudanças e o surgimento de formas híbridas, que incorporem outros elementos, discussões e temáticas, gerando mobilidades (MARKMAN, 2007). O Cordel, o Repente e a Embolada são manifestações bastante ricas, como pode ser percebido ao se interagir minimamente com estas. Esse universo é uma das bases do Manguebeat - nas palavras do próprio Chico Science, o que eles queriam era introduzir o sample à arte do repentista (MARKMAN, 2007). Essas manifestações continuam vivas, inclusive no que toca à realização de eventos periódicos. Mediante a observação do cartaz abaixo, por exemplo, pode-se perceber que o cordel mantém uma relação com conhecimentos que comportam ao mesmo tempo a menção a animais (reais e/ou fantásticos), a números, contagens e numerologias, símbolos, simbologias e perspectivas (Figura abaixo). 279 Figura 117 – Cartaz de divulgação de uma feira de cordel realizada em 2015 O Afrociberdelia está repleto de referências à doutrinas matemáticas e outros conhecimentos, tanto nas imagens das capas como na métrica das letras etc. Na capa do disco, vê-se cinco linhas, como de um pentagrama de partitura musical, só que ao invés de uma clave tem um arroba (@). 280 Figura 118 – Capa de Afrociberdelia¸ segundo álbum de Chico Science Nação Zumbi (1996) No encarte do cd, pode ser visto um comentário feito por Bráulio Tavares, que defende publicamente a semelhança do repente com o rap - e que tem, o que ele chama, de teorias de ficção científica sobre o surgimento do cordel -, sobre o significado e relações para o termo Afrociberdelia (Figura abaixo). 281 Figura 119 - Sobre Afrociberdelia¸ no encarte do cd homônimo 1 Mateus enter (Nação Zumbi, Chico Science) 2 O cidadão do mundo (Nação Zumbi, Eduardo BiDiovski, Chico Science) 3 Etnia (Lúcio Maia, Chico Science) 4 Quilombo groove - Instrumental (Nação Zumbi, Chico Science) 5 Macó (Jorge du Peixe, Eduardo BiDiovski, Chico Science) 6 Um passeio no mundo livre (Pupilo, Lúcio Maia, Gira, Jorge du Peixe, Dengue, Chico Science) 7 Samba do lado (Nação Zumbi, Chico Science) 8 Maracatu atômico (Nelson Jacobina, Jorge Mautner) 9 O encontro de Isaac Asimov com Santos Dumont no céu (H. D. Mabuse, Jorge du Peixe, Chico Science) 10 Corpo de lama (Lúcio Maia, Gira, Jorge du Peixe, Dengue, Chico Science) 11 Sobremesa (Renato L, Nação Zumbi, Jorge du Peixe, Chico Science) 12 Manguetown (Lúcio Maia, Dengue, Chico Science) 13 Um satélite na cabeça [Bitnik generation] (Nação Zumbi, Chico Science) 14 Baião ambiental dub - Instrumental (Lúcio Maia, Gira, Dengue) 15 Sangue de bairro (Nação Zumbi, Chico Science) 16 Enquanto o mundo explode (Nação Zumbi, Chico Science) 17 Interlude Zumbi (Bolla B, Gira, Chico Science, Toca Ogam) 18 Criança de domingo (Cadão Volpato, Ricardo Salvagni) 19 Amor de muito (Nação Zumbi, Chico Science) 20 Samidarish (Lúcio Maia, Dengue) 21 Maracatu atômico - Atomik Version (Nelson Jacobina, Jorge Mautner) 22 Maracatu atômico - Ragga Mix (Nelson Jacobina, Jorge Mautner) 23 Maracatu atômico - Trip Hope (Nelson Jacobina, Jorge Mautner) 282 A primeira música do álbum se chama Mateus enter. Este título já apresenta o que é uma característica da banda, misturar referências locais com outras da cultura pop, utilizando inclusive a língua inglesa em algumas músicas. Mateus – assim como Catarina (ou Catirina) – é um personagem da brincadeira do Cavalo Marinho. A música é bem curta, tem apenas trinta e quatro segundos. Apresenta uma noção de que há alguém que traz a luz para os olhos, alguém que vê mais longe do que os demais.39 Chama a atenção para os elos que o coração pode construir. É mencionado que Pernambuco está embaixo dos pés, consciente de que as tradições têm seu lugar, embora a mente esteja na imensidão. Pode-se conjecturar que a palavra Mateus advém ou guarda relação com a palavra mathemas, de onde teria se originado a palavra matemática, estando relacionada a regras, padrões, imagens e doutrinas (YATES, 1964). No encarte (Figura abaixo) na página em que tem a letra das cinco primeiras músicas. Chico Science aparece vestido com uma camisa que tem a figura de uma arroba, símbolo da internet. Ele faz um gesto com os braços como se tivesse voando do um para o três, que juntamente com quatro e cinco forma outro triângulo. Figura 120 - Página do encarte, com as cinco primeiras músicas do cd Afrociberdelia 39 Diga-se, de passagem, que nessa época Chico Science passou a cantar nos shows uma versão de uma música de Roberto Carlos, a quem chamava pela alcunha de “Rei do Iê Iê Iê”, chamada Todos estão surdos, que acaba por considerar algo no mesmo sentido desta música, e assim como esta prega o amor: “Mas meu amigo volte logo / Vem olhar pelo meu povo / O amor é importante / Vem dizer tudo de novo”. Chico acrescenta a essa música a seguinte parte: “Ei você que está aí sentado, há um líder dentro de você, governe-o, faça-o falar, faça-o falar”. 283 A segunda música, O cidadão do mundo, trata de questões de natureza social, desigualdade econômica, como também da religiosidade do maracatu, ao mesmo tempo em que chama a atenção para o mundo enquanto manifestação, como o lugar onde as ações acontecem. Trata de ar, de frio, de velocidade, de Vodu40 (Figura abaixo), nação, coroação, e de batalha pela sobrevivência. A expressão Daruê Malungo41 também é mencionado na música, que remete às origens do movimento: Tudo teve início em 1991, quando Francisco de Assis França (Chico Science), conduzido por Gilmar “Bola Oito”, um colega de trabalho da Emprel, (Empresa de Informática da Prefeitura de Recife) e que depois seria um dos músicos do grupo Nação Zumbi, conheceu o grupo de cultura afro chamado Lamento Negro. Especialista em samba reggae, a agremiação desenvolvia na periferia urbana um trabalho de educação popular realizado pelo “Centro de Apoio a Comunidade Carente Daruê Malungo”, que funcionava na comunidade de Chão de Estrelas. Chico ficou impressionado com a energia que emanava da música de raízes negras do grupo e passou a realizar experimentos com uma nova batida que fazia a fusão de ritmos regionais , como o maracatu, o coco de roda, o caboclinhos, com os ritmos da black music internacional e que batizou de mangue (MARKMAN, 2007, p. 139 - 140). O tema da fome – que permeia a obra da banda Nação Zumbi, mesmo depois de Chico - também é mencionado na letra, assim como o nome de Josué de Castro, geógrafo pernambucano que ficou mundialmente conhecido por sua Geopolítica da Fome, e que era conhecido como “cidadão do mundo”. Destaque-se o neologismo mencionado no fim da música, quando ele menciona que “um ficou roubando a missa e quatro deram no pé”: “Chila, Relê, Domilindró!!!!” 40 Paul Feyerabend, em Contra o método, baseando-se em trabalhos de Keynes, De Santillana, Hawkings, Marshack, Seidenberg, Van der Waerden, dentre outros, trata de como conhecimentos antigos “dos quais a história dos argonautas é fruto tardio” (SANTILLANA apud FEYERABEND, 2007, p. 66), como o vodu, tinham relação com conhecimentos astronômicos e teorias explicativas sobre o surgimento do mundo, que “deixaram vestígios em sagas, mitos e lendas” (FEYERABEND, 2007, p. 66) e que uma forma de reconstruir esses saberes é interagindo com tais lendas e mitos. Portanto, quando Feyerabend fala que se poderia educar pela história da magia, dos mitos e das lendas ele não está tratando de algo absurdo. Em trecho ele menciona ainda que se o vodu fosse visto por completo ver-se-ia bastante relações presentes nele com outras correntes e em outros conhecimentos com os quais se interage frequentemente. 41 Que “significa em idioma yoruba, companheiro de guerra” (MARKMAN, 2007, p. 146). 284 Figura 121 – Bandeira Vodu A terceira música é intitulada Etnia, que trata tanto de miscigenação, como de conhecimentos diversos: “por de trás de algo que se esconde há sempre uma grande mina de conhecimentos e sentimentos”. Chama a atenção para a arte, sobretudo a arte do povo - destacando o primor do fazer -, e para a alegria. A mistura da qual a música fala, não é só de raças, mas de referenciais, como se pode perceber por meio das expressões “maracatu psicodélico”, “bumba meu rádio”, “berimbau elétrico”, por exemplo. A quarta música é apenas instrumental, Quilombo Groove, carregada na guitarra e no ritmo forte de terreiro. Como muitas das músicas da banda, é necessário ouvir para participar de todas as nuances que a obra envolve. Assim também o é com a música Macô. Essa que é a quinta música do álbum, se inicia com uma referência, nos quatro primeiros segundos, à música Minha menina, de Jorge Bem & Os Mutantes. É mencionado a expressão “zambo”, que é sinônimo de cafuzo, pessoas que nascem da relação entre negro e indígena. Muitas vezes pode ser chamado Sambo também, sobretudo em países de língua inglesa. 285 Em geral, nas letras da banda há uma clara presença da ambiguidade no que concerne aos temas e significados. Não se tem muito ao exato como saber o que macô significa, embora se possa especular bastante coisa. Maco” em catalão significa “bonito”, por exemplo. Pode-se ainda considerar que a palavra seja uma referência a “Machon” (ןוכמ), que é o nome de um dos sete céus segundo a tradição judaica do Talmud. Essa palavra em sendo traduzida do hebraico para o português tem como correspondência “beleza”. Pode-se ainda conjecturar que possa ser uma referência, ou ser uma variante, de “Macaon” ou “Macaón”, que é tido como um dos dois filhos homens de Asclépio42 (Esculápio para os romanos) – sendo isso citado no livro Ilíada de Homero -, considerado pelos gregos antigos como o deus da medicina, sendo um grande conhecedor de plantas medicinais e condimentos, preparos e práticas com plantas. 42 Asclépio é ainda o título de um escrito antigo atribuído a Hermes Trismegisto, cujas obras foram traduzidas por Marcilio Ficino, na Renascença. Segundo Yates: “O melhor guia para o pensamento de Ficino a respeito do Asclépio é, portanto, o argumentum que precede a sua tradução do Corpus hermeticum, chamado por ele Pimandro, onde declara que, das duas obras de Hermes Trismegisto, duas são ‘divinas’. Uma é a obra sobre a Vontade Divina, e a outra, sobre o Poder e Sabedoria de Deus. A primeira delas é chamada Asclépio, e a segunda, Pimandro”. (YATES, 1964, p. 52 - 53). Hermes fora uma figura que teve uma revivescência muito grande na Europa renascentista: “O mosaico de Hermes Trismegisto e das sibilas foi colocado na Catedral de Siena durante o ano de 1480. Essa representação de Hermes Trismegisto nesse edifício cristão, colocada junto à entrada, de modo tão relevante, concedendo-lhe tão alta posição espiritual, não é um fenômeno local e isolado, mas um símbolo do apreço com que o encarava a Renascença italiana, e uma profecia daquilo que seria sua extraordinária carreira através da Europa, durante o século VXI e boa parte do século XVII”. (Ibid. p. 56). Porém, depois da datação feita por Issac Casaubon, em 1614, “que os identificou [os escritos hermetistas] não como uma obra de um antiquíssimo sacerdote egípcio, e sim como escritos posteriores à era cristã” (Ibid., p. 440), a ligação do platonismo e o neoplatonismo renascentista com a figura de Hermes – Ficino, por exemplo, considerava aquela visão que o tinha como um antigo sacerdote egípcio - entrou em declínio, e com isso também a sua popularidade, por ele não ser algo tão desconhecido como se pensava. No entanto, segundo Frances Yates, “[e]ssa história revela as raízes da transformação pela qual passou o homem, quando sua mente deixou de se integrar à vida divina do universo. Em companhia de ‘Hermes Trismegisto’, palmilhamos as regiões fronteiriças entre a magia e a religião, entre a magia e a ciência, entre a magia e a arte, ou a poesia, ou a música. Nesses evanescentes domínios habitava o homem da Renascença, e o século XVII perdeu a pista que conduzia à personalidade desse magnum miraculum” (Ibid., p. 499). Acerca dessa problemática toda, Yates pontua ainda: “A Hermética, aliás, não perdeu a validade como um importante documento da experiência religiosa pelo fato de ter sua data corretamente determinada. Os modernos eruditos ainda não chegaram a um acordo sobre os ensinamentos genuinamente egípcios que ela contém, quer sejam muitos ou poucos” (Ibid., p. 474). Mesmo sem ter como justificar tal posição, Yates (assim como Snow), acaba por postular que houve uma ruptura total entre a época da renascença e o período posterior, cujo marco a autora fixa no século XVII. Tanto o manguebeat, como a física moderna, por exemplos, parecem informar o contrário disso, que algumas questões de outrora ainda se mantém vivas. 286 Figura 122 – Esculápio / Asclépio, para os gregos e os romanos, o deus da medicina Destaque-se na letra a sinalização para certas junções fonéticas – esse efeito pode ser percebido em “Ô Zé Mané Ô”, por exemplo -, e sobretudo a ambiguidade e a possibilidade de trânsito que há nos enunciados. Macô pode significar um cara que quer ser descolado sem sê- lo, algo como um aproveitador, mas também pode significar ou fazer menção a outras coisas, como vimos acima. Pode-se considerar que isso se estende a toda a música, em trechos como “olha só que menina bonitinha pra poder ficar comigo tem que saber de cozinha” e outros. Em Um passeio pelo mundo livre, assim como em outras músicas, há algo que escapa e que não está nos registros do encarte, não sendo possível saber na íntegra o que está sendo cantado, algo como gritos e/ou neologismos. A letra fala de um passeio em um mundo sem sociedade, de amizade e de eletricidade, e de não ser incomodado, de liberdade. Música carregada nos metais, chama ainda a atenção para a constante mudança, ao lembrar que se dando “um passo à frente”, não se “está mais no mesmo lugar”. “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar Eu só quero andar Nas ruas de peixinhos Andar pelo Brasil Ou em qualquer cidade Andando pelo mundo sem ter sociedade Andar com meus amigos de eletricidade 287 Andar com as meninas sem ser incomodado Na na na na na na na na na Na na na na na na na na na Na na na na na na na na na Na na na na na na na na na Eu só quero andar nas ruas do Brasil Andar no mundo livre sem ter sociedade Andando pelo mundo De todas as cidades Andar com meus amigos sem ser incomodado Andar com as meninas de eletricidade Na na na na na na na na na Na na na na na na na na na Na na na na na na na na na Na na na na na na na na na Segura essa levada, segura o maracatu! Segura essa levada, segura o maracatu! Segura essa levada, segura o maracatu! Segura essa levada, segura o maracatu! ‘[Mangroove]’ Eu só quero andar nas ruas do Brasil eu só quero andar em todas as cidades Eu só quero andar sem ser incomodado Andar com as meninas de eletricidade” A sétima música do disco é Samba do lado (Figura abaixo). Como o próprio nome faz alusão, a música trata do samba ou zambo. Relaciona o samba com memória ou lembrança: “Lembro quase tudo que sei, e organizando as ideias, lembro que esqueci de tudo. Mas, eu escuto o samba!”. Nos sete primeiros segundos iniciais se escuta apenas o baixo, só depois passa-se a escutar o som da guitarra e de outros instrumentos. A música sinaliza, provavelmente, para a necessidade de se ter posicionamento acerca de algo - “Você samba de que lado? De que lado você samba? De que lado, de que lado, de que lado, de que lado você vai sambar?” -, assim como de problema e solução: “O problema, são problemas demais, e não correr atrás da maneira certa de solucionar”. 288 Figura 123 - Imagem presente no encarte de Afrociberdelia A oitava música é uma versão de Maracatu atômico, composta por Nelson Jacobina e Jorge Mautner em 1974. A versão que Chico Science canta é um pouco diferente, porque incorpora um refrão que não tem na música original. Algo a se destacar é que no encarte do cd esse acréscimo também não está presente como parte da letra (Figura abaixo). 289 Figura 124 - Imagem presente no encarte de Afrociberdelia Em alguns sites de letras de música (como, por exemplo, http://letras.mus.br/nacao- zumbi/432564/) pode-se encontrar a letra dessa música. No entanto, a letra que se tem naquele sítio da internet, e em muitos outros, ainda mantém algumas alterações com relação àquela que se pode ter acesso em áudio. Ao escutar a música pode-se percebe que Chico ao cantar o refrão pronuncia “manamauê auêia aê” e não “anamauê auêia aê”, como está presente na transcrição da letra nos sites. Ou que, pelo menos, que ambas as formas são faladas pelo músico olindense. Outra coisa a se destacar é que o refrão no final é repetido quinze vezes e não apenas quatro, como é apresentado acima. Essa é uma das letras que é muito rica em termos de possibilidade de discussões e problematizações, já que trata de vários temas relacionados com ciência - céu, estrelas, raios e para-raios – como também de arte e outros conhecimentos, relação entre culturas e/ou povos, de forma praticamente indissociada. A nona música é O encontro de Isaac Asimov com Santos Dumont no céu. O título parece título de folheto de cordel, embora “céu” aqui ao que parece não se refere àquele céu metafísico (influência do neoplatonismo) de que tratam, com frequência, as estórias presentes naqueles folhetos. O céu retratado parece algo físico, material e de agora, algo experiencial, 290 empírico em alguma medida, no sentido de que é do mundo que vem as impressões (“a certeza de que estou sólido em toda a área que ocupo”), do contato com o mundo, com o firmamento. Está muito presente uma determinada concepção de espaço – sendo, este, inclusive, um tema recorrente na obra da banda –, um conceito de grande importância para a física. Há também uma certa menção, que está mais para uma complementaridade do que para uma contrariedade, entre o sólido e o aéreo (a mudança, o voo). O ar, mediante a letra, remete à possibilidade do voo. Destaque-se ainda os nomes citados, Santos Dumont, um inventor de aparelhos avoantes, e Isaac Asimov, um escritor de ficção científica, ambos tendo relação tanto com o palpável, material e técnico, como com a imaginação, a ficção. É conhecida a contribuição de Santos Dumont para a aviação. Asimov foi um escritor com grande produção, abrangendo os mais diversos temas, como tecnologia, ciência, magia, mistério, estrelas, fantasia e sorte. A décima música do cd é Corpo de Lama. Na letra da música há, como nas demais, uma mistura de concepções, informações e ideias. A música foi composta por Lúcio Maia, Gira, Jorge du Peixe, Dengue, Chico Science – seguindo uma característica da banda, segundo a qual as música sempre eram em parceria, não sendo nenhuma delas de autoria de Chico Science apenas, por exemplo. Logo no início da letra se pode perceber um trocadilho entre as palavras “sou” e “soul” (soul é uma palavra de origem inglesa que significa alma, sendo também o nome de um ritmo e de estilo de música). Assim, de acordo com o que está posto na letra nas duas primeiras linhas, se pode considerar que o corpo de lama (por curiosidade, trocando-se as posições das duas primeiras letras desta palavra ela se torna alma, sendo uma anagrama da outra). A música faz uma menção ao Sol, que, de uma forma geral na cultura, é tido como símbolo de luz e de conhecimento. É feito um apelo para que o Sol não seque os pensamentos e que a chuva mude os sentimentos. Tem-se presente nessa música, mais uma vez, o tema da amizade sendo posto, como também menção a grupo, o bando, ao mencionar que se seguirão o “grupo de caranguejos ouvindo a música dos trovões”. Ainda que não se possa garantir que tal trecho é uma alusão a isso, pode-se fazer uma relação, em termos interpretativos, deste trecho – bem ao gosto manguebeatano – com o já mencionado trecho presente no fim do livro Timeu, e com o seguinte presente no livro do Apocalipse, cuja autoria é atribuída a João e que consta atualmente como um dos livros da bíblia cristã (tendo sido considerado em muitos momentos um livro herético, destaque-se): “Quando os sete trovões ribombaram, eu estava para escrever, mas ouvi do céu uma voz que me dizia: ‘Guarda em segredo o que os sete trovões falaram, e não o escrevas’” (Apocalipse, 10 : 4). 