0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM DOUTORADO EM LITERATURA COMPARADA SOLIANA DE ARAÚJO SILVA BORGES: alegoria, metáfora e morte NATAL, RN 2015 1 SOLIANA DE ARAÚJO SILVA BORGES: alegoria, metáfora e morte Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, como exigência final para a obtenção do título de Doutora em Literatura Comparada, pelo Departamento de Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Profa. Dra. Ilza Matias de Sousa NATAL, RN 2015 2 Setor de Informação e Referência / Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte Biblioteca Central Zila Mamede Silva, Soliana de Araújo. Borges: alegoria, metáfora e morte / Soliana de Araújo Silva. – 2015. 273 f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Natal, 2015. Orientadora: Profa. Dra. Ilza Matias de Sousa. 1. Contos borgeanos. 2. Literatura. 3. Filosofia. 4. Diferença. 5. Repetição. I. Sousa, Ilza Matias de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BCZM-UFRN CDU 821.134(81)-34 3 SOLIANA DE ARAÚJO SILVA BORGES: alegoria, metáfora e morte Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, como exigência final para a obtenção do título de Doutora em Literatura Comparada, pelo Departamento de Letras, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Profa. Dra. Ilza Matias de Sousa BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Ilza Matias de Sousa – Orientadora Universidade Federal do Rio Grande do Norte Prof. Dr. Antônio Fernandes de Medeiros Júnior Universidade Federal do Rio Grande do Norte Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves Universidade Federal do Rio Grande do Norte Prof. Dr. Ailton Siqueira de Sousa Fonseca Universidade do Estado do Rio Grande do Norte Profa. Dra. Maria Ivonete Santos Silva Universidade Federal de Uberlândia NATAL, RN 2015 4 A Deus, pelos momentos de sabedoria. 5 AGRADECIMENTOS A Deus, Artífice Maior, pelo dom da vida e por Sua infinita bondade; Aos meus pais, pelo apoio, incentivo e encorajamento em tudo que almejei; Aos meus irmãos e às minhas irmãs, pelo incentivo e apoio; Aos colegas de trabalho, pelo estímulo; Aos amigos de sempre, pelas orações e por me ouvir nos momentos de dúvidas; À Marilúcia, pelo apoio irrestrito; Às minhas tias Lourdes e Marluce, pelo estímulo e companheirismo; À minha querida orientadora, professora Doutora Ilza Matias de Sousa, pela maneira como compartilhou suas leituras e experiências, pela paciência e sabedoria com que conduziu o processo de orientação; mas, sobretudo, pelo lugar especial que ocupa em minha vida; Ao professor Dr. Antônio Fernandes de Medeiros Júnior, pela generosidade com que leu as versões deste trabalho para o exame de qualificação e defesa; À professora Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves, pelas palavras de incentivo e por aceitar, carinhosamente, participar da arguição deste trabalho; Ao professor Dr. Ailton Siqueira de Sousa Fonseca e à professora Dra. Maria Ivonete da Silva, por terem aceitado participar da arguição deste trabalho; Às minhas meninas de quatro patas, pela companhia sempre tão agradável e com as quais aprendo a ser uma pessoa melhor; Ao meu Zeca, pelos momentos de descontração; À minha querida Milla (In memoriam), pelo companheirismo; A Carlinhos, meu esposo amado, pelas leituras, sugestões, pelos momentos de partilha e companheirismo. Sem ele, esta tese não seria possível. 6 “A palavra me dá o que ela significa, mas primeiro o suprime. (...). A palavra me dá o ser, mas ele me chegará privado de ser. Ela é a ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o único fato que ele não é. Desse ponto de vista, falar é um direito estranho.” Maurice Blanchot 7 RESUMO Este trabalho consiste numa discussão, análise e leitura de contos borgeanos, em que a problemática de interesse articula-se à linguagem, ao discurso e à escritura, remetendo-os tanto à Literatura quanto à Filosofia, tanto ao estatuto do ficcional, quanto ao do ontológico. Nessa ótica, pretende-se mostrar a escritura borgeana como urdidura da morte, do alegórico e do metafórico, no sentido de trazer para o ficcional traços distintos do real, elaborando o discurso para além do dito, atingindo os interstícios, o silêncio, as interrupções e a suspensão da representação. Nessa elaboração discursiva, aponta-se uma travessia na letra, afetada por sensações indizíveis, entrecruzando os processos de memória, imaginário e real, nos quais a temporalização faz emergir a diferença e a repetição. Nestas se constituindo agenciamentos territoriais que conduzem os personagens a espaços imaginários como possibilidades do real, permitindo-lhes efetiva mobilidade para desterritorializar-se e reterritorializar-se, conforme as forças de mudança que se manifestam nos seus trilhamentos. Para tanto, apresenta-se como escopo uma pesquisa bibliográfica norteada por autores como Maurice Blanchot (2008), Kátia Muricy (1998), João Adolfo Hansen (2006), Susan Sontag (2007), Mário Bruno (2004), Juan Manuel García Ramos (2003), Elizabeth Kübler-Ross (2008), Walter Benjamin (1984), Gilles Deleuze (1997; 2006; 2009), Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995; 1996; 1997). O corpus teórico e de discussão constitui-se a partir desses autores, atendendo ao caráter qualitativo implícito na construção desta tese. Quanto ao corpus literário, este é composto pelos contos A escrita do Deus, Os dois reis e os dois labirintos, A loteria em Babilônia, A metáfora, A biblioteca de Babel, O espelho e a máscara, Um teólogo na morte e O morto. Palavras-chave: Contos borgeanos. Literatura. Filosofia. Diferença. Repetição. 8 ABSTRACT This work consists of a discussion, analysis and reading of Borges’ stories, in that the problem of interest pronounces to the language, to the speech and the deed, sending them so much to the Literature with relationship to the Philosophy, so much to the statute of the ficcional, with relationship to the of the ontologic. In that optics, it intends to show the Borges deed as warp of the death, of the allegorical and of the metaphorical, in the sense of bringing for the ficcional lines different from the Real, elaborating the speech for besides the statement, reaching the interstic, the silence, the interruptions and the suspension of the representation. In that discursive elaboration, a crossing is pointed in the letter, affected for unspeakable sensations, crossing the processes of memory, imaginary and real, in which the time counting makes to emerge the difference and the repetition. In these if constituting territorial negotioting that they lead the characters to imaginary spaces as possibilities of the real, allowing them executes mobility for desterritory itself and reterritory itself, according to the change forces that show in your threshing. For so much, it is placed as mark a bibliographical research orientated by authors as Maurice Blanchot (2008), Kátia Muricy (1998), João Adolfo Hansen (2006), Susan Sontag (2007), Mário Bruno (2004), Juan Manuel García Ramos (2003), Elizabeth Kübler-Ross (2008), Walter Benjamin (1984), Gilles Deleuze (1997; 2006; 2009), Gilles Deleuze and Félix Guattari (1995; 1996; 1997). The theoretical corpus and of discussion, it is constituted to leave of those authors, assisting to the implicit qualitative character in the construction of this thesis. What about to the literary corpus, this is composed by the stories The writing of the God, The two kings and the two labyrinths, The lottery of Babylon, The metaphor, The library of Babel, The mirror and the mask, A theologian in death and The dead man. Key-words: Borges’ stories. Literature. Philosophy. Difference. Repetition. 9 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO......................................................................................................10 2 UM TECIDO ALEGÓRICO................................................................................... 24 2.1 A ESCRITALEGORIA DO DEUS......................................................................... 44 2.2 DOIS REIS E UM CORPO SEM ÓRGÃOS.......................................................... 67 2.3 A LOTERIA EM BABILÔNIA E O CREPÚSCULO DO AMANHECER................. 83 3 CONJECTURAS DA METÁFORA.....................................................................105 3.1 METÁFORAS NEBLINADAS POR IMORTAIS DISTÂNCIAS............................ 131 3.2 OS LABIRINTOS BABÉLICOS...........................................................................148 3.3 UMA ESCRITURA SECRETA............................................................................ 168 4 SOBRE A MORTE E O DEVIR.......................................................................... 187 4.1 MELANCHTON, UM TEÓLOGO NA MORTE ................................................... 212 4.2 BENJAMÍN OTÁLORA E A TRAVESSIA DA MORTE...................................... 228 5 TECENDO AS CONSIDERAÇÕES FINAIS.... .................................................. 244 REFERÊNCIAS ................................................................................................. 251 10 1 INTRODUÇÃO “Creio que o poeta haverá de ser outra vez um fazedor. Quero dizer, contará uma história e também a cantará”. Jorge Luis Borges. O fazedor de poesias e histórias ainda criança entretece as palavras com o intuito de despertar a atenção do leitor para um universo a ser decifrado em cada narrativa, como se fosse sempre única e indecifrável. Diferença e repetição surgem como urdidura para situações que surpreendem, visto que perpassam o tempo para dizer o poeta, o ser e o homem Jorge Luis Borges. As narrativas borgeanas retratam a paixão que o escritor ostentava desde tenra idade: o fascínio pelos tigres. “Muito pequeno, costumava desenhá-los rajados, gordos e de patas tão curtas que alguns parecem lagartos. A mãe recordava que sempre começava o desenho pelas patas” (VÁZQUEZ, 1999, p. 30). Esse sentimento virá expresso anos mais tarde em suas narrativas povoadas de tigres. Borges foi um poeta que muito jovem teve contato com bons escritores da literatura e da filosofia. O pai, Jorge Guilhermo Borges, homem culto e reservado, revelara-lhe o poder da poesia e, junto a isto, o fato de que as palavras não eram nem podiam ser apenas um meio de comunicação; estas eram, sobretudo, símbolos mágicos e música. Conforme Vázquez (1999) dos dois lados da família corria sangue militar, Borges alimentava o desejo épico de ser um deles. Desejo esse malogrado pela cegueira que desenvolveu ainda muito jovem e com a qual teve que conviver ao longo da vida, mas também “desejo sabiamente negado pelos deuses”, confessa o poeta. Supõe-se diante da confissão de Borges que, verdadeiramente, um dos fortes motivos para ele não ter enveredado para o militarismo tenha sido de fato os problemas que desenvolveu com a visão; isto o envergonhava, porque sabia que nunca atuaria como um militar e, não obstante, se inclinaria para os livros. No que concerne à tradição literária, Borges a herdaria do próprio pai, que escreveu novela, ensaios, livros... porém, quando a cegueira o acometeu teve que dar a carreira por encerrada. Embora muito jovem, já pressupunha que daria continuidade àquilo a que seu pai começara. 11 Jorge Luis Borges inicia a vida como escritor, ainda aos seis ou sete anos de idade, imitando escritores como Miguel de Cervantes, pois já havia lido O Quijote, publicado pela biblioteca do jornal La Nación, em formato de livro de bolso. A narrativa La visera fatal, foi a primeira história escrita por Borges. De quando em quando, viajava com a família para a Europa, pois seu pai vez por outra precisava visitar o médico genebrino para cuidar da visão. Mas foi em Adrogué, cidade onde passava o verão com a família, que o jovem Borges se deparou com ruas que, para ele, eram como labirintos sérios e tranquilos os quais serviriam como inspiração para suas narrativas que surgiriam sempre com uma concepção de labirintos diversos, em que o leitor é induzido a adentrar para decifrá-los, sob pena de se ver perdido em meio às múltiplas facetas que os labirintos lhe reservam. Após muitos anos de leituras, críticas e pesquisas, decide finalmente assumir seu destino: ser escritor. Resolve mostrar seus escritos ao pai – que ainda tinha visão –; este acreditava que o filho deveria trilhar seu próprio caminho e aprender com seus próprios erros. Borges, animado com o ultraísmo, acreditava que a metáfora era o elemento essencial e único da poesia. Teve sua primeira poesia Himno al mar (Hino ao mar) publicada em 31 de dezembro de 1919, na Revista Grécia; poema em que decide parecer-se com Walt Whitman. A partir desta data surgem as demais publicações e o jovem desponta na carreira literária. Entre 1921 e 1922 escreveu poemas que foram publicados em seu primeiro livro, Fervor de Buenos Aires. Os livros foram impressos em cinco dias, sem qualquer correção. Nele, os lugares que o emocionavam e o comoviam de alguma forma lhe serviram como fonte inspiradora para a escrita dos poemas. Ele acreditava que durante toda sua vida escreveu temas relacionados ao Fervor de Buenos Aires, afirmando inclusive que sempre reescreveu o referido livro: Siento que toda me escritura subsiguiente sólo desarrolló temas tratados en este libro. Creo que a lo largo de toda mi vida estuve reescribiendo ese libro1. Contudo, é a segunda edição da Revista Proa, dirigida por Ricardo Güiraldes, que nos 1 “Sinto que toda minha escrita posterior apenas desenvolveu temas abordados neste livro. Creio que ao longo de toda a minha vida estive reescrevendo esse livro”. (Tradução nossa). Borges fez esta confissão quando foi homenageado pela Cultura de La Nación, em fevereiro de 1996, p. 7. 12 apresenta um poeta mais maduro, posto que traz seu trabalho sobre o Ulisses, de James Joyce. Mas, é o Borges da Revista Sur, dirigida por Victoria Ocampo, que desponta com textos (quase sempre curtos) os quais ressaltam as pequenas coisas e os pequenos detalhes. No dizer de Vázquez (1999, p. 123), “Borges fez crítica e resenha de filmes, de livros e pouco a pouco seu estilo se impôs e passou a ter admiradores e seguidores”. Ainda na Revista Sur foram publicados em primeira versão El Aleph (em setembro de 1945); Deutsches Requiem (em fevereiro de 1946); Historia del guerrero y la cautiva: La loteria en Babilonia (em janeiro de 1941); La muerte y la brújula (em maio de 1942); Pierre Menard, autor del Quijote (em maio de 1949), dentre outros contos e ensaios. Nesta Revista, ele encontrou espaço para publicar o que se pode considerar como o núcleo de sua obra. Segundo Vázquez (1999), à mesma época Mallea assumiu a direção do suplemento literário La Nación, do qual Borges foi colaborador permanente até, praticamente, o final da vida. Vale salientar que Borges foi um grande admirador de Macedônio Fernandes, por quem nutria, além de admiração, profunda amizade. Tal fato o deixava gratificado ao saber que o sábado estava se aproximando e ele poderia encontrar o amigo. Em La Maga: Cultura de La Nación (1996, p. 11), confessa que antes de Macedônio era um leitor crédulo; contudo, após conhecê-lo passou a ler incredulamente e garante que em princípio plagiava Macedônio com devoção recogiendo algunos amaneramientos estilísticos suyos que luego llegué a lamentar. Ahora lo veo, sin embargo, como vería a un Adán confundido por el Jardín del Edén2. Para este escritor, a genialidade de Macedônio Fernandes era de natureza socrática. A admiração pelo escritor fê-lo admitir: Realmente amé a ese hombre, de este lado de la idolatría3. De acordo com Vázquez (1999), faz-se necessário destacar que o ano de 1956 foi crucial à vida de Jorge Francisco Isidoro Luis Borges, pois, devido à sua progressiva cegueira, os médicos finalmente anunciaram que deveria deixar de ler e escrever. Porém, mesmo em meio a tão árdua notícia, isso não o impediu de continuar trabalhando. O que para alguns seria o prenúncio da própria morte, para 2 “Recorrendo a alguns de seus maneirismos estilísticos que depois cheguei a lamentar. Agora o vejo, no entanto, como veria a um Adão confuso pelo Jardim do Edén”. (Tradução nossa). Cultura de La Nación. La Maga: Notícia de Cultura. Homenaje a Borges. [s.n.]: Secretaria de Cultura de La Nación, n. 18, feb., 1996, p. 11. 3 “Realmente amei esse homem, aquém da idolatria”. (Tradução nossa). Ibid., p. 11. 13 ele, foi um impulso para produzir cada vez mais. Assim, permanece escrevendo e, em 1966 edita, ampliada e corrigida, sua Obra Poética (1923-1966). Borges entendia que aquilo que a memória não guardava por prazer, por amor ou por necessidade, não merece ser guardado em uma caixa de sapatos. Enquanto fazedor, apresenta uma escritura infinita na perspectiva do “infinito do próprio espírito [...] cuja solidão da obra tem por primeiro limite essa ausência de exigência que jamais permite afirmá-la acabada ou inacabada”, segundo reflexões de Blanchot (2011a, p. 12). Borges sabe que mais uma vez se encontra no início de seu trabalho, num silêncio e numa intimidade errante do indizível, para o que não pode realizar-se uma estabilidade, posto que a solidão que o acompanha o faz sentir-se vazio e acreditar que a obra sempre estará inacabada, crendo que através de seu esforço e mais alguns instantes de deleite conseguirá concluir o interminável. Quando analisamos as narrativas borgeanas percebemos que estas fornecem alegorias e metáforas que aspiram, na aparência, à mitificação. O escritor insere o leitor em um universo mágico de labirintos, espelhos, tigres, homens... todos unidos a reflexões metafísicas que envolvem tempo, espaço e seres que lutam para se autodescobrir. A linguagem e os artifícios usados por este autor conduzem ao imaginário como se esse fosse a representação de um real que consegue perpassar o tempo e pronunciar a constituição do mito, que é a literatura borgeana. Lemos Borges porque havemos de dialogar com uma escrita repleta de enigmas os quais nos remetem a vários labirintos, nos encaminhando para o imaginário, na tentativa de conseguir construir, por meio de experiências, de conhecimentos prévios, sentidos cada vez mais intensos, os quais perpassem a psicologia e a matemática chegando à metafísica. Os contos traçam caminhos que conduzem a tais aspectos com a finalidade de o leitor (re)descobrir-se enquanto agenciador de acontecimentos, onde o silêncio atua como o principal aliado para essa descoberta, pois embora não sejam anedóticos ou sentimentais, são comovedores e prendem o leitor no emaranhado ficcional. No dizer de Miguel Russo (1996, p. 12), [...] su fuerza, su singularidad, no están en los personajes ni en los temas, sino en el estilo de su prosa y en la tristeza recatada de sus versos4. 4 “[...] sua força, sua singularidade, não estão em seus personagens ou temas, mas no estilo de sua prosa e na tristeza recatada de seus versos”. (Tradução nossa). 14 Para ler Borges é necessário que se percebam os interstícios de uma escritura que é governada, sobretudo, pelo intelecto. Na primeira palestra, intitulada O Enigma da Poesia, que consta no livro Esse ofício do verso, o autor afirma, dentre outros pontos importantes, que passou a vida lendo, analisando, escrevendo, ou treinando a mão na escrita, mas diante de tudo isto pôde desfrutar do que estava fazendo; por esta razão a “poesia não é alheia – a poesia [...] está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante” (BORGES, 2000, p. 10). Ao analisarmos os contos, estes nos levam à percepção de que estão imbuídos de poesia, cujos símbolos que se apresentam “por trás” das palavras “saltam” para a vida como forma de mostrar o significado que cada uma exerce dentro do contexto de cada narrativa e o que elas têm a dizer de si mesmas. Ele reitera o fato de termos “de nos haver com a mitologia do nosso tempo. Pois as palavras significam a mesma coisa” (BORGES, 2000, p. 18). Mais do que isto, estabelecem relações temporais para que se decifrem as alegorias e metáforas que permeiam as possibilidades e impossibilidades de vislumbrar e desenredar os ambientes tecidos com as vozes e os fios penelopeanos. Ao leitor é lícito estar vivo ou morto, haja vista que o que irá assinalar o curso das situações em que se encontra é a “desventura”. Semelhante ao jovem/velho Tzinacan, mago da pirâmide de Qaholom, que é conduzido ao cárcere ainda jovem, mas, enquanto tenta interpretar o segredo da escrita do deus, compreende, ao chegar àquele lugar, que os anos passaram; agora, já velho, apenas espera a morte como o fim que lhe destinam os deuses. Considerando o modo como Borges apresenta seus personagens, vemos o quanto a relação alegoria, metáfora e morte coaduna para mostrar que o pensamento dialoga consigo próprio, mostrando que o sujeito do enunciado é universalizado e difundido a partir do agenciamento do encontro desse consciente/inconsciente que produzirá sentido. Exemplo disto é o que se apresenta no conto A escrita do deus onde imaginário e real se apresentam como analogias para a interdependência que transita entre razão e emoção, até que o mago aceite o destino que lhe foi instituído pelos deuses. Na terceira palestra, intitulada O Narrar uma História, Borges (2000, p. 51) afirma que “os antigos, quando falavam de um poeta – um ‘fazedor’ –, pensavam nele não somente como quem profere essas agudas notas líricas, mas também como quem narra uma história”. A história conteria vozes as quais envolveriam 15 sentimentos de vontade, solidão, coragem, lealdade, melancolia, esperança; mas também tristezas, dissabores e desesperanças, uma vez que os personagens – e por analogia os indivíduos – enfrentam tais situações. Na quinta palestra, intitulada Pensamento e Poesia, Borges (2000, p. 84) nos diz que “Stevenson fala das palavras como simples blocos, simples utensílios. E admira-se com o poeta, capaz de urdir esses símbolos rígidos destinados a propósitos corriqueiros ou abstratos [...]”. É através dessas palavras que o poeta nos apresenta a arte de narrar e de contar histórias que perpassam o tempo e conseguem inserir o leitor no universo de um escritor que tece as palavras como se estas fossem melodias que se desdobram para dizer o passado, o presente e o futuro, visto que as emoções brotam em cada palavra na tentativa de expressar os sentimentos do escritor, mas também do leitor, que igualmente faz parte da história. Na mesma palestra, o referido autor menciona Alfred North Whitehead que escreveu: “entre as muitas falácias há a falácia do dicionário perfeito – a falácia de pensar que [...] para cada idéia (sic) abstrata, pode-se encontrar um equivalente, um símbolo exato no dicionário” (BORGES, 2000, p. 86). O fato de as línguas serem díspares já nos leva a pensar que isso não existe. As palavras são símbolos originários de dicionários e nos induzem a pensar e a sentir que as emoções que expressam são provenientes do trabalho do escritor, que as lapida por meio de metáforas. As narrativas borgeanas retratam a poesia que é elaborada do homem para o homem, seus múltiplos “eus” e os vários outros que são ele mesmo. Os agenciamentos territoriais se harmonizam com a poesia e com a arte para dizer que ambas estão presentes, porque no instante em que o escritor revela suas angústias, alegorias e metáforas são “entesouradas”, formando teias formidáveis as quais não podem aparecer como modelos definidos e/ou definitivos, haja vista que são tecidas para dizer os vários espaços que perfazem para territorializar-se. Na sexta palestra, intitulada O credo de um Poeta, confessa: “Li em Lugones que a metáfora era o elemento essencial da literatura, e aceitei essa máxima, Lugones escreveu que todas as palavras eram originalmente metáforas” (BORGES, 2000, p. 111). Ele reitera a sua fala dizendo que “isso é verdade, mas é verdade também que, a fim de entender a maioria das palavras, é preciso esquecer o fato de serem metáforas” e observar que a existência das palavras está na possibilidade de 16 tecê-las, sobretudo, enquanto poesia. Para Borges, a metáfora pode e deve aparecer de maneira mais sutil. Ainda na sexta palestra, ele afirma que “as palavras são símbolos para memórias partilhadas”. Se ele usa uma palavra, espera que o leitor tenha “alguma experiência do que essa palavra representa. Senão a palavra não significa nada [...]” (BORGES, 2000, p. 122); e contesta o fato de a literatura moderna ser muito autoconsciente. Para ele, os escritores deveriam perceber a escrita como uma espécie de colaboração, onde o poeta apresenta o sonho, seja este sombrio ou mórbido, e deixa que o leitor o embeleze ou o compreenda. Não precisa apresentar as verdadeiras circunstâncias e, ainda que o fato seja real, é necessário mostrá-lo como inverdade para que se torne mais perspicaz aos olhos do leitor. Borges entende que a inteligência não se coaduna necessariamente com o trabalho de um escritor, “[...] podemos aludir, podemos apenas tentar fazer o leitor imaginar. O leitor, se for rápido o suficiente, pode ficar satisfeito com nossa mera alusão a algo”5, isto porque a literatura deve ser uma atividade criadora organizada, que propicie ao leitor adentrar aos vários espaços da narrativa locomovendo-se e percebendo-se como em um mundo verdadeiramente humanizado, onde real e imaginário se confundem a ponto de apresentar inverdades inimitáveis cujas situações sejam tanto a solução quanto o fim para todas as desilusões. Estamos diante de um poeta que admite pensar que a linguagem constitui-se num “modo de dizer as coisas, de externar queixas, de dizer que se estava feliz ou triste etc.,” mas de repente descobre que “a linguagem podia também ser música e paixão” (BORGES, 2000, p. 104). Desta maneira lhe fora revelada a poesia. Para ele, se tivesse que dar conselhos aos escritores apenas lhes pediria que “[...] mexessem o menos possível em seu próprio trabalho. Não acho que remendos sejam de algum proveito. Chega uma hora em que a pessoa descobre o que é capaz de fazer – em que descobre a sua voz natural, o seu ritmo” (BORGES, 2000, p. 121). Podemos dizer que Borges indica caminhos a serem percorridos por meio de uma complexidade que atua como atributo principal da sua escritura, cujas sentenças despertam para o universo metafórico, onde engenho e arte delineiam a impressão de perfeição que permeia os contos. As narrativas trazem um esteticismo 5 BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia da Letras, 2000, p. 122. 17 que impressiona, pois surge como uma marca inconfundível do escritor, que une erudição e criatividade como forma de expressar um gênero novo, porém, não exclusivo, cujo tom alegórico-metafórico marca uma escrita arguta. Através da análise dos contos A escrita do Deus, Os dois reis e os dois labirintos, A loteria em Babilônia, A metáfora, A biblioteca de Babel, O espelho e a máscara, Um teólogo na morte e O morto veremos que o autor supracitado combina com perspicácia o poder de síntese de uma escrita poética cuja prosa ensaística surge com uma inventividade ficcional rara em qualquer época. Nesta tese, preferimos estudar alegoria, metáfora e morte devido à abordagem que o referido autor apresenta, revelando-as como a própria metáfora da vida, transmitindo uma impressão de acabamento e plenitude que é lícito esperar da literatura borgeana. Ademais, poderíamos dizer que tanto a originalidade quanto a impressão de perfeição são traços de um anacronismo, visto que ele confia no resgate de uma longa tradição que certamente atribui o papel de juiz ao tempo presente. Sabemos que o estudo comparativo de um texto literário possibilita ao leitor observar as nuances da linguagem literária como forma de ampliar seus conhecimentos, mas também de fazê-lo perceber que através do imaginário os personagens expõem aspectos do real. Por esta razão, a conjectura ora proposta é a de que, através da análise crítica dos contos aqui mencionados, possamos encontrar respostas para parte das indagações que surgem quanto aos aspectos da alegoria da morte como metáfora explícita ou implícita nos textos de Jorge Luis Borges. Pretendemos mostrar que existem elementos que permeiam a obra do referido autor de forma fantástica, revelando o quanto real e imaginário impregnam seus personagens, remetendo o leitor ao universo do fantástico e do maravilhoso sem fazer perder o brilho existencial, decifrando as hiâncias6 dos seres e mostrando as nuances de sentido que existem entre memória, imaginário e real. Diferença e repetição constituem agenciamentos territoriais os quais conduzem os personagens a espaços imaginários como possibilidades do real, permitindo-lhes 6 De acordo com o dicionário Latino-Português (1955, p. 410), a palavra hiãntus – ūs – (hio). Substantivo masculino, cujo sentido figurado, na língua gramatical é: a palavra pronunciada, cobiça, avidez, ação de desejar avidamente, sede ávida. Neste contexto, leia-se a palavra como sendo a representatividade dos vazios, das melancolias e angústias que os personagens vivenciam enquanto tentam decifrar os enigmas borgeanos. 18 desterritorializar-se e reterritorializar-se com a mesma facilidade com a qual foram territorializados. Unir a literatura à filosofia é ousar dizer o devir de ambas, pois o literário habita o filosófico tornando possíveis os devires, unindo as subjetividades para mostrar o que cada uma representa e realmente é. A literatura e a filosofia mostram o sujeito tanto como criatura quanto como criador para representar os vários indivíduos que formam as diversas sociedades, as intolerâncias, submissões, as formas de servidão e a obediência, ao passo que também se apresentam como cura para todos esses “males”, basta que se aprenda a pensar e “pensar por si mesmo”. Aprender a pensar por si próprio implica aprender a pensar no limite de cada um, percebendo o que está no seu entorno como (re)desenhos de um real que também perpassa o subjetivo; e é isto que se apresenta como característica de personagens (e por analogia, de indivíduos) os quais aspiram a descobrir o que permeia o “eu” (ou o ego) na tentativa de afirmar quem de fato eles são. Diferença e repetição se completam e se ajustam ao devir para justificar a existência tanto da literatura quanto da filosofia enquanto ornatus discursivos que primam por essa subjetividade/objetividade relativa aos seres que vivem em sociedade, afirmando e reafirmando a existência desses sujeitos, reiterando as formas de pensar e existir de cada um. Frente ao exposto, consideramos o tema abordado relevante para os estudos literários e filosóficos devido à contribuição que este poderá proporcionar ao leitor que deseja conhecer mais da literatura borgeana, mas também em função da abordagem que pretendemos fazer acerca da alegoria, metáfora e morte enquanto aspecto estético para dizer que através da sutileza se pode construir o dizível-indizível. Almejamos evidenciar que, embora o sujeito se encontre no limiar de uma decisão, as respostas tornam-se possíveis apenas quando ele se interroga. As dúvidas entre certo e errado levam-no aos múltiplos “eus” e infinitos labirintos como forma de perscrutar as palavras, decifrar os segredos e os mistérios que elas podem lhe propiciar. Borges possui uma linguagem que atende a todas as camadas sócio-político-ideológicas cuja conjectura perpassa espaço e tempo (passado, presente e futuro) como se fossem únicos, produzindo uma relação onde consciente e inconsciente descobrem discursos multiformes. 19 Para realizar os objetivos propostos, tomamos como elemento norteador a pesquisa bibliográfica, que serviu como escopo para discutirmos o tema em questão. Isso oportunizou uma discussão, no campo da Literatura e da Filosofia, baseada em autores que enfocam alegoria, metáfora e morte como aspectos relevantes para a construção, transformação e mudança atitudinal ou comportamental expostas pelos personagens borgeanos como exterioridade do humano. A pesquisa está embasada em autores como Maurice Blanchot (2007; 2010; 2011), Kátia Muricy (1998), João Adolfo Hansen (2006), Susan Sontag (2007), Mário Bruno (2004), Juan Manuel García Ramos (2003), Elizabeth Kübler-Ross (2008), Walter Benjamin (1984), Gilles Deleuze (1997; 2006; 2009), Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995; 1996; 1997). Salientamos que o corpus teórico e de discussão constitui-se a partir destes e de outros autores, com a finalidade de atender ao caráter qualitativo implícito na construção deste livro. Quanto ao corpus literário, este é composto pelos contos outrora referidos: A escrita do Deus, Os dois reis e os dois labirintos, A loteria em Babilônia, A metáfora, A biblioteca de Babel, O espelho e a máscara, Um teólogo na morte e O morto levando em consideração os pontos mais importantes do tema proposto, remetendo-os, como já mencionado, tanto à Literatura quanto à Filosofia, observando-se a escritura borgeana como urdidura do alegórico, do metafórico e da morte no sentido de trazer para o ficcional traços distintos do real para dizer o não dito, o que permite aos contos a representação do próprio real no emaranhado ficcional que é a obra de Jorge Luis Borges. Com isto, a análise assume um caráter qualitativo, uma vez que não observa a frequência, e sim, a ocorrência dos fatos, bem como a influência que estes porventura desempenham nos referidos contos e a importância que exercem sobre os personagens e, por extensão, os seres humanos. Salientamos que, quando urdimos o tecido alegórico a partir da apresentação que fazemos de Jorge Luis Borges – e entendemos que este autor dispensa apresentações –, é porque compreendemos que o nosso leitor, no dizer do próprio Borges, pode aparecer somente daqui a cinco mil anos, e ele poderá ou não saber quem foi o referido autor. A nossa intenção é contextualizar um pouco da história de vida deste escritor como uma maneira de situar o leitor, descartando-se quaisquer possibilidades de forçar uma apresentação. 20 Destacamos ainda que a tese se apresenta em cinco capítulos, cujo primeiro é a Introdução, que tem a finalidade de conduzir o leitor ao tecido escritural que é a literatura borgeana, permitindo-o conhecer um pouco da escrita deste autor que fascina pela perspicácia de suas narrativas, mas também o situando quanto ao que se pretende apresentar através de diversas fontes de pesquisas. Abrimos um parêntese para ressaltar que se fôssemos nominar a introdução a intitularíamos O fazedor, pois é a partir do fazer borgeano que estaremos trilhando o nosso fazer; esperando realizar nossos objetivos e, assim como Borges, conquistar nosso leitor através de nossa escrita e da forma como conduziremos a apresentação deste desafio que é a escritura borgeana. O segundo capítulo apresenta Um tecido alegórico, ou seja, uma tessitura da alegoria expondo os diversos aspectos que compreendem esta figura, com o intuito de encaminhar o leitor para o processo de formação que engendrará os múltiplos agenciamentos que constituem a escrita de Borges. O capítulo será composto pelos contos A escrita do deus, que mostra as expectativas de Tzinacan – mago da pirâmide de Qaholom – para decifrar a escrita do deus, mesmo sem saber o que fazer para realizar tal desejo; Os dois reis e os dois labirintos, que retrata os corpos sem órgãos (CsO)7 a partir do desejo de preencher os vazios que acompanham ambos os reis, onde a desterritorialização baliza o preenchimento dos buracos negros que os seguem e A loteria em Babilônia, que expõe a luta dos homens em busca de poder e igualdade de direitos, bem como as relações que se estabelecem entre dominantes e dominados, tendo como principal foco a concepção deleuziana de máquinas de guerra, pois é deste modo que os indivíduos se projetam e através das quais desejam formar riquezas. O terceiro capítulo aborda as Conjecturas da metáfora, onde apresentamos a concepção de alguns autores no que tange à utilização desta figura centrando-a principalmente na leitura que é realizada da metáfora enquanto elemento cognitivo que faculta ao sujeito usar a tríade pensamento-linguagem-ação como forma de interpretação metafórica. Inicialmente, o leitor verá que o discurso se mostra, por assim dizer, tradicional, devido às diversas abordagens apresentadas pelos autores estudados; no entanto, não podemos fugir do que está posto. Entendemos que, se assim o 7 Nomenclatura usada por Gilles Deleuze. 21 fizermos, estaremos desmerecendo e descaracterizando o que preconizam os vários escritores pesquisados. Entretanto, almejamos sinalizar uma travessia na letra, afetada por sensações indizíveis, as quais perpassam a temporalização para explicar as relações que se estabelecem entre os processos de memória, imaginário e real os quais organizam agenciamentos territoriais que são desdobrados em novos rizomas de desterritorialização e reterritorialização. Integram este capítulo o conto A metáfora, o qual expõe a relação que se estabelece entre a narrativa e a palestra (de mesmo nome) proferida por Borges no livro Esse ofício do verso, mostrando como se apresentam (ou se apresentavam) as metáforas que perpassam o tempo para falar do sonho, da vida, do sono, da morte e da mulher alegorizada através das rosas e das flores do campo cujas metáforas instauram uma comunicação a qual abrange os campos cognitivo, cultural e ideológico. O conto A biblioteca de Babel, que retrata a avareza do homem e a sua vontade de ser maior ou semelhante a Deus, ao desejar decifrar todas as línguas ao mesmo tempo em que estas se misturam como prova de que Deus o estava condenando. Isto nos permite perceber o conto como uma alegoria metafórica, porque ora se mostra sem dinamismo – o que caracteriza a alegoria –, ora susceptível a variações de sentido, a ponto de não aceitar repetições – caracterizando a metáfora. Estaremos delineando também o processo de construção/desconstrução, à luz de Jonathan Culler e Jacques Derrida, dando ênfase ao processo de desterritorialização e (re)territorialização presente na teoria de Gilles Deleuze. No que tange ao conto O espelho e a máscara, a proposta é mostrar que espelho e máscara farão parte da trajetória do Ollan enquanto profere metáforas para agradar e enaltecer a figura do Rei. Este, uma vez enaltecido, sente-se preenchido pela palavra que traduz a guerra, mas também sente o desejo de realização através do elogio às vitórias conquistadas durante seu reinado. Os presentes oferecidos ao Ollan pelos encômios proferidos traduzem a busca do indivíduo no intuito de descobrir que a palavra errante cria um percurso próprio, permitindo que o sujeito perceba o momento certo de falar e silenciar, onde os agenciamentos metafóricos fazem com que cada metáfora expresse as ressonâncias desse desconhecido num eterno retorno de si e do outro. 22 O quarto capítulo, A morte e o Devir, apresenta a morte como desígnio para a formulação da razão que desanda em criação; ela se formula como ficção, criação, mas também representa aspectos do real, porque havendo mudança de estatuto sofrerá outra metamorfose; isto é, da mesma maneira que o real racionalizado nos esconde uma ficção, para ser construída a formulação do ficcional racionalizado poderá apresentar aspectos do real e dar-lhe uma expressão que se baseia em operações de complexidades outras. Sendo assim, a alegoria da morte surge também como forma de convencer, insistindo em sua fidelidade para dizer o não dito, provando a necessidade de um olhar irônico e perspicaz cuja morte metafórica nele se postula. O capítulo é composto pelo conto Um teólogo na morte, o qual mostra os artifícios utilizados por Melanchton para ludibriar os anjos e (mesmo depois de morto) continuar expondo sua concepção de teólogo, apresentando a metáfora da morte como expectativa para conquistar um lugar no céu; para tanto, ele precisa se desvencilhar da própria máquina do desejo e pedir perdão com sinceridade. O conto O morto apresenta, em linhas gerais, as máquinas desejantes que percorrem o inconsciente maquínico de Benjamín Otálora levando-o, despretensiosamente, à própria morte. O devir-animal se apresenta de forma perene e as linhas de fuga dobram-se e desdobram-se imprimindo sempre a coragem em oposição ao medo, propagando um processo de desterritorialização o qual envereda para territorializações cujo desejo operante é cristalizado com a morte do sujeito pensante. Através dos referidos contos, veremos que é no espaço da morte que os personagens cumprem suas atitudes e revelam quem de fato eles são; sem descaracterizar o ser humano em sua essência. A morte é exposta como sendo o verdadeiro substrato fundante de todo o pensamento filosófico. Isto porque, sem ela, talvez o homem jamais tivesse começado a filosofar e jamais tivesse descoberto que o dilaceramento no coração de quem fica pode existir; porém, os indivíduos não podem manifestá-lo publicamente, porque fazem parte de uma sociedade cujos tabus os impedem de demonstrar suas fraquezas. O quinto capítulo, Tecendo as Considerações Finais, apresenta as reflexões a que chegamos acerca da constituição de nossas pesquisas, bem como os aspectos relevantes do tecido alegórico-metafórico que se define com a escritura de Jorge Luis Borges. 23 Em suma, todos os contos e exemplos que surgem ao longo desta tese expõem o tecido metafórico como a metáfora da morte de um sistema de pensamentos, que nasce com a formulação da racionalidade. Os personagens, abalados com a morte e soterrados emocionalmente pela visão precária do mundo, a ausência de discussões, de parcerias válidas, terminam por se enredar em novas possibilidades de vida, permitindo ao outro ver-se como princípio das reflexões, ligadas ao sentido do mundo. Borges metaforiza os cenários e personagens como forma de explicitar as características de cada ser, poetizando-os. É possível que esta seja a razão pela qual as narrativas possuem harmonia, estilo e sutileza, características que serão aqui discutidas. 24 2 UM TECIDO ALEGÓRICO “A melhor e mais perfeita alegoria de um conceito, ou de vários, é expressa em uma única figura, ou deveria sê-lo”. Walter Benjamin. Neste capítulo, delineamos os vários aspectos da alegoria à luz de diversos autores que abordam tais perspectivas. Nosso leitor perceberá que o discurso, a priori, estará muito focado numa alegoria tradicional em virtude de ser esta a concepção dos autores estudados; através dos exemplos apresentados – com a finalidade ímpar de possibilitar uma visão mais abrangente desta figura – tentaremos sair um pouco dessa visão tradicional da alegoria apresentando-a como possibilidades de interpretação. A alegoria pode ser definida como uma metáfora continuada uma vez que expõe uma situação a partir de outra, ou seja, é a tradução visual da retórica e atua como ornamento do discurso. Etimologicamente, alegoria deriva de allós – outro, e agourein – falar na ágora, utilizar linguagem pública. No latim, inversio significa “o que está no lugar de outra coisa”, ou “o que apresenta indiretamente uma coisa por meio de outra” (HANSEN, 2006). Via de regra, a alegoria é vista como figura de linguagem, como parte da retórica. O meio de representação não precisa ser apenas (e tão somente) a linguagem verbal, há outras formas de alegoria que envolvem a linguagem verbal e não verbal e que também abrangem a representação concreta de uma ideia mostrando que os elementos alegóricos dizem algo além dele próprio, ou seja, não expõem, necessariamente, o que se nos apresenta à primeira vista. Segundo Kothe (1986, p. 7), ainda assim há uma relação entre o que se apresenta de fato e o seu “significado subjacente. Alegoria significa, literalmente, ‘dizer o outro’”. Sendo esta a transposição semântica de um signo presente para um ausente, a alegoria retórica refere-se à oposição entre sentido real e figurado, onde o segundo representa a metáfora. Conforme Rios (2009, p. 13-14), Fílon de Alexandria atribui à prática o que os estoicos chamavam de hypónoia (subpensamento) ou “significação oculta”, o nome definitivo de alegoria, no intuito de que fosse aprendida uma leitura a qual buscasse, sob as palavras do discurso, o pensamento verdadeiro e que era utilizado para 25 interpretar, por exemplo, os mitos de Homero como personificação de princípios morais ou forças sobrenaturais, método que teve como especialista Aristarco de Samotrácia (215-143 a.C.). O termo alegoria surgiu entre os gregos. Platão o emprega em A República, mas quem nos presenteia com a primeira conceituação, em Poética, é Aristóteles. Em seguida, Cícero, em De Oratore, e Quintiliano, no Institutio oratoriae. Definida, muitas vezes, como uma metáfora ampliada, ou, como dizia Quintiliano, no Institutio oratoriae, uma “metáfora continuada que mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo sentido”. Estes autores apresentam a alegoria como um sistema de metáforas, comparações, enigmas e contradições. Até a Idade Média, a alegoria foi utilizada como instrumento de defesa de muitos padres e teólogos, os quais recorriam às interpretações alegóricas da Bíblia para sobrepujar as anfibologias heréticas, visto que as doutrinas bíblicas recorrem, sob muitos aspectos, a princípios mitológicos. Hansen (2006, p. 29) comenta que os padres primitivos e medievais adaptam a definição de Quintiliano à interpretação alegórica da Bíblia. Por exemplo, Santo Agostinho: “O que é, pois, a alegoria senão o tropo [a partir] do qual outra coisa é dita?” (De trinitate, XV, 9, 15, PL, 42, 1068); Isidoro de Sevilha: “A alegoria é fala outra. Pois uma coisa soa e outra é entendida” (Etymologiae, I, 37,22); Beda, O Venerável: “A alegoria é o tropo com o qual se significa outra coisa que não (é) o que é dito” (De schematibus et tropis sacrae scripturae, II, 12, PL, 90, 184 A). A diferença está na aplicação: Quintiliano pensa a alegoria como ornamentação da oratória ou da poética; os padres, como revelação de mistérios divinos. Para Hansen (2006, p. 33): A alegoria subentende o projeto de afirmar uma presença in absentia – coisa que se exacerba, por exemplo, em artes dos séculos XVI e XVII hoje classificadas como “maneirismo” e “barroco”. Mais fortemente, a alegoria serve para demonstrar (ad demonstrandum), pois evidencia uma ubiquidade do significado ausente, que vai se presentificando nas “partes” e no seu encadeamento no enunciado. Hansen explica que a desmontagem da alegoria se faz com a remontagem de um ato de fala e de suas regras. Sendo assim, falar de modo verossímil implicava um dever e um direito dos homens livres, como ato e fato políticos, conforme se lê em Cícero. Horácio, por sua vez, teoriza o verossímil e a licença poética, que implicam a questão do próprio e do figurado em cada caso particular. O mesmo 26 Horácio não admite misturas, nem sequer como subgêneros. De acordo com Hansen (2006), a alegoria admite subdivisões retóricas que a classificam como maior ou menor clareza da relação sentido próprio/sentido figurado; no entanto, em função do verossímil, o critério primordial ainda é o da clareza, podendo ser chamada de Tota Allegoria, Permixta Apertis Allegoria e Mala Affectatio. Diz-se Tota Allegoria ou Alegoria Perfeita ou Enigma a alegoria fechada em si mesma, não se encontrando nela nenhuma marca lexical do sentido próprio representado. Chama-se também enigma, constituindo o efeito de recepção chamado obscuritas (obscuridade, hermetismo) que também pode ser defeito, do ponto de vista da prescrição implícita de clareza. Tota Allegoria célebre é a proposta que Jorge Luis Borges apresenta através dAs Kenningar, que, de acordo com o referido escritor, são frias aberrações que as histórias literárias registram acerca da poesia da Islândia. Elas “definem os objetos menos por sua figura que pelo seu uso. Costumam dar vida ao que tocam, sem prejuízo de inverter o procedimento quando seu tema é vivo” (BORGES, 1999, p. 408). Inicialmente, Borges apresenta um dos mais capciosos e intercalados versos na Saga de Grettir: O herói matou o filho de Mak; Houve tempestade de espadas e alimento de corvos. Borges decifra a adequada contraposição das duas alegorias mostrando uma verdade que até então não tinha sido revelada, pensando o leitor tratar-se apenas da intuição acerca de um combate e o que restou dele. Alimento de corvos é, no dizer do autor, um dos pré-estabelecidos sinônimos de cadáver, assim como tempestade de espadas o é de batalha. Tais equivalências correspondem As Kenningar. No mesmo texto são apresentados outros exemplos, dos quais é extraído o excerto: O aniquilador da prole dos gigantes Quebrou o forte bisão da pradaria da gaivota. Assim os deuses, enquanto o guardião do sino se lamentava, Destroçaram o falcão da margem. De pouco valeu o rei dos gregos Ao cavalo que corre por recifes. 27 Borges interpreta: “o aniquilador da prole dos gigantes” é o deus nórdico Thor; “o guardião do sino” é um ministro da fé cristã; o “rei dos gregos” é Jesus Cristo, pela vaga razão de ser esse um dos nomes do imperador de Constantinopla. “O forte bisão da pradaria da gaivota”, “o falcão da margem” e o “cavalo que corre por recifes”, não são três animais anômalos, trata-se de uma embarcação maltratada. Ao final, Borges deixa ao leitor a tradução dos versos, que é decepcionante. As Kenningar definem o objeto mais pelo seu emprego que pela sua figura, por isso são metáforas congeladas, basicamente funcionais. O autor menciona exemplos do tratado Edda Prosaica, do islandês do século XIII, Snorri Sturluson, como metáforas fósseis as quais estavam petrificadas no tempo. No índice, ele não excluiu As kenningar que já havia registrado e, ao compilá-las, afirma ter conhecido um prazer quase filatélico. Sendo assim, decifra: casa dos pássaros; casas do vento, o ar; flechas de mar, os arenques; porco do marulho, a baleia; árvore de assento, o banco; bosque da queixada, a barba; assembléia (sic) de espadas, tempestade de espadas, encontro das fontes, vôo (sic) de lanças, canção de lanças, festa de águias, chuva dos escudos vermelhos, festa de vikings, a batalha; força do arco, perna da omoplata, o braço; cisne sangrento, galo dos mortos, o abutre; sacudidor do freio, o cavalo; poste do elmo, penhasco dos ombros, castelo do corpo, a cabeça; maçã do peito, dura bolota do pensamento, o coração8. Esses são apenas alguns dos exemplos citados por Borges para mostrar que As kenningar são herméticas apenas para o leitor contemporâneo, a quem falta à tradição cultural do seu sentido literal. Desta forma, a alegoria atua como uma realidade linguística e ao mesmo tempo natural. “O estilo codificado por Snorri é a exasperação e quase a reductio ad absurdum de uma preferência comum a toda a literatura germânica: a das palavras compostas” (BORGES, 1999, p. 415). De acordo com Borges, As kenningar ficam em sofismas, em exercícios enganadores e lânguidos, elas impõem espanto e distanciam-nos do mundo. Podem motivar essa lúcida perplexidade, que é a honra da metafísica, sua recompensa e sua fonte. 8 O tratado de Snorri é exposto por Jorge Luis Borges nas páginas 409 a 413; não obstante, a nossa intenção é mostrar ao leitor, apenas alguns exemplos do referido tratado, no intuito de que este perceba As kenningar como metáforas congeladas e fósseis que estavam petrificadas no tempo. Sugerimos que o leitor veja os demais exemplos na obra completa deste autor. 28 Permixta Apertis Allegoria ou Alegoria Imperfeita, nela fica evidente a mistura do próprio ao figurado, por este motivo é considerada mais didática. É a alegoria em que pelo menos uma das partes do enunciado se encontra lexicalmente no nível do sentido próprio. É importante salientar que o predicado “imperfeita” não se refere a uma forma defeituosa ou ao mau funcionamento, e sim, ao grau de abertura da significação, quando comparada com o enigma ou Tota Allegoria. Como é considerada de entendimento mais fácil, a Permixta Apertis Allegoria muitas vezes se chama parábola – como as do Novo Testamento –, outras vezes fábula, quando abrange animais os quais são envolvidos na história e se apresentam de maneira alegórica, sendo considerada como sentido próprio a moral da história, mas também apólogo. Como exemplo de Permixta Apertis Allegoria tem-se o poema borgeano intitulado Cristo na cruz, o qual retrata o sofrimento de Cristo perante a crucificação. Cristo na cruz. Os pés tocam a terra. As três vigas são de igual altura. Cristo não está no meio. É o terceiro. A negra barba pende sobre o peito. O rosto não é o rosto das lâminas. É áspero e judeu. Não o vejo e o seguirei buscando até o dia último de meus passos pela terra. O homem violado sofre e cala. A coroa de espinhos o lastima. Não o alcança o escárnio da plebe que viu sua agonia tantas vezes. A sua ou a de outro. Dá no mesmo. Cristo na cruz. Desordenadamente pensa no reino que talvez o espera, pensa em uma mulher que não foi sua. Não lhe é dado ver a teologia, a indecifrável Trindade, os gnósticos, as catedrais, a navalha de Occam, a púrpura, a mitra, a liturgia, a conversão de Guthrum pela espada, a Inquisição, o sangue dos mártires, as atrozes Cruzadas, Joana D’Arc, o Vaticano que bendiz exércitos. Sabe que não é um deus e que é um homem que morre com o dia. Não lhe importa. Lhe importa o duro ferro dos cravos. Não é um romano. Não é um grego. Geme. Nos deixou esplêndidas metáforas e uma doutrina do perdão que pode anular o passado. (Essa sentença 29 foi escrita por um irlandês em um cárcere.) A alma busca o fim, com urgência. Escureceu um pouco. Já morreu. Anda uma mosca pela carne quieta. Que pode me servir que aquele homem tenha sofrido, se eu sofro agora? O sofrimento de Cristo na cruz do calvário enfatiza a relação homem/humanidade para dizer que, mesmo sabendo que derramaria seu sangue para redimir a humanidade de seus pecados, Cristo se dispôs a enfrentar a dor. Sentido próprio e sentido figurado perpassam o poema revelando as particularidades dos fatos narrados tendo em vista que, quando o poeta afirma que “Cristo não está no meio. É o terceiro”, também alude ao fato de que Ele ressuscitaria ao terceiro dia com o mesmo rosto áspero de judeu. Embora não veja a Cristo, o indivíduo continuará buscando até o dia último de seus passos pela Terra, onde sentido próprio e figurado coadunam para se referir aos acontecimentos descritos pela humanidade, mostrando que aquele homem que fora tão violado sofreu, gemeu, calou-se ante a coroa de espinhos deixando-nos muitas metáforas para explicar os mistérios da vida. Como pode esse homem sofrer e calar-se? Qual razão teria para não pronunciar uma única palavra? O mesmo homem que teria seus pecados perdoados por meio do sacrifício de Cristo é o que ignora o sofrimento daquele que veio para salvá-lo; entretanto, para ele, tanto faz Cristo ou qualquer outro homem sofrer. Ele ignora a desventura do próximo. “Cristo na cruz9. Desordenadamente pensa no reino que talvez o espera, pensa em uma mulher que não foi sua”. É possível que Cristo estivesse pensando mesmo nesse reino que o esperava ou numa mulher que não foi sua, mas também é preciso considerar que muito lhe fora tirado, privando-o de ver, como afirma Borges (1985, p. 11-12): [...] a teologia, a indecifrável Trindade, os gnósticos, as catedrais, a navalha de Occam, a púrpura, a mitra, a liturgia, a conversão de Guthrum pela espada, a Inquisição, o sangue dos mártires, as atrozes Cruzadas, Joana D’Arc, o Vaticano que bendiz exércitos. 9 Sugerimos ao leitor ver o poema também em língua espanhola. Por ser uma edição bilíngue, o livro Os conjurados o apresenta nas páginas 13-14. 30 Isso porque, apesar de ser Deus, ocupava a forma humana e deveria passar pelos infortúnios enfrentados pelo homem comum: dor, sofrimento, escárnio, morte. Esse homem-Deus nos deixa como exemplo “[...] esplêndidas metáforas e uma doutrina do perdão que pode anular o passado”, mostrando à humanidade que, uma vez liberta de seus pecados, não está isenta de cometê-los outras vezes e, como não há indivíduo perfeito, todos merecem perdão. Embora a morte de Cristo seja descrita como algo inevitável, o poeta interroga-se: “Que pode me servir que aquele homem tenha sofrido, se eu sofro agora?” Por que tanto sacrifício se a humanidade continua perecendo? Como se pode notar ao longo do poema, a maneira enigmática com que se apresenta a junção sentido próprio/sentido figurado evidencia a mistura do próprio ao figurado e a abertura da significação, quando cotejada com o enigma ou Tota Allegoria. Mala Affectatio ou Inconsequentia Rerum ou Incoerência, nela evidencia-se a incongruência, haja vista ocorrer uma espécie de contrariedade no gênero, não se respeitando as diferenças específicas as quais são condição de um conceito proporcionado ou mesmo da figuração ordenada. A exemplo disso, Lausberg menciona um trecho de Camões “que apenas nos meus olhos ponho freio”, mostrando que, uma vez que Camões estabelece uma relação entre olhos e freios, produz um sentido tradicionalmente incompossível: “frear os olhos”, conforme explicita Hansen (2006, p. 67). A Mala Affectatio mostra o arbítrio de sua convenção ao permitir substituir um sentido próprio por um figurado, aproximando coisas muito distantes. Observando-se As kenningar, vemos que Borges faz uso desta alegoria ao mencionar maçã do peito, dura bolota do pensamento, quando se refere ao coração; ogro do elmo, querido alimentador dos lobos, quando menciona o machado; sangue dos penhascos, terra das redes, fazendo menção ao rio; irmã da lua, fogo do ar, quando se refere ao sol; crescimento dos homens, animação das cabras, para se referir ao verão. Para Hansen (2006, p. 68), tais exemplos corroboram com a Mala Affectatio justamente por evidenciar a substituição livre e marcar a versatilidade com que as palavras são expostas, evitando-se a alegoria incoerente, uma vez que o procedimento se automatiza através da naturalidade mimética, prescrita como decorosa. 31 Borges apresenta a alegoria nAs kenningar não como um defeito de estilo e sim como um modo de composição justaposto. A Inconsequentia Rerum (inconsequência das coisas) produz hibridismos justapondo determinações inadequadas e, “embora o procedimento de figuração seja posto a funcionar, não há especificações ou especificidades na combinação de termos, o que embaraça ou mesmo impede a continuidade na compreensão do conceito representado” (HANSEN, 2006, p. 67). Quando examinamos atentamente o campo alegórico percebemos que a alegoria vai se tornando algo enigmático, apontando “[...] o próprio cerne da obra de arte e de sua interpretação” (KOTHE, 1986, p. 7). O poema São os rios, de Jorge Luis Borges, permite-nos pensar o alegórico e a retórica a partir de um “campo minado” por interpretações várias do que seja esse “dizer o outro” alegórico: Somos o tempo. Somos a famosa parábola de Heráclito o Obscuro. Somos a água, não o diamante duro, a que se perde, não a que repousa. Somos o rio e somos aquele grego que se olha no rio. Seu semblante muda na água do espelho mutante, no cristal que muda como o fogo. Somos o vão rio prefixado, rumo a seu mar. Pela sombra cercado. Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa. A memória não cunha sua moeda. E no entanto há algo que se queda e no entanto há algo que se queixa. Homem, tempo e água são eternizados revelando a importância que ambos exercem, mas também simbolizando suas fragilidades diante das circunstâncias da vida. Esse homem, análogo à água, não surge como o diamante duro e sim como a água que se perde rio afora, vulnerável aos acontecimentos. É um ser que, assim como a água, muda incessantemente. Não se trata de um sujeito que, como o poço, permanece imóvel, mas alguém capaz de se olhar no rio e contemplar sua própria beleza, semelhante ao feito de Narciso, percebendo-se ora belo, ora jovem, ora velho, como se estivesse diante de um espelho mutante ou de um cristal que muda com o fogo, haja vista a água permitir o reflexo de sua imagem possibilitando-o vislumbrar-se segundo a sua própria percepção. 32 Água e fogo são símbolos contrários não apenas na aparência como também na transformação que exercem. Do mesmo modo água e rio são cercados pela sombra da morte onde tudo lhes diz adeus, tudo os deixa; no entanto, o curso das coisas sempre é armazenado, pois há uma memória que evidencia a transformação desse rio-homem durante o tempo em que permanece ativo tendo a certeza de que tudo muda, mas a essência permanece. Assim como o rio prefixado caminha para o mar, o homem parte em busca de um ambiente onde possa se sentir seguro, porque este passa a representar um lugar de amparo por meio do qual ele se sente protegido. Esse “cercado” o qual lhe oferece segurança pode se transformar num mar bravio deixando-o à deriva: “Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa”. Isso o faz pensar que a memória o trai e que já não pode cunhar sua moeda, uma vez que “[...] há algo que se queda e há algo que se queixa”. Esse homem é capaz de reconhecer sua capacidade e disposição para enfrentar os fatos e, assim como água e rio, está propenso a mudanças de curso, pois não permanece preso a lugar algum. Ele sabe que a qualquer momento tudo pode lhe dizer adeus deixando-o à mercê do tempo o qual passa como se fosse a água do rio que corre sem saber qual será o seu destino, obedecendo ao percurso desse rio infindo. O poema borgeano remete-nos à retórica antiga reiterando nossa concepção a partir do momento em que enfatiza ser a alegoria um ornatus discursivo, mas também metáfora do pensamento a partir de uma relação de semelhança. Essa, parte da relação entre dois elementos de sentido para expressar algo abstrato, semelhantemente à metáfora. No dizer dos autores estudados, o que distingue alegoria de metáfora é apenas o fato de a primeira apoiar-se na semelhança entre duas palavras ou situações diversas, enquanto a segunda, o significante pode ser alterado, desde que se mantenha a relação de verossimilhança, o que confere ao leitor a necessidade de conhecer a obra e seus componentes para que possa compreender o novo e o dito, podendo estabelecer a relação de (re)significação do discurso. Compreender a alegoria presente no poema São os rios dependerá da leitura intertextual que permitirá identificar o sentido abstrato como sendo de caráter moral, como algo real, sem fazer uso de plurissignificados. A alegoria necessita de certa imobilidade de sentido, sob pena de perder a moral que se procura. Sendo assim, 33 distingue-se do símbolo pelo seu caráter moral e por tomar a realidade representada elemento a elemento e não no seu conjunto. Faz-se necessário que as abstrações que determinam o sentido alegórico sejam compreensíveis, mesmo sabendo-se que este é mimético, da ordem da representação, funcionando por semelhança. “A alegoria dos poetas é uma maneira de falar e escrever, ao passo que a alegoria dos teólogos, como interpretação, é uma forma de entender e decifrar” (HANSEN, 2006, p. 8). A alegoria expressiva é tecida de maneira intencional atendendo à própria estrutura da obra de ficção, o que justifica o emprego do verbo grego állegorein, que significa “falar alegoricamente”, “interpretar alegoricamente”. É concebível que a alegoria perpasse o tempo como um recurso de expressão o qual serve de instrumento e exemplo à reflexão acerca da realidade social. O entendimento das possibilidades alegóricas poderá ser ampliado, desde que esteja a serviço de um leitor criativo. Por este motivo, “a metáfora também pode ser entendida como imagem, quando se pretender destacar os seus aspectos ‘plásticos’ e símbolo, quando caracterizar sua recorrência” (NETTO, 1974, p. 12). Em contrapartida, Hansen (2006, p. 9) acredita que: [...] frente a um texto alegórico, o leitor tem dupla opção: analisar os procedimentos formais que produzem a significação figurada, lendo-a apenas como convenção linguística que ornamenta um discurso próprio, ou analisar a significação figurada nela pesquisando seu sentido primeiro, tido como preexistente nas coisas, nos homens e nos acontecimentos e, assim, revelado na alegoria. Sendo a alegoria estática ou dinâmica, descritiva ou narrativa, clara ou obscura, atua como um procedimento intencional do autor de acordo com o gênero do discurso e a intenção dele para com o leitor. Para Goethe (1992) existem dois procedimentos retóricos: a simbólica [die symbolik], “que transforma o fenômeno em ideia10, a ideia em imagem, e de tal modo que na imagem a ideia permanece sempre infinitamente eficaz e inatingível e, ainda que pronunciada em todas as línguas, continuaria a ser indizível” e a alegoria, “que transforma o fenômeno num conceito, o conceito em imagem, mas de tal modo que na imagem o conceito permanece limitado e susceptível de ser completamente 10 Embora a edição não esteja atualizada conforme o novo acordo ortográfico, julgamos pertinente fazer a atualização das palavras para evitar o excesso de repetição da expressão latina sic, usada para indicar que há desvio de grafia. 34 apreendido e usado, e pronto para ser expresso por essa mesma imagem” (GOETHE, 1992, p. 188-189). Para este autor, o símbolo é dotado de maior magnitude e significação. Pensamento este que atende aos preceitos românticos, pois vê a alegoria somente como uma tradução de ideias abstratas, ao passo que o símbolo dá conta das imagens poéticas construindo um sentido final. Em Ursprung des deutschen Trauerspiel (Origem do Drama Barroco Alemão), Walter Benjamin (1984) percebe a alegoria como uma expressão da melancolia cujo olhar melancólico deixa escapar a vida para revelar a morte estando preso à eternidade. O autor ainda postula que o narrador pode ser o jovem que nos permite aproximar de lugares distantes e exóticos, ou o velho que conta histórias antigas; cabe ao leitor percebê-los. Walter Benjamin compreende a alegoria enquanto categoria estética, visto que o símbolo – embora a tradição romântica mostre o contrário – não dá conta disso. Para este autor, o conceito autêntico de símbolo está “situado na esfera da teologia, e não teria nunca irradiado na filosofia do belo essa penumbra sentimental que desde o início do romantismo tem se tornado cada vez mais densa” (BENJAMIN, 1984, p. 182). O autor sugere que os românticos veem o símbolo teológico como uma relação simples entre manifestação e essência. Todavia, é da simbologia de Friedrich Creuzer e da concepção de símbolo e alegoria de Joseph Görres que Benjamin extrai os pressupostos da sua teoria acerca da alegoria. Em síntese, o símbolo apresenta uma plasticidade e uma totalidade momentâneas; nele, o conceito pode ser visto em si mesmo, de forma imediata; ele é a própria ideia em sua forma sensível. Já a alegoria, seria apenas um conceito geral ou ideia, que dela estaria distinta. Nestes termos, para Creuzer (apud BENJAMIN, 1984, p. 185), a alegoria consiste em uma substituição de significação, estando ausente, pois o elemento “momentâneo, o total, o insondável quanto à origem e o necessário” conduz ao instantâneo que se apresenta no símbolo. Disto resulta o símbolo como ser e a alegoria como significante. Em Creuzer ainda encontramos uma comparação entre símbolo e alegoria que se pode considerar atual, visto que ele explicita que a diferença entre símbolo e alegoria está centrada no fato de que esta última significa apenas um conceito geral 35 ou uma ideia, que dela permanece distinta; a primeira é a ideia em sua forma sensível, corpórea. No caso da alegoria, há um processo de substituição, no caso do símbolo, o conceito baixa no mundo físico e pode ser visto, na imagem, em si mesmo, e de forma imediata (CREUZER apud BENJAMIN, 1984, p. 187). Creuzer reitera a discussão afirmando ser necessário procurar a distinção que existe entre alegoria e símbolo a partir do caráter momentâneo que não existe na alegoria. No símbolo há uma totalidade momentânea, uma progressão que aparece numa sequência de momentos. Eis o porquê de a alegoria-signo compreender em si o mito. Görres, não concordando com tal distinção, apresenta símbolo e alegoria sob o prisma das ideias, permitindo assim, redimensionar a aquisição de ambas as informações. Para Görres (apud BENJAMIN, 1984, p. 188-189), o símbolo é o signo das ideias e a alegoria a sua cópia; por isso o símbolo é sempre autárquico, permanece sempre igual a si mesmo, é irredutível. Já a alegoria, como cópia das ideias, acompanha o fluxo do tempo, por este motivo está sempre em constante progressão. Benjamin entende que Görres retifica a formulação de Creuzer em relação à alegoria, visto que não valoriza o modo de expressão alegórico. Ele define símbolo e alegoria e afirma: [...] o símbolo recebe o sentido em seu interior oculto, por assim dizer, verdejante. Por outro lado, a alegoria não está livre de uma dialética correspondente, e a calma contemplativa, com que ela mergulha no abismo que separa o Ser visual e a Significação, nada tem da auto-suficiência (sic) desinteressada que caracteriza intenção significativa, e com a qual ela tem afinidades aparentes (BENJAMIN, 1984, p. 187-188). Benjamin vislumbra o alegórico como algo que se destinava a oferecer um fundo escuro para o qual o simbólico iria realçar-se. A alegoria trava, por assim dizer, uma luta entre a forma antiga e a atual como meio de sobreviver, haja vista que o pensamento simbólico do século XVIII era alheio à expressão alegórica original e as tentativas – ainda que isoladas – de tratar o tema eram desprovidas de qualquer valor investigativo e, por conseguinte, tornavam-se antagônicas. Para o referido autor, “o amplo horizonte secular e histórico que Görres e Creuzer atribuem à intenção alegórica, enquanto história natural, pré-história da significação ou da intenção, é de natureza dialética” (BENJAMIN, 1984, p. 182). Por 36 esta razão, o estudo da forma do drama barroco revela-nos a ferocidade do movimento dialético no interior dos abismos alegóricos. A relação que se estabelece entre símbolo e alegoria é persuasiva e esquemática, uma vez que a alegoria procura o particular a partir do universal; assim, o particular somente vale como exemplo do universal. Benjamin assevera que grandes artistas e teóricos como Yeats, por exemplo, mantêm o ponto de vista de que a alegoria é uma relação convencional entre uma imagem ilustrativa e sua significação. De modo geral, os autores têm um conhecimento muito vago da alegoria das coisas “incorporada na obra emblemática do Barroco, em sua forma literária e em sua forma gráfica” (BENJAMIN, 1984, p. 184). É mister que a alegoria seja vista como uma forma de expressão, como a linguagem e como a escrita, em virtude de esta também assumir a forma de convenção da escrita. A alegoria do século XVII é a expressão da convenção, por este motivo “era a expressão da autoridade, secreta em vista da dignidade de sua origem, pública em vista de sua esfera de validade”11, ambígua e múltipla de significados, traço fundamental da alegoria. Segundo Benjamin (1984, p. 183), Goethe compreende a alegoria como uma reflexão negativa, uma vez que “existe uma grande diferença [...] entre procurar o particular a partir do universal, e ver no particular o universal [...]”. Já para Schopenhauer12, “se o objetivo de toda arte é a comunicação da ideia apreendida [...]; não se pode aprovar a prática explícita e proposital de usar uma obra de arte para a expressão de um conceito: é o caso da alegoria [...]”. Se uma imagem alegórica possui valor artístico deve ser distinto e não depende do valor que venha a ter a alegoria. A imagem alegórica pode provocar uma impressão viva no espírito, atuando como uma relação de combinação entre uma imagem ilustrativa e seu significado, a exemplo do poema borgeano, São os rios13. Somos o tempo. [...] Somos a água, não o diamante duro, a que se perde, não a que repousa. Somos o rio [...]. Somos o vão rio prefixado, rumo a seu mar. 11 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 197. 12 Ibid., p. 183. 13 “Somos el tiempo. [...]Somos el agua, no el diamante duro, la que se pierde, no la que reposa. Somos el río [...].Somos el vano río prefijado, rumbo a su mar”. BORGES, Jorge Luis. “Son los rios”. In: “Los conjurados”. Obras completas, vol.2. Buenos Aires: Emecé, 1989. 37 Podemos perceber que a alegoria não é apenas um modo de ilustração, mas também uma forma de expressão, tal qual a linguagem e a escrita. De acordo com Benjamin (1984), a alegoria foi encoberta pelo veredicto do preconceito classicista que vê nela somente a forma ilustrativa e não percebe que há formas de expressão. O autor ainda afirma que, no símbolo, com a transfiguração do declínio, o rosto metamorfoseado da natureza se revela fugazmente à luz da salvação, a alegoria revela ao observador a facies hippocratica da história como protoimagem petrificada. Desde o início aparece num rosto e não numa caveira. Como não há nada de humano em tal figura, nada de simbólico, a figura traduz, historicamente, a biografia de um indivíduo em toda a sua essência, mostrando, sob a forma de um enigma, a história da humanidade difundida através dos sofrimentos que são significativos apenas nos episódios do declínio. Desta forma, a alegoria está para a natureza, assim como a natureza está para a alegoria, visto que esta nasceu através da combinação entre natureza e história. Logo, a imagem é pensamento e o pensamento se traduz em imagem, notadamente porque “a alegoria é uma escrita por imagens em que a fragmentação constitutiva atende tanto à exigência de um conhecimento imediato quanto à natureza do pensamento” (MURICY, 1998, p. 21). É importante destacar que alguns teóricos julgam a alegoria algo próprio das artes, cujo sentido é adquirido via Eternidade. Conforme Lukács (apud HANSEN, 2006, p. 21): Tal concepção significa que o artista contemporâneo é formalista, quando alegorizante, pois opera com uma forma vazia a que não mais corresponde nenhuma transcendência num mundo de fragmentos e mercadorias ou, ainda, porque propõe reacionariamente a transcendência num mundo em que ela é ideologia. Essa concepção a que Lukács se refere não pode ser generalizada, aplica-se tão somente à alegoria medieval. O autor explica que não se pode falar em alegoria sem antes sublinhar a diferença histórica, ambas são de fundamental importância uma vez que a alegoria é um modo inferior e superado de formar, sendo própria das artes da Transcendência, ou seja, das artes cujo sentido está na Eternidade. Lukács apresenta a alegoria de maneira generalizada, posto que põe em paralelo o histórico e o medieval, onde o historicismo leva-o a apresentar a alegoria como algo datado cuja temporalidade é generalizada para todos os tempos, mas “a recusa de um 38 mundo não significa, necessariamente, recusa do mundo” (HANSEN, 2006, p. 25- 26). Kothe (1986) corrobora com o pensamento de Lukács ao afirmar através de uma fábula, que na Roma antiga os escravos se rebelaram a ponto de se retirarem da cidade, Menenius Agripa em conversa com eles, convenceu-os a voltar e continuar a ser bons escravos. Mas, para que a conversa de Agripa surtisse efeito positivo, foi preciso inventar a seguinte fábula: Um dia, os membros do corpo resolveram se rebelar contra o estômago, sob a alegação de que este só queria ser levado para lá e para cá, ser bem tratado, e ficar comendo o que eles produziam sem ele mesmo nada produzir. Tendo sido o estômago deixado então sem comida, a consequência óbvia foi o enfraquecimento geral do organismo (inclusive dos braços e pernas, naturalmente). Depreende-se desta fábula não somente a ideia alegórica que a classe dominante exerce sobre a dominada (o estômago representa alegoricamente a classe dominante e os membros representam alegoricamente a classe dominada), mas também que a alegoria transforma o abstrato em concreto. Havia a necessidade de que os escravos voltassem ao trabalho e, se eles fossem intimidados a partir de algo que realmente precisassem, o efeito certamente seria positivo. Menenius Agripa construiu uma alegoria que fê-los mudar de tal modo que atendeu a ambas as partes, os escravos (classe dominada) passaram a ter comida, assim como a classe dominante passou a ter novamente os serviços, reafirmando-se a legitimação dos interesses de quem detinha o poder. Na referida fábula, a alegoria passa a existir na perspectiva de uma linguagem marcadamente convencional, onde há repetição continuada das mesmas ações: o dominante ordena e o dominado obedece. O signo alegórico apresenta certo caráter icônico o qual indica o seu significado em seu significante transcendendo à convencionalidade (KOTHE, 1986, p. 16) e, a partir do momento em que o leitor percebe a relação estômago/membros, dá-lhes o sentido alegórico; logo, a linguagem segmentada deixa de estar a serviço da comunicação e passa a afirmar sua grandeza com outras formas de alegorias, formando as inter-relações entre a linguagem e a escrita, fundando filosoficamente o alegórico. Partindo deste princípio, no momento em que se faz uma leitura alegórica da própria alegoria chega-se à conclusão de que o que antes parecia velho de repente 39 se torna novo. Evidentemente que o ponto máximo da alegoria não é ela própria e sim o que se pode depreender da realidade; ou seja, a alegoria contribui enquanto parte significante e significativa para que se compreenda algo real, que se encontra em um dado contexto, tornando-se uma prática social. Conforme Benjamin (1984, p. 205): As alegorias envelhecem, porque sua tendência é provocar a estupefação. Se o objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, ela o priva de sua vida, a coisa jaz como se estivesse morta, mas segura por toda a eternidade, entregue incondicionalmente ao alegorista, exposta a seu bel-prazer. Vale dizer, o objeto é incapaz, a partir desse momento, de ter uma significação, de irradiar um sentido; ele só dispõe de uma significação, a que lhe é atribuída pelo alegorista. Ele a coloca dentro de si, e se apropria dela, não num sentido psicológico, mas ontológico. Sob este prisma, dizer o que é a alegoria seria limitá-la, determiná-la. Limitar-se-ia a alegoria a algo abstrato e desprovido de significado, tornando-a nada, vazia. Ela deixaria de existir. Por esta razão, não se pode cometer o “erro” de defini-la. Melhor do que definir a alegoria é oferecer possibilidades para que seja vista como algo perene e universal, cuja linguagem convencional universalizante não a restrinja a um significado único. Quando se apresenta a alegoria como algo abstrato o qual se transforma em concreto, em determinado contexto social, não significa afirmar que o elemento alegorizante seja unicamente isto. Na realidade, o que se deseja enfatizar é o que a alegoria significa para um dado grupo social e como este recebe tal “definição”. Ademais, conforme Kothe (1986, p. 38), “a formação e formulação de alegorias deve, por sua vez, conseguir transformar experiências individuais concretas em experiência coletiva universalizante”. Mas a alegoria, assim como o símbolo, nunca será capaz de abranger nem de expressar toda a ideia que dela se manifesta. Retomemos, pois, o poema Cristo na cruz: Cristo na cruz. Os pés tocam a terra. As três vigas são de igual altura. Cristo não está no meio. É o terceiro. [...] Não o vejo e o seguirei buscando até o dia último de meus passos pela terra. O homem violado sofre e cala. A coroa de espinhos o lastima. [...] Lhe importa o duro ferro dos cravos. A alma busca o fim, com urgência. 