291 Pode-se entender esse trecho como sendo também uma menção à incomensurabilidade, já que o livro de Apocalipse tem muitas referências ao neoplatonismo e ao gnosticismo, e, como foi exposto, o tema da incomensurabilidade e da irracionalidade – que inclusive casa muito bem com a “imprevisibilidade de comportamento” que marca a proposta do Manguebeat - estava sempre presente em obras platônicas e neoplatônicas, sendo quase sempre tratado de forma cifrada. Diga-se, de passagem, que nas escrituras sagradas judaico-cristã há muitas outras possíveis referências a eventos astronômicos e conhecimentos ou problemas sem solução que integravam as ciências da época, como, por exemplo, o trecho presente no capítulo dez do livro de Josué, que trata do dia em que o Sol parou no meio do céu e lá se deteve. Em seguida, na música, é estendido também para chuva, sol, rua e mangue aquilo que antes fora menciona para o corpo de lama, sobre “imagem” e “soul”. A música termina com uma fala meio em tom de manifesto: “deixar que os fatos sejam fatos naturalmente, sem que sejam forjados para acontecer deixar que os olhos vejam os pequenos detalhes lentamente deixar que as coisas que lhe circundam estejam sempre inertes como móveis inofensivos para lhe servir quando for preciso e nunca lhe causar danos, sejam eles morais, físicos ou psicológicos” A décima primeira música é Sobremesa. Logo na primeira linha da letra da música há a presença de uma frase de teor ambíguo, ao mencionar que alguém caminha “no sol” da manhã. Depois de mencionar que não tem nada, “apenas umas botas pretas sujas e uma pequena flor em suas mãos”, de mencionar o que vê na cidade, e de que sua mente está voando, expõe que vê “um muro velho” em sua face e que “uma cadeira flutua numa espiral”. A espiral é um tema que pode ser abordado em sala de aula, estando presente tanto em assuntos de Física como de Artes, por exemplo. 292 Figura 125 - Imagem presente no encarte de Afrociberdelia A música número doze é Manguetown. Começa com Toca Ogan, um dos integrantes da banda, falando algo que não se sabe bem o que é (próximo do fim da música). Ao final desse trecho do início ele pronuncia ainda “ia yellow people”. Ao começar fala de estar “enfiado na lama”, que “os urubus têm casas” e que ele (o eu lírico) não tem “asas”. Logo depois ele diz que está em sua casa, “onde os urubus têm asas”. Aqui urubu é usado em duas acepções: como o animal que habita os lixeiros, e, em sentido metafórico, para designar a pressão e o descaso que a cidade é acometida e aqueles que comandam as coisas (sua forma agressiva e devastadora de agir) e sua relação com os “homens caranguejos”, aqueles que habitam a beira dos mangues – como é tratado também na música Da lama ao caos, do cd homônimo. É dito que a manguetown, a cidade-mangue é suja, a música fala de sujeira. É mencionado ainda um certo zoomorfismo do personagem, ao ser exposto que com as asas que os urubus lhe deram este voa “por toda a periferia”. Manoel Bandeira, poeta pernambucano, por exemplo, tem um conhecido poema intitulado O bicho, onde narra uma situação em que um homem é visto como um bicho ao catar lixo no pátio – sendo esse tema do zoomorfismo recorrente em toda a história e literatura (indo do Egito à Praga, por exemplo). A décima terceira música é Um satélite na cabeça (bitnik generation). A música fala de satélite, de conquistar-se o próprio espaço, e de tempo, uma noção fundamental para a apreensão da realidade, e um conceito basilar para a física. Além de fazer alusão ao tempo como um pássaro, a música sugere também a noção de tempo como um encontro entre a possibilidade e o ato. O tema do bairro, algo recorrente no Manguebeat, como uma localidade e comunidade 293 do mundo, também é mencionado. Fala de um “boneco que apareceu no dia da fogueira e [que] controla seu próprio satélite”, em alguma medida talvez fazendo menção às simpatias e “experiências” que se faz nas festas da colheita (festas pagãs da fertilidade, dionisíacas), como as Festas de São João aqui no Brasil – que, diga-se de passagem, remetem ao fenômeno astronômico do Solstício de verão no hemisfério norte (maior dia do ano, Sol mais tempo no céu, por isso o nome, que faz referência a “sol estático”). Essa música pode ser utilizada para se introduzir temáticas como essas, que remetem a astronomia (inclusive relacionado a satélites também), como também outros saberes. A décima quarta música é instrumental, Baião ambiental dub, que tem uma pegada de xaxado, com momentos de dub, e um fim meio melancólico. A música faz referência ao baião, ritmo pernambucano criado por Luiz Gonzaga, incorporando também a batida do dub. A décima quinta música, Sangue de Bairro, é sobre o cangaço, sendo quase toda referente aos nomes de cangaceiros. Mas, também faz menção às noções de ruptura e continuidade, podendo servir de meio para que se discuta essas problemáticas, que perpassam os pressupostos da física moderna e que também têm relação com história da ciência e historiografia – que, embora não façam parte dos temas e conteúdos habitualmente abordados sem salas de aula do ensino médio, por exemplo, são de extrema importância quando se estuda ou faz menção à história da ciência, devendo em alguma medida fazer parte das discussões. A décima sexta música, Enquanto o mundo explode, trata da relação entre pressupostos, práticas, concepções e saberes antigos e modernos, como pode ser percebido no trecho “a engenharia cai sobre as pedras”, seguindo a proposta da banda e do manguebeat, de “modernizar o passado” – ou talvez de tornar o passado moderno numa mistura com o contemporâneo. Pode- se dizer ainda que trata também de algo como uma vontade em potência: “Fechando os olhos e mordendo os lábios sinto vontade de fazer muita coisa...” É mencionado na música batuque, batismo e bairro, como também o termo agricultura celeste, que tem relação e remete tanto à alquimia como à astrologia. No entanto, o termo é mais utilizado para designar conhecimentos astrológicos ou a própria astrologia, inclusive pela relação entre agricultura e astrologia. A astrologia tem como objetivo relacionar o Céu e a Terra, por isso a nomeação agricultura celeste, sendo agricultura relacionado à Terra, e celeste relacionado ao Céu. Esse entendimento tem relação com conhecimentos herméticos, com os ensinamentos e pressupostos atribuídos a Hermes Trismegisto, ou “Trimagister”, que significa três vezes mago. Talvez o principal ensinamento atribuído a Hermes é o entendimento de que o que está em cima é igual ao que está embaixo (ROSA, 2010). A agricultura celeste tem como 294 símbolo uma árvore, que aparece como símbolo, ou como parte da simbologia, tanto da cabala como da alquimia. A décima sétima música, Interlude zumbi, segue em alguma medida a anterior, sendo muito carregada no batuque a musicalidade, inclusive. A música é bem curta, tendo apenas um minuto e doze segundos de duração. Trata de Zumbi, que dá nome à banda, de tombo – que tanto pode se referir ao ritmo, como um tombo, uma chegada -, de dentro e fora, como fazendo menção a duas realidades, de aparição e de pensamento. A décima oitava música, Criança de Domingo, como o próprio nome sugere, trata do primeiro dos sete dias da semana. A música é da autoria da banda Fellini, uma das influências da Nação Zumbi. Trata de amor, do tema da chuva e do sol, presente também em outras músicas, de criança – símbolo de pureza, inocência e graça em várias culturas. Algo a se destacar é que, embora a música tenha Domingo como título, trata também, e sobretudo, do Sábado, o dia sabático, dia do descanso, dia da liberdade. O sábado é tido aí como sendo a criança do domingo, pode-se considerar. Trata de liberdade, afinal, ele vai rodar, não importa se faça sol ou chuva. Muitas são as pessoas e estudiosos que relatam a relação pessoal de Chico Science com essa música. José Teles, em seu livro, Do frevo ao manguebeat, pontua, por exemplo, o seguinte: “Enquanto guiava, no retão que leva a Olinda, naquela noite [do acidente que o levou a óbito], talvez Chico Science cantarolasse uma canção que havia gravado no seu último disco, “Criança de Domingo”, de um de seus grupos prediletos, o Fellini (TELES, 2012, p. 328). Chico Science faleceu devido a um acidente de carro no dia 02 de fevereiro de 1997, um Domingo, aos trinta anos de idade. A décima nona música, Amor de muito, trata de amor, de liberdade, de andar em cima do mar, de relações entre pessoas que se encontram, de desejo, de coração – que também é ritmo, sendo o coração uma estrutura muscular que bate constantemente dentro do corpo e que nos mantém vivos (para além de qualquer metafísica, uma questão inquietante). É dito que tanto o homem como a mulher sabem do desejo do coração do outro, coração aqui, como a conhecida concepção poética, artística, e não o coração enquanto o órgão que faz o bombeamento do sangue. A vigésima música é Samidarish, sendo em sua maior parte instrumental, com um toque forte de uma musicalidade que lembra o oriente, cultura árabe, sendo falado ao final, o texto transcrito abaixo. Não se tem como saber o que estava sendo nomeado com essa palavra, se foi mais um neologismo criado pelos mangueboys e manguegirls, inclusive. A música fala de 295 dinheiro, de compra, de troca, de imprevisibilidade, de reviravoltas e intrigas – “quem mandou, você falar de mim” - das relações e situações que se pode ter envolvendo o dinheiro, moeda e outras condicionantes. "Algum de nós algum de nós vai ter que comprar quem vai dar o troco? é preciso contar mas o dinheiro vai ficar sobre a mesa ali, empilhado e sujo até que lhe deêm outro nome ou, quem sabe, possa sumir por descuido de alguém por esperteza ser enfiado no bolso sujo e, agora, amassado e, aos poucos, de esquina em esquina as notas serão sacadas uma por uma um pastel, uma cerveja, um suborno flores, uma aposta, putas, sonhos... Quem mandou você falar de mim? (...) Aí, lôco!" Fazendo uma análise da palavra, pode-se pontuar que sami é uma palavra eslovena que equivale a “você mesmo” em português, sendo muito possivelmente uma alusão aos diversos povos semitas. E Darish, que pode ser traduzida do albanês como “língua” e do búlgaro como o verbo doar. Ao final da música é mencionada a expressão “aí, lôco”. A figura do louco é bem conhecida no Renascimento, sendo o Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdã, uma das obras que tratam de tal problemática. Nesse livro, a loucura é o personagem, que narra acontecimentos e faz questionamentos acerca da loucura e outras coisas. O louco é a primeira carta do Tarô – que é um artefato artístico-matemático com fortes traços neoplatônicos -, sendo atribuído a esta carta o número zero. As três últimas músicas, que completam as vinte e três músicas do cd –, são remixes, versões de uma mesma música, Maracatu atômico, sendo, respectivamente Maracatu atômico - Atomik Version, Maracatu atômico - Ragga Mix, Maracatu atômico - Trip Hope. Na última versão é mencionado em termos de letra, apenas o refrão – que, como já fora exposto não está presente na versão original da música de Mautner. O Manguebeat, por meio do ritmo mangue leva a fertilidade biológica dos manguezais, para a música. Segundo Markman esse movimento se caracteriza como uma cultura pós- moderna, desenvolvendo “um vocabulário do mangue, uma gíria própria, identificada com o 296 meio ambiente físico da cidade” (MARKMAN, 2007, p. 135), “injetando energia à cena cultural recifense” (TELES apud MARKMAN, 2007, p. 137), como está posto no manifesto Caranguejos com cérebro. Destaque-se ainda que nesse movimento figuram várias cenas - a cena física, a metáfora mangue e a cena cultural (MARKMAN, 2007) -, evidenciando que “a proposta não se restringia ao lançamento de um novo modo de fazer música, mas se prolongava em uma concepção político-filosófica, talvez inconsciente” (MARKMAN, 2007, p. 138). Segundo a autora, aqueles que faziam o movimento buscavam inaugurar “um novo estilo de vida, como ocorreu com outras manifestações que anteriormente causaram impacto social como a onda punk, o hip hop e o funk na sociedade carioca” (Ibid., p. 139). Após a morte de Chico Science, foi lançado ainda o cd CSNZ pela banda Chico Science ε Nação Zumbi, que consta de um álbum duplo, sendo o primeiro disco intitulado Dia, que possui onze faixas, e o segundo disco intitulado Noite, com dez faixas. O cd é composto de canções inéditas, gravações com a presença de Chico Science, regravações e versões de músicas da banda, tendo ainda a presença de outras bandas, como por exemplo, Planet Hemp e Sepultura. Figura 126 - Capa do cd CSNZ da banda Chico Science ε Nação Zumbi 297 Nos discos seguintes a banda passou a chamar-se apenas Nação Zumbi, tendo lançado já vários cd’s – como RÁDIO S.AMB.A – Serviço Ambulante de Afrociberdelia, Fome de Tudo e, o mais recente, Nação Zumbi43 (Figuras abaixo) -, que em alguma ou grande medida tratam de temas e simbologias semelhantes àquelas dos primeiros discos (embora nesse último a capa tenha feito mais referência a alguns órgãos e partes do corpo humano, dentre outros símbolos). Figura 127 - Capa do cd RÁDIO S.AMB.A (Serviço Ambulante de Afrociberdelia), da banda Nação Zumbi (2000) 43 1. “Cicatriz” 3:28 / 2. “Bala Perdida” 3:56 / 3. “O Que Te Faz Rir” 3:33 / 4. “Defeito Perfeito” 2:59 / 5. “A Melhor Hora da Praia” 3:19 / 6. “Um Sonho” 4:51 / 7. “Novas Auroras” 3:30 / 8. “Nunca Te Vi” 3:28 / 9. “Foi de Amor” 2:54 / 10. “Cuidado” 3:12 / 11. “Pegando Fogo” 2:36 298 Figura 128 – Capa do cd Fome de Tudo, da Banda Nação Zumbi (2007) 299 Figura 129 – Capa do novo cd da Banda Nação Zumbi, Nação Zumbi (2014) Uma outra banda integrante do movimento manguebeat foi a mundo livre s/a – que, diga-se de passagem, sempre grafou em suas letras de música e demais registros, Mangue Bit, inclusive tendo lançado recentemente um show em dvd (o primeiro da banda) cujo título é Mundo Livre S/A - Mangue Bit Ao Vivo. Os dois primeiros cd’s da banda foram samba esquema noise e guentando a ôia. Figura 130 – Capa do cd Samba Esquema Noise, da Banda Mundo Livre S/A (1994) 1. Manguebit 2. A Bola do Jogo 3. Livre Iniciativa 4. Terra Escura 5. Saldo de Aratú 6. Uma Mulher com W... Maiúsculo 7. Homero, o Junkie 8. Rios (Smart Dugs), Pontes & Overdrives 9. Musa da Ilha Grande 10. Cidade Estuário 11. O Rapaz do B... Preto 12. Sob o Calçamento (se Espumar é Gente) 300 13. Samba Esquema Noise Figura 131 – Capa do Cd Guentando a ôia, da Banda Mundo Livre S/A (1996) 1. Free World 2. Destruindo a Camada de Ozônio 3. Computadores Fazem Arte 4. Desafiando Roma 5. A Música que os Loucos Ouvem (Chupando Balas) 6. Tentando Entender as Mulheres 7. Girando em Torno do Sol 8. Seu Suor é o Melhor de Você 9. Militando na Contra-Informação 10. Leonor 11. Roendo os Restos de Ronald Reagan 12. Pastilhas Coloridas 13. Guentando a Ôia Mestre Ambrósio, Sheik Tosado, Devotos do Ódio, Banda Eddie, dentre outras, também foram bandas que integraram o Manguebeat (MARKMAN, 2007; TELES, 2012). Siba, integrante da banda Mestre Ambrósio (que lançou seu último cd em 2001, pouco antes de se desintegrar), é um dos mais destemidos nomes da nova geração de músicos e compositores brasileiros, tendo lançado juntamente com a Fuloresta do Samba o disco Toda vez que eu dou 301 um passo o mundo sai do lugar, e em sua carreira solo, os discos Avante (2012) e De baile solto (2015). Figura 132 – Capa do primeiro disco da banda Mestre Ambrósio (1996) O Manguebeat, ou seja, os artistas e bandas envolvidos nesse movimento, obviamente não foram os únicos a tratar de tais temas envolvendo artes, ciências, religiões e/ou simbolismos, nem a utilizar o caráter ambíguo da linguagem. Muitos outros artistas, bandas e projetos brasileiros (não sendo isso, obviamente, uma especificidade brasileira, se diga) também o fizeram e continuam fazendo. Dentre eles, Zé Ramalho, Raul Seixas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Ednardo, Jorge Ben Jor, Tropicália, Novos Baianos, Os Mutantes, Cátia de França, Comadre Florzinha, Cabruêra, Escurinho e muitos outros, como, inclusive, o Movimento Udigrudi (composto por bandas como Ave Sangria, e artistas como Lula Côrtes), o Clube da Esquina e músicos e bandas natalenses recentes como maguinho da silva, Igapó de almas e Luiza e os alquimistas, por exemplos. Gilberto Gil, tem um histórico de trabalhos nessa interface. Em especial, diga-se, no ano de 1997, lançou um disco duplo – cada um com 13 faixas -, Quanta, cujas letras remetem a temas semelhantes aos abordados por Chico Science & Nação Zumbi – ligados à ciência, física quântica, internet, religião e mistura de culturas e saberes -, sendo em alguma medida uma resposta ou algo que remete aos dois discos da banda pernambucana, embora seja talvez mais explícito no que está falando, acerca de alguns temas. A quinta faixa do primeiro cd, inclusive, 302 é uma regravação de Vendedor de Caranguejo, da autoria de Gordurinha44, que ficou muito conhecida na voz de Jackson do Pandeiro – com essa letra Gil possivelmente está chamando a atenção para o fato de que o tema do mangue e outras questões trazidas por CSNZ e pelo manguebeat, de conotação matemática, por exemplo, já haviam em alguma medida sido trabalhadas anteriormente, embora talvez ainda de forma um tanto tímida. Figura 133 – Capa do cd Quanta, de Gilberto Gil (1997) “1 Quanta 2 Ciência E Arte 3 Estrela 4 Dança De Shiva 5 Vendedor De Caranguejo 6 Água Benta 7 Chiquinho Azevedo 8 Pílula De Alho 9 Opachorô 10 Graça Divina 11 Pela Internet 12 Guerra Santa 13 Objeto Sim, Objeto Não 44 “Caranguejo Uçá / Caranguejo Uçá / Apanho ele na lama / E boto no meu caçuá Tem caranguejo/ Tem gordo guaiamum / Cada corda de dez / Eu dou mais um Eu dou mais um / Eu dou mais um / Cada corda de dez / Eu dou mais um”. 303 1. A Ciência Em Si 2. Átimo De Pó 3. Labirinto 4. Fogo Líquido 5. Pop Wu Wei 6. O Lugar Do Nosso Amor 7. De Ouro E Marfim 8. Sala Do Som 9. Um Abraço No João 10. O Mar E O Lago 11. La Lune De Gorée – Gilberto Gil 12. Nova 13. Objeto Ainda Menos Identificado Gil foi um dos construtores da Tropicália, movimento que, “diga-se de passagem”, tinha o envolvimento tanto de homens como de mulheres, diferentemente do manguebeat, no qual se vê pouca referência a mulheres - sendo essa uma das diferenças que se pode apontar entre os movimentos. A cena de Pernambuco tem muitas influências da Tropicália, como se pode ver pela menção que faz a Os mutantes, por exemplo. Nesse cd Quanta, e em alguma medida em outros também, Gilberto Gil trata de muitos dos temas abordados pelo manguebeat (como pode ser percebido desde a capa do disco). No entanto, pode-se perceber que não há a mesma pujança, inventividade e novidade em termos estéticos e políticos (dentre outros), nem o mesmo caráter social e cena física que caracterizou aquele movimento. Não se percebe no disco de Gil, por exemplo, a hibridização problematizante e inquietante de Chico Science & Nação Zumbi. Gil apresenta muitos temas interessantes naquele disco, sendo, em algum sentido, até mais abrangente e “didático” do que CSNZ, fazendo explicitamente bastantes referências a saberes e concepções do Oriente e a conhecimentos diversos. Religião, ciência, arte e outros conhecimentos estão presentes de forma bem imbricados nesse trabalho de Gil, como, em alguma medida, em toda a sua obra, como já fora frisado. Destaque-se, ainda, bandas posteriores ao manguebeat, que tiveram em alguma medida influência daquele movimento, mas que apresentam referências e estilo próprios, como é o caso, por exemplo, da Cordel do Fogo Encantado. Nos três primeiros cd’s antes da sua desintegração, nas letras de suas músicas, essa banda fazia bastante referência à cultura da sua região, Arcoverde (Sertão de Pernambuco), tendo como uma das referências a poesia de cantadores como Manoel Xudu, Cancão do Egito e Zé da Luz, e o poeta cearense Patativa do Assaré. O vocalista e membro mais conhecido da banda, José Paes de Lira (Lira ou Lirinha), em sua carreira solo, já lançou os cd’s Lira e O labirinto e o desmantelo (Figura abaixo). Lira tem aprofundado muitas das temáticas que já estavam presentes no estágio anterior de sua carreira, e que em alguma medida têm relação com um contexto regional, com influências de culturas 304 não locais. Mas, na musicalidade e no plano estético se percebe mudanças de perspectiva por parte desse artista. Figura 134 – Capa de O labirinto e o desmantelo, segundo cd de Lira (2015) Em Recife, atualmente, “diga-se de passagem”, há uma nova cena musical, denominada de Cena Beto. Não mantém tanta interface com os conhecimentos tradicionais locais como CSNZ e demais bandas do manguebeat, sendo o “som” influenciado muito mais pelo Rock in roll. No entanto, não se pode dizer que é algo completamente diferente da cena anterior, pois há algumas semelhanças de temas e “metodologias”, o que pode ser percebido tanto nas capas como nas letras - que exploram bastante o duplo (ou múltiplo) sentido, mantendo também coisas subentendidas e comportando simbologias e perspectivas. Nomes que se destacam desta cena são Angelo Sousa, que assina os trabalhos como Graxa, Juvenil Silva, por exemplos. Ambos possuem cd’s lançados, como, respectivamente, Aquele disco massa e Super qualquer no meio de lugar nenhum (Figuras abaixo). 305 Figura 135 – Capa do cd Aquele disco massa, do Graxa (2015) Figura 136 – Capa de Super qualquer no meio de lugar nenhum, de Juvenil Silva (2014) 306 5 Ensino de artes & ciências por meio de Figuramento Como pode ser percebido mediante o que foi exposto até o momento, saberes e conhecimentos envolvendo a noção de incomensurabilidade, ambiguidade e outras nuances, assim como o uso de simbologias, estão presentes tanto na antiguidade como na modernidade e na contemporaneidade, inclusive na física moderna (já que a incomensurabilidade é basicamente a incapacidade de se medir algo, por exemplo), que segundo Bohr, pôs a nu a questão de que muitas vezes há impossibilidades quando se busca conhecer. Há ainda condições, em algum sentido, ocultas ou sem explicação, nas quais se “fundamentam” áreas de conhecimento, saberes e teorias (às vezes representadas por símbolos), com referência à intuição, à alusão a concepções místico-religiosas (mesmo que de forma não tão direta), profecias, doutrinas etc. (o que suscitaria, por exemplo, que se questione o papel da profecia de Joaquim de Fiori para a história e o andamento atual do mundo). Se pode observar e perceber, por exemplo, a força simbólica da doutrina pitagórica de triângulos (que está presente tanto nas artes como nas ciências e em várias épocas), e as diversas referentes a essa doutrina, e de numerologias (vide aquilo que é colocado por Fleck, por exemplo) tanto em outras formas de conhecimento como nas ciências. Como também de imagens mentais e simbólicas como aquelas relacionadas à alquimia (da cobra ou serpente engolindo a própria cauda, por exemplo), da perspectiva, no sentido de que cada um acaba tendo uma percepção diferente dependendo de onde está localizado e no que concentra sua atenção (algo que está ligado à psicologia da Gestalt, desenvolvida posteriormente aos primeiros estudos de perspectiva). Defende-se que tais discussões e informações tenham uma presença na educação e na prática pedagógica mediante o Ensino de Artes & Ciências, o que comporta bem mais nuances e aberturas do que comumente se percebe no Ensino de Ciências. Não se trata de uma junção de ensino de artes e de ensino de ciências, mas que se pense o ensino e a educação como atividades que comportem uma discussão acerca da inter-relação e da não completa indissociabilidade dessas formas de conhecimento. Trata-se aqui de artes, inclusive, diga-se de passagem, em um sentido bem mais amplo do que aquele no qual esta palavra muitas vezes é utilizada – e que em grande medida tem influencias decisivas no fazer científico, haja vista tratar-se de conhecimentos e concepções que já existiam anteriormente à ciência. 307 5.1 Algumas concepções e propostas educacionais da atualidade e suas referências teórico- simbólicas Muitas são as vertentes, concepções e teorizações recentes acerca do ensino e da educação. Dentre elas há, por exemplo, aquela que faz a defesa da auto formação (GALVANI, 2000; BARBOSA, 2001), baseando-se na proposta transdisciplinar (NICOLESCU, 1999). Há ainda o entendimento de que há “saberes necessários” (MORIN, 2000) para se “educar na era planetária” (MORIN, CIURANA, MOTTA, 2003), como também a proposição de “uma visão educacional para o século XXI”, tendo por base uma “aprendizagem transformadora”, por meio da qual se contemple a comunidade, a diversidade, o eros e o mistério (O’SULLIVAN, 2004), e a defesa de uma “educação integral [...] holística para o século XXI” (YUS, 2002). Em Pensamento, cultura científica e educação, Marcos Pires Leodoro analisa algumas das questões atuais da educação, sobretudo depois das discussões trazidas pela filosofia da ciência do século vinte: o amálgama entre teoria e método é uma característica relevante da ciência e da pedagogia contemporâneas [...] As correlações entre pedagogia, epistemologia e as ciências revelam que no labirinto da educação, o método, enquanto caminho, se pluraliza. O fio de Ariádne utilizado na exploração do labirinto educacional é, hodiernamente, uma rede de múltiplos significados e inúmeros percursos de significação (LEODORO, 2005, p. 119 – 120). Um dos pressupostos e desdobramentos desse entendimento acerca da educação, da pedagogia e da prática pedagógica é o entendimento de que “não é possível conhecer sem a ação do sujeito cognoscente. [Que] [a] ele compete, em linhas gerais, a direção da sua aprendizagem” (Ibid., p. 124). Embora se possa considerar, fazendo menção ao que fora exposto por Fleck e Feyerabend, que há, na relação com o conhecer e representar o conhecimento daquilo com o qual nos relacionamos em termos experienciais, componentes ativas e passivas. Recorrendo-se às concepções trazidas por Fleck, de mudança de significado e de protoideia, pode-se expor, de passagem, que a ideia de ação remete à magia, como se viu no capítulo três, estando essa terminologia também presente em algumas conceituações da ciência, como é o caso, por exemplo, de potencial de ação referente à Fisiologia. Assim, pode-se, mediante a prática pedagógica, desenvolver “uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar- se a eles” (PERRENOUD apud LEODORO, 2005, p. 150). Para tanto, e, como forma de conduzir uma proposta de educação como a que se propõe com esse trabalho, a problematização 308 é em grande medida indispensável e muito relevante. Leodoro pontua ainda que “o desafio da educação problematizadora é, portanto, problematizar a si mesma junto aos educandos, pois ela se contrapõe a formação escolar tradicional, da qual a maioria dos licenciandos é oriunda, e pretende transformá-la” (LEODORO, 2005, p. 144 – 145). E expõe: A educação, enquanto cultivo da consciência e sua intencionalidade, não se esgota, segundo Freire (2004), numa racionalidade dicotomizada do desejo, da sensação e da percepção. A tentativa de compreensão do mundo não é estritamente racionalista, visto que se abre à experiência e ao desafio que ela representa à sensibilidade (LEODORO, 2005, p. 151). Assim, a problematização contribui de forma significativa para relativizar a noção de que há “uma concepção científica da realidade e do mundo” (Ibid., p. 219), descontruindo em alguma medida o entendimento que prega a “negação do aspecto contemplativo do pensamento” (Ibid., p. 219), considerando os “processos heurísticos, imagéticos, intuitivos, tácitos etc. adotados pelos educandos não enquanto obstáculos ao entendimento senão como percurso próprio do pensar” (Ibid., p. 220). Segundo Leodoro, [o] credo humanista de Feyerabend (1977, p. 71) pressupõe que a pluralidade imaginativa associada à criação artística seja incorporada à pesquisa e à educação científicas não apenas como trilha de fuga, mas como elemento necessário para descobrir, e talvez, alterar os traços do mundo que nos rodeia (LEODORO, 2005, p. 221). Feyerabend, como se buscou evidenciar anteriormente, textualmente afirma que artistas e cientistas não agem de forma tão diferente como muitas vezes se pensa, nem nas metodologias nem nas conceituações. Porém, isso não seria talvez suficiente para o considerar um humanista. Há, sim, a assunção de uma componente ativa (no sentido individual inclusive) por Feyerabend do pensamento e da produção de conhecimento, sendo a figura de Galileu talvez o exemplo mais trabalhado por aquele autor. No entanto, este também expõe muitas concepções que o ligam à religião ou a temáticas conceituais mais gerais, visto que faz menção à criação (FEYERABEND, 2010), e mantém uma constante relação com a noção de ser - embora como algo rico e abundante (FEYERABEND, 2006) - e tenha como referencial, ao qual faz uma alusão constante, Pseudo Dionísio Areopagita (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010). Feyerabend, ao admitir a importância dos universais, mesmo que seja como mediadores, acaba por seguir, em alguma medida, o projeto filosófico-educacional platônico – o que inclusive já 309 fora sinalizado em outro momento nesse trabalho, embora se enfocassem outras nuances -, tendo uma postura diferente da de Nietzsche, por exemplo, acerca disso45? Comentar-se-á, a seguir, o livro Pedagogia da autonomia, de Paulo Freire. Buscar-se-á expor muitas das suas relevantes posições acerca do ensino, da educação e de outras temáticas, como também evidenciar a relação de seu pensamento e obra com alguns dos referenciais e temas abordados neste trabalho e, ainda, fazer uma discussão crítica de algumas de suas posições, proposições e máximas. Optou-se por essa obra por ter sido a última lançada em vida por Freire, em 1996 - o que se pode considerar, para este autor, como sendo esta obra uma síntese de seu pensamento, uma tentativa de condensar em um texto relativamente curto e de fácil entendimento as suas teorias político-educacionais. Se está em acordo com Freire quando este menciona, por exemplo, que “pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade” (FREIRE, 2002, p. 32), quando este critica veementemente o “‘sabe com quem está falando’” (Ibid., p. 38) e quando defende que “ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação” (Ibid., p. 39), pontuando que a “prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia” (Ibid., p. 40) - embora pairem dúvidas acerca do que seria essa “substantividade” ou de se seria possível se pensar efetivamente em algo como uma “substantividade do ser humano”. Há sim que se fazer uma “reflexão crítica sobre a prática” (Ibid., p. 42) sem perder a dimensão histórica do mundo, como pontua Freire – embora isso leve a pensar acerca da historicidade, já que se está sempre recorrendo a modelos de história e historicidade. Se se considera a história com sinônimo de uma entidade quase real que se processa paralelamente ao tempo, que teria um jeito e uma forma de ser próprias, que é pautada em determinados pressupostos e modelos de tempo inclusive, se corre o risco de desconsiderar que outros povos, cuja forma de se relacionar e entender a realidade não seriam também históricos, como é colocado, por exemplo, por Joana Overing em O mito como história (OVERING, 1995). Mesmo que se tenha um entendimento contrário ao de alguém que “entende e vive a História 45 “Com os gregos tudo avança rapidamente, mas também declina rapidamente; o movimento da máquina é tão intensificado, que uma única pedra jogada nas engrenagens a faz explodir. Uma tal pedra foi Sócrates, por exemplo; numa só noite a evolução da ciência filosófica, até então maravilhosamente regular, mas sem dúvida acelerada demais, foi destruída. Não é uma questão ociosa imaginar se Platão, permanecendo livre do encanto socrático, não teria encontrado um tipo ainda superior de homem filosófico, para nós perdido para sempre. Contemplar os tempos anteriores a ele é como examinar a oficina onde se esculpem tais tipos. No entanto, os séculos VI e V parecem prometer alguma coisa mais, maior e superior ao que foi produzido; mas ficaram na promessa e no anúncio” (NIETZSCHE, 2000, p. 179). 310 como determinismo e não como possibilidade” (FREIRE, 2002, p. 129), ainda assim há a possibilidade de se cair num historicismo engessante. É perceptível, como muito pertinentemente frisa Freire, que “[h]á uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço” (FREIRE, 2002, p. 50), sendo o presente trabalho uma contribuição para que se perceba algo nessa perspectiva. No entanto, se pode expor ainda que não é apenas na materialidade que isto ocorre. Inclusive, há uma significação e uma noção referente à palavra espaço que o considera como aquilo que se nos “apresenta”, que está aí, que gera sentido, impressões, buscas etc. Pedagogicidade seria algo como um conceito, uma definição criada pelo conterrâneo do afrocirberdélico Chico Science? Deixa-se mais essa provocação. Freire, na sua forma de argumentar habitual (quase sempre marcada por contrários), pontua que se atente para “[s]aber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção” (Ibid., p. 52) e que “[...] a curiosidade é já conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele” (Ibid., p. 61). No entanto, a própria ideia de ensinar pressupõe que se ensina algo, remete em alguma medida à noção de transferência sim, algo já certo, e não uma possibilidade. Se se quer falar nesses termos talvez a palavra a ser utilizada não deva ser ensino. Assim como o fato de a curiosidade ser já conhecimento acaba por minar o caráter potencial que esta inevitavelmente comporta. Este autor tece muito contundente e oportunamente uma crítica ao “cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade e que não suspeita sequer da historicidade do próprio saber” (Ibid., p. 70). A noção de transformação da realidade é algo bem presente nas obras de Freire, fruto de sua ligação com o marxismo. No entanto, não se pode deixar de destacar que a transformação da realidade, na atual sociedade baseada na produção, está gerando alguns impactos na natureza e no meio físico, sendo um tema urgente de discussão, sobretudo para educadores. Freire menciona, em certo trecho do livro, que está caminhando com Danilson Pinto pelas ruas de Recife “com a alma aberta ao mundo” (Ibid., p. 82). Discorre sobre a não inexorabilidade da realidade, sobre o caráter mutável do mundo e da “‘leitura de mundo’, frisando que esta precede sempre a ‘leitura da palavra’” (Ibid., p. 90), defendendo uma postura “dialógica, aberta, curiosa, indagadora” (Ibid., p. 96), com a qual se estimule “a resposta, a reflexão crítica sobre a própria pergunta [...] em lugar da passividade em face das explicações discursivas do professor, espécies de respostas a perguntas que não foram feitas” (Ibid., p. 95 311 – 96). Há no pensamento de Freire algo de controverso - talvez sendo esse um dos “enigmas” que o fazem um pensador tão forte e popular. Acerca disso vejamos o trecho a seguir: o bom professor é o que consegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade do movimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desafio e não uma ‘cantiga de ninar’ Seus alunos cansam, não dormem. Cansam porque acompanham a idas e vindas de seu pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas, suas incertezas (Ibid., p. 96). Não é algo sem sentido lembrar que a palavra aluno remete ao entendimento de que não há presença de luz no aprendiz, confirmando a metodologia do professor como o mestre que desvela o mundo para o seu pupilo (como a citação acima evidencia). No entanto, em contrapartida, Freire, na sua capacidade de se refazer, de se auto contradizer e se reinventar, criando um pensamento enigmático-paradoxal, chama a atenção, por exemplo, para a “curiosidade instigada pelos computadores com os quais convivem [os estudantes]” (Ibid., p. 98), o que evidencia que ele estava atento ao seu tempo e que via com bons olhos a inserção dos computadores no contexto escolar – sendo a internet e os computadores temas caros ao manguebeat, por exemplo, diga-se de passagem. Isso está bem de acordo com o entendimento esboçado pelo autor de que “[n]ão haveria existência humana sem a abertura do nosso ser ao mundo, sem a transitividade de nossa consciência” (Ibid., p. 98) e de que “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo” (Ibid., p. 110). Está-se de acordo ainda que a “[d]o ponto de vista dos interesses dominantes, não há dúvida de que a educação deve ser uma prática imobilizadora e ocultadora da verdade” (Ibid., p. 111). Ou, pode-se dizer, que ela se baseia muitas vezes na ocultação de conhecimentos e informações. Assim como não se pode desconsiderar também que “[a] educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. [Que] [e]la é política” (Ibid., p. 124) e que “a liberdade de mover-nos, de arriscar-nos vem sendo submetida a uma certa padronização de fórmulas, de maneiras de ser, em relação às quais, somos avaliados” (Ibid., p. 128), ocasionando uma “‘burocratização da mente”’ (Ibid., p. 128). Há um toque de humanismo bastante forte no pensamento de Freire, declarando ele, por exemplo, que preferia sempre a rebeldia que nos “confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanismos que o minimizam” (Ibid., p. 129 – 130). Destaca ainda que se priorize uma forma de “avaliação em que se estimule o falar a como caminho do falar com” (Ibid., p. 131) e que “[n]ão há inteligência da realidade sem a possibilidade de ser comunicada” (Ibid., p. 133), mostrando o entendimento de que a mediação 312 por parte do professor é algo necessário. Em suas próprias palavras, deve-se “incitar o aluno a fim de que ele, com os materiais que ofereço, produza a compreensão do objeto em lugar de recebê-la, na íntegra de mim” (Ibid., p. 133 - 134), chegando a defender a “abertura total do professor ou da professora, à tentativa legítima do educando para tomar em suas mãos a responsabilidade de sujeito que conhece” (Ibid., p. 141). Expõe ainda que a “capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma [...] [e não] orientação política ditada pelos interesses dos que detém o poder” (Ibid., p. 142 - 143), propondo de forma bastante idealista que “[a] um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior” (Ibid., p. 147). Como bem coloca Freire, “[n]o exercício crítico de minha resistência ao poder manhoso da ideologia, vou gerando certas qualidades que vão virando sabedoria indispensável à minha prática docente” (Ibid., p. 151). Algo que é mencionado reiteradas vezes em Pedagogia da autonomia é a noção de “curiosidade epistemológica”, juntamente com o entendimento de que “sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto” (FREIRE, 2002, p. 27). Cabe lembrar que “cabal” significa inteiro, completo, aquilo que chega ao fim pretendido. Esse entendimento, juntamente com aquele segundo o qual “ensinar exige rigorosidade metódica” (Ibid., p. 28), e que o educador “[v]iva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo” (Ibid., p. 29) – embora ele afirme que “uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas” (Ibid., p .30) -, demonstram que Freire tem uma posição