40 Escureceu um pouco. Já morreu. Há uma busca insistente desse outro como forma de mostrar que a alegoria se constrói a partir desse ir e vir, desse movimento que ora constrói, ora destrói, ora desconstrói para reconstruir em seguida. Existe não só a necessidade de ver esse outro, como também de presentificá-Lo para impedir que o esperado aconteça. Substitui-se a objetividade pela subjetividade com a finalidade de se chegar a uma visão totalizadora passando a apresentar, no plano do espírito, uma espécie de luta onde deve vencer, talvez, não o melhor, e sim o mais audaz. Segundo Benjamin (1984) tem-se a dialética da convenção como um correlato formal da dialética religiosa onde a alegoria atua não como convenção da expressão, mas como expressão da convenção sem, contudo, recobrir o conteúdo de maneira adequada, haja vista faltar-lhe inclinação para o íntimo procurando suprir tal lacuna através do enigmático e do ocultismo. A alegoria trabalha com o pensamento e com os fragmentos significativos acumulando-os para formar uma nova construção de saberes, sem unificar os elementos fragmentários em sua totalidade. Há um olhar melancólico que surge apoiado na fragilidade humana, mas também existe uma preocupação com a salvação das coisas na e para a Eternidade; isto caracteriza a recorrência da alegoria, tendo em vista que é nela que o alegorista vislumbra a salvação das coisas; neste caso, o objeto depende da ação do alegorista para apresentar novos sentidos, pois, ao ser descontextualizado, transforma-se em algo sem sentido e perde a capacidade de significar por si mesmo. A alegoria remete à nostalgia do paraíso perdido partindo da totalidade para a singularidade. Ela “é ao mesmo tempo o sinal de queda e a promessa de reconciliação com o Absoluto, com sua redenção”14. Portanto, a ambiguidade jaz sobre a tentativa de reconhecer no profano os resquícios do Sagrado e a certeza de que ele prevalecerá. O conflito entre o profano e o sagrado se estabelece a partir da compreensão da dialética enquanto alegoria, onde o profano é, ao mesmo tempo, exaltado e desvalorizado para fundir-se com a depreciação do mundo aparente, representando assim, a transitoriedade da vida. De acordo com Benjamin (1984, p. 198), a alegoria parte do pressuposto de que na esfera da intenção alegórica “a imagem é fragmento, ruína. Sua beleza 14 Cf. Marcelo de Andrade Pereira. Barroco, símbolo e alegoria em Walter Benjamin. Disponível em: . 41 simbólica se evapora, quando tocada pelo saber divino. O falso brilho da totalidade se extingue. Pois o eidos se apaga, o símile se dissolve, o cosmo interior se resseca”; contudo, ainda há uma intuição que conduz à certeza de que o divino prevalecerá. Existe uma perda que condiciona o objeto e sua representação, remetendo o pensamento ao resgate insistente dessa ordem que se perdeu no tempo e também o resgate dessa ordem simbólica distinta da que se apresenta no profano, refletindo o inacabado e o efêmero de todos os acontecimentos na alegoria. Para Schlegel (apud BENJAMIN, 1984, p. 236) “toda beleza é alegoria” assim como “toda beleza é símbolo”, isto porque a alegoria ultrapassa os limites da arte e assume o papel de resgatar ruínas, de criticar a linearidade remetendo à ideia de utilização de uma linguagem acessível a todos, de uma linguagem pública que conduz a um nível de significação o qual está inscrito com os caracteres da transitoriedade, denunciando essa “falsa aparência de totalidade”, visto que fala uma “coisa” e significa “outra”, remetendo sempre à ideia de finitude, de morte, pois a alegoria atua como condensação de alegorias cujo significado comum é a morte do dito para surgir o não dito, havendo a construção, desconstrução e reconstrução daquilo que o alegorista procura salvar. O alegorista procura “extrair” os acontecimentos de seu contexto e salvá-los por meio da significação, visto que assim eles estariam seguros in aeternum. A alegoria pode dar significação àquilo que outrora foi desvalorizado, fazendo florescer no cenário do desmoronamento e demonstrando uma ligação entre significação e historicidade, morte e temporalidade. Para Gagnebin (2007), Benjamin empreende a reabilitação da alegoria como restauração da temporalidade e da historicidade em oposição à ideia de eternidade, personificada pelo símbolo. A alegoria é uma sequência de momentos que acarretam em um envelhecimento histórico instalando-se onde se percebe a coexistência entre o transitório e o eterno. A interpretação alegórica demonstra que a continuidade é passível de ruptura; ela é a expressão de desencanto que desautoriza uma visão ingênua do progresso. De acordo com Benjamin (1984), a alegoria analisa a quebra, a ruptura, a ruína e visa a redimir o passado entenebrecido pelo ideal burguês do progresso, cuja fragmentação e carência de totalidade aproximam-se do caráter crítico com o fito de mostrar as ruínas de um passado oprimido, desmascarando as totalizações operadas pelo dominador: a burguesia. Mas também denuncia a falsidade do 42 símbolo como pretensão a uma totalidade, diante da ação corrosiva do tempo deslocando-se da arte para a política, abstraindo um caráter político. Para Szondi (apud GAGNEBIN, 2007, p. 31), na tradição filosófica clássica, a alegoria sempre foi depreciada pela sua historicidade e pela sua arbitrariedade. “A interpretação alegórica nasce da distância histórica que separa os leitores do texto literal”. A alegoria se desenvolve como uma “ciência histórica” que visa a observar os escritos do passado conservando a fidelidade e identidade dos documentos. Não há a busca de um “núcleo de sentido eterno cujas formas de manifestação, e só elas, mudariam” (GAGNEBIN, 2007, p. 33). Desta feita, o novo pensamento científico à interpretação alegórica não oferece uma relação de sentido entre texto e imagem; todavia, como é nascida da necessidade de conciliar o conteúdo do texto canônico com a moral e a razão, não tem condições de se estabelecer enquanto elemento de ligação. É esta arbitrariedade que irá instituir o pensamento alegórico no hiato de significante/significado, sagrado/profano, céu/inferno cujo sentido verdadeiro nunca é alcançado, visto que a alegoria não faz fundir significante/significado; ela os separa. Muricy (1998, p. 160) reitera a concepção de Benjamin ao afirma que este autor emprega várias fórmulas para se referir ao conceito equivocado de símbolo “conceito inautêntico, distorcido, uso vulgar do termo, uso fraudulento do simbólico, extravagância romântica”. Isto posto como forma de apresentar e propor o conceito de alegoria – que antecede à atualidade – como categoria crítica indispensável à compreensão dos fenômenos estéticos, sendo a alegoria esse “fundo escuro contra o qual o mundo simbólico pudesse realçar-se” (MURICY, 1998, p. 162). Desta forma, a alegoria não surge para deturpar, mas para firmar-se e reafirmar-se como categoria que se sobrepõe ao simbólico. A autora ainda afirma que no drama barroco (Trauerspiel) Benjamin traz a noção de alegoria como aspecto da descontinuidade, mas também como ideia que oferece enquadramentos diversos no domínio, sobretudo, da filosofia. O que Benjamin pretende é “a partir dos textos originais barrocos, construir uma teoria da alegoria, preocupada em apresentá-la como uma forma de expressão, como a linguagem e como a escrita, e não como mera ilustração” (MURICY, 1998, p. 163). No dizer de Muricy, para Benjamin a alegoria é visual, imagem e fragmentação da escrita, uma vez que ele observa que a dialética da alegoria não foi 43 compreendida pela estética e cita como exemplo para tal incompreensão o neokantiano Hermann Cohen sobre a ambiguidade da expressão alegoria. Enquadra-se no mesmo contexto, Carl Horst, que a percebe como uma transgressão inconveniente dos gêneros. Benjamin ainda analisa a alegoria segundo a visão de Ritter e conclui que este teórico compreende a verdadeira concepção da alegoria, no instante em que afirma que toda imagem é sempre imagem escrita e que “todas as artes plásticas – arquitetura, escultura, pintura – pertencem à esfera do que está escrito, transcrito, pós-escrito” (GRYPHIUS apud BENJAMIN, 1984, p. 235). A alegoria é a chave para a compreensão da estética. E, ainda que não tenhamos uma imagem transparente do objeto/sujeito, podemos vislumbrar a simplicidade e figuração que desnudam o espaço, a alma e a situação por ele vivenciada, remetendo a uma alegoria retórica que representa uma ocorrência em palavras e outra em sentido, algo que difere do sentido das palavras e que também depende do outro para decifrar o tropo da verossimilhança alegórica cujos sentidos são apresentados de duas formas: o literal, que é sem figuração, implícito no tropo; e o figurado, que é o próprio tropo para quem o lê, havendo a mesclagem de ambos os sentidos (HANSEN, 2006). Sendo a alegoria uma imagem que se bifurca (imagens-movimento-tempo), surge representando não apenas o alegórico, mas também aspectos do que está oculto. Em Borges, por exemplo, tem-se o universo enigmático como forma de traduzir o alegórico, revelando algo que não se deixa perceber claramente. Para este autor, a alegoria funciona como essa junção de sentidos, há uma transposição contínua entre próprio e figurado que prevê uma espacialização a qual oscila entre o inteligível (próprio) e o sensível (figurado), que é característica de sua obra. Definida como uma metáfora ampliada, a alegoria se faz presente nos textos borgeanos de forma bastante acentuada, pois é vista como um sistema de metáforas que se amplia partindo de termos isolados para expressões ou situações completas que expressam, inclusive, o dualismo alegórico luz/trevas, bom/mau, vida/morte o qual se reporta a situações que giram em torno de sentidos duplos ou figurados cujos limites textuais apontam para um caráter moral, onde o sentido inteligível e o figurado aparecem implícitos no tom com que Borges apresenta os contos e que depende da decifração do leitor, por vias afetivas, racionais ou lógicas as quais perpassam também o campo metafórico, consentindo-lhe uma aproximação 44 de lugares distantes, exóticos e, por vezes, possibilitando-lhe uma identidade ou identificação que designa uma distância em relação à sua própria origem, permitindo ao leitor renunciar à nostalgia e ao desejo de coincidência, mas também fixar a sua linguagem no vazio desta diferença temporal. Os contos A escrita do Deus, Os dois reis e os dois labirintos e A loteria em Babilônia, elencados para compor a trilogia da alegoria, revelar-se-ão enquanto ornatus discursivo, como metáfora do pensamento a partir de uma relação de semelhança, mas também como protoimagens as quais assumem um contexto que possibilita ao leitor pensar que está vivendo o que na verdade está sendo produzido mentalmente. Isto porque, será “prisioneiro” do seu pensamento, reportando-se à temporalização (passado, presente, futuro) como recorrência de fuga. Imaginar-se-á no passado para entender o presente, em busca de soluções para o futuro e almejará encontrar as respostas decifrando os segredos da alegoria. 2.1 A ESCRITALEGORIA DO DEUS De acordo com Medeiros (2003/2004), o conto A escrita do deus narra a descoberta e decifração de um texto da cultura maia. O autor menciona que Borges conhecia essa cultura e, mais do que isto, estabelece neste conto uma relação com o poema épico maia-quiché Popol Vuh. A narrativa é contada na primeira pessoa do singular onde Tzinacan, personagem central, luta por decifrar a “escrita mágica” do deus, pois quem a compreender se torna, instantaneamente, todo-poderoso; uma crença que origina a busca de decifrar a escritura do deus. A alegoria se apresenta no conto através da história de Tzinacan15, mago da pirâmide de Qaholom, a qual Pedro de Alvarado incendiou. O cárcere é profundo e as pedras formam algo menor que um círculo máximo, fato que agrava os sentimentos de opressão e grandeza deixando o prisioneiro muito oprimido. Um muro corta-o pelo meio, e apesar de altíssimo, não toca a parte superior da 15 De acordo com Medeiros (2003/2004, p. 89), na última parte do poema épico Popol Vuh, menciona-se uma figura histórica chamada Tzinacan, líder político e religioso, que a “Escrita do deus” incorpora. Além disso, o termo Qaholom, “gerador” em maia-quiché, representa, na primeira parte do referido poema, um espírito a quem se atribui a criação da Terra, a qual foi depois habitada por seres que receberam o nome de jaguar: Jaguar Veado, Jaguar Quiché, Jaguar Noite... O jaguar, animal que sugere na mitologia ameríndia, forças mágicas, também serve, segundo Edmonson, para denominar o poder dos feiticeiros, além de simbolizar, conforme Bell-Villada, as glórias lendárias dos maias. 45 abóbada; de um lado está Tzinacan, de outro, o jaguar que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. No nível do chão uma janela ampla corta o muro central. Ao meio dia o alçapão é aberto por um carcereiro que foi exaurido pela longevidade do tempo. Ele manobra uma roldana de ferro e baixa, na ponta de um cordel, pedaços de carne e um cântaro com água, que serve de alimento. No instante em que a luz incide na abóbada, o mago pode observar o jaguar. Quando chegou, Tzinacan podia caminhar pela prisão, já velho, só espera pela morte – o fim que lhe destinam os deuses. Matava suas vítimas com uma profunda faca de pedernal. Abria-lhes o peito. Agora, não podia levantar-se do pó. Na véspera do incêndio da pirâmide de Qaholom foi castigado pelos homens com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante dos seus olhos, o ídolo do deus, que o protegeu durante o tormento; laceraram-no, quebraram-no, deformaram-no. Quando Tzinacan acordou estava no cárcere, de onde, supõe-se, não sairia mais com vida. No intuito de aproveitar melhor o tempo, o mago procurou recordar tudo o que sabia acerca da escrita do deus; desperdiçou noites inteiras tentando lembrar a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Os anos foram passando e aos poucos o prisioneiro foi se familiarizando e aceitando o que já era dele: a prisão. No momento em que pensou estar lembrando algo, sentiu uma agitação no sangue. Lembrou-se de uma das tradições do deus que, prevendo que no fim dos tempos muitas desventuras e ruínas iriam ocorrer, escreveu uma sentença mágica capaz de conjurar esses males. Escreveu-a de modo que alcançasse as mais distantes gerações e que não a tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres; mas consta que perdura, secreta, para que um escolhido a leia. Tzinacan começa a pensar que era o fim dos tempos e, como último sacerdote, o destino reservara-lhe o privilégio de intuir essa escrita. Apesar de estar na prisão suas esperanças não cessavam. A escrita por vezes até parecia-lhe familiar, mas tinha convicção de que ainda não a havia decodificado. Essa reflexão animou-o, infundindo-lhe uma espécie de vertigem: a terra possui formas incorruptíveis, antigas e eternas, qualquer uma delas podia ser o símbolo que procurava. Em meio à procura, visualizou montanhas, rios, impérios, astros; nesse 46 firmamento existem mudanças: as montanhas e estrelas são indivíduos, estes caducam. A escrita mágica do deus não passava por esse processo. O mago procurou algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensou nas gerações dos cereais, pastos, pássaros, homens. Talvez a sua face expressasse a escrita da magia; ele próprio poderia ser o fim de sua procura. Estava nesse afã quando recordou que o jaguar era um dos atributos do deus. Sua alma se encheu de piedade. Ele reporta-se à primeira manhã do tempo cujo deus confiou a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente em cavernas, canaviais, ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Ele tem diante de si uma rede de tigres que formam um labirinto. Um labirinto de tigres que causa horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. O jaguar, que se encontrava na outra cela, confirma a conjectura presumida. Foram muitos os anos que Tzinacan dedicou à decodificação das manchas; cada cega jornada proporcionava-lhe um instante de luz, permitindo-lhe fixar na mente as negras manchas que se uniam à pelagem amarela. “Algumas incluíam pontos; outras formavam raias transversais na face interior das pernas; outras, anulares, se repetiam. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham bordas vermelhas” (BORGES, 1999, p. 665). O mago de Qaholom mais de uma vez gritou à abóboda que era impossível decifrar aquele texto. Todavia, percebeu que o enigma concreto inquietava-o menos que o enigma genérico escrito pelo deus. Que tipo de sentença construiria uma mente absoluta? Não existe proposição que não implique o universo inteiro. Dizer o tigre “é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra” (BORGES, 1999, p. 665). Tzinacan considerou que na linguagem de um deus a palavra enunciaria a infinita concatenação dos fatos de forma explícita e imediata. Depois de algum tempo, a sentença divina pareceu-lhe pueril e blasfematória. Para ele, um deus só deveria proferir uma palavra e nela já constaria a plenitude. Nenhuma palavra articulada por ele poderia ser inferior ao universo nem menor que a soma do tempo. Sombras ou simulacros dessa palavra equivalem a uma linguagem e o quanto pode compreender uma linguagem, as ambiciosas e pobres palavras humanas: tudo, mundo, universo. 47 Ele não encontra mais diferença entre dia e noite. Adormece. Desperta com mais um labirinto a ser decifrado. Os grãos de areia multiplicam-se até encher o cárcere e ele morrer sufocado naquele hemisfério formado pela areia. O sonho acabou. No entanto, Tzinacan continuou sufocado pelos grãos de areia até descobrir que não havia acordado daquele sonho, e sim, adentrado a outro que o levava a outro..., infinitamente. Alguém lhe disse que ele havia despertado para um sonho anterior e que este o levaria a outros; o caminho o qual teria que regressar era interminável e morreria antes de ter despertado. Perdido, consegue forças para gritar: “nenhuma areia sonhada pode matar-me, nem existem sonhos dentro de sonhos”, despertando definitivamente. A treva superior do cárcere refletia as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne, o cântaro. Aos poucos Tzinacan ia se confundindo com o reflexo do seu destino e percebia que mais que um decifrador ou um vingador era um encarcerado, tendo que voltar do infinito labirinto dos sonhos para a sua realidade: o cárcere. Bendisse sua umidade, seu tigre, a fresta de luz, a treva, a pedra e o seu velho corpo dolorido. O inesperado acontece: a união com a divindade, com o universo. E, como o êxtase não repete os símbolos, há quem tenha visto Deus num resplendor, numa espada, nos círculos de uma rosa. Tzinacan O viu sob a forma de uma Roda Altíssima que refletia em todas as partes e a um só tempo. Essa Roda estava feita a um só tempo de água e de fogo; era infinita. Entretecidas, formavam-nas todas as coisas que serão, são e foram. Ele era o fio desse labirinto, enquanto Pedro de Alvarado era o outro. Naquela ocasião o mago compreendeu todas as coisas, causas e efeitos; tudo era interminavelmente compreendido. Tzinacan viu o universo, os íntimos desígnios do universo, as origens que narra o Livro do Comum, as montanhas que surgiram da água, os primeiros homens feitos de pau, as tinalhas que se voltaram contra os homens, os cães que lhes destroçaram os rostos, o deus sem face que há por trás dos deuses, infinitos processos que formavam uma só felicidade; e, entendendo tudo, conseguiu também entender a escrita do tigre (BORGES, 1999, p. 666). A escrita é uma fórmula de catorze palavras casuais as quais bastaria dizê-las para ser todo-poderoso, para abolir o cárcere de pedra, para ser jovem, para ser imortal... para reconstruir a pirâmide e/ou o império. Quarenta sílabas, catorze palavras e ele regeria as terras que Montezuma regeu. Mas, estas nunca 48 seriam proferidas porque ele não lembrava quem era ou foi Tzinacan. O mistério que está escrito nos tigres morreu com ele. Quando apresentamos, a priori, a paráfrase deste conto que integra a coletânea O Aleph, de 1949, nossa intenção é permitir que o leitor se familiarize com a narrativa para perceber as diferentes nuances de sentido e vislumbrar a ideia de espaço-movimento-tempo como algo possível, mas também entrever aspectos como diferença, repetição, imagem-pensamento, onde a lei aparece determinando a semelhança dos indivíduos que estão submetidos a ela; isto porque, “em vez de fundar a repetição, a lei mostra antes de tudo como a repetição permaneceria impossível para puros sujeitos da lei – os particulares. Ela os condena a mudar” (DELEUZE, 2006a, p. 21). A mudança surge como uma condição geral a que a lei da Natureza parece condenar o mago Tzinacan, que em função de determinados acontecimentos e de suas atitudes, encontra-se numa prisão cujo cárcere não lhe permitirá desfazer ou mesmo corrigir as atitudes outrora cometidas. Uma vez preso, ele não podia repetir seus atos em função, sobretudo, da permanência naquele local; permanência essa que adquire um valor simbólico sem, no entanto, deixar de excluí-lo da repetição. O personagem vivencia a repetição desde o instante em que adentra ao cárcere, passando a conviver em um ambiente cujas pedras formam algo menor que um círculo máximo o qual o faz sentir-se oprimido. Os movimentos repetitivos do carcereiro entregando-lhe um cântaro com água e pedaços de carne enfatizam as repetidas ações, reiterando o fato de que estas não mudam, apenas são aperfeiçoadas e permanecem constantes. “Na hora sem sombra [o meio-dia], abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que foram apagando os anos manobra uma roldana de ferro e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros com água e pedaços de carne” (BORGES, 1999, 663). Observando-se o contexto em que o prisioneiro se encontra, percebe-se que a repetição acontece através do aperfeiçoamento da ação, sendo por natureza transgressão. No momento em que Tzinacan aparece recebendo do carcereiro pedaços de carne e água todos os dias, e no mesmo horário (meio-dia), há uma semelhança do diverso consigo mesmo para mostrar que tal fenômeno passa a ser definido a partir de fatores que o constituem; por exemplo, o espaço no qual está inserido e o tempo metamorfoseado, os quais são alegorizados através das atitudes do carcereiro, mas também do prisioneiro. 49 No dizer de Deleuze (2006b, p. 41), “a repetição é verdadeiramente o que se disfarça ao se constituir e o que só se constitui ao se disfarçar”. Se atentarmos para a situação em que se encontra o mago de Qaholom (na prisão), perceberemos que a repetição acontece formando uma máscara que remete a outra e outras de maneira que uma máscara recobre a outra sem que haja o isolamento ou a abstração da repetição, onde ela se forma e ao mesmo tempo se oculta, haja vista existir a transgressão dessa repetição simbólica na sua essência e alegórica na sua estruturação, visto que o simulacro encontra-se na escrita do deus. Para Deleuze (2006b, p. 42): É sempre a máscara [...] que é a verdade do nu. A máscara é o verdadeiro sujeito da repetição. É porque a repetição difere por natureza da representação que o repetido não pode ser representado, mas deve sempre ser significado, mascarado por aquilo que o significa, ele próprio mascarando aquilo que ele significa. O mago, juntamente com o velho carcereiro, repete seus movimentos porque são os sujeitos repetidores, discretos e secretos em si mesmos, ou seja, ambos são repetidores que constituem um mesmo espaço e tempo sem mudar nada no objeto que se repete, posto que dia a dia há uma continuidade na repetição. De acordo com este autor a repetição se desfaz à medida que se faz; isto porque o espírito de quem a contempla, neste caso o de Tzinacan, sofre alguma mudança, algo novo ou, quiçá, a própria expectativa que é gerada todos os dias naquele mesmo horário, ou ainda, a oportunidade de vislumbrar o jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Embora as situações e imagens sejam sempre as mesmas, é no instante em que a luz penetra a abóbada, ao meio-dia (à hora sem sombra), que o jaguar pode ser contemplado e há o que Deleuze denomina de para-si da repetição, como subjetividade originária que passa a constitui-la sem, no entanto, falar-se propriamente em repetição, mas apenas a partir da mudança pelas vias da imaginação, em virtude do que esta produz no espírito de quem a contempla; afinal, é a imaginação de Tzinacan que origina o desejo de ver novamente e a cada dia o jaguar: “A luz entra na abóbada; nesse instante posso ver o jaguar” (BORGES, 1999, p. 663). 50 Prisioneiro e jaguar16 podem se defrontar, através das barras, enquanto se alimentam. Na ocasião em que contempla o animal, o mago o descobre como um ser mágico, cuja pele o conduz a uma sentença sagrada, divina, a qual ele irá ler, reler, ver e entrever com a finalidade de decifrá-la: “[...] Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada me concedia um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam a pelagem amarela” (BORGES, 1999, p. 665). Alegoricamente, a pele do animal se configura como o tesouro que Tzinacan guardava antes de adentrar ao cárcere. Percebemos, inicialmente, que o mago descreve o jaguar como um animal que está enjaulado, depois ele se apresenta como um animal misterioso, sendo mais sonho de Tzinacan do que um felino real, notadamente porque a pele passara a ser lida na tentativa de que as manchas, que se tornaram um códice, fossem decifradas. Neste caso, existe a busca do Sagrado a partir de olhares que não observam apenas o animal real, mas um felino mítico (instituído por palavras) em cuja pele se encontra a escrita divina. Quando no presente o personagem ativa a imaginação esforçando-se por rememorar os acontecimentos, aciona a repetição dos momentos vivenciados outrora, constituindo um presente vivo, no intuito de fazer vir à tona o passado na medida em que relembra o que Pedro de Alvarado e seus homens causaram às suas vidas. Noites inteiras foram desperdiçadas na tentativa de recordar o número de algumas serpentes de pedra, bem como a forma de uma árvore medicinal; 16 Jaguar é um termo indígena que significa onça-pintada. [F.: Do tupi ya 'guara. Hom./Par.: jaguara (sm.)]. É um mamífero carnívoro da América do Sul que mede aproximadamente 1,30 m de comprimento. Para a cultura maia este animal é o símbolo das trevas e da luz e está associado ao poder político, às práticas xamânicas, à agricultura e à fertilidade, assim como a destruição e morte. De acordo com a cosmovisão maia o jaguar pertence ao reino das trevas e noite, enquanto o seu homólogo Quetzal corresponde ao dia e a luz. A onça-pintada está estritamente ligada às divindades de Xibalba e às cavernas ou entradas para o seu reino infraterrestre. Por isso, foi considerado um animal poderoso e perigoso, possuidor de conhecimentos profundos e portador de energias sagradas. Os maias acreditavam que os dias de Buc XOK governados por jaguar eram ameaçadores para as atividades que envolviam o comércio e as cerimônias públicas, razão pela qual a vida nas comunidades iria parar. Nas histórias do Popol Vuh a onça-pintada é responsável pela destruição de homens de madeira porque é considerada como a grande destruidora com energia suficiente para criar os desastres potenciais os quais podem destruir toda a vida no universo. Finalmente, o jaguar na sua qualidade de animal infraterrestre está intimamente relacionado com a fertilidade e, na iconografia maia, está intimamente relacionado com milho e cacau, na medida em que este último é chamado de Yucatan balamté, árvore jaguar. Em suma, a onça-pintada é um animal misterioso e imponente, senhor da escuridão e da vida, renovador dos mundos. Ele convida-nos a destruir os grilhões de nosso ego e, como Halach Uink, sentar-nos na nossa presunção e com coragem renascer para a vida, pois, como dizem os estudiosos, os mistérios se sustentam sobre a morte. No Brasil, quando as crianças Tupinambás (do sexo masculino) nasciam recebiam patas de jaguar e garras de águia. Para os Tupinambás, o jaguar é uma divindade celeste, semelhante a um cão e de cor azul. Entre os mitos brasileiros referentes à origem do fogo, o jaguar aparece sempre como o herói civilizador que dá o fogo aos homens. 51 porém, à medida que isto sobrevinha às dimensões do presente expressavam o passado permitindo que Tzinacan soubesse o que o futuro lhe reservava: a morte. Se considerarmos a repetição na mudança do sujeito, notaremos que houve um movimento retroativo entre os “limites” do tempo, pois ainda no tempo presente Tzinacan esteve no passado e futuro tecendo os fios daquilo que vivenciou antes de chegar à prisão. Tais vivências não deixam de fazer parte de sua imaginação. Para Deleuze (2006b, p. 113): O passado não é mais o passado imediato da retenção, mas o passado reflexivo da representação, a particularidade refletida e reproduzida. Correlativamente, o futuro deixa também de ser o futuro imediato da antecipação para tornar-se o futuro reflexivo da previsão, a generalidade refletida do entendimento [...]. A repetição acontece no momento em que a imaginação é ativada; o para-si entra em ação fazendo personagem e leitor passarem de uma ordem a outra da repetição, posto que o imaginário se desdobra e se conserva no espaço da representação, mostrando que existe uma diferença entre a repetição instantânea, que se desfaz em si mesma, e a repetição ativa, que é representada através da síntese passiva; também se apresenta na forma de fadiga, pois quando a alma não pode contrair o que contempla, contração e fadiga se desfazem produzindo uma repetição instantânea sobreposta à síntese passiva que o condiciona, bem como à necessidade “porque a necessidade repousa numa instância que concerne essencialmente à repetição, que forma o para-si da repetição, para-si de uma certa duração” (DELEUZE, 2006b, p. 121). A necessidade de Tzinacan leva-o a repetir as mesmas ações durante os anos em que esteve no cárcere. Certamente, ocorriam-lhe alguns questionamentos: Qual é a escrita? Como decifrá-la? Por que o jaguar me observa todos os dias e no mesmo horário? A partir das indagações, as repetições indicavam-lhe a necessidade de buscar respostas e o desejo de conhecer meios os quais o conduzissem às soluções; por isso o presente sobrevém redescobrindo-se de maneira parcial, onde a repetição acontece como forma de os presentes sucessivos remeterem à mesma vida, visto que os acontecimentos não lhe permitem mudanças. Há sempre uma relação de contiguidade que coexiste e se compõe. Não obstante, a repetição de fatos e de elementos sucessivos mostra que são independentes, ao mesmo tempo em que uma é dependente da outra e expõe 52 sempre a mesma relação de semelhança e diferença característica da alegoria que forma um paradoxo onde o passado continua insistindo com o antigo presente de modo que, no dizer de Deleuze (2006b, p. 127), “consiste com o atual e o novo", tendo em vista a repetição sempre coexistir com o novo presente. Cada repetição se torna contemporânea de si, porque “cada passado é contemporâneo do presente que ele foi, todo o passado coexiste com o presente em relação ao qual ele é passado, mas o elemento puro do passado em geral pré-existe ao presente que passa” (DELEUZE, 2006b, p. 127). Por este motivo, o presente é sempre representado quer seja como antigo, quer seja como atual; e esse passado puro se desdobra na representação à medida que as repetições acontecem e Tzinacan vivencia sempre as mesmas situações como se fossem novas, caracterizando-se como síntese ativa da representação do presente, que reproduz o antigo e reflete o novo que também é refletido a partir de um elemento do passado puro, cujo presente antigo particulariza-se através do elemento repetição no momento em que o personagem encontra-se premido pela falta de fazer algo, de povoar de algum modo o tempo. Em alguns momentos, o mago de Qaholom reflete acerca do que almejou recordar à sua sombra, das noites inteiras que desperdiçou em recordar a ordem e o número de algumas serpentes de pedra e percebe que os anos foram se debelando e assim ele fora entrando na posse do que já era dele: “o cárcere”. Certa vez, o mago sentiu que se aproximava de uma lembrança precisa, mas, horas depois, começou a avistar a lembrança e notar que fazia parte de um passado-presente e de uma realidade da qual não poderia fugir: Noites inteiras desperdicei em recordar a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim, fui debelando os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus (BORGES, 1999, p. 663-664). Ao observar o que o mago vivencia na prisão, notamos que a repetição surge a partir da síntese passiva a qual se vincula à síntese ativa, no intuito de que a memória passe a ser ativada, visto que o presente reflete as diferentes dimensões designando o grau de passado, ou de um passado inteiro, através do que ocorre na relação imagem-movimento-tempo. 53 Neste instante, diferença e repetição se coadunam para mostrar que o prisioneiro não está mais na relação palavras, e sim na relação imagens, delineando a escrita e tudo o que acontecera a ele sob a forma alegórica da palavra escrita e da palavra sentida, cujo significado se expressa por meio das atitudes do jaguar dia após dia, durante todos os anos em que se encontra no cárcere. A repetição desses passados-presentes que sobrevêm e revelam um destino mostra que Tzinacan vive sempre a mesma coisa, a mesma história, cuja diferença está centrada apenas no nível ora contraído ora descontraído, dependendo da maneira como ele retoma a sua vida e como os elementos situacionais sucedem e coexistem uns com os outros. Neste caso, o passado existe para insistir e fornecer elementos os quais reiteram a passagem do presente ao passado puro, com a finalidade de que os passados-presentes se interpenetrem, fundindo determinação (pensamento) e existência (o próprio ser). Passado e presente se metamorfoseam produzindo diferenças e repetições em si mesmas, repetindo-se um no outro, onde a repetição passa a atuar como uma condição da/à ação. Se concebermos a repetição como algo que perpassa o tempo e subsume de um presente atual a um presente antigo, o mago de Qaholom consegue perpassar os presentes (atual e antigo) e (re)viver as mesmas situações como se fossem únicas, cujo presente antigo tem a função de fornecer “a coisa” a ser repetida no presente atual sendo independente de tal processo porque ocorre uma repetição disfarçada que depende do deslocamento do sujeito para acontecer. Significa dizer que só há repetição porque Tzinacan saiu de uma situação atual para outra que ele imagina ser seu presente antigo, cujo disfarce se explica em função do próprio deslocamento em busca de decifrar a alegoria e as metáforas que se fazem presentes na escrita do deus. Diferença e repetição permitem que situações idênticas sejam conduzidas ao infinito, fazendo com que este seja conjecturado através das singularidades que a alegoria explicita em relação aos acontecimentos, constituindo, para a diferença, um momento sublime, e para a repetição, uma qualidade do semelhante, visto que esta necessita de “uma relação interior com o ser e com o verdadeiro”17, desdobrando-se a partir de sua própria multiplicidade, haja vista a escrita do deus ser pensada como prenunciadora de diferenças múltiplas, ao mesmo tempo em que “se reparte nas 17 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006b, p. 369. 54 formas fixas destas diferenças e se diz analogicamente daquilo que é” (DELEUZE, 2006b, p. 374). Quando o mago da pirâmide de Qaholom sonha com um grão de areia no cárcere e esse sonho se desdobra em outros, cujos grãos se multiplicam, temos ocorrências idênticas sendo geridas ao infinito, produzindo momentos de desespero, os quais remetem o personagem ao seu próprio destino, às circunstâncias em que se encontrava e ao final inevitável: a morte. A repetição é representada ora como semelhança perfeita ora como igualdade extrema, explicando a repetição da escrita (e dos grãos de areia) e a necessidade de se fazer presente nos dois presentes (antigo e atual), na tentativa de compreender a diferença, que é reduzida ao puramente conceitual. A repetição, no dizer de Deleuze (2006b, p. 375), “é representada fora do conceito, como uma diferença sem conceito, mas sempre sob o pressuposto de um conceito idêntico”. Ainda que a repetição se apresente através dos grãos de areia, das quarenta sílabas, catorze palavras casuais, ou quando a roldana é aberta pelo carcereiro, ou ainda, com o surgimento do jaguar medindo sempre os secretos passos, seu conceito permanece o mesmo e não surge como um aspecto negativo, porque não tenciona explicar diferenças sem conceito, mas mostrar as dobras e desdobras do mago em busca de decifrar a escrita do deus, dissipando a ideia de distinguir a repetição como simples semelhança. As situações se repetem porque diferem de um conceito de repetição e diferença que é absolutamente o mesmo e somente porque não são reais. Concordamos com Deleuze (2006b, p. 375-376) quando afirma: Repete-se (a linguagem repete) porque não se é real (as palavras não são reais), porque só há definição nominal. Repete-se (a natureza repete) porque não se tem interioridade (a matéria não tem interioridade), porque se é partes extra partes. Repete-se (o inconsciente repete) porque se recalca (o eu recalca), porque não se (o Isso) tem rememoração, recognição nem consciência de si – em última análise, porque não se tem instinto, sendo este o concomitante subjetivo da espécie como conceito. [...] repete-se sempre em função do que não se é, e do que não se tem. Repete-se porque não se ouve. A repetição da escrita do deus (e demais situações que envolvem o conto borgeano) surge como forças que asseguram a multiplicidade das ações, cujo conceito aparece como idêntico, mas também se fragmenta em outros conceitos igualmente idênticos onde as ações são absolutamente idênticas. 55 Daí a ideia de presente antigo e presente atual para justificar a multiplicidade que perpassa o referido conto, e que se apresenta bipartida em novas e idênticas ações. Por isso que o mago confunde ações com acontecimentos representados, os quais são parte integrante do deslocamento do presente (antigo e atual), visto que há um desdobramento das ações de modo que estas se repartem em dobras e redobras que coexistem. Cada dobra se repete de maneira que se desloca de uma para a outra, mas se disfarça em todas elas, onde vida e morte estão permanentemente em jogo. A multiplicidade do conto aparece na medida em que as ações se repetem e se multiplicam dobrando-se de muitas maneiras, onde as redobras da matéria ou as dobras da alma surgem retratando as imagens-movimento que Tzinacan vislumbra a partir das ações que se desencadeiam enquanto está no cárcere. O mago considera que: [...] nas linguagens humanas não existe proposição que não implique o universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato [...] Um dia ou uma noite – entre meus dias e minhas noites que diferença existe? – Sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir, sonhei que os grãos de areia eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob esse hemisfério de areia [...] O despertar foi inútil; a inumerável areia me sufocava (BORGES, 1999, p. 665). As dobras surgem em diferentes dimensões e guardam certa consistência, o que por vezes leva o mago a cogitar a possibilidade de ter decifrado a escrita do deus. E, embora a areia se dissolva em múltiplos grãos, a impressão é a de que há divisões em dobras, desdobras e redobras até o infinito, recompondo-se, a posteriori, num continuum/descontínuo de onde as dobras surgem como os grãos de areia que são capazes de matá-lo (caso ele não desperte do sonho). Dobrar/desdobrar-se significa desenvolver-se segundo o que lhe sobrevém; assim, o organismo do mago de Qaholom está “envolvido na semente (pré-formação dos órgãos), e as sementes, como bonecas russas, estão envolvidas umas nas outras até o infinito [...]” (DELEUZE, 2005, p. 22). Quando Tzinacan adentra a cela, está selado o destino. As dobras irão dobrar-se e desdobrar-se nesse 56 continuum/descontínuo que remeterá ao infinito ou até o momento de sua morte, fim que lhe destinam os deuses. Quando julga que está morto, as dobras se desdobram dando-lhe margem para perceber que os grãos de areia não o submergiram, nem o jaguar o atacou; ao contrário, as cenas que vivenciara ao longo dos anos perpetuam-se nas redobras da matéria, que têm suas razões nelas mesmas. “Seria o caso de se pensar [...] que a dobra está sempre entre duas dobras e que esse entre-duas-dobras parece passar por toda parte: entre os corpos orgânicos e os inorgânicos” (DELEUZE, 2005, p. 30). Neste sentido, as inflexões fazem das variações “uma dobra que leva a outra dobra ou variação ao infinito” (DELEUZE, 2005, p. 37). A repetição torna-se o ato da dobra que se desdobra infinitamente, como os grãos de areia que aparecem no sonho de Tzinacan. A repetição é também um atributo do espaço entre pontos de vista que se desdobram como variantes da transformação por que passa o prisioneiro, cuja “desdobra está envolvida na variação, assim como a variação está envolvida no ponto de vista” (DELEUZE, 2005, p. 41). Mas, é a alma que possui as dobras; é ela quem as possui e somente ela está infinitamente apinhada de dobras. O mago projeta as múltiplas dobras que transbordam suas atitudes de anseios, medos e do desejo de decifrar a escrita do deus a partir das quarenta sílabas e catorze palavras casuais que emblematicamente apresentam elementos como o cárcere, a roldana e o jaguar, os quais nos conduzem à alegoria como figurações que nos permitem entrever os acontecimentos como se fossem reais, cuja imagem-movimento representa tanto o espírito (o que se passa no interior do mago) quanto o mundo (o que aconteceu antes e durante a sua permanência na prisão). Tudo é imagem e tudo é movimento, matéria e mundo se fundem para mostrar “os dois lados de uma mesma moeda”. É possível perceber que, no instante em que Tzinacan adentra ao cárcere, as imagens, símbolos da alegoria, agem umas sobre as outras para revelar as múltiplas faces, mas também as (des)dobras e redobras mostrando ora a determinação ora a indeterminação dos acontecimentos, reiterando que a matéria, enquanto imagem-movimento, oscila. Conforme Costa (2006a, p. 95) “[...] não há diferenciação entre o movimento percebido e o movimento devolvido porque qualquer face da matéria recebe e devolve o movimento”. Percepção, afecção e ação apresentam movimentos 57 indiferenciados, visto que as imagens são “uma e a mesma coisa, dependendo da parte ou face do vivo a que o movimento da matéria é reportado” (COSTA, 2006a, p. 95). A alegoria se apresenta através desse regime de imagens cinematográficas (imagens-movimento-tempo) que são formadas a partir da atividade cerebral, produzindo lembranças e sonhos que reportam o prisioneiro ao passado, no intuito de que ele perceba que mesmo estando no presente, vivencia idas e vindas, fazendo uso do consciente (objetividade) e do inconsciente (subjetividade), espaços-temporais que apresentam vazios os quais precisam ser preenchidos e talvez isto represente algo que nunca acontecerá. O preenchimento desses vazios ocorre, por vezes, através do agenciamento da afinidade entre o prisioneiro e o ambiente do qual ele se tornou parte. Esse agenciamento passa a ser o “compartilhamento de uma interioridade em comum entre dois conjuntos diferentes” dividindo a mesma superfície (COSTA, 2006a, p. 11). A capacidade de agir e de compreender passa pelo viés da concepção desse indivíduo que, uma vez preso, sabe que seus poderes estão limitados às circunstâncias: ele está preso e as paredes da cela o impedem de agir. Já a mente, encontra-se limitada a partir das ideias e sentimentos que o reprimem, sobretudo o medo e a superstição que alimenta em relação à escrita do deus. Quando Tzinacan se adapta ao meio, suas ações passam a expressar o que ele vislumbra em seu entorno, cujas ações só existem no momento em que percebe, sente e expressa o que consegue transmitir por meio de uma situação, num ambiente determinado: a prisão. As imagens percepção, afecção e ação formam e informam a subjetividade do mago de Qaholom através dos movimentos; todavia, há de se observar que a percepção filtra apenas o que lhe é útil e interessa. Já a afecção se configura como algo em que o personagem se percebe e se experimenta, ou seja, ele tanto se deixa notar, se reconhecer enquanto sujeito, quanto se permite viver e expressar os sentimentos no intuito de afetar algo e conferir concretude à ligação entre visível e enunciável. O agenciamento por que passa Tzinacan se apresenta como dobras de si, tendo em vista que os envergamentos constituem forros sobre si próprios, projetando a prisão como um espaço do lado de dentro onde as dobras revelam também a constituição do tecido do lado de fora a partir da figura do jaguar, que 58 surge como a curvatura do que esse lado de fora pode abordar ou lhe apresentar, numa movimentação interminável, visto que dobra-se, desdobra-se e redobra-se para dizer o indizível num continuum que também é descontínuo. O lado de fora do cárcere sempre remete à perspectiva de abertura de um futuro que está preso às relações de agenciamentos de saber-poder que ocorre quando relativamente ao saber e ao poder tem-se um duplo deslocamento, ou seja, “nessa linha as forças não se acoplam de imediato a estratificações de luz e linguagem, nem estão integradas em relações diferenciadas de agenciamentos de condutas” (PAIVA, 2001, p. 56). É como se o processo de afecção e de agenciamento se dobrasse sobre sua demasiada manifestação, criando uma zona de agitação atravessada pelas linhas de fuga que projetam no espaço dentro-fora a individuação do próprio sujeito encarcerado. O agenciamento das ideias e imagens que são projetadas no cárcere remetem o mago a desdobramentos os quais lhe permitem compreender as imagens sonoras produzidas pelo jaguar e pela roldana de ferro que era aberta todos os dias à mesma hora. Imagens estas que parecem não ter qualquer privilégio, uma vez que surgem a partir das ideias, do sentido, da linguagem e dos traços de expressão produzidos por Tzinacan: Na hora sem sombra [o meio-dia], abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que foram apagando os anos manobra uma roldana de ferro e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros com água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; nesse instante posso ver o jaguar (BORGES, 1999, p. 663). A partir do momento em que o mago captura essas imagens agencia novas imagens que se desdobram e se redobram infinitamente, indicando os caminhos que são percorridos pelo jaguar e pelo prisioneiro, cuja percepção se relaciona à afecção e à subjetividade que a cadeia de imagens, cada uma no seu lugar, toma como ação, como se fossem palavras de ordem a serem cumpridas, devolvendo às imagens-sons o que cada uma possui enquanto agenciamento de ideias para este ser, que supostamente se tornaria múltiplo; no entanto, pode se deixar abater enquanto encarcerado: “Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. Mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado” (BORGES, 59 1999, p. 666). Ele precisa pensar, agir, viver e mostrar que está observando os secretos passos do jaguar, mas também tentando compreender a escrita do deus. É nessa linha de fuga que os devires se fazem, que as alegorias se apresentam e que as situações o fazem submergir. As imagens-sons, os gestos, os olhares do jaguar, o movimento da roldana separam o prisioneiro do seu futuro imperceptível, onde as imagens-ação e imagens-afecção combinam, ainda que diferentemente, os mesmos elementos. De acordo com Deleuze (1992, p. 69) “a imagem atual e sua imagem virtual cristalizam. É uma imagem cristal, sempre dupla ou reduplicada [...] o que se vê, primeiro, é o Tempo, os lençóis do tempo, uma imagem-tempo direta [...] é o movimento que decorre do tempo”. As imagens-sons e imagens-ação projetam o que o mago de Qaholom imagina estar acontecendo dentro do cárcere. As ideias são delineadas a partir do momento em que ele se vê frente a frente com o jaguar, nas horas de solidão e quando almeja sair daquele lugar e viver uma nova vida: [...] Um resplendor me despertou. Na treva superior desenhava-se um círculo de luz. Vi a face e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros. Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. Mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei, como à minha casa, à dura prisão. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre, bendisse a fresta de luz, bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra (BORGES, 1999, p. 666). Nas horas de solidão, a vontade de estar longe da prisão leva-o a entrecruzar o tempo (passado, presente, futuro) fazendo-o perceber que não é possível deixar o local, devendo conformar-se com o que o tempo atual está lhe oferecendo: o cárcere e as imagens que é capaz de projetar como ideia de totalidade, como uma Tota Allegoria, uma alegoria fechada em si mesma, onde o efeito de recepção se mostra quando as imagens se bifurcam desdobrando-se em várias outras imagens as quais se interiorizam ao mesmo tempo em que se exteriorizam encadeadas por meio de imagens-movimento que se tornam imagens-tempo. Tem-se real e imaginário convergindo para as mesmas e diferentes imagens-pensamentos, pois o real faz surgir o encadeamento de ideias atuais e o irreal é o surgimento de ideias bruscas e descontínuas; juntos, tornam-se indiscerníveis, pois as imagens desse continuum/descontínuo se confundem, 60 produzindo imagens indiscerníveis. Segundo Deleuze (1992, p. 86) existem dois regimes de imagens: Um regime que se poderia chamar de orgânico, que é o da imagem movimento, que opera por cortes racionais e por encadeamentos, e que projeta ele mesmo um modelo de verdade (a verdade é o todo...) E o outro é um regime cristalino, o da imagem-tempo, que procede por cortes irracionais e só tem reencadeamentos [...]. As imagens-movimento e imagens-tempo se equivalem apresentando um tempo que não é mais passado, nem presente, nem futuro; é um tempo que escorre através das “linhas de fuga” para mostrar a realidade do cárcere e, mais do que isto, as angústias vivenciadas pelo mago da pirâmide de Qaholom na tentativa de mudar a sua própria história. A alegoria se apresenta a partir das imagens-ação e imagens-afecção, porque o agenciamento das ideias combina real e irreal para (re)encadear imagens que, embora diferentes, apresentam os mesmos elementos, formando um duplo de imagens que se cristalizam. As imagens revelam as situações vivenciadas pelo mago produzindo um início de continuidade, um fio que o ajuda a orientar-se em meio ao cárcere. Conforme Gil (2008), a repetição afasta o silêncio18 dando lugar a um espaço de proteção e a cela passa a ser protegida contra o caos. Embora o ambiente seja limitado, a repetição das imagens aparece como forma de organizar o espaço que separa prisioneiro e jaguar, notadamente porque o agenciamento territorial se mostra como “ponto de fuga” para ambos, pois transitam entre os meios construídos pela repetição de suas ações. Conforme Deleuze e Guattari (1997a, p. 119), “[...] a noção de meio não é unitária: não é apenas o vivo que passa constantemente de um meio para outro, são os meios que passam um no outro [...]. Os meios são abertos no caos, que os ameaça de esgotamento ou de intrusão”. O agenciamento entre espaço/tempo/meio causa, inevitavelmente, repetições periódicas que têm a finalidade de produzir uma diferença a qual permite ao mago passar de um espaço a outro da prisão. Notamos, contudo, que as ações desenvolvidas entre Tzinacan e o jaguar geram atos que os territorializam, em 18 Todos os contos expostos nesta tese apresentam o silêncio como espaço de articulação cujos personagens tecem suas tramas, em alguns momentos, com a intenção de levar o leitor a pensar que esse silêncio será o ápice das narrativas. Embora todos os contos encaminhem para tal aspecto, frisamos que não tencionamos fazer uma abordagem explícita desse assunto; não obstante, informamos ao nosso leitor que há uma vasta bibliografia referente ao silêncio e o convidamos a estudá-la à luz dos contos de Jorge Luis Borges. 61 virtude de os meios e os ritmos se fundirem formando territórios. Para Deleuze e Guattari (1997a, p. 120-121): O território é o produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos [...] Um território lança mão de todos os meios, pega um pedaço deles, agarra-os (embora permaneça frágil frente a intrusões). Ele é construído com aspectos ou porções de meios [...]. Há territórios a partir do momento em que há expressividade do ritmo. Podemos dizer que a junção de meios e ritmos forma uma paisagem melódica, posto que um e outro se entreolham ao longo dos anos, mas não se desprendem de seus objetivos. A paisagem melódica passa a ser a própria melodia “tomando em contraponto todas as relações com uma paisagem virtual” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 126). Nesse processo de agenciamento que envolve meio/ritmo/melodia, o jaguar se apresenta como a própria expressão melódica e o prisioneiro como o ritmo, pois eles se completam. A trama tecida por Borges em torno de ambos só faz sentido porque a territorialização construída em volta deles permite ao leitor vislumbrar a (im)possibilidade de um depender do outro. Destarte, o agenciamento territorial criado em vista do comportamento de Tzinacan para decifrar a escrita do deus explicita o procedimento alegorizante do personagem em torno de algo que ele tem consciência de que cedo ou tarde descobrirá, mas alimenta o desejo de “não saber” o que fazer quando decifrar: “É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso [...] Mas eu sei que nunca direi essas palavras, porque não me lembro de Tzinacan” (BORGES, 1999, p. 666-667). Deste modo, enquanto procura decifrar o enigma da escrita do deus estabelece esse agenciamento com o jaguar, apresentando-nos sempre um novo enigma: [...] imaginei meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente [...]. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, causando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar; em sua proximidade percebi uma confirmação de minha conjetura e um secreto favor. Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas [...] e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam a pelagem amarela (BORGES, 1999, p. 664-665). 62 Podemos imaginar qual a intenção de ambos? Talvez. Contudo, é inegável o diálogo que se constitui entre os dois através dos olhares, construindo uma alegoria dos símbolos, no intuito de que o mago revele qual é a escrita do deus e o que esta apresenta de si própria. A alegoria do conto é projetada (ou enunciada) nas situações que são produzidas constituindo novos agenciamentos no agenciamento territorial, reforçando a formação do intra e do interagenciamentos porque, embora os personsagens se mantenham nas mesmas posições, a alegoria permite entrever forças de desterritorialização sendo movidas através dos pensamentos e dos sonhos do mago de Qaholom durante os anos em que se encontra encarcerado. Prisioneiro e jaguar são elementos alegorizadores dessa desterritorialização, visto que diferença, consistência e consolidação se coadunam formando esse agenciamento territorial que engloba três fatores essenciais ao processo de consolidação o qual, para Deleuze e Guattari (1997a, p. 141), “é um consolidado de meio, um consolidado de espaço-tempo, de consistência e de sucessão”. A desterritorialização acontece naturalmente como uma morada que, ao incorporar a experimentação existente entre o felino e o mago, improvisa continuamente novos modos de existência. Para Medeiros (2003/2004, p. 86), Tzinacan vê o universo e os íntimos desígnios desse universo, assiste às origens desse universo, decifrando a escrita do deus; unindo-se tanto ao universo quanto ao jaguar, “reunindo as metades de si mesmo” para se tornar “novamente um mago-jaguar, extremamente poderoso”. Quando o mago se dá conta de que decifrou a escrita do deus, a operação das “linhas de fuga”, das pontas de desterritorialização (onde se dão os interagenciamentos), o insere no território como se este fosse uma instância provisória, cujas camadas de estratificação se sobrepõem e se contrafazem mutuamente. Os movimentos de estratificação e desestratificação são operados a partir de um crivo no caos, onde o plano de imanência atua por intensidades complexas e difíceis de serem apreendidas. Embora não tenhamos um território em variação, o existir apresenta movimentos perpendiculares os quais compreendem o processo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização, onde o agenciamento territorial consolida a concepção de território como um movimento que se abre a novos agenciamentos. Sendo assim, ao vislumbrar a Roda Altíssima, o mago de Qaholom encerra 63 todo o conhecimento possível, haja vista ter lido a pelagem do tigre a qual continha uma escrita mágica composta de “catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal [...]” (BORGES, 1999, p. 66). Como o mago afirma, o poder que agora possui poderia fazê-lo destroçar Alvarado e todos os que contribuíram para a sua prisão, inclusive reconstituir a pirâmide incendiada pelos colonizadores espanhóis, bem como o império ameríndio. Nas palavras de Medeiros (2003/2004, p. 86), “o mago iluminado, na verdade, é mais que a soma do homem e do jaguar, é mais que a união dessas metades separadas por um muro alto: ele se tornou um outro Tzinacan”, pois não reconhece mais a si mesmo. Vemos que a imagem-movimento-tempo está centrada no real e no fantástico, mostrando cadeias que se desdobram em agenciamentos territoriais, produzindo novas cadeias que se territorializam, desterritorializam e reterritorializam no intuito de gerar um elemento único: o próprio sujeito. A escritura borgeana é descortinada para mostrar que através do processo de territorialização vida e espaço se unem como condição de existência, mas também como rompimento de valores, laços antigos que se permitem (des)reterritorializar, tendo em vista ser a outra metade da territorialização que permite o agenciamento de outros territórios no intuito de desenhar novos mundos e despertar a criação de um universo onde a razão se faz presente revelando as dobras, desdobras e redobras desse ser que visa a decifrar o (in)decifrável: Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres [...]. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém. Por isso não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão (BORGES, 1999, p. 667). Para Deleuze e Guattari (1997a, p. 150), “o agenciamento territorial implica uma descodificação, e ele próprio não é separável de uma desterritorialização que o afeta”, assim, os agenciamentos são cristalizados respeitando-se a distinção das ordens e das hierarquias. Veja-se que nA escrita do deus há essa ordem pré-estabelecida, posto que mago e tigre respeitam o espaço um do outro travando um contato apenas através dos olhares. O agenciamento territorial existe sem que haja ruptura de ordem, dando margem a interagenciamentos. A exemplo disto, temos a descrição de Tzinacan na 64 ocasião em que consegue compreender a escrita do deus, formando novos agenciamentos: Vi o universo e vi os íntimos desígnios do universo. Vi as origens que narra o Livro do Comum. Vi as montanhas que surgiram da água, vi os primeiros homens feitos de pau, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os cães que lhes destroçaram os rostos. Vi o deus sem face que há por trás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma só felicidade e, entendendo tudo, consegui também entender a escrita do tigre (BORGES, 1999, p. 666). O que define os agenciamentos são as circunstâncias por que passa o prisioneiro em meio ao caos em que se encontra. Ele caminha das forças do caos às forças da terra com um único objetivo: entender a escrita do deus. Para tanto, transcorre as linhas de desterritorialização para definir os agenciamentos cujos planos de consistência se encontram nas multiplicidades que passam a definir as linhas de fuga como elemento essencial à construção desse personagem que entrevê uma escrita sem a qual (por vezes) não consegue viver. Essa multiplicidade se define pelas linhas abstratas do fora como meio de caracterizar a desterritorialização e a consistência que o processo de multiplicidade rizomática marca através das linhas de fuga do mago de Qaholom. Essas linhas, no dizer de Deleuze e Guattari (1997a, p. 151): [...] são tudo ao mesmo tempo: matérias de expressão que tomam consistência independentemente da relação forma-substância; causalidades ao avesso ou determinismos ‘avançados’, inatismos descodificados, que incidem sobre atos de discernimento ou de eleição, e não mais sobre reações em cadeia; combinações moleculares que procedem por ligações não covalentes e não por relações lineares – em suma, um novo ‘jeito’ produzido pelo cruzamento do semiótico e do material. Percebemos com isso que o agenciamento ultrapassa os limites de uma realidade circundante para apresentar personagens que interagem com o universo, de modo a suscitar respostas que não deem margem para que este atue enquanto consciência concreta e determinante. A imagem do mago e do tigre se transforma em sua própria autoconsciência sem, contudo, antecipar os fatos à consciência do outro. Os partícipes da narrativa são dobrados, desdobrados e redobrados desencadeando agenciamentos múltiplos de consciências imiscíveis, onde a singularidade explicita a multiplicidade de ações e seus respectivos desdobramentos, percorrendo os vários espaços em busca de soluções para si 65 próprios, infinitamente. A escrita do deus surge a partir das mútuas relações que se estabelecem entre os personagens, provocando um continuum/descontínuo que marca espaço-movimento-tempo para revelar a universalidade do conto. O deslocamento de agenciamentos por meio das repetições traz à tona o unívoco e o múltiplo provocando um movimento que tanto une quanto separa Tzinacan do jaguar, isto porque a escrita aparece através da pelagem do tigre como dobras que se desdobram em múltiplos discursos, apresentando fissuras do dizível e do indizível, visto que as unidades de tempo perpassam as linhas de fuga instaurando vários acontecimentos, os quais evidenciam a vontade e a ambição do mago para compreender a escrita do deus, mesmo não sabendo o que faria após a descoberta. A alegoria se apresenta como a transposição semântica de um signo presente para um ausente, haja vista que se refere à oposição entre sentido real e figurado, onde o último representa a metáfora. No decorrer da narrativa, Borges mostra que prisioneiro e jaguar se completam como dois mundos que se unem para fundir os elementos estéticos – agora humanizados e naturalizados – e, embora o sofrimento se faça presente, o desejo de dizer o indizível, decifrar o indecifrável, conduz o mago a focalizar seus objetivos e não fugir do que realmente almeja: decifrar a escrita cujas palavras são agenciadoras de significados dinâmicos, posto que fundam um cenário cinematográfico a partir da pelagem do tigre, uma vez que as atividades sonoras o faz movimentar-se por entre o cárcere sem perder de vista as metáforas e alegorias que o encaminham a novas descobertas, permitindo-lhe unir os diversos conhecimentos para decifrar o que verdadeiramente almeja. Deleuze e Guattari (1997a, p. 165) afirmam, no entanto, que “o que estava composto num agenciamento, o que era ainda apenas composto, torna-se componente de um novo agenciamento”; neste sentido, a percepção é a matéria de um devir presente em cada agenciamento constituído ao longo do tempo em que Tzinacan está na prisão. Os agenciamentos que são produzidos no espaço e no tempo em que o mago de Qaholom está encarcerado revelam labirintos territoriais que são desvendados pelo prisioneiro enquanto contempla o tigre. Mas, esses agenciamentos também mostram o quanto real e imaginário estão imbricados à relação espaço-temporal que se combina à alegoria que perpassa o conto. 66 Na Origem do Drama Barroco Alemão, Walter Benjamim descreve momentos em que os homens se encontram abandonados, à mercê das situações que se lhes apresentam, desprovidas de significados. O mesmo ocorre a Tzinacan. Ele vivencia uma natureza cuja significação se dá por meio da alegoria que encontra significados através do indizível, conduzindo a construções onde a linguagem metafórica remete à alegoria porque desvela a condição do personagem, e quiçá humana, para mostrar o ser em sua essência. A alegoria do conto revela-se na plenitude do mago em considerar uma existência genuína a qual sabe que não irá encontrá-la, mas luta por isso até o instante em que entende a escrita do deus e que “não sabe” o que fazer depois. Há dois “eus” lutando por um único objetivo, que não é mais a procura da escritura do deus, e sim, a busca por si mesmo. Quando a escrita é decifrada um e outro passa a conviver nessa harmonia que visa a conhecer a si próprio e a dizer o indizível, agora dele(s) mesmo(s). Assim, a decadência e o despojamento desse para-si sobrepujam a própria essência do “eu” para revelar os arquétipos das significações que acompanham e abandonam um e outro. A alegoria abandona o simbólico para mostrar no particular o universal e no universal o particular, posto que somente se torna válida como exemplo desse universal que ilustra uma técnica alegórica. A exemplo disto, temos o trecho do conto borgeano em que o mago da pirâmide de Qaholom expõe sua angústia antes de decifrar a escritura do deus: “[...] não falarei das fadigas de meu labor. Mais de uma vez gritei à abóboda que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por deus” (BORGES, 1999, p. 665). Ao passo que se angustia por decifrar a escrita, o mago também vivencia os mesmos sentimentos quando a descobre e não sabe o que fazer: “[...] Quarenta sílabas, catorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi essas palavras, porque não me lembro de Tzinacan” (BORGES, 1999, p. 667). “Eu” e “outro” se completam para guardar o segredo que perpassa tempo e espaço, diferença e repetição, luz e trevas, caos e paraíso para expressar como a linguagem e como a escrita percorrem um processo de substituição para dizer o simbólico que atravessa o cárcere. 67 O encontro entre os agenciamentos territoriais19 se harmoniza para dizer que o mistério que está escrito no tigre deve morrer: “Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele [...]” (BORGES, 1999, p. 667). O alegorista menciona a morte para simbolizar a vida, pois, no instante em que o mistério morre ele passa a viver; conforme Benjamim (1984, p. 188), ele diz a morte para representar a história: “[...] a alegoria mostra ao observador a facies hippocratica da história como protoimagem petrificada. A história em que tudo nela desde o início é prematuro, sofrido e malogrado, se exprime num rosto”: o de Tzinacan. A morte passa a ser o princípio estruturador da alegoria, especialmente porque o objeto (Tzinacan) é privado de sua vida para se transformar em significação alegórica. “Eu” e “outro” carregam consigo o marco de suas histórias: a escritalegoria do deus. Essa morte alegórica será expressa também nos contos Os dois reis e os dois labirintos e A loteria em Babilônia os quais estaremos abordando a seguir. 2.2 DOIS REIS E UM CORPO SEM ÓRGÃOS O conto Os dois reis e os dois labirintos compõe a coletânea O Aleph, de 1949, relatando a história de dois reis que têm em comum um labirinto. Conta-se que o rei das ilhas da Babilônia construiu um labirinto tão surpreendente e sutil que os homens mais prudentes não se atreviam a entrar, e os que lá entravam se perdiam. Certa vez, o rei dos árabes aparece na corte e o rei da Babilônia, zombando da simplicidade e humildade do hóspede, o faz adentrar ao labirinto onde vaguea humilhado e confuso até o final da tarde, quando implora o socorro divino e encontra a porta. O rei árabe não profere qualquer queixa, apenas diz ao rei da Babilônia “que ele tinha na Arábia outro labirinto e, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia” (BORGES, 1999, p. 676). Ao regressar à Arábia, o rei junta seus homens 19 O encontro entre os agenciamentos territoriais compreende territorialização, desterritorialização e reterritorialização. 68 (capitães e alcaides) e arruína os reinos da Babilônia, derrubando castelos, dizimando as pessoas, fazendo o rei prisioneiro. A partir daquele momento, a represália do rei da Arábia ganha nova conotação. Ele amarra o prisioneiro sobre o camelo veloz e leva-o para o deserto. Lá, cavalgaram três dias, e lhe disse: Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos (BORGES, 1999, p. 676). Dito isto, o rei árabe desata-lhes as amarras e abandona o rei da Babilônia no meio do deserto, onde morreu de fome e sede. Esta narrativa nos coloca mais uma vez diante da diferença e da repetição para mostrar que ambas se completam, dando sentido ao que os dois reis vivenciam em seus labirintos. Os agenciamentos produzidos em ambas as situações tangenciam caminhos que se entrecruzam para cristalizar a personalidade dos reis; o que se evidencia no momento em que um e outro criam situações similares para dizer o caráter e a personalidade de cada um. As imagens produzidas conduzem a um movimento perpendicular em busca de um começo tortuoso o qual apresenta o rei árabe lutando para não definhar no labirinto pensado e construído pelo rei da Babilônia com a intenção de divertir-se com o infortúnio daquele que julga ser mais fraco. Tal procedimento contribui para que vejamos um episódio oposto ao que fora planejado por aquele rei e com atitudes surpreendentes. Aparentemente, espera-se que, uma vez preso ao labirinto, vagueando de um cômodo a outro e sem saber onde está a saída, padecendo de fome e sede, o rei árabe desvaneça e lá mesmo definhe: “Com o correr do tempo, veio a sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade de seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso até o fim da tarde” (BORGES, 1999, p. 676). As ações planejadas pelo rei da Babilônia expressam o grau de maldade com que este torna aquele impotente frente ao plano por ele desenvolvido. A “fragilidade” caracteriza a impotência do rei ante um acontecimento inesperado que o permite começar a vislumbrar novos horizontes, pensando em repetir tudo aquilo com 69 genuína autenticidade. Através de uma imagem projetada pelo rei da Babilônia, o rei árabe faz uso do senso comum e, em momento oportuno, executa a retaliação do reino e das pessoas que dele fazem parte, mormente, o rei. Vemos que “o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro” (DELEUZE, 2006b, p. 192). É o que acontece com o árabe após se deparar com o labirinto no qual esteve preso. Em meio à angústia, arquiteta um plano que viabilize o encarceramento definitivo do rei babilônico; todavia, para que isto se concretize é preciso delinear critérios que impeçam a libertação daquele que outrora fê-lo ser zombado perante estranhos. Após os instantes de conflitos, o rei árabe: “[...] regressou à Arábia, juntou seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilônia [...] dizimou sua gente e fez prisioneiro o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto” (BORGES, 1999, p. 676). Estamos diante de uma repetição cuja imagem testemunha o desejo de pensar o outro em si mesmo como forma de dizer o não dito, o pré-dito e suas implicações objetiva ou subjetivamente. Quando o rei aprisiona o humilde visitante não conta com a saída e tampouco com o retorno triunfal dele; porém, o discurso do representante e sua forma de representação mostram que mesmo não se deixando representar, ou conhecer, o rei da Arábia carrega consigo uma maldade singular. Ele encontra sua diferença e o seu começo quando estabelece relações de sentido entre o que sofreu e o que é capaz de fazer seu adversário sofrer. Deste modo, encontra sua “repetição autêntica num pensamento sem Imagem, mesmo que tenha acontecido à custa das maiores destruições, das maiores desmoralizações, e com uma obstinação [...]” (DELEUZE, 2006b, p. 193). O fato de ter construído um labirinto de bronze, com muitas escadas, portas e muros permite que o rei babilônico subestime a capacidade do rei árabe, por isso não imagina que possa existir uma superação e, portanto, uma fuga. Diferença e repetição se ajustam para mostrar a facies hippocratica do ser em busca de uma realização pessoal, visto que subsume os fatos, fazendo com que novos acontecimentos surjam e sejam decisivos. As linhas de fuga convergem para a estratificação dos seres, operacionalizando o processo de territorialização o qual conduz para a desterritorialização como forma de evidenciar a velocidade com que os fatos acontecem. Sendo assim, as linhas de fuga e a velocidade mensurável se 70 constituem como agenciamentos rizomáticos20, visto que os dois reis dirigem as situações em prol de seus próprios interesses e objetivos os quais são conectados incessantemente às cadeias de poder que perpassam tempo e espaço como significantes do processo de subjetivação que não admite sobrecodificação, pois, conforme Deleuze e Guattari (1995a, p. 17), “[...] um rizoma, ou multiplicidade, não se deixa sobrecodificar, nem jamais dispõe de dimensão suplementar [...]”. A desterritorialização é percebida através da multiplicidade de agenciamentos que reside no plano da consistência das ações que acompanham os reis tanto no labirinto projetado quanto no deserto. Isto porque, “as multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 17). Quando o rei árabe inicia o processo de retaliação não o faz apenas com a intenção de levar o rei da Babilônia ao deserto e deixá-lo padecendo até a morte, mas também para apresentar diferenças que se justificam por meio da criação dos labirintos. As formas utilizadas para aprisioná-los, embora divergentes, se encontram, posto que os engendramentos rizomáticos ainda que sejam em si mesmos tortuosos, se completam. Os reis agem como se cada um deles fosse apenas um em si mesmo. Se atentarmos para a construção/desconstrução articulada pelos reis notaremos que eles se comparam a Eudóxio e Epistemon21 que, no dizer de Deleuze (2006b, p. 191), são “um mesmo homem enganador, de quem é preciso desconfiar”. Neste caso, seria previsível que após ficar preso em um labirinto, rogando o socorro divino, o rei árabe tramaria algo para aprisionar o inimigo sem deixá-lo viver para narrar os acontecimentos. 20 Nas palavras de Deleuze e Guattari (1995a, p. 32-33), o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. [...] Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades [...]. O rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. 21 Cf. Pedro de Alcântara Figueira, Eudóxio, Poliandro e Epistemon são personagens da saga “A procura da verdade por meio da luz natural”, do filósofo Descartes. De acordo com este autor, Eudóxio é o próprio Descartes, Poliandro, o senso comum, aquele que não sabe nada do que ensina a sabedoria antiga e medieval e que rapidamente aprende aquilo que lhe ensina Eudóxio, não só porque ele não está tomado pelos preconceitos contidos na filosofia, como porque, como homem comum que é, é ele, de fato, que possui a sabedoria necessária às ações que se impõem no mundo prático. Epistemon, por sua vez, é o representante da filosofia. Ele é tratado no diálogo como alguém que só diz coisas disparatadas, que para nada servem. Disponível em: . 71 A Imagem do pensamento é capaz de idealizar e, posteriormente, reproduzir acontecimentos os quais se apresentam como uma luta incansável do ser contra uma imagem denunciada como sendo má, onde a repetição surge como algo desagradável que acentuará a duplicidade do Mal e do Bem. Vale salientar que na acepção das sociedades o Bem deve vencer o Mal, encontrando assim, a autenticidade na repetição. As linhas de fuga marcam o processo de desterritorialização/reterritorialização com o intuito de canalizar os sintagmas reterritorializados a novos acontecimentos, sem que se perca de vista a finalidade primeira: a morte, elemento propulsor para o desprendimento desse múltiplo que gera acontecimentos rizomáticos os quais se ligam produzindo agenciamentos consistentes também no plano da exterioridade, independente de suas dimensões, possibilidades, impossibilidades e necessidade de realização. Enquanto permanecem presos em “seus” labirintos, os reis se fazem prisioneiros de suas próprias cavernas, em razão de substituírem o erro pela ilusão de que, uma vez objetando os acontecimentos, estariam libertos do eu substancial, esquecendo-se que a presença do eu rachado22 marcará essa busca incessante pelas ilusões exteriores à razão. O sentimento de libertação dá a cada rei a sensação de estar agindo de maneira correta, porque ambos satisfazem a esse eu substancial sem levar em consideração esse “eu profundamente rachado pelo tempo”23, indo ao encontro da morte especulativa, cujo “pensamento, em seu estado de natureza, confunde seus interesses e deixa seus domínios imbricarem uns nos outros, o que não impede que ele tenha no fundo, uma boa natureza [...]” (DELEUZE, 2006b, p. 200). Em contextos divergentes, os reis são instigados a pensar sobre em quais perspectivas um derribará o outro. O ato de pensar, neste caso, torna-se objeto de um encontro fundamental, pois, a partir do instante em que eles se encontram na condição de representantes de um pensamento previamente organizado, partem para a execução do plano visando a objetos que, em alguns momentos, escapam do controle de cada um deles. Um e outro terminam por desenvolver violências que produzem uma inimizade a qual despreza quaisquer laços afetivos, levando-os a cometer agressões 22 Expressão utilizada por Deleuze e Guattari no livro Mil Platôs. 1996, v. 3. 23 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006b, p. 199. 72 que os “coloca em face de seu elemento próprio, como de seu disparate, ou de seu incomparável”24, porque cada um executa seu plano em função da necessidade do Eu penso, tendo-o como máxima para justificar suas atitudes. Ao que nos parece, as linhas de fuga encaminham para a ruptura dos rizomas. Tudo isto como forma de desterritorializar o rei, antes territorializado, mas também para mostrar que a segmentaridade, organização e estratificação da qual ele faz parte, uma vez ameaçada ou destruída, leva-o a produzir novos rizomas que terminam por estabelecer uma complementariedade com outros já existentes, processo no qual as linhas de fuga sempre remetem umas às outras. Na realidade, os sujeitos se desdobram para evidenciar a estranheza dos acontecimentos. Primeiro, o rei da Babilônia prende em seu labirinto o rei Árabe, como forma de zombar da simplicidade do visitante; depois, o rei Árabe prende até perecer de fome e sede, aquele que outrora o aprisionou, para mostrar que também era detentor de força, poder e inteligência. Alegoricamente, os reis fazem um mapeamento que é construído a partir de experimentações reais: há um labirinto que foi edificado para aprisionar pessoas e estas servirem como diversão para aqueles que acompanhavam o desespero delas em busca de uma saída; e há um deserto, o qual foi escolhido para revidar algo anteriormente vivenciado. Ao mapear a retaliação pensa-se em algo indelével, pois o mapeamento faz parte do rizoma e permite a conexão entre todas as dimensões das raízes desses labirintos. No dizer de Deleuze e Guattari (1995a, p. 18), “faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto, as formações que dão novamente o poder a um significante, atribuições que reconstituem um sujeito [...]”. Na ocasião em que há essa ruptura entre os rizomas, os reis se separam um do outro sem levar em consideração que estão ligados; e, mesmo havendo uma quebra, ou um achatamento rizomático, eles permanecerão ligados à raiz desse rizoma, que é a sua própria história. Seja como for, haverá algo ligado à linha de fuga, fazendo com que permaneça urdida ao tecido rizomático de cada rei. Se se considerar o labirinto como rizoma para a desertificação apregoada pelo rei árabe, o rizoma labirinto e o rizoma deserto desempenham o papel do conjunto de agenciamentos rizomáticos cujas raízes se ligam formando uma 24 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006b, p. 205. 