idealista-imperativa com relação ao ensino, à educação e a outros temas, se colocando como capaz de decidir entre o que seria certo e o que seria errado, ou seja, o caminho correto a ser seguido pelos educadores na sua prática. Freire defende que se diferencie a curiosidade ingênua da epistemológica, entendendo que “[a] curiosidade ingênua, de que resulta indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso comum” (Ibid., p. 32). Essa ideia de que o senso comum é algo como um conhecimento ingênuo e completamente diferente daquele que é fruto de uma epistemologização – que seria então científico -, é algo no mínimo complicado (inclusive porque projeta uma imagem da ciência como um conhecimento sempre ligado ao rigor metodológico) – já que, como já fora mencionado, não tem como traçar essa 313 linha divisória, pois as ciências também utilizam pressupostos em que se baseia senso comum, como imagens, doutrinas e simbologias, e nem sempre são metodologicamente rigorosas. Paulo Freire baseia boa parte de seus argumentos na noção de ética ou no que chama de “ética universal do ser humano”. Pode-se considerar a ética enquanto algo que auxilia a relação entre as pessoas e os povos. No entanto, a noção de ética como algo fechado, como um conceito doutrinário ou absoluto é algo contra o qual se pode apresentar uma certa objeção, como fora sinalizado por Wittgenstein. Nesse sentido, é complicado falar em “vocação ontológica do ser humano (Ibid., p. 99)”, como uma regra, por exemplo. Como também o é a seguinte posição: “Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral dos educandos. Educar é substantivamente formar” (Ibid., p. 37). Acerca disso se pode fazer os seguintes questionamentos: Há uma natureza do ser humano? Esta seria obrigatoriamente moral (o que inevitavelmente faz com que a formação dos educandos passe por um viés moral)? O que se entende por formar? Registre-se que a palavra formar está sempre presente no ensino e na educação, na psicologia e estudos educacionais etc. - e que remete, pela própria etimologia da palavra, à noção de forma, de molde e de padronização. Vale salientar ainda que esse termo também é bastante utilizado pelo sistema capitalista de “formação de mão-de-obra”. Pode-se considerar que, em grande medida, essa ideia de formação - mesmo que se considere que esta se faz de maneira constante e continuada - está muito relacionada à noção de formatação generalizante, determinante e dicotomizante. A menção à palavra e à ideia de formação aparece em muitos autores e correntes teóricas. Embora se possa considerar que isso que se expos sobre formatação não necessariamente está relacionado à formação de professores, isso não impede que esta associação não deva ser descartada por completo ou definitivamente. Lev Semenovich Vygotsky inicia o livro A formação social da mente com uma epígrafe de Karl Marx e outra de Friedrich Engels. No trecho, que fora retirado de O capital, está posto que “antes de fazer uma caixa de madeira, ele [o arquiteto] já a construiu mentalmente. [E que] [n]o final do processo do trabalho, ele obtém um resultado que já existia em sua mente antes de ele começar a construção” (MARX apud VIGOTSKY, 2007, p. vii). Embora se esteja de acordo com o marxismo em muitas de suas teses, como por exemplo, na sua denúncia da exploração do trabalhador – ainda que, diga-se de passagem, o marxismo esteja sempre muito atrelado à ideia do trabalho e da produção - e muitas outras temáticas, mantém-se uma objeção ao entendimento presente nessa citação (e que é uma das bases do pensamento marxista e de Paulo Freire). Como fora posto mediante o estudo de vários autores até o momento, a ideia de que 314 teoria e prática se dão de forma separada como é posto na citação, no sentido de que primeiro se pensa e depois se faz a atividade de acordo com aquilo que se pensou – e que, embora se apresente como algo estranho e paradoxal com relação ao marxismo, está presente naquela que é a principal obra de Marx (como se pode perceber na citação acima) -, é algo questionável, e que tende a ser enfrentado pelo pensamento que vem sendo construído desde o fim da segunda metade do século XIX. De acordo com a física moderna, por exemplo, o contato com a realidade muda o que se pensa ao se estabelecer esse contato – inclusive porque o contato com a realidade não pode ser resumido ao exemplo dado acima, do arquiteto, sendo algo quase sempre problemático o uso de analogias como essa. Assim, pode-se considerar que a noção de formação está ligada à ideia de algo planejado, que visa uma aplicação posterior ou que dá uma forma predeterminada a algo. Algumas proposições da filosofia da ciência (que tratam da inexistência de separação entre o contexto de descoberta e o contexto de justificação), e de algumas “vertentes” da pós-modernidade, por exemplo, se contrapõem a este entendimento. Pode-se considerar pelo exposto que há uma concepção de certeza por parte de Freire quando este trata de alguns temas, algo que remete a controle inclusive, como quando ele expressa que “cabe a quem muda – exige o pensar certo – que assuma a mudança operada. [...] é que todo pensar certo é radicalmente coerente [...] [e que] [p]ensar certo é fazer certo” (Ibid., p. 37 – 38). Pode-se defender, por exemplo, que existem “pensares” que nem são tão coerentes assim e, no entanto, passam a figurar como algo importante de se considerar, e que estão fortemente presentes tanto nas artes como nas ciências. E mais, se tem como definir e determinar sem risco de errar o que é certo, ou o que é pensar certo? Segundo Freire, o pensar certo “é dialógico e não polêmico” (Ibid., p. 42). O que suscita outro questionamento: Como pode existir uma dialogicidade sem um mínimo de polêmica e de contraditório? O pensamento de Freire está muito arraigado a noções como, por exemplo, uma quase total separação entre sujeito e objeto, de projeto, e à concepção de formação mediante a relação do mestre e do discípulo ou do aprendiz. Há em grande medida uma “mistura” de concepções em seu falar, muitas dessas, inclusive, dificilmente conciliáveis, talvez, embora muitas vezes o autor as trate como se o fossem. Algo a se pensar é se essa “mistura” de proposições abertas e libertárias com outras fechadas e, em grande medida, dogmáticas, pode-se dizer assim, presentes no pensamento de Paulo Freire, são devidas à impossibilidade de tratar de determinadas temáticas e ideias dentro de certas “metodologias” e “contextos” e utilizando determinadas palavras e termos – ou seja, se deve a uma impossibilidade de expressão – ou se 315 é reflexo mesmo das posições políticas, estéticas, filosóficas e religiosas do autor, de suas diversas influências divergentes, sendo algo como paradoxos. Para Freire não há assunção de algo sem que isso gere uma mudança, nem há mudança sem sujeito. O forte apego ao método materialista-histórico-dialético, juntamente com sua relação com a moral religiosa faz com que o seu pensamento seja pautado nessas noções de sujeito, objeto, certeza, método etc., levando-o a considerar que “[s]em rigorosidade metódica não há pensar certo” (Ibid., p. 55). Mas, pode-se ser questionado: como pode existir pensamento sem relação com a noção de sujeito? O pensamento de Foucault é um exemplo de um pensar que, não se desprendendo por completo de uma noção de sujeito, relativiza-a, considerando, estando atento às condições passivas do saber, que o sujeito não pensa fora do arquivo. Ao considerar que “[a] invenção da existência envolve, repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no domínio da vida, a ‘espiritualização’ do mundo” (Ibid., p. 57), Freire acaba por considerar ao mesmo tempo que a existência é uma invenção e que se deve a um processo de espiritualização do mundo? Nada mais contraditório e difícil de se considerar? Freire trata de forma reiterada de temáticas relativas a espírito – ideia que está na base dos saberes e áreas mencionadas logo acima, como também da magia. Há também no pensamento de Freire um forte maniqueísmo, diga-se de passagem. Segundo seu entender, à medida que foram criando o mundo, os seres humanos também criaram o bem e o mal, a dignidade e a indignidade. É pertinente que Freire “insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade [...] [como também] na necessidade da conscientização” (Ibid., p. 60) e critique o que chama de pragmatismo fatalista. Porém, pode-se considerar que nem todo pragmatismo é ou está revestido de inexorabilidade ou fatalismo. Um exemplo é o caso do pragmatismo representado por Wittgenstein – como também o defendido por Richard Rorty, em textos como Contingência, ironia e solidariedade. Eles tendem a negar a validade absoluta de conceitos universais, mas isso não é visto como uma catástrofe, muito pelo contrário. Assim, se para Freire “o inacabamento de que nos tornamos conscientes nos fez seres éticos [...] [e] a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de transgressão” (Ibid., p. 66), para Wittgenstein, por exemplo, tal inacabamento é justamente um indício de que não se pode considerar que há algo como uma ética baseada em conceitos absolutos (algo que remete ou guarda semelhança ao embate entre Einstein e Bohr). Ou seja, se se quiser pensar ainda em termos de ética, pode-se conjecturar que Wittgenstein propõe algo como uma ética de abertura (embora ele de fato desconsiderasse o termo e as noções ligadas à ética). Ou seja, por 316 se defrontar com um limite em termos de conceituação do entendimento, opta-se por não cobrir tal constatação com um manto no qual está escrito “ética”. Se se pensa em termos de conceitos fechados, como Freire, o contrário disso só pode ser visto como transgressão, catástrofe, algo maléfico etc. Pode-se dizer, portanto, que, em grande medida, o pensamento de Freire está pautado em uma filosofia e concepções cientificas anteriores às filosofias e à física do século XX. Pode-se considerar assim que ele é um pensador neokantiano, por assim dizer, pois baseia seu pensamento ainda nas noções de categorias, valores e conceitos universais (entendimento que sofrerá um ferrenho ataque a partir da filosofia de Nietzsche, por exemplo), como pode ser percebido ao afirmar que “[é] preciso deixar claro que a transgressão da eticidade jamais pode ser vista ou entendida como virtude, mas como ruptura com a decência” (Ibid., p. 67) ou de forma ainda mais piedosa, quando declara que “[s]e não se pode esperar de seus agentes [da prática pedagógica] que sejam santos ou anjos, pode- se e deve-se deles exigir seriedade e retidão” (Ibid., p. 73). No entendimento de Freire, é por se possuir a “habilidade de aprender a substantividade do objeto que nos é possível reconstruir um mal aprendizado (sic.)” (Ibid., p. 77). Assim, o erro não se configura em uma possibilidade para ele, mas, é, de fato em um engano que deve ser corrigido, tem seu papel apenas como indicação de algo a ser corrigido, uma falha no trajeto da apreensão da substantividade do objeto, que o autor parece ter certeza de que é algo real, apenas não se encontrou ou apreendeu ainda. Isso o leva a afirmar ainda que nós, “[m]ulheres e homens, somos os únicos seres que, social e historicamente, nos tornamos capazes de aprender. [...] [que] somos os únicos em que aprender é uma aventura criadora” (Ibid., p. 77). Mas, cabe nos perguntarmos: será? Será que só nós humanos somos seres inteligentes (para usar uma expressão reiteradamente utilizada por Hawking)? Será que podemos afirmar isso tão categoricamente? Freire claramente está à busca da “razão de ser dos fatos” (Ibid., p. 94), pois acredita que há uma “vocação ontológica do ser humano” (Ibid., p. 99) – a noção de vocação como a de ontologia, em grande medida, está muito relacionada à concepção religiosa de mundo, diga-se de passagem -, o que o faz considerar a ambiguidade apenas como algo negativo quando aborda o que chamou de “modernidade ambígua” (Ibid., p. 100). Postula ainda que o ensino de conteúdos demanda de quem se acha na posição de aprendiz que, a partir de certo momento, vá assumindo a autoria também do conhecimento do objeto. [E que] [o] professor autoritário, que se recusa a escutar os alunos, se fecha a essa aventura criadora” (Ibid., p. 140 – 141). 317 Está-se de acordo que o professor autoritário tolhe a capacidade dos alunos. Mas, se pode, ainda sobre a citação acima, problematizar: a palavra autoria tem relação com a palavra autoritário, em alguma medida? Autoritário seria algo como quem autoriza ou “autorializa” (que tem o controle)? Ou seja, autoria seria em algum sentido aquilo que vem do autoritário, sendo assim também resquício de uma autoridade sufocante? São questões a se pensar. Freire na sua contradição habitual (que pode em alguma medida ser considerada como algo interessante, pois possibilita que se pense de acordo com mais de uma perspectiva, colocando em contato posições diferentes), expõe que “o melhor caminho para guardar viva e desperta a minha capacidade de pensar certo [...] é me deixar exposto às diferenças, é recusar posições dogmáticas, em que me admita como proprietário da verdade” (Ibid., p. 151), ao mesmo tempo que tem a percepção de homens e mulheres “como seres ‘programados, mas para aprender’ e, portanto, para ensinar, para conhecer, para intervir” (Ibid., p. 164), afirmando ainda que “jamais compreend[eu] a prática educativa como uma experiência a que faltasse o rigor em que se gera a necessária disciplina intelectual” (Ibid., p. 165). Mas, tendo em vista inclusive que Freire cita o papel da intuição e da adivinhação no processo de apreensão da realidade, pode-se ainda problematizar: que rigor há no insight intuitivo? Trate-se ainda de alguns outros conhecimentos e referências feitas por Paulo Freire em sua última obra. Este faz menção mais de uma vez à “gnosiologia”, deixando claro que há sim no seu intento também uma busca por uma teoria do conhecimento, o que não o impede de defender que “[e]nsinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo” (FREIRE, 2002, p. 38). Expõe que “0 próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. 0 seu ‘distanciamento’ epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise, deve dela ‘aproximá-lo’ ao máximo” (sic.) (Ibid., p. 44), o que evidencia sua posição acerca da separação entre sujeito e objeto, teoria e prática, mas também pode-se perceber bem mais nuances. Como já fora falado, há no pensamento de Freire, menção a expressões, termos e concepções religiosas e/ou simbólicas, fazendo ele menção clara algumas vezes ao catolicismo, e inclusive citando partes do evangelho – como quando trata da “justa raiva” contra a injustiças, mencionando “[a raiva] de Cristo contra os vendilhões do templo” (Ibid., p. 45) –, como também destacando, por exemplo, “o valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação” (Ibid., p. 51) na busca por conhecer. Considera que 318 [c]onhecer não é, de fato, adivinhar, mas tem algo que ver, de vez em quando, com adivinhar, com intuir. O importante, não resta dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições, mas submetê-las à análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica” (Ibid., p. 51). Isso porque Freire está sempre destacando algo como o seguinte: “minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História.” (Ibid., p. 60). Destaque-se que há, por parte do autor, o entendimento de que a história circunscreve as demais manifestações humanas, já que cultura e demais termos ele grafa com letras minúsculas, enquanto que história ele grafa quase sempre com a primeira letra em maiúscula. Afirma que se deve manifestar “respeito à autonomia do ser do educando” (Ibid., p. 65), algo que, no geral, as teorias educacionais têm seguido, embora, não necessariamente com essa menção à ideia de ser como Freire o faz. Reiteradamente afirma o “magistério como tarefa altamente política” (Ibid., p. 76), como também faz menção a sonhos, utopia, busca por justiça, luta pela reforma agrária e muitas outras questões. A palavra magistério em alguma medida, pode-se perguntar, guarda alguma relação com magician? A palavra magistério, etimologicamente, significa “reunião dos grandes”, sendo que magister ou de magis, significa, do latim, mestre, o mais ou o maior (PORTELLA, 1984). Diga-se ainda, de passagem, que Hermes Trismegisto significa três vezes grande. Freire está sempre se auto denominando como um professor progressista e encorajando essa postura, se relacionando, como já fora exposto, muitas vezes tanto com posições referentes ao marxismo como com outras relacionadas à religião e outros conhecimentos (embora as vezes talvez nem sequer se possa fazer essa diferença), como quando passa a tratar do que chama de “extrojeção da culpa indevida [...] [e da] ‘expulsão’ do opressor de ‘dentro’ do oprimido, enquanto sombra invasora [que] precisa de ser substituída por sua autonomia e responsabilidade” (Ibid., p. 93). Mas, pode-se questionar: qual é a relação entre culpa e responsabilidade? A responsabilidade está livre da nação de culpabilidade? Em algum sentido pode-se considerar que esse trecho tem relação com aquilo que fala Chico Science ao cantar a música Todos estão surdos de Roberto Carlos nos shows: “Ei, você que está aí sentado, levante-se. Há líder dentro de você, governe-o, faça-o falar, faça-o falar”. Tanto o cd Afrociberdelia como o livro de Freire que se está tratando (no qual Freire faz menção à cidade de Recife, como quando descreve um passeio que deu com Danilson Pinto pelas ruas da cidade) foram lançados no mesmo ano de mil novecentos e noventa e seis. Em alguma 319 medida ambas as obras – Pedagogia da Autonomia de Freire e os dois cd’s de Chico Science & Nação Zumbi - se referem a um contexto semelhante de miséria e desigualdade social, e negação de liberdades, tendo sido por aqueles tempos sido Recife considerada a “quarta pior cidade do mundo” para se viver, o que acaba por colocá-las em relação. Paulo se refere muito à palavra, a texto, e a determinadas palavras inclusive, como, por exemplo, alfabetização, embora este chame a atenção também para a necessidade de se “experimentar com intensidade a dialética entre ‘a leitura do mundo’ e a ‘leitura da palavra’” (Ibid., p. 94). Essa ligação à noção de formação e referência à palavra está muito presente tanto em Paulo Freire como em Vygotsky – o sétimo e último capítulo de Formação social da mente (VIGOTSKY, 2007) é intitulado Pensamento e palavra, e o oitavo e último capítulo de Pensamento e linguagem (VYGOTSKY, 1993) é A pré-história da linguagem escrita. Diga-se de passagem, que uma das características marcantes do Manguebeat, e, por conseguinte, do que está posto por Chico Science & Nação Zumbi, é que comtemplam figuras, sendo um movimento feito também por artistas plásticos. Vygotsky pertinentemente destaca que “[a] primeira tarefa de uma investigação científica é revelar essa pré-história da linguagem escrita” (VIGOTSKY, 2007, p. 127), expondo ainda que "[e]nfatiza-se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que se acaba obscurecendo a linguagem escrita como tal" (VIGOTSKY, 2007, p. 125), o que sinaliza para o símbolo, o signo, algo além da escrita como normalmente se considera. Como pode ser percebido, há muitas semelhanças entre as ideias do pensador russo e as proposições freirianas, para quem “[é] na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente” (FREIRE, 1996, p. 64). Freire apresenta ainda posições como aquela segundo a qual ele considera que “é preciso, indispensável mesmo, que o professor se ache ‘repousado’ no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano. É ela que me faz perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar, re-conhecer” (Ibid., p. 96), embora seja difícil alcançar como seria uma curiosidade pétrea como a preconizada por Freire. Pode-se considerar ainda, de passagem, que “reconhecer” pode ser entendido como sinônimo de perceber e não necessariamente de “re-conhecer”. Está-se de acordo que “não é possível exercer a atividade do magistério como se nada ocorresse conosco” (Ibid. p. 108), embora em algum sentido se possa ter objeções ao que Freire entende por “vocação humana do ser mais” (Ibid., p. 137). Ser mais? Ser nesse caso é substantivo ou verbo? O ser mais é humano? Ele tem uma vocação? E ainda, como diferenciar de forma consistente essa quase obrigatoriedade apontada por Freire em se ser progressista, ou 320 se ser mais, da ideologia progressista que alimenta a devastação dos recursos naturais, da realidade e da vida, ou seja, da ânsia que se larga no mundo em busca de futuro? Por outro lado, como ser contrário ao entendimento de que a educação tem que ser algo que projete para frente? Acerca dessas questões, pode-se considerar que “um passo à frente”, como cantava Chico Science, pode ser algo como uma potencialidade, como um intervalo, diga-se, algo como a noção de infinito trazida por Giordano Bruno – no sentido de não se está em lugar nenhum, já que não está mais onde estava mas também não há menção de onde esteja - algo que foge a modelos, mas que mesmo assim se faz presente de alguma maneira, como o é a noção de liberdade (a que faz referência o conhecido poema de Cecília Meireles, diga-se de passagem). Freire expõe que “[a] leitura de mundo revela, evidentemente, a inteligência do mundo que vem cultural e socialmente se constituindo. Revela também o trabalho individual de cada sujeito no próprio processo de assimilação da inteligência do mundo” (Ibid., p. 139). Mas, o que seria a inteligência do mundo? Da forma posta por Freire a inteligência do mundo é algo como uma entidade, algo como um espírito da cultura, o qual seria apreendida pela inteligência individual do sujeito. Porém, se se considerar que há uma inteligência do mundo, socialmente e culturalmente constituída, ela não seria algo fixa, já que as pessoas têm concepções diferentes sobre a realidade e o mundo. Nesse contexto, se ainda se quiser manter a noção de “inteligência do mundo” esta teria que ser algo como uma potência aberta, diga-se, porque senão todos teriam que assimilar as mesmas impressões do mundo. Pontua ainda que se deve ajudar o estudante a “reconhecer-se como arquiteto de sua própria prática cognoscitiva” (Ibid., p. 140) – a palavra arquiteto, como foi exposto, fora utilizada também por Marx, e remete a outros contexto, como o místico-religioso-platônico -, defendendo que há algo definível que se pode conceituar como sendo “a natureza humana” (Ibid., p. 145) e que, “quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil” (Ibid., p. 152). Paulo Freire mais uma vez confirma sua relação muito indissociável com uma noção de sujeito que transforma a realidade, que altera os objetos com o seu fazer, sendo em grande medida seu pensamento uma tentativa conciliatória entre marxismo e religiosidade. Mencione-se ainda que, ao defender a necessidade de se interagir criticamente (ao que este trabalho se soma) com aquilo que nos é informado pela televisão, por exemplo, Freire coloca que “[t]alvez seja melhor contar de um a dez antes de fazer a afirmação categórica a que Wright Mills se refere: ‘É verdade, ouvi no noticiário das vinte horas” (Ibid., p. 159). 321 Isso que fora exposto abre a possibilidade para se pensar em que sistemas de conhecimentos, simbologias e/ou teorias mais gerais, se baseiam ainda outras proposições e teorias educacionais. Seguindo a motivação deste questionamento, a seguir se tratará, por exemplo, da teoria educacional proposta por Philippe Perrenoud. Em 10 Novas Competências para Ensinar, cujo subtítulo é Convite à viagem, ao tratar das “10 grandes famílias de competências” (PERRENOUD, 2000, p. 14) este autor declara que irá enfatizar “o que está mudando e, portanto, as competências que representam mais um horizonte do que um conhecimento consolidado” (Ibid., p. 12). A seu ver o planejamento e “[u]m referencial de competências continua sendo, em geral, um documento bastante árido, logo esquecido e que, após sua redação, já se presta a todo tipo de interpretações [...] [Logo,] [p]ode, então, ser lido como uma declaração de intensões” (Ibid., p. 12). Ou seja, pode-se considerar que “[...] não se sabe mais muito bem de onde se vem e para onde se vai. O que importa, então, é relembrar caminhos conhecidos e trilhar alguns outros. Sobre temas semelhantes, o consenso não é nem possível, nem desejável” (Ibid., p. 12 – 13). Discorre sobre a dificuldade de objetivamente tratar dos esquemas de pensamento, pois segundo Perrenoud estes não são “diretamente observáveis e só podem ser inferidos” (Ibid., p., 16), chamando a atenção ainda para o fato de que “intuitivamente, pressentimos que o professor desenvolve esquemas de pensamento próprios a seu ofício” (Ibid., p. 16). Ou seja, que tais esquemas de pensamento são desenvolvidos mediante a atividade, e não uma aplicação de um pensamento ou teoria anteriormente pensada. Destaca que “os professores experientes desenvolveram uma competência valiosa, como a de perceber simultaneamente os múltiplos processos que se desenrolam em sua turma” (Ibid., p. 16). Declara ainda que a análise das competências remete constantemente a uma teoria do pensamento e da ação situados (Gervais, 1998), mas também do trabalho, da prática como ofício e condição (Descolonges, 1997; Perrenoud, 1996c). Isso equivale a dizer que estamos em um terreno instável, no plano dos conceitos e, ao mesmo tempo, das ideologias... (PERRENOUD, 2000, p. 16). Como se vê há algumas zonas em comum entre Paulo Freire e Perrenoud (embora este último enfatize mais do que Freire talvez o caráter instável dos conceitos), no que concerne à ação, ao entendimento de que tanto teoria como prática fazem parte do contexto educacional, como também têm consciência da presença da ideologia no fazer pedagógico. Um outro ponto de confluência entre eles é a busca para que a situação educativa seja “ótima para todos” (PERRENOUD, 2000, p. 55), embora umas das marcas das propostas educacionais de 322 Perrenoud seja a diferenciação entre os estudantes, considerando que há aprendizagens e níveis de entendimento diferentes. Segundo ele “[d]iderenciar é romper com a pedagogia frontal” (Ibid., p. 55). Expõe ainda que “[n]enhuma delas [práticas e dispositivos pedagógicos] é, sozinha, uma solução mágica” (Ibid., p. 58), e que os contornos das novas competências “só serão percebidos progressivamente, já que ninguém pode propor um modelo ideal de organização do trabalho em uma pedagogia diferenciada” (Ibid., p. 60). Sobre a noção de competências, ele declara que esta noção designará “uma capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situações. [E que] [e]ssa definição insiste em quatro aspectos” (Ibid., p. 15). Resumidamente, pode-se apresentar assim os quatro aspectos: Competências não são saberes, “mas mobilizam, integram e orquestram tais recursos” (Ibid., p. 15); cada situação é singular mesmo que possa ser considerada análoga a outras; a noção de competência e seu exercício está vinculada a noções mentais e cognitivas e “esquemas de pensamento [...] que permitem determinar (mais ou menos consciente rapidamente) e realizar (de modo mais ou menos eficaz) uma ação relativamente adaptada à situação” (Ibid., p. 15); há um caráter de navegação na construção das competências. Sem expressar nexo com a exposição sobre os quatro aspectos feita justamente no parágrafo anterior – embora a maneira como utiliza a palavra “assim” dá a entender que algo já tinha sido falando sobre o que mencionará em seguida -, Perrenoud expõe ainda que “[d]escrever uma competência equivale, assim, na maioria das vezes, a evocar três elementos complementares” (Ibid., p. 15), que em resumo seriam as seguintes: os tipos de situações; recursos e “competências mais especificas que mobiliza” (Ibid., p. 16); “a natureza dos esquemas de pensamento que permitem a solicitação, a mobilização e a orquestração dos recursos pertinentes em situação complexa e em tempo real” (Ibid., p. 16). Menciona ainda que “‘[a]dministrar a progressão das aprendizagens’ mobiliza cinco competências mais específicas” (Ibid., p. 17). Ao longo do livro são expostos e discutidos temas e tópicos que tratam de competências diversas e sobre a própria noção de competências: “organizar e dirigir situações de aprendizagem” (Ibid., p. 23), “administrar as progressões das aprendizagens” (Ibid., p. 41), “conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação” (Ibid., p. 55), “[o desenvolvimento de competências é] uma dupla construção” (Ibid., p. 65), “[a necessidade de se] [e]nfrentar os dilemas éticos da profissão” (Ibid., p. 141). 323 O capítulo Conclusão: A caminho de uma nova profissão, tem início com “[e]is-nos no fim da viagem” (Ibid., p. 171). Após tratar, nos capítulos anteriores, respectivamente, de cada uma das dez competências, este pensador destaca que “ninguém pode observar e conceituar todas as facetas do ofício de professor” (Ibid. p. 171). Perrenoud, em sua obra, apresenta ainda um exemplo de como “trabalhar a partir dos erros e dos obstáculos à aprendizagem” (Ibid., p. 30). O faz por meio da problemática que envolve triângulos e retângulos (Figura abaixo), medidas e perspectivas. Leia-se com atenção o que dito por ele: É nesse momento que o erro de raciocínio e de estratégia ameaça. Assim, para demonstrar o teorema de Pitágoras e provar que, em um triângulo retângulo abc, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos lados do ângulo direito, inscreve-se geralmente o triângulo retângulo em um retângulo. Que o leitor tente reconstruir a sequência do raciocínio e medir o número de operações mentais que devem encadear-se corretamente e guardar na memória de trabalho para dizer “o que se devia demonstrar”! Daí a multiplicar os erros, é uma verdadeira corrida de obstáculos (Ibid., p. 32). Figura 137 - Imagem presente em 10 Novas Competências para Ensinar: Convite à viagem, de Philippe Perrenoud – (PERRENOUD, 2000, p. 32) Seguindo o questionamento que motivou a se analisar a obra de Perrenoud, trate-se rapidamente, ainda, de um outro importante referencial para a educação da atualidade, Basarab Nicolescu e seu O manifesto da Transdisciplinaridade. Nesta obra, o autor chama a atenção para o fato de que “a transdisciplinaridade se interessa pela dinâmica gerada pela ação de vários níveis de realidade ao mesmo tempo. [E que] [a] descoberta desta dinâmica passa necessariamente pelo conhecimento disciplinar” (NICOLESCU, 1999, p. 54). E ainda, que “[u]ma minúscula imprecisão das condições iniciais leva a trajetórias clássicas extremamente divergentes ao longo do tempo. O caos instalou-se no próprio seio do determinismo” (Ibid., p. 324 30). Expõe que “[o] maior impacto cultural da revolução quântica é, sem dúvida, o de colocar em questão o dogma filosófico contemporâneo da existência de um único nível de realidade” (Ibid., p. 30) – como fora demonstrado, e como mostra a história do mundo e do conhecimento, essa não foi a única vez que isso aconteceu. Este autor destaca que “[à] barbárie da exclusão do terceiro responde a inteligência da inclusão. Pois um bastão sempre tem duas extremidades” (Ibid., p. 41). Na busca de aprofundar o entendimento sobre o tema que dá nome à obra e sobre a problemática do que passa a chamar de “terceiro incluído”, ele expõe: A transdisciplinaridade, como o ‘trans’ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento (Ibid., p. 53). Soa bastante interessante esse entendimento trazido pela transdisciplinaridade de que o conhecimento está entre, através e além das disciplinas e dos conteúdos, daquilo que está posto, e sobretudo, destacando que há “diferentes níveis de percepção” (Ibid., p. 63). Porém, a noção de “unidade do conhecimento” como “imperativo”, é algo que, em alguma ou grande “medida”, não se coaduna com o que o restante do que posto acerca da transdisciplinaridade por Nicolescu, sobretudo, por este se amparar nos postulados da física moderna e da teoria matemática de Gödel, por exemplo. Ao ser mencionado por Nicolescu aqueles que segundo ele seriam “[o]s três pilares da transdisciplinaridade – os níveis de Realidade, a lógica do terceiro incluído e a complexidade – [e que estes] determinam a metodologia da pesquisa transdisciplinar” (Ibid., p. 54) e que “[a]s palavras três e trans tem a mesma raiz etimológica: ‘três’ significa ‘a transgressão do dois, o que vai além do dois” (Ibid., p. 64), pode-se questionar em que sentido a noção de transdisciplinaridade guarda relação com a dialética (em suas várias versões) e com outras “metodologias” que envolvem na noção de três estágios, por exemplo. 5.2 Com vistas à pluralidade: problematizando o Ensino de Ciências e alguns de seus pressupostos Assim, pode-se considerar que as teorias científicas, incluindo as atuais, são um amálgama de teorias antigas, diversas referências e múltiplas culturas (vide Figura abaixo) e que tudo isso em grande parte reverbera nas teorias educacionais. É salutar que se tenha isso 325 em mente quando se visa empreender uma prática pedagógica. Se deve inclusive buscar uma outra designação mais plural do que ensino de ciências, por exemplo, pois essa terminologia denota a ideia de ciência como algo que se sustenta por si mesma, ou algo em separado. Figura 138 - Capa do livro O Golem: o que você deveria saber sobre ciência, de Harry Collins e Trevor Pinch (COLLINS; PINCH, 2003) Essa pressuposição de que o ensino, as atividades pedagógicas, devem ter como guia exclusivo as ciências como algo separado das artes – e, sobretudo, que as ciências possuem um método único, e que esse método nos faz entender de fato como é a realidade, (mesmo que muito disso já tenha sido discutido em ensino de ciências, ainda figura nos livros e manuais dos estudantes esse entendimento) -, é problemática, porque defende o ensino desses conhecimentos como sendo sinônimo da verdade e não como algo aberto que tem relações com outras concepções acerca dos fenômenos e da vida. 326 Não se tem muito como saber como a realidade é de fato, e quando e de que forma o que nos é apresentado, e do qual nos é susceptível lembrar, nos servirá46 – em termos de explicação e constituição do que é tido como experiência (nossa vivência no mundo naquele momento). Embora se possa dizer que muito nesse sentido tem sido feito em termos de discussão e pesquisa da área, se percebe que nos manuais que os estudantes têm acesso e na formação dos professores (sobretudo no sentido no que concerne a empreender maneiras de se introduzir tais discussões na prática) isso ainda está bastante ausente. O que se percebe é que a ciência em suas diversas componentes (a ciência dos manuais, a ciência especializada, história da ciência e demais segmentos relacionados à ciência) se considera algo em separado da arte e de outros conhecimentos (como a astrologia, alquimia e magia, em alguma medida ligados às artes). Está-se aqui considerando as artes como conhecimentos que comportam algo de subjetivo e/ou simbólico, e, sobretudo, como algo mais geral do que aquilo a que se faz referência muitas vezes ao usar essa palavra. Remete a práticas que interligam, por assim dizer, várias áreas e saberes (baseados em alguma medida na imagem e na perspectiva, por exemplo). Por vezes consideram-se que estes conhecimentos estão vinculados a pressupostos fechados, criticando-os por não ter chegado a um nível de sistematização que a ciência moderna chegou. No entanto, ao estudar a história da ciência moderna (revolução cientifica), percebe-se que esta se estruturou utilizando muitos dos pressupostos desses saberes e mediante inclusive dogmas religiosos. Muitos estudiosos daqueles tempos, incluindo Bacon e Newton, acreditavam que as escrituras sagradas judaico-cristãs detinham a verdade (ROSSI, 1992). A ciência é hoje inclusive criticada por sua perspectiva técnica, ou seja, por não possuir a mesma atmosfera contextual e de conexão que aqueles demais saberes. As ciências, como se procurou mostrar no capítulo três, são formadas por uma mistura de concepções e influências - algo que fora também abordado no capítulo em que se tratou do pensamento de Paul Feyerabend e de Ludwik Fleck, quando foram expostos suas principais ideias, concepções e “conceitos”, sendo ambos sensíveis a certa necessidade de mostrar que o fazer científico é uma atividade sociocultural, tocando eles inclusive (embora de forma breve, mas contundente) na problemática da educação. 46 “As explicações não tornaram de modo algum o assunto claro para mim na época, mas não foram, apesar disso, inúteis, elas permaneceram como um núcleo ao redor do qual minhas observações e reflexões foram se cristalizando; a significação de suas observações gerais foi aclarada para mim pelas instâncias particulares que vieram à minha atenção posteriormente” (MILL apud FEYERABEND, 2007, 173). 327 Muitas vezes ideias e conhecimentos presentes nas ciências remetem tanto à alquimia (por exemplo, no sentido de encontrar uma lei geral ou teoria unificada acerca da realidade), como à magia (por exemplo, ao considerar que a experimentação e a manipulação da matéria podem gerar conhecimento, controle e domínio sobre o real, ou seja, que a manipulação pode criar realidade) e à astrologia (por exemplo, ao se valer da noção de perspectiva e imagem). É possível notar que o recurso a imagem e à noção de perspectiva, por exemplo, parece perpassar todos esses conhecimentos, inclusive a ciência - estando bem presente na física moderna, diga- se de passagem – sendo esta uma tradição viva (diferentemente daquela versão dissecada que aparece quase sempre nos manuais e livros didáticos). Destaque-se ainda que a magia, a alquimia e a astrologia têm relação tanto com pressupostos judeus, por exemplo, como com conhecimentos e concepções árabes e pagãs. Uma das formas de verificar essa mistura de tradições é mediante o conhecimento das relações pessoais de alguns personagens centrais da história do pensamento e que muito contribuíram para os saberes citados, e dos saberes que estes mobilizam. Diga-se, ainda, que as relações, os contatos e amizade se configuram também, sobretudo em tempos passados, em proteção, apoio financeiro e influência em termos do que se pode ou deve conhecer, ou como se deve descrever e apresentar algo, cabendo ao estudioso, dependendo da inclinação deste, como ou em que medida seria essa influência (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010). Percebe-se que muitos intelectuais, estudiosos e profissionais envolvidos com atividades educativas ainda vêem “o mundo como uma escola e as “pessoas” como alunos obedientes” (FEYERABEND, 2007, p. 356). Esse entendimento está vinculado ao pressuposto de que à educação fica a tarefa de apenas transmitir o conhecimento, como se este não tivesse uma componente social e cultural e não fosse passível de ser problematizado e mudado, sendo a educação uma eficiente forma de fazê-lo. Em Adeus à razão, Paul Feyerabend expõe, ao tratar de noções e pressupostos relacionados ao conhecimento presente durante os séculos VI e V a.C. – ao buscar evidenciar a relação entre conhecimento e cultura, ao modo feyerabendiano da contra indução -, que existiam conceitos que incluíam detalhes de atitude, expressão facial, humor, situação e outras circunstâncias concretas [...] [inclusive] um conceito de conhecimento que incorporava o comportamento que acompanhava e estimulava a aquisição do conhecimento (FEYERABEND, 2010, p. 163). 