73 multiplicidade onde a produção do inconsciente gerará novos labirintos-grãos de areia e novos engendramentos de raízes desterritorializadas em suas próprias estratificações, em seus próprios desejos. Isto porque, “[...] um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa, mesmo que constitua suas próprias hierarquias [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 31). Há várias entradas e saídas nas linhas de fuga, que se referem aos mapas rizomáticos de cada rei, bem como aos agenciamentos maquínicos de desejo, os quais estão ligados aos planos de consistência cuja multiplicidade propiciará linhas de fuga que se desdobram em novos agenciamentos os quais culminam na desterritorialização. Embora os mapas rizomáticos apresentem linhas de fuga que se ligam às linhas de consistência formando novos rizomas e agenciamentos desterritorializados, os corpos sem órgãos indicam que o deserto é povoado pelas multiplicidades de possibilidades, impossibilidades e pela necessidade de mostrar que esses rizomas se ligam e unem os devires e as desterritorializações formando reterritorializações para assegurar as multiplicidades. Os corpos sem órgãos25 se apresentam castrados, porém com cicatrizes que remetem à negação. Ao que nos parece, nada há de positivo, as multiplicidades indefinidas e indecomponíveis traduzem tão somente a falta de positividade, revelando um eu sinto. Eles sentem que o uno se transforma em múltiplos desejos de destruição do reino, das pessoas, do próprio rei; destruição que mapeia destruição, numa angústia que reflete os corpos sem órgãos lutando pelo “preenchimento” dos devires de vazio que os acompanha. Não se trata de representação, mas de preencher as lacunas, os vazios e os múltiplos devires, as intensidades dos anseios, as velocidades e os agenciamentos maquínicos que somente serão decompostos se os elementos da natureza atenderem às suas necessidades. De um lado, multiplicidades que se dividem 25 De acordo com François Zourabichvili, nO vocabulário de Deleuze, corpo sem órgãos é um corpo intenso percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações de sua amplitude; sendo assim, o corpo não tem órgãos, e sim limiares ou níveis. Para Antonin Artaud, o corpo nunca é um organismo. Deleuze (1996, p. 9-10) afirma que “ele é não desejo, mas também desejo. Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite. [...] mas já se está sobre ele arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos”. 74 mudando de natureza (o labirinto projetado); de outro, multiplicidades que se dividem sem mudar de natureza (o deserto), “distâncias que não variam sem entrar em outra multiplicidade, que não param de fazer-se e desfazer-se, comunicando, passando umas nas outras no interior de um limiar, ou além ou aquém” (DELEUZE; GUATTARI, 1995a, p. 46). Os agenciamentos maquínicos que produzem o desejo de reparação expõem corpos sem órgãos em busca de agenciamentos que os completem, fazendo com que o inconsciente de cada rei contemple novos agenciamentos os quais, desta vez, pertençam aos dois, tendo em vista que deverão produzir acontecimentos que satisfaçam a ambos. Isto porque, as multiplicidades devem formar agenciamentos únicos, reproduzindo o falar e o agir tanto do representante árabe quanto do babilônico. Conforme Deleuze e Guattari (1995a, p. 51) “os árabes são uma massa organizada, armada, extensiva, espalhada em todo o deserto [...]”, já não se pode dizer o mesmo em relação aos babilônicos que, não conhecendo o deserto, não têm como escapar da fome, sede e insolação; sendo expostos à desterritorialização definitiva, visto que não têm condições de competir com a maquinização do poder, onde os agentes coletivos engendram situações as quais não permitem que se compreenda a reprodução de enunciados pessoais, mas a observância dos rizomas que se completam perfilhando os corpos sem órgãos, tornando-os corpos vivos e fervilhantes e, por que não dizer, indivíduos realizados. Os corpos sem órgãos buscam um preenchimento através da dor; o que até certo ponto caracteriza-se como masoquismo dos reis. A dor, nesse caso, é apregoada pela forma como cada um administra o processo de retaliação, sobretudo, “os modos do masoquista-rei no deserto que ele fez nascer e crescer” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 12). Os masoquistas-reis26 tangenciam seus corpos para um vazio que nunca é preenchido, por isso a necessidade de buscar múltiplos rizomas; somente assim, eles teriam condições de equilibrar os vazios constantes enquanto lutavam por esse preenchimento de maneira incessante. Os corpos são represas, vasos comunicantes que povoam os corpos sem órgãos; por esse motivo precisam ser povoados através de intensidades e de agenciamentos consistentes os quais culminam sempre com a 26 Expressão utilizada por Deleuze e Guattari no livro Mil Platôs, 1996, v. 3. 75 desterritorialização desses corpos em busca de reterritorializações cujas intensidades pudessem circular. Deleuze e Guattari (1996, p. 13) afirmam que um corpo sem órgãos “faz passar intensidades, ele as produz e as distribui num spatium ele mesmo intensivo, não extenso”; ou seja, “ele não é espaço e nem está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau – grau que corresponde às intensidades produzidas”. Os corpos sem órgãos são as matérias não estratificadas que aparecem no limiar da desterritorialização, onde a multiplicidade visa a desenvolver a oposição do uno e do múltiplo. Diferença e repetição expõem o continuum ininterrupto desses corpos na medida em que a intensidade dos desejos começa a ser preenchida. O corpo castrado, aspirando às multiplicidades rizomáticas, se sente ainda vazio, um espaço que tem o preenchimento constantemente oscilante; pois, ora os planos de consistência se concretizam (quando o rei vaguea pelo labirinto perdido, clamando o socorro divino), ora permanece vazio (quando o rei encontra a saída do labirinto). Quando acontece o encontro do rei árabe com o rei da Babilônia para que a revanche aconteça, tem-se novamente essa oscilação. Eles têm os agenciamentos maquínicos olvidando a desterritorialização dos rizomas, porque houve a traição ou maldição dos desejos do rei babilônico, que agora se encontra em poder do inimigo e espera para que as multiplicidades rizomáticas se liguem formando um agenciamento único. Desta vez, o corpo sem órgãos seria preenchido pelo desejo de realização, onde novas direções conduziriam a novas descobertas e a novos agenciamentos desterritorializados à medida que o plano de imanência desejo/morte/realidade se concretizasse. O desejo traz consigo o ideal transcendente de um fantasma da falta que almeja preencher seus vazios e sentir prazer através da concretude dos planos. Isto ocorre com o rei da Babilônia quando se diverte com a angústia do rei da Arábia à procura de uma saída do labirinto projetado. O corpo sem órgãos daquele rei busca o prazer por meio da humilhação, da angústia e do sofrimento por que faz passar o visitante. O prazer do rei deve ser postergado, para que ele encontre um liame de realização e permaneça com o tronco-galhos27 em plena atividade prazerosa. 27 Em Mil Platôs, v.1, Deleuze e Guattari afirmam que existem estruturas de árvores ou raízes; contudo, inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz pode recomeçar e brotar. Desta forma, os filamentos se conectam com as raízes formando galhos e, por conseguinte, originando os tronco-galhos. 76 À medida que se depara com a aflição e humilhação do visitante, os desejos e o prazer do rei babilônico ante o sofrimento do outro se multiplicam porque o masoquista aos poucos consegue preencher os vazios com alegria, distribuindo a si próprio intensidades de prazer que finalizam com agenciamentos rizomáticos reterritorializados, posto que não há impossibilidades e a alegria o impedirá de sentir-se culpado, com vergonha ou angustiado com o que estava fazendo ao rei árabe. Se se considerar o que Deleuze e Guattari (1996, p. 16) afirmam em relação ao masoquista, ao dizer que ele “serve-se do sofrimento como de um meio para constituir um corpo sem órgãos e depreender um plano de consistência do desejo”, então, o corpo sem órgãos do rei da Babilônia está completo. Nada mais lhe falta. Durante o tempo em que o rei da Arábia planeja conduzir aquele que o humilhou ao deserto, aciona o plano de consistência para que o seu desejo se torne real e assim o corpo sem órgãos também seja preenchido. A intensidade com que ambiciona a revanche o conduz à desterritorialização visando a um plano de imanência que finalize com a morte do rei da Babilônia e remeta novamente o árabe a uma realidade circundante. O masoquismo do rei da Arábia conduz a um corpo sem órgãos que somente será completo com a morte como sendo o elemento primordial para a sua realização: “[...] desatou-lhes as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede” (BORGES, 1999, p. 676), e o prazer por meio de uma alegria definitiva, bem como de um plano de consistência cujo agenciamento de desejo seja desestratificado em um plano de consistência em si próprio. É preciso que os agenciamentos rizomáticos se unam ao tronco-galhos como forma de gerar multiplicidades de imanência, mas também um conjunto de corpos sem órgãos que, segundo Deleuze e Guattari (1996, p. 19), aparecem: [...] num movimento de desterritorialização generalizada onde cada um pega e faz o que pode, segundo seus gostos, que ele teria conseguido abstrair de um Eu, segundo uma política ou uma estratégia que se teria conseguido abstrair de tal ou qual formação, segundo tal procedimento que seria abstraído de sua origem. O corpo sem órgãos passa a ser um fenômeno que envolve sedimentações, funções, ligações e transcendências28 num liame cuja estratificação se desdobra em planos de consistência que perpassam as multiplicidades e agenciamentos 28 Expressões utilizadas por Deleuze e Guattari, no livro Mil Platôs. 1996, v. 3. 77 desterritorializados em busca de reterritorializações. O corpo sem órgãos é o que “resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 12). As relações de corpos, dos recortes por que passam os corpos, do corpo aprisionado e condenado, expõem as transformações contínuas cuja desorganização do Corpus e do Socius29 faz parte dessas transformações e das intensidades que atravessam esses corpos, tornando a experimentação algo singular ao corpo sem órgãos. Concordamos com Deleuze e Guattari (1996, p. 22) quando afiançam que: Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações medidas à maneira de um agrimensor. No limite, desfazer o organismo não é mais difícil do que desfazer os outros estratos, significância ou subjetivação. A significância cola na alma assim como o organismo cola no corpo e dela também não é fácil desfazer-se. Sendo o corpo o campo da imanência do desejo, é por meio dos desdobramentos dos estratos que surgem a organização e o desenvolvimento dos planos de consistência, os quais se transformam em agenciamentos maquínicos que atravessam esses estratos redobrando-os agora em novos acontecimentos. O rizoma permanece no limiar dos desejos, pois estes significam não a falta, mas a criação, a construção e o preenchimento destes pelas vias do prazer e da alegria incondicionais. O corpo sem órgãos não cessa de oscilar entre as estratificações e o plano de consistência. Agindo desta maneira corre-se o risco de levar os estratos ao próprio suicídio, ao buraco negro, ao invés de submeter apenas o outro (o rei da Babilônia) à morte. Mas, ainda que haja essa possibilidade, ambos têm seus corpos sem órgãos prontos para proliferar as sedimentações sem que deem lugar a degenerações, visto que predomina o desejo inclusive do próprio extermínio. A partir daí, os corpos dos reis revelam suas conexões de desejos, continuum de intensidades cujas maquinizações ramificam-se em novas máquinas rizomáticas, porque o corpo sem órgãos é, segundo Deleuze e Guattari (1996, p. 24), “[...] necessariamente um Lugar, necessariamente um Plano, necessariamente um 29 Corpus e Socius são expressões usadas por Antonin Artaud quando declara guerra aos órgãos. Ver Mil Platôs, 1996, v. 3, p. 10. 78 Coletivo (agenciando elementos, coisas, vegetais, animais [...], porque não existe ‘meu’ corpo sem órgãos, mas ‘eu’ sobre ele”, ou o que resta desse “eu” invariável atravessando limites. Frente ao exposto, cabe-nos perguntar: Finalmente, o que induziu o rei da Babilônia a tomar tal atitude contra o rei da Arábia? Haveria algo além do masoquista-rei? Tudo leva a crer que o rei da Babilônia ao intentar contra o rei árabe acionou o organismo como estrato, e com ele, o tecido canceroso30 louco que prolifera e se apodera de tudo: do devir-animal, do devir-molecular, do plano de consistência, das coisas, potências, dos estratos profundos e até mesmo dos corpos sem órgãos; sendo necessário, no dizer de Deleuze (1996, p. 26), que o organismo “reconduza a célula cancerosa à sua regra ou a estratifique” para que se torne possível tanto uma fuga para fora do organismo quanto à fabricação de um “novo” corpo sem órgãos sobre o plano de consistência. Independente de o rei ter ativado ou não as células cancerosas, todos têm o corpo sem órgãos pronto para corroer, aniquilar e disseminar, no campo social, as relações de violência e rivalidade numa intensidade e velocidade arrojadas sem comprometer as articulações rizomáticas. Os reis engendram os planos de consistência e, independentemente dos buracos negros, vão à busca de preencher “seus” corpos cujos órgãos são intensidades produzidas através de agenciamentos coletivos capazes de originar multiplicidades e conexões maquínicas, isto porque: [...] o conjunto de todos os CsO31 não podem ser obtidos sobre o plano de consistência senão por intermédio de uma máquina abstrata capaz de cobri-lo e mesmo de traçá-lo, [...] de assegurar suas conexões contínuas, suas ligações transversais (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 29). Caso contrário, os corpos sem órgãos permanecerão marginalizados. Vale salientar que o processo de destruição implementado pelos dois reis remete-nos às palavras de Fitzgerald (1936, p. 341 apud DELEUZE, 2009, p. 157) quando menciona que “toda vida é, obviamente, um processo de demolição”; isto porque na busca de preencher seus corpos sem órgãos, os reis vivenciam esse 30 Deleuze e Guattari utilizam essa expressão para dizer que as células possuem tecidos cancerosos que se proliferam a cada instante, sendo necessário que o organismo a reconduza à sua regra ou a reestratifique. Ver Mil Platôs, 1996, v. 3, p. 26. 31 Expressão usada por Deleuze no livro Mil Platôs, v.2, a qual significa Corpos sem Órgãos. Este conceito será melhor explicitado ao longo da nossa pesquisa. 79 processo de destruição de si mesmos, um aniquilamento cujos corpos quebrados apresentam músculos pisados e em cujas fissuras se pode observar a mortalidade da alma por meio dos impulsos produzidos por eles na tentativa de realizar seus objetivos. Ao ambicionar a realização dos acontecimentos, os reis acionam o desejo pleno de efetuação onde o corpo sem órgãos se satisfaz através da mistura corporal a qual preside a vontade trágica como busca por um prazer onde o rizoma atua como “a multiplicidade pura e sem medida, a malta32, a irrupção do efêmero e potência da metamorfose” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 12-13). Os espaços são territorializados e desterritorializados por ambos os reis na medida em que arquitetam o plano que os levará à morte. A violência e as perversões com que maquinam acabar um com o outro projetam sujeitos que alimentam o espírito de violência e ódio, fazendo com que perpassem tempo e espaço de modo que tudo o que sentem transpõe-se no devir-animal cujas ramificações e encadeamentos (desse devir-animal) passam a ser vivenciados enquanto “afectos33 que atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra. Velocidade de desterritorialização do afecto [...] exteriorizados mediante um sistema de revezamentos e ramificações, de encadeamentos extrínsecos que pertencem à máquina de guerra” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 18). O comportamento de ambos os reis se assemelha a essa máquina de guerra onde os agenciamentos maquínicos acabam impondo novas leis aos vencidos: [...] na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos (BORGES, 1999, p. 676). Como se pode notar, a montagem e desmontagem das ações se metamorfoseam existindo apenas nas suas próprias independências; ou seja, as ações existem sem a necessidade de apropriação da ideia do outro, a partir de fluxos e correntes que culminam com recorrências de atitudes as quais coexistem 32 Segundo Deleuze (1997b, p. 17), a lei de malta proíbe “escolher” o inimigo e entrar num face a face ou em distinções binárias. 33 Cf. Daniel Lins, afecto, em Deleuze, é uma potência totalmente afirmativa. O afecto não faz referência ao trauma ou a uma experiência originária de perda [...]. O afecto é não-pessoal. Nem pulsão, nem objeto perdido, mas devir não humano do homem. In: LINS, Daniel. Juízo e verdade em Deleuze. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005. 80 num campo de interação que os acompanha, onde o interior de cada indivíduo é explicitado revelando as fissuras e os liames rizomáticos. As situações vivenciadas pelos personagens do conto borgeano apresentam operações-limites onde cada passo ou atitude representa um novo acontecimento ou uma nova oportunidade de projetar labirintos rizomáticos que remetam ao problema não como um obstáculo, e sim, como a “ultrapassagem do obstáculo, uma pro-jeção, isto é, uma máquina de guerra”34 que surge em diferentes espaços coadunando-se tanto com os espaços lisos quanto com os estriados, os quais, segundo Deleuze e Guattari (1997b, p. 180), “num caso organiza-se até mesmo o deserto; no outro, o deserto se propaga e cresce; e os dois no mesmo tempo”. Mas, essas combinações de espaços não impedem a delimitação da territorialização/desterritorialização visto que diferenças e repetições assumem movimentos perpendiculares, mostrando que no deserto ou fora dele o espaço liso e o estriado se entrecruzam através de uma mobilidade passando uns sobre os outros. Ainda que o tecido seja infinito, como é o caso do deserto, implica também um lugar fechado em si mesmo; pois os fios dessa urdidura e os da trama desenvolvida pelos personagens amarram os fios do tecido arenoso que os conduz ao deserto. Tal fato ocorre quando, no primeiro caso, o rei da Babilônia aprisiona o rei árabe no labirinto de tecido liso o qual possuía lados fechados; portanto, um espaço delimitado, com larguras também delimitadas e, no entanto, com fissuras nesse mesmo tecido que permitiram ao rei caminhar entre liso e estriado encontrando a saída. O mesmo processo ocorre no segundo caso, quando o rei árabe inicia a retaliação levando o rei da Babilônia para o tecido estriado, arenoso e liso, que é o deserto, deixando-o perecer de fome e de sede. Embora os personagens passem de um tecido liso a um estriado, não estão presos a movimentos circulares; ao contrário, a perpendicularidade se faz presente para urdir esses tecidos. Por esta razão, a montagem e a desmontagem desses espaços criam novas possibilidades de máquinas de guerra que se constituem em estriamentos inquietantes cujos espaços (lisos e estriados) tencionam preencher o corpo sem órgãos que vaguea pelo labirinto, mas também o corpo sem órgãos que caminha pelo deserto, em meio ao vento, aos ruídos e tempestades de areia. 34 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1997b, v. 5. p. 26. 81 O espaço liso possui uma desterritorialização superior ao estriado; com isso, a oposição liso e estriado remete a complicações, alternâncias e sobreposições complexas, porque o deslocamento que se faz do liso para o estriado, ou o inverso disso, não é nada fácil. Não se pode concentrar as ações apenas no liso ou apenas no estriado, isto é demasiadamente difícil; o que se pode é estabelecer uma relação de alternância, de vicissitudes entre ambos, para que seja possível articular as dimensões perpendiculares. O espaço liso permanece para que dele passe a existir o estriado ao passo que o deserto, como englobante, devora o rei da Babilônia. Sendo assim, “a estriagem da terra implica esse duplo tratamento do liso: de um lado, levado ou reduzido ao estado absoluto de horizonte englobante; de outro lado, expulso do englobante relativo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 206). Como se pode observar, no instante em que o rei da Arábia encontra a saída do labirinto passa da condição de englobado para englobante; isto porque ele não se deixou tragar pelo labirinto. Mas, quando o rei da Babilônia é levado para o deserto e permanece naquele lugar, passa a ser um englobado, pois foi devorado pelo ermo estabelecido através do tecido liso e arenoso que o consumiu após não ter mais resistido à fome e à sede. Os corpos sem órgãos se apresentam preenchidos de diferentes formas, mas a satisfação que cada um dos reis sentiu pode ser explicitada a partir da realização de seus objetivos. Por meio do devir-animal as linhas de fuga anunciam um mesmo querer e uma satisfação que se institui através dos afectos e das máquinas de guerra que aos poucos são desenvolvidas pelos personagens como rizoma existencial mediante o qual o corpo sem órgãos ganha vida. Lembremo-nos que a satisfação anunciada pelos reis nos momentos em que estão sendo “devorados” pelos tecidos lisos e estriados passa a ser desdobrada e redobrada na “loucura”, haja vista as ações desenvolvidas expressarem, até certo ponto, um ato de “delírio” que culmina por justificar a própria existência visto que se torna a realização do desejo vital e rizomático. Mas, o preenchimento dessa satisfação, desse desejo, atua como uma ética e uma estética do transitório, onde a expressão do desejo somente é preenchida quando os reis executam seus planos e alcançam o efeito desejado. Por mais que os reis preencham seus vazios e revidem os acontecimentos, nunca se chega ao limite do corpo sem órgãos, uma vez que ele é o seu próprio limite e, assim sendo, há sempre o estrato do estrato, do estrato... dobrando-se, desdobrando-se e redobrando-se em novos estratos ad infinitum. 82 Temos um estilo aveludado que permite ao leitor atravessar a languidez saborosa que norteia a narrativa na certeza de que as palavras o conduzirão à transparência da mais nobre e incurável embriaguez, exaltando ainda, a sensibilidade e eloquência que se precipitam como mais um labirinto, o qual arrasta os reis para o seu abismo quando poderia poupá-los. Borges assim o faz porque sabe que são capazes de suportar e percorrer o espiral labiríntico para o qual foram conduzidos. Tais aspectos também propiciam um gozo intenso na alma humana, pois, enquanto lutam, têm a sensação de avançar e alcançar seus objetivos. Percebemos isto quando o rei da Babilônia ocupa a posição de agenciador do sofrimento “alheio”, a satisfação de quem detém o poder e não se imagina no lado oposto; porém, no momento em que os papéis são invertidos é possível vislumbrá-lo frente a sua condição de inferioridade, de incapacidade de ordenar, de insegurança, de medo. Enquanto um morre no deserto, o outro sobrevive para relatar o que ocorreu. Ao mesmo tempo em que se torna livre “de sua sombra”. Autor e leitor são inseridos no labirinto dos reis para decifrar o dizível-indizível de uma linguagem que não esgota o seu dizer, posto que permite ao espectador inferir as múltiplas possibilidades desvendando o universo que permeia o conto: melancolia, angústia, dor, sofrimento, mistérios, fascínio... os principais “rudimentos” do autor para despertar a atenção e o interesse do leitor ávido por descobrir os mistérios que envolvem sua obra. O cunho trágico é delineado como mythos cuja intriga não trata, necessariamente, da interação dos sujeitos, mas da condição humana de cada ser, possibilitando e conferindo sublimidade à narrativa em função de haver uma “independência da razão humana no que diz respeito à natureza considerada como poder”, pois à medida em que há “contradição entre os impulsos e a razão, os impulsos perdem toda influência sobre a legislação da razão: o caráter sublime se revela na adversidade” (MACHADO, 2006, p. 67-68). Para Schiller (apud MACHADO, 2006, p. 70-71) o sublime atua como “expressão de uma perda sofrida no nível do sensível e ultrapassada, superada, no nível da moral”, é o que “apraz imediatamente por uma resistência ao interesse dos sentidos [...] é o combate ao afeto, à sensibilidade, que torna sensível essa força supra-sensível (sic) de resistência”. 83 Silêncio e ironia são utilizados como elementos propulsores para falar da morte: o encontro com o ‘eu’; a trama; a saída do labirinto; o encontro ‘eu’ e ‘outro’; o encontro com a morte. Por esta razão, conforme Derrida (1995, p. 6), “entre o autor e o analista35, seja qual for a distância, sejam quais forem as diferenças, a fronteira parece, portanto, incerta” e deve ser transposta em um determinado ponto para que haja “uma análise e um comportamento adequado e normalmente ritualizado”. É o que se pode observar no comportamento entre os dois reis: crises existenciais que precisam ser resolvidas de maneira justa ou não e, se houver uma carência no que se refere à justiça, esta sobreviverá, mesmo que se cogite a possibilidade de um “não-o-fazer”. É impossível dissociar o maior benefício e a maior privação, porque mesmo que um dos reis tenha morrido no deserto e tenha havido a ‘recusa’ de um nome, de uma vida, e o outro se sinta feliz, livre, poderoso e autônomo, continuará necessitando da parte que abandonou e do que ela poderia lhe oferecer. “É impossível construir um conceito não contraditório ou coerente do narcisismo, e, portanto, dar um sentido unívoco ao eu. É impossível falá-lo ou agredi-lo, como “eu” e, segundo a expressão de Baudelaire, ‘sem-cerimônia’” (DERRIDA, 1995, p. 23). Em suma, a morte atua como uma foice que é diferida indiscriminadamente, sem levar em consideração o status daqueles a quem escolhe, mostrando sinal de absoluta igualdade entre os seres, nivelando-os aos mesmos destinos, atribuindo ao aniquilamento um jogo cuja arte de narrar confere à obra um requinte de crueza na tentativa de revelar também o descontentamento com a vida. Esse descontentamento e outros aspectos serão expostos no conto o qual discutiremos em seguida. 2.3 A LOTERIA EM BABILÔNIA E O CREPÚSCULO DO AMANHECER O conto intitulado A loteria em Babilônia36 tem início com um enigma cujo homem, como todos os homens de Babilônia, foi procônsul; como todos, foi escravo; conhecia a onipotência, o opróbrio, os cárceres. À mão direita faltava-lhe o indicador 35 Entenda-se como analista(s) o(s) leitor(es). 36 No livro Ensaio Autobiográfico, Borges (2009, p. 62), afirma que os contos A loteria em Babilônia; A morte e a bússola e As ruínas circulares foram escritos (em sua totalidade ou em parte) do tempo roubado à biblioteca, os quais acompanhados de outras narrativas, transformaram-se nO jardim das veredas que se bifurcam, livro que foi ampliado e cujo título mudou, em 1944, para Ficções. 84 e, através de um rasgão que a capa possuía, dava para ver em seu estômago uma tatuagem vermelha que, segundo ele, era o segundo símbolo: Beth37. Esta letra, nas noites de lua cheia, conferia poder sobre os homens cuja marca é Ghimel, mas o subordinava aos de Aleph, os quais, nas noites sem lua, deviam obediência aos Ghimel. No crepúsculo do amanhecer, num porão, ele degolou, diante de uma pedra negra, touros sagrados. Durante um ano da lua foi declarado invisível; gritava e não lhe respondiam, roubava o pão e não o decapitavam. Conheceu a incerteza; contudo, num aposento de bronze, diante do lenço silencioso do estrangulador, a esperança lhe foi fiel. No rio dos deleites, o pânico. Heraclides Pôntico narrava, “com admiração, que Pitágoras lembrava-se de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda algum outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não precisava38 recorrer à morte, nem mesmo à impostura” (BORGES, 1999, p. 505). Todas essas atrozes variedades foram devidas a uma instituição que outras repúblicas ignoravam: a loteria. Da mesma forma que a sua história não era indagada, os magos também não conseguiam chegar a um acordo; sabia-se de seus poderosos propósitos, o que podia saber da lua o homem versado em antropologia. Ele era de um país vertiginoso onde a loteria era parte principal da realidade. O personagem afirmava que até o dia de hoje ponderava tão pouco nela como na conduta dos deuses indecifráveis ou do coração dele. Agora, longe de Babilônia e de seus queridos costumes, pensava na loteria e nas conjecturas que no crepúsculo murmuraram os homens disfarçados. O homem afirmava que antigamente seu pai contava que a loteria em Babilônia era um jogo de caráter plebeu, cujos barbeiros vendiam, por moedas de cobre, retângulos de ossos ou de pergaminho adornados de símbolos. Um procedimento elementar era verificado em pleno dia: os contemplados por meio de um sorteio recebiam, sem outra corroboração da sorte, moedas de prata. Tais 37 De acordo com pesquisa online, as letras do alfabeto hebraico apresentadas por Borges (no conto em análise) significam respectivamente: Beth (Bet בּ), o propósito da Criação, uma morada para Deus neste mundo inferior; Ghimel (guímel ג), a busca de recompensa e punição no contexto do mundo físico; Aleph (álef א), paradoxo, o selo Divino no ser humano. Disponível em: . 38 A forma verbal preciso, primeira pessoa do singular do presente do indicativo e original do conto, sofreu alteração na citação para precisava, primeira pessoa do singular do pretérito imperfeito do indicativo, para atender às adequações do nosso texto. 85 “loterias” fracassaram porque não se dirigiam a todas as faculdades do homem, apenas à sua esperança. Diante da indiferença pública, os mercadores que fundaram essas loterias começaram a perder dinheiro, por isso ensaiou-se uma reforma: “a interpolação de uns poucos números adversos no censo de números favoráveis” (BORGES, 1999, p. 506). Essa reforma apregoava que os compradores de retângulos numerados corriam o risco de ganhar duplamente (uma soma) e de pagar uma multa, às vezes considerável. Esse perigo despertou o interesse do público, visto que a cada trinta números favoráveis havia um número nefasto. A partir de então, os babilônios entregaram-se ao jogo e aquele que não tentava a sorte era considerado um timorato. Após algum tempo, aquele que não jogava era desprezado pelos demais. O mesmo acontecia aos perdedores que abandonavam a multa. A Companhia (como passou a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, os quais não podiam cobrar os prêmios se faltasse na caixa a quantia quase total das multas. Neste momento, deu-se início a uma ação contra os perdedores, pois o juiz condenou-os a pagar a multa original sob pena de passar uns dias na prisão. Todos preferiram ser presos, desta forma defraudariam a Companhia. Dessa “ameaça” de uns poucos nascia todo o poder da Companhia: seu valor eclesiástico, metafísico (BORGES, 1999, p. 506). Pouco depois, os relatórios dos sorteios começaram a publicar, ao invés das enumerações de multas, os dias de prisão designada a cada número infausto. Esse laconismo, embora tenha passado quase despercebido, fez com que surgissem os primeiros elementos não pecuniários na loteria. Solicitada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números adversos. Ninguém ignorava que o povo de Babilônia fosse muito devotado à lógica, e ainda à simetria. “Era incoerente que os números de sorte se computassem em redondas moedas e os infaustos em dias e noites de cárcere” (BORGES, 1999, p. 506-507). Por este motivo, alguns moralistas raciocinaram que a posse das moedas não poderia determinar a felicidade, certamente haveria outras formas de fortuna, talvez até mais diretas. Não obstante a isso, outras inquietações propagavam-se nos bairros mais humildes: os membos do colégio sacerdotal multiplicavam as apostas e, uma vez detentores do poder, gozavam de todas as vicissitudes do terror e da esperança. Os 86 pobres, por sua vez, nutriam uma inveja inevitável, pois se viam excluídos desse vaivém. O justo desejo de que todos, pobres e ricos, participassem da loteria de igual modo, ocasionou uma grande agitação, cujo tempo não conseguiu apagar da memória dos babilônios. Alguns, devido à sua obstinação, não compreenderam ou fingiram não compreender que se tratava de uma ordem nova, de uma etapa necessária. Certa vez, um escravo roubou um bilhete carmesim, que no sorteio o fez merecedor a que lhe queimassem a língua. Essa pena estava fixada no código. Muitas foram as opiniões: alguns babilônios disseram que ele merecia um ferro abrasador, pois era um ladrão; outros, generosos, que deveriam condená-lo ao carrasco; assim o havia determinado o acaso... Houve muitos vandalismos e derramamento de sangue, mas finalmente a gente babilônica impôs sua vontade contra a obstinação dos ricos. O povo conseguiu seus fins generosos: primeiro, conseguiu que a Companhia aceitasse a soma do poder público; segundo, obteve que a loteria fosse secreta, gratuita e geral, ficando abolida a venda mercenária de sortes. “Iniciado nos mistérios de Bel, todo homem livre automaticamente participava dos sorteios sagrados, que se efetuavam nos labirintos do deus a cada sessenta noites e que determinavam seu destino até o próximo exercício” (BORGES, 1999, p. 507). As consequências eram incalculáveis, pois uma boa jogada poderia motivar tanto a elevação ao concílio de magos quanto à detenção de um inimigo (público ou íntimo), mas também “o encontrar, na pacífica treva do quarto, a mulher que começa a inquietar-nos ou que não esperávamos rever; uma jogada adversa: a mutilação, a variada infâmia, a morte” (BORGES, 1999, p. 507). Outras vezes, o grosseiro assassinato de C, a apoteose misteriosa de B surgia como uma solução perfeita para trinta ou quarenta sorteios. Combinar as jogadas era algo difícil, mas os indivíduos da Companhia eram (e são), além de astuciosos, todo-poderosos. “Em muitos casos, o conhecimento de que certas felicidades eram simples obra do acaso teria diminuído sua virtude; para evitar esse inconveniente, os agentes da Companhia usavam das sugestões e da magia” (BORGES, 1999, p. 508); na realidade, eles se utilizavam de secretos passos para investigar as íntimas esperanças e os íntimos terrores de cada indivíduo; para isso dispunham de astrólogos e espiões. 87 É importante mencionar que “havia certos leões de pedra, havia uma latrina sagrada chamada Qaphqa39, havia algumas fendas no poeirento arqueduto que, segundo opinião geral, levaram à Companhia; as pessoas malígnas ou benévolas depositaram delações nesses lugares” (BORGES, 1999, p. 508); havia também um arquivo alfabético utilizado para recolher essas informações de variável veracidade. Não faltavam murmúrios. Mas, com sua discrição habitual, a Companhia preferiu não responder diretamente. Rabiscou nos escombros de uma fábrica de máscaras um argumento breve que figura agora nas escrituras sagradas. Essa obra doutrinal advertia que a loteria nada mais é do que a interpolação do acaso na ordem do mundo; desse modo, aceitar erros não significava contradizer o acaso, isto era corroborá-lo. Observava ainda que os leões e o recipiente sagrado, mesmo que não desautorizados pela Companhia, funcionavam sem garantia oficial. Tal declaração abrandou a opinião pública e também produziu efeitos não previstos pelo autor, modificando veementemente o espírito e as operações da Companhia. Entretanto, por inverossímel que fosse, ninguém, até então, havia ensaiado uma loteria geral dos jogos. O babilônio não era especulativo, por isso acatava os ditames do acaso entregando-lhes sua vida, sua esperança, seu terror, seu pânico sem investigar suas leis labirínticas, tampouco as esferas giratórias que o revelavam. As declarações oficiosas, que foram mencionadas, ocasionaram muitas discussões de caráter jurídico-matemático. De algumas delas nasceu a seguinte conjectura: Se a loteria é uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmo, não conviria que o acaso interviesse em todas as etapas do sorteio e não apenas em uma? Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém que as circunstâncias dessa morte – a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século – não estejam subordinadas ao acaso? (BORGES, 1999, p. 508). Os justos escrúpulos acabaram provocando uma reforma considerável, cujas complexidades (agravadas por um exercício de séculos) apenas alguns especialistas as entenderam. Simbolicamente, a reforma apregoa: Imaginem um 39 Tem-se uma palavra falsamente árabe simbolizando a fonética do vocábulo Kafka (o nome de Kafka aparece disfarçado). Este artifício é obtido através do oxímoro, figura de pensamento que consiste na associação de dois termos contraditórios, duas imagens, que na realidade se repelem, que aproximam dois sentidos incompatíveis, sendo, portanto, uma intensificação da antítese. 88 primeiro sorteio que decretava a morte de um homem. Para seu cumprimento, procedia-se a outro sorteio, o qual escolhia nove algozes possíveis. Desses executores, quatro podiam iniciar um novo sorteio que definiria o nome do verdugo, dois podiam substituir a ordem adversa por uma ordem feliz (talvez o encontro de um tesouro), outro exacerbaria a morte tornando-a infame ou enriquecida de torturas; outros podiam negar-se a cumprir com o combinado... Eis o esquema simbólico. Na realidade, “(...) o número de sorteios era infinito. Nenhuma decisão era final, todas se ramificavam em outras” (BORGES, 1999, p. 509). Supunham os ignorantes, que infinitos sorteios requeriam um tempo infinito; no entanto, bastava que o tempo fosse infinitamente subdivisível, como nos relata a parábola do Certame com a tartaruga40. Tal infinitude condizia com os números do Acaso e com o Arquétipo Celestial da Loteria, que adoravam os platônicos... Não obstante, algum eco disforme de nossos ritos parecia ter retumbado no Tibre: “Elio Lamprídio, na Vida de Antonino Heliogábalo, contava que esse imperador escrevia em conchas as sortes que destinava aos convidados”, de maneira que um recebia “dez libras de ouro e outro, dez moscas, dez marmotas, dez ossos”. É válido lembrar que Heliogábalo foi educado na Ásia Menor, entre os sacerdotes do deus epônimo. (BORGES, 1999, p. 509). Apesar disso, havia sorteios impessoais, cujos desígnios eram indefinidos. Um decretava que fosse lançada às águas uma safira de Taprobana41; outro, que um pássaro fosse atirado do alto de uma árvore; outro, que a cada século fosse retirado (ou acrescentado) um grão de areia dos inumeráveis que existiam na praia. Às vezes, tudo isso causava resultados terríveis. Sob o influxo benfeitor da Companhia, os costumes estavam impregnados de acaso. Não se espantaria o comprador de uma dúzia de ânforas de vinho damasceno se uma delas contivesse um talismã ou uma víbora. Algum dado errôneo, quase nunca era deixado de ser introduzido pelo escrivão. Mesmo nesta apressada exposição, é possível que se tenha falseado certo esplendor, certa atrocidade; ou ainda, alguma misteriosa monotonia. Os historiadores, que são os mais argutos da orbe, inventaram um método para corrigir o acaso: dizia-se que as operações desse método eram, de modo geral, 40 A parábola do Certame e da tartaruga corresponde à parábola da Lebre e da tartaruga, escrita por Esopo (620- 560), um escravo e contador de histórias que viveu na Grégia antiga. 41 Taprobana é o nome antigo dado pelos gregos e romanos à ilha de Ceilão, atual Sri Lanka. 89 autênticas; embora não fossem divulgadas sem certa dose de engano. Não havia nada tão contaminado de ficção como a história da Companhia. Um documento paleográfico exumado num templo podia ser, por exemplo, obra de um sorteio de ontem ou de um sorteio secular. Nenhum livro era publicado sem que houvesse divergência em cada um de seus exemplares; para isso, os escribas prestavam juramento secreto prometendo omitir, interpolar e alterar; exercendo também, a mentira indireta. Com modéstia divina, a Companhia elucida toda publicidade. Obviamente, seus agentes eram secretos; as ordens contínuas e incessantes não diferiam das que prodigalizavam os impostores. Mas, quem poderia gabar-se de ser um simples impostor? O bêbado que improvisava um mandato absurdo, o sonhador que despertava de repente e estrangulava a mulher que dormia a seu lado, não executavam, porventura, uma secreta decisão da Companhia? (BORGES, 1999, p. 509). Comparável ao de Deus, esse funcionamento silencioso provocava toda espécie de proposições: uma insinuava, abominavelmente, que a Companhia não existia há séculos e que a sacra desordem de suas vidas era puramente hereditária, tradicional; outra, a julgava eterna e afirmava que esta perduraria até a última noite, quando o último deus aniquilaria o mundo. Outra declarava ainda, que a Companhia era onipotente; contudo, influia apenas em coisas minúsculas; por exemplo, “no grito de um pássaro, nos matizes da ferrugem e do pó, nos entressonhos da alvorada”. Outra, pela boca de heresiarcas mascarados, afirmava que nunca existiu nem existirá. Outra, não menos vil, assegurava que é indiferente afirmar ou negar a realidade da tenebrosa corporação; isto porque, Babilônia não era (ou é) outra coisa senão um infinito jogo de acasos (BORGES, 1999, p. 509). A loteria em Babilônia integra a coletânea O jardim das veredas que se bifurcam, publicada em 1941 junto ao livro Ficções, de 1944. O conto revela-nos uma alegoria para o acaso a qual permeia a vida dos indivíduos de pseudo-promessas que envolvem sorte, fortuna, um dinheiro que faria parte do destino e da vida daqueles que tivessem coragem de se “agarrar” à sorte sem medo do que lhes fosse acontecer. Trata-se de um jogo de azar onde o narrador inicialmente chama a atenção do leitor dizendo-lhe quem ele foi: “Como todos os homens de Babilônia, fui procônsul; como todos escravo; também conhecia a onipotência, o opróbrio, os 90 cárceres”; mas também mostra que “à mão direita falta-lhe o indicador” e que através do “rasgão da capa vê-se em seu42 estômago uma tatuagem vermelha: é o segundo símbolo: Beth” (BORGES, 1999, p. 505). Em noites de lua cheia esta letra conferia-lhe poder sobre os homens cuja marca era Ghimel, ao passo que o subordinava aos de Aleph. O narrador ainda assegurava: “no crepúsculo do amanhecer, num porão, degolei diante de uma pedra negra touros sagrados. Durante um ano da lua fui declarado invisível: gritava e não me respondiam, roubava o pão e não me decapitavam” (BORGES, 1999, p. 505). Ele apresenta a sua condição de cidadão, mas, principalmente, de uma pessoa que é ignorada por outras de uma mesma classe social cuja concepção está além do que se pode chamar civilizada. O fato de todos ignorá-lo faz dele um sujeito ainda mais forte e apto a lutar por seus ideais. Mesmo sendo invisível aos olhos de alguns, tinha a certeza de sua existência e de suas determinações; neste caso, embora se apresente com uma identidade velada, também são significativas as informações que nos oferece no tocante ao lugar de onde veio e como o país lida com esse jogo de azar, que é a loteria: “Sou de um país vertiginoso onde a loteria é parte principal da realidade: até o dia de hoje, pensei tão pouco nela como na conduta dos deuses indecifráveis ou de meu coração”; bem como do instante em que consegue deixar Babilônia: “Agora, longe de Babilônia e de seus queridos costumes, penso com certo assombro na loteria e nas conjeturas blasfemas que no crepúsculo murmuraram os homens velados” (BORGES, 1999, p. 505). A figura do narrador é de suma importância para que compreendamos o desenrolar da trama. Ele se mantém em perene anonimato. Certamente, é esta a forma que Borges utiliza para desprender o leitor deste personagem, fazendo-o concentrar-se no tecido alegórico que perpassa a obra, de modo a perceber que a loteria apresenta etapas distintas e, à medida que estas vão sendo exploradas, o narrador as projeta em suas reminiscências, tendo em vista que é ele que nos apresenta a tessitura da trama a qual é composta basicamente pelos organizadores (os quais fundaram e dirigem a loteria); os jogadores (sem os quais a loteria não 42 Borges apresenta no conto a primeira pessoa do singular do pronome possessivo (meu); por uma questão de coerência fizemos uma alteração na fala do autor fazendo uso da terceira pessoa do plural do pronome possessivo (seu). 91 teria sentido); e as regras do jogo (que são essenciais para o bom funcionamento da loteria). A urdidura das situações que são apresentadas em Babilônia e na loteria expõe indivíduos que atuam como máquinas de guerra os quais desejam constituir riquezas; entretanto, agem de maneira irredutível contra a Companhia que, embora tenha suas próprias leis, vê-se forçada a fazer adaptações para agradar aos jogadores. Os cidadãos agem sem comedimento, multiplicando suas vontades na medida em que se combinam com outros sujeitos para ampliar as forças e lutar em prol daquilo que anseiam. A atuação dessas pessoas nos leva a perceber que elas estão dispostas a enfrentar a Companhia, mas também detêm poderes para impor novas mudanças, implementando, além de regras diferentes, segredos que são guardados sob juramento: “os escribas prestam juramento secreto de omitir, de interpolar, de alterar. Também se exerce a mentira indireta” (BORGES, 1999, p. 510). Esses indivíduos passam a ser potências que operam contra a Companhia. Se pensarmos a máquina de guerra “como sendo ela mesma uma pura forma de exterioridade, ao passo que o aparelho de Estado constitui a forma de interioridade que tomamos habitualmente por modelo, ou segundo a qual temos o hábito de pensar”43, vemos que em Babilônia as pessoas agem como máquinas de guerra, que também são máquinas desejantes cuja máquina-órgão está ligada a uma máquina-fonte44, testemunhando a crueldade dos jogadores e a ganância pela fortuna, que pode ser daquele que tiver mais sorte ou daquele que persistir no jogo; consequentemente, será de qualquer um dos ambiciosos jogadores. A máquina de guerra, que são os indivíduos, é diferente do aparelho de Estado, que é a Companhia. A loteria sempre foi um jogo de Estado, ou de corte; pois os contemplados através de um sorteio recebiam, sem outra adesão da sorte, moedas de prata: “[...] os barbeiros vendiam, por moedas de cobre, retângulos de ossos ou de pergaminho adornados de símbolos. Em pleno dia verificava-se um sorteio: os contemplados recebiam, sem outra corroboração da sorte, moedas cunhadas de prata” (BORGES, 1999, p. 506). 43 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1997b, v. 5, p. 15. 44 Máquina-órgão e máquina-fonte são expressões usadas por Deleuze e Guattari no livro, O antiédipo, 2010, p. 11, para explicar como se comporta a produção desejante. 92 Mas, no instante em que esse tipo de loteria fracassa, os organizadores implementam uma reforma submetendo os jogadores a novas regras, onde os compradores de retângulos numerados passam a correr o risco de ganhar duplamente uma soma, mesmo pagando uma multa; isso incita o público a jogar. Ademais, sabia-se que a cada trinta números favoráveis apenas um seria agourento, o que aumentava significativamente as chances de ganhar. Fazendo-se uma alusão ao que Deleuze e Guattari (1997b, p. 13) afirmam acerca do jogo de xadrez e Go45, podemos dizer que na loteria os números se assemelham às peças do jogo de xadrez, pois, uma vez codificados, os jogadores seriam sempre jogadores e, mesmo que perdessem uma rodada, insistiriam na sorte devido às probabilidades de serem vencedores. Assim como os peões do Go, os números da loteria funcionam como unidades aritméticas coletivas, ou ainda, como “elementos de um agenciamento maquínico não subjetivado, sem propriedades intrínsecas, porém apenas de situação” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 13). Neste caso, os números da sorte surgem permeados por nebulosos crepúsculos que desempenham funções tanto de inserção quanto de situação, tendo em vista que, nessa batalha pela fortuna, os indivíduos não possuem uma linha de combate, uma vez que não há com quem guerrear diretamente, sendo possível aos sujeitos territorializar-se e desterritorializar-se, indo a outro lugar ou buscando outra justiça, outras formas de tentar a sorte. A batalha se institui por meio das estratégias que serão (ou são) utilizadas naquele espaço e num tempo determinado ao jogo. A Companhia opera como um jogo de xadrez em que as forças permanecem inalteradas, haja vista que laboram como o aparelho de Estado, cujas propriedades intrínsecas não sofrem mutações. A máquina de guerra está associada às resoluções de questões políticas, tendo metas a serem atingidas através do poder bélico de um Estado, ou ainda, de um país contra o outro (DELEUZE; GUATTARI, 1996). 45 Conforme pesquisa online, o Go é um jogo de tabuleiro que nasceu na China há mais de 3000 anos. A sua origem permanece incerta e é cercada por vários mitos. Das quatro grandes artes da China antiga – Go, poesia, música e caligrafia – o Go, apesar da sua aparente simplicidade, foi considerado a arte mais difícil de apreender, compreender e dominar. Foi introduzido no Japão há aproximadamente 1300 anos, através de mestres budistas que visitaram a China e, ganhando popularidade junto à corte imperial, foi institucionalizado em quatro escolas, tornando-se num modo de vida para alguns sábios. Hoje, o Go ainda é jogado na sua forma original. Disponível em: . 93 A máquina de guerra agencia uma indisciplina fundamental aos indivíduos que se tornam guerreiros e lutam para que a formação do aparelho de Estado não os sufoque, porque existe a necessidade de organização da sociedade como forma de equilibrar e de formular as leis que a regem. Essa máquina de guerra se configura como agenciamentos desse nomadismo exercido pelo homem com o fito de alimentar o “instinto” guerreiro de combate, sem perder de vista seus ideais nem desprezar as leis e regras estabelecidas pelo aparelho de Estado as quais visam à razão. Essa nomadologia não cessa de ser “tolhida” ou coibida dadas as exigências e as condições fixadas pela Companhia. Desta forma, a guerra se mostra como “[...] o abominável resíduo da máquina de guerra, seja quando esta se fez apropriar pelo aparelho de Estado, ou, pior ainda, quando ela construiu para si um aparelho de Estado que não serve mais do que para a destruição” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 112). Alegoricamente, a loteria também se assemelha à máquina de guerra em virtude de operar tanto como polo ofensivo quanto como polo defensivo, envolvendo forças materiais e psíquicas, no intuito de oferecer fortuna da maneira mais “fácil”. Essa máquina de guerra surge a partir da desterritorialização dos indivíduos em busca da sorte, pois aciona suas linhas de fuga possibilitando o aparecimento das máquinas de guerra que se multiplicam através de agenciamentos por meio dos quais se encontram os fluxos de interesses, de desejos e da necessidade de compor as linhas que remetem às segmentações, mas também às linhas que – com suas multiplicidades e seus devires – não se permitem aprisionar, mesmo sabendo que o desejo os leva à repressão. Neste caso, “não há pulsão interna no desejo, só há agenciamentos. O desejo é sempre agenciado, ele é o que o agenciamento determina que ele seja”; isso porque “no próprio nível das linhas de fuga, o agenciamento que as traça é do tipo máquina de guerra” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 112). Os envolvidos com a loteria, notadamente os que almejam fortuna, se apresentam como nômades e praticam o agenciamento social, a passagem de fluxos mutantes e a desterritorialização. A guerra acaba substituindo a mutação e a criação pela destruição porque há “efusões lamentáveis de sangue” (BORGES, 1999, p. 507) e porque a máquina em si não se deixa aprisionar sendo um fio condutor entre a loteria e a Companhia. 94 No que tange à máquina de guerra em si mesma, Deleuze e Guattari (1997b, p. 12) afirmam que, efetivamente, esta parece “irredutível ao aparelho de Estado, exterior a sua soberania, anterior a seu direito”, surgindo como uma metamorfose dos agenciamentos maquínicos que combatem o aparelho liberando os liames ora de uma crueldade exacerbada, ora de uma piedade que transcende o entendimento humano, ao passo que expõe o devir-animal do homem enquanto guerreiro. Isto tudo para mostrar que a máquina de guerra é diferente do aparelho de Estado no que concerne à natureza e à origem. O homem que luta contra o aparelho de Estado é visto como um condenado, um insano, um sujeito que “peca” na medida em que não concorda com as leis instituídas pelo aparelho ou pela Companhia. Conquanto o Estado adote essa visão, se observarmos pelo ângulo da exterioridade, vemos que a máquina de guerra se torna irredutível justamente porque é considerada como mecanismo que – indiretamente – possibilita “alianças” entre o Estado e a sociedade, ao mesmo tempo em que impede a formação desse aparelho de Estado. Veja-se o trecho: A companhia (assim começou então a ser chamada) teve que velar pelos ganhadores, que não podiam cobrar os prêmios se faltasse nas caixas a importância quase total das multas. Deu início a uma demanda contra os perdedores: o juiz condenou-os a pagar a multa original e as custas ou a uns dias de prisão. Todos optaram pelo cárcere, para defraudar a Companhia (grifo nosso). Dessa bravata de uns poucos nasce todo o poder da Companhia: seu valor eclesiástico, metafísico. Pouco depois, os relatórios dos sorteios omitiram as enumerações de multas e limitaram-se a publicar os dias de prisão que designava cada número adverso. Esse laconismo, quase desapercebido em seu tempo, foi de importância capital. Foi o primeiro aparecimento na loteria de elementos não pecuniários. O êxito foi grande. Instada pelos jogadores, a Companhia viu-se obrigada a aumentar os números adversos (BORGES, 1999, p. 506). O que de fato ocorre é uma “conexão” entre aparelho (Companhia) e sociedade (indivíduos das diversas classes sociais que “constituem” a loteria). Desta maneira, a Companhia age como um tipo arborescente e estriado o qual se organiza como um órgão de poder ao passo que os guerreiros são os agenciamentos do tipo rizoma que diferem do aparelho de Estado, visto que se metamorfoseam através desse espaço liso, mas também estriado, o qual possibilita a movimentação por entre os tabuleiros de xadrez e Go. As guerras do desejo, das repressões, dos medos, da vida e da morte apresentam várias linhas de fuga por meio das quais as pessoas disputam o acaso. O segredo e os devires se fazem presentes no momento em que os indivíduos 95 corroboram com as regras que a Companhia lhes apresenta. Ora, se eles almejam o dinheiro fácil, concebem a ilusão de que tudo que é implementado pela Companhia passa pelo crivo da legalidade e todos possuem os mesmos direitos; sendo assim, ainda que haja traços nebulosos, estes passam despercebidos. Nesta conjuntura, as máquinas de guerra nos permitem pensar a Companhia como espaços socialmente segmentarizados46 em que os cidadãos se apresentam a partir das linhas de fuga que emanam de processos de territorialização e desterritorialização, cujas fissuras se mostram como agenciamentos maquínicos rizomáticos. A loteria e a Companhia primam pelos seus próprios interesses e não pelo bem comum, por isso flexibilizam as atitudes e tomadas de decisão de acordo com a situação ou com as relações com as quais os pontos de fusão e de cisão se estabelecem. O ajustamento entre estes pontos é feito de várias formas: através da interpolação dos números, da aceitação dos erros como algo normal e admissível, afinal, “[...] a loteria é uma interpolação do acaso na ordem do mundo e aceitar erros não é contradizer o acaso: é corroborá-lo” por meio de sorteios impessoais cujos propósitos se tornam indefinidos a partir de proposições que asseguram “uma intensificação do acaso, uma periódica infusão do caos no cosmo” (BORGES, 1999, p. 508). Sendo a loteria, inicialmente, um jogo de caráter plebeu, o devir dos acontecimentos de algum modo é mapeado, localizado e territorializado por um funcionamento que centraliza as ações naqueles que detêm o poder, notadamente os organizadores, os quais explicitam os fluxos desejantes dos jogadores que, mesmo sabendo que eram manipulados pelos poderosos, não desistiam de tentar a sorte, de lutar por seus objetivos junto à loteria. Para Deleuze e Guattari (1996, p. 98-99), esses fluxos também exprimem “[...] o fundo de toda sociedade, porque são fluxos ‘quantificáveis’ enquanto tais, verdadeiras quantidades sociais [...] que se criam, se esgotam ou se modificam, e se somam, se subtraem ou se combinam”. Ou seja, apresentam um campo social do qual derivam toda espécie de movimentos de territorialização e desterritorialização que afetam as classes sociais menos favorecidas. Um preconceito que traz à tona 46 Embora a noção de segmentaridade, segundo Deleuze e Guattari (1996, p. 84), tenha sido construída pelos etnólogos para dar conta das sociedades ditas primitivas, sem aparelho de Estado central fixo, sem poder global nem instituições políticas especializadas, entendemos que, neste caso, a loteria e a Companhia funcionam como instituições “políticas” flexíveis, visto que atendem a interesses próprios. 96 contradições, mas também inúmeras linhas de fuga através de seus troncos-galhos como reminiscências dessa raiz que é a sociedade. A junção tronco-galhos permite ao homem expressar um pensamento onde o tronco passa a desempenhar ligações que podem proliferar, produzindo multiplicidades, regenerações, reproduções e retornos os quais acabam por agenciar memórias organizadas. A relação que os agentes mantêm entre si forma as engrenagens da máquina de guerra que, no seu constructo, faz com que as “peças” e suas respectivas funções se relacionem acionando o desejo de lutar em prol de uma sociedade que atenda à necessidade desses cidadãos. Organizadores e jogadores se comportam como se fizessem parte da mesma classe social, nutrindo os mesmos interesses: riqueza, fortuna. A luta travada entre eles mostra nitidamente que a relação de força e de violência é equilibrada; porém, a mesma luta assume contornos divergentes, haja vista que existem dois lados para a mesma história: o lado dos vencedores e o lado dos perdedores. Isto caracteriza situações muito diferentes, porque aquele que perde, ou critica a falta de sorte e desiste de jogar, ou critica a loteria (e por extensão a Companhia) e aposta noutras tentativas para “virar” o jogo e fazer a sua fortuna, passando a constituir para si novas linhas de fuga e novos agenciamentos rizomáticos cuja alegoria se institui como decalque dessa multiplicidade de situações que percorre a loteria, a Companhia e os jogadores. A movência dos acontecimentos pode ser entendida como fissuras desse rizoma na medida em que busca um pensamento nômade, onde o homem (jogadores e organizadores) mostra como esses fluxos desterritorializados são lançados ruindo linhas de fuga que ainda não estão prontas para uma reterritorialização, uma vez que não cumpriu com as metas propostas para si próprio. Para Deleuze e Guattari (1996, p. 103), a desterritorialização, “verdadeiro acelerador de partículas, opera também a reterritorialização de conjunto”47 em que os agenciamentos maquínicos se apresentam como linhas relativamente flexíveis com territorialidades entrelaçadas, onde as segmentações de territórios e de linhagens compõem o espaço social do qual organizadores e jogadores fazem parte. Também notamos uma linha dura que opera a organização dual dos segmentos48 47 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1996, v. 3, p. 101. 48 Ibid., p. 101. 97 onde o espaço social igualmente surge como aparelho de Estado, tendo em vista que a Companhia desempenha esse papel, havendo algumas linhas de fuga definidas por desterritorialização e reterritorialização, cujos agenciamentos maquínicos operam como máquinas de guerra. Segundo Deleuze e Guattari (1996, p. 104): De um lado, há uma máquina abstrata de sobrecodificação: é ela que define uma segmentaridade dura, uma macro-segmentaridade, porque ela produz, ou melhor, reproduz os segmentos [...] estendendo um espaço homogêneo, divisível, estriado em todos os sentidos. Uma máquina abstrata desse tipo remete ao aparelho de Estado. Por outro lado, no outro pólo (sic), há uma máquina abstrata de mutação que opera por descodificação e desterritorialização. É ela que traça as linhas de fuga: pilota os fluxos de quanta, assegura a criação-conexão dos fluxos, emite novos quanta. Ela própria está em estado de fuga e erige máquinas de guerra sobre suas linhas. Essas linhas de fuga ora são trabalhadas por meio de fendas ora são atraídas em direção a buracos negros. Apesar disso há um esforço dos homens para que perpassem as fendas e os buracos negros continuando com a mesma intensidade; nesse caso, as “rostificações animais são substituídas por um macro-rosto cujo centro está por toda parte [...]”, caracterizando os segmentos duros (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 87). Não podemos esquecer que a máquina de guerra representa a exterioridade e o Estado a interioridade, sendo a loteria a representação de encadeamentos extrínsecos os quais, em alguns momentos, se confundem com o aparelho de Estado e a máquina de guerra passa a ser arquitetada unicamente sob a forma negativa, tendo em vista que não se deixou nada de fora do próprio Estado. De acordo com Deleuze e Guattari (1997b, p. 24), o Estado é uma soberania que reina apenas na sua interioridade, por isso tende a reproduzir-se por meio de suas mudanças, o que o torna “facilmente reconhecível nos limites de seus pólos (sic), buscando sempre um reconhecimento público (o Estado não se oculta)”. Não signifca dizer que a máquina de guerra produza um Estado ou que este seja o resultado de uma guerra cujos vencedores implementariam suas leis aos perdedores. Se pensarmos a máquina de guerra do ponto de vista nômade, veremos que a loteria é composta por nômades (aqueles que não possuem terras e, por conseguinte, não realizam vários trajetos. Embora possuam suas terras e realizem os movimentos fazendo e perfazendo os mesmos pontos a cada dia sem deixar 98 marcas) e sedentários (aqueles que caminham sempre por espaços estriados compostos, via de regra, por muros e cercas; caminhos cujas marcas não se apagam). O movimento giratório que os jogadores fazem dentro e fora do espaço da loteria representa a sua máquina de guerra, por isso eles se apresentam como nômades cujos trajetos são determinados a partir de suas necessidades e, quando saem de casa para a loteria ou desta para qualquer outro lugar, é porque se encontram subordinados aos caminhos que haviam determinado. Para eles, a nomadologia não surge apenas com espaços lisos os quais são marcados por “linhas” que desaparecem ou se deslocam, permitindo-lhes a movência de um lugar a outro. Os espaços nômades também são estriados e assinalados por muros que devem ser “cruzados” enquanto realizam o percurso até a loteria. Conforme Deleuze e Guattari (1997b, p. 53) faz-se necessário distinguir os movimentos realizados por nômades e sedentários, porque o “nômade pode ser chamado de o Desterritorializado por excelêcia, [...] porque a reterritorialização não se faz depois como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário”; isto é possível porque a “relação de sedentário com a terra está mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado [...]”. Para o nômade, a desterritorialização institui “sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 53). O nômade só encontra o seu território porque é a terra que se desterritorializa. Eis a razão pela qual ele é chamado de desterritorializado e o sedentário ser cotejado ao aparelho de Estado. Essa nomadologia dos espaços existe para que se estabeleça uma comunicação entre nômades e sedentários, no intuito de controlar as migrações, bem como “fazer valer uma zona de direitos sobre todo um ‘exterior’, sobre o conjunto dos fluxos que atravessam o ecúmeno” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 59); isso porque, no momento em que surge uma oportunidade, o aparelho de Estado elabora um método de captura de dinheiro ou de capitais mensurando os movimentos, os trajetos, as ações que os jogadores perfazem com o objetivo de centralizar essa mobilidade (característica do espaço liso e que se movimenta de um ponto a outro) num espaço estriado. “Nesse sentido, o Estado não pára (sic) de decompor, recompor e transformar o movimento, ou regular a velocidade” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 60). 99 A velocidade que se apresenta não é do aparelho de Estado, mas da máquina de guerra que o habita e que ressuscita a cada final de indisciplina, ameaça, desordem, agindo como se estivesse num espaço liso. Esses agenciamentos (essas articulações) de espaços lisos e estriados, de velocidade e trajetos, são aspectos estratégicos, se não logísticos, para que o Estado exerça seu poder sobre a máquina de guerra. Quando observamos a loteria como uma extensão desse trajeto, vemos que, alegoricamente, esta também possui espaços lisos e estriados que se apresentam sob a forma de obstáculos os quais os jogadores necessitam ultrapassar para realizar seus objetivos. Concordamos com Toynbee (1954, p. 185-210 apud DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 52) ao sugerir que “o nômade é antes aquele que não se move, pois, no instante em que o indivíduo passa a se mover de um lugar a outro, inevitavelmente, sairá desse espaço liso cujas linhas se apagam como se ele estivesse suspenso e, obviamente, não deixasse marcas”. Os jogadores expressam uma luta em busca de justiça, com isso eles afirmam o devir e o ser desse devir-animal que abandona temporariamente a vida para jogar e quando volta a viver percebe o quanto o jogo o tornou um nômade de si mesmo, pois no momento em que retorna àquele jogo (que já não é o mesmo) aposta tudo que possui – muitas vezes em um único lance – na tentativa de recuperar o que perdeu, inclusive sua dignidade. Esse eterno retorno permite ao sujeito (re)pensar sua identidade, as diferenças e repetições por que tem passado ao longo do tempo. No crepúsculo49 do amanhecer surge o eterno retorno à Companhia como forma de expressar que o ser unívoco50 se realiza através do seu próprio retorno, 49 O crepúsculo caracteriza-se como uma luminosidade de intensidade crescente ao amanhecer a qual é proveniente da iluminação das camadas superiores da atmosfera pelo Sol quando, embora escondido, está próximo do horizonte. Ao entardecer ocorre quando o sol se esconde no horizente e sua luz permanece visível; nesse caso, tem-se o crepúsculo do entardecer. Refere-se ainda a uma decadência, um declínio, ao ocaso. Alegoricamente, pode denotar falta de caráter, bem como a busca da própria identidade, o momento do encontro consigo mesmo, no sentido de autoidentificar-se, descobrir-se quanto às suas capacidades e aquilo que gosta de realizar. No conto em análise, além de se referir ao alegórico, assinala para o momento em que os jogadores retornam à loteria e, portanto, à Companhia. 50 Entenda-se essa univocidade no sentido em que o ser unívoco é o eterno retorno de si próprio; sendo assim, o ser não pode ser outra coisa que o próprio simulacro, na medida em que todos os seres, sem exceção, interiorizam uma disparidade, uma dessemelhança com relação aos demais. Cada ser é único, é singular, por excelência – esta é a alegre mensagem de Deleuze (e já era também a de Nietzsche), conforme afirma Regina Schöpke. Esse ser unívoco se torna múltiplo no sentido em que declara a sua diferença em relação aos outros; logo, não se pode pensar no ser idêntico, e sim, no desigual, no dessemelhante. No caso dos jogadores, a multplicidade também se apresenta no momento em que o retorno expressa o “mesmo” desse retorno que é, por assim dizer, a sua própria repetição; portanto, o próprio ser em suas singularidades. Embora seja único apresenta multiplicidades e diferenças próprias a cada um deles. 100 haja vista que mesmo sendo único, ele é múltiplo; portanto, diferente entre si. Eis a razão de não aceitar a sujeição a um modelo pré-estabelecido. No caos que se instaura entre jogadores e Companhia origina-se a repetição. Se há uma lei, e esta não é estabelecida pelos jogadores, é a de deleitar-se nas várias repetições cujas diferenças assinalam para uma travessia que, mais uma vez, os conduz ao jogo da repetição na diferença, com fendas que encaminham ao eterno retorno do “mesmo”. Essas fissuras permitem que os jogadores se realizem através de seus próprios retornos, tendo em vista que por meio destes afirmam os simulacros e suas diferenças. De acordo com Craia (2006, p. 57), esse eterno retorno nada mais é do que a síntese da força e da vontade de potência que “seleciona através de um devir ativo, de uma pura afirmação, as forças nobres, aquelas que não são reativas”, tornando tudo isso um processo de seleção afirmativo o qual caracteriza o eterno retorno e a diferença como sendo inseparáveis. Sendo assim, torna-se praticamente impossível comprazer-se das alegrias que a vida oferece sem antes perfilhar que o encadeamento que a efetivou está permeado de angústias e tristezas; isso porque o eterno retorno do “mesmo” marca a diferença entre estado inicial e estado final dos seres que se dispõem a frequentar a loteria. Para Fornazari (2006, p. 21), “o mesmo não retorna, antes o retornar é o mesmo que se afirma da passagem sempre renovada daquilo que devém, o que retorna é a diferença”, pois o eterno retorno é meramente intensivo. O autor ainda garante que o sentido do eterno retorno não é outro: “[...] o que é o mesmo nele é o retornar, mas o que se retorna é sempre o diferente, esse rearranjo de intensidades que fremem nas profundezas” (FORNAZARI, 2006, p. 26). Por seu turno, Deleuze assevera que o único mesmo que retorna é o próprio retornar, assim, o eterno retorno é o ser de todo o devir, ou seja, aquilo que o retorno elege é tão somente o que é capaz de (re)afirmar sua diferença. Para Deleuze (2006b, p. 412): O eterno retorno afirma a diferença, afirma a dessemelhança e o díspar, o acaso, o múltiplo e o devir. [...] O eterno retorno elimina aquilo que, tornando possível o transporte da diferença, torna ele próprio impossível. O que ele elimina é o Mesmo e o Semelhante, o Análogo e o Negativo como pressupostos da representação. Pois a re-presentação e seus pressupostos retornam, mais uma vez, uma única vez, de uma vez por todas, eliminados por todas às vezes. 101 É impossível retornar o idêntico, o semelhante, pois falta-lhe a capacidade da metamorfose e o esfacelamento do ser no que concerne à liberação das diferenças e de suas intensidades. As dobras e desdobras dos jogadores da loteria precisam reaver o que ficou para trás; eles, por sua vez, necessitam distribuir suas diferenças no espaço aberto para que todos percebam em meio à univocidade do ser que eles são múltiplos (desdobram-se e redobram-se); logo, “cada diferença participa igualmente do ser”, indo à extremidade daquilo que realmente pode, revelando uma transformação própria a qual se origina dos desdobramentos do ser unívoco (FORNAZARI, 2006, p. 29). Mas, para que haja uma transformação completa entre os jogadores, é preciso que cada um dos envolvidos na loteria vivencie verdadeiramente o amor fati, pois somente esse amor é capaz de mudar a situação em que se encontra o povo da Babilônia após a instauração da loteria e da Companhia. De acordo com Fornazari (2006, p. 30): O amor fati ganha um sentido inteiramente novo e surpreendente, porque significa liberar a vida e o pensamento das amarras do Mesmo e do Idêntico e de tudo aquilo que é responsável por sua conservação. Pois o Mesmo não retorna porque carece de poder de metamorfose, restando-lhe o recurso de negar a diferença para conservar a si mesmo. O amor fati significa, assim, a afirmação da diferença e do poder de transformação da diferença, implicando ao mesmo tempo a criação do novo e a recriação constante de si mesmo. Embora exista o eterno retorno do “mesmo”, a ausência do amor fati impede que ganhadores e perdedores percebam o que acontece nos domínios da loteria e da Companhia; isso também os impede de buscar respostas para resolver os problemas por que têm passado, configurando uma multiplicidade atravessada por devires, tendo em vista que “a condição da ação por insuficiência não retorna, a condição do agente por metamorfose não retorna; só o incondicionado retorna como produto do eterno retorno” (DELEUZE, 2006b, p. 408). Como assegura Deleuze, “o Negativo não retorna. O Idêntico não retorna. O Mesmo e o Semelhante, o Análogo e o Oposto não retornam. Só a afirmação retorna [...] nada daquilo que nega o eterno retorno retorna [...] só o excessivo retorna” (DELEUZE, 2006b, p. 410-411). Semelhante ao que viveu Ariadne com Teseu, os jogadores “não percebem” o que sentem ou como se sentem quando chegam à Companhia e acreditam que lutar 102 por seus ideais implica em, necessariamente, carregar o peso, agir como o asno que sustenta e suporta a carga dia após dia vislumbrando dias melhores. Como afiança Deleuze (2006c, p. 14), “a aranha sempre refaz sua teia, e o escorpião não deixa de picar; cada homem superior está preso à própria proeza, que ele repete como um número de circo”. Decerto, é o que acontece com os jogadores da loteria. Ao acreditar que através de suas atitudes podem mudar suas próprias histórias, persistem incansavelmente no eterno retorno à loteria na perspectiva de não só transformar o que ocorre repetidamente como também realizarem-se nos seus próprios retornos, pois creem que cedo ou tarde tudo será diferente. Enquanto não aparece um “Dionísio” para abrandar seus sofrimentos e os leve a desfrutar da sensação de leveza, seguem sem descobrir o devir consolador, ativo e afirmativo. A carga permanece pesada em meio ao labirinto do sofrimento, da angústia, da vontade de encontrar alento para essa aflição cujo caminho continua percorrendo o crepúsculo do amanhecer, posto que, através deste, reacende a esperança de que a justiça seja feita e com ela surjam novas conquistas. O crepúsculo também delineia o cenário de uma Companhia agenciadora da repetição cujos territórios são desterritorializados em virtude da nomadologia que se apresenta como ponto de fusão entre a troca e a passagem dos corpos nômades que terminam atuando como espaços indiscerníveis os quais sobrevivem e reterritorializam sobre seus próprios corpos. Na realidade, “o que o eterno retorno produz em sua voragem é uma repetição, mas esta repetição não repete, de forma alguma, o “Mesmo por-si”, mas seleciona, a fim de deixar de repetir o mesmo a partir do diferente”; neste caso, “o retornar é o mesmo de todas as diferenças, mas só o é depois de passar pela prova das forças, que se tencionam até o seu limite máximo” (CRAIA, 2006, p. 53). A loteria em Babilônia se constitui como a alegorização de uma terra de incertezas, onde os homens são envolvidos e consumidos pelo jogo; a lei é regida pelo pecado, mas também pela esperança de dias e vidas melhores tanto no que concerne aos que fazem parte da máquina de guerra quanto aos que representam o aparelho de Estado, “o justo desejo de que todos, pobres e ricos, participassem por igual da loteria inspirou uma indignada agitação, cuja memória não apagaram os anos” (BORGES, 1999, p. 507). A mesma loteria que inspirava as pessoas a lutar por dias melhores, embora as tornasse dependente do jogo, passando a viver em função dessa prática, também 103 as conduzia à morte. De uma maneira ou de outra, a Companhia sempre determinava quem viveria e quem morreria: “um escravo roubou um bilhete carmesim, que no sorteio o fez credor a que lhe queimassem a língua. O código fixava essa mesma pena para quem roubasse um bilhete [...] Houve distúrbios, houve efusões lamentáveis de sangue” (BORGES, 1999, p. 507). Com isso, a Companhia mostrava quem detinha o poder; já que os babilônios se entregaram ao jogo. Com a união da Companhia ao poder público, “o povo conseguiu finalmente seus fins generosos [...] obteve que a Companhia aceitasse a soma do poder público” e, sendo esta “secreta, gratuita e geral, ficou abolida a venda mercenária de sortes” (BORGES, 1999, p. 507), tornando-se possível evidenciar o que realmente estava em destaque: a vida dos homens de Babilônia. Em dados momentos, a morte surge como solução para as angústias e resolução para todos os problemas; isso porque se o cidadão fosse azarado no jogo pagava com a própria vida, segundo a lei instituída pela Companhia, evitando seu sofrimento: “[...] Não é irrisório que o acaso dite a morte de alguém e que as circunstâncias dessa morte – a reserva, a publicidade, o prazo de uma hora ou de um século – não estejam subordinados ao acaso?” (BORGES, 1999, p. 508-509). Ao mesmo tempo em que o sofrimento é evitado, temos a revelação de que a morte existe em detrimento do prazer e todos ficam à mercê da própria sorte. A loteria em Babilônia apresenta pontos de convergência; por exemplo, em Diferença e Repetição, quando Deleuze aborda a repetição para mensurar a sua configuração momentânea e singular, a exemplo do que acontece aos jogadores da loteria enquanto constructo de uma máquina de guerra, mas também a exemplo da própria Companhia enquanto aparelho de Estado, objeto repetidor das mesmas situações que terminam por escravizar os indivíduos, confirmando que a repetição permite a individuação como ponto nevrálgico para a seleção daquilo que se deseja tomar como repetido. Esse jogo conduz aparelho de Estado e máquina de guerra a repetirem essencialmente o lance vencedor, visto que esse somente existirá quando monopolizar todas as combinações e leis possíveis, confirmando o seu próprio retorno. A loteria em Babilônia enfatiza sobremaneira essa repetição quando Borges nos apresenta as situações vivenciadas pelos jogadores junto à Companhia, bem como as trajetórias que eles precisam percorrer para permanecer na loteria sem que 104 sejam alvos das normas impostas pela Companhia que, via de regra, os conduz à morte. Enquanto insígnia da morte, vemos que ganhadores e perdedores são susceptíveis aos acontecimentos porque um e outro regressam à loteria em busca de poder. Quando ganham, obtêm um poder o qual não compreendem que é momentâneo e por isso alimentam a utopia de que, diferentemente dos perdedores, não serão condenados a arcar com os ônus exigidos pela Companhia, tampouco têm a morte como algo próximo. Eles esquecem que a morte se apresenta como a alegoria da vida e que cada dia deve ser visto como uma possibilidade para um recomeço. A morte do ser ocorre independente de ele ganhar ou perder. Decerto, o comportamento e o efeito maquínico terminam por inibir a ação dos jogadores levando-os a aceitar – ainda que contrariados – o que lhes acontece, até os aspectos mais negativos. Por essa razão convivem com esse movimento que, no dizer de D’Iorio (2006, p. 71), se configura como o “de uma roda em movimento centrífugo que opera uma ‘seleção criadora’” cuja alegria surge no momento em que ocorre a afirmação do devir e a afirmação do ser nômade “coroado no unívoco” (DELEUZE, 2006b, p. 417). Isso se concretiza em virtude de os jogadores vivenciarem essa relação com o eterno, mas também aceitar que ao lançar “realmente a moeda uma infinidade de vezes, ‘coroa’ cai exatamente tantas vezes quanto ‘cara’” (BADIOU, 1997, p. 89). Para Deleuze (2006b, p. 182): [...] há sobre a linha reta um eterno retorno como o mais terrível labirinto de que falava Borges, muito diferente do retorno circular ou monocentrado de Cronos: eterno retorno que não é mais o dos indivíduos, das pessoas e dos mundos, mas o dos acontecimentos puros que o instante deslocado sobre a linha não cessa de dividir em já passados e ainda por vir. Em razão disso, o eterno retorno do “mesmo” surge impondo a sua lei de equilíbrio aos ganhadores e perdedores da loteria refletindo nos acontecimentos apregoados pela Companhia, cumprindo, por assim dizer, com o “destino” de todos. 