328 Ou seja, o conhecimento tem uma base cultural, embora muitas vezes não se perceba devido ao caráter mecânico com que este é apresentado e transmitido, e da dissecação da qual os conhecimentos acabam sendo acometidos. Nos manuais que os estudantes têm acesso não estão presentes todas as nuances que as teorias comportam, mas um recorte bastante empobrecedor destas teorias - muitas vezes com distorções, erros e problemas do ponto de vista histórico (SANTOS, 2009). Assim, ainda em acordo com Feyerabend, pode-se considerar que, [p]ortanto, os cientistas podem contribuir para uma cultura, mas não podem fornecer seu alicerce – e, estando restritos e cegos por seus preconceitos de especialistas, certamente não podemos deixar que eles decidam, sem controle por parte de todos os cidadãos, que tipo de alicerce os cidadãos devem aceitar (FEYERABEND, 2010, p. 312). Além de se retomar e reafirmar a condição cultural e histórica das teorias, deve-se também considerar a dimensão social do conhecimento, o que sem dúvida reverbera na problemática referente ao ensino e à educação. Nesse sentido, ensinar ciências como verdade, e desvinculada da cultura e das artes como substrato mais geral, é um dos fatores que reforçam o entendimento de que há duas culturas ou mais culturas separadas. Contra uma metodologia de ensino que visa atingir um objetivo específico, fechado, pode-se seguir ou estar atento, por exemplo, à seguinte sugestão “metodológica”: “a melhor educação consiste em imunizar as pessoas contra tentativas sistemáticas de educação” (FEYERABEND, 2010, p. 375). Para além de um entendimento que tem Artes & Ciências como sendo áreas separadas, pode-se sim considerar que física é cultura. Isso acarreta que se alargue o estreito entendimento de que física é cultura porque a cultura e as artes fazem uso da física, de suas terminologias, teorias e pressupostos. O que a cultura diz sobre a física, por exemplo, como a física é recebida pelo plano da cultura, como a cultura se apropria das terminologias da ciência transformando- as e gerando significado para além delas - ao agir nas cidades por meio de vivências - também é algo a ser considerado (sendo a teoria do Kaos de Jorge Mautner e o Manguebeat, em algum sentido, exemplos disso), possibilitando uma prática pedagógica em que o Ensino de Artes & Ciências brote da cultura. Física é cultura porque é parte da cultura e não porque a cultura utiliza-se da física, como se se pudesse fazer física sem influência da cultura. Uma prática pedagógica em que se considere o exposto logo acima, não pode ser centrada no professor, pautando-se em grande medida naquilo que é proposto pelas teorias pedagógicas sócio-interacionistas propostas por Vygotsky e Piaget, por exemplo. A acepção de que no máximo se pode levar o aluno a interagir com algo, e não o ensinar, no sentido de uma 329 transmissão propriamente dita, já fora apontada por Sócrates nos diálogos platônicos – embora a dialética fosse algo que tinha, em alguma medida, um fim, talvez algo bem mais rígido do que o que está sendo proposto por muitas das teorias mencionadas no tópico anterior, e por meio do que se está chamando de Figuramento. Feyerabend expõe que [o] dramaturgo (e seu colega, o professor) não deve tentar antecipar a decisão do público (ou dos alunos), ou substituí-la por uma decisão própria se eles se mostram incapazes de tomar uma decisão por si mesmos. Em nenhuma circunstância deve ele tentar ser uma “força moral”. Uma força moral, quer para o bem, quer para o mal, faz das pessoas escravos, é a escravidão, mesmo a escravidão a serviço do Bem, ou até de Deus, é a mais abjeta de todas as condições (FEYERABEND, 2007, p. 339). Nesse sentido, uma atividade pedagógica na qual os temas e assuntos trabalhados tenham sua emergência da cultura, ou seja, mediante uma educação e ensino em Artes & Ciências é uma forma de evitar tal força moral, ou pelo menos diminuir o seu peso de forma significativa, trazendo mais naturalidade ao processo de interação do estudante com os assuntos, tópicos e conhecimentos diversos, mediante o Figuramento. Numa prática pedagógica desse tipo intercalar-se-ão momentos de discussão mais geral com momentos de apresentação de informações, teorias e atividades mais centradas nos conteúdos regularmente exigidos. Considerando-se que algumas práticas educacionais devem mudar, há de se pensar como seriam tais mudanças.47 Talvez não se deva continuar separando os responsáveis por questões técnicas daqueles que elaboram as teorias, o velho esquema proposto por Platão e seguido por Aristóteles.48 Essa prática, possivelmente, é algo que distancia o fazer do pensar, e automaticamente contribui para que, em um momento posterior, a teoria seja considerada algo em separado da prática, contribuindo para uma concepção e prática determinista com relação à experiência, por exemplo. Se as ciências têm muito de semelhante com a arte, então, pode-se dizer que também nas ciências, fazer e pensar, fantasia e “realidade”, são componentes igualmente presentes, de forma concomitante com a “racionalidade”. Assim, pode-se está de acordo, por exemplo, que 47 “‘Professores’ usando notas e o medo do fracasso, moldam a mente de nossos jovens até que eles tenham perdido todo grama de imaginação que possam alguma vez ter possuído. Essa é uma situação desastrosa, que não é facilmente corrigida. Mas não vejo como uma metodologia racionalista possa ajudar” (FEYERABEND, 2007, p. 223). 48 “No que me diz respeito, o primeiro e mais urgente problema é tirar a educação das mãos dos “educadores profissionais”. As coerções de notas, competições e exames regulares devem ser eliminados e devemos também separar o processo de aprendizagem e a preparação para uma profissão particular” (FEYERABEND, 2007, p. 223). 330 [é] possível conservar o que se poderia chamar de liberdade de criação artística e usá-la na íntegra não somente como via de escape, mas como meio necessário para descobrir, e talvez mesmo modificar, os traços do mundo em que vivemos. Essa coincidência da parte (o indivíduo) com o todo (o mundo em que vivemos), do puramente subjetivo e arbitrário com o objetivo e governado por regras, é um dos argumentos mais importantes em favor de uma metodologia pluralista (FEYERABEND, 2007, p. 69). E, na mesma linha do que é exposto também por Harry Collins e Trevor Pinch (2003), estes autores consideram que [a] educação em geral deve preparar os cidadãos para escolher entre os padrões, ou achar seu caminho em uma sociedade que contém grupos comprometidos com vários padrões, mas não deve em condição alguma subjugar a mente deles de modo que se conformem aos padrões de algum grupo particular. Os padrões serão considerados, serão discutidos, as crianças serão encorajadas a ter proficiência nos assuntos mais importantes, mas só como se tem proficiência em um jogo, ou seja, sem compromisso sério e sem roubar a mente de sua capacidade de jogar também outros jogos. Tendo sido preparada dessa maneira, uma pessoa jovem pode decidir devotar o restante de sua vida a uma profissão particular e pode começar a leva-la a sério daí em diante. Esse “comprometimento” deveria ser o resultado de uma descrição consciente, com base em um conhecimento razoavelmente completo das alternativas, e não um resultado inevitável (FEYERABEND, 2007, p. 224). Ou talvez não necessariamente “devotar o restante da vida”, mas apenas uma parte dela. Nem tampouco a descrição pode ser tão consciente assim, no sentido de que se sabe por completo do que se está fazendo. Há como ter “conhecimento razoavelmente completo das alternativas”? Ou seja, o que se sabe em um instante anterior é parte de algo subsequente que completa essa parte, ou tudo se altera nesse momento subsequente (inclusive o que antes se considerava como parte)? Essas questões muito provavelmente não têm respostas muito claras. Considerando o arcabouço de mundo de Platão, por exemplo, e que ele teria um componente fantástico, fantasioso e/ou subjetivo (FEYERABEND, 2006, 2007, 2010) - e que esse mesmo Platão, que propõem tal sistema generalizante, evidencia certa impossibilidade de se alcançar o intento projetado pelo arcabouço (PLATÃO, 2011) -, assim como aquele lançado por Parmênides49, e que impossibilidades de se fechar a explicação sobre o mundo também estão 49 “Tomada literalmente, a mecânica quântica aproxima-se de Parmênides: não há objetos bem definidos e nem observações distinguíveis que possam ser armazenadas” (FEYERABEND, 2006, p. 270). 331 fortemente presentes na ciência, e, ainda, que se vive em uma democracia50: por que não propor um ensino em que tais coisas (que remetem a certa irracionalidade, subjetividade e incomensurabilidade) sejam discutidas e em que múltiplas formas de ver sejam consideradas? As ciências e as tecnociências, apresentam frequentemente o argumento de que elas interveem no mundo e que a arte não, que isso acontece apenas em um nível representacional e contemplativo. Mas, com a física moderna, passou-se a considerar - ou pelo menos muitas são as teorias que sinalizam para isso –, por exemplo, que não se tem exatamente como saber como se dá a relação do observador com o que está sendo observado; que experimentos interferem na visão que temos da realidade – pois dependendo do experimento a realidade se comporta de forma diferente –; e que o que se sabe sobre a realidade é fruto de, em alguma medida, concepções subjetivas de comprovação controversa quando confrontadas com a experiência. Logo, questiona-se: pode-se considerar que o fato de não se conseguir saber de algo com total exatidão - justamente por esse algo se mostrar diferente dependendo da intervenção que se faça, e por podermos (por meio de outra forma de intervenção), vermos a realidade por outras perspectivas (muitas vezes proposições subjetivas), traz como consequência (ou condição) que não se pode impossibilitar que se considere ambas as práticas (ou diga-se, as várias práticas da humanidade) como possibilidades de entendimento acerca do que se nos apresenta? Prigogine acredita, por exemplo, como fora exposto, que o fato de podermos conjecturar uma possibilidade já é em si um determinismo. Mas, para que isso deva ser considerado, ter- se-ia que ter a certeza de que aquilo que surge em complementação é algo que segue, que está presente, já no instante anterior. Em contrariedade a isso, a possibilidade ou probabilidade inicial pode ser considerada como uma ruptura, um salto e não necessariamente como metade do caminho. Prigogine parece seguir a segunda concepção e Bohr parece seguir a primeira. 50 “O que conta em uma democracia é a experiência dos cidadãos, isto é, sua subjetividade, e não o que pequenos grupos de intelectuais autistas declaram ser real (se um especialista não gosta das ideias de pessoas comuns, tudo o que ele precisa fazer é conversar com elas e tentar persuadi-las a pensar de maneira diferente; ao fazê-lo, ele não deve esquecer de que ele é um pedinte e não um “professor” tentando colocar algumas verdades na cabeça de alunos de castigo). Mas sua tentativa se separar essa experiência de alguma “realidade” não pode ter sucesso. Concordo que as ciências e as civilizações construídas a seu redor contém algo chamado de “opinião especializada” e que isso difere daquilo que os especialistas chamam de “superstições populares”. – mas eu acrescentaria que isso é verdadeiro também com relação a outras tradições (por exemplo, é verdade com relação aos dogon, como Griaule mostra em seu livro maravilhoso). Concordo também que a opinião especializada ocasionalmente mostra alguma uniformidade – todas as igrejas têm uniformidades temporárias – mas as convergências ocasionais em algumas áreas são mais do que compensadas pelas divergências em outras. Tampouco a convergência da opinião especializada estabelece uma autoridade objetiva e, se o faz, então temos muitas autoridades diferentes entre as quais escolher: a distinção entre a realidade do especialista e a aparência do leigo se dissolve naquilo que parece ser para todos nós, inclusive os especialistas” (FEYERABEND, 2010, p. 357). 332 É necessário que se permita um espaço para a alternativa51. O medo dos realistas, pode- se considerar, é que esta postura venha acompanhada de um certo desânimo na “busca pela verdade” ou pelo conhecimento sobre algo em particular, algo que diga como a própria realidade é. Senão um desânimo, pelo menos uma dúvida, como se fosse uma necessidade ter certo poder – ou a possibilidade de ter um certo determinismo - em mãos ou pelo menos a busca por ele, ou uma certa noção de estar perto disso. Há uma pretensa noção de segurança que está por trás do realismo determinista. Acerca disso pode-se considerar a seguinte questão, que inclusive pode ser estendida para outras instâncias: Podemos confiar em nossos especialistas, físicos, filósofos, curadores e educadores? Será que eles sabem o que estão dizendo ou meramente querem duplicar sua própria existência infeliz? Será que nossos grandes mestres – Platão, Lutero, Rousseau, Marx – têm algo a oferecer, ou é a reverência que sentimos por eles apenas um reflexo de nossa própria imaturidade? (FEYERABEND, 2010. p. 365). Nesse sentido, considerando que “[n]ão existe, na história do saber, uma relação lógico- formal entre as concepções e sua comprovação: [e que] as provas seguem as concepções assim como, de maneira inversa, as concepções seguem as provas (FLECK, 2010, p. 69), a transmissão feita por parte do professor é sempre algo lacunar, que deve estar ciente das mudanças e da imprevisibilidade e incerteza referentes ao conhecimento52. Surge então a noção de educação como algo plural (LOPES, 2010), o que sinaliza para que se pense, por exemplo, qual a relação entre a Educação e as novas concepções de realidade, interação e conhecimento (LOPES; JAFELICE, 2013), sendo esse o título de um dos artigos integrantes de um dos números da revista EDUCAÇÃO ealidade (Figura abaixo). Destaque-se que o que se está nomeando por Figuramento não é apenas uma “metodologia” ou uma “ferramenta” didática baseada na apresentação de temas, teorias e doutrinas mediante imagens (sejam elas na forma de figuras ou através de descrição textual), 51 “Uma sociedade que é baseada em um conjunto de regras restritivas e bem definidas, de forma que o ser humano se torna sinônimo de obedecer essas regras, força o dissidente a uma terra de ninguém sem regra nenhuma e despoja-o assim de sua razão e de sua humanidade” (FEYERABEND, 2007, p. 225). 52 “Mais cedo ou mais tarde muita coisa mudará: as leis de causalidade, os conceitos de objetividade e subjetividade. Outras coisas serão exigidas das soluções científicas e outros problemas serão considerados importantes. Muito do que tem sido dado como provado será tido como não provado, e muito do que nunca foi provado passará a ser supérfluo. Educação para a vida será diferente; será dada a vida e a arte uma forma diferente. Um novo tempo para a realidade será criado. O que será o uso das metafísicas estranhas, se a física de amanhã irá transcender toda fantasia? Vamos deixar uma mão livre para especialistas e reserva de quarto em nosso pensamento para o futuro!” (FLECK, 1986a, p. 56 - 57, tradução livre). 333 mas, sobretudo, também sinaliza para um encorajamento – com ênfase na questão educacional - para que se passe a ler e a estar atento às imagens do mundo, e os símbolos que se nos apresentam, percebendo-se inclusive que a ciência também faz arte! Figuramento engloba, pode-se dizer, o Letramento, mas vai além, pois uma letra é uma figura mas nem toda figura é uma letra. Para se entender certos tópicos, conhecimentos e saberes tem-se que ir além do Letramento. Figura 139 – Capa da Revista EDUCAÇÃO ealidade (2013) Tornar a educação algo plural ou que comporte a pluralidade, é considerar a possibilidade de que múltiplas narrativas, estórias, simbologias, referenciais e áreas convivam, múltiplas explicações, saberes e métodos de investigar o que se nos apresenta. Não se trata tanto de se estar no meio do caminho do entendimento sobre algo - pois toda apresentação de algo 334 comporta já um recorte, e isso também vale para o entendimento -, mas que seja mediadora no sentido da apresentação dos temas e das diversas concepções acerca deles, dos diversos saberes, ciências e sistemas de conhecimento. Afinal, de onde a pessoa vê, a cultura em que ela está imersa e o que lhe chega, é que acaba gerando o seu entendimento sobre algo. Uma educação para a pluralidade, ou que comporte a pluralidade, parte de tais entendimentos e concepções. Assim, uma das formas que se vislumbra para se desenvolver um ensino e uma educação dentro de tal perspectiva é que esta seja praticada mediante temas que partam da cultura, considerando cultura como sinônimo desse substrato mais geral no qual estamos imersos, do qual as ciências participam, mas não o subscreve (FEYERABEND, 2006). No entanto, essa proposta educativa é bem diferente daquela que faz apenas uma “contextualização” ou que busca apenas ver ciência no cotidiano. Essas abordagens partem da ciência, tendo-a com algo fundamentado, que tem um método, que está acima da cultura, do substrato mais geral. Tratam em grande medida a ciência como uma caixa preta (LATOUR, 2000) que deve apenas ser ensinada e pouco discutida, e não como uma construção social e histórica passível de questionamentos. Ou seja, ao mesmo tempo em que se ensina as teorias e principais tópicos relacionados às ciências, discute-se os pressupostos envolvidos e os determinantes para a construção das teorias. O que é bem diferente de tentar tratar de uma suposta “natureza da ciência” – que, desde a sua terminologia já dá a ideia de algo fixo, como se a ciência ou as ciências tivessem uma natureza. Há muitos estudos em história da ciência e em ensino de ciências mostrando os problemas desse tipo de entendimento (Cf. MONTEIRO; MARTINS, 2015), que supõe ser a ciência algo completamente ordenado, organizado, que tem uma estrutura central. Isso corrobora ainda com a ideia de que as leis da ciência são a descrição fiel das “leis da natureza”. Nesse sentido, a proposta que se está a apresentar aqui em alguma medida se relaciona com algumas das proposições para o “ensino de ciências” que visam relacionar produções artísticas com teorias e conceitos científicos com fins pedagógicos. Obviamente, uma prática pedagógica que tenha esse enfoque já é algo bastante diferenciado das intervenções habituais, ajudando, inclusive, por exemplo, o professor a dialogar com “aqueles alunos que, no formato tradicional do ensino, não se sentem motivados ao estudo da física” (ZANETIC, 2006, p. 41). No entanto, o ensino de ciências não se restringe ao ensino de Física, nem o ensino de física ao que hoje é proposto e nem a física à noção que dela se tem hoje. João Zanetic defende que “o ensino da física não pode prescindir da presença da história da física, da filosofia da ciência e de sua ligação com outras áreas da cultura, como a literatura, letras de música, cinema, teatro, 335 etc.” (Ibid., p. 43). Ele defende, por exemplo, o possível uso da poesia de Dante e de Milton para o ensino de física. No entanto, se busca com esse trabalho subsidiar uma pratica pedagógica que apresente as ciências como tradições vivas – termo apresentado por Feyerabend, mas não conceituado, nem discutido ou explicado pelo autor -, que os conhecimentos nomeadamente científicos não estão separados das artes nem de outros conhecimentos. Estes conhecimentos se intercomunicam mutuamente em termos de procedimentos e significados, inclusive, sendo muitas vezes utilizados os mesmos pressupostos por ambas essas formas de conhecimento – como se busca evidenciar no presente trabalho. Não se trata apenas de ver o que há de ciências numa obra de arte plástica ou de arte gráfica ou em uma poesia ou em uma letra de música. Um estudo