105 3 CONJECTURAS DA METÁFORA “O poder das palavras é a força mais conservadora em nossa vida”. Ivor Armstrong Richards. Neste capítulo, apresentaremos os principais aspectos que constituem a metáfora, sobretudo no que concerne à semântica e à argumentação. Enfatizaremos as relações que se estabelecem em torno do discurso implícito ou explícito, visto que nosso objetivo não é abordar as origens da metáfora – embora inevitavelmente tenhamos que apresentar conceitos –, mas adentrar ao universo metafórico para apresentar, ainda que de maneira sucinta, a concepção de alguns autores no que tange ao uso desta figura que ora aparece como figura de linguagem, ora como figura de pensamento e de discurso, ora como figura puramente cognitiva. Centraremos nossas discussões no emprego da metáfora enquanto figura que instiga o pensamento do indivíduo, levando-o a pensar as palavras a partir de um contexto enunciativo que culmina com a interação deste com o texto, desenvolvendo, por assim dizer, os aspectos cognitivos em relação às expressões metafóricas. Para conjecturar a metáfora, realizaremos uma abordagem no campo literário apresentando análises dos contos borgeanos a partir da perspectiva de autores como Deleuze, Derrida, Moreno, Albiac, Didi-Huberman, dentre outros, sem que estejamos definindo os vários conceitos que perpassam a metáfora, mas assinalando o que há “por trás” de cada conto e, portanto, de cada discussão apresentada por Borges e pelos teóricos. Principiaremos este capítulo ressaltando a distinção entre conjecturas e metáfora com o intuito de justificar a escolha do nosso título e conduzir o leitor ao universo metafórico. A palavra conjectura (ou conjetura, se se considerar a alteração gráfica estabelecida pelo Acordo Ortográfico de 1990)51, significa “opinião, com fundamento incerto; suposição, hipótese”. A definição de metáfora aponta para “tropo em que a significação natural de uma palavra é substituída por outra, só aplicável por comparação subentendida”. Gramaticalmente, a metáfora consiste em retirar uma palavra de seu contexto convencional (denotativo) e transportá-la para um novo 51 Por uma questão meramente fonética, preferimos, ao longo desta tese, não considerar a alteração gráfica estabelecida pelo Acordo Ortográfico de 1990; optamos pela palavra conjectura. 106 campo de significação (conotativo), por meio de uma comparação implícita, de uma similaridade existente entre as duas. Quando falamos em conjecturas da metáfora remetemos a esse universo de incertezas cujas comparações e similaridades conduzem a hipóteses em que as significações serão entendidas a partir do contexto e do conhecimento que o leitor terá acerca dessa figura, subentendendo as informações implícitas para penetrar no lugar em que a palavra se encontra como algo capaz de transformar ideias e opiniões. Para Filipak (1983), esta figura de linguagem não se restringe ao conceito gramatical, tampouco ao conceito dicionarizado. As relações que se estabelecem entre texto e metáfora são mais abrangentes, até mesmo no que concerne ao que é exposto por Dubois (1978 apud FILIPAK, 1983, p. 7-8) quando nos apresenta o conceito de semema “unidade que tem por correspondente formal um lexema, compõe-se de traços semânticos chamados semas”; sema, “unidade mínima de significação, sem vida própria, realizando-se apenas numa configuração semântica ou semema”, que originam os metassememas, os quais “operam com a substituição de uma palavra por outra”. Tudo isto compõe o plano de conteúdo o qual Roman Jakobson denomina tropos e que se caracteriza por dois grandes polos: o metafórico e o metonímico, donde o nosso interesse será especificamente a metáfora. Alguns teóricos asseveram que a explicação dos fenômenos metafóricos tem início com a distinção entre linguagem literal e linguagem figurada. A primeira sempre teve maior aceitação, porque além de ser objetiva expõe a realidade a partir de um valor de verdade sem a necessidade de se estabelecer relações com o mundo externo. É uma linguagem supostamente direta, objetiva, séria; que sempre contou com o prestígio da população, das ciências e da academia. A segunda esteve restrita basicamente ao universo literário, haja vista a dificuldade que algumas pessoas evidenciavam no ato de interpretá-la. Como não é uma linguagem objetiva, requer que o falante e/ou o ouvinte/leitor busquem referentes no mundo externo para relacioná-la a outras situações e assim compreendê-la. Uma concepção que aos poucos foi sendo desmitificada, deixando que a metáfora ocupasse um espaço amplo na sociedade, notadamente, no cotidiano das pessoas. Pesquisas recentes mostram que o interesse dos estudos pela metáfora auferiu amplitude por abranger áreas como a antropologia, psicologia, filosofia, 107 semiótica, ciências cognitivas e da linguagem, história, dentre outras disciplinas. De acordo com Stefano (2006, p. 9), as primeiras análises acerca do fenômeno metafórico tiveram início no século IV antes de Cristo e conseguiram perpassar o tempo graças, “em primeiro lugar, a sua presença em todos os tipos de discursos orais e escritos, desde os mais antigos até os mais variados discursos sociais existentes”52. (Tradução nossa). Considerando a assertiva, compreendemos que a metáfora está presente na Bíblia, na poesia, no cinema, nas propagandas (de modo geral), na linguagem formal e coloquial, e no nosso dia a dia. De acordo com a concepção de Matos ([s.d.], p. 3), na literatura a metáfora persegue a originalidade; por essa razão, insere-se num universo ficcional, podendo incitar diferentes leituras, pois, “na semiose limitada pelo contexto, as projeções entre os domínios são pouco óbvias ativando significados implícitos, precisando de uma construção inferencial que pode variar de acordo com as experiências de cada um”. A metáfora se define também com base nos movimentos que assume ao longo do discurso por meio do deslocamento e da transposição das palavras (ou de uma palavra para outra) que, segundo Ricoeur (2005), está associada à ideia de empréstimo, uma vez que a palavra nova assume o papel da palavra própria ausente. Aristóteles versa sobre a análise da metáfora em duas de suas obras: Arte Poética e Retórica. Na Arte Poética, este autor apresenta a metáfora como a transposição do nome; ou seja, o acondicionamento de uma coisa para a outra, a “transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia” (ARISTÓTELES, 2007, p. 75). Portanto, toda sorte de transposições que atuam por similaridade ou por contiguidade cujo discurso, via de regra, é emotivo, conotativo, catártico. Cassirer (2009) defende o pensamento de Aristóteles no sentido de tratar a metáfora como gênero e não como espécie, compreendendo o processo metafórico como desencadeador de estratégias, produtor e receptor textual, destacando que: A metáfora é o vínculo intelectual entre a linguagem e o mito. [...] Ora, a autêntica fonte da metáfora é procurada nas construções da linguagem, ora, na fantasia mítica; ora, é a palavra que, por seu caráter originariamente metafórico, deve gerar a metáfora mítica e prover-lhe constantemente novos 52 “En primer lugar, a su presencia en todo tipo de discursos escritos y orales, desde los más antigos de la humanidad hasta los más variados discursos sociales actuales”. 108 alimentos, ora, ao contrário, considera-se o caráter metafórico das palavras tão-somente (sic) um produto indireto, um patrimônio que a linguagem recebeu do mito e que ela tem como um feudo dele (CASSIRER, 2009, p. 102). O uso basilar e apropriado desta figura de linguagem ocasiona enigmas característicos dos contos borgeanos; porém, a metáfora e os vocábulos se constituem como recursos que encaminham para o reconhecimento das relações que organizam entre si, possibilitando comparações reais e objetivas, mas também de ordem subjetiva e externa ao campo das ideias, “onde dois semas parciais se encontram e se superpõem ou se hipostasiam”, cristalizando-se em texto, por conseguinte, em literatura (FILIPAK, 1983, p. 11). De acordo com Barbosa (1974, p. 9), o nascimento da metáfora representa, por assim dizer, a morte da pura designação; isto se levarmos em consideração sua existência. Para este autor, no que concerne ao estudo da metáfora, é necessário considerar “a transformação lingüística (sic) de mitemas e arquétipos que [...] incluem significados antropológicos, não é possível estabelecer o papel desempenhado pelo tropo no sistema de convergência que é o texto” (BARBOSA, 1974, p. 15). Por esta razão, a metáfora atua como um elemento transformador o qual visa a descobrir os parentescos entre os objetos (ou os vocábulos) e uni-los, dando-lhes um novo aspecto. Enquanto recursos retóricos, as metáforas são usadas para instigar a fala, dar mais “força” e “vida” ao discurso, economizando palavras, divulgando novas ideias, montando e desmontando as expressões. Stefano (2006, p. 29), na Retórica aristotélica afirma: [...] o papel da metáfora [...] não reside em constituir um elemento linguístico isolado, e sim, participar ativamente do projeto global que incentiva cada tipo de discurso. A metáfora é tratada nesta obra como um aspecto da elocução, mas está a serviço da persuasão53. (Tradução nossa). Embora a Retórica de Aristóteles seja principalmente uma técnica de eloquência e, portanto, discuta a arte do bem falar, de defender, persuadir, argumentar, deliberar... e a Arte Poética esteja no domínio da poesia, de compor poemas, sobretudo trágicos, ambas estão no limiar de discursos distintos. Isto 53 “[...] la función de la metáfora [...] no reside en constituir un elemento estilístico aislado sino en que participa activamente en el proyecto global que anima a cada tipo de discurso. La metáfora es tratada en esta obra como un aspecto de la elocución, pero está al sevicio de la persuasión”. 109 porque, poesia e eloquência atendem a situações distintas onde a metáfora mostra que “[...] quanto à estrutura, consiste apenas em uma única operação de transferência de sentido das palavras, mas, quanto à função, ela dá continuidade aos destinos distintos da eloqüência (sic) e da tragédia”. Para Ricoeur (2005, p. 23-25), “há, portanto, uma única estrutura da metáfora, mas duas funções: uma retórica e uma poética”. Vale salientar que, como a Poética tem a função de imitação (mímesis), a metáfora é conotativa; já a Retórica, tem função denotativa, visto que trata da argumentação, demonstração; logo, há que provar ou comprovar a veracidade da informação. O autor ainda afirma que é essa distinção entre a eloquência e a poesia que conduz à busca por provas, permitindo adentrar ao universo metafórico, a uma metáfora do nome (anoma), visto que se persegue uma teoria da metáfora, da metáfora-discurso (embora saibamos que esta acontece à palavra, ao nome, não ao discurso) na medida em que existe a transferência de significação dos nomes, consequentemente, a transposição dos termos. Ao passo que acontece um desvio da palavra, há também um empréstimo no que diz respeito a uma palavra presente e a substituição por uma palavra ausente que atribuirá sentido à fala. Sendo assim, para compreender a metáfora é necessário “encontrar a palavra própria ausente; é, portanto, restituir o termo próprio ao qual um termo impróprio se substituiu” (RICOEUR, 2005, p. 80). Neste sentido, as palavras se apresentam como metáforas portadoras de significados os quais estabelecem um horizonte criativo entre o texto e o sentido que se pretende atribuir-lhe. Isso ocorre em função da dessacralização e desmontagem dos vocábulos, ocasionando a montagem de novas palavras que representam a tessitura metafórica em torno de um “objeto”, descobrindo o para-si54 de suas impressões e dos antagonismos que a palavra pode proporcionar, havendo um sentido figurativo o qual é construído a partir de associações e abstrações que podem ser verbais ou não verbais e que, no contra-senso (sic), assinalam uma contradição – elemento constitutivo da metáfora. De acordo com Barbosa (1974, p. 145), a metáfora permite uma “desmontagem interna” dos filamentos vocabulares cuja linguagem assume um cunho poético e, desta maneira, “as bases da metaforização não estão situadas 54 Para-si e contra-senso são expressões usadas por Gilles Deleuze na obra Mil Platôs. 110 senão nos relacionamentos internos atingidos pelo exercício que se realiza nos limites da denotação” (BARBOSA, 1974, p. 148), consequentemente da linguagem, cujo resultado é o texto. A elocução aparece “desfigurada” e repleta de significados, oferecendo possibilidades para novas interpretações, imprimindo a riqueza de associações e a sensibilidade do poeta, bem como o domínio que ele possui da palavra pensada e sentida. Feitas estas explanações, adentraremos à visão de I. A. Richards, Max Black, George Lakoff e Donald Davidson enfatizando, sobretudo, a concepção metafórica de Black (que é embasada também em Richards), a qual será mais aprazível ao contexto literário, bem como aos objetivos deste capítulo. De acordo com a concepção de Richards (1936 apud FOSSILE, 2008, p. 5-6), a retórica não se detém apenas à definição ornamental da linguagem, por isso ele a defende como uma disciplina filosófica que, enquanto teoria do discurso e do pensamento como discurso, exerce forte influência no que concerne às questões relacionadas à metáfora. Para este autor, o significado de uma frase não pode depender de uma palavra, tampouco do sentido que os vocábulos traduzem isoladamente, sendo indispensável que se considere toda a semântica da frase e o contexto no qual está inserida, possibilitando a interação autor/texto/leitor, mas também “abrindo caminhos” para a interpretação da metáfora. Conforme o referido autor, sendo a metáfora um instrumento do pensamento, ela nasce na medida em que está sendo usada; desta forma, é uma habilidade do pensamento e deve ser aprimorada a partir de um contexto (de determinada situação). Neste caso, deve ser compreendida como a própria interação verbal, ou seja, a interação de pensamentos. Segundo Fossile (2008, p. 7), Richards “sugeriu que o leitor de uma metáfora, ao interpretá-la, é conduzido a ligar duas ideias”. Em O Significado de Significado, Richards afirma que a finalidade da fala é servir à comunicação de ideias; mas, para que isso se torne possível, é necessário que as palavras sejam relacionadas às coisas por meio das ideias; ou seja, é preciso estabelecer relações de sentido entre o que está sendo dito, imprimindo emoções, desejos, atitudes e intenções. Não obstante, deve-se observar como são estabelecidas as relações de pensamentos, palavras e coisas (objetos), uma vez que a palavra é viva; logo, o leitor/ouvinte necessita realizar uma ação reflexiva de acordo com o contexto no qual a palavra ou frase se encontra. Isso porque, para cada contexto haverá significados diferentes. 111 Richards (1972, p. 64) afirma que “as palavras podem interpor-se entre nós e os nossos objetos de inúmeras maneiras sutis, se não nos apercebermos da natureza do poder delas”; logo, é de suma importância averiguar a natureza das palavras e o significado que possuem em determinados contextos. Ao leitor/ouvinte é mister analisar a natureza dos significados e o que estes constituem enquanto vocábulos que expressam algo a alguém, pois o significado de uma palavra ou frase muda de pessoa para pessoa, conforme a compreensão de cada uma. No dizer de Richards (1972, p. 218), “na compreensão da linguagem metafórica, uma referência torna parte do contexto de uma outra referência, numa forma abstrata”; neste sentido, o uso da metáfora depende da maneira como as palavras se apresentam e qual a conotação que recebem. Essa figura envolve a mesma espécie de contexto que o pensamento abstrato e o leitor a interpreta da maneira como se apresenta. Nestes termos: A metáfora é a simbolização primitiva da abstração e que se torna possível porque em sua acepção mais genérica, é o uso de uma referência a um grupo de coisas entre as quais existe uma dada relação, com o propósito de facilitar a discriminação de uma relação análoga num outro grupo (RICHARDS, 1972, p. 218). O referido autor considera ainda que a metáfora assume o papel de “agente supremo pelo qual coisas díspares e até então desconexas são ligadas [...] por causa dos efeitos sobre atitudes e impulsos, que decorrem de sua colocação e das combinações que a mente estabelece entre elas” (RICHARDS, 1967, p. 204). Em Princípios de Crítica Literária ele também assegura que metáfora e comparação podem ser consideradas em conjunto, e ambas têm uma grande variedade de funções na fala. Embora não explique como ou por que a metáfora também surge como uma comparação, tampouco esclareça essa variedade de funções na fala, ele defende o fato de uma metáfora poder ser ilustrativa e diagramática, desde que forneça “um exemplo concreto para uma relação que do contrário teria de ser formulada em têrmos (sic) abstratos” (RICHARDS, 1967, p. 203). No dizer deste autor, a ilustração é apenas uma atitude ou pretensão do orador para com o seu tema ou para com a sua audiência e, nesse caso, a metáfora passa a ser usada num sentido trivial. Por fim, Richards (1967, p. 204) argumenta 112 que esta figura admite considerações, haja vista que “fornece um subterfúgio pelo qual o que é necessário pode ser introduzido de contrabando”. Richards afirma que pensamento e metáfora se coadunam superando a compreensão de metáfora como analogia, o que encaminha à concepção cognitiva remetendo a esta figura enquanto um conjunto de processos cujos pensamentos são metafóricos e assevera que a metáfora não é representada apenas por meio das palavras, mas também através da interação pensamento-linguagem-ação, cuja situação (na sua maioria) atuará como o “divisor de águas” no que se refere ao sentido que a palavra ou frase apresentará. O sentido atribuído à totalidade será o resultado dessa interação. Não se pode esquecer que, para haver uma compreensão da metáfora, é preciso que o leitor (falante/ouvinte) tenha certo conhecimento do assunto (ainda que esse conhecimento não seja dicionarizado); do contrário, ele não terá condições de estabelecer as relações de significado necessárias ao entendimento da frase (ou do texto), tampouco será possível articular um discurso que favoreça a percepção de aspectos que perpassam o contexto a que os vocábulos pertencem encaminhando-o para uma realidade circundante. Para Black (1955), a metáfora não é (e não pode ser) um enunciado genuinamente linguístico; ao contrário, é preciso considerar a análise semântica como um todo, pois esta figura envolve um processo cognitivo sendo uma maneira diferente de organizar a realidade. O autor garante que “o significado de uma metáfora pode ser plausível para um leitor e não plausível para outro” (FOSSILE, 2008, p. 7); porque uma mesma metáfora pode ser interpretada de diversas formas, dependendo, naturalmente, da visão e/ou percepção do leitor, bem como da circunstância na qual a palavra ou a frase se encontra. Uma metáfora pode ter sentidos diversos, cada indivíduo pode interpretá-la de diferentes maneiras. Essa figura se apresenta como um elemento central à organização de novas realidades, porque no contexto metafórico a palavra assume um significado diferente e, como resultado, um sentido novo. De acordo com Derrida (apud CULLER, 1997, p. 142), “nenhum sentido pode ser determinado fora do contexto, mas nenhum contexto permite a saturação”. Sendo assim, “o contexto é ilimitado [...] qualquer dado contexto é aberto a maiores descrições. Não há limites, em princípio, ao que poderia ser incluído em um dado contexto, ao que poderia ser mostrado relevante à realização de um ato da fala 113 específico” (CULLER, 1997, p. 142). Em outras palavras, o sentido torna-se restrito ao contexto; no entanto, o contexto é ilimitado e os assuntos fornecidos pelo contexto nunca oferecem respostas plenas; notadamente porque “contra qualquer conjunto de formulações, pode-se sempre imaginar outras possibilidades de contexto, incluindo a expansão do contexto produzida pela reinscrição, dentro de um contexto, da sua descrição”, conforme Culler (1997, p. 148). Black (1955) garante que, como a metáfora relaciona-se diretamente ao significado da palavra em um dado contexto, é preciso atentar para o “uso metafórico” do foco de uma metáfora, pois isso ajudará a entender de que forma determinada estrutura pode resultar no uso de uma metáfora. Às vezes lemos ou traduzimos uma frase (quando se trata de uma língua estrangeira) palavra por palavra e a caracterizamos como exemplo de metáfora sem observarmos o significado que as palavras ou as frases imprimem. Falar sobre metáfora “[...] é dizer algo sobre seu significado, não sobre sua ortografia, sua forma fonética ou sua forma gramatical” (BLACK, 1955, p. 276. Tradução nossa)55, é acima de tudo dizer (ou mostrar) qual a intenção do falante, os pensamentos, sentimentos e ações que a estrutura da frase apresenta em relação ao orador. Deste modo, torna-se indispensável, numa estrutura frasal de uso metafórico, reconhecer e interpretar atentamente as circunstâncias em que as palavras se apresentam. No dizer do autor, algo que também nos ajuda a compreender a metáfora com mais precisão é saber que esta figura é uma espécie de catacrese56, embora nem sempre se possa pensar a metáfora como tal figura. Black compreende que a metáfora não pode ter sentidos limitados, pois, se assim for, além de tolher a capacidade de pensar do indivíduo, impede-o de observar o contexto no qual essa figura se apresenta. É importante salientar que não existe um padrão de observação fixo e infalível, por isso que o falante está sempre produzindo novas metáforas; o que não se caracteriza como algo convencional. A partir das ideias de Richards, Black chega à conclusão de que a visão da Substituição (que considera que uma sentença metafórica inteira substitui uma 55 “[...] to say something about its meaning, not about its orthography, its phonetic pattern, or its grammatical form”. 56 Black (1955) define a catacrese como o uso de uma palavra em sentido novo, que tem o objetivo de remediar um espaço vazio no vocabulário. Em outras palavras, a catacrese significa atribuir novos significados a palavras velhas. 114 sentença literal) e da Comparação (que conduz muitas metáforas à ideia de símile57 elíptico) não se aplica à metáfora enquanto elemento cognitivo. A Teoria da Interação Semântica passa a considerar, em linhas gerais, que, embora a metáfora possua uma série de particularidades: a) um tema primário e um secundário, cujo dualismo é assinalado pelo contraste entre focus58 (a palavra usada metaforicamente. Conteúdo primário) e frame (conteúdo secundário. Representa a frase no contexto literal); b) um enunciado metafórico não pode ser concebido por qualquer paráfrase; logo, ousar interpretações literais suprime o valor cognitivo da metáfora; c) no contexto de uma declaração metafórica a presença do tema primário incita o indivíduo a selecionar determinadas propriedades para serem aplicadas ao tema secundário, mas também instiga o sujeito a estabelecer um paralelo de implicações complexas que podem completar um tema primário. Black considera que essa interação provoca um resultado na mente do indivíduo (falante ou ouvinte). Para tanto, o leitor (falante/ouvinte) deve observar as entrelinhas do texto averiguando o que está implícito em cada palavra; pois, mesmo que não haja “um procedimento” incontestável para diferenciar o metafórico do literal, é possível compreender que as metáforas “podem gerar ‘insights’ de ‘como as coisas são na realidade’” (FOSSILE, 2008, p. 10). Se a metáfora for aceita como um elemento que ajudará a perceber novos aspectos da realidade, os quais serão criados pela própria metáfora, ela passa a ser a instituidora de algo novo; consequentemente, terá um caráter cognitivo, passando a produzir novas associações na mente humana. Mas, ela não pode ser compreendida apenas sob o aspecto cognitivo, visto que também possui um caráter linguístico (semântico), uma vez que os termos que impetram um enunciado interagem conduzindo o indivíduo a perceber que a linguagem determina organizações do pensar, por isso suscita novas realidades. Não há como existir distorções nos termos (salvo apenas se o falante/ouvinte não tiver conhecimento da realidade). Black nos permite vislumbrar a metáfora a partir de uma nova perspectiva da linguagem a qual envolve a interação entre as 57 Cf. Donald Davidson (2001, p. 15), “o símile diz que existe uma semelhança e deixa-nos a tarefa de separar alguma (ou algumas) característica comum; a metáfora não declara explicitamente uma semelhança, mas se aceitamos que é uma metáfora, somos levados uma vez mais a procurar características comuns (não necessariamente as mesmas características que o símile associado sugere). Em geral, os críticos não sugerem que um símile diga uma coisa e signifique outra – não supõem que signifique nada mais do que repousa na superfície das palavras”. 58 Richards denomina o contexto literal de tenor (teor, conteúdo, teoria) e o metafórico de vehicle (veículo). 115 teorias conceituais subjacentes às palavras, tendo linguagem-pensamento-ação como forma de enriquecer a interpretação, permitindo que a metáfora seja percebida como um todo coerente e coeso, sem desprezar o contexto no qual está inserida. Neste sentido, a teoria interacionista de Black assegura que as metáforas possuem “um significado irredutível e um conteúdo cognitivo irredutível [...]. Segundo esta teoria, a paráfrase de uma metáfora não tem o mesmo poder preciso e esclarecedor de uma metáfora” (FILHO, 2004, p. 21). Black compreende que a criação de uma metáfora deposita pequenas mudanças num mundo que é constituído por pensamentos os quais são expressos, nas palavras deste autor, “por nuvens e pedras”, acenando para um mundo de coisas materiais cujas metáforas permitem vê-lo sob perspectivas diferentes, visto que esta figura funciona como recurso cognitivo que propicia ao sujeito observar as coisas de modo particular e especial. A linguagem e a produção do pensamento são fulcrais para que essa relação da metáfora com o enunciado possa ser percebida como sendo capaz de designar novos conhecimentos a partir da intersecção entre significado e discurso metafórico. Teixeira (2007) afirma que o mecanismo é o mesmo da metaforização: uma realidade deve ser percepcionada como tendo com uma outra determinados pontos comuns, onde a metáfora necessita ser compreendida como um processo que engloba todos os elementos constituintes dos mecanismos cognitivos e dos múltiplos saberes do ser humano. A relação que se origina entre metáfora/vida é inalienável, posto que nela também se apresenta a analogia metáfora/história e, nesse caso, cada sociedade possui a sua história; logo, as suas metáforas (LIMA, [s.d.], p. 32). Mesmo como figura de pensamento, a metáfora surge no âmbito da linguagem em uso, tendo em vista que é por meio do contexto discursivo que se pode melhor compreendê-la. Isto é possível em virtude de estudos recentes os quais consideram a transferência do locus da metáfora da linguagem para o pensamento, analisando “a primeira apenas como um espaço em que as evidências da metáfora conceptual seriam materializadas”, onde a linguagem passa a ser vista “a partir de uma perspectiva discursiva, ou seja, para o uso da metáfora em situações reais de linguagem em uso” (VEREZA, 2007, p. 490). Salientamos, contudo, que isto não representa um recuo à concepção meramente linguística da metáfora, característica da visão tradicional, a qual 116 estamos discutindo ao longo deste capítulo. Para Vereza (2007, p. 491), “a visão discursiva da metáfora pressupõe a metáfora conceptual59, como importante ferramenta na construção de significados em determinados campos do discurso”, pois existe a possibilidade de transferir “a metáfora da mente para o mundo”, mas também analisá-la sob uma perspectiva crítica que permita a combinação do “enfoque cognitivo com o enfoque pragmático, esse último podendo ser articulado a uma teoria geral da argumentação, para que possamos compreender melhor o uso da metáfora, convencional ou nova, no discurso persuasivo”. A metáfora se apresenta sempre em um contexto (ou acontecimento) comunicativo, cultural e discursivo cuja enunciação permitirá possibilidades interpretativas, haja vista a coadunação de pensamento, linguagem e ação caracterizando, no dizer de Mey (2006 apud VEREZA, 2007, p. 493), “a origem tanto do pensamento como da linguagem na ação humana”; o que envolveria inclusive as metáforas mortas (que teriam vida no discurso), saindo de seu estado petrificado para assumir um papel de destaque na enunciação, “caso as atividades das quais se originariam surjam, a partir de um ato pragmático, em um dado cenário discursivo”. Segundo Vereza (2007, p. 498), “as proposições metafóricas, cognitivamente inter-relacionadas, ajustam-se no todo, funcionando como elementos construtores da argumentação”. Por este motivo, existe uma tessitura argumentativa que permite à metáfora urdir a argumentação e gerenciar redes metafóricas capazes de mapear os elementos que constituem o que podemos chamar de metáfora central cuja intenção seria intercruzar não apenas as propriedades enunciativas, mas, principalmente, os diferentes domínios cognitivos e discursivos para fins argumentativos e para “as próprias fundações do sentido: ação, linguagem, pensamento” (VEREZA, 2007, p. 502). Além das fundações de sentido, a metáfora se faz presente nas relações que são instituídas em torno das imagens construídas a partir de analogias, com o intuito de mostrar, explícita ou implicitamente, imagens novas as quais serão (e são) formadas através da probabilidade de designar uma nova existência, pois “ao atuar em nosso sistema conceptual, uma nova metáfora pode alterá-lo trazendo-lhe formas novas de atuações culturais e sepultando as antigas, fazendo circular outras 59 Cf. discussão apresentada por Filipak (1983); Stefano (2006) e Díaz (2006). 117 possibilidades de conhecimento” (MATOS, [s.d.], p. 2), tendo em vista que a metáfora se caracteriza como elemento poético e representa a poesia em si mesma. Ressalve-se que a metáfora dialoga com o entendimento e os anseios do leitor no instante em que cria “elos entre a obra e o ‘fora’ e o ‘dentro’ de nós, [...] reconhecendo o OUTRO de dentro e o OUTRO de fora. Não importa a idade em que isso acontece, mas a empatia que se estabelece entre os parceiros (texto e leitor)” (MATOS, [s.d.], p. 6). Assim, à medida que o indivíduo amplia sua concepção leitora evolui no que concerne ao modo de entender o contexto no qual as metáforas se apresentam, bem como ressignifica-se enquanto sujeito-leitor. O emprego da metáfora “facilita” o poder de persuasão em função de os argumentos se tornarem mais convincentes, pois denotam naturalidade na fala, haja vista que é uma figura a qual se faz presente tanto no linguajar formal quanto no informal com a intenção não apenas de persuadir (ou comover), mas também de explicar ou ensinar algo. Se se pensar sob o prisma da Retórica aristotélica, o uso da metáfora é um “facilitador” indispensável à argumentação e à persuasão. Mas, não se pode esquecer que, para a metáfora ser interpretada, é necessário que o leitor estabeleça relações com o dito e o interdito, evitando assim, as prováveis obscuridades e o não cumprimento da função metafórica. Entendemos que a metáfora se apresenta como uma figura que está além de uma mera substituição porque envolve uma série de relações constituídas a partir de vários pontos os quais compreendem, inclusive, os argumentos que são utilizados ao longo do discurso, mapeando o texto e implementando-lhe um sentido que será reatualizado na medida em que o leitor pensar as possibilidades de interpretação, mas também perceber a semântica como um importante aspecto atribuidor de significação. No dizer de Ricoeur (2005), é restituir o texto à vida, porque o novo sentido terá um referente que permitirá aquiescer a algo novo no que diz respeito à realidade, propiciando uma melhor compreensão tanto do discurso quanto da realidade que o circunda. Para que o emprego da metáfora obtenha êxito ante a argumentação e o discurso faça sentido, é necessário que o termo a ser utilizado tenha se estabelecido a partir de um uso comum; ou seja, que o vocábulo se apresente instituído por meio do hábito e a organização dessa palavra esteja vinculada ao caráter cognitivo das expressões metafóricas as quais propiciarão uma nova compreensão cognitiva, 118 descartando-se a possibilidade de haver ambiguidades, posto que a metáfora envolver-se-á entre dois domínios: o convencional (usual) e o novo, afastando, por assim dizer, o casual e o ambíguo. É importante salientar que tanto o uso convencional quanto o novo são legítimos e não há diferença cognitiva entre ambos; logo, existe uma relação entre verdade literal e verdade metafórica60 que não garante a eficácia cognitiva, pois “o que torna a verdade metafórica eficaz é o fato das afinidades entre o referente literal e o referente metafórico, que põe em destaque, serem convenientes e informativas para o objetivo que se tem em vista” (FRANCISCO, 2001, p. 36). A metáfora atua como um jogo de semelhanças que são intercaladas ao discurso, cuja interpretação descortina o sentido, de modo que possibilita uma interação significativa entre texto e contexto e essa “interação significativa é desvelada pela interpretação, criando e mostrando a própria metáfora”61, sem que haja uma destituição de sentido; havendo, por assim dizer, perspectivas favoráveis à própria linguagem. Segundo Ricoeur (2005, p. 305-306), a imagem que a metáfora produz se torna também condição e possibilidade de sentido, notadamente porque oferece à imaginação a oportunidade de resolver a incompatibilidade semântica que se estabelece em nível de sentido literal, fazendo “da imaginação o lugar da emergência do sentido figurativo no jogo da identidade e da diferença”, onde a imaginação proporciona “uma dimensão do verbal e, antes de ser o lugar dos perceptos desbotados, ela é o das significações nascentes”, porque apresenta um caráter necessariamente semântico. Francisco (2001, p. 54-55) reitera que “a metáfora é uma invenção livre do discurso”; no entanto, “cada metáfora exige outra e evoca toda uma rede de intersignificações”, garantindo uma relação de equilíbrio e criando uma nova realidade sem afastar-se da realidade (ou da verdade) anterior. Isto acontece em virtude de a metáfora apresentar-se sob a perspectiva da semântica da frase e não da palavra, necessitando de uma interpretação compatível com o que se pretende alcançar em relação ao enunciado, ou seja, uma interpretação que possibilite um 60 Para Francisco (2001, p. 35-36), “[...] a verdade literal não tem qualquer privilégio em relação à verdade metafórica, a não ser a de estar mais estabilizada, o que constitui apenas uma diferença de grau”. O autor reitera que o deslocamento do termo e de todo o esquema pode “facilitar” as relações que existem entre os domínios auxiliando na compreensão da metáfora usual ou nova. 61 Ibid., p. 40. 119 sentido novo e constitua uma nova verdade, pois “[...] tudo se passa na linguagem, quaisquer que sejam as associações no espírito do escritor ou do leitor” (RICOEUR, 2005, p. 290). Por seu turno, Lakoff e Johnson62 afirmam que a metáfora sempre foi vista como algo restrito à linguagem; por esta razão ignorava-se o uso desta figura sob a perspectiva do pensamento e ação. Para estes autores, “nosso sistema conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos, mas também agimos, é fundamentalmente metafórico por natureza” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 45), porque o uso da metáfora faz parte do cotidiano das pessoas. Os autores asseguram que, cotidianamente, pensamos e agimos quase que automaticamente, embora sigamos certas linhas de conduta. Feito isto, estamos nos utilizando de um sistema conceptual, por assim dizer, metafórico. Por isso, o que pensamos, experienciamos e como agimos a cada dia é uma “questão de metáfora”. Logo, a metáfora está essencialmente centrada no pensamento; embora tenha uma materialidade linguística que compreende projeções e correspondências. No dizer dos autores supracitados, o locus da metáfora é o pensamento e não a linguagem. Essa figura se torna uma parte importante e indispensável da nossa forma ordinária e convencional de conjecturar e ler o mundo; especialmente porque o nosso comportamento diário manifesta nossa compreensão metafórica da experiência. Com base nesta reflexão, Lakoff (2012, p. 96) questiona: “Existe algum conceito que entendamos diretamente, sem metáforas? Se não, como é possível entender alguma coisa?”63. (Tradução nossa). A indagação é respondida da seguinte forma: [...] A estrutura de nossos conceitos espaciais surge de nossas experiências espaciais constantes, ou seja, a nossa interação com o ambiente físico. Os conceitos que emergem dessa forma são conceitos que vivemos da maneira mais fundamental64. (Tradução nossa). 62 Em 1980 George Lakoff e Mark Johnson lançaram Metaphors we live by, traduzido para o Português como Metáforas da vida cotidiana, livro que revolucionou os estudos da época, visto que apresenta a metáfora como onipresente e essencial na linguagem e no pensamento. Os autores propõem-na também como metáforas conceituais e subjacentes às expressões linguísticas. Esta tese levou os indivíduos a pensar que conceitos básicos relativos a tempo, estado e ação, bem como raiva, amor e demais sentimentos eram compreendidos por vias metafóricas, evidenciando assim, a relevância da metáfora para a vida das pessoas. Ressaltamos ainda que, embora a obra seja da autoria de George Lakoff e Mark Johnson, doravante estaremos utilizando apenas o sobrenome do primeiro autor, sem, evidentemente, desmerecer a coautoria do segundo; para nós é apenas uma forma de seguir a bibliografia que pudemos constatar em pesquisas anteriores. 63 “¿Existe algún concepto que entendamos directamente, sin metáforas? Si no es así, ¿Cómo es posible entender algo?”. 64 “[...] la estructura de nuestros conceptos espaciales surge de nuestras experiencias espacial constante, es decir, nuestra interacción con el medio físico. Los conceptos que emergen de esta forma son conceptos de los que vivimos de la manera más fundamental”. 120 Essa experiência de que trata Lakoff envolve também um contato com a cultura, os valores e atitudes formando conceitos os quais conduzem o indivíduo a perceber que toda experiência tem um lugar dentro de um vasto conjunto de pressuposições culturais, isso implica dizer que a cultura de um povo fará parte de suas experiências. Para este autor, a metáfora tem como essência compreender e experienciar uma coisa com base em outra, ou seja, é uma figura básica e convencional no instante em que atua como correspondência fixa. Lakoff defende uma classificação para as metáforas em: metáforas estruturais, orientacionais e ontológicas65. Na teoria contemporânea temos a metáfora imagem (que está relacionada à função cognitiva) a qual é realizada por meio da projeção de um domínio conceptual fonte para um domínio conceptual alvo. Esses domínios são formados a partir de imagens mentais, deixando de lado a ideia de conceitos. As imagens são projetadas com base no conhecimento prévio do sujeito e as projeções passam a ser desenvolvidas (ou formuladas) através de imagens mentais convencionais, sem que haja a necessidade de o indivíduo recorrer às palavras que remetam a determinada representação. Há, portanto, uma liberdade de pensar e expressar esses pensamentos. Lakoff assegura que, sendo a metáfora imaginativa, o raciocínio do indivíduo apresenta sucessivamente implicações e inferências metafóricas, até porque a racionalidade imaginativa também é da ordem metafórica. Esses processos cognitivos certamente funcionam como respostas dos mecanismos perceptivos a determinadas situações e, quiçá, a certas indagações que poderão ou não ter respostas. Os esquemas de imagens66 estão diretamente associados às metáforas, visto que servem para estruturar conceitos complexos e possuem vínculos intrínsecos com a percepção que o sujeito apresenta do corpo, dos movimentos corporais e do formato dos objetos que terminam por estruturar modelos cognitivos. De acordo com 65 Nossa pesquisa não tem a finalidade de esmiuçar essa classificação metafórica, mas o leitor poderá encontrá-la no livro Metáforas da vida cotidiana, de George Lakoff e Mark Johnson; atualmente, disponível apenas na edição em espanhol. 66 Lakoff e Johnson (1987) apresentam cinco tipos básicos de modelos cognitivos os quais contribuem significativamente para a estruturação das experiências físicas do indivíduo quer no plano conceitual quer no plano linguístico. Os tipos de modelos cognitivos apresentados por estes autores são: proposicionais, esquema de imagem, metonímico, metafórico e simbólico. 121 Sperandio (2010, p. 26), alguns desses modelos são: origem-percurso-meta, container, parte-todo, centro-periferia, ligação. Para Lakoff, os esquemas imagéticos se fundamentam tanto nas experiências relativas ao corpo quanto nas experiências humanas em geral. Ele afiança que: Os esquemas imagéticos dão uma evidência de particular importância para alegação de que o raciocínio abstrato é uma questão de duas coisas: (a) a razão é baseada em experiência corpórea, e (b) as projeções metafóricas vão do domínio concreto para o abstrato (LAKOFF, 1987, p. 275 apud FILHO, 2004, p. 78). A metáfora faz parte do pensamento e integra o sistema cognitivo humano não se restringindo apenas à linguagem, como preconizam muitos autores. Por este motivo, compreendê-la significa entender e aceitar que há esses dois domínios (fonte e alvo) cognitivos os quais estão sendo mapeados no intuito de que haja uma relação entre ambos. Desta forma, a metáfora propicia a criação de novas realidades a partir do momento em que é dada ao sujeito a oportunidade de pensar e expor seus pensamentos. Neste sentido, Davidson (2011, p. 1) considera que “a metáfora é o sonho da linguagem e, como em todo o sonho, a sua interpretação reflete tanto o intérprete como quem a origina”. Para ele, torna-se um desafio pensar o abstrato para torná-lo concreto. A interpretação que o indivíduo faz da expressão metafórica, associada ao contexto, “requer colaboração entre alguém que sonha e alguém em estado de vigília, ainda que seja a mesma pessoa; e o ato de interpretação é, ele próprio, um ato da imaginação” (DAVIDSON, 2011, p. 1). A interpretação que o sujeito atribui ao texto incide num esforço criativo que não precisa, necessariamente, estar orientado por regras. Ele ainda considera a metáfora como um fenômeno de grande utilidade cujas asserções estão centradas no uso desta figura. Segundo Davidson, a interpretação da metáfora incide tanto sobre o seu criador quanto sobre o seu intérprete; porque demanda um trabalho mútuo que deve revelar o caráter criativo de um processo no qual não há regras. De acordo com Filho (2004, p. 42), “o significado literal dos termos tem base na teoria vericondicional67 de significado e, portanto, toda sua análise se desenvolve alicerçada na premissa de que o significado dos termos independe do contexto”. 67 Castro (2009, p. 22) explica que para a semântica vericondicional o valor de verdade de uma sentença é o que nos dirige do sentido para a referência. Ele reitera ainda que sentido e referência não são propriedades absolutas das expressões linguísticas, mas dependem do contexto linguístico ou do contexto da proposição. 122 Segundo Davidson (2011) as afirmações metafóricas contidas numa frase ou sentença significam aquilo que está sendo dito literalmente. Ele reforça a tese de que a metáfora não traz em si nenhum conteúdo significativo, apresenta apenas o sentido literal e não admite que a sentença metafórica apregoe um insight, ainda que esse fenômeno o propicie. Por este motivo, defende que “condições de significado literal e de verdade literal podem ser atribuídas a palavras e sentenças fora de seus contextos particulares de uso. Essa é a razão pela qual aludir a elas tem um verdadeiro poder explanatório” (DAVIDSON, 1992, p. 36). Neste caso, a interpretação metafórica somente ocorre por meio do significado literal dos termos, bem como da semelhança que porventura evoquem. Davidson exclui qualquer possibilidade de uma relação de sentido com a teoria da interação de Black, descartando veementemente a probabilidade de algum conteúdo cognitivo ser expresso pelas sentenças. Nas palavras de Filho (2004, p. 46), Davidson: [...] rejeita duas formas de visão referencialista da metáfora: o mesmo assevera que a metáfora não é um símile abreviado, em cujo caso os significados literais de ambos seriam iguais, e também rejeita a ideia de que o significado figurativo de uma metáfora é igual ao significado literal de um símile correspondente. Em ambos os casos, o significado metafórico seria óbvio. Por meio da assertiva, Davidson também rejeita a possibilidade desta figura expressar um insight, tendo em vista que ela não apresenta nenhuma semelhança; no entanto, “[...] nos faz notar certa semelhança, frequentemente, uma semelhança nova ou surpreendente, entre duas ou mais coisas” (DAVIDSON, 1992, p. 37). Conquanto a metáfora não denote significados, seu uso termina por produzir uma percepção de similaridade incitando o desejo de descobrir os sentidos que essa figura apresenta (DAVIDSON, 1992, p. 37). O autor entende ainda que a metáfora pertence exclusivamente à esfera do uso e, por isso, depende totalmente dos significados que as sentenças abrangem. No contexto literário, a metáfora surge para significar o que o poeta vivencia. Não se trata apenas de uma transposição da linguagem denotativa para a Sendo assim, o conteúdo significativo de um texto só pode ser definido dentro de um contexto frasal proposicional, ou seja, nos limites da sentença. 123 conotativa; existe a liberdade do escritor em se utilizar de um modo particular de pensar e escrever. No dizer de Netto (1974, p. 39), a metáfora torna-se necessária na medida em que o escritor depende dela para expressar-se. É no instante em que recorre a esse recurso que ele se “individualiza como poeta”, haja vista que na metáfora está presente “um pouco da interpretação do mundo do poeta”. Para este autor, a metáfora “pode ser concebida como um processo radical em que são alcançadas as relações internas peculiares à poesia” (NETTO, 1974, p. 37). Na obra borgeana essa figura não surge como algo que o escritor pode ou não escolher, pois aparece de maneira imprescindível à compreensão dos poemas ou contos e, de modo geral, confunde-se com a alegoria devido a não se apresentar apenas como uma figura de linguagem, um tropo. A metáfora é, por assim dizer, o que dá vida ao discurso. As narrativas borgeanas montam e desmontam essas relações metafóricas desdobrando-as por meio de imagens, cores e um visual os quais são possíveis de absorvê-los sem que haja maior preocupação com as vinculações semânticas, cujas palavras surgem modeladas ao contexto a que pertencem, permitindo ao leitor vislumbrar a correspondência que instituem entre sentido e imagens, podendo, por vezes, serem transformadas em verdadeiras alegorias. Estaremos apresentando, ao longo de nossas considerações, excertos do poema Inscrição em qualquer sepulcro com a finalidade de pensar como se apresenta a metáfora e quais aspectos da linguagem são elucidados por Borges (1999, p. 33): Não arrisque o mármore temerário gárrulas transgressões à onipotência do esquecimento, enumerando com meticulosidade o nome, a opinião, os acontecimentos, a pátria. Tanto avelório bem atribuído está às trevas e o mármore não fale o que calam os homens. O essencial da vida fenecida – a trêmula esperança, o milagre implacável da dor e o assombro do gozo – sempre perdurará. Cegamente reclama duração a alma arbitrária quando a tem assegurada em vidas alheias, quando tu mesmo és o espelho e a réplica daqueles que não alcançaram teu tempo e outros serão (e são) tua imortalidade. 124 Nesta inscrição, o poeta apresenta um jogo metafórico que evidencia o trabalho com imagens. As “gárrulas transgressões à onipotência do esquecimento” nos conduzem à morte como causa natural ao esquecimento do sujeito. As gárrulas passam a ser entendidas como um indivíduo falador e que comete pecados diante de Deus. Ainda que suas qualidades “o nome, a opinião, os acontecimentos” sejam enumeradas com cautela e que suas origens sejam lembradas, inevitavelmente, ele estará nas trevas. Tanto avelório bem atribuído está às trevas e o mármore não fale o que calam os homens. Ousar aventurar-se a ornamentar a lápide depois de tanta bagatela (ou mesmo querer que seja decorado com canudilhos de vidros ou demais enfeites), não significa dizer que o mármore dirá o que não dizem os homens. A fala agora será tolhida em virtude do suposto respeito à memória do morto e o que pode acontecer-lhe para não ser de todo esquecido é a inscrição em algum sepulcro. Afora isto, não mais será lembrado. O essencial da vida fenecida – a trêmula esperança, o milagre implacável da dor e o assombro do gozo – sempre perdurará. Ainda que esteja nas trevas esse sujeito reclamará a vida, mostrará que a esperança o fez inseguro, a dor inesperada o fez insensível, assim como o encanto do prazer fê-lo persistir e reclamar uma volta, mesmo que através de vidas alheias: Cegamente reclama duração a alma arbitrária quando a tem assegurada em vidas alheias, quando tu mesmo és o espelho e a réplica daqueles que não alcançaram teu tempo e outros serão (e são) tua imortalidade. Conforme o excerto, é possível observar que o espelho que o deixa ver-se também é aquele que o permite imitar aqueles que não alcançaram seu tempo, mas que virão para imortalizá-lo, tornando-o tanto uma projeção de si mesmo quanto cópia fiel de sua imagem: “quando tu mesmo és o espelho e a réplica”. 125 As palavras são utilizadas com o intuito de revelar aspectos emocionais os quais também estão relacionados com a vida psíquica do sujeito, expondo traços que caracterizam essa relação a qual é evidenciada da segunda a quarta estrofes do poema: gárrulas transgressões à onipotência do esquecimento, enumerando com meticulosidade o nome, a opinião, os acontecimentos, a pátria. Esses estados emocionais e psicológicos são transpostos para uma “nova vida” na medida em que o indivíduo acredita que “– a trêmula esperança/ o milagre implacável da dor e o assombro do gozo –” continuamente perdurarão; ou seja, ele sofreu, pagou pelos seus pecados e agora merece estar de volta, mesmo que seja através de vidas alheias (e que continue a sofrer) a partir das quais será possível ver-se através do espelho e obtemperar a sua imortalidade. O estado emocional e psíquico corrobora para que esse sujeito exponha, de certa forma, a subjetividade do poeta, que aparece como alguém que está preso às angústias, tristezas e intempéries da vida, confrontando o estado natural (a morte) com o estado da alma (a vontade de ser imortalizado e voltar a viver através de vidas alheias). Na metaforização da vida através da alma “intervieram vários recursos da linguagem que se tornaram, eles mesmos, metafóricos” (NETTO, 1974, p. 44), determinando o tratamento que Borges dá ao poema, mas também a montagem e desmontagem das metáforas para dizer o outro (que pode ser ele mesmo). Mesmo que o indivíduo não seja lembrado e que a inscrição na lápide não fale o que o homem diria de bom ou de ruim, ele passa a ser imortalizado através de outras vidas e, no momento em que se vê no espelho, tem a certeza de que outros serão (e são) também a sua imortalidade. Sendo assim, a cadeia causal de esquecimento atua como fios tecidos por similaridade cuja “desmontagem da metáfora utilizada pode vir a ser um recurso de articulação entre a construção do texto e a realidade” (BARBOSA, 1974, p. 22), apresentando-se como um artifício retórico o qual, devido à conotação, oferece uma abertura de significados maior em relação ao texto denotativo. A analogia que se estabelece entre as metáforas expõe ideias e objetos incertos, sugerindo comparações com outros elementos na tentativa de “facilitar” a 126 compreensão daquilo que o autor apresenta no que diz respeito às palavras e seus referentes, uma maneira que Borges utiliza “para evocar outra coisa, ou seja: para funcionar metaforicamente” (NETTO, 1974, p. 32), como acontece com todos os elementos de que faz uso no poema. O real aparece recriado para revelar o ser a partir de categorias já existentes as quais não são expostas em virtude de amedrontar o espectador. Por este motivo, busca-se instaurar uma linguagem metafórica que instrumentalize a percepção desse sujeito revelando sua essência, bem como suas vontades. Não significa dizer que: [...] se tenha distanciado da realidade empírica referida na linguagem convencional existente (ou pré-existente) a ponto de considerá-la uma espécie de quantité negligeable. Propõe, no entanto, um novo tipo de leitura e compreensão mais voltado para a sua combinatória [...] do que para a realidade inserida numa semântica pré-formada (NETTO, 1974, p. 33). Neste sentido, a linguagem se mostra à vontade, fazendo articulações e estabelecendo relações que, se não estivessem sob o prisma metafórico, provavelmente não poderiam ser combinadas. Temos o esclarecimento da poesia a partir de si mesma, num espaço que não é do leitor, mas dela própria; uma junção da metáfora com a alegoria simbolizando o que há de secreto entre o céu (onipotência) e a terra (trevas) e que nos é revelado através da utilização das palavras, mas, sobretudo, no conceito de escritura que perpassa a obra borgeana. As metáforas se materializam no instante em que as expressões passam a ser entendidas como grupos de palavras conjecturando a condensação vocabular dos elementos envolvidos no processo de desenvolvimento dos signos que configuram as equações metafóricas (NETTO, 1974, p. 53). É sabido que essa figura apregoa analogias, similaridades e correlações entre coisas e objetos; não obstante, no contexto literário se expande e designa “essas analogias, correspondências e semelhanças através [...] do desvio em relação à realidade do discurso ordinário” (NETTO, 1974, p. 68). De acordo com Ricoeur (2005, p. 43), “se, formalmente, a metáfora é um desvio em relação ao uso corrente das palavras, de um ponto de vista dinâmico ela procede de uma aproximação entre a coisa a nomear e a coisa estranha à qual ela empresta o nome”. Por esta razão aparece desvinculada dos contextos em que se encontrava imobilizada, podendo desenvolver um corpo verbal na medida em que 127 passa a ser ampliada e constitui a mudança de uma denominação; “é esse seqüestro (sic) do gênero por meio da semelhança que torna a metáfora propriamente instrutiva” (RICOEUR, 2005, p. 47). A essa figura atribuimos acontecimentos na medida em que ocorre, segundo Ricoeur (2005, p. 93), a oposição entre o uso livre e o uso forçado, indispensável ao sentido figurado do tropo o qual “não é a própria relação: a relação é aquilo pelo que o tropo acontece”. Essa relação ocorre entre duas ideias semelhantes à epífora aristotélica; isto porque Aristóteles apresenta a metáfora como gênero e não como espécie. Na realidade, é uma figura que assinala o que fora nomeado, expondo uma ideia – o que a palavra traduz – por meio de outra mais clara (ou mais conhecida). Para Filipak (1983, p. 31), “os autores modernos afirmam que a metáfora vê duas coisas numa só, portanto o papel da metáfora é ser sintética [...]”; é por isso que ela se distingue da comparação, que é analítica e discursiva. Em Gramatologia, Derrida (2008, p. 330) afiança que “o natural, o que era inferior e anterior à linguagem, age a posteriori na linguagem, opera nela depois da origem e nela provoca a decadência ou a regressão”. A língua progride ou regride na medida em que sua origem é dominada ou apagada; desta forma, a linguagem torna-se naturalmente metafórica, visto que “a metáfora é o traço que reporta a língua à sua origem” (DERRIDA, 2008, p. 330) e, embora a linguagem metafórica tenha início com a poesia, a primeira metáfora não é poética em virtude de ser agida e não cantada. Nestes termos, a língua passa por uma mudança contínua que transcorre da linguagem de ação para a linguagem de fala. O referido autor afirma que: Antes de deixar-se prender em signos verbais, a metáfora é a relação de significante a significado na ordem das ideias68 e das coisas, segundo o que ata a ideia àquilo que ela é a ideia, isto é, já o signo representativo. Então, o sentido próprio será a relação da ideia ao afeto que ela exprime. E é a inadequação da designação (a metáfora) que exprime propriamente a paixão (DERRIDA, 2008, p. 336). As metáforas aparecem “desamarradas dos contextos em que se haviam imobilizado e com isso remetidas ao seu flutuante enigma germinal” (NETTO, 1974, p. 96), em virtude da formulação das ideias “velhas” (constituídas a partir de uma 68 Embora a edição de 2008 não esteja atualizada conforme o novo acordo ortográfico, julgamos pertinente fazer a atualização das palavras para evitar o excesso de repetição da expressão latina sic, usada para indicar que há desvio de grafia. 128 significação primitiva) e “novas” (resultantes da substituição tropológica da palavra pré-existente), cuja ligação ocorre quando o componente de pensamento subjacente à palavra designa duas ideias, onde a metáfora (por analogia) aparece com a finalidade de caracterizar o que já foi nomeado. A abrangência que esta figura de linguagem exerce no contexto da língua e da literatura habitualmente também se faz presente nas imagens, na música, no cinema e, de um modo geral, nas artes. Com isso, percebemos que a relação desta com os objetos passa a ser inferida a partir do referente e do contexto no qual se encontra, envolvendo um sistema simbólico que perpassa imagens, música, linguagens e, de modo particular, os saberes. As palavras adquirem uma conotação metafórica por meio de termos basilares que são utilizados sob a perspectiva de uma nova organização, uma vez que, através de um conjunto de situações existentes, as novas ocorrências assumem a organização de termos ou condições familiarizadas. Sendo assim, o emprego da metáfora exige atração em função da necessidade de conhecer e saber empregá-la, mas também resistência, pois é preciso que se mantenha ante o “velho”. É mister que exista uma articulação entre o sentido literal e o metafórico com a finalidade de se fazer compreender, por isso é imprescindível que o contexto explicite a seleção de determinadas propriedades que conduzam – dadas a sua relevância – ao metafórico. O conjunto de situações apresentadas em alguns momentos passa por um processo de territorialização/desterritorialização/reterritorialização no instante em que assume uma função diferente da habitual (ou convencional) ofuscando, por vezes, o sentido literal para apropriar-se do metafórico, dando vida nova àquilo que propõe mostrar, bem como ressignificando a experiência. É por esta e outras razões que a metáfora designa realidades que adentram as fronteiras da linguagem para explicitar (ou dizer) o indizível, que termina se configurando como imagens de estilo, cuja emoção quase sempre prevalece, evidenciando que, sem o uso de metáforas, comparações ou mesmo alegorias, o texto perde a “roupagem” e torna-se “desnudo”. Os textos adquirem brilho quando são frequentemente enriquecidos pela presença da metáfora. No dizer de Cassirer (2009, p. 103-106) a metáfora não deve ser entendida simplesmente como “a atividade deliberada de um poeta, a transposição consciente de uma palavra que passa de um objeto a outro”, porque não acontece apenas a 129 transposição ou a transferência de uma palavra por outra, e sim, a criação de um termo novo que passará de um território em que predominava enquanto classe de palavra para reterritorializar-se como “a própria criação da classe em que ocorre a passagem” determinando ou delimitando a metáfora. A metáfora, segundo Cassirer (2009, p. 112), provém do ato de concentração o qual é concebido por meio da percepção, constituindo “o pressuposto indispensável à formação de cada conceito verbal”, pois a partir do momento em que este conceito é evidenciado, verificamos a possibilidade de enriquecer a linguagem através da metaforização. Filipak (1983, p. 96) reitera o fato de que a metáfora consiste na associação de ideias numa operação analógica, cujo juízo tanto pode ser semiótico e denotativo, quanto factual e conotativo, visto que o código é enriquecido em função de não haver previsibilidade, desenvolvendo-se no campo puramente mental ou psicológico. Por este motivo, torna-se a abstração de certos atributos que operam por substituição e por analogia, funcionando também como “um princípio onipresente da linguagem”69, a qual por vezes é considerada como um fenômeno complexo que traz consigo a ponta de um iceberg que evidencia situações cuja linguagem e pensamento denotam interesses os quais tangenciam questões relativas também à argumentação e compreensão textual. Compreendemos que a narrativa borgeana se apresenta como uma literatura cognitiva no sentido em que se resguarda de algo (fala a respeito de alguma coisa); alude a situações diferentes, graças à utilização de expressões metafóricas e das imagens que se revelam ao longo do poema Inscrição em qualquer sepulcro, bem como dos contos que serão analisados neste capítulo, caracterizando-se como símbolos que anunciam o concreto a partir do abstrato. Isto é possível em virtude de compreender a metáfora não apenas como uma espécie de deslocamento, mas, sobretudo, como uma figura necessária à argumentação e persuasão, permitindo o alargamento dos sentidos, posto que “a semelhança é [...] a condição de possibilidade para que se possa alargar as significações para além do uso comum [...]”, servindo de razão para substituir uma palavra literal por uma palavra figurativa (FRANCISCO, 2001, p. 31); por isso que a metáfora assume o lugar de um vocábulo não metafórico que poderia ter sido 69 FILIPAK, Francisco. Teoria da metáfora. Curitiba: HDV, 1983, p. 99. 130 empregado, porém não denotaria o mesmo efeito. Isto porque, de acordo com Aristóteles (2007, p. 78): O meio de contribuir em larga escala para a clareza, evitando a vulgaridade, são os alongamentos, as apócopes e as modificações introduzidas nas palavras; pelo fato de mudar a fisionomia dos termos correntes e de sair da rotina, evita-se a banalidade, mas a clareza subsistirá na medida em que as palavras participarem dessa rotina. [...] Se, em vez destes vocábulos estranhos, das metáforas e de outras figuras de palavras, usarmos palavras correntes, ver-se-á que dizemos a verdade. A noção de empréstimo que a metáfora exerce a faz pertencer a um domínio que obedece a uma aplicação determinada a qual lhe é conferida a partir do uso comum, cuja semelhança termina aceitando a substituição da palavra convencional por uma de cunho metafórico, “por isso a significação substituída não representa nenhuma inovação semântica. Podemos traduzir a metáfora, isto é, repor o sentido literal de que a palavra figurativa é um substituto” (FRANCISCO, 2001, p. 32). Ricoeur (2005) afirma que podemos resolver usar uma expressão figurativa de modo a agradar ou, quiçá, seduzir o nosso espectador. É latente a maestria com que Borges realiza esta ação. De modo geral, podemos dizer que Borges opera com metáforas conceptuais, tendo em vista que estas são de cunho sistemático e semântico, referindo-se a diversos aspectos do mesmo acontecimento e “[...] fazem concreto o abstrato, fazem físico o psíquico, remetem ao velho para dizer o novo, etc”70 (DÍAZ, 2006, p. 57. Tradução nossa). As metáforas conceptuais “[...] são parte do aparato conceitual compartilhado por todos os membros de uma cultura, por isso mesmo têm uma certa regularidade que as torna compreensíveis”71 (DÍAZ, 2006, p. 57. Tradução nossa). Independente de como a metáfora seja utilizada, é fundamental observar qual a finalidade desse uso, o que se pretende através dele e, principalmente, se está adequado ao contexto. Deve-se empregar essa figura de maneira apropriada para evitar que ocorram exageros, inadequações, averiguando se o uso está de acordo com a argumentação pretendida; do contrário, poder-se-á produzir um discurso no qual as metáforas não convençam o leitor em relação ao que se pretende dizer. Observar o emprego da metáfora na narrativa borgeana é conjecturar as nuances de sentido que permeiam o contexto do discurso sem perder de vista os 70 “[...] hacen concreto lo abstracto, hacen físico lo psíquico, remiten a lo viejo para hablar do lo nuevo, etcétera”. 71 “[...] son parte del aparato conceptual compartido por todos los miembros de una cultura, y por eso mismo tienen una cierta regularidad que las hace comprensibles”. 131 aspectos do sensível que partilham as sentenças. Não podemos centrar nas palavras, pois, desta forma, estaremos nos atendo ao literal esquecendo-nos de que os vocábulos estão inseridos em situações que, embora pareçam específicas, abrangem diversos contextos e podem apresentar vários significados, dependendo da percepção do leitor. A seguir, adentraremos as seções que compõem este capítulo, as quais têm a finalidade de fazer uma abordagem dos contos A biblioteca de Babel, A metáfora, O espelho e a máscara, através dos quais destacaremos os aspectos por que a metáfora perpassa, discutindo as principais particularidades de cada narrativa. 3.1 METÁFORAS NEBLINADAS POR IMORTAIS DISTÂNCIAS O conto A metáfora integra o livro História da Eternidade, de 1936. A narrativa tem início com uma menção ao historiador Snorri Sturluson cujo tratado (a compilação de um glossário das figuras tradicionais na poesia da Islândia, no início do século XIII) está fundamentado em metáforas, a partir das quais Borges (1999, p. 421) cita “que gaivota do ódio, falcão do sangue, cisne sangrento ou cisne vermelho significam corvo; e teto da baleia ou corrente das ilhas, o mar; e casa dos dentes, a boca”. Tais metáforas entretecidas no verso e conduzidas por Snorri propiciam (ou propiciaram) um deslumbramento aprazível; entretanto, “não há emoção que as justifique e as julgamos laboriosas e inúteis” (BORGES, 1999, p. 421). Fato que é observado também com as figuras do simbolismo e do marinismo. Borges afirma vislumbrar, nas perífrases recolhidas por Snorri, algo como a reductio ad absurdum de qualquer intenção de elaborar metáforas novas. Os tropos organizados por Snorri são resultados de um processo mental o qual combina as palavras sem nada revelar ou comunicar, visto que são autônomos. Ele ainda suspeita que “Lugones ou Baudelaire não fracassaram menos que os poetas cortesãos da Islândia” (BORGES, 1999, p. 421). No livro III da Retórica, Aristóteles ressalta que as metáforas nascem da intuição de uma semelhança entre coisas diferentes; ou seja, a metáfora tem como base as coisas e não a linguagem. Licrofonte usa a metáfora leão da tríplice noite para se referir ao deus Hércules; isso porque, à noite em que foi gerado por Zeus 132 pareceu três. Embora a frase seja esplêndida, não cumpre a função indicada por Aristóteles. Para Borges, ainda que no I Ching um dos nomes do universo seja os Dez Mil Seres, há uns trinta anos sua geração se surpreendeu com a limitação de alguns poucos grupos famosos, a saber: “as estrelas e os olhos, a mulher e a flor, o tempo e a água, a velhice e o entardecer, o sono e a morte”72, os quais são apenas banalidades. No livro de I Reis 2:10 lemos: “E Davi dormiu com seus pais, e foi sepultado na cidade de Davi” (BORGES, 1999, p. 422). Nos naufrágios, os marinheiros do Danúbio rezavam: “Durmo, logo voltarei a remar”. Na Ilíada, Homero intitulou o Sono de “Irmão da Morte”. “Macaco da Morte” chamou-o Wilhelm Klemm, o qual também escreveu: “A morte é a primeira noite tranqüila (sic)”. Para Heine, “A morte é a noite amena; a vida, o dia tormentoso [...]” (BORGES, 1999, p. 422). Vigny chamou a morte de “Sono da terra”. Os negros têm-na como a uma “velha cadeira de balanço”, pois simboliza o último sono, a última sesta. Para Borges (1999, p. 422), no dizer de Schopenhauer, “O que o sono é para o indivíduo, é a morte para a espécie”. Já Hamlet proclama: “Morrer, dormir, talvez sonhar”. Conforme vemos em João 11:11 “[...] disse-lhes: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo do sono”, quando Jesus fala para os discípulos que Lázaro estava adormecido, faz uso da metáfora do sono como alegoria da morte, para dizer-lhes daquele falecimento. Eles, porém, imaginavam que Seu Mestre fazia menção ao descanso do amigo: “Mas Jesus dizia isso da sua morte; eles, porém, cuidavam que falava do repouso do sono. Então, Jesus disse-lhes claramente: Lázaro está morto”73. Se observarmos tal episódio em consonância com os exemplos mencionados anteriormente, notaremos que as metáforas perpassam o tempo exprimindo uma imagem-movimento a qual está ligada a essa temporização como forma de marcar (ininterruptamente) a ação do sujeito. O tempo faz analogia a um problema, pois, como indica o texto bíblico, se Jesus tivesse chegado a Betânia com mais rapidez Lázaro não teria morrido; logo, um problema não teria sido enunciado. Contudo, sabemos que era intencional o fato 72 BORGES, Jorge Luis. A Metáfora. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 422. 73 BÍBLIA, N. T. João. In: A Bíblia Sagrada. Baseada na tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri, São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2003. cap. 11, vers. 13-14. 133 de Jesus deixar que os dias transcorressem; do contrário, não haveria, como descrito, o milagre da ressurreição. Mas, o que de fato importa-nos saber é que o tempo apresentado por Borges e o tempo desses versículos se conjecturam como “uma perpétua repetição que, paradoxalmente, é possibilitadora do novo”74, no sentido em que propicia analogias com o passado, mas também com o eterno retorno que, nesse caso, sempre se volta sobre si mesmos ocasionando uma ordem/desordem (peculiar às narrativas borgeanas) a qual dobra-se e redobra-se como forma de relativizar a ação do tempo, mostrando uma construção ordenada da desordem borgeana, a qual, de acordo com Pommer (1991, p. 48-49), aspira “simultaneamente à segurança da ordem e à possibilidade criadora da desordem”. Essa oscilação momentânea ordem/desordem está por trás de um desejo, via de regra, relativo ao sonho. Deste modo, o tempo se bifurca para revelar a magia que existe por meio do sono que produz os sonhos e estes se confundem com a vida simbolizando-a e constituindo, por assim dizer, a mais importante atividade vital. Pommer (1991, p. 99) reitera que: A fusão de vida e sonho na obra de Borges transforma a existência numa vertigem permanente, num estado de gozo pleno das potencialidades humanas, abrindo espaço para que se dê vazão ao que é socialmente interditado: o desejo e a violência. Ou, em termos esquemáticos, para que possam ser exercidas as pulsões de vida e de morte. A pulsão de vida e de morte tanto se apresenta como algo pleno de alegrias quanto como um pesadelo cuja repetição pode se originar de uma mesma sequência de sonhos, ou ainda, de uma sequência de acontecimentos os quais denotem, mais uma vez, a ideia de ordem/desordem que predomina nas narrativas de Jorge Luis Borges. Equiparar mulheres a flores termina sendo outra trivialidade, ao que Borges menciona os dizeres da sulamita, no Cânticos dos Cânticos: “Eu sou a rosa de Saron75 e o lírio dos vales”. De acordo com este autor, na história de Math, determinado príncipe “exige uma mulher que não seja deste mundo, e um feiticeiro por meio de conjuros e de ilusão a faz com as flores do carvalho e com as flores da 74 POMMER, Mauro Eduardo. O tempo mágico em Jorge Luis Borges. Florianópolis: Editora da UFSC, 1991, p. 46. 75 De acordo com a tradução de João Ferreira de Almeida, Sarom grafa-se com a consoante final “m”. Ver Cântico dos Cânticos (noutras traduções Cantares de Salomão) 2:1. 134 giesta e com as flores da olmeira”. Sigfrid vê Kriemhild, na quinta “aventura” do Nibelungenlied, e as primeiras palavras que pronuncia são: “sua tez brilha com a cor das rosas” (BORGES, 1999, p. 422-423). Noutro contexto, Ariosto, inspirado por Catulo, compara a virgem a “uma flor secreta”; não obstante, no jardim de Armida, “um pássaro de bico purpúreo exorta os amantes a não deixar que essa flor murche”. Malherbe, no final do século XVI, na intenção de confortar um amigo, profere as seguintes palavras: “Et, rose, elle a vécu ce que vivent les rose”76. Para Shakespeare, a admiração que nutre pelo vermelho profundo das rosas e a brancura dos lírios representa as sombras de seu amor ausente. Certa vez a rainha de Samotrácia proferiu: “Deus, ao fazer as rosas, fez meu rosto” (BORGES, 1999, p. 423). A partir da Ilíada é possível supor que todas as analogias íntimas necessárias “(sonho-vida, sono-morte, rios e vidas que transcorrem, etc.) foram alguma vez percebidas e escritas”77, não significa dizer que as possibilidades metafóricas se tenham esgotado; ademais, as metáforas são ilimitadas. Borges (1999, p. 423) menciona o fato de Dante (Purgatório, I, 13), para definir o céu oriental, ter invocado uma pedra oriental em cujo nome está o Oriente: “Dolce color d’oriental zaffiro”78; algo admirável. O mesmo não ocorre a Góngora (Soledad, I, 6): “Em campos de safiras apascenta estrelas”, porque não denota o mesmo brilho e encantamento. O autor argentino almeja que algum dia seja escrita a história da metáfora para que saibamos a verdade e o erro que contêm estas conjecturas. Antes de adentrarmos propriamente à análise do conto, julgamos pertinente fazer menção à palestra intitulada A metáfora, que integra o livro Esse ofício do verso, onde Borges apresenta alguns modelos metafóricos usados através dos séculos como forma de criticar a ação dos poetas, reiterando que estes podem ser reduzidos a doze “afinidades essenciais”, posto que as demais somente causam surpresa. O autor assevera que Lugones, na tentativa de criar novas metáforas, escreveu o livro Lunario Sentimental onde explica que cada palavra é uma metáfora morta; contudo, é sabido que há metáforas mortas (e por que não dizer adormecidas) e vivas; tal disposição depende da relação que estas apresentam. O 76 “E, rosa, ela viveu como vivem as rosas”. (Tradução nossa). 77 BORGES, Jorge Luis. A metáfora. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 423. 78 “Suave cor de oriental safira”. (Tradução nossa). 135 importante é que a metáfora seja “sentida pelo leitor ou pelo ouvinte como uma metáfora” (BORGES, 2000, p. 31). Ou seja, que a metáfora seja passível de interpretação (ou interpretações); que ela seja viva. Quanto ao fenômeno da metáfora morta, Draaisma (2005, p. 35) menciona o fato de Nietzsche comparar “a metáfora morta a uma moeda cuja efígie foi desgastada pelo uso, uma analogia convincente, pois é, de fato, o relevo da imagem que se desgasta gradualmente e, por fim, desaparece completamente da expressão”. O processo de interação palavra e imagem deixa de oferecer “duas ideias por uma” passando a ser apenas uma expressão literal. No caso da metáfora viva, quanto mais ramificações a palavra apresentar tanto mais associações e interpretações serão realizadas, notadamente porque “quando ambos os domínios que entram em contato na metáfora são ricos em associações, a seleção recíproca e a organização dessas associações se tornam muito mais produtivas e é mais provável que a metáfora produza novas percepções”79, uma vez que os “campos semânticos” surgem com possibilidades infindas. Borges (2000, p. 32) explica que em versos como “Eu queria ser a noite, de modo a poder velar teu sono com olhos mil”, temos a demonstração de ternura e o desejo do amante de ver a amada sob vários prismas. Isto leva a crer que as metáforas estão vivas, pois além de exprimir sentimento, desejo, também se movimentam no texto, permitindo diversas leituras. O mesmo não ocorre, por exemplo, com “As estrelas olham do alto”; é notório que, independente do que esteja acontecendo, as estrelas são indiferentes e não evidenciam quaisquer indícios de movimento (ação); neste caso, a metáfora está morta, posto que não permite interpretações. No dizer de Borges (2000), é possível sentir uma espécie de indiferença altiva, uma impassibilidade divina a coisas humanas. Uma das estrofes dos versos de um poema de Chesterton, intitulado A second childhood (Uma segunda infância), chama a atenção devido à vivacidade com que se apresenta: [Mas não chegarei à idade de ver surgir a noite enorme, Uma nuvem que é maior que o mundo 79 DRAAISMA, D. Metáforas da memória: uma história das ideias sobre a mente. Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 35. 136 E um monstro feito de olhos]80 Para Borges, o que impressiona é o fato de o monstro ser feito de olhos, como se houvesse um tecido vivo que aterroriza a noite, tornando-a um pesadelo. O autor expõe, a partir de um poema de Tennyson, um modelo do tempo fluindo como um rio: “O tempo fluindo no meio da noite”81, para mostrar que as pessoas dormem no silêncio da noite, enquanto o tempo flui sem ruídos. No mesmo contexto metafórico de tempo e rio, Borges (2000, p. 34) presenteia aos ouvintes com a famosa sentença do filósofo grego: “Nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio”, explicando que o rio tanto pode fluir e servir como algo prazeroso aos olhos e ouvidos do indivíduo, quanto pode representar o próprio ser fugindo de alguma coisa; neste caso, o rio torna-se um terror. Feitas estas considerações, Borges discute o modelo de “mulheres como flores” através do exemplo extraído da obra de Weir of Hermiston, de Robert Louis Stevenson, cujo herói vai a uma igreja na Escócia, onde vê uma garota. Prestes a se apaixonar, ele se pergunta “se há uma alma imortal dentro daquela bela moldura, ou se ela é um mero animal da cor das flores” (BORGES, 2000, p. 36). A palavra “animal” é aniquilada a partir do momento em que o “herói” se utiliza do vocábulo “cor das flores”, que tanto suaviza quanto enaltece a figura da mulher. Na mesma palestra, Borges recorda Shakespeare para ilustrar o modelo da “vida sendo um sonho” ao que cita: “Somos aquela matéria de que os sonhos são feitos” (BORGES, 2000, p. 36). A metáfora nos conduz a pensar na contradição que há entre vida e sonhos: a vida é como um sonho ou o traz dentro de si? Somos reais em sonhos ou apenas sonhadores de sonhos? Para pensar a metáfora como um sonho é preciso reportá-la ao filósofo chinês Chuan Tzu. “Ele sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, não sabia se era um homem que sonhara ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser homem” (BORGES, 2000, p. 37). Uma metáfora sutil que nos faz pensar o sonho como os movimentos efêmeros de uma borboleta. O autor também aborda o modelo de “dormir e morrer” por meio de uma passagem de Homero a qual trata do “sono férreo da morte”82, mostrando a morte 80 “But I shall not grow too see enormous night arise, / A cloud that is larger than the world / And a monster made of eyes”. BORGES, Jorge Luis. Esse Ofício do Verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 33. 81 “Time flowing in the middle of the night”. Ibid., p. 34. 82 BORGES, Jorge Luis. Esse Ofício do Verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 38. 