comparado é o que se propõe, não se restringindo a ensinar apenas ciências, mas, muitos outros conhecimentos – presentes na cultura de uma forma geral, com os quais os estudantes, em algum sentido, acabam interagindo, já que facilmente se observa uma indissociabilidade entre as artes, a cultura de uma forma geral e as ciências. Está-se de acordo, inclusive pelo que fora exposto nos capítulos anteriores - nos quais se buscou mostrar que a ciência utiliza técnicas, pressupostos e concepções das artes (considerando arte em um sentido mais geral do que se tem atualmente, inclusive como sendo sinônimo de outras formas de conhecimentos e práticas) -, com o seguinte: As concepções artísticas e científicas são coerentes, levando a interpretações semelhantes a respeito do funcionamento do universo. [...] No Renascimento, é clara a relação arte–ciência. Muitos são os nomes que misturam os dois campos: Brunelleschi, Pisanello, Leonardo, Dürer e até mesmo Galileu. E é importante salientar que a invenção da perspectiva e do claro-escuro foi extremamente importante, até mesmo crucial, para tornar possíveis as observações empíricas e os registros acurados que fundamentam a ciência moderna (REIS; GUERRA; BRAGA, 2006, p. 72). Segundo estes autores, “[a]rtistas e cientistas (ou filósofos naturais) percebem o mundo da mesma forma, apenas representam-no com linguagens diferentes” (Ibid., p. 72). Primeiro, cientistas também usam imagens para representar suas ideias e concepções. Segundo: se se considerar que a linguagem é apenas sua apresentação pura e simples, obviamente expressões matemáticas e triângulos, por exemplo, são diferentes da pintura enquanto uma linguagem e da linguagem escrita representada por letras. Mas, se se considerar que as obras de arte sempre, em alguma medida, estão utilizando ou fazendo referência a símbolos ou simbologias – e que tais referências também são parte da linguagem da obra de arte (ou seja, que a linguagem não 336 remete apenas à técnica que é desenvolvida, mas também, ou sobretudo, está relacionada ao significado ou a informação que quer transmitir) – e que as ciências também utilizam tais simbologias nas suas buscas, não faz sentido dizer que estas áreas representam o mundo com linguagens diferentes, ou totalmente diferentes. Um exemplo disso – ou seja, da intersecção, diga-se assim, entre artes e ciências, e de como esta pode servir a uma tomada de posição e/ou crítica, inclusive – é o que se percebe em um quadro de Francisco Goya (Figura abaixo), no qual há um ser monstruoso sinais e formas diversas - inclusive formas exatas -, estando de costas para a “realidade” e para a população em geral. Figura 140 – Gravura no 71, intitulada Contra o bem geral, da série Os desastres da Guerra, de Francisco Goya. Se detendo um pouco nos pressupostos do Surrealismo, os autores de “Ciência e arte: relações improváveis?” colocam o seguinte: Breton está preocupado em superar estados contraditórios, buscando sua solução num estado de supra-realidade, que é o que o Surrealismo visual consegue (Ades, 1991). Em 1927 o físico dinamarquês Niels Bohr (1988) propôs com o princípio de complementaridade a superação de contradições entre explicações excludentes para o mesmo fenômeno (por exemplo, onda e partícula para explicar a natureza da luz). [...] Sabemos que não podemos ter noite e dia simultaneamente, mas também sabemos que só percebemos a noite porque existe o dia. Noite e dia são noções que não existem isoladamente. 337 Podemos dizer que, mais do que opostos, noite e dia são conceitos complementares. [...] Não podemos compreender o mundo quântico porque este é estranho ao entendimento humano. A pintura surrealista também é, por vezes, incompreensível a partir de uma racionalidade clássica, ou melhor, de uma consciência realista (REIS; GUERRA; BRAGA, 2006, p. 79). O surrealismo pode, sim, ser utilizado como uma metáfora para introduzir alguns conceitos de física moderna, “pois podemos ilustrar através dos quadros de Dalí um princípio nada trivial da mecânica quântica [o princípio da indeterminação]” (Ibid., p. 81). No entanto, além desse entendimento reforçar a noção de que ciências e artes são áreas separadas - sendo as artes algo como apenas um veículo para a introdução das concepções desenvolvidas nas ciências – as proposições presentes nos postulados de Bohr não tratam de “supra realidade” ou de uma superação de contradição, pelo menos essas questões parecem não ser tão claras assim. Embora se ligue sempre a imagem de Bohr ao símbolo chinês do yin e yang e faça-se relação disso com sua noção de complementaridade, tal fato não está isento de problematização (BAHM, 1991). Pode-se defender que a perspectiva de Bohr é algo mais aberta, lacunar, como pode ser depreendido do famoso debate travado entre Einstein e Bohr acerca dos fundamentos da mecânica quântica, nas primeiras décadas do século XX. Ao texto escrito por Einstein, Podolsky e Rosen em 1935, intitulado “A descrição da realidade física fornecida pela Mecânica Quântica pode ser considerada completa?”, deixando claro as suas concepções racionalistas (EINSTEIN; PODOLSKY; ROSE, 1981), Bohr responde, poucos anos depois, com o texto “A descrição da realidade física fornecida pela Mecânica Quântica pode ser considerada completa?”, indagação que era reflexo de suas conclusões acerca dos fenômenos quânticos, da “impossibilidade de definir tais quantidades de modo inequívoco” (BOHR, 1981, p. 102). Nesse sentido, pode-se, em alguma medida, concordar com os autores no seguinte (embora eles demonstrem claramente que sempre partem das ciências): Assim, Bohr (1995) diz que fenômeno não possui realidade independente. A palavra fenômeno, deveria até mesmo referir-se às observações obtidas como descrição de todo o dispositivo experimental. Será que poderíamos falar de uma ciência aberta? Podemos fazer uma abordagem cultural da ciência e esta poderá nos ajudar a compreendê-la melhor. Mas, muito mais do que isso, esse tipo de paralelo poderá ajudar a entender que a ciência é um produto sociocultural e, como tal, deve ser apreendida (REIS; GUERRA; BRAGA, 2006, p. 84). 338 Uma abordagem cultural do conhecimento é o intuito maior deste trabalho e não apenas uma abordagem cultural das ciências. Mais do que considerar as ciências como construção sociocultural, se deve questionar mais pormenorizadamente qual a relação intrínseca e indissociável entre as Ciências, as Artes – as muitas zonas de intersecção entre essas áreas – e a educação. Acerca disso, são muito oportunos os seguintes questionamentos, feitos por Fernando Cesar Ferreira, em “Arte: aliada ou instrumento no ensino de ciências?”: Qual é a importância da arte para o ensino de ciências? Quais as motivações e/ou necessidades que levam professores e pesquisadores a chamar a arte para compor ou compartilhar experiências de ensino-aprendizagem? Que relação de poder se estabelece entre arte e ciência quando levadas para a sala de aula? Enfim, qual é o papel da arte na alfabetização cientifica do aluno? (FERREIRA, 2012, p. 3). Embora ainda esteja preocupado em saber “qual é o papel da arte na alfabetização científica do aluno”, Ferreira avança bastante na discussão por questionar qual as relações entre artes e ciências. Este autor analisa as posições de conhecidos autores que tratam da relação entre arte e ciência e sua utilização em sala de aula. Ele identificou basicamente duas posturas por parte de professores e estudiosos acerca dessa problemática: O professor da primeira situação recorre à arte como forma de atrair a atenção do aluno. [...] Já a segunda situação é caracterizada tanto pela inserção da arte como forma de obtenção de conhecimento sobre a natureza no mesmo nível da ciência como pelo planejamento a médio e longo prazo de atividades que envolvam ambas de forma equilibrada. Isso implica em um desafio de outra ordem para o professor, na medida em que exige que deixe o aconchego da sua área de conhecimento para transitar por terras desconhecidas a fim de buscar relações e possibilidades do binômio Arte-Ciência: Um modelo teórico criado pelo cientista, enquanto construção imaginante, não difere essencialmente de um modelo fictivo proposto pela obra do artista: nesse sentido tanto a arte como a ciência parecem propor modelos de compreensão do mundo (ou de parcelas do mundo). Ambas podem assim ser consideradas como formas de conhecimento: isto apesar de distintas nos seus objetivos e nos mecanismos acionados, já que ambas parecem resultar de diferentes atitudes perante o real (FERREIRA, 2012, p. 3 – 4). O trabalho que aqui se está apresentando se relaciona e se soma à segunda situação, sobretudo no que toca ao entendimento de que tanto as artes como as ciências podem “ser consideradas como formas de conhecimento”, embora não se tenha como objetivo e interesse principal o que o autor chama de “binômio Arte-Ciência”, mas sim chamar a atenção para saberes, teorias e doutrinas que estão presentes tanto nas ciências como em outros 339 conhecimentos – sem que com isso se esteja a educar em artes e ciências como áreas separadas. Evidenciando com isso, que nem os “objetivos” nem, em certa medida, os “mecanismos acionados” pelas artes e pelas ciências são tão “distintos” como muitas vezes se considera, nem tampouco “as atitudes perante o real”. Apesar das divergências já apresentadas, mencione-se que Fernando Ferreira, de forma bastante pertinente, questiona e busca trazer informações sobre como a relação entre ciência e arte está sendo efetivamente discutida, e, sobretudo, contemplada no Ensino e nas produções da área53. E ao se deter mais acerca de algumas dessas produções e trabalhos, ele chega à conclusão de algo que este já esboçara anteriormente (no entanto, agora, com mais elementos a considerar), inclusive em termos de questionamentos: Posições extremas eventualmente levam a erros de julgamento e à adoção de atitudes equivocadas. [...] não implica pouca quantidade de propostas envolvendo Arte e Ciência, mas sim uma visão que coloca a Arte não como aliada no Ensino de Física, mas como instrumento para alcançar determinados objetivos. Ainda que isso, em si, não produza resultados negativos, pode levar o aluno – e até mesmo o professor e/ou pesquisador – a formar uma visão equivocada e reducionista da Arte semelhante àquela que coloca a Matemática como a ferramenta de oficio da Física (PIETROCOLA, 2002). Como áreas distintas de produção de conhecimento acerca do mundo no qual vivemos, é nos contatos entre si que perspectivas interessantes surgem. Porém, esse argumento implica considerar a arte, nas relações com o ensino de ciências, como aliada ou como instrumento? Em outras palavras, arte produz conhecimento? (FERREIRA, 2012, p. 5). Pode-se considerar em algum sentido que as artes são formas de conhecimento, já que comportam símbolos, terminologias e proposições presentes nas culturas que explicam e dão sentido à interação com a experiência. Algo a se destacar, e que se soma ao que se colocou anteriormente, é o fato de que muitas vezes os “elementos” que são utilizados tanto pela arte como pela ciência (o que por si só já seria, diga-se, suficiente para evidenciar que as áreas se interconectam) – como é o caso dos números figurais e de triângulos, por exemplo – comportam tanto elementos de cunho racional e matemático, como estético. Assim, se poderia, em resposta 53 “No entanto, como isso se reflete de fato no Ensino de Ciências e, em particular, no Ensino de Física? Que propostas de atividades e/ou projetos de ensino têm sido apresentados e quais os seus resultados? Um levantamento feito na Revista Brasileira de Ensino de Física entre 1980 e 2012 e na revista Ciência & Educação entre 1998 e 2012 revela que menos de dez artigos tratavam explicitamente do binômio Arte-Ciência. A primeira é uma referência na pesquisa em Ensino de Física e a segunda tem ativa participação na divulgação de pesquisas em Ensino de Ciências. É pouco, mas indicativo de uma tendência que parece ficar mais forte a cada ano. Exemplo disso é o Simpósio Nacional de Ensino de Física, que apresenta “Arte, Cultura e Educação Científica” como um dos seus campos temáticos. A cada edição, um número maior de trabalhos é apresentado, apesar de ainda ser demasiado pequeno diante dos outros campos temáticos” (FERREIRA, 2012, p. 4 – 5). 340 à indagação acima, feita por Ferreira, dizer que artes e ciências são esferas que se intercomunicam, e que há em ambas “diferentes linguagens que se cruzam e entrecruzam, [sendo] enfim, um mistério a penetrar” (FERREIRA, 2012, p. 8). Destaque-se ainda o seguinte: Exemplo interessante desse hábito inconsciente [dos diversos usos que damos à palavra arte] é a presença de figuras de linguagem no discurso cotidiano e científico. No ensino, pode ter sua importância reconhecida pela grande quantidade de trabalhos que tentam explicar ou relatar os aspectos do uso de metáforas, analogias, comparações, entre outros. Em Ciência, exemplos do uso de metáforas ou analogias são fáceis de ser encontrados: o naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) e a “árvore da vida”; o geólogo escocês James Hutton (1726-1797), a respeito da erosão em montanhas, escreveu em 1795: “Este solo, semelhante ao corpo de um animal, é devastado ao mesmo tempo em que é reparado... destruído em uma parte, mas refeito em outra”; Evangelista Torricelli (1608-1647) e a ideia que “vivemos no fundo de um oceano de ar”; e o químico alemão Friedrich Kekulé (1829-1896) e a estrutura da molécula de benzeno visualizada em um sonho como uma “cobra comendo seu próprio rabo” (SUTTON, 1993, p. 1217). Sobre isso, o físico brasileiro Mário Schenberg afirma: [...] nas descobertas, o elemento racional está presente, sobretudo na formulação, mas acho que o momento do ato criativo é muito pouco racional, e sim intuitivo (GOLDFARB, 1994, p. 75) (FERREIRA, 2012, p. 6). Assim, está-se de acordo ainda quando este coloca que, “[s]e a arte é chamada a participar do ensino [...], entendemos que não deveria ser apenas como instrumento para ilustrar uma ou outra questão” (Ibid., p. 9), mas como uma prática que tanto influencia o desenvolvimento da ciência como é influenciada por este. De acordo com Fernando Ferreira, assim como toda física produzida, “toda arte implica uma relação vivida com o entendimento do real” (BARBOSA, 1995, p. 167). [...] É no professor e no contato com os alunos que as demandas se configuram como objeto de reflexão e, por isso, talvez, não precise se colocar a priori na posição de profundo conhecedor da ciência que ensina e, principalmente, da arte, mas precisa penetrar nesses campos do conhecimento para poder extrair deles relações possíveis de serem construídas na sala de aula. Ainda assim, o professor que se aventura não deve ter receio de quão diferentes serão os seus encontros na Terra Incógnita ou dentro da perspectiva de trazer a arte para uma dança com a ciência (FERREIRA, 2012, p. 11). No entanto, há algo a ser dito sobre o que é exposto no fim do comentário supracitado. Se se tem optado, por exemplo, por escrever Artes & Ciências, e não o contrário, é porque se está de acordo que a arte já existia bem antes de existir a ciência (esta palavra tendo passado a ser usada em substituição ao que se chamava de filosofia natural, que também é um termo e uma área de conhecimento que surgiu quando já existia a noção e denominação arte) – sendo 341 inclusive algo bem recente a existência e o uso da palavra cientista (KRAGH, 2001). A palavra arte guarda, por assim dizer, recorrendo-se ao termo e entendimento trazidos por Fleck, um caráter de protoidéia com áreas diversas, como a arte profética, a arte da memória, por exemplos, e saberes anteriores que recebiam a denominação de arte, como a magia e a alquimia, sendo inclusive a prática da experimentação chamada de arte da experimentação (KRAGH, 2001) em períodos anteriores ao período moderno. Diga-se de passagem, que Isaac Newton ocupava em Cambridge a cadeira de Mestre das artes. Assim, o entendimento de que a ciência é algo completamente diferente e desvinculada de outros conhecimentos não tem uma justificativa histórica (embora seja ainda um pressuposto e entendimento presente nos manuais, nos livros didáticos e nos materiais de divulgação científica) haja vista que não consegue separá-la por completo dos pressupostos existentes desde antes de seu surgimento – inclusive tendo muitos desses como base e contributos para suas teorias e construções. Em Quando o sujeito se torna pessoa: uma articulação possível entre poesia e ensino de física, Lima, Barros e Terrazan apresentam uma leitura do poema ‘Mensagem’, de Fernando Pessoa “como apoio para discutir alguns tópicos que ocupam largamente a lista de preocupações e de estudos dos pesquisadores da área de Ensino de Física” (LIMA, BARROS, TERRAZAN, 2004, p. 291). Os autores apontam cinco condições mediante as quais se chegaria ao entendimento dos símbolos, segundo pontua Pessoa naquele poema. Algo importante a ser mencionado é que a terceira dessas condições é a intuição, que segundo os autores “pode ser a chave para a construção de um novo conhecimento” (Ibid,. p. 300). Consideram que tanto o professor quanto o aluno, ao interagir com um texto ou descrição, são intérpretes e devem em alguma medida “sentir simpatia pelo símbolo que se propõe a interpretar [...][,] gostar intensamente do símbolo [...] e [que] os alunos não têm respostas prontas, exigindo uma postura de investigação (Gil-Perez & Valdés Castro, 1997)” (Ibid., p. 298 - 299). A noção de intuição é algo que está presente em muitos contextos da história do pensamento, sendo inclusive mencionado em alguns trechos anteriores desse texto, referentes a contextos diversos. Mas, pode-se questionar: o que seria a intuição? Um estágio onde se pode comtemplar as coisas tal qual elas são ou algo como uma abertura, que comporta em alguma ou em grande medida uma indefinição? Pode-se considerar que é um projetar de olhar, de entendimento, de percepção, visão, imaginação - no sentido de formação de imagens, que nem sempre é algo estático como a terminologia por ventura pode sugerir. Ao se tratar de intuição, e sobretudo, da interface de tal problemática com o ensino e a educação, é algo pertinente que se faça menção ao Intuicionismo, muitas vezes também 342 chamado de Construtivismo radical, cujo principal proponente foi Luitzen Egbertus Jan Brouwer (1881 – 1966 d. C.). Para Brouwer a matemática está acima da lógica, pois é justamente pela matemática que entendemos o real, criamos diferenças e conhecemos – não no sentido de que a realidade seja matemática e a mente apenas capte isso, mas, que a matemática é algo como uma zona de fronteira, sendo o conhecimento matemático algo como um fenômeno. Esse processo é dito como intuitivo, ou intuicionista, porque seria próprio de cada indivíduo. Nesse sentido, “a intuição do tempo é para Brouwer a intuição primordial, a mais básica de toda a vida consciente” (TASIÉ, 2001, p. 37, tradução livre), sendo algo instantâneo, advindo da interação com a experiência. Daí ele defender que a ideia de continuidade é algo mental apenas, pois segundo Brouwer, ao entendermos o tempo como uma sequência de pontos no espaço, “estamos assim a construir uma inautêntica imagem do contínuo (do tempo). Nossa experiência interior é fundamentalmente não espacial e não podendo ser capturada em termos científicos pelo que aplicamos no espaço” (Ibid., p. 37). Inevitavelmente, vê-se uma relação do pensamento deste matemático e pensador holandês com a filosofia de Artur Schopenhauer, tendo ele inclusive lido O mundo como vontade e representação quando jovem, e confessado a sua afinidade com as teses daquele filósofo. Daí o entendimento de que a “matemática é