137 como uma espécie de sono que é produzido por um metal, o ferro. Outra ilustração se dá através de Heine: “A morte é a boca da noite”83. Neste exemplo, Borges deixa que o leitor reflita a metáfora, pois, para ele, quando algo é sugerido torna-se mais fácil de ser aceito visto que será mais prazeroso pensar a respeito. Semelhante ao que sucede com o título do livro As mil e uma noites, porque quando pensar a propósito das “mil noites” a imaginação vislumbrará muitas noites. Outro modelo destacado é “batalha e incêndio”, onde Borges (2000, p. 41) alude à Ilíada para mostrar “a imagem de uma batalha se alastrando como uma conflagração”; ou seja, como um grande incêndio. Embora ele tenha suprimido alguns modelos bastante comuns, foram abordados temas relativos a “olhos e estrelas, mulheres e flores, tempo e rios, vida e sonho, morte e sono, incêndio e batalhas”. Segundo este autor há mais meia dúzia que talvez rendesse a maioria das metáforas da literatura; todavia, o que realmente importa é que há uns poucos modelos e estes são capazes de variações quase infinitas. Ainda no mesmo contexto da palestra, Borges faz referência a uma metáfora (também referida no conto A metáfora) que vem do Extremo Oriente, da China, onde os chineses chamam o mundo de “os dez mil seres” ou as “dez mil coisas”. A partir desse exemplo ele assevera que, se a metáfora é a correlação de duas coisas diversas e há no universo mais de dez mil seres, é possível dispor uma soma de metáforas começando com “10000 multiplicado por 9999, multiplicado por 9998 e assim por diante” (BORGES, 2000, p. 30). Essa soma não seria infinita, mas certamente atordoaria a imaginação. O autor também expõe sua indignação no tocante aos poetas que repetem as mesmas metáforas surradas quando existem inúmeras possibilidades de as palavras serem combinadas. Se analisarmos a palestra A metáfora e o conto de mesmo nome, veremos que em ambos os contextos Borges apresenta-nos tanto a metáfora fundante84 (aquela que fabrica a linguagem) quanto à metáfora fundada (presidida pela razão, cuja linguagem seria um artefato que podemos controlar para representar e dizer o mundo, mas também para persuadir). No que tange à metáfora fundada existe uma separação entre a linguagem literal e a linguagem metafórica que caracteriza um desvio da norma, portanto, um 83 “Der Tod daß ist die frühe Nacht”. Ibid., p. 38. 84 MENEZES, Juliana da Cunha. A metáfora para Borges, Aristóteles, Vico e Nietzsche. Revista Memento. 2012, v.3, n. 1, p. 162. 138 erro. Já a metáfora fundante não apresenta esse desvio; logo, o literal não aparece e a linguagem passa a ser metafórica, por exemplo, “gaivota do ódio, falcão do sangue, cisne sangrento ou cisne vermelho, significando corvo; e teto da baleia ou corrente das ilhas, o mar; e casa dos dentes, a boca” (BORGES, 1999, p. 421). Tais metáforas são cristalizadas através de sua heterogeneidade, pois, ora o autor faz referência à metáfora em seu estado fundante ora em seu estado fundada, assemelhando-a às implicações de um processo mental que combina palavras, cujo sentido somente se completa a partir de um contexto, necessitando, por vezes, do conhecimento do leitor para decifrá-las; afinal, metáforas propagam enigmas. Deste modo, a metáfora atua como um instrumento utilizado para unificar palavra e imagem dando-lhes sentido; é o caso de “gaivota do ódio, falcão do sangue, cisne sangrento ou cisne vermelho, significando corvo; e teto da baleia ou corrente das ilhas, o mar; e casa dos dentes, a boca”, mencionados anteriormente. Os exemplos apresentados no conto A metáfora, estabelecem uma relação de sentido que nem sempre corresponde a um significado específico, haja vista que terá o sentido de corvo, de mar e da boca em um contexto particular. Se os vocábulos estiverem isolados (ou ainda que estejam unidas a palavra e a imagem, mas não façam parte de um contexto específico) perderão o significado metafórico. Sendo assim, é imprescindível que a junção da palavra com a imagem esteja associada a um nome que denote um significado, por assim dizer, real, um nome que não soe “estranho”. As metáforas transferem o sentido da palavra em seu contexto real para uma conjuntura nova, que julgamos “estranha”, em virtude de não estarmos familiarizados (ainda) com a transferência de sentido. Se atentarmos para o que preconiza Richards quando afirma que a metáfora é a formulação de uma relação entre dois termos a partir dos quais a metáfora tanto afirma quanto realiza a transferência de significado por meio de determinado contexto; e as declarações de Black, quando assevera que a metáfora existe por meio de interações; consequentemente, associações cujo significado não ocorre sem que haja essa associação, perceberemos que os exemplos apresentados por Borges na palestra “A metáfora”, e no conto de mesmo título, são frutos de associações, de interações contextualizadas as quais produzem significados estranhos; porém, se fazem compreender. Isso porque, o que está em discussão na relação metafórica não é o 139 estranhamento que a junção da palavra à imagem pode causar e sim o novo significado que, juntas, elas podem oferecer. As palavras, quando isoladas, possuem sentidos diferentes e é o termo-veículo85 que se encarrega de dar sentido à nova palavra, porque “as associações de um termo são projetadas sobre as do outro e, assim, criam um novo modelo”86, o qual admite duas ideias a partir de uma única. No caso das metáforas anteriormente mencionadas, temos um caso específico de kenningar, posto que determinam o objeto mais pelo seu caráter do que, propriamente, pela figura a qual representam; por isso são metáforas mortas, tão somente combinações de palavras (cisne vermelho, falcão do sangue...) que nada revelam ou comunicam. Observando o que Borges expõe nessas metáforas e trazendo à lembrança o exemplo da Ilíada, é possível concluir que estão relacionadas ao espaço de armazenagem que se faz presente na mente de cada indivíduo, especialmente porque a metáfora “[...] tornou-se um arquétipo da literatura da memória que tem tido dezenas de variações [...]” (DRAAISMA, 2005, p. 34). Essas variações ficam retidas na memória do sujeito de modo que, “na memória as imagens re-emergem, sensorialmente separadas umas das outras, tão separadas quanto quando entram” (DRAAISMA, 2005, p. 55). Para Draaisma (2005, p. 55), a metáfora do armazém (como é chamada) “levanta a questão de como se consegue encontrar na memória algo que não entrou por uma das portas dos sentidos”. Por isso o uso das metáforas permite que a mente exercite, por assim dizer, os frames, e faça vir à tona o uso de elementos variados até chegar ao ponto comum àquilo que se busca. Quando Licofronte chamou o deus Hércules de leão da tríplice noite certamente tinha um objetivo maior do que declarar que a noite em que Hércules nasceu pareciam três. No entanto, a união dos vocábulos, sem que se estabeleça uma relação entre palavras e imagens, não denota algo além do que está escrito, impossibilitando ao sujeito decifrar ou estabelecer uma relação de sentido entre o dito e o enigmático. 85 Expressão utilizada por I. A. Richards. É o termo que transfere o significado de um determinado contexto; é o termo “estranho”. 86 DRAAISMA, D. Metáforas da memória: uma história das ideias sobre a mente. Bauru, SP: Edusc, 2005, p. 34. 140 Para fazer sentido é preciso que sejam unidas as metáforas da armazenagem (aquelas que se encontram armazenadas na memória) e as metáforas da escrita87 (aquelas que são apresentadas pelos poetas e escritores – de um modo geral). Essa união diz respeito à memória (que armazena as informações) enquanto códice que “progride” para livro e, por fim, para biblioteca – seria o caso, por exemplo, da Biblioteca borgeana. A relação metafórica que se institui entre o versículo de I Reis 2:10 “E Davi dormiu com seus pais, e foi sepultado na cidade de Davi” com os fragmentos a seguir, extraídos do conto em análise, apresentam metáforas que exprimem exemplos de kenningar alegorizando a morte. No trecho proferido nos naufrágios, pelos marinheiros do Danúbio, os quais rezavam: “Durmo, logo voltarei a remar”; na Ilíada, Homero chamou o Sono de “Irmão da Morte”; Wilhelm Klemm escreveu: “A morte é a primeira noite tranqüila (sic)”; Heine escrevera: “A morte é a noite amena; a vida, o dia tormentoso...”; “Sono da terra” foi como Vigny a chamou; “velha cadeira de balanço” a chamam nos blues: ela vem a ser “o último sono”, “a última sesta”, dos negros. Shopenhauer menciona a equação morte-sono: “O que o sono é para o indivíduo, é a morte para a espécie”; Hamlet, por sua vez, proferiu: “Morrer, dormir, talvez sonhar” (BORGES, 1999, p. 422). Todas essas metáforas são casos de Tota Allegoria, mas também de kenningar, uma vez que dão origem às coisas de modo funcional e atuam como metáforas congeladas, ou ainda, metáforas fósseis que se encontram petrificadas, sofismas que se distanciam do mundo. Conquanto, são capazes de assinalar a versatilidade dos poetas ao justapor as palavras para dar vida nova ao discurso, capturando a riqueza da expressão e remetendo a significados que transcendem a si mesmas. A morte é retratada como um sonho, como algo que encanta ao mesmo tempo em que é desolada. Os trechos anteriormente mencionados expressam sensações de angústia, medo, desespero, pesar, um silêncio envolto num sonho que culmina com a morte, o descanso eterno. A morte é descrita através do metamorfoseamento atribuído às palavras fazendo brotar uma prova da experiência do poeta por meio de processos metafóricos os quais articulam palavras e imagens para mostrar a composição, as estratégias utilizadas para se chegar ao descanso final. 87 Para Draaisma (2005), Gregório, o Grande, entende que a memória tem dois portões principais, a audição e a visão; sendo assim, o indivíduo tem acesso à memória pela palavra e pela imagem. 141 As metáforas utilizadas para denotar a morte são cuidadosamente expostas, ampliando o imaginário do sujeito e permitindo-lhe sair do “lugar comum” para ficar no limiar daquilo que o poeta idealiza e daquilo que ele (sujeito) consegue compreender. Nesse caso, as metáforas permitem diversas associações por meio de imagens mentais revelando que em relação à morte “[...] nem tudo é choque, acuidade de uma confusão que delira e raciocina sem parar sobre si própria, embaraçando-se nos fios de uma confusão ao mesmo tempo insuportável e melodiosa, onde nem tudo é indisposição [...]” (ARTAUD, 1985, p. 12). Todos os trechos expõem imagens-movimento urdidas a partir da ideia de sono, culminando com a morte, que é de Davi, dos marinheiros do Danúbio e da própria morte alegorizada: “A morte é a primeira noite tranqüila (sic)”; “A morte é a noite amena [...]”88, cuja imagem imprime uma realidade própria a cada acontecimento, o que não deixa de ser também “uma realidade funcional, estreitamente determinada pelas exigências da situação, ainda que estas fossem tão poéticas quanto dramáticas” (DELEUZE, 2007, p. 12). Palavras e imagens se coadunam num equilíbrio perene; embora os acontecimentos pareçam abstratos, perpassam o tempo propiciando “uma espécie de honra que dá forma e organização a certas experiências humanas”89 as quais instauram situações que acabam influenciando outros feitos. Eis o porquê de a metáfora abranger os campos cognitivo, cultural e ideológico. É neste sentido que as metáforas expostas por Borges atuam, como fenômenos que deliberam a linguagem de modo que as palavras se aproximam tornando-se compartes. Ou seja, as palavras, antes isoladas, assumem o papel de revolucionar as relações significativas habituais da linguagem ganhando vida a partir do cogito, tendo em vista que é produto de uma atividade pensante, de um processo mental associativo o qual não admite que a metáfora seja apenas um ornato superficial, mas que esta seja percebida como um recurso que denote, através da interação, uma forma de perceber as coisas, possibilitando uma articulação entre palavra, imagem e discurso. Nesse tecido escritural que envolve morte e sonho, Merleau-Ponty (1975, p. 331) afirma que “a língua se precede a quem aprende, ensina-se por si mesma e 88 BORGES, Jorge Luis. A metáfora. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 422. 89 Tradução nossa. “una especie de homra que da forma y organización a ciertas experiencias humanas [...]”. CALABRESE, Patrícia. El poema como cuerpo. In: STEFANO, Mariana di (Coord.). Metáforas en uso. Buenos Aires: Biblos, 2006, p. 88. 142 sugere a própria decifração”. As palavras são metaforizadas com base na mesma comparação e, uma vez que entendemo-las, podemos dizer que, dada a sua natureza, estas funcionam de maneira análoga ampliando e explicando o sentido que os vocábulos exprimem em determinados contextos discursivos. Para Davidson (2011, p. 7): Se a metáfora depende, ou não, de novos ou sentidos ampliados, certamente depende, de algum modo, de sentidos originais; uma descrição adequada da metáfora deve permitir que os sentidos originais ou primários das palavras permaneçam ativos no seu enquadramento metafórico. O que caracteriza a metáfora é o uso e não o sentido que lhe é atribuído; afinal, não adianta tentar determinar apenas um sentido, pois não há limites para o que esta nos chama a atenção; e o ato de interpretá-la é próprio da imaginação e do esforço criativo do sujeito, que quase nunca é orientado por regras, sobretudo porque estas são dispensadas pela interpretação metafórica. No conto, Borges faz menção ao fato de os poetas igualarem as mulheres a flores e menciona como primeiro exemplo o versículo bíblico em que a sulamita dialoga com o seu amado (o rei Salomão): “Eu sou a rosa de Saron90 (sic) e o lírio dos vales”. Na sequência da narrativa, temos, na história de Marth, que certo príncipe exigiu uma mulher que não fosse deste mundo e um feiticeiro “por meio de conjuros e de ilusão a faz com as flores do carvalho91 e com as flores da giesta e com as flores da olmeira”; no momento em que Sigfrid vê Kriemhild diz que a “sua tez brilha com a cor das rosas”; donzelas são comparadas a “uma flor secreta”. No ato de consolar um amigo pela perda da filha, Malherbe prediz: “E, rosa, ela viveu 90 Na época de Salomão, o vale de Sarom (região da Palestina cuja planície litorânea localiza-se imediatamente ao sul do monte Carmelo), referia-se às lindas e frutíferas planícies da costa do mar Mediterrâneo. 91 O carvalho é uma árvore de grande porte e chega a atingir mil anos de idade. A planta é nativa do hemisfério norte, localizando-se predominantemente nas regiões de clima temperado; porém algumas espécies atingem zonas tropicais; pertence à família Fagaceae (a mesma dos castanheiros e das faias); as flores são cilíndricas, sem pétalas. A giesta pode atingir até 3 metros em tamanho e tem ramos finos e verdes. As folhas das giestas estão adaptadas para que a planta não perca muita água, fazendo dela uma planta resistente à seca. As flores das giestas têm um belo aroma e são normalmente de cor amarela. As giestas de cor branca são uma espécie mais rara. Trata-se de um tipo de arbusto muito usado em jardins, pois é fácil de moldar e, devido ao tamanho, é possível criar grandes obras-primas. A olmeira, conhecida também como filipêndula (Filipendula ulmaria), ulmária, rainha-dos-prados, ulmeira, erva-ulmeira, barba-de-bode, erva-das-abelhas, grinalda-de-noiva e aspirina vegetal é uma planta da família das Rosaceae, que cresce em áreas úmidas e campinas. É uma planta perene, cujas flores (brancas) são agrupadas em ramos e possuem um aroma agradável; é muito usada para dar sabor a vinhos, cervejas e vinagres. Esta planta contém os produtos químicos usados para fazer a aspirina, uma pequena parte da raiz, quando descascada, esmagada e mastigada é um bom remédio natural para aliviar dores de cabeça. Sendo medicinal, possui as propriedades de adstringente, antiácida, antiemética, antirreumática, antisséptica, calmante, cicatrizante, diurética, febrífuga, queratolítica, sedativa, sudorífera, tônica. Segundo a mitologia gaulesa, o mágico Gwydion, criou uma mulher de madeira de carvalho com flor de filipêndulas e a nomeou como face de flor. Disponível em: ; . 143 como vivem as rosas”92; a rainha de Samotrácia afiança: “Deus, ao fazer as rosas, fez meu rosto”. Em todos os exemplos, as metáforas utilizadas ilustram a força que exerceram (e ainda exercem) na literatura, mas também explicitam “uma relação entre forças platônicas e aristotélicas como duas faces da mesma moeda”, conforme Silva (2008, p. 49). Sob o prisma platônico, essa figura mostra que “[...] se constrói em verdades fundamentais e eternas, define efeitos ou condições de tempo, de morte, de vida, de destino, de infinito, de eterno regresso” (SILVA, 2008, p. 49). Por este motivo, a metáfora aparece repetidas vezes de maneira inquestionável mostrando, inclusive, que carrega consigo as marcas do tempo, eternizando-se. A imagem da mulher (sempre comparada às flores e rosas) é posta como algo que está acima de qualquer beleza; um ser que além de belo é capaz de preencher os vazios, a solidão do homem que a desejar. A beleza aparece sob o prisma da supervalorização, associada sempre à imagem de jardins e campos denotando as qualidades, mas também explicitando características particulares que talvez ainda não tenham sido exploradas ou encontradas por homem algum. Isto permite ao ser amado vislumbrar a amada e desejá-la ainda mais, produzindo expectativas que somente serão preenchidas quando o amado encontrar a sua verdadeira amada. A descrição é empreendida com harmonia, equilíbrio e estética, tendo em vista que se tomam como elementos essenciais metátoras as quais estão fundamentadas na experiência corpórea da mulher, a partir do perfume que emana das flores. Isso porque, os poetas apresentam as flores como desdobramento da figura feminina por meio de metáforas-chave, que, ao mesmo tempo em que fazem parte de um universo comum também mostram que são uma raridade; pois, uma vez que são idealizadas; as mulheres possuem características e qualidades específicas. Em outras palavras, elas ocupam ou preenchem o ideal de alguém agenciando o encontro do “eu” com o “outro” na tentativa de preencher seus vazios. O indivíduo expressa os sentimentos de tal forma que é impossível confundir a sua ação com a sua paixão, especialmente porque ele sabe separar o sentimento da voz que emana do seu coração. 92 Tradução nossa. “Et, rose, elle a vécu ce que vivent les rose”. BORGES, Jorge Luis. A metáfora. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 423. 144 Deleuze (2009a, p. 13) assegura que entre os “acontecimentos-efeitos e a linguagem ou mesmo a possibilidade da linguagem, há uma relação essencial: é próprio aos acontecimentos o fato de serem expressos ou exprimíveis, enunciados ou enunciáveis” através de conjecturas ao menos plausíveis. Sendo assim, durante o processo de associação das palavras às imagens faz-se necessário escolher e selecionar aquelas que correspondem ao objetivo do contexto discursivo levando-se em conta o sujeito que fala e que revela seus desejos. Para Deleuze, é na ordem da fala que o Eu começa e o faz em termos absolutos, pois é ele quem principia a fala. “O Eu não é primeiro e suficiente na ordem da fala senão na medida em que envolve significações que devem ser desenvolvidas por si mesmas na ordem da língua” (DELEUZE, 2009a, p. 19). O significado atribuído às frases dobra-se e desdobra-se expressando uma “aparência” irredutível em si mesma, visto que há muitos sentidos para uma mesma elocução. O sentido será atribuído conforme o acontecimento, o estado de coisas, e a partir deste é projetada uma intenção que terá como elemento essencial a linguagem; visto que é por meio desta que se confere sentido ao discurso, sobretudo porque “o sentido é como a esfera que está instalada93 para operar as designações possíveis e mesmo para pensar suas condições. O sentido está sempre pressuposto desde que o eu começa a falar [...]” (DELEUZE, 2009a, p. 31. Grifo nosso). Segundo a visão borgeana, as metáforas agem como patrimônio humano na medida em que são consideradas tradicionais; por outro lado, é o exercício de novas metáforas que expandirá o seu conceito tornando-as mais acessíveis ao leitor que necessita decifrá-las. De acordo com Deleuze (2009a, p. 54), “o sentido não se confunde com a significação mesma, mas ele é o que se atribui de maneira a determinar o significante como tal e o significado como tal”; por esta razão, depende necessariamente do contexto (do acontecimento) e não da relação que se constitui entre significante e significado; embora haja uma significação. “O sentido é sempre um efeito [...], um ‘efeito óptico’, um ‘efeito sonoro’, ou melhor, efeito de superfície, efeito de posição, efeito de linguagem” que determina uma causa e, por conseguinte, é inseparável de seus efeitos (DELEUZE, 2009a, p. 73). 93 Fizemos alterações na fala do autor para atender às adequações do nosso texto. No original, Deleuze menciona “[...] em que estou instalado”. 145 Quando Borges apresenta a Ilíada como o primeiro monumento das literaturas ocidentais a partir da qual Homero expõe metáforas relacionadas à “(sonho-vida, sono-morte, rios e vidas que transcorrem, etc)”, dá margem para que percebamos que por meio destes grupos de metáforas é possível formar várias metáforas que abordem as mesmas relações de significados ou diversos outros sentidos (de maneira ilimitada) sem perder a concepção metafórica. Para este autor, a “virtude ou fraqueza estão nas palavras, no curioso verso em que Dante (Purgatório, I, 13), para definir o céu oriental, invoca uma pedra oriental, uma pedra límpida em cujo nome está, por feliz acaso, o Oriente: ‘Dolce color d’oriental zaffiro’” (BORGES, 1999, p. 423). Neste verso, as palavras projetam uma imagem e um conteúdo de forma tão sublime que se mostram entretecidas, proliferando uma alegoria metafórica arraigada a uma linguagem cinematográfica. O sujeito dirige seu discurso a uma pedra como se estivesse proferindo um monólogo; entretanto, a personificação atribuída à pedra o permite dialogar e, mais que isto, admirá-la e compará-la ao azul límpido do céu oriental. A metáfora que se abstrai por meio do valor que é atribuído ao vocábulo pedra possibilita ao leitor percebê-la como algo que identifica e até mesmo ilumina o mundo, coadunando com um processo que engloba a temporização (presente, passado, futuro), visto que tanto a pedra quanto o céu perpassam o tempo e expõem, alegoricamente, o universo através das palavras. Isto possibilita ao indivíduo organizar a maneira como pensa e atua sobre o acontecimento, tanto que ele associa, reciprocamente, a beleza da pedra à beleza do céu. Vemos que essa expressão metafórica constrói um universo que legitima o diálogo interiorizado pelo poeta. A metáfora apresentada tem um caráter cognitivo organizado que obedece a “[...] um sistema coerente de expressões metafóricas correspondentes ao sistema conceitual que se está criando”94 (CALABRESE, 2006, p. 96. Tradução nossa). O elemento modificador metafórico assume um sentido específico num contexto também específico, revelando tanto um aspecto da realidade quanto uma situação produzida pelo uso da metáfora. Quando o poeta estabelece essa relação do azul da pedra com o azul do céu significa que ele conhece a pedra como algo que possue forma, mas também exprime a ideia de que, assim como o céu, esse objeto se distancia intensamente do 94 “[...] un sistema coherente de expressiones metafóricas correspondientes al sistema conceptual que se está creando”. 146 mundo, pois, embora tenha a cor de uma joia valiosa, não lhe é atribuído o valor que merece. O silêncio que se observa no momento da associação mostra que o sujeito capta o mundo tanto por meio do objeto (pedra) quanto do vocábulo e da grandeza que a situação assinala para ele. A palavra-pedra possui um sentido real ao passo que também designa um significado mágico, sublime, imprimindo movimento entre a voz e o silêncio do poeta. Em linhas gerais, o conto A metáfora delineia sentenças que mostram como a metáfora foi utilizada e quais os contextos que determinaram a comunicação ressaltando que “[...] as palavras golpeam, são como tiros, têm caras que, como as das pedras, fazem sangrar as gengivas. As palavras não são apenas substâncias físicas que fazem recordar que temos um corpo que sofre, mas também são experiências vitais e culturais”95; retratam acontecimentos por meio das palavras e são esses acontecimentos que tornam possíveis a comunicação e a linguagem. Deleuze (2009a, p. 187) garante que são “os acontecimentos que tornam a linguagem possível. Mas tornar possível não significa fazer começar. Começamos sempre na ordem da palavra, mas não na da linguagem, em que tudo deve ser dado simultaneamente, em um golpe único”. Para Calabrese (2006, p. 103), “as metáforas proporcionam uma compreensão da experiência de escritura”96, pois tanto organizam o discurso quanto possibilitam uma compreensão poética acerca daquilo que está sendo proferido através das palavras, produzindo acontecimentos os quais transcorrem o tempo apresentando os resultados de uma escritura, cuja “[...] metáfora deixa de ser uma questão de linguagem para ser forma [...]”97, mostrando como se constrói o pensamento e as ações do sujeito que pensa (CALABRESE, 2006, p. 104). O conto expõe metáforas as quais revelam a interação que se estabelece entre os sujeitos (de cada frase) com o contexto no qual estavam inseridos e, deste modo, com o mundo. A ideia de infinito e de labirinto, predominante nos contos borgeanos, desta vez dá lugar a um silêncio marcado pela temporização própria de 95 Tradução nossa. “[...] las palabras golpean, son como tiros, tienen caras que, como las de las piedras, hacen sangrar las encías. Las palabras no son solamente sustancia física que hace recordar que tenemos cuerpo que sufre, sino también son experiencia vital y cultural”. CALABRESE, Patrícia. El poema como cuerpo. In: STEFANO, Mariana di (Coord.). Metáforas en uso. Buenos Aires: Biblos, 2006, p. 102. 96 Tradução nossa. “Las metáforas proporcionan una comprensión de la experiencia de escritura”. 97 Tradução nossa. “[...] la metáfora deja de ser una cuestión de lenguaje para ser horma [...]”. 147 cada acontecimento e de cada espaço (o espaço é perpetrado de tempo) que se apresenta no decorrer da narrativa. Em alguns momentos a metáfora sonho-vida, sono-morte surge como um simulacro, produzindo o instante em que o sujeito impetra a verdade absoluta. Há um sonho que, como uma sombra, está secretamente associado à morte, como se fosse um momento ímpar cujo indivíduo somente descobrirá os mistérios do universo quando estiver morto, porque o instante da morte será para ele a realização plena de uma vida, dando, por assim dizer, um sentido ao sentimento. A relação que se institui por meio dessas metáforas também configura uma linguagem do desconhecido a qual Blanchot (2010a, p. 34) apresenta como sendo “uma linguagem de afirmação e de resposta, ou então uma linguagem linear de desenvolvimento simples, ou seja, uma linguagem em que a própria linguagem não fosse posta em jogo”, haja vista que, nesse caso, não pode ser interrompida. As metáforas apresentadas no conto em análise prenunciam uma analogia entre as palavras e as imagens que não pode ser contestada, notadamente porque expõem o ser em sua essência. Embora não possamos objetá-las, cabe-nos projetar, ainda que com algumas reservas, tênues interrogações: Qual o valor dessas metáforas para a contemporaneidade? O que dizem? São realmente compreendidas e aceitas? As respostas para tais indagações ficarão a cargo do leitor. Todavia, reiteramos o fato de que as palavras e, por conseguinte, as metáforas-chave, têm seu próprio caminho, cujo percurso é definido por elas com uma finalidade específica, “[...] como se estivéssemos afastados do visível, sem termos retornado ao invisível”, posto que “falar não é ver. Falar libera o pensamento desta exigência ótica que, na tradição ocidental, submete a milênios nosso contato com as coisas e convida-nos a pensar [...] segundo a medida do olho” (BLANCHOT, 2010a, p. 66). Conforme Blanchot (2010a, p. 67), vemos que a metáfora toma a coisa por onde não se a toma, por onde não é vista, ou quiçá, nunca será vista. Isto porque, como uma boa palavra, a metáfora transgride as leis, liberta-se da orientação e deixa o leitor desnorteado, mas também lhe permite perceber os acontecimentos sob todos os ângulos. A metáfora não se apresenta mais como uma palavra e sim como algo liberto das limitações da visão. As metáforas esculpem as palavras-imagens como se estas fossem peças a serem enviadas a um grande museu, onde o material a ser decifrado ocupa o lugar 148 da forma estética, cujo universo é o agenciador dessas verdades e o escopo primordial é mostrar que o objetivo estético pode ser compreendido na sua singularidade enquanto estrutura estética. Alhures, a história da metáfora foi escrita, mas será que de fato algum dia conseguiremos nos apropriar da verdade e do erro que estas conjecturas encerram? É possível que tenhamos respostas para a nossa indagação nos contos que se seguem, sobretudo, porque os labirintos expostos no conto A Biblioteca de Babel nos conduzem a infinitas metáforas labirínticas. Mas, se ainda assim não obtivermos respostas satisfatórias, há mais metáforas permeando o conto O espelho e a máscara, e se mesmo assim não conseguirmos as tão almejadas respostas, pensemos que estamos diante de uma construção infinita. 3.2 OS LABIRINTOS BABÉLICOS O conto A Biblioteca de Babel98 compõe a coletânea O jardim das veredas que se bifurcam, publicada em 1941 junto ao livro Ficções, de 1944. A narrativa não expõe propriamente uma história, visto que não existe um enredo e sim a descrição de um espaço arquitetônico o qual é composto de um número indefinido, e quiçá infinito, de galerias hexagonais as quais possuem vastos poços de ventilação no centro. A distribuição das galerias não varia, de modo que “vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal” (BORGES, 1999, p. 516). Uma das faces livres incide num vestíbulo estreito, que desemboca em outra galeria, idêntica a todas, inclusive, à primeira. No vestíbulo há dois sanitários minúsculos que estão localizados à esquerda e à direita. Um deles permite que o indivíduo durma em pé; o outro, que sejam realizadas as necessidades físicas. Temos uma metáfora do universo e da infinitude que este representa. Um labirinto pelo qual passa uma escada em espiral que se submerge e se eleva ao infinito mostrando uma coerência, haja vista que a escada em espiral é conduzida pelo mesmo movimento labiríntico. No vestíbulo há um espelho que duplica 98 No livro Ensaio Autobiográfico, Borges (2009, p. 62), afirma que o conto kafkiano A biblioteca de Babel foi concebido como uma versão de pesadelo ou uma magnificação da biblioteca municipal onde trabalhava, e certos detalhes do texto não têm nenhum significado especial. A quantidade de livros e de prateleiras que aparecem no conto são literalmente aquelas que ele tinha junto do cotovelo. Críticos engenhosos preocuparam-se (e preocupam-se) com essas cifras e tiveram (e têm) a generosidade de dotá-las de significado místico. 149 fielmente as aparências e que põe os homens em dúvida, a ponto de eles inferirem “desse espelho que a Biblioteca não é infinita [...]”99; nesse caso, é preferível sonhar que as superfícies buriladas representam e prometem o infinito. A Biblioteca também possui frutas esféricas que recebem o nome de lâmpadas e que, embora haja duas em cada hexágono, emitem uma luz exígua. O narrador afirma que, como todos os homens da Biblioteca, viajou em sua juventude, peregrinou em busca de um livro, talvez do catálogo de catálogos (o catálogo universal). Agora, prepara-se para morrer a poucas léguas do hexágono em que nasceu e, uma vez morto, acredita que não faltará quem o jogue balaustrada abaixo, cuja sepultura será o ar insondável. O corpo cairá lentamente corrompendo-se e dissolvendo-se no vento produzido pela queda que, assim como a Biblioteca, será infinita. “A Biblioteca é interminável” (BORGES, 1999, p. 517). Para os idealistas as salas hexagonais são necessárias, pois denotam a noção de espaço absoluto, ou ainda, corroboram para com a intuição de espaço; sendo inconcebível uma sala num formato triangular ou pentagonal, por exemplo. Os místicos, por sua vez, almejam “que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que siga toda a volta das paredes [...]. Esse livro cíclico é Deus”. Ao narrador resta apenas repetir o preceito básico: “A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível” (BORGES, 1999, p. 517). A descrição da Biblioteca revela os labirintos livrescos em que os sujeitos se encontram, bem como os enigmas que precisam decifrar para conseguir compreender e/ou sair daquele lugar: A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas (BORGES, 1999, p. 517). Essa inconexão parece um tanto misteriosa; no entanto, a explicação para o mistério dá-se através de dois axiomas. O primeiro assegura que a Biblioteca existe ab aeterno e nenhuma mente crível pode duvidar. Isto nos dá a certeza de que o 99 BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 516. 150 homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso; a Biblioteca é tão perfeita que pode ser tão somente obra de um deus. Para notar a distância entre o divino e o humano é necessário comparar os símbolos trêmulos que foram garatujados na capa de um livro com as letras orgânicas do interior desse mesmo livro, as quais se apresentam “pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas” (BORGES, 1999, p. 517). O segundo axioma assevera que o número de símbolos ortográficos é vinte e cinco. Essa constatação permitiu que após trezentos anos fosse formulada uma teoria geral da Biblioteca e que fosse solucionado um problema até então indecifrável: “a natureza disforme e caótica de quase todos os livros” (BORGES, 1999, p. 518). O narrador menciona um livro que seu pai viu em um hexágono do circuito quinze noventa e quatro o qual constava das letras MCV repetidas da primeira à última linha; outro, embora seja um labirinto de letras, surpreende o leitor quando, na penúltima página, profere: “Oh, tempo tuas pirâmides”. Mas, é sabido que para uma correta informação também há insensatas cacofonias, confusões verbais e muitas incoerências. Como os bibliotecários mais antigos se utilizavam de uma linguagem diferente em relação à linguagem habitual e a determinadas milhas, à direita a língua era dialetal, e noventa andares igualmente acima era incompreensível, durante muito tempo pensou-se que esses livros estavam escritos nas chamadas línguas antigas. Embora tudo isso fosse verdade, acreditava-se que quatrocentas e dez letras de invariáveis MCV não podiam condizer com nenhuma língua. Por essa razão, alguns aludiram que cada letra podia representar a subsequente “e que o valor de MCV na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra posição de outra página” (BORGES, 1999, p. 518). Tese que não se desenvolveu, possibilitando que o assunto das criptografias, após algumas reformulações, se tornasse universalmente aceito. Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior se surpreendeu com um livro que, mesmo confuso, possuía duas laudas de linhas homogêneas. Ao mostrar o livro a um decifrador foi surpreendido com afirmações de que estava escrito em português ou em iídiche. Antes de um século foram determinados o idioma: tratava-se de “um dialeto semoiedo-lituano do guarani com inflexões de árabe clássico”, e o conteúdo: “noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada” (BORGES, 1999, p. 519). 151 A partir de tais exemplos foi possível a um bibliotecário de gênio encontrar a lei fundamental da Biblioteca: “[...] todos os livros constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto. [...] Não há dois livros idênticos” (BORGES, 1999, 519). Sendo assim, não há qualquer exceção. Quando os homens perceberam que a Biblioteca era completa e sempre haveria a possibilidade de se encontrar a solução para qualquer coisa, inclusive para localizar o catálogo de catálogos, a felicidade foi total. Todos se sentiram senhores de um grande e secreto tesouro. O universo estava justificado! A partir daquele momento começaram a falar das Vindicações100, o que levou milhares de cobiçosos a abandonar o seu hexágono e caminhar escadas acima em busca de suas Vindicações. Esse ato fê-los discutir nos estreitos corredores, pronunciar maldições uns para com os outros, estrangularem-se nas escadas divinas, jogarem os livros enganosos no fundo dos túneis, morrer, enlouquecer. O narrador garante que as Vindicações existem, pois ele mesmo viu “(duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginárias)” (BORGES, 1999, p. 520). Após essas afirmações, os homens esperavam que os mistérios basilares da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo, fossem elucidados. Imaginava-se que esses mistérios seriam explicados através de palavras; do contrário, a Biblioteca produziria o idioma necessário com seus vocabulários e gramáticas. Tais mistérios acabaram transformando a esperança dos homens em uma depressão excessiva, posto que agora sabiam da existência de livros raros, porém inacessíveis. Aproveitando-se da situação, surgiu uma seita que recomendou que todos os homens misturassem “letras e símbolos, até construir, mediante um improvável dom do acaso, esses livros canônicos” (BORGES, 1999, p. 520). Diante de tal situação as autoridades se viram forçadas a apregoar ordens severas fazendo com que a seita desaparecesse. Essa atitude não impediu que, tempos depois, homens idosos imitassem a divina desordem. Outros, ao contrário, acreditavam que o melhor era eliminar as obras inúteis. Por essa razão, “invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam prateleiras 100 No dizer de Borges, Vindicações são livros de apologia e de profecia, que para sempre vindicavam os atos de cada homem do universo e guardavam arcanos prodigiosos para seu futuro. BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 519. 152 inteiras”101, fazendo com que se perdessem milhões de livros. Porém, dois fatos são imprescindíveis: primeiro, “a Biblioteca é tão imensa que toda redução de origem humana resulta infinitesimal”; segundo, “cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos”102, cujas obras diferem apenas por uma letra ou por uma vírgula. Neste caso, tanto faz construir um sentido para a Biblioteca quanto destruí-la. Nenhuma ação humana produzirá sobre ela qualquer alteração. Os Purificadores excederam nas destruições. Eles alimentaram o desejo de se apropriar dos livros do Hexágono Carmesim os quais possuíam uma forma menor que a habitual, haja vista que eram livros “onipotentes, ilustrados e mágicos” (BORGES, 1999, p. 521). Outra superstição envolvia os homens daquele tempo: a do Homem do Livro. Para eles, um bibliotecário já o havia consultado e o livro era análogo a um deus. “Muitos peregrinaram à procura d’Ele. Durante um século trilharam em vão os mais diversos rumos” (BORGES, 1999, p. 521). Como localizar o hexágono que hospedava o livro perfeito? Para encontrá-lo foi proposto um método regressivo que possivelmente os levaria ao secreto hexágono: “para localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito [...]” (BORGES, 1999, p. 521). Algum dia chegariam ao livro perfeito? O narrador garante que desperdiçou e esgotou seus anos, pois não conseguiu encontrar o livro perfeito; porém, aspira a que ao menos um homem o tenha encontrado e lido para que aquela enorme Biblioteca se justificasse. E reitera: “Se a honra e a sabedoria e a felicidade não estão para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, Tua enorme Biblioteca se justifique” (BORGES, 1999, p. 521). Outros, homens incrédulos, asseveram que na Biblioteca o equívoco é normal, posto que os homens se encontram numa “Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira” (BORGES, 1999, p. 521). Tais palavras, além de denunciar a desordem, elucidam e corroboram a ignorância do homem; pois, mesmo incluindo todas as estruturas verbais, todas as 101 BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 520. 102 Ibid., p. 521. 153 variantes, os vinte e cinco símbolos ortográficos, as prováveis incoerências são passíveis de uma justificativa criptográfica ou alegória que já está na Biblioteca. Vê-se a afirmação do narrador ao dizer que não pode combinar caracteres como dhcmrlchtdj sem que a Biblioteca não os tenha antecipado e preparado uma resposta. Para ele, “ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e de temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias” (BORGES, 1999, p. 522). O narrador desafia o leitor a pensar se ele o está compreendendo e admite que a escrita metódica ora o distrai, ora o anula; como faz a todas as pessoas. Afinal, a certeza de que tudo está escrito anula o indivíduo ou o torna espectral. Ele relata ainda que conhece distritos em que os jovens se prostram diante dos livros, beijam suas páginas; no entanto, não conseguem compreender nada do que está escrito. Vítima de epidemias, discórdias heréticas, peregrinações (que degeneram em bandoleirismos) e suicídios cada vez mais frequentes, a população acabou sendo arruinada. Mas, se ele estiver certo, com a extinção do homem, a Biblioteca permanecerá “iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta” (BORGES, 1999, p. 522). Para aqueles que acreditam que o mundo é finito, os corredores, escadas e hexágonos podem acabar – isso chega a ser um contrassenso. Contudo, para aqueles que o conjecturam infinito, esquecem que os abrange o número possível de livros. Ante ao impasse, a solução encontra-se, presumivelmente, no antigo problema: a Biblioteca é ilimitada e periódica. “Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que reiterada seria uma ordem: a Ordem)” (BORGES, 1999, p. 523). Essa é a esperança que permite ao narrador alegrar-se na solidão. Entendemos que este conto oferece diversas possibilidades de leituras; por esta razão optamos por mostrar como e em que sentido ocorre o processo de desconstrução do que chamamos de “a peça chave” da narrativa borgeana, A Biblioteca de Babel, à luz das teorias de Jonathan Culler, Jacques Derrida e Gilles Deleuze, enfatizando também a busca do homem pelo livro perfeito; por conseguinte, o processo de desterritorialização e (re)territorialização vivenciado nos 154 meandros do silêncio e em meio aos labirintos hexagonais que perpassam o âmbito dessa Biblioteca. De antemão, cabe-nos dizer que Babel103, segundo o hebraico Balal, significa confusão, desordem, agitação; mas também refere-se à multiplicidade das línguas; sendo assim, “ela exibe um não-acabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica” (DERRIDA, 2002, p. 11-12). De acordo com o texto da Gênese, quando os homens principiaram a construção da torre de Babel falavam a mesma língua e almejavam subir ao céu, no intuito de vislumbrar o Deus que enviara o dilúvio e, na possibilidade de este repetir-se, a torre funcionaria como mecanismo de proteção contra a ação iminente das águas; logo, desejavam (em astultície) ser como Deus. Por esse motivo, Deus teria decidido confundir as línguas para que os indivíduos não se utilizassem da mesma linguagem, havendo restrições em relação a tudo o que fossem realizar. Nesse caso, nenhum homem compreenderia a linguagem do outro, o que os obrigaria a dispersarem-se sobre a terra. Se conjecturarmos a Babel borgeana como uma metáfora da vida humana, veremos que os livros são expostos nos infinitos hexágonos, com o intuito de apresentar possibilidades de respostas ou esclarecimentos dos diversos problemas e mistérios que submergem a humanidade, semelhantemente ao que Deus fez quando percebeu que o homem queria se equiparar a Ele em poder e sabedoria. Estamos diante de uma metáfora da metáfora... e, portanto, da narrativa da narrativa... visto que, assim como a torre de Babel, a Biblioteca se encontra num infinito processo de construção/desconstrução o qual se justifica a partir do instante em que os indivíduos vivenciam a eterna busca do catálogo de catálogos; logo, a busca pelo livro perfeito. Embora labore como um arquivo infindável, o qual proporciona inúmeras entradas e saídas, onde tudo está urdido aos hexágonos e os caminhos se cruzem, estes nunca são os mesmos, pois o constante movimento dos homens entre os hexágonos estabelece uma analogia entre a Biblioteca e o universo, atravessando, por assim dizer, as inúmeras vozes que se coadunam, se contaminam, para 103 Conforme nota de tradução da obra Torres de Babel, de Jacques Derrida, estima-se que a torre de Babel tenha sido erguida a até oitenta mil pés judeus. O pé judeu corresponde a 1,036 pés ingleses, ou a 31,58cm. Sendo assim, a torre de Babel media 25.580 metros. 155 representar um tesouro que detém todas as respostas do universo; porém, como houve um processo de desconstrução da torre e, consequentemente, a mistura e multiplicidade das línguas, a Babel se torna intraduzível; isso porque a singularidade de cada língua soa aos díspares. Borges apresenta a Biblioteca com inicial maiúscula, o que remete ao sagrado. Sendo assim, aqueles que adentrassem ao universo da Babel estariam diante de todo o conhecimento. Metaforicamente, a Biblioteca ilustra a ausência de uma ordem de sentido, tendo em vista que o povo segue em busca de um saber universal, totalizador, o qual ofereça respostas para o que seria a verdade peremptória sobre o mundo. O próprio bibliotecário alerta para a procura em torno do livro perfeito e inacessível. Todos estavam diante de uma verdade universal que tornava possível a existência da Biblioteca e sua justificação, ao mesmo tempo em que também consideravam impossível desfrutá-la, notadamente porque esta representa tanto o saber universal em sua totalidade (que deve ser entendida como todos os acontecimentos e suas possíveis relações imediatas) quanto à impossibilidade desse saber. Um absurdo que tem como consequência a ausência de um sentido. Mas, é necessário saber se as analogias que existem entre os homens da Babel verdadeiramente “se sustentam em processos diferentes que fazem parte do mesmo todo ou do mesmo contínuo e que se equivalem por compartilharem os mesmos fins; ou se, ao contrário, trata-se de duas formas de um processo que obedece à mesma estrutura” (ALBUQUERQUE, 1999, p. 15). A associação dessa imagem da Biblioteca com o Absoluto, com a verdade, metaforiza o ambiente expressando a ideia de que sempre será infinita e insubstituível, oscilando entre a ordem e o caos. A possibilidade de instituir uma ordem representa a saída dos homens do labirinto; por conseguinte, o domínio que eles teriam dos infinitos saberes adquiridos na Biblioteca, bem como a autoridade e o poder sobre todos os discursos; o que os tornaria senhores do universo. Contudo, essa unificação se torna uma utopia no momento em que a torre passa pelo processo de desconstrução da língua universal, tendo-se a multiplicidade e a contaminação do idioma. 156 No instante em que Deus derruba a torre e impõe seu nome também destitui o nome Shem104 por Babel, caracterizando-se mais uma vez a desconstrução, agora dos sonhos de uma tribo. Na verdade, Ele incita um duelo entre nomes próprios, confrontando o nome da Babel com seu nome dado pelos hebreus “Javé” e, nesse sentido, o nome “Babel” [...] destitui de uma só vez: 1. o nome próprio de Deus (que nunca foi próprio, mas que, agora, mais que nunca, significando “confusão”, não pode ser de modo algum apropriável); 2. o nome da torre (que é destruída ao ser nomeada, passando a chamar-se, em meio aos escombros, “confusão”, ou seja, que só passa a ser algo no momento de nomeação, que é, ao mesmo tempo, o momento de destituição de qualquer propriedade); e 3. o nome do povo (que se chamava “nome” e que agora não possui mais nome, por ter sido vencido pelo nome e pela confusão de Deus, pelo nome que é da confusão e de Deus, por Deus e pelo nome da confusão...). E tudo isso acontece apenas no simples ato de se dizer: Babel (HADDOCK-LOBO, 2009, p. 8-9). Essa desconstrução impede que a tribo de Shem imponha a sua língua a todos os outros povos e que não reine sobre todos os nomes, confirmando que Deus estava declarando guerra aos homens, mas também os condenando à multiplicidade. A situação babélica não é apenas uma cena, trata-se, sobretudo, de um acontecimento, do texto da Gênese, que se (re)constrói na imagem da Biblioteca como algo sagrado. Afinal, para se chegar ao catálogo de catálogos, o livro perfeito, o qual consta a origem de todas as coisas, os homens guerrearam, vivenciaram a mudança das línguas e, principalmente, vagaram pelos labirintos hexagonais dispostos pela Biblioteca, cuja dimensão se faz notar através de um instante ou de todo o universo, posto que todos se assemelham ao infinito; portanto, não há como medi-los. Um paradoxo que nos encaminha para uma política a qual se opõe à guerra, denotando uma relação metafórica em que há um “deslocamento da guerra de todos contra todos para a competição” (ALBUQUERQUE, 1999, p. 14). Essa luta entre o que podemos chamar de “campos opostos” remete-nos para a dominação de um adversário: o homem. 104 Ao escrever este conto é possível que Borges tenha lido a história da tribo de Shem, palavra que em hebraico significa “nome”. Essa tribo, de acordo com Rodrigues (2000, p. 90), “decidiu erguer uma torre para chegar aos céus e impor sua língua a todos os povos”, onde o mais forte imporia a sua língua e essa se tornaria universal. Não obstante, Deus (que é punitivo e vingativo) interrompe a construção da torre e impõe o nome – Babel. Como Ele não quer perder o domínio acaba punindo os Shem dando-lhes a incumbência de traduzir as línguas; uma tarefa impossível, pois, com a destruição da torre, as línguas se misturam e se tornam infinitas. Fato que se assemelha ao que vivenciam os personagens da Biblioteca borgeana. 157 Deus designa a lei da qual “[...] fala, e de abismo em abismo Ele desconstrói a torre, e cada torre, as torres de todos os gêneros, segundo um ritmo” (DERRIDA, 2002, p. 70). Para realizar a Sua vingança contra o homem, Ele forma um universo multifacetado onde tudo existe simultaneamente, aprisionando-o, “imobilizando-o” em meio ao labirinto babélico cujas paredes se encontram repletas de livros indecifráveis. Um mundo que impõe limites ao conhecimento humano que é prisioneiro de 25 caracteres: “o espaço, o ponto, a vírgula e as vinte e duas letras do alfabeto” (BORGES, 1999, p. 519). Homens que estão presos à totalidade da Biblioteca ao mesmo tempo em que estão proibidos de narrar as imagens dessa totalidade em virtude da mistura das línguas e da falta de entendimento. Quando pensamos a desconstrução da Biblioteca de Babel, vemo-la como algo que visa a reinscrever a sua história; assim, não temos propriamente uma desconstrução e sim a construção de uma nova estrutura, cujo funcionamento ocorrerá diferente das demais bibliotecas, tendo em vista que a Babel já abriga as bibliotecas comuns, pois contém todos os livros ad infinitum. Ao observar o contexto em que se situa o conto borgeano, podemos dizer que a Biblioteca de Babel é sim uma metáfora do universo105, por isso temos a decomposição de uma estrutura, a torre de Babel, sem, necessariamente, destruir um sistema de pensamento. O que existe é a (re)organização dessa estrutura; logo, a reorganização de um discurso empreendido por Deus e pela Biblioteca. Segundo Culler (1997, p. 98), “a desconstrução tem sido variadamente apresentada como uma posição filosófica, uma estratégia política ou intelectual e um modo de leitura”, porque “desconstruir a oposição é, acima de tudo, reverter à hierarquia em determinado momento”. De acordo com Culler, quando o indivíduo pratica a desconstrução trabalha dentro dos termos de um sistema com a intenção de rompê-lo e com o objetivo de possibilitar aproximações, semelhanças e uma nova visão, ainda que inusitada, do ambiente com o qual estamos habituados. Um exercício imaginativo que permite ao leitor conduzir o jogo da imaginação garantindo a verossimilhança do conto. As linhas de desertificação, as estratificações e as linhas de fuga que sempre conduzem os sujeitos à morte se apresentam como a morte do pensar, do agir e do 105 Segundo Teixeira (2010), é importante observar que, neste caso, não se pode ater apenas às palavras Biblioteca e Universo; isto porque utilizar Biblioteca por Universo é atribuir uma relação semântica impertinente, tendo em vista que não é possível compará-los porque não há relação de semelhança entre ambos. Porém, é valido dizer que o sentido irá se ampliar conforme o nível da frase. 158 ser; por isso que as desterritorializações e reterritorializações mostram um ‘eu’ que, à força das circunstâncias, começa a submergir, perdendo ou evidenciando sua verdadeira identidade, a facies hippocratica do ser, cujas desestratificações, viscosidades, precipitações ou rupturas de agenciamentos maquínicos os levam ao caos produzido pelo labirinto da Biblioteca, cuja finalidade é confundir os homens de modo que nunca consigam chegar ao centro desse labirinto. Quando Deus decide dispersar o povo e desconstruir o que eles haviam construído, institui também uma ordem que não é mais a do homem. Agora estão diante do caos. Não é mais possível se estabelecer uma lei. A relação que se funde entre metáfora e narrativa, através do apagamento ou do esquecimento da língua, permite o surgimento das diferenças, bem como da competição entre os indivíduos. A desterritorialização e posterior reterritorialização aparece como forma de constituir novas imagens-movimento e imagens-tempo as quais, de certa forma, garantem a eternidade da Biblioteca e com ela a eternidade do mundo, isso porque “a Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar” (BORGES, 1999, p. 517). A despeito da desconstrução, muitos conceitos são eternizados no âmbito da Biblioteca, haja vista que as relações são entrecosturadas, gerando, alegoricamente, cenas imaginárias as quais percorrem o ambiente para mostrar, inclusive, que Deus deixou de ocupar o centro de tudo para dar vazão a uma nova cultura a qual servirá de referência a todas as outras. Mas que cultura será essa? Para Teixeira (2010, p. 82), “[...] qualquer cultura pode ser o centro em torno da qual todas as outras se organizam”. Um deslocamento que trará consequências a todos, dependendo, evidentemente, do ponto de vista de cada indivíduo presente na Biblioteca. Dentre as consequências, a autora chama a atenção para a importância de “saber de que ponto parte o discurso, de modo que o discurso da história passa a ser relativizado, e a verdade já não existe de modo absoluto”. Essa relativização nos leva a pensar que a multiplicidade das línguas, as distorções e a busca incansável do bibliotecário pelo livro perfeito, que deve apresentar a síntese do universo, apenas existe em virtude da iteração. São as repetições, paródias, ‘empalidecimentos’ ou distorções presentes nos infinitos livros que fazem um método existir e falam de modo a instigar a procura pelo livro perfeito – livro A – mas, para que eles o encontrem, é necessário “consultar previamente um 159 livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito [...]” (BORGES, 1999, p. 521). Cada livro encaminha a outro, outro, outro... sem nunca aproximar-se do livro A e, mesmo que os homens pensem tê-lo encontrado, são surpreendidos com a semelhança de todos os livros que possuem “elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula, as vinte e duas letras do alfabeto” (BORGES, 1999, p. 519). Mas, não são idênticos. O desmontar de uma realidade para montá-la imagisticamente produz uma oposição que, de acordo com Culler (1997, p. 153), “é desconstruída não é destruída ou abandonada, mas reinscrita”, fazendo com que a ênfase dada ao discurso produza também um processo de “contextualização, descontextualização e recontextualização”106 o qual permite ao leitor compreender que, ainda que a ordem estabelecida seja labiríntica, a Biblioteca mantém uma organização a qual a retrata como totalizadora, onipotente, onipresente, portanto, divina: “A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível”. A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas [...]. A Biblioteca existe ab aeterno (BORGES, 1999, p. 517). Em meio a esse jogo totalizador e de sentido, o homem tentou compreender como a Biblioteca funcionava e descobrir as razões que levaram Deus a desconstruir a Babel para reconstrui-la a Seu modo, impedindo que todos compreendessem uns aos outros. Ele expôs uma alegoria de imaginário do mundo, cuja Biblioteca seria a origem desse Universo, posto que perduraria “iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta” (BORGES, 1999, p. 522). Um mundo em que a realidade poderia ser vencida, desde que o catálogo de catálogos fosse encontrado e decifrado: “[...] algum bibliotecário o consultou e é análogo a um deus” (BORGES, 1999, p. 521). Durante esse processo de desconstrução é possível perceber que na Biblioteca existem formas de expressão que encaminham para agenciamentos os 106 CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997, p. 148. 160 quais cristalizam os paradoxos e uma rostidade que não se apresenta apenas através da linguagem, mas também das expressões do rosto e do corpo que, de certa forma, marcam os espaços de desterritorialização e reterritorialização. Isso porque, de acordo com Deleuze e Guattari (1995b, p. 66), “é do rosto que a voz sai; por isso mesmo [...] o rosto é o Ícone próprio ao regime significante, a reterritorialização interior ao sistema. O significante se reterritorializa no rosto. É o rosto que dá a substância do significante”. Isso justifica certas atitudes dos homens da Babel: “Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade” (BORGES, 1999, p. 519). A felicidade dos indivíduos também é expressa pelo bibliotecário que deseja decifrar a escrita do livro perfeito e a vontade de sair daquele labirinto para se tornar um homem poderoso; pois, uma vez que detivesse a sabedoria do livro, estaria pronto para desterritorializar-se. As linhas de fuga sempre se mostram comprometidas por traços negativos os quais passam a ser constituídos a partir da busca pelo livro perfeito, que só foi encontrado uma única vez, por um bibliotecário que chega à conclusão de que aquele livro era análogo a um deus; pelos hexágonos, que formam o grande labirinto babélico e pelas frutas esféricas, “que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante” (BORGES, 1999, p. 516). Luminosidade capaz de fazer refletir infinitos labirintos. Os homens da Biblioteca almejavam reestabelecer uma sociedade ou a ela se integrar, provavelmente reconstruir um templo sólido, “não somente parar a errância, mas transpor a diáspora que só existe, ela mesma, em função de um ideal de grande agrupamento” (DELEUZE; GUATTARRI, 1995b, p. 76). Uma Babel cujo tempo percorre vazio, transparente, desértico e dasabitado, num espelhamento infinito de textos metaforizados que remetem tanto para a construção quanto para a desconstrução, mostrando uma rostidade que passa por uma transformação intensa. Isso ocorre porque: O deus desvia o seu rosto, que ninguém deve ver; porém, inversamente, o sujeito desvia o seu [...]. Os rostos que se desviam, e se colocam de perfil, substituem o rosto irradiante visto de frente. É nesse duplo desvio que se traça a linha de fuga positiva (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 76). Permitindo que eles continuem trilhando seus objetivos, mesmo estando presos a um tempo que parece não passar e a um labirinto do qual jamais sairão. 161 Por esse motivo, as linhas de rostidade não têm mais o papel de “impedir a formação de uma linha de fuga, ou a de formar um corpo de significância que a controla [...] É a rostidade, ao contrário, que organiza a linha de fuga, no face a face dos dois rostos que se recortam e se desviam, se colocam de perfil” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 78). Essa situação gera uma eterna repetição e um eterno reexame de suas buscas. Depois que as línguas foram confundidas, valeria a pena procurar o livro perfeito? O que deveriam fazer se o encontrassem? Tal pensamento é preenchido por uma imagem de si mesmo na tentativa de se autorreconhecer. Temos, até certo ponto, uma força que preza por aquilo que é forçada a perceber, mas também por aquilo que somente ela tem o poder de compreender, conduzindo os indivíduos a uma imagem de si na qual eles passam a se reconhecer como sujeitos que estão em busca de um elemento diferencial capaz de preencher os vazios com os quais vêm lutando durante o tempo em que estão presos na Biblioteca. Há alguma coisa que os impulsiona a pensar no livro como elemento fundamental, haja vista que “[...] o livro, ou o que serve como livro, muda de sentido entre o regime paranóico (sic)107 significante e o regime passional pós-significante” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 80). Vale salientar que “[...] no regime passional, o livro se interioriza, e interioriza tudo: torna-se Livro escrito sagrado. É ele que funciona como rosto, e Deus, que dissimula o seu [...]”108 aparece para os homens da Babel como o livro perfeito (cuja voz soa através das palavras): “(Os místicos pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que siga toda a volta das paredes; mas seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro perfeito é Deus)” (BORGES, 1999, p. 517). Esse livro é impossível de ser localizado. Embora haja rumores de que um bibliotecário o tenha encontrado, quem garante que isso realmente aconteceu? Até que ponto isso não se caracteriza como mais um traço imaginativo? Independente do que possamos conjecturar, podemos afirmar que o livro é o mais desterritorializado e o único que alicerça os territórios e suas origens. Para o imperfeito bibliotecário, o livro perfeito representa um “livro único, a obra total, todas as combinações possíveis no interior do livro, o livro-árvore, o 107 Nas palavras de Deleuze e Guattari (1995b, p. 80), o regime paranoico ou “o que serve como livro tem sempre um modelo exterior, um referente, um rosto, família ou território que asseguram para o livro um caráter oral”. 108 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1995b, v. 2, p. 81. 162 livro-cosmos, todas essas reapropriações [...] que separam o livro de suas relações com o fora, são ainda piores do que o canto do significante” (DELEUZE; GUATTARI, 1995b, p. 82). Eis a razão de o livro ser um elemento essencial para o agenciamento dos indivíduos. Para Borges (1999, p. 519): “Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos”. Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (número, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, [...], o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito. Mesmo que o livro seja desterritorializado sempre, a Biblioteca mantém uma organização infinita a qual contempla todos os volumes, despertando a atenção dos homens que caminham pelos infinitos hexágonos à procura de explicações para o mundo, embora não seja isso que os impulsiona a estar naquele ambiente. Outros aspectos conduzem à busca do livro, por exemplo, a curiosidade dos sujeitos por saber o que constava em um livro que fora encontrado “há quinhentos anos [...], um livro tão confuso como os outros, porém que possuía quase duas folhas de linhas homogêneas” (BORGES, 1999, p. 518). Após se depararem com o livro, muitas foram as conclusões a que chegaram: “alguns acharam que estava escrito em português; outros, que estava redigido em iídiche”109; no entanto, “antes de um século pôde ser estabelecido o idioma: um dialeto samoiedo-lituano110 do guarani, com inflexões de árabe clássico”. Em meio à confusão que se formou em torno do dialeto utilizado para escrever o livro, um bibliotecário de gênio descobriu a lei fundamental da Biblioteca: “todos os livros, por diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula e as vinte e duas letras do alfabeto. Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram: ‘Não há na vasta Biblioteca, dois livros idênticos’” (BORGES, 1999, p. 519). 109 Yiddish. Uma língua da família indo-europeia falada por judeus. 110 Cf. Teixeira (2010, p. 86), a precisão do dialeto se caracteriza como uma grande ironia, visto que os samoiedos são povos do norte da Sibéria, no Oriente Médio; a Lituânia está localizada ao norte da Europa e o árabe clássico foi falado entre os séculos VI e XI; o que torna o dialeto “guarani” tão confuso quanto improvável. Sendo assim, estamos diante de uma teoria também improvável e díspare. 163 É notório que na Biblioteca não há somente uma realidade, mas realidades possíveis, por isso que o bibliotecário confirma que para cada problema pessoal ou mundial havia uma solução, passando a existir a justificação do universo: “[...] Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloqüente (sic) solução não existisse: em algum hexágono. O universo estava justificado, o universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança” (BORGES, 1999, p. 519). É importante destacar que, de modo geral, o conhecimento é algo relativo ao homem; portanto, não faz parte do universo. Uma vez que o homem deixe de existir também não existirá conhecimento. Esse fato é igualmente observado pelo bibliotecário quando afirma que, independente de o indivíduo encontrar ou não aquilo que procura, a Biblioteca perdurará. Desta forma, os personagens presentes na Babel almejam o impossível: o catálogo de catálogos, a explicação total da Biblioteca, a origem do tempo; porém, o que eles encontram é o caos, analogamente, o possível/impossível. Ordem e caos os acompanham durante todo o tempo, em cada andar e em todos os hexágonos. A organização do ambiente é invariável e, segundo Borges (1999, p. 516;517): De qualquer hexágono, vêem-se (sic) os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal [...]. A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas, cada linha, de umas oitenta letras de cor preta [...]. Embora a Biblioteca conduza a esse emaranhado de situações cuja ordem e caos se fazem presentes, é preciso observar que nem tudo segue uma ordem. Depois de trezentos anos foi possível “formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjetura decifrara: a natureza disforme e caótica de quase todos os livros”. No hexágono quinze noventa e quatro todos os livros repetem perversamente as letras MCV, da primeira à última linha sem chegar a nenhuma conclusão; outro, “é um simples labirinto de letras, mas a página penúltima diz Oh, tempo tuas pirâmides”, diferenciando-o dos demais (BORGES, 1999, p. 518). Sendo assim, torna-se inútil buscar algum sentido nesses livros. Há uma instauração de ordem/desordem a qual provavelmente não é compreendida pelo 164 bibliotecário. Um caos que leva os homens da Babel a acreditar e se sentirem felizes ao saber que o futuro já estava determinado, ao passo que entram em profunda depressão quando descobrem que não há esperança de encontrar o livro perfeito: “À desmedida esperança, sucedeu, como é natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis afigurou-se quase intolerável” (BORGES, 1999, p. 520). Esses homens têm consciência de que é impossível encontrar e decifrar o livro, mas continuam alimentando a certeza de que no futuro eles o encontrarão e poderão esclarecer os “mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. [...] Faz já quatro séculos que os homens esgotam os hexágonos [...]” (BORGES, 1999, p. 520). Durante esse período os indivíduos lidam com um tempo cíclico, mostrando que é um tempo determinado, que caminha para a destruição, para o nada, com recortes que os levam à melancolia, ao mórbido e à morte. Um tempo descontínuo o qual os conduzirá a um futuro incerto. De certo modo, quando os homens são submetidos a essas situações, passam a compreender que o universo labiríntico propicia-lhes não só a busca do Homem do Livro, do livro perfeito, mas também o reconhecimento de si próprios enquanto sujeitos anônimos e, analogamente, sujeitos nomeados, os quais escondem, ao mesmo tempo em que revelam suas diferenças, contradições, particularidades e medos. Um paradoxo que encaminha ao silêncio e ao vazio que persiste em cada sujeito, fazendo com que experienciem territórios movediços os quais se modificam na medida em que eles vivenciam o processo de desterritorialização e seguem à procura da voz que surge a partir das cadências particulares do pensar e do falar que se instauram no ambiente da Biblioteca. Trata-se de uma Biblioteca “[...] iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos [...]”111, cuja dimensão faz refletir, através dos hexágonos, uma multiplicidade do sagrado, da morte e do mundo como labirinto, justificando a ausência de si mesmo, mas também reiterando a necessidade de desterritorialização do sujeito da Babel. Os homens da Babel fazem experiências simultâneas do encontro de si através do “espelho que fielmente duplica as aparências”112, permitindo que eles se reconheçam de diferentes formas e se 111 BORGES, Jorge Luis. A Biblioteca de Babel. Obra completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 522. 112 Ibid., p. 516. 165 percebam enquanto indivíduos aptos a percorrer os infinitos espaços da Biblioteca à procura de seus ideais: Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci. [...] Afirmo que a Biblioteca é interminável (BORGES, 1999, p. 516). Os personagens da Babel borgeana constatam que por meio de suas vivências naquele ambiente eles passam a enxergar o mundo, o universo da Biblioteca, como esse lugar cujo espaço é visivelmente reconhecido pela organização que possui, a qual sobrepuja uma desorganização. Contrassenso que corrobora com a “ressurgência” de um universo onde ninguém nunca está sozinho; todos estão sob o controle imediato de alguém, que pode ser o imperfeito bibliotecário, Deus, ou alegoricamente, a própria Biblioteca. Não podemos esquecer que o sentido dado a esse lugar depende prioritariamente da visão do homem, de como ele o conjectura. No que diz respeito ao bibliotecário, ele sabe “de uma região montanhosa cujos bibliotecários repudiam o supersticioso e vão costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão [...]” (BORGES, 1999, p. 518). Implica dizer, conforme Teixeira (2010), que o homem continua no mundo das incertezas; logo, não há como afirmar quais são os reais propósitos da Biblioteca: se ele considerar que o ambiente no qual está inserido é labiríntico, haverá um propósito, uma razão de ser; contudo, se o enxergar como um universo caótico, não haverá propósito, dando margem para pensar que existe uma distância considerável entre o divino e o humano, sendo assim: O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus. Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta comparar esses rudes símbolos trêmulos que minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas (BORGES, 1999, p. 517). 166 A desterritorialização “é determinada pelo confronto de territorialidades e de linhagens segmentares que conjuram o aparelho de Estado”113; embora essa desterritorialização sirva também como uma linha de fuga. Desse modo, a rostidade de Deus (do Divino) somente se apresentará através das palavras contidas no livro perfeito que, uma vez encontrado, permitirá que os homens vivenciem “uma desterritorialização positiva absoluta”114 a qual produzirá uma transformação plena, mostrando os dois rostos que se desviam (o de Deus e o do homem) os quais caracterizam a sucessão de processos finitos/infinitos. Um paradoxo que se eterniza na Biblioteca de Babel, ratificando que na conjectura de Borges realidade e sonho sempre se aproximam. No texto Segunda pele, Bergstein (2005) trata dos movimentos do artista por meio do trabalho com a costura, o que nos leva a pensar a desconstrução a partir dessa tessitura cujos nós, fios e linhas compõem os esforços empreendidos pelos homens da Biblioteca em torno dessa busca incansável pelo livro perfeito, onde os movimentos de desterritorialização perfazem “a estratificação dos diferentes sistemas”115 para mostrar como eles se comportam ante essa procura e como os sujeitos envolvidos nesse processo veem o bibliotecário, mas também o que pensam acerca de Deus e do mundo, que é esse universo labiríntico: [...] não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os abrange o número possível de livros. Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica (BORGES, 1999, p. 523). É um processo de desconstrução que se configura com o que Bernardo (2005, p. 181) denomina de desconstrução como movimento de pensamento, “o qual nos dá não apenas uma nova e diferente possibilidade de pensar, de tudo pensar de novo, sempre de novo, a cada instante de novo, mas também uma nova possibilidade de pensar o próprio pensar”. Um pensamento que acaba perfazendo esse movimento próprio de urdir os passos dos indivíduos como se estivessem lidando com a mais fina costura, do mais delicado tecido, descortinando as nuances do porvir através dos “pontos, nós, 113 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, 1995b, v. 2, p. 91. 114 Ibid., p. 93. 115 Ibid., p. 107. 167 cerzidos, alinhavos, pespontos, pontos em ziguezague. [...] linhas que iam reparando, reunindo [...]”, mantendo juntos ou separando os homens da Babel borgeana (BERGSTEIN, 2005, p. 216). Entre uma “costura” e outra dessa desterritorialização o silêncio aparece como um grito de socorro povoado por múltiplas vozes, por vazios de possibilidades, cujos hexágonos desdobram-se e redobram-se em infinitos labirintos. Ao passo que se desdobram, as “costuras” obedecem a movimentos de idas e vindas, numa repetição voluntária que traz a cargo a rememoração do silêncio, caracterizando um inacabamento infinito o qual se realiza através do corpo. O anseio por ter o livro perfeito em suas mãos permite aos indivíduos dobrar-se, desdobrar-se e redobrar-se infinitamente. Cada hexágono representa um “deserto” a ser desvencilhado numa relação de dupla pertença, onde a alma atua como o princípio da vida e o corpo tangencia-se à alma anunciando um mundo que, segundo Deleuze (1991, p. 199), “atualiza-se nas almas e realiza-se nos corpos”; sendo assim, “ele é dobrado duas vezes nas almas que o atualizam e é redobrado nos corpos que o realizam, e, a cada vez, isso acontece com um regime de leis que corresponde à natureza das almas ou à determinação dos corpos”. Um tilintar inseparável de dobras que ora são costuradas ora são cerzidas, no intuito de produzir vestimentas para esses corpos que não se podem desenrolar, pois se assim o fizerem, perdem, profiramos, a oportunidade de realizar o que mais desejam: localizar o livro perfeito. É possível observar ainda que os homens convivem com agenciamentos maquínicos de corpos, os quais lhes permitem compreender o sonho sob o prisma maquínico, inserindo-os num “campo” real/imaginário, fazendo com que eles (re)visitem o tempo. Para Deleuze e Guattari (1995b, p. 104): O agenciamento, com efeito, tem como que dois pólos (sic) ou vetores: um, voltado para os estratos onde ele distribui as territorialidades, as desterritorializações relativas e as reterritorializações; um outro vetor, voltado para o plano de consistência ou de desestratificação, em que ele conjuga os processos de desterritorialização e os leva ao absoluto da terra. Nesse jogo de buscas e desconstruções, vemos a experiência dos homens da Babel à procura de um impossível que também se configura como algo possível, visto que diferença e repetição se coadunam para mostrar as diversas atuações das vozes que se completam nessa relação de morte e vida, cujos espelhos refletem o 168 mundo dos homens, consequentemente, “a subjugação da forma-homem” (LOPES, 1999, p. 120). Uma tessitura de fios labirínticos que os conduz à morte como metáfora de Deus, perscrutando os vários espaços que compõem a Biblioteca. Por meio da destruição da Torre de Babel, é possível pensar os homens da Babel borgeana sem qualquer indício de unidade ou homogeneidade, pois a diferença não os permite cogitar tais possibilidades. Os povos ficaram dispersos; imediatamente passou a predominar a multiplicidade, porque quando a construção da torre é interrompida também é instaurada uma diversidade de valores cuja correspondência somente seria possível a partir do estado de universalidade e de igualdade idealizado pelos Shem. 3.3 UMA ESCRITURA SECRETA O Livro de Areia, publicado no ano de 1975, é a última coletânea de contos divulgada por Jorge Luis Borges. Nele, estão contidas treze histórias muito diversas, dentre as quais o conto O espelho e a máscara que narra a história de um Rei e um poeta que estão secretamente ligados à palavra enquanto escritura secreta. Após a Batalha de Clontarf, na qual o norueguês foi humilhado, o Alto Rei pediu ao poeta que cantasse sua vitória, em seu louvor; pois, se não fossem registrados, seus feitos perderiam o brilho, e somente as palavras têm o poder de perpetuar os aconteciementos. O Rei disse-lhe: “Eu serei Enéias; tu serás Virgílio. Julgas-te capaz de realizar essa empresa, que tornará imortais a nós dois?” (BORGES, 2009, p. 62). O poeta, além de confirmar sua capacidade ante o Rei, reitera que ele é o Ollan116. Doze foram os invernos em que passou cursando as disciplinas da métrica, por isso, sabia “de cor as trezentas e sessenta fábulas que são a base da verdadeira poesia. Os ciclos de Ulster e de Munster estão nas cordas de minha harpa”. Além disso, as leis o autorizavam a ser magnânimo com as palavras mais obsoletas do idioma, bem como nas mais complexas metáforas. Ele segue dizendo ao Rei que 116 Cf. nota de rodapé contida no Livro de areia, Borges (2009, p. 62) explica que “o título de Ollan equivalia ao mais alto grau da carreira literária, que dependia de doze anos de estudos rigorosos de mitologia, história, topografia, direito, gramática e retórica, bem como da memorização de trezentas e sessenta histórias correspondentes aos meses do ano lunar”. 169 também possuía o domínio da escrita secreta, a qual defende a arte daquele povo “do indiscreto exame do vulgo” (BORGES, 2009, p. 62). Sendo assim, podia narrar os amores, os roubos, as navegações, as guerras, especialmente porque conhecia as linhagens mitológicas de todas as casas reais da Irlanda, era possuidor das virtudes das ervas, da astrologia judiciária, da matemática e do direito canônico. Ao que reflete: “Derrotei em certame público meus rivais. Adestrei-me na sátira, que causa doenças da pele, inclusive lepra. Sei manejar a espada, como o provei na tua batalha. Só ignoro uma coisa: a de agradecer a dádiva que me fazes” (BORGES, 2009, p. 63). O Rei, a quem os discursos extensos e alheios o exauriam facilmente, falou aliviado: — Sei muito bem essas coisas. Acabam de me dizer que o rouxinol já cantou na Inglaterra. Quando as chuvas e a neve passarem, quando o rouxinol regressar de suas terras do Sul, recitarás tua loa diante da corte e do Colégio de Poetas. Concedo-te um ano inteiro. Limarás cada letra e cada palavra. A recompensa, já o sabes, não será indigna de minha praxe real nem de tuas inspiradas vigílias (BORGES, 2009, p. 63). O poeta, que também era um cortesão, respondeu-lhe: “— Rei, a melhor recompensa é ver teu rosto” (BORGES, 2009, p. 63). Em seguida, fez as reverências de praxe e se foi, vislumbrando algum verso. O prazo concedido pelo Rei foi de epidemias e rebeliões; porém, quando chegou o momento, o poeta apresentou o panegírico. Declamou-o sem sequer olhar o manuscrito, com lentidão e segurança. Enquanto declamava, “o Rei ia aprovando-o com a cabeça. Todos imitavam seu gesto, até os que, agrupados nas portas, não decifravam nenhuma palavra” (BORGES, 2009, p. 63). O Rei dirigiu-se ao poeta, feliz com o trabalho e com mais uma vitória. Sem poupar-lhe elogios, disse-lhe: Atribuíste a cada vocábulo a genuína acepção e a cada substantivo o epíteto que os primeiros poetas lhe deram. Não há em toda a loa uma única imagem que os clássicos não tenham usado. A guerra é o belo tecido de homens e a água da espada é o sangue. O mar tem seu deus e as nuvens predizem o futuro. Manejaste com destreza a rima, a aliteração, a assonância, as quantidades, os artifícios da douta retórica, a sábia alternância dos metros. Se toda a literatura da Irlanda se perdesse – omen absit –, poderia ser reconstituída sem perda com tua ode clássica. Trinta escribas vão escrevê-la doze vezes (BORGES, 2009, p. 63-64). 170 Após um silêncio, o Rei declarou que, embora estivesse tudo bem, não havia acontecido nada. O sangue não estava correndo mais depressa, as mãos permaneceram sem procurar os arcos, as pessoas não ficaram pálidas, não foi proferido nenhum grito de batalha, ninguém opôs o peito aos vikings. Nestes termos, dentro de um ano o poeta deveria proferir uma nova loa e, como um sinal de aprovação, entregou-lhe um espelho de prata. O poeta, agradecido, compreendeu os acontecimentos. Um ano se passou. O poeta, então, retornou com uma nova loa, mais curta que a anterior. Desta vez, agiu diferente. Leu com bastante insegurança, omitindo certas palavras. Da maneira como conduziu a leitura do códice levava a crer que o texto não havia sido escrito por ele. Parecia que não queria falar certas passagens. A página era estranha. O poema tratava não da descrição da batalha, mas da própria batalha: “Em sua desordem bélica agitavam-se o Deus que é Três e Um, os numes pagãos da Irlanda e os que guerreariam, centenas de anos depois, no princípio da Edda Maior. A forma não era menos curiosa” (BORGES, 2009, p. 64). Por vezes, aparecia um substantivo no singular concordando com um verbo no plural, preposições surgiam ausentes às normas, a aspereza passou a existir junto com a doçura. As metáforas eram arbitrárias, ao menos denotavam uma arbitrariedade. Depois de trocar algumas palavras com os homens das letras, o Rei dirigiu-se ao poeta proferindo as seguintes palavras: — De tua primeira loa pude afirmar que era um feliz resumo de quanto se cantou na Irlanda. Esta supera todo o anterior e também o aniquila. Eleva, maravilha e deslumbra. Não a merecerão os ignaros, mas, sim, os doutos, a minoria. Um cofre de marfim será a custódia do único exemplar. Da pena que produziu obra tão eminente podemos esperar ainda uma obra mais alta (BORGES, 2009, p. 65). Com um sorriso, o Rei afirmou que, sendo eles figuras de uma fábula, era justo lembrar que nas fábulas prima-se pelo número três. Ao que o poeta arriscou-se a murmurar: “— Os três dons do feiticeiro, as tríades e a indubitável Trindade” (BORGES, 2009, p. 65). A recompensa pelo segundo encômio foi uma máscara de ouro. Outra vez o poeta agradece e compreende. No ano seguinte, o poeta chega ao palácio sem nenhum manuscrito. O Rei, estupefato, olha para ele e parece ver outra pessoa. Algo, que não foi o tempo, havia entristecido e decomposto os traços daquele homem cujo olhar agora parecia 171 estar muito longe (ou os olhos estavam cegos). O homem pediu que o Rei trocasse algumas palavras com ele, em particular, antes de declamar a loa. Preocupado, o Rei pergunta-lhe se não havia executado o elogio, obtendo como resposta um triste sim, seguido de um “tomara Cristo Nosso Senhor me tivesse proibido” (BORGES, 2009, p. 65). Quando pede que a repita, recebe como resposta uma recusa: “— Não me atrevo”. Prontamente, o Rei declara que lhe dará a coragem que lhe falta. Ele proferiu o panegírico, que contava com apenas uma linha. Ambos saborearam aquelas palavras sem pronunciá-las em voz alta. Parecia-lhes uma prece secreta ou uma blasfêmia. Naquele momento, eles se entreolharam pálidos. Um misto de maravilha e opressão toma conta dos dois. O Rei profere: — Nos anos de minha juventude – disse o Rei – naveguei rumo ao ocaso. Numa ilha vi lebréus de prata que matavam javalis de ouro. Noutra nos alimentamos com a fragrância das maçãs mágicas. Noutra vi muralhas de fogo. Na mais longínqua de todas um rio abobadado e pendente sulcava o céu e por suas águas iam peixes e barcos. Essas são maravilhas, mas não se comparam com teu poema, que de alguma forma encerra. Que feitiçaria o deu a ti? (BORGES, 2009, p. 66). O poeta afirma que no alvorecer acordou proferindo palavras que não compreendia; no entanto, percebeu tratar-se de um poema. Naquele momento, ele sentiu que havia cometido um pecado daqueles que o Espírito não perdoa. Ao que o Rei murmura: “— O que agora nós dois compartilhamos [...] — O de ter conhecido a Beleza, que é um dom vedado aos homens. Agora nos toca expiá-lo” (BORGES, 2009, p. 66). Após proferir essas palavras, o Rei entrega-lhe o terceiro e último presente, pondo em sua destra uma adaga. O que se sabe até hoje é que o poeta, ao sair do palácio, matou-se. O Rei tornou-se um mendigo e percorreu os caminhos do seu antigo reino, a Irlanda, sem nunca ter repetido o poema. Depreendem-se deste conto três momentos distintos os quais marcam um tempo tanto para o Ollan quanto para o Rei e, por extensão, para o povo daquele reino. Tais momentos conduzem o poeta a labirintos escriturais sem que saibamos qual deles o fará sair da prisão em que se encontra; porém, ao final, temos a revelação de que a saída definitiva dá-se por meio do suicídio daquele homem. Indubitavelmente, o enigma apresentado ao leitor o surpreende, pois cada vez que o 172 Ollan comparece à presença do Rei surge o desdobrar de um novo mistério e, portanto, de um novo labirinto escritural. No primeiro momento, quando o poeta declama a loa que exalta o Rei e o louva por vencer a batalha contra o norueguês, é contemplado com um espelho117 de prata118 o qual simboliza, segundo a concepção antiga, o reflexo da realidade; mas também representa a observação de si próprio, haja vista refletir a imagem que está diante dele. É um objeto que simboliza o conhecimento, a verdade, a consciência, perfeição, harmonia, clareza, reflexão e a pureza da alma, bem como autoconhecimento. Quando o Rei presenteia o Ollan com o espelho e lhe pede um novo poema (para o ano seguinte) espera que esse venha não só permeado pelo conhecimento, mas, pela verdade, clareza, harmonia e perfeição, chamando a atenção para a perenidade. Ademais, no instante da especulação o espelho se apoia unicamente no intelecto do sujeito, porque também representa a criação. O espelho é ofertado em analogia ao poema declamado, tendo em vista que, como o poeta apresenta a descrição de uma batalha específica, a intenção da realeza é mostrar que panegírico e espelho se coadunam com o real, uma vez que exprime (ou descreve) acontecimentos reais os quais devem encontrar-se além da visão de quem os escreve. Sempre que o poeta olhar para o espelho terá a visão do encômio, do Rei (que simboliza o pensamento) e de si próprio, simbolizando a linguagem. A loa é a representação maior do pensamento do Rei por meio das palavras do poeta. Contudo, faz-se necessário destacar que durante o período no qual o Ollan se dedica a escrevê-la há uma espécie de abismo que o separa do Rei, convergindo para “[...] uma relação de infinitude entre todas as coisas, e, antes de mais nada, na palavra que assume essa relação”119; ou seja, é por meio da palavra 117 A palavra espelho, do latim speculum deu origem ao verbo especular, que consiste na especulação e/ou observação, sobretudo de si mesmo. Vale salientar que, se não houver luz, o espelho torna-se inútil. De acordo com a tradição oriental, Yama, soberano do reino dos mortos, utilizou o espelho do karma quando do julgamento da alma. Já para os japoneses, esse objeto, além de ser considerado um símbolo lunar e passivo, também é considerado solar, na medida em que reflete a inteligência suprema. O kagami – como é chamado – é o símbolo da deusa solar Amaterasu e representa perfeição, harmonia e pureza da alma. Ao incidir sobre o espelho, o sol reflete a luz divina. O fato de simbolizar conhecimento, sabedoria e iluminação requer que o espelho esteja sempre limpo, do contrário, somente representará um espírito obscurecido pela ignorância. Disponível em: . 118 A prata simboliza o incorruptível, perenemente mutável. No misticismo simboliza a lua que está constantemente a obscurecer e volta novamente a brilhar no céu. Disponível em: . 119 BLANCHOT, Maurice. Conversa Infinita 1. São Paulo: Escuta, 2010a, p. 33. 173 que o desconhecido se articulará tornando-se conhecido, expressando a ideia de infinitude, onde a linguagem é posta em jogo a partir do instante em que é solicitado ao poeta uma nova ode. Esse intervalo de tempo lhe permite pensar as palavras e as situações que irão compor o panegírico, indo do Ser ao Nada, com a finalidade única de satisfazer o desejo do Rei, de preencher os vazios da alma e do pensamento sem fazê-los desaparecer; pois, se assim o fizesse, tudo o mais perderia o sentido. Quando começa a projetar o encômio, o poeta se apropria da palavra para que esta, a partir daquele momento, crie a história e, por meio de sua extensão no tempo, fundamente a duração dos acontecimentos, que passam a ganhar forma e sentido desde o momento em que são projetados na mente do Ollan até o instante final, quando todos o ouvem recitá-lo. O passado é conjecturado com vistas a um futuro cuja criação se perpetuará, acompanhando um tempo cíclico onde a palavra dará poder à linguagem para revelar-se através de uma história sem fim, ao mesmo tempo já finalizada, uma vez que anuncia o desdobramento do ser como um movimento que gira “em círculo, e esse movimento vai do mais interior ao mais exterior, da interioridade não desenvolvida à exteriorização que o aliena, e dessa alienação que o exterioriza até a plenitude realizada e reinteriorizada” (BLANCHOT, 2010a, p. 47). Para Blanchot (2010a, p. 50), embora as palavras expostas no poema sejam constituidoras de uma história, elas se mostram como imagens-enigmas capazes de serem dissolvidas com o tempo; isto porque, não nos permitem ouvi-las, vê-las, senti-las, não nos permitem refleti-las, porquanto não estão resolvidas; logo, ainda não se apresentam em sua plenitude, sendo conduzidas ao vazio de onde vieram, dissipando-se na própria linguagem, até que consigam a perfeição. Ao passo que são dissipadas, as palavras paradoxalmente se unem para relatar os fatos. Pensamento e linguagem estão coadunados de modo que o Rei os compreende, sente e lhes atribui um sentido rebuscado. Mesmo assumindo que o panegírico não provocou mudança nas pessoas daquele reino e que o sangue não correu mais forte pelas veias. — Tudo está bem e, no entanto, não aconteceu nada. Nos pulsos o sangue não corre mais depressa. As mãos não procuraram os arcos. Ninguém empalideceu. Ninguém proferiu um grito de batalha, ninguém opôs o peito aos vikings. Dentro do prazo de um ano aplaudiremos outra loa, poeta (BORGES, 2009, p. 64). 174 A realeza é consciente de que as palavras têm um poder transformador e mostram a relevância que possuem ante aquilo que está sendo proferido, servindo de “veículo” para esse labirinto escritural que detém o jogo da ilusão. Contudo, deseja mais do poeta, ou das palavras. Por este motivo, quando recebe o espelho de prata, o Ollan compreende que o Rei deseja que o próximo poema reflita os acontecimentos com mais sabedoria, harmonia e, principalmente, perfeição. Eis a razão de reverenciá-lo e já sair pensando em como escreverá o próximo elogio. A partir do pedido do Rei, o Ollan segue em busca de uma linguagem mais rebuscada que alcance os sentimentos, as emoções e a vontade daquele homem. Embora não sejamos conhecedores do conteúdo da ode, ousamos inferir que o poeta se apropria de metáforas que vinculem as expressões de sentimentos do Rei, tornando-as perceptíveis, ao mesmo tempo em que possibilitem a todos vislumbrar o fascínio de palavras até então irrepresentáveis, indizíveis. A imagem que temos é de uma palavra que traduz a guerra, a loucura, o desejo de realização através do elogio às vitórias conquistadas durante todo o reinado daquele homem. O ato de encontrar as palavras para escrever o próximo encômio indica movimentos circulares, pois, via de regra, “encontrar é buscar em relação ao centro, que é o próprio inencontrável” (BLANCHOT, 2010a, p. 64). Essa busca pode levar o indivíduo a descobrir que a palavra também é errante, por isso cria um percurso próprio, conforme sua intenção, a qual pode, inclusive, fazer com que o sujeito se desvie do seu curso e veja o que está além da sua visão sob todos os ângulos. Nesse caso, “a palavra não se apresenta mais como uma palavra, mas como uma visão liberta das limitações da visão. Não uma maneira de dizer, mas uma maneira transcendente de ver”120, expressando, no caso do poeta, uma triplicidade de revelações que se desdobram através das idas e vindas que lhes são impostas a cada ano. Há um eterno retorno do mesmo, tendo em vista que ele sempre volta ao momento inicial, concentrando, mas também dobrando os enigmas a serem desdobrados por meio das palavras que, uma vez raras, desconhecem a pressa, “sempre chamando o desvio e assim nos mantendo em suspenso entre o visível e o invisível, ou aquém de um e de outro” (BLANCHOT, 2010a, p. 72). Na realidade, ocorre o movimento de escrever atraído pelo exterior que leva em conta apenas a 120 BLANCHOT, Maurice. Conversa Infinita 1. São Paulo: Escuta, 2010a, p. 68. 175 vontade do Rei, cujo centro está ininterruptamente descentrado. Neste ínterim, abriremos um parêntese para tratarmos dessa vontade compulsiva do Rei em busca de um panegírico perfeito. De antemão, cabe-nos inquirir o que leva o Rei a pedir uma loa e qual a verdadeira intenção em insistir por uma perfeição que o levará, digamos, à ruína. Contudo, se observarmos esse personagem sob o prisma psicanalítico, veremos que se trata de um indivíduo que anseia por dar uma expressão verbal às suas emoções como forma de perpetuar os seus feitos. Freud diria que se trata de um comportamento neurótico, o qual é apregoado tendo a palavra como instrumento disseminador da poesia que fala o que o outro deseja ouvir. Não obstante, essa mesma palavra que emociona também se faz aperfeiçoar para ficar conforme o desejo desse outro que não se conforma (ou não se satisfaz) à primeira vista com aquilo que escuta e almeja veementemente o aperfeiçoamento das palavras até que estas alcancem a perfeição, a Beleza. Algo que se torna questionável e impronunciável, de acordo com Borges (2009, p. 66): — No alvorecer – disse o poeta – acordei dizendo palavras que de início não compreendi. Essas palavras são um poema. Senti que tinha cometido um pecado, talvez o que o Espírito não perdoa. — O que agora nós dois compartilhamos – murmurou o Rei. — O de ter conhecido a Beleza, que é um dom vedado aos homens. O Rei se comporta como alguém que vê no outro a possibilidade de expressar suas emoções e, mais do que isso, alguém capaz de sintonizar “não só a emoção dita, mas a vivida, a silenciada, a indizível; não só a dor (ou a alegria)121 representada, mas a presentada”122, aquela que não é representada; todavia, é simbolizada por meio de outra coisa (ou de outra palavra); ou seja, aquela que é revelada e se torna explícita. Ele anseia ouvir o que o Ollan tem a dizer acerca de seus feitos de modo que as palavras o façam vibrar de emoção; entretanto, essa sensação deve vir não somente da palavra proferida, mas, sobretudo, da palavra sentida; daquela que não foi pronunciada e, no entanto, o tocou, o emocionou e o comoveu – que foi o que aconteceu, especialmente, com o terceiro e último poema. A ressonância das metáforas apresentadas pelo poeta surge desse momento de silêncio que ele vivencia ao longo de cada ano; mas, ao chegar à presença da 121 O acréscimo do parêntese é nosso. 122 ROSENFELD, H. K. Palavra pescando não-palavra: a metáfora na interpretação psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, p. 64-65. 176 realeza tudo se configura, aos olhos do Rei, como um contato inesperado com o desconhecido, como se o que estivesse sendo apresentado causasse uma admiração seguida de um espanto, de uma surpresa. A interpretação que o Rei faz de cada frase-palavra lhe permite romper, por assim dizer, com o “conjunto dos pressupostos lógico-emocionais em que se assentava a auto-representação do sujeito”123, acarretando nele a expectativa de que no ano seguinte as palavras ganhariam nova forma e beleza, podendo chegar à perfeição. De fato, ele espera que as palavras sejam capazes de tangenciar os acontecimentos tocando-o tão intensamente a ponto de ele ficar sem palavras para expressar ao poeta – e por extensão a todos os que estão ouvindo o panegírico – a emoção que está sentindo naquele momento ímpar. Somente dessa forma silenciará a compulsão que há dentro dele; isso porque a linguagem se apresentou como uma nova forma de mostrar que tanto as palavras quanto o sujeito ganharam liberdade passando a se abrir para um outro dizer, que se configura com plenitude diante dos fatos. No dizer de Rosenfeld (1998, p. 80), temos a confluência das palavras expressando agora “[...] o nome, a metáfora, que pode ir além dos umbrais da significação e da comunicação, que, em vez de exprimir-se ou fazer-se compreender, dá visibilidade, tem o poder de suscitar figuras e permite o ‘retorno às coisas mesmas’”. Para a referida autora, Se a palavra ‘significa’ a coisa, afastar-se dela, enquanto quando a palavra ‘nomeia’, a coisa permanece por perto. A palavra comum mantém as coisas no sono; o nome as desperta. A metáfora é a palavra pronunciada que contém, que dá a ouvir, o impronunciável. Ela nos convida a um movimento diferente que o de compreender um significado (ROSENFELD, 1998, p. 80). É através das metáforas expostas pelo Ollan que o Rei vai se sentindo preenchido, a alma começa a ganhar um novo tom, transformando os vazios em silêncios os quais estão sendo aperfeiçoados pela poesia, mas também pelos agenciamentos metafóricos que foram além da visão do poeta, mostrando o poder que as palavras possuem de ir além da significação, fazendo com que cada 123 ROSENFELD, H. K. Palavra pescando não-palavra: a metáfora na interpretação psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, p. 64-65. p. 76. 177 metáfora proferida expressasse (ou expresse) as ressonâncias desse desconhecido num eterno retorno de si e do outro. Mais um ano se passou. “Outra vez o rouxinol cantou nas selvas saxônicas”. O poeta veio declamar o segundo poema. Desta vez mais curto e sem o mesmo entusiamo do ano anterior, haja vista que “não o repetiu de cor; leu-o com visível insegurança, omitindo certas passagens, como se ele próprio não as entendesse completamente ou não quisesse profaná-las. A página era estranha. Não era uma descrição da batalha, era a batalha” (BORGES, 2009, 64). Após ler o encômio, o poeta recebeu do Rei uma máscara124 de ouro a qual simboliza fé, confiança, liberdade, bem como expressa o equilíbrio do indivíduo diante dos acontecimentos, reiterando os laços deste com a sua cultura e com o seu passado. Este objeto também representa proteção em relação aos espíritos do passado adjudicando-lhes a responsabilidade por qualquer dano que o sujeito viesse a sofrer. Apregoa o equilíbrio existente entre o poder disciplinador e as estruturas sociais daquela sociedade. Como a máscara era de ouro, fazia uma analogia à riqueza da memória, a firmeza e constância do poeta em executar sua missão. O objeto foi entregue simbolizando a confiança que o Rei sempre creditou ao poeta, a liberdade de usar as palavras como lhe aprouvesse, mas também como símbolo de transformação e das qualidades daquele que esta representa, e ainda para dizer-lhe que houve uma ruptura com a linguagem anterior, predominando não a descrição, e sim a criatividade do poeta. Por isso o Rei decide que “um cofre de marfim será a custódia do único exemplar” (BORGES, 2009, p. 65). Ele sabia que aquele homem era hábil com as palavras, sentia a magicidade com que o poeta se utilizava da linguagem e tinha a certeza de que a partir das palavras era possível sentir o afeto, a articulação, a representação desse sentimento, a união do sensível ao inteligível. Tocava-lhe saber que as palavras ali proferidas eram frutos do seu pensamento, da sua vontade atrelada à vontade do outro. 124 Máscara, do latim persona, significa personalidade. As máscaras desempenham um importante papel nas festas dos ciclos dos doze dias, pois dinamizam as diferentes celebrações que ocorrem nesse período. Durante a Antiguidade, também eram usadas como elemento de ligação entre o mundo dos vivos e o dos mortos; portanto, entre o homem e a divindade. Acredita-se que foi o poeta Tespis (século VI a.C) quem criou a tragédia e inventou a primeira máscara teatral, a qual foi confeccionada com linho colorido e cobria toda a cabeça de quem a usava, permitindo que o indivíduo se sentisse com confiança e liberdade. O ouro representa a riqueza da memória, firmeza e constância na execução da missão. Disponível em: . 178 O entretecer da imaginação, intuição, inteligência, percepção, criatividade daquele indivíduo, unido às palavras, permitia-lhe sentir a mais profunda emoção, algo até então inexplicável, sobretudo porque a liberdade que a palavra propiciava àquele homem dava-lhe condições de mostrar todos os acontecimentos, penetrando nos mais profundos sentidos e ilusões, recobrando sempre a liberdade e a grandeza das expressões. De acordo com Paz (apud ROSENFELD, 1998, p. 115), “o primeiro ato dessa operação consiste no desalojamento das palavras. O poeta as arranca de suas conexões habituais: separados do mundo informativo da fala, os vocábulos tornam-se únicos, como se acabassem de nascer”. Tudo isso é possível porque as palavras possuem liberdade para ressoar. Embora o poema proferido retratasse certa desordem no que concerne à batalha e à organização: Em sua desordem bélica agitavam-se o Deus que é Três e Um, os numes pagãos da Irlanda e os que guerreariam, centenas de anos depois, no princípio da Edda Maior. A forma não era menos curiosa. Um substantivo singular podia reger um verbo no plural. As preposições eram alheias às normas comuns. A aspereza alternava com a doçura. As metáforas eram arbitrárias ou assim pareciam (BORGES, 2009, p. 64). Depois de conversar com os poetas que o rodeavam, o Rei estava convencido da superação, do equilíbrio e da confiança do Ollan em relação ao que proferiu; especialmente porque pôde contemplar as palavras tanto como resultado do esforço e do trabalho daquele homem quanto como “[...] o resultado do trabalho que o discurso verbal realiza com a imagem, é a imagem construída, trabalhada pela palavra”125 que lhe permite saborear seus feitos gloriosos. Para ele, as palavras se apresentam como expressão do seu pensamento, com uma força esplêndida revelando vivências as quais estão, por assim dizer, escondidas, enterradas no passado e no esquecimento do povo. Mesmo que a ode fosse menor, o poeta conseguiu trazer à memória o que estava adormecido, dando vida aos fatos, dobrando e desdobrando os acontecimentos num eterno retorno do indizível, de modo que os episódios ganharam movimento no discurso fazendo brotar palavras-metáforas as quais expunham as experiências daqueles que estiveram (ou estavam) no combate, tangenciando a fala sem revelá-la completamente, pois agora era a batalha. 125 ROSENFELD, H. K. Palavra pescando não-palavra: a metáfora na interpretação psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, p. 101. 179 Há uma ruptura com o habitual, haja vista que “é a fala que brota do viver e entrega-se à experiência antes do distanciamento reflexivo. A palavra poética não está à disposição do falante, ela acontece a ele e é uma resposta a algo que a solicita” (ROSENFELD, 1998, p. 107). Ainda que as experiências que a metáfora e a poesia visam a entender sejam indizíveis, o Ollan consegue retratar a realidade (a batalha) com o máximo de perfeição: — De tua primeira loa pude afirmar que era um feliz resumo de quanto se cantou na Irlanda. Esta supera todo o anterior e também o aniquila. Eleva, maravilha e deslumbra. Não a merecerão os ignaros, mas, sim, os doutos, a minoria. Um cofre de marfim será a custódia do único exemplar. Da pena que produziu obra tão eminente podemos esperar ainda uma obra mais alta126 (BORGES, 2009, p. 65). As metáforas utilizadas na nova ode foram sábias e externaram o que há de mais sublime aos ouvidos de quem as confiou e daqueles que as estavam apreciando. Desta vez os vocábulos romperam com paradigmas, transformando as experiências de guerra em algo fascinante, pois uniram a dor, o sangue, a luta, a batalha... ao fascínio, à emoção, ao mágico, ao prazer... revelando algo que pôde ser assimilado por todos com encantamento; sobretudo porque as palavras proferidas tornaram visível o invisível, dizível o indizível e potencializaram “a força, o impacto e o alcance da interpretação” de quem as contemplava (ROSENFELD, 1998, p. 125). Tudo isso foi possível porque a máscara libertou o poeta da prisão em que se encontrava, a catarse fê-lo se apropriar das palavras para dizer o não dito consciente de que está livre da obrigação de veicular conhecimento intelectual, aproximando-se mais da experiência, com a finalidade de “captar-lhe o frescor, a vitalidade e a singularidade, para não matá-la com uma palavra estéril” (ROSENFELD, 1998, p. 126). As palavras-metáforas urdidas às palavras-poéticas127 propiciam pausas que preparam esse momento poético onde pensamento e linguagem se coadunam para retratar uma realidade cuja “[...] palavra não designa algo, mas torna-se a presença dele; não se trata de significação conceitual, e sim de significação existencial e afetiva, que não é traduzida pelas palavras, mas que as habita” (ROSENFELD, 126 Este fragmento fora mencionado na página 177 quando estávamos parafraseando o conto em análise. Estamos “repetindo” o trecho com o intuito tão somente de exemplificar a fala do Rei reiterando a admiração deste no que concerne à produção poética do Ollan. 127 As expressões palavras-metáforas e palavras-poéticas foram cunhadas do livro de Rosenfeld. Grifos nossos. 180 1998, p. 134). Sendo assim, as experiências e a nomeação – que é registrada através das metáforas usadas ao longo de cada loa proferida – confere vida à fala do poeta arrematando as experiências indizíveis e tornando-as dizíveis. Ciente de que teria novamente um ano para recitar um novo encômio, o poeta parte em silêncio: “O aniversário voltou. As sentinelas do palácio observaram que o poeta não trazia manuscrito algum” (BORGES, 2009, p. 65). Assim chegamos ao terceiro e último momento, quando o Ollan se apresenta aos guardas pedindo-lhes para falar a sós com o Rei: “Não sem estupefação o Rei olhou para ele; quase era outro. Algo, que não era o tempo, tinha sulcado e transformado seus traços. Os olhos pareciam olhar muito longe ou ter ficado cegos” (BORGES, 2009, p. 65). O espelho, a máscara e as palavras consumiram o poeta durante aqueles anos. A busca pelas palavras-metáforas e pela perfeição, unida à exigência do Rei, fizeram-no vivenciar a lei do mesmo, a separação de tudo e de todos para alcançar a plenitude da palavra (a plenitude do todo) visando à verdade, tendo em vista que “o Eu-sujeito, seja dividindo-se, seja dividindo o Outro, afirma-o como intermediário e, se realiza nele (de tal forma que ele possa reduzir o Outro à verdade do Sujeito)” (BLANCHOT, 2010, 119). Eu e Outro se unem por meio da coincidência; porém, o Eu não exerce a soberania, esta passa a ser do Outro, que é absoluto. Durante três128 anos o poeta vivenciou uma busca silenciosa e perene. Ele esteve permanentemente em contato com as palavras na tentativa de chegar ao esmero; mas, para que isso acontecesse, teve que pagar um alto preço. Primeiro, arcou com a deformação do rosto, e quiçá do corpo, depois, com o aniquilamento da própria vida (fato que discutiremos mais à frente). 128 Helena Gerenstadt afirma que o número três desde o ponto de vista geométrico é o primeiro número existente, pois é preciso que haja pelo menos três pontos para formar o triângulo, que é a primeira figura geométrica. Este também é o número da Santíssima Trindade, ou seja, Deus em sua expressão total, da harmonia e o equilíbrio dos contrários, rompendo com a dualidade e o antagonismo, apontando uma nova possibilidade de equilíbrio. Para os pitagóricos é a causa de tudo que tem três dimensões, e assim ingressa no terreno da Psicologia. É a Tríade, no mundo; o resultado da inteligência (ativa) mais a matéria (passiva), ou seja: 1 mônada – ativo; 2 diada – passivo e 3 triada – neutro. Desde os tempos mais antigos o número três foi merecedor de veneração e se consagrava nas questões divinas. No Egito, na Índia e em Israel foi considerado como um número sagrado. Para Pitágoras era o número do mundo dos fenômenos e participava da natureza da mônada (1) e da diada (2). Pitágoras o expressou admiravelmente nas palavras: A Unidade é a Lei de Deus (ou seja, do Primeiro Princípio, da Causa Imanente e Pré-Antinômica), o número (nascido da multiplicação da Unidade e por meio da Dualidade) é a Lei do Universo, a Evolução (expressão da Lei do Ternário) é a Lei da Natureza. A Cabala consta de três variedades e nela três são os atributos da divindade. Para os hebreus era Ghimel, que é aproximadamente a nossa consoante G. É um número neutro, igual a todos os seus múltiplos. Para os gregos o 3 é Gamma; a origem de todo o conhecido; quando faziam seus presságios bebiam três vezes pela honra das três Graças, igualmente, que dividiam o mundo sob as três divindades de Júpiter, Netuno e Plutão. 181 A tríade espelho, máscara e palavras deixou o Ollan visivelmente desfigurado, dobrando-o, desdobrando-o, fazendo-o passar por um processo de transformação o qual o tornou um ser angustiado, sofrido, oprimido; mas, sobretudo, um indivíduo que temia repetir o poema por não saber o que aquelas palavras poderiam causar a quem as escutasse, visto que agora exerciam um poder inenarrável sobre ele e sobre qualquer pessoa que as ouvisse. Discretamente, aquelas palavras o tinham consumido. Secretamente, pensar parecia estar ligado a sofrer e a estar feliz. Este era o paradoxo em que se encontrava o poeta, como se estivesse sob o efeito de um espelho. Ele não se restringiu a uma linguagem superficial, foi ao encontro de uma linguagem profunda a qual requereu dele doação, sofrimento, a própria vida. Neste sentido, para Deleuze (2009a, p. 90), “toda palavra é física, afeta imediatamente o corpo. [...] a palavra afixada explode em pedaços, decompõe-se em sílabas, letras [...] que agem diretamente sobre o corpo, penetrando-o e mortificando-o” para criar seu próprio universo. Na tentativa de chegar à plenitude da obra, espírito e alma desfalecem; pois, “aquele que vive na dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão do que só a palavra ser exprime: palavra que a linguagem abriga dissimulando-a ou faz aparecer quando se oculta no vazio silencioso da obra” (BLANCHOT, 2011a, p. 12). É em meio à solidão da escrita, da busca das palavras-poéticas que o corpo do poeta é desfigurado, assumindo uma forma envelhecida, possivelmente enrugada e abatida; no entanto, mesmo padecendo de tamanha sorte ele consegue chegar ao ápice do seu objetivo e escreve o melhor de todos os poemas, o mais sublime, o texto perfeito; ainda que não se atrevesse a dizê-lo. Não obstante, quando se apresenta ao Rei é indagado a repeti-lo: — Não executaste a ode? — Perguntou o Rei. — Sim — disse tristemente o poeta. — Tomara Cristo Nosso Senhor me tivesse proibido. — Podes repeti-la? — Não me atrevo. — Eu te dou a coragem que te falta. — declarou o Rei. O poeta disse o poema. Era uma única linha (BORGES, 2009, p. 65-66). A obra abissal surgiu da ausência do poeta, que precisou morrer para dar vida e sentido pleno às palavras-metáforas. Durante o período em que esteve escrevendo as odes – três longos anos – o Ollan desprendeu-se do mundo em que 182 vivia, distanciou-se de si mesmo, conheceu a mais profunda solidão para redizer o que dissera outrora, mas, agora, com palavras que expressassem um poder verdadeiro e real, cuja perfeição faz Eu e Outro saborearem e se encantarem, mas também temerem perante o que estavam a ouvir: “Sem se animarem a pronunciá-la em voz alta, o poeta e seu Rei a saborearam, como se fosse uma prece secreta ou uma blasfêmia. O Rei não estava menos maravilhado e menos oprimido que o outro. Os dois se olharam, muito pálidos” (BORGES, 2009, p. 66). O silêncio se fez presente marcando um tempo em que ambos refletiam as palavras visivelmente abertas a novas imagens. As palavras expressavam (ou expressam) esse silêncio, essa força viril pela qual aquele que escreve, tendo-se privado de si, tendo renunciado a si, possui nesse apagamento mantido, entretanto, a autoridade de um poder, a decisão de emudecer, para que nesse silêncio adquira forma, coerência e entendimento aquilo que fala sem começo nem fim (BLANCHOT, 2011a, p. 18). Quando nos interroga acerca do livro, Blanchot (2011a, p. 13), indaga: “[...] o escritor não estaria morto a partir do momento em que a obra existe, como ele próprio tem, por vezes, o pressentimento, na impressão de uma ociosidade das mais estranhas?” Neste caso, vemos que o tom atribuído às palavras, portanto, à fala, não está relacionado à voz do poeta, mas sim, à “intimidade do silêncio que ele impõe à fala, o que faz com que esse silêncio ainda seja o seu, o que resta de si mesmo na discrição que o coloca à margem” (BLANCHOT, 2011a, p. 18). Embora não seja mais o “Eu” que fala, visto que esse dá lugar ao “Ele” ao mesmo tempo em que já não é ninguém. Segundo Blanchot (2011a, p. 19), o “Ele” é o “eu convertido em ninguém, outrem que se torna o outro” porque do lugar onde está não pode mais dirigir-se a si próprio e aquele que se lhe dirige não diga “Eu”, não seja ele mesmo. Por isso que o poeta confessa: “— No alvorecer — disse o poeta — acordei dizendo palavras que de início não compreendi. Essas palavras são um poema. Senti que tinha cometido um pecado, talvez o que o Espírito não perdoa” (BORGES, 2009, p. 66). O Ollan esteve angustiado durante três anos. Contudo, o último esgotou-lhe todas as forças, pois a busca da palavra-poética, de um nome que traduzisse tudo quanto desejava dizer daquela batalha e, desta vez, uma única linha o consumiu por 183 completo sendo capaz de dizer todas as coisas, todas as experiências, conquistas (de um lado) e derrotas (do outro lado). De repente, ele estava a recitar o universo e suas complexidades através daquela única linha que expressava toda esplêndida Beleza, um segredo indizível porque agora se tratava de “uma palavra gutural, quase impronunciável”129, visto que a Beleza é misteriosa, guarda em si muitos segredos os quais não podem ser revelados, fazem parte do divino, não podem ser totalmente apreendidos pelo ser humano. A Beleza que se revela na ode é sagrada; logo, as palavras também o são. À medida que chega a essa conclusão, o medo de ter cometido o maior dos pecados toma conta do seu ser, permitindo que se lhe apresente um terceiro personagem – Deus – reiterando a trilogia de que o poeta fala no decorrer da ode. Por que Deus? Porque Ele é capaz de julgar. Com isso são intensificadas as “formações arquetipais do inconsciente, onde o simbólico estruturou-se pela interiorização do Terceiro Personagem. No inconsciente residiria, então, todo critério de julgamento” (POMMER, 1991, p. 95). A confissão do Ollan faz com que o Rei também reflita os acontecimentos; afinal, agora ele era igualmente conhecedor do segredo daquele poema. Era conhecedor de Deus. Fato que o faz pensar acerca do que deve ser feito: “— O que agora nós dois compartilhamos — murmurou o Rei. — O de ter conhecido a Beleza, que é um dom vedado aos homens. Agora nos toca expiá-lo” (BORGES, 2009, p. 66). É preciso outorgar às palavras a impossibilidade de pronunciá-las, mas também é imperativo que cada um aceite, por assim dizer, o que o destino lhe reserva a partir daquele instante. É proibido aos homens (ao ser humano) o dom de conhecer a Beleza, de ver a Deus face a face, pois, uma vez detentor de tal conhecimento, o indivíduo passa a se igualar a Ele; logo, todas as Palavras seriam meras palavras. O Divino deixaria de ser, de existir, visto que teria concedido Seu lugar ao homem. É esse o motivo pelo qual o Rei chega à conclusão de que só lhes resta padecer. Antes, porém, presenteia o poeta com mais um objeto: “Dei-te um espelho e uma máscara de ouro; eis o terceiro presente, que será o último. Pôs em sua 129 POMMER, M. E. O tempo mágico em Jorge Luis Borges. Florianópolis: Editora da UFSC, 1991, p. 83. 184 destra uma adaga”130. Objeto que é considerado um símbolo fálico, ígneo e criador, o qual materializa a bravura e a capacidade individual aludindo ao poder e à manutenção da justiça e da paz. A adaga lhe foi entregue como símbolo de bravura, devido à capacidade que o Ollan teve em desenvolver com tamanho requinte e encanto o seu último poema, que, apesar de não ter sido revelado, a reação do Rei diante da ode justifica nossa impressão. Durante os três momentos em que o poeta se apresenta à corte despede-se e sai silenciosamente. O silêncio marca essas três importantes ocasiões de sua vida, ao mesmo tempo em que ele faz uso da palavra inquietante, onde “tudo nela é descoberto sem se descobrir” (BLANCHOT, 2010a, p. 68). Entretanto, é preciso interrogar o silêncio dele para tentar compreender o dito e o interdito, a outra voz, que também é silenciosa. O Ollan atua como um pintor, expondo toda sua arte por meio das palavras e do silêncio que perpassa a sua vida, haja vista que sua vontade deve ser silenciada para dar voz ao Outro, fazendo brotar desse silêncio a metáfora que fala desse prazer secreto que termina por anular aquele que escrevera a obra. Depois de receber a arma, o poeta deixa o palácio e comete suicídio, provavelmente, com a adaga que recebera do Rei. Quanto ao Rei, sabe-se “que é um mendigo que percorre os caminhos da Irlanda, seu antigo reino, e que nunca repetiu o poema” (BORGES, 2009, p. 66). O estado de latência o qual se abateu sobre o poeta (perante o que decifrou) lhe permitiu perceber que o sonho do outro transformou sua vida numa permanente vertigem, e por que não dizer, “num estado de gozo pleno das potencialidades humanas”131 que faz prevalecer as pulsões de morte em detrimento da vida, tendo em vista que o segredo daquela escritura, uma vez decifrado, deveria permanecer retido. O estado de êxtase e o pesadelo acompanhavam o poeta sem que ele soubesse ao certo o que deveria fazer. Por ter decifrado a Beleza e ser conhecedor do saber, teve que assumir uma posição frente a tais acontecimentos, estando ciente de que a expiação era necessária, apenas lhe restava o aniquilamento como 130 A adaga é uma espécie de punhal cumprido e de lâmina larga. Um tipo de espada curta com duplo corte. Muito usada em duelos, principalmente para aparar os golpes de espada dos adversários e destruir sua ponta, pois sua têmpera é mais forte. Por ser considerada uma arma branca, muitos povos a utilizavam como instrumento de imolação. Este objeto também simboliza a guerra. Disponível em: . 131 POMMER, M. E. O tempo mágico em Jorge Luis Borges. Florianópolis: Editora da UFSC, 1991, p. 99. 185 solução para todas as aflições. Essa morte aconteceu gradativamente, desde o instante em que o Ollan foi presenteado com o espelho, o qual embora lhe tenha servido como uma “fonte” organizadora de si próprio, também foi reveladora do inesperado, do desconhecido; reveladora dele mesmo, até o momento em que eliminou a própria vida. Quando o poeta dá cabo de sua vida com o punhal ofertado pelo Rei, há a instauração do simulacro como metáfora enigmática a qual atua como se a arma tivesse alma e esta representasse o coração do poeta. Ele sabia que havia transgredido os limites da linguagem, fato que não mais o permitiria viver entre os homens. Para conjecturar pensamento e linguagem com a intensidade que lhes é devida, é necessário desvencilhar-se daquilo que o rodeia (a palavra e a vida) tornando possível a castração alegórica do ser, que se mostra preso “a um fluxo interior do tempo”132, o qual surge cristalizado através de “uma dinâmica circular própria do fluxo inconsciente do tempo, [...] uma sucessão circular de fatos, desprovidos de significado em si mesmos, e cuja elucidação reenvia-nos sempre ao evento gerador, arquetipal” (POMMER, 1991, p. 137). O labirinto escritural que Borges apresenta nesta narrativa encaminha-nos, dentre outros aspectos, assim como o tempo, que, simultaneamente, nos conduz ao passado, ao presente e ao futuro, para uma saída circular cuja metáfora da morte é fundamental para se aceitar a vida. A linguagem corrobora significativamente com a elucidação das palavras-metáforas que se unem para formar as palavras-poéticas as quais são essenciais a essa ordem/desordem que configura o pensamento borgeano. No que tange aos aspectos anteriormente mencionados, Blanchot (2010a, p. 75-76), afiança que: A linguagem é de natureza divina, não porque nomeando ela eternize, mas porque, diz Hegel, “ela inverte imediatamente o que nomeia, para transformá-lo numa outra coisa”, não dizendo aquilo que não é, mas falando precisamente em nome deste nada que dissolve tudo, sendo o devir falante da própria morte e, no entanto, interiorizando esta morte, purificando-a talvez, para reduzi-la ao duro trabalho do negativo, pelo qual, num combate incessante, o sentido vem a nós e nós a ele. 132 POMMER, M. E. O tempo mágico em Jorge Luis Borges. Florianópolis: Editora da UFSC, 1991, p. 137. 186 Talvez seja essa a razão de presenciarmos, no conto em análise, as “labirínticas reincidências temáticas e estruturais”133 que perfazem a obra borgeana. Quando os personagens chegam ao ápice de suas conquistas passam por esse processo de autoaniquilamento, sobretudo, porque começam a compreender que não podem mais fazer parte do universo no qual se encontram. A ideia de universo em Borges está relacionada à concepção de eternidade e de tempo circular, onde cada repetição aparece como releituras de metáforas que não se deixam envelhecer; portanto, não se desgastam com o tempo nem se permitem esquecer. Podemos dizer que as histórias são (re)visitadas “adquirindo significações novas a cada olhar, sem que com isso seu texto se altere”134 e os acontecimentos sejam moldados em conformidade com o “destino” atribuído aos personagens, o qual geralmente não está aquém de uma situação real, por mais que tenha um cunho predominantemente ficcional, haja vista que a eternidade sempre se mostra associada ao cotidiano. Para Pommer (1991, p. 148) é “a repetição cotidiana dos mesmos atos que os faz parecerem eternos [...] a tal ponto que os atos corriqueiros não são menos assombrosos que aqueles que negam nosso senso de causalidade”. Embora o tempo fuja à compreensão do ser, este é cíclico e passa a atuar como um conglomerado de conceitos que estão atrelados à experiência do poeta num eterno retorno de si em resposta às suas angústias diante, mormente, da última ode. Fato que, sob o olhar alegórico, também perpassa a vida do Rei, pois a partir do momento em que se torna conhecedor das palavras secretas, passa a viver como um mendigo, suprimindo todas as regalias que possuía no palácio para “percorrer os caminhos da Irlanda, seu antigo reino [...]”, como um pedinte, negando-lhe o direito de revelar-se e de pronunciar aquelas palavras secretas (BORGES, 2009, p. 66). Diferente do poeta, que sai do labirinto pelas vias da morte, o Rei é eternizado no labirinto borgeano vivenciando, ininterruptamente, o tempo cíclico que perpassa a narrativa. Um labirinto abissal que tanto envolve as palavras, as quais simbolizam a vida do Rei e do Ollan, quanto a morte enquanto metáfora da vida de ambos, pois é por meio de metáforas que o Ollan retrata a vida e a morte do reino da Irlanda. Ao se tornar mendigo o Rei e seu reino deixam de existir, passando a fazer parte de um passado cuja história, provavelmente, não será resgatada por seus sucessores. 133 POMMER, M. E. O tempo mágico em Jorge Luis Borges. Florianópolis: Editora da UFSC, 1991, p. 121. 134 Ibid., p. 147. 187 4 SOBRE A MORTE E O DEVIR “– A morte para mim, é a grande esperança, a esplêndida esperança de que tudo se acabe definitivamente. E depois eu não sei se Deus necessita de minha imortalidade pessoal para fins que desconheço...” Jorge Luis Borges. Este capítulo apresentará uma abordagem da morte e do devir, levando-se em consideração (também) os aspectos alegórico-metafóricos como forma de urdir os capítulos anteriores ao presente, mas também com o intuito de mostrar que alegoria, metáfora e morte se coadunam nos contos de Jorge Luis Borges, especialmente nas análises expostas ao longo desta tese. Antes de adentrarmos aos aspectos da morte e do devir no contexto literário e filosófico enfatizaremos algumas características gerais destes acontecimentos para depois tratarmos da morte do ser e da palavra. Na Grécia antiga os poderes eram advindos dos deuses e o homem estabelecia certos vínculos pessoais e simbólicos com suas divindades, haja vista o predomínio da sabedoria cujos mitos e intuições poéticas alimentavam a cultura humana arraigada pela crença de que os poderes do Além “pertenciam”, entre outros, a Medusa, a Dionísio e a Ártemis. Medusa, ser terrível, era considerada pelos gregos uma das divindades primordiais, pertencente à geração pré-olímpica. Sendo uma das três górgonas, é a única que é mortal. Seu olhar tinha o poder de transformar o homem em pedra, em mergulhá-lo nas trevas. Com suas irmãs, Medusa representava as perversões. Simbolicamente, ela representa a pulsão evolutiva, a necessidade de crescer e evoluir estagnada; é o símbolo da mulher rejeitada, e por sua rejeição incapaz de amar e ser amada; odeia os homens nas figuras dos deuses que a violam e a abandonam, mas também as mulheres, devido ao fato de ter deixado de ser uma mulher bela para ser monstro, condição criada por culpa de um homem e de uma deusa. Medusa é a própria infelicidade. Como Midas, ela não pode facilitar a proximidade. Ele, com apenas um toque, transformava tudo em ouro; ela é mais solitária, mais trágica, não pode olhar para qualquer ser, pois seu olhar é capaz de 188 transformar tudo em pedra. Tira a vida, mas, ironicamente, é morta por Perseu, que também foi rejeitado e, com sua mãe Danae, trancado em uma arca e atirado ao mar, de onde foi resgatado por um pescador que o levou ao rei Polidectes, que o criou com sabedoria e bondade; enviando-o anos depois para destruir Medusa. Dionísio, deus que passou toda infância fora do Olimpo, ao nascer e para fugir da perseguição de Hera, foi levado por Hermes para ficar aos cuidados de Ino. Enfurecida, Hera pune o casal enlouquecendo tanto Ino quanto seu esposo Átamas. Zeus, temendo nova ofensiva da esposa contra o filho, resolve enviá-lo a Nisa para ser educado pelas Ninfas e Sátiros. É durante este período que Dionísio descobre a arte de fabricar vinho e os efeitos que a bebida poderia causar ao homem. Mas, como Hera não deixou de vingar-se, fê-lo insano. Louco e vagando pelo mundo, ele ensina aos homens a fabricação do vinho. Deus do êxtase e do entusiasmo representa o delírio, a embriaguez. Ele obriga o homem a experienciar a evasão e a estranheza, pois quando se embriaga passa a sentir-se sozinho, “perdido” em meio ao vazio. O indivíduo rompe, ainda que por um tempo determinado, com o espaço do real adentrando as trevas para mostrar que a morte surge como embriaguez de vida, esquecimento, ao passo que a Medusa expressa o aprisionamento através da petrificação. Fitar em seus olhos significava assinar a sentença de morte. Ártemis, deusa grega da floresta e da caça, apaixonada por Orion, era amada especialmente pelas Ninfas, com as quais dançava frequentemente nas florestas. Ela sente, talvez, a maior dor de sua vida quando seu irmão gêmeo Apolo prepara-lhe uma cilada fazendo-a matar Orion. No instante de dor e sem desejar perdê-lo de uma vez, resolve colocá-lo entre as estrelas do céu, onde ele aparece sempre como um gigante com cinto e espada, vestindo pele de leão, segurando uma clava, acompanhado pelo seu cão, Sírius. Dionísio e Ártemis são deuses que representavam (cada um) uma dimensão do sobrenatural; no entanto, mostravam-se imbuídos de máscaras como forma de traduzir “a alteridade, o temor apavorante do que é absolutamente outro, o indizível, o impensável ou o puro caos” (VERNANT apud CORRÊA, 2008, p. 25). Para Corrêa (2008, p. 26), “na época do chamado ‘milagre grego’, isto é, quando a razão humana supera o mito e se assombra com a existência das coisas em seu derredor, pondo-se a perguntar o ‘que é isto’, nasce à chamada atitude 189 teorética”. Para este autor, a atitude teorética diz respeito ao conhecimento que o indivíduo adquiriu de maneira racional, sem a recorrência a mitos. Contudo, é relevante salientar que os gregos nunca deixaram de recorrer aos seus mitos e deuses, servindo-se deles como metáforas as quais iluminavam os novos saberes, agora filosóficos. Conforme Corrêa (2008, p. 27), é com o advento do cristianismo que a familiaridade com a morte é estabelecida, visto que se preconiza que “ninguém morre sem ser advertido, seja por signos naturais, seja por uma convicção íntima. Tem-se medo de morrer sem receber algum aviso”. Há motivos que justificam, até prove-se o contrário, essa atitude: antes de morrer, sendo cristão, o sujeito deve pedir – se almeja um lugar longe das Trevas – perdão aos inimigos, aos companheiros que o rodeiam, mas também precisa haver tempo para lamentar a partida, a vida que está deixando (é bem verdade que ao longo da história não é raro encontrarmos aqueles que se sentem aliviados ao saber que a morte está próxima). Diferente dos gregos, para os cristãos havia um ritual perante a morte. O sujeito ficava cercado por pessoas tornando o seu leito uma espécie de ‘lugar público’ onde “acontecia o ato dirigido pelo próprio moribundo, que conhecia o rito e presidia a cena que ali se desenrolava”. Todos se faziam presentes, inclusive as crianças. (CORRÊA, 2008, p. 27). Àquela época imperava a concepção coletiva da destinação do indivíduo, por isso convinha que as crianças participassem da cerimônia; afinal, elas deveriam conhecer como tudo ocorre para construir a consciência de que nascem, crescem, reproduzem (algumas) e morrem. Nada acontece a esmo. Apesar dessa familiaridade com a morte, os antigos, assim como os contemporâneos, temiam a proximidade dos mortos, por isso honravam suas sepulturas, com o intuito de que não pudessem voltar a perturbá-los. Segundo Corrêa (2008), no início do cristianismo e diante da ideia de Juízo Final, a morte ainda é vista como algo coletivo, posto que se alimenta a concepção de que “morremos todos e não existe um salvem-se quem puder”. Sendo assim, a partir do ano 1000 até o século XII a morte é percebida sob outro viés: o homem agora percebe que morrer é algo individual. Quando perdemos alguém a quem amamos é que nos sentimos submersos pela violência da perda e mergulhamos na dor, nas trevas, na incomensurável 190 tristeza do indizível que perpetra e, às vezes, petrifica – diferente da Medusa – o ser e o viver. “Por essas vias, o real da morte é, por obrigação, por toda parte encoberto e velado” (CORRÊA, 2008, p. 18). A morte é um fato natural e não faz acepção de pessoas. Todos, independente do status, da raça ou da cor, um dia serão por ela vitimados, tendo em vista que esta nivela todos ao mesmo destino em igualdade absoluta. Esse fenômeno não está centrado apenas na dimensão natural ou biológica, também dá conta da dimensão social representando, no dizer de Maranhão (2008, p. 21), “[...] um acontecimento estratificado”, cuja “[...] duração da vida e as modalidades do fim são diferentes segundo as classes a que pertencem os mortos”. O conceito de morte aponta para a cessação de vida; ação de morrer; o fim da vida animal ou vegetal; termo, fim; destruição; ruína; pesar profundo; acabamento; grande desgosto. Para Maranhão (2008, p. 19), a sociedade contemporânea tem exigido do “indivíduo enlutado um autocontrole de suas emoções, a fim de não perturbar as outras pessoas com coisas tão desagradáveis”; visto que “ao negar a experiência da morte e do morrer a sociedade realiza a coisificação do homem”, sobretudo porque diante da morte todos os indivíduos se igualam. A morte é, quiçá, o verdadeiro substrato fundante de todo o pensamento filosófico; sem ela, talvez o homem jamais tivesse começado a filosofar e jamais tivesse descoberto que o dilaceramento no coração de quem fica pode existir; mesmo em circunstâncias em que os indivíduos não o podem manifestar publicamente quando vivem em uma sociedade a qual não aceita seres sujeitos a fraquezas, que mostram suas dores, angústias, tristezas. A morte e o morrer precisam ser entendidos como um fato indispensável da própria vida e do viver, pois no momento em que o indivíduo nasce já está se encaminhando para morrer. Isso é fato; portanto, não pode ser negado e não há como esquivar-se. Na realidade, a morte é um grande (se não o maior) temor do homem, haja vista tratar-se de um espaço que não pode ser transposto – não adianta criar situações que levem a uma transposição, pois tal fato somente será possível quando partir do mundo real para o universo desconhecido do fenecimento. O fato de não saber quem controla a morte leva o sujeito a desejar atribuir-lhe conceitos e significados. 191 Amorim (2007, p. 85) assegura que “querer dar à morte um significado é uma tentativa da nossa espécie para nos proteger do desconhecido e da própria morte”. Todavia, quando o indivíduo tenta conferir um sentido à morte ele também está tentando, digamos, dar sentido e poder à vida; uma vez que busca se desvencilhar dos medos que “carrega” consigo ao longo de sua existência. A autora reitera que, quando o homem busca dar um significado à sua morte está procurando “conforto em um pensamento metafísico. O pensamento racional é capaz de criar uma estratégia, sendo que dar um significado para a morte passa a ser encarado como final de uma existência cujo sentido dependeria do uso da própria razão” (AMORIM, 2007, p. 86). É necessário entender que a morte é o único fim previsível que o ser humano possui; logo, um fim inelutável. Segundo Pimentel (2013, p. 234) “o estar vivo somente é possível quando temos a autonomia sobre a morte; se dominamos a morte, poderemos viver. Caso o poder de viver nos seja tirado, não nos resta mais nada, apenas perecer, ou seja, o não mais viver”. Embora todos saibam, não se pode condicionar que o ato de viver já encaminha para a morte, pois, se o indivíduo condicionar e incutir essa ação em sua mente não viverá em paz consigo próprio nem com aqueles que o circundam. Contudo, torna-se praticamente indissociável pensar na vida sem que se pense na morte, haja vista que uma está associada à outra. No momento em que o indivíduo consegue “aproximar-se” da morte alcança o real sentido das coisas, porque atinge o pleno equilíbrio de tudo (mesmo nas coisas mais atrozes existentes no mundo, ele percebe uma relação de equilíbrio). Isso é possível porque vida e corpo se completam e, mesmo que seja necessário “descobrir o corpo dentro de sua própria força de gênese, porque o corpo é esse único lugar existencial e ainda por cima político, no qual se empilham, se encolhem, se dobram, todas as determinações da vida”135, ele também se constitui como um lugar “de batalha onde se cruzam as forças visíveis e invisíveis, a vida e a morte e onde se encadeiam as redes, os poderes, os tráficos”136; ou seja, é um lugar onde quase tudo acontece na iminência da vida e da morte, entre essa intermitência da morte e do morrer. 135 UNO, Kuniichi. As pantufas de Artaud segundo Hijikata. In: GREINER, Christine; AMORIM, Cláudia (Orgs.). Leituras da morte. São Paulo: Annablume, 2007, p. 50-51. 136 Ibid., p. 51. 192 De acordo com Maranhão (2008), não é por acaso que a filosofia, a biologia, a antropologia, a sociologia e a história vêm discutindo esse assunto ao longo dos séculos. Estamos diante de uma temática que transcorre o tempo e, por conseguinte, a história, mostrando que se trata essencialmente de uma questão humana. Sendo assim, é imprescindível compreender que a morte atua como uma foice que é diferida indiscriminadamente, sem levar em consideração o status daqueles a quem escolhe, mostrando sinal de absoluta igualdade entre os seres, nivelando-os ao mesmo destino. A morte passa a pertencer à própria estrutura essencial da existência; portanto, não é um acidente – como muitos pensam – morremos dia a dia, passo a passo. O homem tem que morrer a sua própria morte e isto ninguém pode fazer no lugar do outro. A morte atua como o reconhecimento humano de que há um fim para a vida e, ainda que o indivíduo tente contornar seu medo em relação a essa fatalidade, tal situação é inevitável, por isso criam-se mecanismos para superá-la. Por mais que sejam criadas condições que induzam a humanidade a pensar que a morte é um fato natural, independente da circunstância em que o sujeito se encontra, o inconsciente não a aceita quando se trata de si mesmo, ou seja, a ação de morrer pode até ser normal, natural, desde que se trate do outro. Isso porque, “a morte constitui ainda um acontecimento medonho, pavoroso, um medo universal, mesmo sabendo que podemos dominá-lo em vários níveis” (KÜBLER-ROSS, 2008, p. 9). Para Kübler-Ross (2008), cada sociedade constrói diferentes estratégias para lidar com esse infortúnio e, embora haja sociedades que consideram a morte como motivo de tristeza, visto que a relaciona à perda, outras há que a festejam (é o caso de algumas tribos africanas). Desta forma, é preciso morrer, satisfazer-se com a morte, para manter no instante de “morrer a claridade do olhar que provém de tal equilíbrio” (BLANCHOT, 2011a, p. 94). Para Artaud (1985, p. 11), “[...] é incontestável que a morte surge como o rasgar de uma membrana próxima, como o levantar de um véu que é o mundo ainda informe e pouco seguro de si”; é a indesejada das gentes (como diria Manuel Bandeira) que chega sem pedir licença e sem avisar. Eis a razão de o sujeito ainda ser sempre surpreendido por tal acontecimento. É por isso também que a concepção de vida e de morte se coaduna de modo que a humanidade passa a conhecer 193 “simultaneamente a morte para o homem e o homem para o nada”137; ou seja, ser e nada, nada e ser cujo simulacro o permitirá ver a morte conjecturada no espelho de sua própria vida, vendo-a como uma condição de vida, pois “negar a morte é esquecer e negar a si mesmo” (CORRÊA, 2008, p. 21). Blanchot (2011a, p. 99) afirma que “[...] a própria morte é fuga perpétua perante a morte, porque ela é a profundidade da dissimulação. Assim, dissimular-se em face dela é, de uma certa maneira, dissimular-se nela”. Ninguém está certo de morrer, ninguém põe a morte em dúvida; só é possível pensá-la como algo duvidosamente certo, sobretudo porque pensar a morte é introduzir no pensamento a desintegração supremamente duvidosa do não-certo, como se carecêssemos, para pensar de modo legítimo a certeza da morte, deixar o pensamento deteriorar-se na dúvida e no inautêntico –, ou ainda, como se no lugar em que nos esforçamos por pensar precisasse quebrar-se mais do que o nosso cérebro, a firmeza e a verdade do pensamento. Neste sentido, o objetivo de um homem passa a ser (também) a procura da possibilidade da morte; busca essa que somente se torna significativa quando passa a ser necessária, tendo em vista que morrer e viver não são apenas meros conjuntos de fatos, e sim, possibilidades que fazem parte da vida de todo ser humano. Não é por acaso que Blanchot (2011a, p. 95) afiança que “talvez a arte exija que se brinque com a morte, talvez introduza um jogo, um pouco de jogo, onde já não existe mais recurso nem controle. Mas o que significa esse jogo?” A vida representa esse jogo que permite ao sujeito viver e morrer, isso porque quando o indivíduo centra o seu pensamento no fim, automaticamente está centrando-o também na morte. Já dissemos anteriormente que, no instante em que o sujeito nasce já está se preparando para morrer; é uma ocorrência natural e não há como ninguém se desvencilhar dela. A morte e o morrer são acontecimentos únicos os quais são destinados a todos, embora nem todos aceitem e nem todos se submetam sem reservas a esse fim. Concordamos com Corrêa (2008, p. 74) quando afirma que “a relação da morte com a vida, tecida dentro da ordem simbólica, faz com que a morte pertença tanto ao universo individual quanto ao universo social”, pois o morrer também está associado à ação da linguagem do indivíduo no espaço social, cultural, político e 137 CORRÊA, José de Anchieta. Morte. São Paulo: Globo, 2008, p. 20. 194 literário. Esse limite entre vida e morte, homem e sociedade aonde vir ao mundo e fenecer se repetem reciprocamente, aponta para o que se pode chamar de vida, tendo em vista que todos se encontram no limiar de tais acontecimentos. Desse modo, para morrer de maneira digna e coerente, faz-se necessário morrer bem, sem perturbar a paz dos vivos; morrer com decência (fato sui generis na sociedade contemporânea). No limiar de cada situação, o homem começa a perceber que é mortal; logo, é limitado e esses limites levam-no à finitude. Finitude e moralidade passam a fazer parte da condição humana, uma vez que todos nascem e todos morrem; os animais (ditos irracionais) perecem. Por meio da angústia, o homem conhece sua verdade concernente à vida e à morte descobrindo que a morte suprime o significado da vida. Por outro lado, o homem ainda descobre que não é o criador da linguagem, pois é a linguagem que o conduz, de modo que todas as prerrogativas levam-no a considerar o universo como o lugar em que ele tanto evolui quanto definha. É importante destacar que a morte também é configurada como uma relação arrebatadora do poder e do equilíbrio do mundo, haja vista que atua na constituição pessoal e social da humanidade permitindo ao homem nomear-se enquanto homem, através da linguagem que se projeta como alicerce legítimo do mundo. Mas, é no espaço literário que o sujeito entrevê a despersonalização do homem enquanto constructo literário, isso porque no momento em que escreve, a palavra não mostra o seu real significado, ao contrário, ela o elimina para que seja compreendido pelo homem. Para Corrêa (2008, p. 99), o homem, “atravessado pelo ‘não’ da linguagem torna-se um ser dia-lógico, isto é, possível de ser negado pelo outro ser falante”, especialmente porque “(há línguas sem preposições, conjunções e até sem verbos, mas não há língua humana sem a partícula ‘não’.)”. Para este autor, “cedo o homem compreenderá que diz e dá a dizer. De modo que a equivocidade é sua mais comum possibilidade de linguajar. Essa incompletude do dizer não é um mal em si mesma”, pois termina obrigando o indivíduo a falar, mas também a ouvir o outro; consequentemente, a entender que não é o detentor da verdade e que não há verdade incondicional. Mas é necessário ter consciência de que em determinados momentos “[...] essa essencial incompletude do dizer, essa comum possibilidade de equivocidade, de enganar-se ou se confundir, pode se converter em uma ferida mortal” (CORRÊA, 2008, p. 99). 195 Quando ocorre o processo de morte no diálogo o que observamos é o não questionamento de grande parte dos indivíduos diante da ausência da linguagem. Isso acontece em virtude de o sujeito vivenciar hábitos constantes os quais envolvem a linguagem e, uma vez familiarizado com esse processo, não consegue perceber que houve uma ruptura na consonância do discurso que provoca – não raro – a ausência da linguagem, por conseguinte, a ausência do ser. É possível perceber através desse acontecimento o recuo do mundo, sobretudo porque “[...] o mundo cala-se; os seres em suas preocupações, seus desígnios, suas atividades, não são, finalmente, quem fala. [...] os seres se calam [...] mas é então o ser que tende a voltar a ser fala, e a palavra quer ser”. Neste sentido, a linguagem passa a exercer seu valor tornando-se essencial e “as palavras, tendo a iniciativa, não devem servir para designar alguma coisa nem para dar voz a ninguém, mas têm em si mesmas seus fins” (BLANCHOT, 2011a, p. 35). Se pensarmos a morte enquanto palavra, e ela o é, vemos que esta também se configura como ausência. Ausência do ser, ausência da palavra que se instala agora como “uma nova problemática que nos afasta completamente da morte: a palavra morte” (PIMENTEL, 2013, p. 238). Nesse caso, a palavra será construída através da linguagem fazendo com que todo pensamento acerca da morte conduza o ser a distanciar-se dela. Analisando o contexto literário, cuja palavra se apresenta sem ranço e com um saber pré-estabelecido, vemos que desse amálgama surge a linguagem, onde a palavra tudo articula. De acordo com Pimentel (2013, p. 237): No discurso literário a palavra é performativa, ela se duplica numa atuação da dubiedade do dizer, o que ela diz não é o que pode ser apanhado no primeiro momento, mas o que pode ser entrevisto ao longo de sua atuação, sempre numa performance do segredo, do se esconder, da possibilidade de ser tudo e, no mesmo instante, ser o nada. Sendo assim, a linguagem literária rompe com a angústia que toma conta da vida da humanidade para mostrar que a morte do ser e da palavra faz parte da vida de cada um, mas também se revela como o verdadeiro substrato da individuação cujo saber estratificado dá acesso a nomes os quais se mostram capazes de se harmonizar com os medos do homem e com a infinitude de deslizamentos cometidos por ele na tentativa de chegar a algum lugar ou a lugar nenhum. 196 No entendimento de Pimentel (2013, p. 234), “ao permitir o progresso da linguagem, a morte permitirá, também, a partir da linguagem que origina, a reflexão sobre si mesma, sobre a sua existência no terreno do mundo”. Desta forma, o homem passará a “entender” a morte como um acontecimento e esta tentará ludibriá-lo com subterfúgios inúteis, podendo fazer desse sujeito ou alguém atemorizado ou um filósofo capaz de interpretar as questões relativas à morte e ao morrer. A morte do sujeito traz consigo a morte da palavra; por meio desta o indivíduo pode gerir o universo e tudo que nele há. Mas, para que isso aconteça, a palavra deve ser racionalizada e compreendida; do contrário, haverá um caos, obrigando-a a voltar ao silêncio de origem. Talvez por isso Blanchot (2011a, p. 96-97) afirme que o escritor tanto escreve para morrer quanto para receber “o seu poder de escrever de uma relação antecipada com a morte”, ou seja, ele confia-se à sobrevivência das obras, fato que o ligará à sua tarefa enquanto artista. Para este autor, o silêncio e o nada são a expressão maior da literatura, pois se configuram como a essência da arte literária, como constructo essencial da linguagem. Podemos dizer que existe uma identificação da morte com a literatura, tendo em vista que a segunda apresenta a morte do ser e da palavra a partir de um discurso que, segundo Pimentel (2013, p. 237), se caracteriza como o rompimento do “lacre que mantém a palavra agregada ao ser para promover o caos criativo, as possíveis associações entre os termos diversificados [...]”, mas também certa identificação com a filosofia, no instante em que existe a preocupação em destacar a alma do corpo. Isso porque, quando o homem passa a filosofar, supõe-se que ocorra a “separação entre a natureza corruptível do corpo e o caminho irreal para a intemporalidade da idéia [sic]” (DASTUR, 2002, p. 33). Preparação essa que já o encaminha para olhar a morte face a face, inquietando-se com a própria morte, por conseguinte, inquietando-se com a alma. O filósofo, ao contrário de outros indivíduos, não tem medo da morte – ou pelo menos não demonstra tê-lo. Ele teme viver apegado ao corpo e ao sensível porque essa ligação entre visível e invisível, sensível e inteligível poderá separá-lo do pensamento filosófico, o qual apregoa a liberdade em relação a qualquer representação sensível, posto que é meramente conceitual e teórico. Para Schopenhauer (2000, p. 87-88), “a morte é para a espécie o que o sono é para o indivíduo”; sendo assim, da mesma forma que o mundo desaparece 197 metaforicamente com a noite, assim ocorre ao homem e ao animal que perecem com a morte; todavia, subsiste de maneira indestrutível o seu verdadeiro ser. Com a morte encerra-se apenas um ciclo temporal que se caracteriza como “uma mera imagem da eternidade [...] do mesmo modo, a nossa existência temporal é uma mera imagem do nosso ser-em-si. Este tem de se encontrar na eternidade, precisamente porque o tempo é apenas a forma de nosso conhecer” (SCHOPENHAUER, 2000, p. 97). No que tange à linguagem como instância filosófica, Édipo se configura como o arquétipo do filósofo que ambiciona e procura o conhecimento, tendo em vista as circunstâncias e a desolação em que se encontrava. Uma vez cego, o herói passa a andar sem destino. Para Dastur (2002, p. 28), ele, “[...] ao contrário de Antígona, não morre, mas não termina [...] de viver, por assim dizer, sua própria morte”, permanecendo banido e abandonado pelo deus que lhe virou as costas, “[...] deixando-o, assim, na solidão de sua consciência de estar consagrado a uma morte lenta e que demora a chegar”. Na situação em que se encontra, Édipo termina rendendo-se ao seu destino. Ele aceita a condenação – sua morte espiritual e a condição de retornar ao mundo para reger seu próprio destino – passando a viver como um morto-vivo138. Por mais que Édipo tivesse tentado desviar o seu caminho da desgraça, seu destino já estava traçado; não havia como evitar o fim determinado pelos deuses. Os movimentos de ir e vir avaliavam o saber que ele possuía e, quando decifrou o enigma da esfinge139, se concretizou o “opróbrio” impetrado sobre sua vida. Mesmo aceitando o seu destino, Édipo busca uma linha de fuga desterritorializando-se da cidade para viver como um andarilho que aceita a sina imposta pelo oráculo num devir-animal órfão, posto que perdeu toda sua família desterritorializando-se do triângulo amoroso e familiar (em que se encontrava), extraindo “das representações sociais os agenciamentos de enunciação, e os agenciamentos maquínicos”, desmontando-os em linhas de fuga sem fugir do 138 Expressão usada por Françoise Dastur, no livro A morte: ensaio sobre a finitude. O grifo é nosso. 139 Quando estava a caminho de Tebas, após matar o pai – sem o saber –, Édipo encontrou-se com a esfinge (um monstro com cabeça de mulher e corpo de leão), que impossibilitava a entrada das pessoas na cidade e atormentava o povo tebano, visto que lançava enigmas os quais as pessoas não conseguiam decifrar e por isso eram devoradas. Todavia, com Édipo foi diferente. Ao lançar o enigma: “Qual é o animal que de manhã tem quatro pés, dois ao meio dia e três à tarde?”, ele prontamente disse-lhe que era o homem; pois, pela manhã (que representa a criança, a infância), engatinha com os pés e as mãos; ao meio-dia (que representa a idade adulta), anda sobre os dois pés; à tarde (que simboliza a velhice), precisa das duas pernas e de uma bengala. Após decifrar o enigma, a esfinge, furiosa, suicidou-se. Disponível em: . 198 mundo do qual fazia parte. Ele passou a viver, ver e falar como alguém cuja “desmontagem dos agenciamentos faz fugir a representação social [...] e opera uma desterritorialização do mundo [...]” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 70). A ruína se abate sobre a vida de Édipo como um furacão que devora as cidades; não obstante, é através desse herói trágico que temos a antecipação da definição da vida filosófica, onde Montaigne retoma Platão e os estoicos para dizer que “filosofar é aprender a morrer” (DASTUR, 2002, p. 29). Neste sentido, todo homem (animal racional) desempenhará “seus atos servindo-se tanto da ordem do corpo quanto da ordem do espírito”140, descobrindo que nem uma verdade é absoluta. Mas, é preciso ter consciência de que tudo, inclusive o próprio homem, é finito; é mortal, e por isso mesmo há “um limite inscrito em seu corpo” (CORRÊA, 2008, p. 99). Segundo a concepção de Dastur (2002, p. 29): A morte não se torna na verdade o objeto do discurso filosófico a não ser quando ela não se apresenta mais como “morte em geral”, como “acidente”, sobrevindo a um vivente, nem mesmo como “destino” contra o qual é impossível lutar, mas como “morte própria”, como “minha morte”, o que implica considerar, por aquele que pensa, a possibilidade de seu próprio desaparecimento. O discurso filosófico sobre a morte é então propriamente o discurso sobre a mortalidade ou o ser-mortal, nesta qualidade. A ruína também se abate sobre a linguagem, sobretudo porque a palavra se torna ausência, ou seja, se distancia permanentemente do corpo estrutural da linguagem que se desloca sem mensurar necessariamente a morte, que se torna inútil, visto que a palavra também jaz em estado de ruína. De acordo com Amorim, faz-se necessário estudar a morte avaliando a exposição que temos diante dela, haja vista a necessidade de reconhecer que a qualquer momento poderemos estar perante ela; isso porque “[...] mesmo que alguns estejam mais expostos à morte do que outros, ela chega para todos, com toda a sua banalidade e insignificância” (AMORIM, 2007, p. 87). Embora ninguém possa nulificar a responsabilidade do outro sobre sua própria morte, assim como não pode morrer no lugar do outro, pois morrer é um atributo essencial ao homem, essa relação que o indivíduo mantém com a morte e o morrer é individual e surge antes de qualquer outra determinação; ou seja, o sujeito sabe que, independente do tempo que levará para acontecer, ele não está isento 140 CORRÊA, José de Anchieta. Morte. São Paulo: Globo, 2008, p. 97. 199 desse fato. Por essa razão, precisa ser consciente de que, se ele existe, um dia morrerá; afinal, está diante de um fenômeno comum compartilhado pela humanidade. Dastur (2002, p. 85) explica que “a morte se revela [...] em sua constante iminência, pura possibilidade, isto é, possibilidade que permanece como possibilidade, que não se verá jamais anulada, por sua realização e que [...] não pode ser ‘substituível’”. Mas também não pode ser vista como o elemento que dá sentido à vida, uma vez que esta tem seu significado por ela roubado. A ideia de finitude humana não pode nem deve estar ligada à morte, isso porque o fato de nascer humano já garante ao indivíduo a finitude da vida. É impossível, mesmo a um imortal, reverter o tempo e regressar ao início de sua trajetória. O homem não pode eximir-se de sua própria morte, embora possa ser o anunciador da morte de outrem. Jesus (2010, p. 13), assegura que a morte representa “a ruína e a catástrofe da história humana, tanto na esfera individual quanto na esfera coletiva”, ela também pode “representar a possibilidade de ressignificação da vida, uma vez que o homem tem a possibilidade de se constituir como sujeito de sua própria existência”. Alegoricamente, a morte e o morrer se articulam para formar um arcabouço o qual se apresenta ora no sentido de finitude da existência humana (quando o homem deixa de existir para dar espaço à vida enquanto ornato reflexivo), ora como morte simbólica (quando o homem perde o referencial e prefere a morte como forma de se libertar do labirinto existencial em que se encontra, mas também quando ele começa a vivenciar as fases ou etapas da vida (infância, adolescência, maturidade) e, a partir das mudanças naturais que ocorrem ao indivíduo, começa a perder a inocência passando a sentir a necessidade de refletir acerca da vida, havendo também a necessidade de tomada de decisão e, com isso, a ruptura de determinados comportamentos). Tudo isso pode ser traduzido em morte ao mesmo tempo em que se configura como vida, visto que também representa o crescimento do ser. A morte se torna reflexão sobre a própria finitude e sobre a mortalidade do homem. Esse ser que a teme e foge porque tem consciência de que tudo que o cerca está susceptível à destruição, consequentemente, à morte. Para Benjamin (1984, p. 188), “[...] é a morte que grava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação. A significação e a morte amadurecem juntas [...]”; embora, apenas a morte seja capaz de pôr “um fim a esse jogo 200 arbitrário”141, visto que essa igualmente representa a destruição da experiência humana e “é responsável pelo fim da subjetividade, da capacidade do homem de fazer projeções e de realizá-las ao longo da vida” (JESUS, 2010, p. 42). No prefácio do livro Metafísica do amor, metafísica da morte, de Arthur Schopenhauer, Jair Barboza (2000, p. XVI) afirma que, uma vez que a morte é um acontecimento complementar à vida, assim como a vida, o homem torna-se um ser para a morte; isso acontece porque por meio da morte “[...] teme-se o fim do organismo, com o qual a Vontade se identificara; no entanto, é um medo infundado, pois o desaparecer do corpo não significa aniquilação do princípio vivificante que o anima [...]”. É importante ressaltar que a morte somente se configura enquanto tal quando o indivíduo não é mais consciente e as atividades do cérebro são interrompidas, pois, subjetivamente, a morte diz respeito apenas à consciência e, uma vez que não há mais consciência operante, ocorre a destruição do organismo. Logo, o ser que estava em constante interação com os outros deixa de existir, quebrando o elo com todos os que estavam à sua volta. Schopenhauer (2000, p. 75) reitera que “[...] quem teme a morte como sua aniquilação absoluta não pode desdenhar a plena certeza de que o princípio mais íntimo de sua vida permanece intocado por ela”. A morte se configura como uma verdadeira escritura do desastre, visto que expõe o ser em sua total condição de fracasso perante a vida (não implica dizer que a vida foi apenas de fracassos e sim que naquele instante o indivíduo chega ao ponto áureo de sua existência, pois abdica de tudo que possuía e parte para uma nova experiência, a qual somente ele pode saber como será, tornando-se enigma para os vivos). Blanchot (2011b), no livro Uma voz vinda de outro lugar, fala da morte como algo belo que está contido em cada um de nós. O autor afirma que essa morte bela faz parte do “nós” que se configura como o eu então e o eu agora142, sobretudo porque o consideramos em cada nascimento uma morte e a morte como um nascimento, visto que o sujeito passa a “viver” num plano enigmático onde predomina o silêncio, fazendo com que os indivíduos reflitam acerca da intensidade que perfila a morte e o morrer. É possível que por meio da perda do outro nada 141 GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 39. 142 Expressões utilizadas por Maurice Blanchot, na obra acima citada. Os grifos são nossos. 201 esteja perdido, ou nada mais se articule; no entanto, o morrer parece sobrevir como “uma queda livre, ainda que eterna” (BLANCHOT, 2011b, p. 103). O filme O sétimo selo, uma exibição de 1956, apresenta uma abordagem da morte e do morrer a partir do diálogo que se estabelece entre o personagem principal (o cavaleiro Raval) e a morte. Em meio aos agenciamentos maquínicos que estão lhe consumindo a vida, o protagonista tem um encontro com a morte. Porém, com o argumento de que ainda não está preparado (ou pronto) para morrer, lança um desafio à morte, sob a condição de que, por meio de um jogo de xadrez (que aconteceria durante a madrugada), se ele fosse o vencedor viveria mais um pouco de tempo para poder resolver coisas urgentes. O desafio é aceito. Ele ganha a batalha daquela noite e o direito de viver mais. A morte continua jogando, no intuito de descobrir os estratagemas que o cavaleiro utiliza para ganhar, quando descobre permanece jogando até chegar ao tão esperado xaque-mate, declarando-se vencedora e com direito adquirido sobre a vida daquele homem e dos amigos que fizera no tempo em que estivera fora de casa. Durante o período em que vivencia o constante processo de desterritorialização em busca de resolver os agenciamentos maquínicos que enfrenta, o protagonista não consegue firmar um território, pois este seria o castelo em que morava (com a esposa) antes de sair para uma batalha que durou dez anos. Contudo, no instante em que consegue chegar ao almejado castelo e finalmente ter alguns dos desejos, angústias e anseios parcialmente solucionados, é surpreendido pela morte, que lhe cobra a dívida do jogo de xadrez, conduzindo-o junto com seus amigos através de uma dança, que simboliza uma espécie de ritual ao caminho determinado por ela, o qual pode representar – a contragosto – a reterritorialização de todos; deixando o telespectador sem saber como de fato se dá o enigma da morte e do morrer. Mais uma vez estamos diante do indecifrável enigma que é a morte. Algumas perguntas, ainda que sem respostas aparentes, se fazem necessárias: Para onde iriam? O que lhes aconteceria? Havia possibilidade de gostarem da reterritorialização oferecida pela morte? Os agenciamentos seriam sanados, ou tudo aquilo representaria, sobretudo para o protagonista, apenas mais uma linha de fuga? Se estivessem diante de mais uma linha de fuga, até quando iriam permanecer naquela situação? Tais indagações, supomos, nunca terão respostas significativas. 