um ato de vontade” (Ibid., p. 46), algo criativo, sendo a linguagem, e o seu “edifício” um veículo de transmissão deste conhecimento essencial intuitivo. Ou seja, a “única verificação das propriedades matemáticas é, segundo ele, a que se dá por construção introspectiva” (Ibid., p. 10), pois “é impossível garantir a priori uma formulação não-contraditória, e é preciso, antes de tudo, tornar consciente a existência translinguística dos objetos matemáticos” (BROUWER apud GRANGER, 1993, p. 10). Pode-se considerar que o entendimento de que não se pode garantir tal formulação não-contraditória, é justamente o que leva Brouwer a criticar e negar a lógica do terceiro excluído - pois ela surge da comparação, em que inevitavelmente se tem em mente algo relacionado à igualdade, à não-contradição. Não haveria, portanto, algo a priori com o qual se possa comparar aquilo que se conhece, pois “para Brouwer, os objetos matemáticos permanecem imanentes a uma operatória que lhes é própria” (GRANGER, 1993, p. 11). Em Life, art and Mysticism, obra de juventude de Brouwer – que trata de temas de natureza mística, onde ele aborda pensadores como Jacob Boehme e Eckhart, por exemplo, mas que tem uma ligação com o seu pensamento subsequente -, o autor defende que o ser humano, com seu apego ao intelecto, à causalidade, teria se tornado realista, e com isso, impotente 343 (BROUWER, 1996). Assim, o apego ao intelecto seria um erro, por ser uma limitação. Isso porque esta prática de apego ao intelecto não favoreceria ao processo de imanência, o que seria uma perda, já que para este pensador, “[a] verdade imanente vê a ‘ideia’ do mundo” (BROUWER, 1996, p. 405, tradução livre). No importante artigo Conscousness, philosophy, and mathematics, o matemático holandês apresenta sua concepção sobre ser intuicionista: Tratados rigorosamente matemáticos advindos desse ponto de vista, incluindo teoremas deduzidos exclusivamente por meio de construção introspectiva, são chamados tratados matemáticos intuicionistas. Em muitos aspectos este entendimento diverge da matemática clássica. Em primeiro lugar porque a matemática clássica usa a lógica para gerar teoremas, acreditando em verdades não conhecidas, e em particular aplica o princípio do terceiro excluído expressando que toda assertiva matemática (isto é, toda designação de uma propriedade matemática para uma entidade matemática) ou é uma verdade ou pode ser uma verdade. Em segundo lugar porque a matemática clássica se autoconfina por predeterminar uma infinita seqüência para a qual desde o princípio os n elementos são fixados um de cada vez (BROUWER, 1983, p. 90, tradução livre). Como já fora exposto, mediante as considerações de alguns de seus comentadores, a busca de Brouwer é mostrar que a atividade mental não é apenas organizar os elementos, ou signos dos elementos do mundo externo, mas que há um processo interno de apreensão do real. Abordando esse tema do conhecimento interior, Brouwer conclui: Eu espero ter esclarecido que o intuicionismo, por um lado sutiliza a lógica, e por outro a denuncia como uma fonte de verdade. Além disso, que a matemática intuicionista é arquitetura interior, e que pesquisar nas fundações da matemática é um questionamento interior com consequências reveladoras e emancipatórias, também em domínios não-matemáticos do pensamento (BROUWER, 1983, p. 96, tradução livre). Isso possibilita novos entendimentos acerca da epistemologia, ou a possiblidade de um total relaxamento da busca por “epistemologizar” o mundo, ou no mínimo que se considere que a epistemologia não pode se ancorar na matemática para reivindicar um status de verdade, já que a incomensurabilidade também faz parte da matemática. Isso traz mudanças - ou deveria fazê-lo - na forma de o professor conduzir e entender a prática pedagógica. Nesse sentido, o ensino e a educação dentro dessa perspectiva não devem ser conduzidos como se algo escondido precisasse ser descoberto, tampouco que algo tenha que ser deixado escondido. 344 5.3 A obra de Chico Science & Nação Zumbi, bandas do Manguebeat e outras cenas, como recurso didático e de problematização Percebe-se ao analisar os livros didáticos, os manuais e muitos dos trabalhos na área de educação, uma dissecação do que ali apresentado, mostrando-se uma ciência limpa de suas conexões com outros saberes. Todo o esforço da pratica pedagógica, em muitos casos, é feito para que se aprenda essa ciência dissecada, utilizando-se para isso os conhecimentos da psicologia e demais áreas correlatas. Fala-se sempre, por exemplo, em mudar as “concepções espontâneas” ou “conhecimentos prévios” dos estudantes - tendo em vista a aprendizagem de determinados conceitos dessa ciência (LOPES, 2010). Segundo esse modelo, a separação entre arte, ciência e outras formas de conhecimento já está feita logo de saída, não se toca mais nessa questão o que importa o que fazer com a ciência, como ensinar essa ciência dissecada. Assim, em alguma medida, o presente trabalho se insere como um elo lacunar entre a atividade docente e a discussão puramente acadêmica. Embora possa servir como um guia para a sala de aula, se configura mais, talvez, como um material de apoio para que se trabalhe artes & ciências em sala de aula, visando um ensino e uma educação em que se considere perspectivas diversas. Como se buscou evidenciar, conhecimentos simbólicos, teorias, doutrinas e concepções que estão presentes tanto nas artes, como nas ciências – ambos presentes no Manguebeat (movimento sócio-artístico-cultural do qual se está tratando) -, também figuram nas teorias educacionais. Coloque-se ainda que não é apenas em trabalhos acadêmicos e na academia ou nas doutrinas antigas que há a presença de simbolismos e comunicação não escrita. Isso também acontece em outras manifestações socioculturais da atualidade, como é o caso do Manguebeat. Estudar, mesmo que em parte, esse movimento possibilita, dentre outras coisas, a problematização de temáticas, sobretudo podendo-se evidenciar que a banda Chico Science & Nação Zumbi confronta aqueles conhecimentos de natureza simbólica com questões de natureza social, humana. Essa perspectiva crítica e propositiva, pode-se colocar, pode ser percebida quando, por exemplo, a banda, em Coco Dub (Afrociberdelia), menciona “maria eu tô com fome, eu tô fome, eu tô fome, eu tô com fome”, ou quando em Cidadão do mundo é exposto o seguinte trecho: “Pediram um pão pra comer com um copo de café, um ficou roubando a missa e quatro deram no pé, Chila, Relê, Domilindró”. Em Da lama ao caos, pode-se ter a ideia de caos como cidade, como asfalto, como metrópole – letra possivelmente muito motivada pelo acontecimento do roubo acontecido com 345 Chico Science (TELES, 2012), o que deixou a vivência de que “um homem roubado nunca se engana”. O homem caranguejo “saiu da lama e virou um gabiru” na grande cidade, por isso a menção para que ele volte para a lama. No entanto, se pode ainda entender que há uma certa similaridade entre mangue, lama e caos. No primeiro cd da banda estão presentes em alguma medida questionamentos acerca da relação entre natureza e transformação do meio natural, embora como se sinalizou se possa perceber relações entre ambos os universos, inclusive nas próprias letras da banda. Assim, o primeiro cd acaba sendo o mais radical, no sentido de raiz, de onde vai brotar o segundo cd, Afrociberdelia, que aprofunda na questão tecnológica, de rede, de teia, de entrelaçamento, natureza e formas de vida. O Manguebeat é, em alguma ou em grande medida, também um movimento educacional. Registre-se que a educação não se configura apenas na atividade instrutiva de sala de aula, mas em termos gerais busca sempre formas de mudar a sociedade. A educação com seus currículos e demais mecanismos busca sempre transformação e mudança para a cidade, reformar, trazer uma transformação na forma de entender e ver as coisas para a comunidade, em grande medida uniformizando as práticas – não é à toa que os estudantes usam uniformes. Chico Science, Fred Zero Quatro, Renato L e demais envolvidos no Manguebeat propõem uma estética para a cena, uma maneira de ser, de viver e de atuar na cidade que comporta novos elementos, vivências e práticas. Há inclusive uma menção à forma de se vestir, de se portar e de viver – embora, no documentário Chico Science - Especial MTV (dvd no qual Chico aparece em vários lugares e situações, como quando está numa canoa no rio Capibaribe com uma camisa com uma estampa do quadrinho Sandman) o próprio Chico Science declare, no minuto treze do vídeo, com sua perspicácia e ligeireza habitual, quando de andada pelo Mercado São José, em Recife: “Para ser um mangueboy... Só se você quiser, se quiser ser um mangueboy, você é um mangueboy, se não quiser ser um mangueboy você não é um mangueboy. Se você quiser ser uma manguegirl, você é uma manguegirl, se não quiser ser um manguegirl você também não é. [...] Que tal uma cartucheira dessa? O mangueboy se veste como quiser, calça de tergal, um sapato barato, faça o que você achar melhor”. O Manguebeat ao mesmo tempo que tenta fazer algo novo busca tentar não recair em velhos modelos estético-políticos imperativos – embora não se possa ter claro se isso é feito de forma consciente e programada. Se poderia defender que este movimento propõe em alguma medida arte ao invés de filosofia e conceitos universais na prática política (já que é um movimento baseado na diversão)? É uma questão pertinente, embora não tão fácil de responder. 346 Há paradoxos também no Manguebeat. Embora se configure em um movimento que visa a evidenciar a importância do coletivo, do bando, sendo feito e gestado por tribos juvenis da cidade, destaque-se que ao iniciar o Afrociberdelia, Science brada: “eu vim com a nação zumbi, ao seu ouvido falar... Cheguei com meu universo e aterriso no seu pensamento, trago a luzes dos postes nos olhos, rios e pontes no coração”. Há aí sim uma referência à figura individual ou representante que traz algo como uma boa nova para os demais, embora a luz de que ele fale seja aquela dos postes, sendo uma tônica do movimento a imagem da eletricidade plugada na lama. Eletricidade, eletrônica, internet e as mídias que estavam surgindo naquele contexto sinalizavam sim para algo mais libertário, haja vista que o Movimento Armorial, defendia que, por exemplo, artistas com forte relação com a cultura popular, como a cirandeira Lia de Itamaracá cantassem sempre sem utilizar microfone, pois esse aparelho seria algo externo ao tradicional. Há evidências de ligações entre o que está exposto nos discos de Chico Science & Nação Zumbi, indo “da lama ao caos / do caos a lama”, e o universo artístico e estético pelo qual circulara Ariano Suassuna, autor de O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta – embora destaque-se que a lama é um ambiente úmido, onde impera a fertilidade e a mudança (Figuras abaixo), sendo o homem caranguejo algo como um híbrido. Padrões se entrecruzado na obra de CSNZ, embora também figure uma interessante mudança de perspectiva com relação aos referenciais de Suassuna. Tudo isso que se acaba de expor pode deixar implícito alguns questionamentos no sentido de pensar sobre a presença de certos elementos em ambas as obras e qual a possível relevância disso para cada obra. Uma coisa bastante oportuna é se questionar em que medida a obra de Chico Science & Nação Zumbi avança em termos de pensar, responder ou enfrentar e problematizar a obra de Ariano, por exemplo, sendo isso algo interessante também que seja feito com relação à própria obra da banda e do Manguebeat. 347 Figura 141 – Chico Science dançando. Figura 142 – Imagem de Chico Science no clip de Maracatu atômico 348 Pode-se considerar que há, no que se refere a “me organizando posso desorganizar / desorganizando posso me organizar”, menção a um viés dialético de mudança, de organização, de um desequilíbrio que depois gera um novo equilíbrio, uma nova organização – bem ao molde da dialética. Mas também, que a “desorganização” caótica do mangue pode ser uma forma de organização, uma forma de vida. Embora se possa dizer que Chico Science & Nação Zumbi está contrapondo o caos da cidade à lama do mangue, que seria algo organizado, se pode justamente considerar que ele está falando de intercâmbio entre caos, já que se vai “da lama ao caos, [e] do caos à lama”. Essa menção a um processo de volta pode gerar inclusive muitas interpretações. A natureza, ao mesmo tempo é organizada, no sentido de que tudo parece acontecer dentro de um esquema ou sistema sem erros, também apresenta anomalias, acidentes, devastações, mutações e mudanças a todo tempo, os brotos das sementes racham as paredes e as calçadas, flores nascem da lama. Esta concepção baseada na fertilidade do mangue, na mutabilidade da lama, que chama a atenção para o natural, para a natureza, para a risoflora, é algo bem diferente daquela que tem como ponto gerador o tijolo e a construção - embora Chico declare que traz “rios e pontes no coração” e na música Enquanto o mundo explode, a décima sexta do álbum Afrociberdelia, seja colocado que “a engenharia cai sobre as pedras”. Diferentemente da estrutura retangular do tijolo, a lama não tem forma definida (embora na obra de CSNZ possam ser percebidas referências à teoria platônica das formas). Essa problematização que o Manguebeat trouxe está em alguma medida presente nos contextos educacionais e que pensam a educação. Na 55ª Reunião Anual da SBPC, por exemplo, realizada na cidade do Recife em 2003, foi apresentada a Exposição Chico Science – um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar, onde por meio das galerias se podia ver muitos educadores envolvidos com educação popular inclusive. As discussões em torno do Manguebeat se avolumaram por esses tempos, por motivo das comemorações dos vinte e poucos anos de sua eclosão. Marcam o Manguebeat temas como diversão, cibercultura, ficção científica, psicodelia, anormalidades, incerteza e imprevisibilidade. Na pedagogia de Freire é feito menção constantemente a temas como sujeito, objeto, certeza, produção, epistemologização, e religião em um sentido institucional. No entanto, como fora exposto há muitas concepções que estão tanto em Freire como no Manguebeat. Acerca de ambos, pode-se ter as seguintes questões e considerações: Passo e passeio faz referências a noção de sujeito? Há passo de dança, passo de andada etc. Qual a relação da noção de passo à frente com a de progresso e/ou ruptura? 349 Autonomia é um conceito, algo idealizado, para o qual Freire propõe uma pedagogia correspondente? Afrociberdelia, por exemplo, remete a práticas, características, talvez qualidades, não é um conceito, não tendo necessidade de se pensar uma pedagogia afrociberdélica, já que esta comportaria uma “pedagogicidade” inerente ao fazer. Assim, o Manguebeat, ou no caso, a obra de Chico Science & Nação Zumbi, pode servir para uma problematização inicial e como painel de conceitos, palavras, termos, concepções e temas relacionados a Artes & Ciências (Figura abaixo) e a muitos outros temas – sendo algo como um ponto de partida para que se aborde essas temas e concepções, e por um processo inverso se possa tratar do que fora exposto nos capítulos anteriores e muitas outras informações que não estão nesse texto. Assim, uma proposta de trabalho em sala de aula poderá ser composta da apresentação tanto das letras das músicas como as artes referentes as capas dos cds de Chico Science & Nação Zumbi, como de outros artistas, como Gilberto Gil (Figuras abaixo); da identificação nessas obras de temáticas referentes à artes, ciências, cultura e conhecimentos diversos; podendo-se assim trabalhar de forma dialogada essas temáticas identificadas, tendo em vista uma perspectiva crítica, problematizadora, plural e, em alguma medida, contra indutiva. 350 Figura 143 – Quadro de temas referentes às músicas de CSNZ. 351 Figura 144 - Quadro de imagens de várias cenas Ao entrar em contato com a multiplicidade de saberes e concepções aos quais o Manguebeat faz referência – e que se fez alusão no capítulo quatro -, o estudante ou quem, por ventura, esteja em contato com a obra, pode se questionar: isso acontece apenas na cultura, na arte, essa mistura de concepções saberes e conhecimentos? Ou está presente também nas ciências? Mesmo que não se faça esse questionamento, caso passe a pesquisar os diversos temas poderá começar a perceber relação entre eles. É possível que perceba ainda que tais simbolismos, concepções, doutrinas e teorias estão presentes ainda na atualidade – como no livro O universo numa casca de noz –, servindo à descrição e “conceituação” da realidade, o que em alguma medida reverbera na educação e no ensino. Este trabalho não trata de buscar a popularização da ciência, como muitos programas e obras defendem, justamente porque segue o entendimento, por exemplo, de que não se trata de 352 ensinar ciências apenas, mas de colocar os estudantes em contato com um contexto mais amplo, vivo e multifacetado. Uma proposta desse tipo não se coaduna, por exemplo, portanto, em quase nada, com entendimentos como o seguinte: A Ciência representa o último degrau do Homem na escala evolutiva. Ela é a última e a mais importante faculdade inata capital que o possibilita, principalmente, demonstrar, o quanto já conheceu, aproximou-se e identificou-se com as Leis Divinas, as Leis Universais, enfim, as Leis Naturais que regem o Universo, portanto do Princípio Criador de todas as coisas, inclusive de si mesmo, independentemente da dimensão em que se encontra. É com a Ciência que o Homem busca a realidade e a acha, levando em conta os diferentes contextos em que se encontra, seja cultural, intelectual, sócio- econômico, tecnológico e/ou espiritual. A Ciência hoje é mutável, no entanto, haverá o dia em que todo conhecimento será desvendado, pois, teremos atingido o estado de perfeição da nossa espécie, tornando a Ciência imutável e universal (LIRA-DA-SILVA; LIRA-DA-SILVA, LIRA-DA-SILVA, 2006, p. 20). A proposta educacional a qual faz referência o trecho acima - que tem o mérito de tocar em temas por vezes considerados sem importância, tentando unir arte, ciência e outros conhecimentos – tem uma concepção de arte ainda muito relacionado a um certo neoplatonismo demiúrgico, que considera a arte como mera imitação da natureza ou de um mundo metafísico, dentre outras muitas divergências. E, sobretudo, segue aquele entendimento bastante criticável segundo o qual um dia se “desvendará” definitivamente todo o conhecimento sobre tudo, e que isso ocorrerá inevitável e obrigatoriamente pela via da ciência. Defende-se que há sempre incertezas presentes nas formas de conhecimento apresentadas durante todo este trabalho. Que estas não são fechadas e algo em separado, nem que se tornam algo completo se são consideradas em conjunto, nem, tampouco, que uma delas pode ser considerada como algo destacada da outra (ou superior), justamente pela relação mútua estre elas, o que demonstra ser a vivência no mundo uma potência em movimento. Um ensino e uma educação para este contexto deve ser em alguma ou em grande medida uma exposição de situações, cenas e conhecimentos diversos, algo como um painel multidimensional de pluralidades e possibilidades. 353 Referências Bibliográficas ALLEN, Michael J. B.. Nupcial arithmetic: Marsilio Ficino’s comentary on the fatal number in Book VIII of Plato’s Republic. Berkeley: University of California Press, 1994. ALMEIDA, Manoel Campos de. Platão redimido: a teoria dos números figurados na ciência antiga & moderna. Curitiba: Champagnat, 2003. BAHM, Archie J. How did Niels Bohr understand complementarity? Contextos, IX, 17-18, 1991. P. 283-285. BARBOSA, Derly. 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