202 As falas finais do personagem-ator (em conversa com a esposa Mia), quando ele tem uma visão do grupo de amigos sendo dirigidos pela morte, expressam, por assim dizer, o xeque-mate do filme, levando-nos a refletir o enigma da morte: Eu os vejo Mia. Eu os vejo. Lá no céu tempestuoso. Todos eles! O ferreiro e Lisa... O cavaleiro Raval, Jons e Skat. E a severa mestre Morte os convoca para dançar. Quer que todos deem as mãos para formarem uma longa fila. A Morte vai na frente com a foice e a ampulheta... Mas Skat vai atrás com sua lira. Eles vão dançando, se distanciando do sol... em uma dança solene. Dançam rumo à escuridão, e a chuva cai nos seus rostos... lavando as lágrimas salgadas da face. O filme encaminha-nos para a morte e o devir143, que, conforme o Dicionário de Filosofia (2007, p. 268), significa “o mesmo que mudança, movimento. Uma forma particular de mudança, a mudança absoluta ou substancial que vai do nada ao ser ou do ser ao nada”, cujos agenciamentos e linhas de fuga se fazem presentes do início ao final da narrativa cinematográfica deixando aberta a questão crucial que gira em torno do enigma da morte e do morrer, mostrando também que o ser nada mais é do que a afirmação do devir. nO vocabulário de Deleuze (2004, p. 24), devir “é o conteúdo próprio do desejo (máquinas desejantes ou agenciamentos). [...] não é uma generalidade, não há devir em geral [...] é uma realidade: os devires, longe de se assemelharem ao sonho ou ao imaginário, são a própria consistência do real”. Esses conceitos começam a ser melhor assinalados por Deleuze e Guattari no livro Kafka: por uma literatura menor, pois eles mostram o devir como desejo, desterritorialização, como “blocos” os quais se desterritorializam mutuamente, ou seja, um desejo que faz proliferar suas dependências sem deixar, contudo, reterritorializar-se. Neste sentido, “os devenires animais são [...] desterritorializações absolutas, pelo menos em princípio, que se afundam no mundo desértico” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 20). Tornar-se animal significa: [...] fazer o movimento, traçar a linha de fuga em toda sua positividade, ultrapassar um limiar, atingir um continuum de intensidades que não valem mais do que por elas mesmas, encontrar um mundo de intensidades puras, onde todas as formas se desfazem, todas as significações também, significantes e significados, em proveito de uma matéria não formada, de fluxos desterritorializados, de signos assignificantes (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 20). 143 Conforme citado no texto, o Dicionário de Filosofia ainda define: DEVIR ou VIR-A-SER (gr. Yíyvea6oa; lat. Fieri; in. Becoming; fr. Devenir, ai. Werdent; it. Diveniré). 1. O mesmo que mudança (Movimento). 203 Em todo caso, o devir também abrange as diferenças de intensidade por que passa o sujeito na tentativa de mostrar os desdobramentos do ser quando luta para conseguir o que deseja. Tais aspectos são expostos quando Kafka luta pelo amor que nutre por Felícia e lhe propõe um pacto faustiano, por meio do qual ela precisa escrever-lhe duas vezes por dia; alimentando, através da escrita das cartas, o desejo de estar ao lado da mulher que vira somente uma vez. As cartas também servem como um escape, pois ele traça uma linha de fuga para não concretizar a relação e, a posteriori, não se ver obrigado a consolidar um laço matrimonial (DELEUZE; GUATTARI, 1977). Neste caso, tanto há uma desterritorialização absoluta quanto uma linha de fuga programada que fazem parte de um agenciamento maquínico. O devir “ultrapassa um limiar, e não há um limiar superior ou inferior. São limiares de intensidades, que só são mais altas ou mais baixas segundo o sentido em que são percorridas”144, sem que haja uma fuga do mundo. O agenciamento maquínico de desejo surge como conexões que visam a uma desmontagem, especialmente porque esse agenciamento também dá conta do coletivo de enunciação; sendo assim, “o enunciado desmonta sempre um agenciamento do qual a máquina é uma parte; ele próprio é uma parte da máquina, que por sua vez forma máquina, para tornar possível o funcionamento do conjunto, ou para modificá-lo, ou para fazê-lo saltar” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 119). Estes autores ainda afiançam: E não basta dizer que o agenciamento produz o enunciado, tal como o faria um sujeito; ele é em si mesmo agenciamento de enunciação em um processo que não dá lugar a um sujeito qualquer determinável, mas que permite tanto mais marcar a natureza e a função dos enunciados, já que estes só existem como engrenagens desse agenciamento (não como efeitos nem como produtos) (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 122). As enunciações antecedem os enunciados apregoando as linhas de fuga que os sujeitos procuram na tentativa de realizar seus desejos. Esses agenciamentos maquínicos acabam sendo – em determinados momentos – desterritorializados para serem reterritorializados através das linhas de fuga que se metamorfoseiam para se 144 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 61. 204 fundirem a partir de um “campo de imanência ilimitado”145 capaz de liberar todos os desejos nutridos pelo homem. Ao passo que o agenciamento maquínico incita o desejo, a máquina abstrata, além de representar o campo social ilimitado, atua como o corpo desse desejo. Como o homem é tomado como principal critério para o agenciamento maquínico, pensamento e linguagem tanto o impulsiona à vida quanto à morte, pois na ocasião em que deseja decifrar o silêncio presente nas palavras ele se surpreende com o óbvio: é preciso “procurar em cada coisa a face terrível da vida, a matéria orgânica que pulsa e não define um só sentido” (OLIVEIRA, 2000, p. 88-89). E, mais do que isso, é imprescindível que esse sujeito – que também somos todos nós – seja capaz de captar a vida, ainda que se assuste por estar vivo. O fato de estar vivo significa que existe a necessidade de experienciar situações e sentimentos os quais somente se apresentam àqueles que realmente são mortais; logo, vivenciam tanto uma relação alegórica com a vida quanto com a morte. De acordo com Deleuze e Guattari, o devir não é apenas uma correspondência de relações, tampouco semelhança ou imitação, este é a produção de si mesmo; por esse motivo “o que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 18). O devir pode e precisa [...] ser qualificado como devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 18). Para Deleuze e Guattari, o devir estabelece uma aliança entre seres de escalas e reinos completamente diferentes sem qualquer filiação; para tanto, existem blocos os quais não permitem que haja o cruzamento desses seres. “Há um bloco de devir que toma as vespas e a orquídea, mas do qual nenhuma vespa-orquídea pode descender”146; por meio dessa perspectiva é possível evoluir e formar blocos próprios, sob relações assinaláveis, especialmente porque um devir é um rizoma; deste modo 145 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 125. Os grifos são dos autores. 146 Ibid., p. 19. 205 [...] não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos conduz a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p. 19). O devir atua na e pela linguagem, pois tem a capacidade de perpetrar o estranho, mas também fazer com que surja e sobressaia o real. Um real que se mostra imprevisível e, na tessitura de um instante, permite que o sujeito abandone os territórios repetidos, as verdades até então aceitas, os caminhos que já havia traçado para habitar em caminhos inimagináveis, questionar as antigas verdades e conjecturar novas expectativas de vida. O homem demonstra a revolta que sente em relação às “certezas” que sobrepujam a vida “contra o determinismo que a impede de proliferar e contra tudo que conduz o sujeito a limitar-se a si mesmo” (OLIVEIRA, 2000, p. 90). Para Deleuze, essa revolta do devir se concretiza quando o homem admite que está sempre em cima do muro, mergulhado nos buracos negros de sua própria subjetividade, onde o devir (muitas vezes) opera em silêncio, sendo praticamente imperceptível. No livro Diálogos, Deleuze e Parnet (1998, p. 10) afirmam que “os devires são geografia, são orientações, direções, entradas e saídas”, por essa razão existem vários devires. Podemos dizer que para cada devir há outro devir, seja um devir-mulher para que elas não fiquem presas a uma temporalização e possam avançar e mudar suas próprias histórias, seja um devir-revolucionário que, no dizer dos autores, decididamente, não passa pelos militares, seja um devir-filosófico que passa por aqueles que a história da filosofia não consegue classificar, não tendo, portanto, nenhuma relação com a história da filosofia, seja um devir-animal cujo homem surge em constante processo de desterritorialização. De todo modo, o devir jamais imita ou se ajusta a um modelo que constitua a justiça ou a verdade. Ousamos dizer que há um devir-palavra e este se mostra expresso através de um estilo e não propriamente das palavras, pois existe sempre a possibilidade de substituir uma palavra por outra com uma finalidade peculiar. Por esse motivo, “no estilo não são as palavras que contam, nem as frases, nem os ritmos e as figuras”147; isso porque o estilo dá conta dos agenciamentos de enunciação. No 147 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 11. 206 momento em que o indivíduo consegue gaguejar em sua própria língua está demonstrando não um erro, mas um estilo, pois ele é “gago da própria linguagem”148, parecendo um estrangeiro de sua própria língua, ao passo que também pode fazer disso um estilo de vida. A pessoa é “arrancada” de seu domínio de origem para ser reterritorializada por meio de outros domínios, em outra noção, cuja rostidade passa a assumir uma função social importante visto que ocupa blocos de agenciamentos que se formam através de ideias. Por outro lado, o silêncio que é instaurado entre o processo de desterritorialização e reterritorialização do sujeito lhe permite adentrar a uma “linha de fuga da linguagem, falar em sua própria língua como um estrangeiro, fazer da linguagem um uso menor... Dir-se-ia também: desfazer o rosto, fazer com que o rosto fuja” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 32). A escrita se apresenta como a inscrição dilacerada da morte reproduzindo e desmontando os agenciamentos cujos identificadores maquínicos se configuram como “os signos de um agenciamento que ainda não se desprendeu nem se desmontou por si mesmo” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 71). A escritura da morte permanece como algo misterioso e enigmático. O devir assemelha-se muito à escrita, que embora esteja continuamente povoada por palavras, sempre se mostra inabitada. O devir é um misto de povoamento e deserto, onde as linhas de fuga representam as desterritorializações da linguagem que passam a formar sua própria realidade, revelando sua verdadeira essência: o poder de criar, de fundar um mundo. Dessa forma, as palavras passam a ter uma finalidade em si mesmas, perdendo sua função designativa”149, visto que passam por transformações como se fossem constituídas por meio de um devir-imagem que as reflete ora como ficção, ora como realidade e ora como um misto de ficção e realidade, desdobrando-se em outras versões para mostrar um universo diferente do habitual. As palavras, em consonância com a escrita, têm uma relação essencial com as linhas de fuga. As palavras se coadunam com a escrita para gerir o ato de escrever, traçando “linhas de fuga que não são imaginárias, que se é forçado a seguir, porque a escritura nos engaja nelas, na realidade, nos embarca nela”150, o 148 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 12. 149 LEVY, Tatiana Salem. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 20. 150 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 56. 207 que implica dizer que “a escritura se conjuga sempre com outra coisa que é seu próprio devir. Não existe agenciamento que funcione sobre um único fluxo. Não é o caso de imitação, mas de conjugação” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 57). De uma conjugação que encaminha para algo real, para fluxos que se conjugam a outros fluxos (de escritura em escritura) com a finalidade de criar devires a partir das linhas de fuga que são instauradas por meio dos agenciamentos. A língua se estabelece como uma realidade heterogênea que maquina com outros elementos e assegura o caráter de agenciamento coletivo de enunciação, desterritorializando as estruturas cristalizadas cuja morte e fuga da palavra estão em devir, ainda que por meio de uma bricolagem, de uma montagem/desmontagem. Para Deleuze e Guattari (1977, p. 34), “trata-se de um devenir que compreende, ao contrário, o máximo de diferença como diferença de intensidade, transposição de um limiar, alta ou queda, baixa ou erecção (sic) acento de palavra”, cujos agenciamentos são os produtores de enunciados uma vez que estão “no meio, sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo exterior”, sendo, portanto, a simbiose desses agenciamentos de ideias, símbolos e relações (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 66). A palavra não se confunde com seu movimento, pois no limiar dos acontecimentos o devir surge pondo em movimento a substância que nunca a deixa no mesmo lugar, sobretudo porque possui uma imobilidade movediça a qual, ao mesmo tempo em que a torna imprevisível, também a torna interminável, semelhante às águas do rio que Borges apresenta no poema Arte Poética151 o qual transcrevemos a seguir: Fitar o rio feito de tempo e água e recordar que o tempo é outro rio, saber que nos perdemos como o rio e que os rostos passam como a água. Sentir que a vigília é outro sonho que sonha não sonhar e que a morte que teme nossa carne é essa morte de cada noite, que se chama sonho. 151 BORGES, Jorge Luis. O fazedor. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 149; 151. Optamos por apresentar a tradução do poema que se encontra nesta edição; todavia, sugerimos a leitura também em espanhol, a qual consta no mesmo livro, p. 148; 150. 208 No dia ou no ano perceber um símbolo nos dias de um homem e ainda de seus anos, transformar o ultraje desses anos em música, em rumor e em símbolo, na morte ver o sonho, ver no ocaso um triste ouro, tal é a poesia, que é imortal e pobre. A poesia retorna como a aurora e o ocaso. Às vezes pelas tardes certo rosto contempla-nos do fundo de um espelho; a arte deve ser como esse espelho que nos revela nosso próprio rosto. Contam que Ulisses, farto de prodígios, chorou de amor ao divisar sua Ítaca verde e humilde. A arte é essa Ítaca de verde e eternidade, sem prodígios. Também é como o rio interminável que passa e fica e é cristal de um mesmo Heráclito inconstante, que é o mesmo e é outro, como o rio interminável. No instante em que o indivíduo fita o rio percebe que, assim como a água, o tempo também passa e ele segue como uma confluência desse rio-água cujo devir-homem perde-se em meio às águas do rio, onde a imagem refletida do rosto parece movediça, pois o tempo transcorre sem que esse sujeito se perceba enquanto ser que almeja realizações as quais nem sempre são possíveis e, junto com o percurso-rio, se esvaem nas águas. Vontades abjetas que terminam sendo substituídas por outros acontecimentos, ou tornam-se esquecidas às margens desse rio-homem, morrendo ou engendrando-se em outros corpos, quiçá, produzindo-se em novos corpos, formando agenciamentos heterogêneos e linhas de devir cujos interstícios mostram a verdadeira face do ser. Um sonho que se torna morte, pois quando a pessoa dorme está diante do sono e, portanto, do irmão da morte. Mas, “[...] a morte que teme nossa carne é essa morte de cada noite, que se chama sonho” (BORGES, 2008, p. 149). Uma morte necessária, porque todos necessitam desse sono-sonho “reparador” o qual não deixa de, analogamente, simbolizar uma desterritorialização (ainda que momentânea) sem que haja uma reterritorialização, considerando que tudo acontece num tempo determinado: o período em que, noite após noite, o homem está em 209 vigília, dando termo ao devir “[...] um puro morrer, ou sorrir, ou batalhar, ou odiar, ou amar, ou ir embora, ou criar...”152, num devir-movimento cujo agenciamento coaduna tanto para o sono quanto para a morte. Mesmo em meio a agenciamentos maquínicos, o homem é capaz de transformar o ultraje dos anos sombrios “em música, em rumor, em símbolo”153, através dos quais pode conceber outros devires. Ele consegue observar na morte o sonho e no crepúsculo um triste ouro que chama de poesia, a qual retorna tanto como a aurora quanto como o próprio crepúsculo, num ir e vir de acontecimentos que visam, por assim dizer, a saciar seus agenciamentos. O rosto do homem o observa. Metaforicamente, ele contempla-se no fundo de um espelho sem saber exatamente o que está fazendo ali e qual a finalidade daquele espelho estar revelando-o a si próprio como se estivesse passando por um processo de segmentaridade, onde os agenciamentos buscam linhas de fuga através da arte para se comprazer de si mesmo, rememorando acontecimentos, realizações, mudanças... percebendo que, além das linhas de fuga, ele possui fissuras que não coincidem com as linhas segmentarizadas, pois “[...] a fissura acontece sobre essa nova linha, secreta, imperceptível, marcando um limiar de diminuição de resistência ou aumento de um limiar de exigência [...]” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 147). Quando vê seu rosto refletido naquele espelho rememora os acontecimentos outrora vivenciados lembrando-se das linhas flexíveis e das rupturas que o fizeram ser como todo mundo, mas também observando que algo está diferente, “os segmentos não são os mesmos [...], procedendo por limiares, constituindo devires, blocos de devir, marcando contínuos de intensidade, conjugações de fluxos”, cujos agenciamentos já não são os mesmos (BORGES, 1999, p. 151). Em alguns momentos, o indivíduo se compara a Ulisses que, “farto de prodígios, chorou de amor ao divisar sua Ítaca verde e humilde” (BORGES, 2008, p. 151). Mas, até que ponto sua vida foi cheia de prodígios? Será que esse “choro” realmente se assemelha ao de Ulisses? Ou o sujeito se mostra arrependido ante o espelho sem saber o que fazer da vida? Esse homem encontra-se num devir-animal desterritorializado, ao passo que também está preso em seu buraco negro de onde não pode sair. Mais parece que 152 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998, p. 87. 153 BORGES, Jorge Luis. O fazedor. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 149. 210 sua “Ítaca” também se encontra verde, eterna e sem prodígios, como um permanente rio-homem que, embora livre, permanece “preso ao meio, ao deserto ou a estepe” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 156). Quando se percebe no fundo do espelho, o homem “também é como o rio interminável que passa e fica e é cristal de um mesmo Heráclito inconstante, que é o mesmo e é outro, como o rio interminável”154 que se apresenta em meio a um processo de desterritorialização como um corpo sem órgãos, desdobrando-se do interior para o exterior, para fora do mundo, questionando suas experiências, certezas e seus valores. Para Levy (2011, p. 39), no instante em que o indivíduo desdobra-se, sai do interior, coloca-se para fora de si, desmorona a unidade do eu e provoca um trânsito ao ele. Mas, para Blanchot (2011e, p. 15), a morte não priva o sujeito “nem do seu poder nem da sua autoridade infinita, nem mesmo da sua infalibilidade: morto, ele é ainda mais terrível, mais invulnerável, num combate onde não existe mais a possibilidade de vencê-lo”. Isso porque, as linhas de fuga também operam como subterfúgios para que o indivíduo se exima de todas (ou de algumas) de suas culpas ao mesmo tempo em que percebe que não detém todos os poderes, nem todas as forças. Durante o processo de desterritorialização as linhas de segmentaridade e as linhas de fuga terminam se convertendo em linhas de abolição, notadamente porque entre a morte e o devir existem linhas de segmentaridade que se misturam, fazendo com que o sujeito não permaneça onde está, saia do exílio, do deserto em que se encontra. De acordo com Deleuze e Parnet (1998, p. 165): [...] a linha de fuga converte-se em linha de abolição, de destruição das outras e de si mesma, a cada vez que ela é traçada por uma máquina de guerra. E é esse o perigo especial desse tipo de linha, que se mistura mas não se confunde com os perigos precedentes. A ponto de, a cada vez que uma linha de fuga acaba em uma linha de morte, nós não invocarmos uma pulsão de interior do tipo “instinto de morte”, invocarmos ainda um agenciamento de desejo que põe em jogo uma máquina objetiva ou extrinsecamente definível. Não é, portanto, por metáfora que, a cada vez que alguém destrói os outros e destrói a si mesmo, ele inventou sobre sua linha de fuga sua própria máquina de guerra [...]. A morte tanto humaniza como desumaniza o homem, uma vez que é ela quem lhe dá sentido e lhe permite perceber que sua existência é inexoravelmente 154 BORGES, Jorge Luis. O fazedor. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 151. 211 marcada por limites. Não obstante, quando o indivíduo experimenta essa relação temporalizadora luta para viver o presente, pois este se configura como a vida em sua totalização. Mas também é desumana quando permite a esse mesmo sujeito conviver com a perda da consciência, de sentido e da razão, vivenciando um processo de desagregação que é próprio da morte. Dissemos neste capítulo que a morte do sujeito traz consigo a morte da palavra a qual se inscreve através dele. Essa relação de morte e devir se integra em todos os contos analisados ao longo desta pesquisa, haja vista que expressa a montagem e desmontagem de uma escritura cujos agenciamentos maquínicos conduzem ao dilaceramento da morte e do devir-animal expresso por meio de cada personagem, mostrando que, mesmo em meio aos seus anseios, os personagens não conseguem decifrar nem sobrepujar a morte, que permanece indecifrável, inelutável. Segundo Blanchot (2011a, p. 95), podemos dizer que, em se tratando da arte borgeana, esta exige que se brinque com a morte como se estivesse introduzindo um jogo no qual já não existe mais recurso nem controle e a morte é exposta como se fosse o salário poético da arte. Embora pareça contraditório, (re)insere-nos diante da profundidade da experiência, que é a arte de morrer. Por esta razão, no decorrer das discussões tecidas nas seções que se seguirão a este capítulo apresentaremos a relação da morte e do devir com o intuito de mostrar que estes aspectos (morte e devir), além de fazerem parte da vida de cada ser vivente, estão presentes efetivamente na vida do homem, restando-lhe refletir sobre a morte e o morrer a partir da linha de fuga que rompe, levando o sujeito a uma morte alegórica. Seria possível ter como primeira alternativa, por exemplo, o fato de poder encarar a morte e contemplá-la refletida no espelho da vida, ciente de que negá-la significaria negar a si próprio, visto que o ato de morrer pode surgir como respostas a todas as indagações do indivíduo, ou ainda, como a solução para seus dissabores; depois, como um convite às possibilidades de liberdade. Tais aspectos serão discutidos nos contos Um teólogo na morte e O morto, cabendo ao leitor perceber a coadunação que existe entre alegoria e metáfora como expressão da morte, a qual ainda surpreende o indivíduo devido ao caráter impactante de que dispõe, sendo-lhe lícito buscar estratégias para sobressair a algo tão difícil e doloroso. 212 4.1 MELANCHTON, UM TEÓLOGO NA MORTE O conto Um teólogo na morte, publicado no livro História Universal da Infâmia, de 1935, narra a história de Melanchton. Após a morte foi-lhe fornecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual a que havia ocupado na terra, o que acontecia a quase todos os recém-vindos à Eternidade, permitindo-lhes acreditar que estavam vivos. Os objetos eram completamente iguais. Quando Melanchton despertou, retornou às suas atividades literárias como se não fosse um morto. Durante alguns dias escreveu sobre a justificativa pela fé. Como não era seu costume, nada falou acerca da caridade. Os anjos perceberam a omissão e pediram que algumas pessoas o interrogassem. Melanchton declara: “Já demonstrei irrefutavalmente que a alma pode prescindir da caridade e que para ingressar no céu basta ter fé” (BORGES, 1999, p. 368). Dizia isto com soberba, sem saber que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Ao ouvir esse discurso, os anjos o abandonaram. Poucas semanas depois, os móveis começaram a desaparecer, exceto a poltrona, a mesa, as folhas de papel e o tinteiro. As paredes mancharam-se de cal e o assoalho de um verniz amarelado. Sua roupa aos poucos se tornou ordinária, mas ele continuava escrevendo sem fazer referência à caridade. Melanchton foi transladado para uma oficina subterrânea. Depois de alguns dias encarcerado começou a duvidar de sua tese. Permitiram que ele voltasse. Porém, tentou imaginar que os fatos anteriores foram meras alucinações, continuou elevando a fé e denegrindo a caridade. Num entardecer sentiu frio. Percebeu que sua moradia não era aquela. Os aposentos eram diferentes. Um estava repleto de instrumentos desconhecidos; outro tinha diminuído tanto que era impossível entrar nele; outro não tinha mudado, mas as janelas e portas davam para grandes dunas e o cômodo dos fundos estava cheio de pessoas que o adoravam. Embora isso o tenha aprazido, percebeu que algumas pessoas não tinham rostos, outras pareciam mortas; aborreceu-se e desconfiou delas. Resolveu escrever um elogio da caridade; no entanto, como lhe faltava sinceridade, escrevia hoje e no outro dia as páginas estavam apagadas. Melanchton recebia muitas visitas de pessoas recém-mortas e tinha vergonha da pobreza na qual se encontrava. 213 Certa vez, combinou com o bruxo do cômodo dos fundos para enganá-las com simulacros de esplendor e serenidade. Às vezes não dava tempo de saírem as visitas, reapareciam a pobreza e a cal. Dizem que o mago e um dos homens sem rosto levaram Melanchton para as dunas e agora era como se fosse criado dos demônios (BORGES, 1999, p. 369). Clareza, Brevidade e Verossimilhança marcam este conto evidenciando estes aspectos como convenções de uma norma que se poderia chamar de “ideal”, por isso, de acordo com Hansen (2006, p. 53), tem-se a “desmontagem da alegoria como remontagem de um ato de fala e suas regras”, atuando “[...] como possibilidade técnica de maior ou menor afastamento fornecendo adequação ao gênero”. Há uma alegoria perfeita ou Totta Allegoria visto que não encontramos “marca lexical do sentido representado, ou seja, veem-se as marcas da obscuridade, que também pode ser defeito, do ponto de vista da prescrição implícita da clareza” (HANSEN, 2006, p. 54). Enigma conduzido pelos anjos autorizados pelo Supremo e que Melanchton não é capaz de decifrar, ou não quis fazê-lo, tanto que permanece agindo segundo sua própria vontade, sem dar atenção ao que os anjos requeriam dele. A metáfora da morte é também a metáfora da vida, porque mesmo sendo “criado dos demônios” predomina a essência do ser Melanchton, que cede ao poder persuasivo de Lúcifer e seus anjos mostrando-lhes que fazê-lo seguir seus desejos seria a melhor escolha, o melhor a ser feito. Crendo que ninguém chega ao céu através da caridade, obviamente, estaria ao lado de Lúcifer. O Céu perde, mas o Inferno ganha. Há, neste caso, duas classes de seres: os signos e Deus. Os signos atuam como metáforas para os seres, para a vida, sendo uma realidade que admite os dois sentidos: próprio e figurado, no tocante aos aspectos motivacionais (que se revelam enigmaticamente) e não mais os meramente linguísticos. A primazia do segredo centra-se em deixar o teólogo descobrir por si só que não está mais vivo e o lugar para o qual foi designado dependeu essencialmente de suas escolhas. Os anjos sabiam de tudo. Contudo, o segredo deveria predominar, primeiro, para que ele se autodescobrisse e, depois, para que prevalecesse o direito de silenciar, tendo-se a certeza de estar falando e sendo compreendido. 214 Através do não-dizer, o teólogo pôde descobrir o que estava acontecendo e fazer suas próprias escolhas, sem haver a interferência de outras pessoas. Para Derrida (1995, p. 36), o silêncio polido tornou-se uma arma mais insolente e a ironia mais mordaz, sobretudo porque o segredo é um direito condicional; logo, um problema que é compartilhado e ao mesmo tempo limitado, ora pelas circunstâncias, ora pelas condições das palavras. Enquanto não é desvendado é dissimulado e permanece secreto a todos. Segundo o autor, “o segredo é o que, na palavra, é estranho à palavra. Ele não está na palavra tanto quanto é estranho a ela. Não responde à palavra [...]. O segredo não dá lugar a processo algum” (DERRIDA, 1995, p. 45). Por isso que os anjos deixaram Melanchton à vontade para descobrir onde está, para onde irá, e os porquês de tudo o que o circunda. A morte não surge como uma forma punitiva, mas como meio de (re)viver o outro que se sente indiretamente culpado e “se deixa consumir pelo efeito mágico da palavra punitiva, que culminava em sua própria morte” (OLIVEIRA, 2007, p. 52). Nos casos flagrantes em que o sujeito não está doente, em que “ele apenas se crê, por razões precisas, em estado próximo da morte”, por ter violado o tabu ou ter cometido um ato sacrílego, o corpo obedece por si mesmo à ordem mágica, e morre sem resistência, sem revolta. As reações dos sentimentos em relação à morte diferenciam-se na medida em que se diversificam as situações e as pessoas envolvidas. Melanchton já havia “provado” da morte, ainda que não estivesse disposto a reconhecê-la (ou aceitá-la). Ele não se reconhecia enquanto morto, por isso continuava agindo como se permanecesse vivo, como se nada tivesse acontecido. Quando ele admite sua morte, semelhante a uma negação de si mesmo, passa a reconhecê-la. O conto é projetado de modo que atende a uma totalidade: personagens, características individuais, cenários, cores, harmonia. Há uma poeticidade que não se movimenta no vazio e se manifesta através de um discurso cujo signo atua como formador de textos que falam sobre eles próprios, mas também sobre a personificação dos personagens; sendo assim, a morte aparece como aquela que gera vida, pois faz brotar outra vez a criação. No momento em que os personagens surgem divididos significa que estão postos em sua plenitude e essência material fazendo com que natureza e ser se completem. Os personagens são expostos em diferentes planos indicando uma evolução (boa ou ruim), a qual revela seres atuantes, comprometidos com um pensamento 215 metafórico que é enriquecido pelo grau de significação metafísica – o conhecido que se torna desconhecido, o dizível que se torna indizível – cujo conteúdo e formas se tornam inseparáveis, numa urdidura tecitural que rompe com obstáculos, princípios e homogeneidades sem modificar o sujeito, que caminha pelas fendas de um espaço paradoxal. Para Deleuze (2005, p. 179) é princípio de vida por sua presença e não por sua ação, haja vista que a força exposta é presença e não ação, sendo cada alma inseparável de um corpo que lhe pertence e está presente a ele por projeção. É por isso que, mesmo se sentindo duvidoso quanto à sua condição e estado de morte, Melanchton não indagava ninguém, apenas “vivia”, como se nada tivesse acontecido a ele. Para efeitos naturais, continuava vivo, escrevendo o quê e como pensava. Ainda que a morte represente algo trágico, a narrativa a retrata de forma sublime, pois, à medida que os devires do homem são preenchidos e o torna realizado, a morte pode exercer características que fogem ao que se convém como “aceitável”, deixando de fazer parte do real para adentrar propriamente ao ficcional. Um paradoxo que assume características de uma alegoria enquanto metáfora da morte, pois aquilo que deveria ser ruim assume simbolicamente conotações de um trágico que se justifica a partir das relações de interesse de cada ser humano, representado nesta narrativa por personagens que ora chocam, ora surpreendem, para dizer algo, às vezes, impossível de ser revelado. Ou mesmo, para retratar situações do real que ficam omissas em virtude de não haver mais ousadia, e sim revelar as reais faces dos sujeitos que constituem uma sociedade que se exime de culpas como forma de sobrepujar fatos com a finalidade de realizar seus objetivos, os quais, segundo Blanchot (2011a), nada mais são do que a possibilidade da morte, notadamente porque a partir de sua morte o sujeito vincular-se a ela fortemente. A decisão de ser sem ser é a possibilidade da morte. Mesmo que o sujeito se encontre no limiar de uma decisão, as respostas tornam-se possíveis apenas quando ele interroga-se. As dúvidas entre certo e errado levam-no aos múltiplos “eus” como forma de entender as palavras, decifrar os segredos e os mistérios que ele deseja conhecer. A personificação de determinadas situações surge por meio da estilização das palavras que, utilizando-se de movimentos os quais possibilitam ora uma mudança de trevas para luz, ora de céu para inferno, obedecem a uma estética que se mostra envolvida pela voz do criador. 216 No caso do teólogo, as reflexões envolvem, dentre outros aspectos, tempo, espaço, coragem e seres que lutam para se autodescobrir, mas também circunstâncias que enredam as matizes vida e morte, permitindo aos personagens caminhar por seus próprios labirintos na tentativa de se perceberem como participantes das situações que conduzem ao real e ao imaginário, sendo necessário, às vezes, (re)viver através do outro. As abstrações que produzem o sentido alegórico se tornam compreensíveis, ainda que saibamos que este é mimético, da ordem da representação. Tomando como parâmetro os cinco estágios descritos por Kübler-Ross (2008, p. 43-161), os quais são vivenciados pelo ser humano quando sabe que está à beira da morte, é possível compreender o que Melanchton “sofreu” antes de ser conduzido como criado dos demônios. A irrelutância em pronunciar o elogio da caridade, imbricada ao processo de arrependimento concedido pelos anjos (tempo esse que não surtiu nenhum efeito positvo da parte do teólogo), protagoniza um sujeito capaz de fazer qualquer coisa para se sobressair, mesmo sabendo que já não estava vivo. O momento inicial assemelha-se ao primeiro estágio, de negação e isolamento, quando o personagem, e por analogia, o indivíduo, não acredita (ou não quer acreditar) que aquilo aconteceu consigo, ou acredita parcialmente, fazendo questão de mudar a situação na qual se encontra, embora saiba que isso nunca acontecerá. Um devir animal que choca aqueles que não compreendem o que exatamente o sujeito deseja, mostrando que ele está propenso a olhar dentro de si, permitindo-se observar o rumo dado à sua vida durante o tempo no qual esteve a escrever. Isto nos leva a questionar que concepção defende o teólogo para não querer elogiar a caridade e julgar que há outros “caminhos” para chegar ao céu: “já demonstrei irrefutavelmente que a alma pode prescindir da caridade e que para ingressar no céu basta ter fé”155, bem como a que conclusão ele chega ao descobrir que será eternamente criado dos demônios. Será que Melanchton esperava esse desfecho para a sua vida? Enquanto teólogo, Melanchton viveu sob a baliza da complexidade e do saber científico/religioso; no entanto, isso não o impediu de defender seus próprios 155 BORGES, Jorge Luis. Um teólogo na morte. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 368. 217 conceitos. Um emblema metafórico que pode tê-lo feito um profundo colecionador de saberes, conhecimentos os quais o auxiliam a estabelecer vínculos com a palavra, mostrando que esta não se constitui como um mero elemento de comunicação, tendo em vista que sua função abrange, por exemplo, a magicidade dos símbolos. A negação e o isolamento acontecem em virtude de o sujeito fazer da palavra, uma instância fundadora para a sua escritura e, por meio desta, demonstrar que sua experiência com a escrita (e a maneira como defende o que pensa) é tão importante quanto qualquer outra coisa. Em pouco tempo Melanchton passa do estágio de negação e isolamento para o segundo estágio, a raiva. Com ela, surge o desejo de distanciar-se de todos aqueles que o procuram, especialmente porque não aceita sua condição atual (de morto), mas também porque perdeu tudo que possuía e, embora tenha combinado com um bruxo do cômodo dos fundos, e este enganasse as pessoas com “[...] simulacros de esplendor e serenidade. Apenas as visitas se retiravam, reapareciam a pobreza e a cal, e às vezes um pouco antes”, envergonhando-o (BORGES, 1999, p. 369). O estágio da raiva mostra o desejo de Melanchton em continuar como dantes. Um sujeito que expressava seu sentimento sem que ninguém o interrompesse ou determinasse algo a ser feito sob alguma condição. Havia uma liberdade de expressão (ou comunicação) a qual, de alguma forma, estava sendo tolhida, e isto o irritava mais do que saber que não iria para o céu. Melanchton sentia-se à vontade ao escrever e fazer uso das palavras como possíveis metáforas as quais são tecidas através do desejo e do uso da palavra como constituidora de um pensamento capaz de retratar espaços em comum e espaços dissonantes, tempo, trajetórias, simulacros, os quais, aos poucos, formam o ato único da morte cujo pensamento “confere por si só realidade à ausência e autentica o nada” (BLANCHOT, 2011a, p. 116). Se tomarmos como elemento norteador o entendimento de Blanchot (2011a, p. 116-117), veremos que o estágio de negação e o estágio de raiva se fundem, na narrativa em análise, para mostrar que: O que é feito deve, em primeiro lugar, ser sonhado, pensado, apreendido de antemão pelo espírito, não numa contemplação psicológica, mas por um movimento verdadeiro: num trabalho lúcido para avançar fora de si, perceber-se desaparecendo e ver-se na miragem desse desaparecimento, para reunir-se nessa morte própria que é a vida [...]. 218 Nessa tensão premente entre o desejo de um conhecimento até então inquestionável e a persistência dos anjos em fazê-lo perceber que era preciso reconhecer que há um saber maior o qual necessita ser respeitado, reconhecido, o teólogo, na tentativa de lidar com a nova situação, busca subterfúgios para ludibriar os anjos convencendo-os de que ele está correto. A vontade de provar suas verdades (ou certezas) termina fazendo com que Melanchton não perceba o óbvio: na vida, homem e conhecimento são, concomitantemente, produtos e produtores. Sendo assim, não há uma verdade absoluta; existe, pois, um tecido híbrido o qual se multiplica em várias direções, convergindo para diversos pontos de confluências. Para ele, é difícil admitir que sua “crença” precisa ser desconstruída e (re)construída a partir do pensamento, ou da visão de outrem. Neste caso, seus saberes (ou o modo como expunha os pensamentos) se mostravam inadequados aos anjos, perdendo um pouco do sentido outrora estabelecido pelo teólogo. Por esta razão, Melanchton externa uma irrelutância em escrever o elogio da caridade; isso porque, falta-lhe aceitação. Um processo dificílimo, tendo em vista que para adentrar a fase de aceitação é necessário romper com os estágios anteriores e reconhecer a necessidade de mudança. Enquanto urde estratégias para ludibriar os anjos, o teólogo adentra ao terceiro estágio, o da barganha. Neste, ele utiliza determinados artifícios na tentativa de ganhar tempo, por isso “determinou-se a escrever um elogio da caridade, mas as páginas escritas hoje apareciam amanhã apagadas. Isso lhe aconteceu porque as compunha sem convicção” (BORGES, 1999, p. 369). Conquanto tivesse ciência de que não acreditava naquilo que estava escrevendo, fazia-o no intuito de convencer os anjos e ganhar um lugar no céu. As linhas de fuga traçadas por Melanchton denunciam o que Blanchot (2011a, p. 121) afiança como “o deslizamento imóvel que faz as coisas ameaçarem no seio de seu eterno aniquilamento”, cuja consciência erra na distância de si mesma abstraindo movimentos e atitudes que somente denunciam o desaparecimento do sujeito, num “retorno ao seio do desaparecimento, mas ‘choque vacilante’ que pouco a pouco se afirma, ganha corpo e torna-se, enfim, o coração vivo [...] cuja certeza demasiado clara então o ‘constrange’ e o convida ao ato real da morte” (BLANCHOT, 2011a, p. 121). 219 As dobras e desdobras da alma (do teólogo) permitem-nos observar que, enquanto escritor, ele aborda o espaço de criação deslocando-o através do processo de produção de saberes limitados a um pensamento único. As articulações feitas por Melanchton expressam os limites, mas também reafirmam a defesa de um pensamento enquanto espaço que determina saberes. Um território que se configura como algo inabalável (ou intocável), donde a perseverança na defesa de uma visão se mostra urdida por meio de um tecido escritural que define e sustenta uma opinião. Na ocasião da barganha, a escrita se configura na fluidez de conhecimentos que se entretecem, obtendo como resultado o agenciamento de saberes os quais são agregados a subjetividades, dobrando-se, desdobrando-se e redobrando-se com o intuito de “costurar” o paradoxo que percorre a escrita como se esta fosse um misto de uno e múltiplo. Em Melanchton, o quarto estágio, da depressão, surge diferente do convencional, notadamente porque ainda não há a certeza de que está morto e não adentrará ao céu. A depressão dá vazão a uma sensação de perda iminente a qual está relacionada ao seu conhecimento (quando os anjos lhe pedem para escrever o elogio da caridade), sendo vítima, até certo ponto, de indagações. Algo inadmissível pelo teólogo, que se julga de um conhecimento inquestionável, não admitindo ser contrariado. Nesse estágio, o teólogo vê-se preso a um labirinto sem divisórias, sem limites, sem indícios ou contornos estáveis, podendo recorrer à saída apenas se concordar com a voz do outro e, ainda que busque linhas de fuga com a intenção de desdobrá-las noutras situações que o beneficiem, isso somente se concretizará quando ele destruir suas concepções e resolver o enigma do elogio da caridade. É necessário buscar linhas de acesso que o permitam uma tessitura textual a qual agrade e fascine os anjos, deslumbrando-os pelas vias da sinceridade. Apesar de ser uma metáfora da vida, a morte não oculta as vicissitudes do homem e mostra que o personagem é capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o que almeja e defender suas concepções. O estágio da depressão faculta ao teólogo dizer o indizível; no entanto, não o permite enganar-se no que tange ao seu próprio modo de pensar e agir, pois a linguagem utilizada possibilita inferir que, mesmo criando alternativas, a farsa é decifrada pelos anjos. Logo, torna-se irônico falar de algo no qual não se acredita, sendo necessário fazer escolhas, traçar (com 220 sinceridade) o encontro com o “eu” para que “eu” e “outro” descubram a saída do labirinto. O encontro com a morte é algo que aflige a todos, inclusive a Melanchton. Mas quando percebe que não há mais saída, resta-lhe apenas adentrar ao quinto estágio, o da aceitação, e superar os fatos anteriores para tornar-se merecedor de um lugar no céu. Na ocasião em que não é condescendente com a situação proposta, perde a recompensa, resiste até o fim, tornando o desfecho de sua história previsível. A negação impede que Melanchton obtenha êxito no estágio da aceitação, sendo impossível chegar ao final com paz e dignidade. Segundo Blanchot (2011a, p. 129), o teólogo atua como partícipe de uma morte desatenta, pois demonstra claramente que não amadureceu o suficiente a ponto de concordar com a opinião do outro. Não havendo a morte de si mesmo, prevalece a vontade de escrita que o conduz, desatento, a resignar-se e conformar-se com seu final. O teólogo permaneceu “fiel a si mesmo, [...] indivíduo até o fim, único e indiviso: reconhece-se aí o cerne duro que não quer se deixar quebrar”, numa altivez própria (BLANCHOT, 2011a, p. 129). Para Melanchton, a morte não pode ser vista apenas como algo ilusório e a partir do qual se deixa de viver, e sim, que esta constitui com a vida o todo. Por essa razão, havendo confiança na vida, deverá existir convicção também na morte, posto que uma completa e resulta da outra. Se Melanchton recusasse a morte, seria como se abdicasse dos aspectos graves e difíceis da vida, como se, na vida, buscasse apenas acolher as partes mínimas; logo, seus prazeres também seriam mínimos. Há um limite tênue que permeia o contexto literário e o filosófico mostrando que não é possível categorizar reflexão e imaginação, porque tanto o estranhamento quanto a hibridização apresentados no percurso da narrativa propiciam uma combinação basilar entre literatura e filosofia, a tal ponto que não é lícito especificar uma e outra, visto que há uma abrangência de limites cuja tessitura se torna perene. O jogo criativo da linguagem deriva de uma voz cuja diferença e repetição atuam como “molas” propulsoras do conhecimento e garantem a fluidez das palavras ora iluminando, ora escondendo as matizes labirínticas que avançam com a narrativa, incorporando um espaço reticular de produção de conhecimento cujo excesso de “força” produtora logra, no dizer de Blanchot (2011a, p. 140), um lugar atrás da morte; embora isso também lhe seja impossível, tendo em vista que “a 221 morte não aparece mais como a possibilidade mais apropriada mas como a profundidade vazia da impossibilidade [...]”, porque Melanchton já estava morto e apenas aguardava a determinação do “lugar” onde deveria ficar. Blanchot (2011a, p 141) resume o significado da morte, independente de quem seja o vitimado e acaba reproduzindo, quiçá, a concepção do teólogo: [...] a morte é o lado da vida que não está voltado para nós nem é iluminado por nós; cumpre tentar realizar a maior consciência possível de nossa existência que reside nos dois reinos ilimitados e se alimenta inesgotavelmente dos dois... A verdadeira forma da vida estende-se através dos dois domínios, o sangue do maior circuito corre através de ambos; não existe um aquém nem um além, mas a grande unidade [...]. Melanchton abdica definitivamente do olhar do outro em consonância com o seu próprio olhar. Se ele agisse diferente disso estaria transformando a sua maneira de ser, esvanecendo-se da consciência e das culpas. Neste caso, “o abrir-se desta possibilidade, todavia, procede de par com o revelar-se de uma negatividade que atravessa e domina de alto a baixo [...]”156 o teólogo, onde a totalidade de situações nunca acabada ou cristalizada relaciona-se a outras situações, num processo contínuo e praticamente ininterrupto de produção de sentidos, onde a diferença se apresenta tanto como propulsora de saberes quanto de reflexões que se transformam em elementos capazes de produzir novos e infinitos saberes os quais estão incorporados à certeza de sua impossibilidade de totalização. O pensamento e a escrita do teólogo se mostram sempre inacabados, culminando com a proposta dos anjos, o que explica a ruína enquanto alegoria da morte, portanto, a transitoriedade da vida “[...] como sendo o sinal da insignificância temporal da existência humana em vista da eternidade do divino”; desta forma, “se a linguagem constitui a possibilidade de redenção da ordem [...] a história apresenta como sua propriedade a morte” (PEREIRA, 2007, p. 15). Conforme Pereira (2007, p. 15), a morte se apresenta como a grande fantasmagoria barroca representando “a danação de todas as coisas”, por isso que ocupa um papel paradoxal o qual evidencia a vulnerabilidade dessa ordem e a salvação mesma, cuja “alegoria mortifica os objetos” e vivifica as pessoas. 156 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 14. 222 Em analogia ao que aconteceu a Penélope157, que tecia sua tapeçaria durante o dia para destruí-la à noite, refazendo-a no dia seguinte, Melanchton escrevia o elogio sem sinceridade, a escrita desaparecia e as folhas permaneciam em branco. Ele trabalhava com as palavras de forma alegórica, se utilizava dos fragmentos significativos de um pensamento, desdobrando-os em novos pensamentos-palavras sem que se tornassem totalizadores. No momento em que não escreve com convicção, o objeto de estudo (a caridade) transforma-se em morto, perdendo a capacidade de significar por si próprio, havendo um confronto consigo mesmo, um encontro indispensável ao desenvolvimento do ser diante da sua nova realidade. Segundo Bartucci (1998), quando o sujeito é impulsionado a empreender um acordo com a palavra escrita, fazendo escolhas novas e específicas, é levado a examinar-se, a refletir acerca de seus pensamentos e atitudes, os quais poderão marcar um encontro consigo próprio descortinando um novo ser, ou ainda, permitindo-se continuar como outrora. Por esta razão, às vezes torna-se impossível Melanchton abandonar ideias e atitudes nas quais acredita. A iniciativa dos anjos visa a uma mudança de pensamento e atitude da parte do teólogo; pois, à medida que passasse a refletir a escrita em sua essência esta também possuiria um caráter simbólico “[...] de busca da identidade de cada um. A tentativa de compreender e apreender nossa própria reflexividade é, também, a tentativa mesma de compreender e apreender nossa própria realidade” (BARTUCCI, 1998, p. 21). Talvez a verdadeira intenção dos anjos fosse permitir que o teólogo fizesse novas descobertas e percebesse quem de fato ele desejava ser. Para tanto, optaram por impulsioná-lo a provocar, a priori, uma mudança no pensamento, para, a posteriori, provocar impactos mais profundos na alma, produzindo sequências as 157 Segundo a mitologia grega, Ulisses pediu Penélope em casamento, após conquistá-la entre os muitos competidores que participavam dos jogos instituídos por seu pai, Icário (príncipe espartano). Depois do casamento, no momento em que a jovem deveria deixar a casa paterna para morar com o esposo, em Ítaca, o pai da moça, com medo de perder a filha, tentou persuadi-la a não seguir Ulisses. Este deixou que Penélope ficasse livre para escolher. Silenciosamente, ela cobriu o rosto com um véu e o seguiu. Um ano depois o destino os separou, porque Ulisses partiu para a Guerra de Troia. Porém, enquanto guerreava em terras estranhas e com destino desconhecido, o pai de Penélope sugeriu que a filha casasse novamente; no entanto, como era apaixonada e fiel ao esposo, recusou a proposta de Icário dizendo-lhe que esperaria a volta de Ulisses. Na ausência do amado, Penélope foi importunada por muitos pretendentes; por essa razão e para livrar-se deles, decidiu que, após tecer uma tela para o dossel funerário de Laertes (pai de Ulisses), escolheria um dentre os pretendentes. Durante o dia (e aos olhos de todos) Penélope trabalhava tecendo e, à noite, quando todos dormiam, secretamente desfazia o trabalho. Mas, o artifício foi descoberto, obrigando-a a propor ao pai uma nova condição: casaria com o homem que conseguisse encordar o arco do esposo. Dentre todos os pretendentes, apenas um humilde camponês conseguiu o feito, era Ulisses, que voltara da guerra e estava disfarçado. O casal teve apenas um filho, Telêmaco. Disponível em: . 223 quais refletiriam como experiência emocional e perceptiva, possibilitando-lhe mergulhar no sentir e entregar-se sinceramente à experiência da alma. O inverso simbolizaria a doença da morte, a qual se caracteriza “numa primeira instância [...] como vivência do abandono em vida” (BARTUCCI, 1998, p. 73). Concordamos com Bartucci (1998, p. 74) quando afirma que a transformação se faz necessária para que a vivência de morte seja experienciada “[...] como transformação criativa da personalidade, por meio da integração de seus conteúdos sombrios [...]”. A autora reitera que: Essa vivência de morte torna-se, no entanto, doente, doença, quando há resistência do ego em abandonar sua experiência do si-mesmo (self) onipotente, numa atitude de apreensão e integração de seus conteúdos sombrios. O ego terá que sacrificar o já conquistado. (Entretanto, quão mais fácil seria se pudéssemos vivenciar o sacrifício como um ato, em si, simbólico-expressivo do já transformado, em que a perda equivale à aquisição ...) (BARTUCCI, 1998, p. 74). A transformação do já transformado acontece, inicialmente, com o ambiente no qual o teólogo passou a fazer parte (depois de morto) como forma de despertá-lo para o que aconteceu à sua vida: “[...] os móveis começaram a afantasmar-se até se tornarem invisíveis, salvo a poltrona, a mesa, as folhas de papel e o tinteiro. Além disso, as paredes do aposento mancharam-se de cal e o assoalho de um verniz amarelo” (BORGES, 1999, p. 368). Tudo isso deveria ser motivo de reflexão, porque até “[...] sua própria roupa já estava muito ordinária”158 e os objetos eram expostos como agrupamentos incomuns, os quais, embora se assemelhassem aos objetos que possuía em vida, perdiam a luminosidade, tornando-se diferentes e distantes. Certa vez, num entardecer, Melanchton [...] sentiu frio. Então percorreu a casa e percebeu que os demais aposentos já não correspondiam aos de sua moradia na terra. Um estava repleto de instrumentos desconhecidos; outro tinha diminuído tanto que era impossível entrar nele; outro não tinha mudado, mas as janelas e portas davam para grandes dunas. O cômodo dos fundos estava cheio de pessoas que o adoravam e que lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sapiente como ele. Essa adoração agradou-lhe, mas como algumas dessas pessoas não tinham rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando delas (BORGES, 1999, p. 36). 158 BORGES, Jorge Luis. Um teólogo na morte. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1, p. 368. 224 Uma transformação que implica em obter o lugar da linguagem para “[...] colher a instância de discurso”159, que se configura como espaço de produção do saber o qual obriga as palavras a dizer o que Melanchton deseja como se fossem um manancial de imagens as quais serão fisgadas por ele com o intuito de ressignificá-las, deslocá-las e, por fim, reterritorializá-las. Para o teólogo, sua principal tarefa é escrever e dizer algo acabado. Ele está preocupado em finalizar o trabalho almejando que o mundo seja conhecedor do que escreve. É consciente de que as palavras se metamorfoseam dobrando-se e desdobrando-se em novas palavras através dos sentidos que lhes são atribuídos e, embora não saiba qual seu lugar de destino, está ciente de que não pode mudar esse destino por meio da escrita, das palavras. Uma vez morto, Melanchton sabe que a morte, “[...] essa morte mais pronta [...] converte-se em promessa de sobrevivência anunciando o momento em que morrer é escapar à morte – estranha volatização de sua experiência” (BLANCHOT, 2011a, p. 157). Para este autor: [...] A conversão, esse movimento para ir na direção do mais interior, opera onde nos transformamos ao transformar tudo, tem algo a ver com nosso fim – e essa transformação, essa realização do visível no invisível de que temos o encargo, é a própria tarefa de morrer que até aqui nos foi tão difícil de reconhecer, que é um trabalho mas certamente muito diferente do trabalho pelo qual fazemos objetos e projetamos resultados (BLANCHOT, 2011a, p. 151). Segundo Blanchot, a metamorfose do visível em invisível realiza-se sem se perder na evanescência de estados momentâneos. Por essa razão, a fala se constitui no “ponto em que a palavra tem necessidade de espaço para repercutir e ser entendida, e em que o espaço, convertendo-se no próprio movimento da fala, torna-se a profundidade e a vibração do entendimento” (BLANCHOT, 2011a, p. 152). Para Lins (2001, p. 106), a estratificação do ser se apresenta por meio de uma luta constante entre a criatividade do “eu”, uma moral capaz de matar, e a própria vida, num ir e vir o qual expõe o desejo de Melanchton de “[...] sujar as mãos como um artesão que labora a argila à procura de formas que surgirão apesar dele, muitas vezes contra ele [...]”. Um devir-pensamento o qual visa a experienciar novas descobertas, o que está em vias de se fazer. 159 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006, p. 51. 225 O devir-combate procura “sua vontade de potência ativa, que tem no corpo o seu aliado”160, indo à busca de um saber que o sustente, que o conduza ao caminho desejado, garantindo-lhe estabilidade sem enganar nem ser enganado. Isso porque, quando Melanchton contrapõe-se aos fatos, resiste ao próprio devir, pois luta contra si mesmo, num esforço incessante, cujos movimentos conduzem ao infinito, ao excesso, mas também à morte alegórica. Cada vez que decide escrever o elogio da caridade com tenacidade e as folhas se apagam, o teólogo passa a repetir aquilo que está no centro de seu coração, tendo em vista que “na medida em que coloca em questão o reconhecimento da espontaneidade desejosa, voluntária”161 do sujeito, ele também caminha em direção a um silêncio que fala por meio de uma escrita que atravessa a letra para autenticar e legitimar a experiência do teólogo que, transtornado, inclina-se sobre as folhas, sentindo que a morte prenuncia o lugar onde deve permanecer. É como se o coração dele pudesse sentir o que o aguardava. De acordo com Siscar (2005, p. 141), é “como se o coração fosse antes de mais nada perturbado, trans-tornado, movido de cabeça pra (sic) baixo, como um feto. [...] um coração transtornado, que aproxima a coragem e o medo, a hostilidade e a hospitalidade do dom daquilo que acontece”. Mesmo em meio a todos os acontecimentos, Melanchton continua livre para pôr fim ao seu sofrimento, pois ainda é senhor do seu destino. Não obstante, há um sofrimento que se configura como o “horror de um sofrimento sem fim, que o tempo já não pode resgatar, que escapou ao tempo, para o qual já não há recurso; é irremediável”, haja vista que a solicitação dos anjos não se concretiza e ele torna-se criado dos demônios (BLANCHOT, 2007, p. 142). É possível que o temor remeta a uma angústia maior no instante em que existe a certeza da concretização da morte, de algo esperado; porém indesejado. Neste sentido, Blanchot (2007, p. 142) afiança que o sofrimento expõe o homem a uma verdade que coaduna com o fato de retirar de quem sofre “o espaço necessário para sofrer”. Nesse caso, o inferno não simboliza apenas o lugar de sofrimento, e sim o lugar daqueles que não confiam em Deus, ou não acreditam nos preceitos 160 LINS, Daniel. Sujeitos e devires: o corpo-drogado. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 107. 161 SISCAR, Marcos. O coração transtornado. In: DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005, p. 136. 226 divinos, por isso devem permanecer no espaço do vazio, do abandono, do nada, cujo ser sente-se totalmente decaído e passa a “[...] afirmar-se no tormento de um tempo infinito” (BLANCHOT, 2007, p. 145). Os anjos almejavam salvar o teólogo do inferno; no entanto, o poder de decisão nunca deixou de pertencer a ele. Se não escapou da morte, que ao menos tivesse um lugar digno. Concordamos com Blanchot (2007, p. 145) quando assegura que: A preocupação de voltar-se para um momento extremo para além do qual o homem, a possibilidade de pensar o homem, parece desaparecer, momento necessariamente obscuro, é uma preocupação ela própria obscura. Não significa apenas, como a simplicidade nos levaria a supor, que, nesse momento em que o homem nos escapa, é a verdade do homem que poderia ser apreendida: assim ficaríamos debruçados sobre um buraco vazio, em lugar de preenchê-lo e fazer dele o alicerce de uma verdadeira morada. A angústia o conduziu à negação do querer-viver próprio de quem admite que o conhecimento é mais importante do que qualquer coisa que venha a lhe acontecer; e é esse conhecimento que atuará como bálsamo perante todas as dores. O teólogo, na tentativa de dialogar, demonstra clareza com as palavras e explicita um pensamento o qual revela a certeza de que ele não deseja se desprender de suas convicções: “Aí esteve alguns dias encarcerado e começou a duvidar de sua tese; permitiram-lhe voltar. [...] tentou imaginar que os fatos anteriores haviam sido mera alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade” (BORGES, 1999, p. 369). A fala de Melanchton sempre o remeteu à morte, “[...] ao inumano, o que contém o nada e a destruição” (BLANCHOT, 2007, p. 156). As atitudes do homem minam a própria destruição, pois é sabido que a essência desse ser é o impossível, ou seja, [...] onde, se ele pudesse penetrar nem que fosse por uma certa fala, descobriria que ele escapa à possibilidade e onde a fala descobrir-se-ia a si própria como aquilo que põe a nu esse limite do homem que não é mais um poder, que não é ainda um poder. Espaço onde aquilo que chamamos homem sempre já desapareceu como que de antemão (BLANCHOT, 2007, p. 157). Sendo o personagem um ser voltado para as impossibilidades, somente por meio do encantamento da morte é que ele se autodescobre e passa a acreditar que 227 já não detém poderes para falar, agir ou, quiçá, pensar e expor tudo o que almeja; por essa razão seu maior enigma é o da impossibilidade. A pulsão de morte o leva a refletir acerca do que permanece e do que se apaga, como se a destruição suscitasse do silêncio que fala o que pensa, sobrepujando o tempo e transbordando todos os limites para germinar a sua própria destruição. A tessitura da destruição (ou da morte) dá-se nos meandros da estratificação que ocorre entre a memória e o “esquecimento”, cuja batalha se inscreve a partir dos lapsos dessa memória “incerta” que transita entre a dubiedade da destruição enquanto morte e inferno (como lugar de destino), mas também salvação e céu (como lugar de destino). O desejo de estar num e noutro lugar não depende da situação produzida e sim das circunstâncias que foram geradas, mas, sobretudo, na maneira como o teólogo encara tudo isso. Há dois lados; portanto, dois partidos: o de Melanchton e o dos anjos. O primeiro pertence ao desejo; o segundo, “[...] à lei, e cuja própria distribuição de qualquer modo remeteria a uma lei superior”162 a qual os anjos devem reverência. No dizer de Deleuze e Guattari (1977, p. 76), nada há a julgar no desejo, haja vista que o próprio juiz está inteiramente cheio de desejo. A justiça é apenas o processus imanente do desejo, por isso o próprio processo é um continuum, mas um continuum feito de contiguidades que remetem indefinidamente a uma desmontagem. Para que o teólogo pudesse conseguir (ou merecer) um lugar no céu teria (fundamentalmente) que ser absolvido de todos os pecados; isso implicaria também numa absolvição do desejo, posto que seu processus teria sido completado. Desta feita, afasta-se “[...] da máquina abstrata da lei, que opõe a lei ao desejo, como o espírito ao corpo, como a forma à matéria, para entrar no agenciamento maquínico da justiça, isto é, na imanência mútua de uma lei decodificada e de um desejo desterritorializado”, segundo Deleuze e Guattari (1977, p. 77), visto que o desejo está sempre (ou quase sempre) em primeiro plano. Deleuze e Guattari (1977, p. 83) certificam que, “sendo um agenciamento, o desejo constitui unidade estrita com as engrenagens e as peças da máquina, com o poder da máquina”. O desejo reflete o fascínio do sujeito diante das engrenagens, 162 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977, p 75. 228 uma vez que ele ambiciona ser uma das peças dessas engrenagens, se não a própria engrenagem. Melanchton poderia exercitar-se, montar e desmontar as peças da máquina experienciando seus próprios agenciamentos. A metáfora do desejo também é a metáfora das engrenagens, por sua vez, a máquina desse agenciamento desejante o qual ora pode produzir linhas de fuga ora linhas de parada que condizem com a desterritorialização/reterritorialização do teólogo, com a desmontagem de um agenciamento maquínico que cria e torna “efetivamente uma linha de fuga que o tornar-se-animal não podia tornar nem criar: trata-se de uma outra linha. Uma outra desterritorialização” a qual encaminha o sujeito para o ponto de colisão com os seus anseios (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 88). O teólogo assume uma postura que se mostra em constante devir, fazendo ressoar os múltiplos caminhos que ele pode percorrer para constituir os infinitos estratos de um saber que se desdobra (ou se desfolha) conforme as diversas situações que se lhe apresentam, permitindo-lhe perscrutar o universo que se revela diante dele para descobrir o diferente, o insólito. Melanchton se apresenta como um teólogo que possui aspirações as quais são engendradas a partir de agenciamentos de fuga e de parada os quais são tecidos por meio de fissuras que se dobram e se desdobram ao infinito, num devir-homem cuja memória ora forte ora frágil se constitui como um mundo de saberes, onde a escrita reflete os desejos do personagem, por analogia dos indivíduos, e sua tentativa incessante de defender aquilo em que acredita. Uma situação que termina custando muito ao teólogo, porque além de defender sua concepção de maneira acirrada, abdica do céu para habitar definitivamente com os demônios, mostrando que o indivíduo é capaz de tudo para externar a multiplicidade de pensamentos e a miríade de agenciamentos maquínicos de desejo os quais, frequentemente, constroem novas engrenagens que captam o desejo de territorialização, ainda que com linhas de fuga. 4.2 BENJAMÍN OTÁLORA E A TRAVESSIA DA MORTE O conto O morto compõe a coletânea O Aleph, de 1949. A narrativa tem início com a opinião do narrador dizendo que deseja contar a história de Benjamín Otálora, de quem talvez não haja mais qualquer lembrança no bairro de Balvanera. O sujeito 229 morreu, no Rio Grande do Sul, vítima de uma bala. Como medida de precaução, o narrador afirma ignorar os pormenores da história de Otálora; mas, assegura que se alguém o revelar promete retificar e ampliar o resumo que ora apresenta. Em 1891, Benjamín Otálora contava com a idade de dezenove anos. Um “rapagão de fronte pequena, de sinceros olhos claros, com o vigor dos bascos; uma punhalada feliz revelou-lhe que é homem valente; não o inquieta a morte do adversário, tampouco a imediata necessidade de fugir da República” (BORGES, 1999, p. 607). Otálora embarca para o Uruguai com a missão de entregar uma carta a Azevedo Bandeira. A travessia é atribulada. No dia seguinte, percorre as ruas de Montevidéu com uma tristeza aparente, certamente porque não encontrou Bandeira. Por volta da meia-noite presencia, num armazém do Paso del Molino, uma discussão entre dois tropeiros. Embora não soubesse de que lado estava a razão, o rebrilhar do punhal e o perigo iminente despertam sua atenção. “Segura no entrevero, uma punhalada baixa que um peão desfere contra um homem de chapéu escuro e de poncho”. Otálora logo descobre tratar-se de Azevedo Bandeira, um homem que, “embora robusto, dá a injustificável impressão de aleijado” (BORGES, 1999, p. 607). Ao saber que finalmente encontrou quem estivera procurando, ele decide rasgar a carta, preferindo dever tudo a si mesmo. É preciso dizer que a disputa cessou com a mesma rapidez com que se produziu. Otálora passa a noite na companhia dos tropeiros com quem bebe, os acompanha a uma farra e a um casarão na Cidade Velha, agora com o sol bem alto. Os homens estendem os arreios (no último pátio) e adormecem. Benjamín Otálora, inexplicavelmente, compara essa noite à anterior; conquanto esteja em terra firme e entre amigos (ao menos é como ele pensa). Mas, algo o inquieta. Não sente saudades de Buenos Aires. Dorme até as seis, quando é despertado por um paisano que agrediu Bandeira. Imediatamente se recorda de quem é aquele homem. É o mesmo que participou da noite de tumulto e de alegria com os outros. A consciência de Otálora o faz recordar que Bandeira é o homem o qual sentou à sua direita obrigando-o a continuar bebendo. O homem avisa que Bandeira o mandou chamar a uma espécie de gabinete cuja direção apontava para um vestíbulo o qual continha portas laterias, que chamavam a atenção de Otálora. 230 Azevedo Bandeira o esperava com uma mulher de cabelos ruivos. Observa-o, oferece um copo de aguardente e diz que ele parece ser corajoso, propondo-lhe viajar para o Norte com os demais para trazerem uma tropa. O convite é aceito. Eles partem de madrugada para Tacuarembó. A partir desse momento Otálora passa a ter uma vida de aventuras cujas jornadas têm o cheiro do cavalo. Otálora foi criado nos bairros de carreteiros e quarteadores. Em menos de um ano tornou-se gaúcho e aprendeu a montar, a entropilhar o gado, a carnear, a manejar o laço que subjuga e as boleadeiras que derrubam, a resistir ao sono, às tormentas, às geadas e ao sol, a tanger com o assobio e o grito. Durante o tempo de aprendizado viu Azevedo Bandeira apenas uma vez, mas o tem muito presente haja vista que, enquanto forasteiro, se tornou muito temido (BORGES,1999, p. 608). Quanto a Bandeira, alguém disse que nasceu do outro lado do Quaraí, no Rio Grande do Sul; fato que deveria rebaixá-lo; no entanto, obscuramente o enriquece. Ao poucos, Otálora começa a perceber que os negócios daquele homem são múltiplos, tendo o contrabando como seu principal interesse. A função do viajante era a de tropeiro, um criado de Bandeira, porém ele ambicionava ser contrabandista. Em razão disso, numa noite, quando dois companheiros cruzavam a fronteira para voltar com algumas partidas de aguardente, atacou um deles, feriu-o e conquistou o lugar de contrabandista. A partir daquele instante é movido pelo espírito de ambição e por uma obscura fidelidade. Passa-se mais um ano antes que Otálora regresse a Montevidéu. Ele passa alguns dias sem ver Bandeira, a quem dizem estar enfermo e recebe, em seu dormitório, apenas um homem moreno que tem por hábito subir com a chaleira e o mate. Uma tarde, Otálora é encarregado de desempenhar tal tarefa, a qual realiza ora sentindo-se humilhado ora satisfeito. Ao entrar, percebe o dormitório desorganizado e escuro, com uma sacada para o poente, uma longa mesa com uma aparente desordem de chicotes, relhos, cintos, armas de fogo, mas também um antigo espelho de cristal embaçado. Bandeira, de boca para cima, sonha e se lamenta. Otálora observa no patrão os cabelos brancos, a fadiga, a debilidade e as rugas dos anos; o que produz em si a revolta de ser comandado por um homem naquele estado, chegando a pensar que apenas um golpe daria cabo da vida de Bandeira. Enquanto pensa, percebe (pelo espelho) que está entrando uma mulher de cabelo ruivo, meio vestida e descalça, a quem observa com fria curiosidade. 231 Bandeira recompõe-se, fala de coisas da companhia e bebe um mate após o outro; seus dedos brincam com as tranças da mulher. Por fim, pede que o forasteiro vá embora. Após alguns dias, os homens de Azevedo Bandeira recebem a ordem de ir para o Norte. Chegando a El Suspiro encontram uma estância perdida onde nem as árvores nem os arroios são capazes de alegrá-la. Otálora ouve, na roda de conversa, que Bandeira chegará para conter um forasteiro agauchado que está querendo mandar demais, compreendendo tratar-se de um gracejo. Ele também fica feliz com a notícia de que o chefe se inimizou com um dos políticos, perdendo seu apoio. Na ocasião, chegam caixões de armas longas; uma jarra e uma bacia de prata para o aposento da mulher; bem como cortinas de intrincado damasco. Numa manhã, chega das cochilas um cavaleiro sombrio, de barba cerrada e de poncho, a quem chamavam Ulpiano Suárez (o qual possui como característica marcante falar pouco e de forma abrasileirada), capanga ou guarda-costas de Azevedo Bandeira. Otálora acredita que, para desenvolver seu plano, precisa conquistar a amizade de Suárez. Bandeira traz do sul um alazão o qual “[...] ostenta arreios chapeados e carona com bordas de pele de tigre” (BORGES, 1999, p. 610). Símbolo da autoridade do patrão, o cavalo passa a ser cobiçado pelo rapaz, que também deseja rancorosamente a mulher daquele a quem ambiciona destruir. A partir desses acontecimentos a história se complica. Bandeira era hábil na arte de intimidar progressivamente, humilhava o interlocutor de maneira satânica e gradativa, num misto de seriedade e brincadeira. Com base no que vê, Otálora resolve superar o adversário com lentidão. Em jornadas de perigo comum, alcança a amizade de Ulpiano Suárez, confiando-lhe seu plano e recebendo em troca a promessa de ajuda. São muitos os acontecimentos: Otálora deixa de obedecer a Bandeira, começa a esquecer, corrigir e inverter as ordens do patrão... Num meio-dia ele participa de um tiroteio em campos de Tacuarembó com gente rio-grandense, usurpa o lugar do chefe e comanda os orientais. Uma bala atravessa-lhe o ombro. Nessa mesma tarde regressa a El Suspiro, no alazão de Bandeira, manchando de sangue a pele de tigre. Dizem que nessa mesma noite ele dormiu com a mulher do patrão. 232 Embora dê ordens que não chegam a ser executadas, Bandeira ainda continua sendo o chefe. Otálora não o toca por um misto de rotina e pena. A última cena, porém, corresponde à agitação da última noite de 1894, quando os homens de El Suspiro comem cordeiro recém-carneado e bebem um álcool pendenciador. Bêbado, Benjamín Otálora ergue brinde após brinde como um símbolo de seu inevitável destino. Azevedo Bandeira deixa que a noite flua sem que ninguém intuísse o que iria acontecer; todavia, quando soaram as doze badaladas ergueu-se como quem estava se lembrando de uma obrigação. Levantou-se e bateu suavemente a porta da mulher, que a abre como se já esperasse o chamado, saindo meio vestida e descalça. Naquele momento, Bandeira ordenou que a mulher fosse dar um beijo em Otálora à vista de todos. Presumindo o que iria acontecer, ela quis resistir; mas dois homens a tomaram pelo braço lançando-a sobre seu amado. Arrasada e em lágrimas, a mulher beija-o no rosto e no peito. Naquele instante Ulpiano Suárez empunhou o revólver fazendo com que Otálora compreendesse que foi traído desde o início, tendo sido condenado à morte. Permitiram-lhe o amor, o mando e o triunfo porque para o patrão ele já era um homem morto. Indiferente, Suárez abre fogo. Em princípio, a narrativa remete a situações que nos fazem pensar até que ponto o homem (ou a humanidade) pode ser tão perspicaz e audaz quando se trata de conseguir o que deseja, ao mesmo tempo em que mostra que não se pode confiar em todas as pessoas; afinal, nem todos merecem confiança. É possível, digamos, confiar desconfiando. Talvez Benjamín Otálora devesse ter agido dessa maneira no que concerne aos capangas de Azevedo Bandeira, sobretudo no que diz respeito à Ulpiano Suárez. A confiança excessiva fê-lo, sem perceber, caminhar para a própria morte. As atitudes de Otálora o faziam pensar que realmente conquistaria a todos e que, ao final, apreciaria o desaparecimento de Azevedo Bandeira como ambição de vida ativa; isso porque ele demonstra por meio da descentralização de suas ações, coragem e vontade de lutar. O jogo (de situações) exposto no decorrer da trama evidencia o ir e vir das ordens, desordens, mandos e desmandos servindo, sobretudo, para revelar a personalidade de cada homem e, posteriormente, da mulher de Bandeira. Os acontecimentos surgem para explicitar que todos possuem, metaforicamente, um destino sem repouso cujas vozes não podem exprimir vontades, desejos, sonhos... 233 Quando se deparou com o comportamento dos tropeiros, com o convite repentino de Bandeira e a inserção dele no grupo, Otálora deveria ter desconfiado de que algo poderia acontecer-lhe a qualquer momento. Era preciso duvidar, especialmente porque, segundo Lopes (1999, p. 32), “após o encontro com o estranho, age-se sob o domínio de um princípio de identidade, sob a guarda de uma idéia (sic) expressa pela elocução: eu sou, a realidade é assim”, racionalizando-se as possibilidades de existência dos acontecimentos e das atitudes os quais foram experimentados (ou sentidos) como estranhos. Por essa razão, os fatos expostos e as imagens metafóricas causam um estranhamento ao leitor. Deleuze (2009b, p. 13), supõe já uma ideia mais complexa onde os espaços percorridos pertencem todos a um espaço cujos movimentos são heterogêneos e irredutíveis entre si, apresentando um devir-animal condenado ao indelével. Sendo assim, as metáforas e alegorias que configuram o ir e vir dos tropeiros são expostas através de repetições que atuam como potencializadoras das dobras e desdobras “[...] num jogo positivo entre Thanatos e Eros onde a linguagem comum seria perpassada pela presença da morte”, segundo Lopes (1999, p. 33), num processo também labiríntico que visa a desconstruir a ideia de temor à morte, uma característica dos contos borgeanos. É a partir do momento em que Benjamín Otálora faz sua travessia para encontrar-se com Azevedo Bandeira que a morte o persegue, haja vista viver constantemente sob a ameaça de fenecer. Primeiro, Otálora é tido como um intruso no bando, depois, é possível que Bandeira tenha descoberto o motivo de ele estar à sua procura, e mais do que isso, é presumível que tenha estranhado o fato de Otálora não ter-lhe entregado a carta. É possível que Bandeira estivese pensando quais motivos o forasteiro tinha para não lhe entregar a carta; qual seu interesse em guardá-la ou destruí-la; que conteúdo havia naquele objeto que despertou sua atenção... Questionamentos que podem tê-lo intrigado, permitindo-lhe tramar contra o tropeiro, sem que esse conseguisse perceber, pois Bandeira era mestre na arte de enganar. A experiência fê-lo urdir cada “fio do tecido” que envolvia aquele criado, com a certeza de que seria vitorioso e alcançaria os objetivos almejados, conduzindo o contrabandista a uma morte certa. 234 Quando Otálora resolveu destruir a carta desviou-se do objeto e da obrigação que lhe fora confiada “esquecendo-se” da dimensão que aquele ato poderia tomar, bem como das consequências que lhes sobreviriam, desviando-se de tal profundidade e indo em busca de outras coisas, outros acontecimentos os quais culminariam com a sua morte e o consequente esquecimento (ou apagamento) de tudo quanto almejou; notadamente porque “aquele que morre acaba de esquecer, e a morte é o acontecimento que se faz presente na consumação do esquecimento” (BLANCHOT, 2007, p. 173). É aceitável que o tropeiro, por não temer à morte, não pudesse sentir até o fim a realidade da morte, tornando-a irreal, e essa irrealidade o tivesse condenado a morrer apenas irrealmente. Não morreria legitimamente, permaneceria como aprisionado “[...] para sempre, entre a vida e a morte, num estado de não existência e de não morte” do qual toda a sua vida passa a tomar seu sentido e sua realidade. (BLANCHOT, 2011c, p. 261). Talvez ele se julgasse invencível, logo, não morreria. Não significa dizer que Otálora se reconhecia imortal, mas, que devido às circunstâncias, mormente ao estado em que o chefe se encontrava, aquilo fosse – naquele momento – impossível. Para Blanchot, a vertigem entre viver e morrer explicita que, na vida, o simulacro de morte delineia a perda de si, fazendo com que o sujeito perceba (ou encare) a morte de frente. Os subterfúgios utilizados por Bandeira e Otálora apenas ilustram tentativas frustradas de iludir a morte, haja vista que esta já se fazia presente no coração de ambos, que se utilizam de linhas de fuga para imprimir coragem ao invés de medo “[...] numa forma plena e real que a torne estranha à irrealização da vida e à irrealidade do ‘Eu morro’” (BLANCHOT, 2011c, p. 263). As situações produzidas por Azevedo Bandeira funcionam como ponto de partida para ganhar a confiança de Otálora, ao mesmo tempo em que o encaminha para a morte, sem que ele perceba a presença desta rodeando-o, tampouco que o tempo de morrer estava cada vez mais próximo. Tudo teve início numa noite de boemia e findou numa noite semelhante, como se estivesse meticulosamente planejado. No início, “[...] Otálora bebe com os tropeiros e depois os acompanha a uma farra e depois a um casarão na Cidade Velha, já com o sol bem alto. [...] Otálora compara essa noite com a anterior; agora já pisa terra firme, entre amigos”. No final, [...] Otálora, bêbado, ergue brinde atrás 235 de brinde, em júbilo crescente; essa torre de vertigem é símbolo de seu irresistível destino” (BORGES, 1999, p. 608; 611). Os fatos, quando graves, tanto transformam quanto inauguram uma circunstância nova fazendo com que o passado do indivíduo se torne um corpo estranho o qual se apresenta no limiar entre verossimilhança e inverossimilhança. Isso porque, quando o tropeiro opta por não entregar a carta instaura-se um câncer que começa a corroê-lo (sem que perceba) levando-o à busca de um poder que possui endereço e destinatário certos. Todas as investidas em prol desse poder, ainda que pareçam positivas, são de cunho negativo, e levantam suspeitas tanto em Bandeira quanto nos seus homens, que passam a desconfiar de Otálora, observando-o sorrateiramente. Para Blanchot (2011a, p. 171), “esse movimento [...] está ligado ao infinito da metamorfose que não nos conduz somente à morte, mas transmuda infinitamente a própria morte”, fazendo desta o movimento infinito de morrer e daquele que morre, “[...] morrer cada vez mais, desmesuradamente [...]”, continuando um movimento de transformação que não deve ser interrompido e que, no entanto, nem sempre é possível, porque, uma vez morto, não é possível ao indivíduo realizar transmutação do não ser para o ser. Otálora fora condenado à morte desde o momento em que encontrou Azevedo Bandeira. Como dissemos anteriormente, é possível que aquele homem fosse conhecedor da carta e, uma vez conhecendo o remetente, pressupunha o conteúdo e idealizava o portador daquele objeto que não chegou às suas mãos; logo, começa a criar situações envolvendo o tropeiro para, em momento oportuno, dar cabo à vida daquele sujeito, segundo esclarece Borges (1999, p. 608): [...] Dorme até as seis, quando o desperta o paisano que, bêbado, agrediu Bandeira. [...] O homem lhe diz que o patrão o manda buscar. [...] Bandeira examina-o, oferece-lhe um copo de aguardente, repete que ele parece um homem corajoso, propõe-lhe ir ao Norte com os demais para trazerem uma tropa. Otálora aceita; de madrugada, estão a caminho, rumo a Tacuarembó. A partir daquela ocasião, o tropeiro começa a vivenciar diferentes experiências, cuja vida lhe propicia vastos amanheceres e jornadas que possuem o cheiro do cavalo, uma vida nova e, às vezes, atroz; não obstante, venerada por muitos homens. Otálora mostrou-se um homem forte, que aprendeu o ofício rapidamente. 236 Em menos de um ano tornou-se um gaúcho, aprendendo “a montar, a entropilhar o gado, a carnear, a manejar o laço que subjuga e as boleadeiras que derrubam, a resistir ao sono, às tormentas, às geadas e ao sol, a tanger com o assobio e o grito” (BORGES, 1999, p 608). Durante esse tempo de aprendizado, ele vê Bandeira apenas uma vez, embora o tenha muito presente, pois, o fato de ser homem de Azevedo Bandeira o fazia temido por todos. Ele estava satisfeito com o rumo que dera à sua vida, tinha tudo o que almejava: emprego, respeito, o temor das pessoas... aparentemente não necessitava de nada. Era escravo do trabalho, mas sentia-se feliz com o que conquistara. Essa felicidade também era fruto de um descontentamento incessante, uma vez que almejava mais, desejava tudo quanto o patrão possuía e isso o impulsionava a conquistar a confiança de Bandeira, pois, ainda que não lhe faltasse nada, parecia faltar-lhe o essencial: apoderar-se da riqueza e do poder que pertenciam a Azevedo Bandeira. Para Otálora conseguir o que ambicionava era preciso lutar por seus ideais, mesmo sabendo que poderia morrer a qualquer momento. Blanchot (2007, p. 188) afirma que “[...] o homem dispõe de uma capacidade de morrer que ultrapassa em muito e de certo modo infinitamente o que lhe é necessário para entrar na morte e, desse excesso de morrer, ele soube admiravelmente fazer para si um poder [...]”, metendo-se a trabalhar e tornando-se um produtor. Apesar disso, não se sentia triunfante, pois não conseguia dar-se um sentido; afinal, alimentava o desejo daquilo que não podia alcançar. [...] desejo portanto dessa falta infinita que é o desejo, dessa indiferença que é o desejo, desejo da impossibilidade do desejo, levando o impossível, escondendo-o, revelando-o, desejo que nisso é o acesso ao inacessível, a surpresa desse ponto a que só se tem acesso fora de acesso, ali onde a proximidade do distante só se dá no distanciamento, como, de um tal acesso, o pensamento – supondo-se que ele seja aí afirmado por um instante – poderia jamais regressar e daí tornar a trazer, senão um novo saber, ao menos, à distância de uma lembrança [...] (BLANCHOT, 2007, p. 194). Lembrança essa que o conduzia a pensar a morte como algo, se não previsível, possível. Mesmo assim, não desistiu de seus objetivos. Os agenciamentos maquínicos, povoados de desejos e devires, impulsionam Otálora a sempre querer e fazer mais, objetivando uma realização pessoal a qual 237 somente se concretizaria se todos os agenciamentos de desejos passassem por um processo de desdobramento que propagasse determinados fluxos de desterritorialidades os quais visassem a territorialidades, com o intuito de atingir o “ponto em que alguém já não procura ou já não apreende um objeto e tampouco se apreende como sujeito [...] um desejo assim é totalmente indeterminado, e é ainda mais penetrado pela falta” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 105). Esse desejo torna-se castrado no momento em que Otálora morre e não consegue realizar-se, sendo traído inclusive pela mulher amada, que se vê obrigada a compactuar com Bandeira para ter a vida resguardada. Seguramente, todos os pensamentos lhe sobrevieram, fazendo com que ocorresse no interior do tropeiro o acondicionamento de um conjunto que envolvia uma violência de espírito163 (quando arquitetou a destruição de Bandeira e a tomada de poder); os delírios do coração (que estão relacionados tanto aos aspectos supracitados quanto ao desejo pela mulher do patrão) e uma transcendência noturna (que o conduzia a praticar a liberdade de agir) sugerindo que é mais fácil executar os planos enquanto todos dormem ou com todos reunidos em um bar. É possível que, de acordo com Blanchot (2007, p. 173-174): Essa relação do desejo com o esquecimento como aquilo que se inscreve previamente fora da memória, relação com aquilo de que não pode haver recordação e que sempre precede, apaga a experiência de um traço, esse movimento que se exclui e que, por essa exclusão, se designa como exterior a si próprio, requer assim uma exterioridade jamais articulada: inarticulada. Tal relação ocorre quando Otálora resolve confiar e confidenciar seus planos a Ulpiano Suárez, o guarda-costas de Azevedo Bandeira, um sujeito que fala pouco e de maneira abrasileirada, a quem “[...] Otálora não sabe se atribui sua reserva a hostilidade, a desdém ou a mera barbárie. Sabe, isso sim, que para o plano que está maquinando tem de ganhar a amizade dele” (BORGES, 1999, p. 610). Algo que lhe custará muito caro, pois, sem perceber, assina sua própria morte. Quando o tropeiro resolve confidenciar seus planos, decide constituir um plano de imanência que agregue as linhas abstratas e de fuga visando, além de buscar a ajuda do outro, a conquistar seus ideais. Neste sentido, o que Otálora faz reside num agenciamento o qual “[...] expressa e faz um desejo construindo o plano 163 As expressões em itálico são utilizadas por Maurice Blanchot, no livro A conversa infinita 2. São Paulo: Escuta, 2007, p.180. 238 que o torna possível, e, tornando-o possível, o efetua” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 112), Sempre que é agenciado e delineado sobre um plano de imanência, ou de composição, o desejo passa a ser constituído a partir desse agenciamento, por isso que o desejo atua como “[...] o operador efetivo, que se confunde, a cada vez, com as variáveis de um agenciamento” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 121). Na ocasião em que Otálora opta por confidenciar seus planos e confiar em Ulpiano Suárez, exerce um movimento ousado despertando em si tanto a esperança quanto o desejo de algo maravilhoso, cujo silêncio do outro o impulsiona a acreditar que havia uma conivência. Ele via o homem de Bandeira como alguém inofensivo, taciturno, discreto; sendo assim, sairia ileso. Presunçosamente, o tropeiro via-se como um vencedor em meio a um mundo que o ameaçava constantemente e, no entanto, sentia-se atraído, fascinado pela imagem de vitorioso que projetou sobre si mesmo. As mudanças que estava vivenciando em meio aos homens de Azevedo Bandeira mostram o processo de metamorfose experienciado por Benjamín Otálora, haja vista que todas as ações levam-no a metamorfosear-se. Transformação esta que o permite considerar o acontecimento como algo real, ainda que isto se sobrepusesse ao real projetado pelo tropeiro. Todos esses acontecimentos demandaram ações e um tempo que sempre o conduziu à morte. O tempo se apresenta com ações destruidoras que tanto dá quanto tira “[...] e infinitamente mais, já que nos dá as coisas, os acontecimentos e os seres numa presença irreal que os eleva ao ponto em que nos comovem. Mas isso é ainda apenas a felicidade das lembranças espontâneas”164, as quais são perceptíveis quando, por exemplo, Bandeira põe no destino do tropeiro “[...] um alazão de extremidades negras [...] que ostenta arreios chapeados e carona com bordas de pele de tigre” (BORGES, 1999, p. 610). Um cavalo que simboliza a autoridade do patrão e passa a ser objeto de cobiça do tropeiro, que acaba desejando também, e com desejo rancoroso, a mulher de Bandeira, posto que “a mulher, os arreios e o alazão são atributos ou adjetivos de um homem que ele aspira a destruir” (BORGES, 1999, p. 610). Vemos que o tempo se mostra como um exterior, como um espaço imaginário que se une pela metamorfose do desejo, identificando-se e percorrendo toda a 164 BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 16. 239 realidade para experimentar o tempo como “[...] espaço e lugar vazio, isto é, livre dos acontecimentos que geralmente o preenchem. [...] espaço interior em devir onde as estases do tempo se dispõem numa simultaneidade fascinante, o que é tudo isso afinal?” (BLANCHOT, 2005, p. 17). A indagação do autor leva-nos a pensar esse tempo como um espaço no qual o personagem se percebe não somente como um vencedor, mas também como alguém capaz de enganar e ainda assim achar-se esperto o suficente para ninguém notá-lo como aquele sujeito que trapaceia. É um “[...] tempo que não está fora do tempo, mas que se experimenta como um exterior, sob a forma de um espaço [...]” que pode ser imaginário, conforme postula Blanchot (2005, p. 17). Um tempo que o faz sentir a transformação, mesmo que os acontecimentos não remetam a isso, metáforas que tomam a forma de imagens as quais são idealizadas por Otálora conjecturando um tempo futuro, onde tudo se torna real. Isso porque, “é necessário todo o tempo real para chegar a esse momento irreal” (BLANCHOT, 2005, p. 22). Um tempo que traz consigo a melodia expressa por meio das palavras as quais deslizam como uma navalha sobre a pele do indivíduo para dizer-lhe que a morte se aproxima e no entanto ele não a percebe, posto que não a toca. Para Didi-Huberman (1998, p. 31), “[...] ver só se pensa e só se experimenta em última instância numa experiência do tocar”, algo impossível no que concerne à morte. Era preciso que Otálora fechasse os olhos para contemplar a passagem do tempo e a chegada da morte abrindo-se para um vazio que ora o olhava, ora o tocava, ora o escolhia. Mas também era preciso abrir os olhos para considerar o que não era crível descortinar e que, todavia, o olhava como algo que estava prestes a perder. Segundo Didi-Huberman (1998, p. 41), o que o sujeito vê “[...] será eclipsado, ou melhor, revelado pela instância legiferante de um invisível a prever”; não obstante, o que o olha (o observa) “[...] se ultrapassará num enunciado grandioso de verdades do além, de Alhures hierarquizados” que subvertem a cisão aberta em nós de quem olha para o indivíduo que pensa estar presenciando algo concreto, palpável. A morte surge como um acontecimento que deveria sobreviver, na vida, ao próprio morrer, tal qual a vida subsiste a Otálora. Ele estava diante do inevitável e da certeza de que tudo culminaria com o inacessível, o invisível (ou imprevisível) destino o qual deveria cumprir sem que 240 houvesse tempo de questioná-lo. Uma morte que não figura como acidente, pois todos sabiam das intenções de Azevedo Bandeira, bem como do que era capaz de fazer para alcançar seus objetivos. A morte prefigura-se invisível para mostrar que não é tão terrível quanto parece; o que morre é o organismo. Enquanto acontecimento, a morte simboliza um ponto positivo, porque o sujeito sempre esteve em determinado lugar. O continuum da vida expressa um corpo sem órgãos livre o qual sobreviveu a tudo e a todos, “[...] pois é o que resta quando tudo foi retirado; é a réstia de vida que a morte nunca poderá colher em sua sombra” (CORRÊA, 2009, p. 35). Mas, esse corpo sem órgãos não é suficiente para salvar o sujeito; isso porque não basta um espaço liso (e livre) para que ele se desvie da morte. Faz-se necessário organizar, conjurar o organismo para que se possa experimentar os fluxos desejantes os quais sejam convenientes para se traçar uma linha de fuga adequada, prudente. O fato de possuir um corpo sem órgãos significa que o personagem pode apresentar um câncer o qual pode levá-lo ao suicídio, para isso ele conta com um inconsciente maquínico produtivo. E é esse inconsciente que o conduz à morte. Na realidade, Otálora vê em Bandeira um simulacro que não representa nada, nenhuma ameaça, ou pelo menos nada que não possa ser controlado, eliminado. A ideia daquilo que ele olha prevalece sobre aquilo que consegue ver e acaba fazendo com que veja apenas o que deseja. Não existe a cristalização do que vê; há, portanto, a subjetividade de ressonâncias cuja produção de sentidos esbarra em agenciamentos de enunciação e de desejos os quais representam o processo de desterritorialização/reterritorialização desse sujeito que vê e que olha apenas o que lhe convém. Guattari (1988, p. 43) afirma: É da fórmula de seu núcleo maquínico que um agenciamento tira seu maior ou menor grau de liberdade, mas esta fórmula é fundamentalmente metaestável. Enquanto tais, as máquinas abstratas que a compõem não têm nenhuma consistência existencial “real”: não têm nenhuma “massa”, nenhuma “energia” própria, nenhuma memória. São apenas as indicações infinitesimais, hiper-desterritorializadas, da cristalização de um possível entre estados de coisas e estados de signos. Tudo isso acaba expressando o grau de realidade e o grau de abstração daquilo que Otálora via e olhava, notadamente porque sua voz sempre se reportava a uma face que oscilava entre o real e o imaginário, produzindo resultados de 241 reterritorializações que incidiam sobre as máquinas desejantes cujos “[...] desafios concernem aos olhos do desejo, tudo aquilo que no cosmos, sócio e interioridade, nos olham; tudo o que faz que ‘aquilo nos olhe’” (GUATTARI, 1988, p. 84). As estratificações e as segmentações que permeiam o universo de Benjamín Otálora se apoiam umas nas outras ao passo que se revezam por meio de uma operação cumulativa de inibição e de despotenciação, de modo que os desejos evocados se tornam ameaçadores e também são parte de uma ordem fundada na preservação dos limites, de um status quo que não deixa de representar o bloqueio de tudo o que poderia se desenvolver fora das normas e do sistema impetrado por Azevedo Bandeira. Os olhares que tomam posse dos territórios acabam agenciando linhas de fuga às quais delineiam desterritorializações que permitem a Otálora entrever novos agenciamentos maquínicos de desejos, os quais o conduzem a toda parte e a lugar nenhum, exprimindo uma angústia que é imprescindível à condição humana. É possível afirmar que “[...] o vazio e o invisível se encontram maquiados, povoados por simulacros que veicularão”165 buracos negros os quais são desdobrados em agenciamentos de desejos que implicam em novas mudanças, num processo de desterritorialização que, necessariamente, o levará ao fim que “lhe desejaram os deuses”, ou ao fim que ele mesmo procurou quando optou por não entregar a carta a Bandeira. A predisposição para reterritorializar-se sobre a própria desterritorialização é o que determinará a capacidade nômade do personagem, ao mesmo tempo em que pode aprisioná-lo em seu próprio devir, ainda que as linhas de fuga lhe sirvam como uma esperança no sentido de que o plano dará certo e tudo ocorrerá conforme esquematizado. Otálora arquiteta, organiza e executa seus projetos. O agenciamento maquínico do desejo cristaliza os pontos em execução potencializando palavras-ações as quais se configuram como algo impossível e que acabam perfazendo movimentos de desterritorialização com o intuito de formar novos territórios, sobretudo existenciais, os quais também estão relacionados com as fissuras produzidas através dos agenciamentos de desejos. 165 GUATTARI, Félix. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Campinas: SP: Papirus, 1988, p. 88. 242 O que vemos é uma multiplicidade imanente do inconsciente que se prolifera por meio dos fluxos desejantes os quais trazem consigo sonhos e rizomas que são capazes de fazer o personagem produzir situações diferentes daquelas que estão estabelecidas, sem medo das consequências que lhe sobrevirão. Um processo que ocorre a partir do que determina a própria existência desse sujeito que almeja, acima de tudo, o espaço do outro como forma de avultar-se. Otálora ocupa o lugar de uma atividade instintiva a qual o encaminha para uma reflexão consciente a partir da qual ele pode perceber, embora não aceite, o perigo que o ronda. Através da percepção, ele conhece o perigo; porém, a produção inconsciente não o permite acreditar que algo possa fugir-lhe o controle, levando-o a agir como se tudo estivesse sob seu domínio, numa atividade certa e infalível, própria do inconsciente e através da qual se estabelecem os fins e os meios de sua realização. Otálora age por instinto, numa ação do inconsciente cujo meio é determinado pelo sujeito pensante numa temporalização que pressupõe sempre diferenciação de forças, cisão, separação e conflitos. O ponto fulcral é que as linhas de fuga dobram-se, desdobram-se e redobram-se imprimindo uma coragem característica de Otálora, a qual o permite desterritorializar-se e reterritorializar-se com a mesma facilidade com que maquina destruir Azevedo Bandeira. O desejo operante não descansa enquanto não consegue (ou pensa ter conseguido) ludibriar o outro, apoderando-se de toda sua riqueza, dos homens de confiança e da mulher, que sempre aparece como exemplo de submissão a esse homem que detém todo poder e, embora submissa, foi capaz de traí-lo com o tropeiro que intentava contra a vida dele, almejando sua fortuna. O inconsciente maquínico é alimentado por meio dessa concepção de desejo com o intuito de preencher suas hiâncias. A satisfação do desejo e o preenchimento dos vazios mantêm uma relação basilar com a morte; por essa razão, quando não consegue realizar-se e tem o desejo postergado, independente de quais sejam os motivos, o personagem vê-se frustrado perante o que ambiciona, iniciando um processo de conscientização que o faz pensar a morte como algo inevitável. À medida que o desejo se configura como maquínico torna-se o único agente do inconsciente, por isso é desterritorializado e, por mais que o personagem busque novos territórios, sempre estará submetido a ações de desterritorialização, produzindo ações reais as quais resultam das sínteses produtivas do inconsciente que têm início numa linha de fuga. Para Corrêa (2009, p. 52), “tudo sempre ameaça 243 cair num buraco negro, e seu perigo imanente não devém da linha de fuga que se toma, mas da falta de cuidado, arte e prudência ao traçá-la”. O autor reitera que: Cada linha tem seus perigos, e uma linha de fuga nunca será bastante por si mesma. Sua experimentação ativa faz de seu manejo uma espécie de arte ética que demanda uma série de cuidados, regras de prudência, entregues a um trabalho sempre por fazer, pois é o trabalho de fazer-devir (CORRÊA, 2009, p. 52). Significa dizer que as linhas de fuga também possuem fragilidades e quem as maneja deve saber que percurso tomar para não torná-las linhas de completa destruição as quais conduzem o personagem diretamente à morte, mormente porque as linhas de fuga estão sujeitas à queda. Percebemos, na ocasião em que Otálora morre, a evanescença da voz do sujeito como se fosse um animal que “[...] morrendo, tem uma voz, exala a alma em uma voz e, nesta, exprime-se e conserva-se enquanto morto”, segundo Agamben (2006, p. 66), mostrando a voz e a memória da morte para dizer que o vivente está morto, numa linguagem que articula e detém a voz da morte para “[...] tornar-se voz da consciência, linguagem significante” (AGAMBEN, 2006, p. 67). É a “vida do espírito” que, por meio da morte violenta, se inscreve no lugar da voz como uma morte que rememora e preserva a si própria num devir, agora, da consciência, conforme assinala Agamben (2006, p. 68-69). A morte é vista como um desdobramento da vida, porque ainda que o homem não a veja como tal e que continue encontrando dificuldades para enfrentá-la e aceitá-la em sua própria vida, precisa estar ciente de que tudo que um dia lhe fora dado igualmente lhe será tirado. Por este motivo, todos os esforços de Benjamín Otálora para conseguir ocupar o lugar de Azevedo Bandeira foram inúteis. De que adiantou enfrentar tudo e todos em prol de um desejo que lhe custou a vida? Se tivesse escolhido outros caminhos visando a objetivos os quais não incluíssem a trapaça, os desejos impossíveis e a eliminação de outras pessoas, é possível que tivesse escrito outra história de vida e a morte ainda o estivesse aguardando. 244 5 TECENDO AS CONSIDERAÇÕES FINAIS “Melhor é a boa fama do que o unguento precioso, e o dia da morte melhor do que o dia do nascimento”. Eclesiastes 7:1 Quando nos propusemos a tratar, nesta tese, da alegoria, metáfora e morte em alguns contos de Jorge Luis Borges tínhamos ciência de que nossa tarefa seria desafiadora, porque estávamos diante de um autor que prima por uma escrita labiríntica e, como tal, sempre se mostra inacabada; logo, é mister afirmar que nosso texto também se encontra inacabado, haja vista que as possibilidades de leitura das narrativas apresentadas ao longo desta pesquisa não se esgotam. Cada capítulo que compõe o corpus desta tese objetivou permitir que o leitor adentrasse aos labirintos borgeanos através de uma escrita que imprimisse, por meio dos múltiplos espaços percorridos em cada conto, a certeza de que o silêncio o qual envolve esse tecido alegórico e metafórico possibilitasse considerar a leveza e a perspicácia com que Borges mostra personagens os quais evidenciam, de certa forma, aspectos (ou situações) que, analogamente, fazem parte da realidade dos indivíduos que se encontram ora no espaço de suas babéis e labirintos particulares, ora em meio aos vários desertos existenciais, ora como corpos sem órgãos buscando desterritorializar-se para (re)territorializar-se e, quiçá, como Benjamín Otálora, rumo a sonhos que os conduzem à própria morte sem que eles saibam. Sabemos que a metáfora participa essencialmente da elaboração do universo particular do autor, bem como constitui uma operação complexa do mundo do qual fazemos parte, o que instigou sobremaneira nossa vontade de buscar respostas à luz dos autores estudados, os quais abordam questões que nos levaram a refletir acerca da morte e do morrer sob a perspectiva alegórica, mostrando como pensamos, construímos e agimos sobre nossa realidade, mas também a forma como elaboramos um conhecimento que, por vezes, torna-se incontornável tanto no que concerne aos aspectos físicos e de conceitos quanto aos aspectos relativos à imaginação e à criatividade, próprios da espécie humana. Embora tenhamos trabalhado as particularidades de cada narrativa, foi possível observar que a alegoria, enquanto ornatus discursivo, apresenta um modo de composição justaposta que possibilita a desmontagem e a remontagem do 245 discurso de outrem para dizer o próprio e o figurado pormenorizadamente, posto que também se mostra como metáforas do pensamento e fomenta, por assim dizer, as atitudes dos personagens permitindo-lhes atingir o ápice de suas realizações, independente do preço a ser pago. Nosso intuito não foi decifrar os vários aspectos alegóricos presentes nos contos de Jorge Luis Borges, tampouco definir a alegoria, pois, se assim o fizéssemos, estaríamos reduzindo o valor e o significado que esta possui; contrariamente, objetivamos mostrar que para compreendê-la seria preciso fazer, por exemplo, conforme a concepção de Hansen (2006), uma leitura intertextual a qual permitisse identificar o sentido revelado em cada texto como algo real sabendo-se que essa capacidade de entendimento seria ampliada na medida em que fossem realizadas as projeções das imagens, tendo ciência de que estas permaneceriam constituídas pelos múltiplos enigmas e igualmente ressaltá-la sob a perspectiva benjaminiana da revelação de uma verdade a qual sempre permanece oculta, como uma forma de expressão onde o melancólico surge como forte expressão da morte. Ao final deste percurso, percebemos que a alegoria aparece como algo perene que permite ressignificar as dimensões nas quais os personagens se apresentam podendo-se evidenciá-la sob a perspectiva do dizível-indizível, cujo significado torna-se impossível de ser revelado e a palavra impossível de ser decifrada, procurando-se concebê-la como uma tessitura de significados os quais visam a delinear múltiplas construções de saberes, excluindo-se a ideia de unificação de leituras e sua totalização. Desta forma, pretendeu-se apresentar a atuação de uma alegoria que se bifurca construindo, desconstruindo e reconstruindo os significados por meio da relação imagem-movimento-tempo a qual encaminha para a morte sem perder de vista o que o alegorista pretende salvar, mas valorizando aquilo que outrora fora desvalorizado para mostrar o liame de sentidos a serem elucidados nos contos analisados. Salientamos que a alegoria, urdida à temporalidade, evidencia uma interpretação inesgotável no sentido de que retrata a construção de um pensamento considerando diferentes renovações de significados. A discussão dos capítulos igualmente primou pela explanação das nuances metafóricas com o intuito de desenredar as relações que se instituem em torno do discurso (implícito ou explícito), apresentando a metáfora como uma figura que induz 246 o sujeito a refletir acerca das palavras, levando em consideração o contexto no qual se encontram, visto que dizem respeito ao cognitivo e à maneira como estão articuladas. Vimos que a metáfora surgiu como um elemento transformador que se dispôs a desvendar as semelhanças entre os vocábulos e coaduná-los, dando-lhes um novo aspecto, constatando a desmontagem dos vocábulos e a montagem de palavras que denotaram a tessitura de novos termos e seus significados. Por meio da análise dos contos, foi possível compreender que pensamento e metáfora se harmonizavam evidenciando a relação pensamento-linguagem-ação, cujo contexto sempre atuou, no que tange ao sentido conferido à palavra, como um “divisor de águas”, tendo em vista que tal figura prima pelo significado atribuído a partir das diversas situações em que o vocábulo, frase e/ou termo aparecem, possibilitando novas realidades. As narrativas propiciaram perceber imagens poético-metafóricas que tiveram o(s) sentido(s) descortinado(s) por meio de argumentos contundentes, os quais foram mapeados ao longo das diferentes alegorizações suscitando novas condições e possibilidades de entendimento aos textos, haja vista que dobraram-se, desdobraram-se e redobraram-se por meio de cenas que conseguiram ressignificar as vivências tanto dos personagens quanto do próprio poeta, instituindo uma junção de sentidos-imagens capazes de transformarem-se em alegorias fidedignas cujo locus metafórico manteve-se como o pensamento. Por este motivo, algumas situações expostas passaram por um processo de territorialização/desterritorialização/reterritorialização na ocasião em que revelaram funções diferentes daquelas que estavam previstas. Tais feitos chegaram, em momentos distintos, a ocultar o sentido literal para apropriar-se do metafórico no intuito de ressignificar a vivência dos personagens e permitir uma abrangência de significados a qual remete às experiências do ser humano; para tanto, foi preciso considerar o uso das palavras ou expressões e o que pretendiam mostrar (ou insinuar) ao leitor. No tocante à morte e ao devir, nossa intenção foi mostrar que tanto no âmbito da literatura quanto da filosofia, a morte atua como constructo da vida. Pois, no momento em que o sujeito tenta atribuir um sentido à morte também está buscando dar sentido à vida, procurando encará-la como o único fim presumível e inevitável. 247 Todos os contos expõem a morte como a confirmação de que há um fim para a vida, mas também a certeza de que uma está agregada à outra. Neste sentido, vimos que a morte e o morrer são ocorrências naturais e únicas na vida de todos, sobretudo porque estão inscritas desde o nascimento do ser, ainda que a morte suprima o sentido da vida. A diegese dos contos mostrou que, se a morte for ponderada enquanto palavra, também se caracteriza como ausência tanto do ser quanto da própria palavra (falada ou sentida) para revelar que o aniquilamento de ambas faz parte da vida do sujeito, mas também surge como substrato da individuação onde tudo ocorre no limiar da vida e da morte, no intervalo da morte e do morrer. Os personagens borgeanos exprimem os sentimentos da humanidade quando apresentam a morte como uma reflexão sobre a mortalidade do homem, mas também como um acontecimento o qual revela ao indivíduo que morrer igualmente significa renunciar à vida estando ciente de que tudo é passível de ruína, mostrando, por assim dizer, o ponto fronteiriço entre o que aproxima ou distancia o homem da relação paradoxal vida e morte. Já o devir compreende a multiplicidade de situações que o indivíduo vivencia ao longo da vida denunciando os desdobramentos desse sujeito e as lutas que ele trava (muitas vezes consigo mesmo) para conseguir o que almeja. O devir se apresenta como consistência do real no instante em que o homem busca a desterritorialização por meio das linhas de fuga as quais constituem agenciamentos maquínicos e, por sua vez, expressam o desejo de desmontagem para uma posterior remontagem. Nos contos em análise, o devir se apresentou no limiar de situações que sempre apontavam para linhas abstratas e de fuga as quais eram utilizadas com o intuito de realização pessoal, cujos agenciamentos maquínicos culminavam com desterritorializações capazes de consolidar os desejos nutridos pelos personagens através de reterritorializações e novas descobertas. Vimos, no percurso da diegese borgeana, que o devir também está representado por meio do pensamento e da linguagem que se realiza através do silêncio, fazendo sublimar o real, permitindo aos personagens abdicar dos territórios repetidos e partir em busca de novas expectativas de vida, novas histórias, ainda que estas, por vezes, os levassem à morte. 248 Como os personagens representam a humanidade e o principal critério para o agenciamento maquínico, estes estão susceptíveis a viver ou a morrer. Logo, o devir animal representado por meio dos personagens, semelhantemente à escrita do autor, se mostra solitário, em meio a desertos existenciais onde as linhas de fuga propagam a essência de cada um no momento em que buscam uma realidade que ora se mostra reproduzida na desmontagem dos agenciamentos ora através do dilaceramento de sua própria morte, sem dar-lhes a possibilidade de escolher entre o viver e o morrer, ficando à mercê de um silêncio que fala o que sentem e o que pensam, ao mesmo tempo em que tolhe a fala de cada um. A analogia morte e devir simboliza a montagem e a desmontagem de uma escritura que institui agenciamentos maquínicos os quais traduzem o dilaceramento do ser por meio de um devir-animal o qual mostra que a morte é e sempre será inevitável. Esta, humaniza e desumaniza o indivíduo, tendo em vista que o permite perceber as limitações desse processo de decomposição a que ele está submetido, o qual é próprio da morte. Talvez seja esta a razão de o sujeito estar sempre conjecturando linhas de segmentaridade as quais o conduzam para fora dos labirintos e do deserto existencial em que se encontra. Na verdade, os personagens expõem uma relação limítrofe com os lugares de perda que se espraiam além de suas próprias fronteiras, propiciando-lhes um deslocamento provocado pelos agenciamentos maquínicos e pelas linhas abstratas e de fuga. Isto justifica a presença significativa da alegoria da morte enquanto metáfora da vida nos contos de Jorge Luis Borges, uma vez que em todas as narrativas analisadas nesta pesquisa a morte não se configura como tema principal, mas emerge como elemento desencadeador das discussões apresentadas pelo referido autor, mostrando que o homem não deve se entregar à morte e vê-la como o fim de todas as coisas, mas, por vezes, como uma solução para seu sofrimento. À guisa de conclusão, esperamos que no final deste percurso nosso trabalho tenha cumprido os desígnios de interesse os quais estavam articulados à linguagem, ao discurso e à escritura encaminhando-os tanto ao estatuto do ficcional quanto ao do ontológico. Os exemplos utilizados no decorrer desta tese serviram-nos para transcender a esfera do mundo real e refletirmos acerca das inquietações existenciais do homem à luz da literatura, da filosofia e da escritura borgeana, mostrando que alegoria, 249 metáfora e morte se enredam nesse processo de construção, desconstrução, reconstrução. Estas demonstram uma relação ininterrupta com as vivências do ser no que tange aos aspectos propostos, sobretudo, por Deleuze, Guattari e Blanchot quando tratam desse sujeito que vive em busca de um “porto seguro”, por isso esse constante desterritorializar-se/reterritorializar-se num eterno retorno de si mesmo. Estamos cientes de que as discussões literárias e filosóficas provocaram uma nova organização do saber no que concerne aos contos borgeanos, haja vista que diferença e repetição apresentam relações intrínsecas e organizam o espaço vazio deixado pelo escritor no momento em que tenta urdir o implícito ao explícito possibilitando outras formas de escrita e, quiçá, novas interpretações e caminhos os quais não foram previstos, ainda que estes possam ser interrompidos por um desvio de percurso, por caminhos tortuosos, por labirintos que levam a algum lugar ou a lugar nenhum, para um rizoma a ser decifrado em um tempo desconhecido. Procuramos construir relações de sentido que urdiram diferença, repetição, rizoma, agenciamentos, linhas de fuga... conduzindo o tempo ora como efêmero ora movimentando-se pela biblioteca e pelos labirintos de Borges, articulando os simulacros às situações tanto de erros quanto de tentativas de acertos, procurando entender os territórios infinitos que constituem os agenciamentos abstratos, posto que também estão presentes os emblemas que metaforizam a escritura de Jorge Luis Borges. O universo, o deserto, os espelhos, a biblioteca (o livro, o homem, a palavra), o morto, a loteria, os labirintos, a escrita, sonho e realidade eternizam a escritura borgeana numa articulação a qual envolve supressão e aniquilamento ao mesmo tempo em que deixa à mostra os desejos dizíveis e indizíveis em ecos de palavras prisioneiras que, paradoxalmente, traduzem o desejo de expressar o que está reprimido, metamorfoseando a travessia da letra. Se não nos demoramos mais em um assunto ou noutro foi porque nosso intuito era mostrar que os mecanismos de escrita também primam por anunciar um desvio e uma montagem/desmontagem da escrita borgeana, pois sabemos que os caminhos trilhados pelos personagens conduziriam ao texto de um texto, de um texto, a lugares diferentes, ou quem sabe semelhantes; no entanto, esperamos ter chegado a um ponto de partida para novas descobertas. Concluímos que a morte é um signo que exprime a ausência e o nada, mas, ainda que represente um paradoxo e o maior temor do ser humano, do mesmo 250 modo tem a habilidade de dar sentido à existência humana. O fenômeno da morte descortina o ser no intuito de que ele perceba que morrer significa, ao menos para alguns, desistir da vida. Sendo assim, o temor à morte representa também o temor à vida, no instante em que essa passa a ser vista como algo aterrorizador. Por este motivo surge a necessidade de que o indivíduo a perceba “tanto como instância libertadora e reafirmadora da identidade humana em sua dimensão de corte do sofrimento quanto, também, como elemento capaz de nos auxiliar a refletir sobre nossa frágil e precária humanidade” (JESUS, 2010, p. 46). A morte atua como uma foice que é diferida indiscriminadamente, sem levar em consideração o status daqueles a quem escolhe, apontando sinal de absoluta igualdade entre os seres, nivelando-os aos mesmos destinos. Decerto, o inacabamento desta tese permitirá ao leitor ponderar em relação a novas formas de leitura, ou mesmo ler o que não foi escrito, compreendendo que a “dor de existir”, por vezes, é reinvestida em artefatos que primam por substitui-la, ou por conservá-la rachada, em uma morte melancólica e sutil a qual termina antecipando, alegoricamente, a morte real. 251 REFERÊNCIAS DO AUTOR BORGES, Jorge Luis. O fazedor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. Los conjurados. Obras completas. vol. 2. Buenos Aires: Emecé, 1989. ______. Os conjurados. Tradução de Pepe Escobar. Madri: Editora Três, 1985. ______. As Kenningar. In: História da Eternidade – 1936. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. Inscrição em qualquer sepulcro. In: Fervor de Buenos Aires. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. Um Teólogo na Morte. In: História Universal da Infâmia – 1935. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. A Metáfora. In: História da Eternidade – 1936. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. A Loteria em Babilônia. In: Ficções – 1941. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. A Biblioteca de Babel. In: Ficções – 1941. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. A Escrita do Deus. In: O Aleph – 1949. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. O morto. In: O Aleph – 1949. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. Os Dois Reis e os Dois Labirintos. In: O Aleph – 1949. Obra Completa. São Paulo: Globo, 1999, v. 1. ______. El espejo e la máscara (1975). In: El libro de arena. Madri: Biblioteca Borges: Alianza Editorial, 2008. ______. O espelho e a máscara (1975). In: O livro de areia. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ______. El libro de arena (1975). Madri: Biblioteca Borges: Alianza Editorial, 2008. ______. O livro de areia (1975). Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ______. El Hacedor. Buenos Aires: Emecé Editores, 2005. 252 ______. Esse Ofício do Verso. Organização de Calin-Andrei Mihailescu. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ______. Discussão (1932). Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ______. Borges oral. Madrid: Biblioteca Borges: Alianza Editorial, 2008. BORGES, Jorge Luis; CASARES, Adolfo Bioy [H. Bustos Domecq]. Um modelo para a morte; os suburbanos; o paraíso dos crentes. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Prefácio de Júlio Pimentel Pinto. São Paulo: Globo, 2008. BORGES, Jorge Luis; DI GIOVANNI, Norman Thomas. Ensaio Autobiográfico (1899-1970). Tradução de Maria Carolina de Araújo e Jorge Schwartz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 253 REFERÊNCIAS SOBRE O AUTOR BARTUCCI, Giovanna. Borges: a realidade da construção: literatura e psicanálise. Tradução de Sylvio Horta. Rio de Janeiro: Imago, 1996. BAUCHWITZ, Oscar. Federico. Deleuze e a literatura lúdica de Jorge Luis Borges. In: LINS, Daniel; GIL, José (Orgs.). Nietzsche/Deleuze: jogo e música. VII Simpósio Internacional de Filosofia. 2006. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação da Cultura, Esporte e Turismo, 2008. ______. Borges e Deleuze: em torno do lúdico. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (Org.). Borges rememorado. Natal: EDUFRN, 2009. BONACCINI, Juan Adolfo. Borges, nuestro Shakespeare. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (Org.). Eu, tu, Borges. João Pessoa: Editora Universitária, UFPB, 2003. CANTO, Estela. Borges à contraluz. Tradução de Vera Mascarenhas de Campos. São Paulo: Iluminuras, 1991. CULTURA DE LA NACIÓN. La Maga: Notícia de Cultura. Homenaje a Borges. [s.n.]: Secretaria de Cultura de La Nación, n. 18, feb. 1996. 46p. Edición Especial. FARIA, Álvaro Alves de. Borges, o mesmo e o outro. São Paulo: Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Transversais). FERNANDES, Maria da Penha Campos. Jorge Luis Borges: la alegoría irónica y los sentidos de la historia (um manual de iniciación). Porto: Edições Ecopy, 2005. (Coleção de Estudos Literários 1). MACIEL, Maria Esther. Poéticas do artifício: Borges, Kierkegaard e Pessoa. In: MACIEL, Maria Esther; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Borges em dez textos. Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários (FALE-UFMG). Belo Horizonte: Sette Letras, 1997. MIRANDA, Wander Melo. A memória de Borges. In: MACIEL, Maria Esther; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Borges em dez textos. Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários (FALE-UFMG). Belo Horizonte: Sette Letras, 1997. MONEGAL, Emir R. Mário de Andrade/Borges: um diálogo dos anos 20. Tradução de Maria Augusta da Costa Vieira Helene. São Paulo: Perspectiva, 1978. ______. Borges: uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980. (Coleção Debates: 140. Dirigida por J. Guinsburg). MOREIRAS, Alberto. Desnarrativizando o aparato de estudo populista: “La loteria en Babilonia” de Jorges Luis Borges. In: MACIEL, Maria Esther; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Borges em dez textos. Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários (FALE-UFMG). Belo Horizonte: Sette Letras, 1997. 254 OLMOS, Ana Cecília. Por que ler Borges. São Paulo: Globo, 2008. (Coleção Por que ler. Coordenador Rinaldo Gama). PEIXOTO, Renato Amado. Entre infatigáveis espelhos: o lugar do espaço da história na literatura de Jorge Luis Borges. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (Org.). Borges rememorado. Natal: EDUFRN, 2009. POMMER, Mauro Eduardo. O tempo mágico em Jorge Luis Borges. Florianópolis: Editora da UFSC, 1991. PORTO, Maria Emília Monteiro. Borges e a história. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (Org.). Borges rememorado. Natal: EDUFRN, 2009. RAMOS, Juan Manuel García. La Metáfora de Borges. Madrid: Fondo de Cultura Econômica de España, 2003. RUSSO, Miguel. Cómo Empezar. Cultura de La Nación. La Maga: Notícia de Cultura. Homenaje a Borges. [s.n.]: Secretaria de Cultura de La Nación, n. 18, feb. 1996. 46p. Edición Especial. SARLO, Beatriz. Jorge Luis Borges, um escritor na periferia. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Iluminuras, 2008. SCHWARTZ, Jorge (Org.). Borges no Brasil. São Paulo: UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001. SILVA, Markus Figueira da. Perplexidade, tempo e memória: notas filosóficas de Jorge Luis Borges. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (Org.). Borges rememorado. Natal: EDUFRN, 2009. SOSNOWSKI, Saul. Borges e a Cabala. Tradução de Leopoldo Pereira Fulgêncio Júnior e Roney Cytrynowicz. São Paulo: Perspectiva, 1991. SOUSA, Ilza Matias de. A astúcia do dragão e a sabedoria da raposa: o alegre cinismo da ficção borgiana. In: MACIEL, Maria Esther; MARQUES, Reinaldo (Orgs.). Borges em dez textos. Curso de Pós-Graduação em Estudos Literários (FALE- UFMG). Belo Horizonte: Sette Letras, 1997. ______. O livro de areia. Borges e o tempo como SIFR. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (Org.). Borges rememorado. Natal: EDUFRN, 2009. ______. Borges, a ficção como arte das superfícies e o problema do infinito. In: SILVA, Markus Figueira da (Org.). Café Filosófico. Natal: Editora da UFRN, 2005. ______. Aleph, Borges e o trânsito filosófico. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (Org.). Eu, tu, Borges. João Pessoa: Editora Universitária, UFPB, 2003. SOUZA, Maria Eneida de. O século de Borges. Belo Horizonte: Autêntica/Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1999. 255 TAVARES, Bráulio (Org.). Contos fantásticos no labirinto de Borges. Tradução de Júlio Silveira et al. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. VASCONCELLOS, Jorge. O labirinto do tempo: Borges e o cinema. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (Org.). Eu, tu, Borges. João Pessoa: Editora Universitária, UFPB, 2003. VÁZQUEZ, María Esther. Jorge Luis Borges: esplendor e derrota – uma biografia. Tradução de Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Record, 1999. ______. Borges: esplendor y derrota. Barcelona: Tusquets, 1996. 256 REFERÊNCIAS GERAIS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da primeira edição brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução dos novos textos de Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Martins Fontes, 2007. AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Metáforas do poder. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980. ______. Metáforas da desordem: o contexto social da doença mental. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. AMORIM, Cláudia. A morte, a arte e a medusa. In: GREINER, Christine; AMORIM, Claudia (Orgs.). Leituras da morte. São Paulo: Annablume, 2007. (Leituras do corpo). ARISTÓTELES. Arte Poética. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007. ______. Retórica. Prefácio e introdução de Manuel Alexandre Júnior. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior; Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. (Coleção Obras Completas de Aristóteles). ARTAUD, Antonin. A arte e a morte. Tradução de Anibal Fernandes. Lisboa: Hiena Editora, 1985. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e documentação: referências: elaboração: Rio de Janeiro, 2002. ______. NBR 6024: informações e documentação: numeração progressiva das seções de um documento: apresentação: Rio de Janeiro, 2012. ______. NBR 6027: informação e documentação: sumário: apresentação. Rio de Janeiro, 2012. ______. NBR 6028: Resumos. Rio de Janeiro, 1990. ______. NBR 10520: informação e documentação; citações em documentos; apresentação. Rio de Janeiro, 2002. ______. NBR 14724: informação e documentação: trabalhos acadêmicos: apresentação. Rio de Janeiro, 2011. 257 BADIOU, Alain. Deleuze: o clamor do ser. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. BARBOSA, João Alexandre. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974. (Coleção Debates: 105. Dirigida por J. Guinsburg). BARTUCCI, Giovanna. A doença da morte: um direito de asilo. São Paulo: Annablume, 1998. BAUCHWITZ, Oscar Federico. Deleuze e a literatura lúdica de J. L. Borges. In: LINS, Daniel; GIL, José (Orgs.). Nietzsche/Deleuze: jogo e música. VII Simpósio Internacional de Filosofia. 2006. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação da Cultura, Esporte e Turismo, 2008. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Coleção Elogio da Filosofia). ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, v. 1. (Obras Escolhidas). BERGSTEIN, Lena. Segunda pele. In: DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. Evandro Nascimento (Org.). Tradução de Evandro Nascimento et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. Texto das palestras apresentadas no Colóquio Internacional “Jacques Derrida 2004: pensar a desconstrução – questões de política, ética e estética”, organizado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em parceria com o Consulado Geral da França, entre os dias 16 e 18 de agosto de 2004, no Teatro Maison de França, Rio de Janeiro. BERNARDO, Fernanda. Mal de hospitalidade. In: DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. Evandro Nascimento (Org.). Tradução de Evandro Nascimento et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. Texto das palestras apresentadas no Colóquio Internacional “Jacques Derrida 2004: pensar a desconstrução – questões de política, ética e estética”, organizado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em parceria com o Consulado Geral da França, entre os dias 16 e 18 de agosto de 2004, no Teatro Maison de França, Rio de Janeiro. BÍBLIA, Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Editor responsável Russel P. Shedd. 2. ed. São Paulo: Vida Nova; Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. BLACK, Max. Metaphor. In: Models and metaphor. Ithaca: Cornell University Press, cap. 3, 1955. ______. Modelos y metáforas. Madrid: Tecnos, 1966. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 1. A palavra plural (palavra de escrita). Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo: Escuta, 2010a. 258 ______. A conversa infinita 3: a ausência de livro, o neutro, o fragmentário. Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2010b. ______. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011a. ______. Uma voz vinda de outro lugar. Tradução de Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2011b. ______. A parte do fogo. Tradução de Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Rocco, 2011c. ______. A conversa infinita 2: a experiência limite. Tradução de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007. ______. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BRUNO, Mário. Lacan e Deleuze: o trágico em duas faces do além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. CALABRESE, Patricia. El poema como cuerpo. In: STEFANO, Mariana di (Coord.). Metáforas en uso. Buenos Aires: Biblos, 2006. CANTINHO, Maria João. Ensaio sobre o conceito de alegoria na obra de Walter Benjamin. Portugal: Angelus Novus, 2002. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. Tradução de J. Guinsburg e Miriam Chnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Coleção Debates). CAVALCANTI. Anna Hartmann. Símbolo e alegoria: a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume; Fapesp. Rio de Janeiro: DAAD, 2005. CHEVALIER, Jean. Diccionario de los símbolos. Colaboración de Alain Gheerbrant. Barcelona: Editorial Herder, 1986. CORRÊA, José de Anchieta. Morte. Coordenação de Alexandre de Oliveira Torres Carrasco. São Paulo: Globo, 2008. (Filosofia frente e verso). COSTA, Cláudio da. As dobras da imagem ou a visibilidade expandida. In: DELEUZE, Gilles. Sentidos e Expressões. Organização Jorge Cruz; Cláudio Costa et al. Prefácio de Cláudio Ulpiano. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006a. CRAIA, Eladio. Um acercamento da literatura deleuziana de Nietzsche. Cadernos Nietzsche. São Paulo: Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, n. 20, 2006. CULLER, Jonathan D. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Tradução de Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. 259 DASTUR, Françoise. A morte: ensaio sobre a finitude. Tradução de Maria Tereza Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002. (Coleção Enfoques. Filosofia). DAVIDSON, Donald. O que significam as metáforas. In: SACKS, Sheldon (Org.). Da metáfora. São Paulo: EDUC, Pontes, 1992. DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. (Coleção TRANS). ______. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 1999. (Coleção TRANS). ______. A dobra: Leibniz e o barroco. 3. ed. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. Campinas, SP: Papirus, 2005. ______. Sentidos e expressões. Organização Jorge Cruz; Cláudio Costa et al. Prefácio de Cláudio Ulpiano. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006a. ______. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Graal, 2006b. ______. Mistério de Ariadne segundo Nietzsche. Cadernos Nietzsche. São Paulo: Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, n. 20, 2006c. ______. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009a. (Estudos: 35. Dirigida por J. Guinsburg). ______. A imagem-movimento. Tradução de Sousa Dias. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009b. (Cinema 1). ______. A imagem-tempo. Tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro. Revisão filosófica de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2007. (Cinema 2). DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 1995a, v.1. (Coleção TRANS). ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1995b, v. 2. (Coleção TRANS). ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1996, v. 3. (Coleção TRANS). ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 1997a, v. 4. (Coleção TRANS). ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Editora 34, 1997b, v. 5. (Coleção TRANS). 260 ______. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010. (Coleção TRANS). ______. Kafka: por uma literatura menor. Tradução de Júlio Catañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977. (Série Logoteca. Direção de Jayme Salomão). DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Heloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva; Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Estudos: 271. Dirigida por J. Guinsburg). ______. Paixões. Tradução de Lóris Z. Machado. Campinas, SP: Papirus, 1995. ______. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2008. (Estudos: 16. Dirigida por J. Guinsburg). ______. Torres de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. ______. O animal que logo sou: (a seguir). Tradução de Fábio Landa. 2. ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2011. DÍAZ, Hernán. La perspectiva cognitivista. In: STEFANO, Mariana di (Coord.). Metáforas en uso. Buenos Aires: Biblos, 2006. ______. La metáfora de la definición científica. In: STEFANO, Mariana di (Coord.). Metáforas en uso. Buenos Aires: Biblos, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998. (Coleção TRANS). D’IORIO, Paolo. O eterno retorno. Gênese e interpretação. Tradução de Ernani Chaves. Revisão de Rosistela Pereira de Olivieira. Cadernos Nietzsche. São Paulo: Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, n. 20, 2006. DRAAISMA, Douwe. Metáforas da memória: uma história das ideias sobre a mente. Tradução de Jussara Simões. Bauru, SP: Edusc, 2005. (Coleção História). DUBOIS, Jean et al. Dicionário de Linguística. Tradução de Frederico Pessoa de Barros et al. São Paulo: Cultrix, 1999. DURAN, Marcos. A morte e a ciência. In: TRASFERETTI, José (Org.). Morte, qual seu significado? Entre a medicina, a filosofia e a teologia. Campinas, São Paulo: Alínea, 2007. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Tradução de Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2007. (Coleção Debates: 52. Dirigida por J. Guinsburg). 261 ______. Mito do eterno retorno. Tradução de José A. Ceschin. São Paulo: Mercuryo, 1992. FARIA, Ernesto (Org.). Dicionário Escolar Latino-Português. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1955. FILIPAK, Francisco. Teoria da metáfora. Curitiba: HDV, 1983. FINGER, Ingrid. Metáfora e significação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. (Coleção Filosofia: 46). FITZGERALD, F. S. In: DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. (Estudos: 35. Dirigida por J. Guinsburg). FONTES, Joaquim Brasil. As obrigatórias metáforas: apontamentos sobre literatura e ensino. São Paulo: Iluminuras, 1999. FORNAZARI, Sandro Kobol. A diferença e o eterno retorno. Cadernos Nietzsche. São Paulo: Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, n. 20, 2006. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007. (Estudos: 142. Dirigida por J. Guinsburg). GIL, José. Ritornelo e imanência. In: LINS, Daniel; GIL, José (Orgs.) Nietzsche/Deleuze: jogo e música. VII Simpósio Internacional de Filosofia. 2006. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação da Cultura, Esporte e Turismo, 2008. GODINHO, Ana. Eterno retorno e jogo ideal – o roubo ideal. In: LINS, Daniel; GIL, José (Orgs.). Nietzsche/Deleuze: jogo e música. VII Simpósio Internacional de Filosofia. 2006. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação da Cultura, Esporte e Turismo, 2008. GOETHE, Johann Wolfgang Von. Máximas e Reflexões. Tradução de José M. Justo. In: Obras Escolhidas de Goethe. v. 5, Círculo de Leitores: Lisboa, 1992, p.188-189. GOODMAN, Nelson. A metáfora como trabalho adicional. In: SACKS, Sheldon (Org.). Da metáfora. São Paulo: EDUC, Pontes, 1992. GUATTARI, Félix. O inconsciente maquínico: ensaios de esquizo-análise. Tradução de Constança Marcondes César e Lucy Moreira César. Campinas: SP: Papirus, 1988. ______. Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 1992. (Coleção TRANS). GUIMARÃES, César. O rosto do outro: ficção e fabulação no cinema segundo Deleuze. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade. Rio de 262 Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desportos do Estado, 2001. GREINER, Christine. A experiência da morte como potência de vida. In: GREINER, Christine; AMORIM, Cláudia (Orgs.). Leituras da morte. São Paulo: Annablume, 2007. (Leituras do corpo). HADDOCK-LOBO, Rafael. Um jogo de diferenças: Derrida entre Lévinas e Nietzsche. In: LINS, Daniel; GIL, José (Orgs.). Nietzsche/Deleuze: jogo e música. VII Simpósio Internacional de Filosofia. 2006. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação da Cultura, Esporte e Turismo, 2008. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: SP: Hedra; Campinas: São Paulo: Editora da Unicamp, 2006. KANT, Clenres; SERRA, Edelweis. Filosofía, retórica y metáfora: espacio poético y campo semántico. República Argentina: Cuadernos Aletheia de Investigación y Ensayo. Grupo de Estudios Semánticos, 1980. KOTHE, Flávio R. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986. KÜBLER-ROSS, Elizabeth. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e aos seus próprios parentes. Tradução de Paulo Menezes. 9. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. LAKOFF, George. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: UCP, 1987. LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Tradução do Grupo de Estudos da Indeterminação e da Metáfora; Vera Maluf. Coordenação de Mara Sophia Zanotto. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras; São Paulo: EDUC, 2002. ______. Metáforas de la vida cotidiana. Tradução de Carmen González Marín. 9. ed. Madrid: Cátedra, 2012. (Colección Teorema). LINO, Joselita Bezerra da Silva. Dialegoria: a alegoria em Grande Sertão: Veredas e em Paradiso. João Pessoa: Ideia, 2004. LINS, Daniel. Juízo e verdade em Deleuze. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005. ______. Antonin Artaud – o artesão do corpo sem órgãos. São Paulo: Lumme, 2011. ______. A alegoria como força revolucionária: ética e estética da alegria. In: FURTADO, Beatriz; LINS, Daniel (Orgs.). Fazendo rizoma: pensamentos contemporâneos. São Paulo: Hedra, 2008. 263 ______. Sujeitos e devires: o corpo-drogado. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desportos do Estado, 2001. LOPES, Cássia. Um olhar na neblina: um encontro com Jorge Luis Borges. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, Fundação Cultural, EGBA, 1999. (Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, 54). LUIZ, Elton. As dobras da imagem ou a visibilidade expandida. In: DELEUZE, Gilles. Sentidos e Expressões. Organização Jorge Cruz; Cláudio Costa et al. Prefácio de Cláudio Ulpiano. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006a. MACHADO, Roberto. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. ______. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. MAN, Paul. Alegorias da leitura: linguagem figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução de Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago, 1996. MARANHÃO, José Luiz de Souza. O que é morte. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Coleção Primeiros Passos; 150). MEDEIROS, João Bosco de; MEDEIROS, Rildeci (Coordenadores); CARVALHO, Regina de Souza (Org.). Estrutura do trabalho científico: padronização e abordagem crítica. Natal, RN: EDUFRN, 2009. MERLEAU-PONTY, Maurice. Textos selecionados. Tradução de Marilena Chauí et al. São Paulo: Abril, 1975. (Coleção Os Pensadores). MURICY, Kátia. Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998. NETO, Aurélio Guerra. Comemoração e ressonância. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desportos do Estado, 2001. NETTO, Modesto Carone. Metáfora e Montagem: um estudo sobre a poesia de Georg Trakl. São Paulo: Perspectiva, 1974. (Coleção Debates: 102. Dirigida por J. Guinsburg). NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O crepúsculo dos ídolos ou a filosofia a golpes de martelo. Do original alemão: Götzen-Dämmerung. Tradução de Edson Bini e Márcio Pugliesi. São Paulo: Hemus, 2001. NOGUEIRA, João Carlos. Ética e realidade humana: a compreensão do fenômeno moral em Ser e Tempo de M. Heidegger. In: TRASFERETTI, José (Org.). Morte, qual seu significado? Entre a medicina, a filosofia e a teologia. Campinas, São Paulo: Alínea, 2007. 264 OLIVEIRA, Nilson. As dobras do jogo. In: LINS, Daniel; GIL, José (Orgs.). Nietzsche/Deleuze: jogo e música. VII Simpósio Internacional de Filosofia. 2006. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação da Cultura, Esporte e Turismo, 2008. OTTONI, Paulo. Derrida: entre a língua e o idioma. O primeiro pensador da tradução. In: DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. Evandro Nascimento (Org.). Tradução de Evandro Nascimento et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. Texto das palestras apresentadas no Colóquio Internacional “Jacques Derrida 2004: pensar a desconstrução – questões de política, ética e estética”, organizado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em parceria com o Consulado Geral da França, entre os dias 16 e 18 de agosto de 2004, no Teatro Maison de França, Rio de Janeiro. PAIVA, Antonio Crístian Saraiva. Política da dobra e cuidado de si ou Foucault deleuziano. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desportos do Estado, 2001. PARENTE, André. Deleuze e as virtualidades da narrativa cinematográfica. In: LINS, Daniel (Org.). Nietzsche e Deleuze: pensamento nômade. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE: Secretaria da Cultura e Desportos do Estado, 2001. PASCHOAL, Mara Sofia Zanotto de. Em busca da elucidação do processo de compreensão metafórica. In: PONTES, Eunice (Org.). A metáfora. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. (Série Pesquisas). PAZ, Octavio. El arco y la lira. México, Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 22. In: ROSENFELD, Helena Kon. Palavra pescando não-palavra: a metáfora na interpretação psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. PELBART, Peter Pál. O jogo do mundo. LINS, Daniel; GIL, José (Orgs.). Nietzsche/Deleuze: jogo e música. VII Simpósio Internacional de Filosofia. 2006. Rio de Janeiro: Forense Universitária; Fortaleza, CE: Fundação da Cultura, Esporte e Turismo, 2008. ______. A vida desnudada. In: GREINER, Christine; AMORIM, Cláudia (Orgs.). Leituras da morte. São Paulo: Annablume, 2007. (Leituras do corpo). PERRONE-MOISÉS, Leyla. Aquele que desprendeu a ponta da cadeia. In: DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. Evandro Nascimento (Org.). Tradução de Evandro Nascimento et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. Texto das palestras apresentadas no Colóquio Internacional “Jacques Derrida 2004: pensar a desconstrução – questões de política, ética e estética”, organizado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em parceria com o Consulado Geral da França, entre os dias 16 e 18 de agosto de 2004, no Teatro Maison de França, Rio de Janeiro. PONTES, Eunice (Org.). A metáfora. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. (Série Pesquisas). 265 RENAUT, Alain. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. 2. ed. Tradução de Elena Gaidano Rio de Janeiro: DIFEL, 2004. RICOEUR. Paul. A Metáfora Viva. 2. ed. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2005. RICHARDS, Ivor Armstrong. Princípios de crítica literária. Tradução de Rosaura Eichenberg, Flávio Oliveira e Paulo Roberto do Carmo. Supervisão de Gerd A. Bornheim. Prefácio e notas de Angelo Ricci. Porto Alegre: Globo: Editora da Universidade de São Paulo, 1967. RICHARDS, Ivor Armstrong; OGDEN, C. K. O Significado de Significado. Um estudo da influência da linguagem sobre o pensamento e sobre a ciência do simbolismo. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. ROSENFELD, Helena Kon. Palavra pescando não-palavra: a metáfora na interpretação psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998. RUBIRA, Luís. Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores. Coordenação de Scarlett Marton. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2010. (Sendas & Veredas). SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. (Coleção Lingua[gem]: 24). SANTOS, Alcides Cardoso dos. Desconstrução e visibilidade: A aporia da letra. In: DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. Evandro Nascimento (Org.). Tradução de Evandro Nascimento et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. Texto das palestras apresentadas no Colóquio Internacional “Jacques Derrida 2004: pensar a desconstrução – questões de política, ética e estética”, organizado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em parceria com o Consulado Geral da França, entre os dias 16 e 18 de agosto de 2004, no Teatro Maison de França, Rio de Janeiro. SCHILLER, Friedrich. In: MACHADO, Roberto. O Nascimento do Trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2000. SILVA, Cíntia Vieira da. Crueldade e inocência: novos valores para um novo pensamento. Cadernos Nietzsche. São Paulo: Publisher: GEN – Grupo de Estudos Nietzsche, n. 20, 2006. SILVA, Jailma Souto Oliveira da. O Enigma da Morte em Machado de Assis. João Pessoa: Editora Universitária, UFPB, 2007. SILVA, Maurício. O novo acordo ortográfico da língua portuguesa: o que muda, o que não muda. São Paulo: Contexto, 2008. 266 SISCAR, Marcos. O coração transtornado. In: DERRIDA, Jacques. Jacques Derrida: pensar a desconstrução. Evandro Nascimento (Org.). Tradução de Evandro Nascimento et al. São Paulo: Estação Liberdade, 2005. Texto das palestras apresentadas no Colóquio Internacional “Jacques Derrida 2004: pensar a desconstrução – questões de política, ética e estética”, organizado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em parceria com o Consulado Geral da França, entre os dias 16 e 18 de agosto de 2004, no Teatro Maison de França, Rio de Janeiro. SÓFOCLES - Rei Édipo. Tradução de Maria do Céu Zambujo Fialho. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986. SONTAG, Susan. Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. Tradução de Rubens Figueiredo e Paulo Henrique Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. STEFANO, Mariana di. La perspectiva retórica. In: STEFANO, Mariana di (Coord.). Metáforas en uso. Buenos Aires: Biblos, 2006. SZONDI, Peter. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007. (Estudos: 142. Dirigida por J. Guinsburg). TAFNER, et al. Metodologia do Trabalho Acadêmico. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2006. TOLENTINO, Magda Velloso Fernandes de. Muito além das metáforas. In: PONTES, Eunice (Org.). A metáfora. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. (Série Pesquisas). TRASFERETTI, José. A morte e o morrer: desafios para a Teologia Moral no contexto atual. In: TRASFERETTI, José (Org.). Morte, qual seu significado? Entre a medicina, a filosofia e a teologia. Campinas, São Paulo: Alínea, 2007. UNO, Kuniichi. As pantufas de Artaud segundo Hijikata. In: GREINER, Christine; AMORIM, Cláudia (Orgs.). Leituras da morte. São Paulo: Annablume, 2007. (Leituras do corpo). VERNANT, Jean Pierre. A morte nos olhos. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. VIANU, Tudor. Los problemas de la metáfora. Tradução de Manuel Serrano Pérez. Buenos Aires: EUDEBA: Editorial Universitária, 1967. (Colección Ensayos). 267 REFERÊNCIAS ONLINE A IMAGÉTICA na estilística: comparação, imagem, metáfora e alegoria na literatura infanto-juvenil brasileira. Revista Ensaios: “Extensões”. n. 5, v. 1, 2º semestre de 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2013. ALVES, Ida Ferreira. A linguagem da poesia: metáfora e conhecimento. Terra Roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. v. 2, 2002. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2013. ANTUNES, Benedito. Notas sobre a tradução literária. Revista Alfa. São Paulo, v.35, p. 1-10, 1991. Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2013. ASSOCIAÇÃO Portuguesa de Go. Disponível em: . Acesso em: 14 fev. 2013. BOGALHEIRO, Manuel. Uma abordagem da metáfora em Nelson Goodman. Revista Rhêtorikê. n. 2, p. 105-109, abril, 2009. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. BIEDERMANN, Hans. Dicionário ilustrado de símbolos. Tradução de Glória Paschoal de Camargo. São Paulo: Melhoramentos, 1993. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2014. CALLADO, Tereza de Castro. O comportamento ex-offício do estadista na teoria da soberania em origem do drama barroco alemão. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2012. CARVALHO, Marília Nogueira. Jorge Luis Borges e as histórias do sem fim: do espaço e seus desdobramentos. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010. 112f. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2014. CASTRO, Luiz Carlos Carvalho de. Aulas virtuais: a construção do sentido em ambientes de interação on-line. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2009. 132f. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2013. CRAIA, Eladio Constantino Pablo. Pode um animal transitar as sendas que se bifurcam? Ou sobre Deleuze leitor de Borges. Disponível em: 268 . Acesso em: 07 maio 2013. COELHO, Gislene Teixeira. A biblioteca como representação metafórica da intelectualidade latino-americana. Disponível em: . Acesso em: 18 jan. 2014. CORRÊA, Murilo Duarte Costa. A navalha de Gilles: Deleuze e a ruptura. Universidade Federal de Santa Catarina, 2009. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2012. CORRÊA, Sandra Lourenço. Esquizoanálise: clínica e subjetividade. Disponível em: . Acesso em: 24 jan. 2014. COSTA, Luciano Bedin. O ritornelo em Deleuze-Guattari e as três éticas possíveis. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2012. DAVIDSON, Donald. O que significam as metáforas. Tradução de Pedro Serra. Universidade de Salamanca, 2011. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2013. DISPONÍVEL EM: . Acesso em: 08 abr. 2010. DISPONÍVEL EM: . Acesso em: 10 jul. 2014. FERNANDES, Fabiano Seixas. Estética da imperfeição: o ceticismo humeano e a prosa de Jorge Luis Borges. Tese (Doutorado em Literatura) – Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004. 144f. Disponível em: . Acesso em: 11 mar. 2014. FERRÃO, Maria Clara T. Teoria da metáfora conceptual: uma breve introdução. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2013. FIGUEIRA, Pedro de Alcântara. Descartes: a procura da verdade por meio da luz natural. Revista Intermeio, n. 5, Encarte especial. Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2013. FILHO, Edmilson de Albuquerque Borborema. A metáfora na construção da percepção da realidade no discurso jornalístico. 2004. 265f. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Pernambuco, 2004. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2013. 269 FLORES, Eiliko, L. P. Alegoria e ironia: confrontos e convergências. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2012. FORTES, Tiago Moreira. Proposta e experimentação de um corpo sem órgãos no teatro ou fora dele: de preferência fora dele, no fora dele! Disponível em: . Acesso em: 05 maio 2012. FOSSILE, Dieysa (2008). Um passeio pelos estudos da metáfora. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2013. FRANCISCO, Domingos. A metáfora da plenitude: a heteronímia pessoana à luz da teoria da metáfora de Paul Ricoeur. 2001. 106f. Dissertação (Mestrado em Estética e Filosofia da Arte) – Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2001. Disponível em: . Acesso em: 03 set. 2013. GERENSTADT, Helena. O Simbolismo do Número Três. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2014. GUIMARÃES, Lea Marques; GUIMARÃES, Murillo Mendes. Lei e corpo. Disponível em: . Acesso em: 03 fev. 2013. HADDOCK-LOBO, Rafael. Escrituras de Babel: língua e tradução em Jacques Derrida. Revista Aproximação. n. 2, 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2014. HEBRAICO fácil. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2013. JAREK, Márcio. Entre a hesitação e a ação: a subjetividade melancólica na origem do drama barroco alemão. Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2014. JESUS, André Luiz Gomes de. As representações da morte e do morrer na obra de Caio Fernando Abreu. 2010. 185f. Dissertação (Mestrado em Literaturas em Língua Portuguesa) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista, Campos de São José do Rio Preto, 2010. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2014. JÚNIOR, Daniel Felix da Costa. Argumentos sobre a teoria da ação aplicada às metáforas da vida cotidiana. Revista Travessias. Edição XIV. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2013. 270 JÚNIOR. Neurivaldo Campos Pedroso. Jacques Derrida e a desconstrução: uma introdução. Revista Encontros de Vista. v. 5, [s./d.], p. 9-20. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2014. LIMA, Aldo de. A metáfora: da analogia à técnica de fusão de opostos. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2013. MAGNAVITA, Pasqualino Romano. Corpo sem órgãos/cidade/devires. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2012. MARTINS, H. Novel metaphor and conceptual stability. Delta. v. 22, n. esp., p. 123- 146, 2006. In: VEREZA, Solange Coelho. Metáfora e argumentação: uma abordagem cognitivo-discursiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, v. 7, n. 3, p. 487-506, set./dez., 2007. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. MATOS, Lúcia Helena Lopes de. A relevância e a especificidade da metáfora na formação do leitor. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. MEDEIROS, Sérgio. Um olhar, uma sentença. Aletria: 2003/2004. p. 86. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2012. MENEZES, Juliana Cunha. A metáfora para Borges, Aristóteles, Vico e Nietzsche. Revista Memento. Revista do Mestrado em Letras Linguagem, Discurso e Cultura. v. 3, n. 1, p. 161-171, jan/jul., 2012. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2014. MEY, J. Metaphor and activity. Delta. v. 26, n. esp., p. 5-17, 2006. In: VEREZA, Solange Coelho. Metáfora e argumentação: uma abordagem cognitivo-discursiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, v. 7, n. 3, p. 487-506, set./dez., 2007. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. MOREIRA, Maria Elisa Rodrigues. Literatura e biblioteca em Jorge Luis Borges e Ítalo Calvino. 2012. 253f. Tese (Doutorado em Letras: Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2014. MOTA, Genival. Narrador e narratário em dois contos de Jorge Luis Borges. Disponível em: . Acesso em: 07 ago 2014. OLIVEIRA, Danielly Passos. O devir, o aniquilamento do eu e suas aproximações com a literatura: um passeio por Água Viva. Revista de Letras, v. 1/2, n. 22, p. 86- 271 93, jan./dez., 2000. Disponível em: . Acesso em: 09 maio 2014. ONETO, Paulo Domenech. A nomadologia de Deleuze-Guatarri. Revista Lugar Comum, n. 23-24, p. 147-161. Disponível em: . Acesso em: 04 abr. 2013. OS DEZ significados de Alef-Bet. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2013. PENIDO, Stella. Walter Benjamin: a História como construção da alegoria. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2011. PEREIRA, Marcelo de Andrade. Barroco, símbolo e alegoria em Walter Benjamin. Guarapuava, Paraná, v. 8, n. 2, p. 47-54, jul/dez. 2007. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2011. PEREZ, Daniel Omar. A interpretação de J. L. Borges sobre a metáfora no texto filosófico. Revista de Filosofia. Curitiba, v. 16, n. 9, p. 11-26, jul./dez., 2004. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. PINHEIRO, Luizan. Intervenção urbana: da máquina de guerra, os disparos. Disponível em: . Acesso em: 02 fev. 2013. PIMENTEL, Davi Andrade. A morte enquanto linguagem nos escritos de Maurice Blanchot. RevLet – Revista Virtual de Letras. v. 5, n. 1, p. 232-245, jan./jul., 2013. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2014. PINEYRO, Fabian. Realidade e ficção e ensaio e conto em Borges. Revista A Palo Seco: escritos de Filosofia e Literatura – “Fronteiras” – Textos do II Colóquio Filosofia e Literatura/GeFeLit. Homenagem a Benedito Nunes. Disponível em: . v. 1, n. 3, p. 77-81, 2011. Acesso em: 21 fev. 2014. PINTO, Cláudia de Paula. Conceito de alegoria nas estéticas barroca, romântica e modernista: um estudo a partir de Walter Benjamin. 2003. 32f. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, Minas Gerais, 2003. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2012. RICHARDS, Ivor Armstrong. The philosophy of rethoric. In: FOSSILE, Dieysa (2008). Um passeio pelos estudos da metáfora. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2013. 272 RICOEUR, Paul. Imaginação e metáfora. Comunicação feita por Paul Ricoeur nas Jornadas da Primavera Francesa de Psicopatologia da Expressão, em Lille, nos dias 23-24 de maio de 1981. Publicado em 1982, na Revista Psychologie Médicale, 14. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2013. RIOS, Cesar Motta. A alegoria na tessitura de Fílon de Alexandria: estudo a partir da obra filônica com ênfase em Sobre os Sonhos I. 2009. 195f. Dissertação. (Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras: Estudos Clássicos, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2013. RIZZON, Carlos. Biblioteca: tempos e espaços de uma leitura. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2014. RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução: a questão da equivalência. Disponível em: . Acesso em: 18 fev. 2014. SARAIVA, Marina Rebeca Oliveira. Territórios dos sentidos: da emergência dos processos de subjetivação na metrópole contemporânea. Revista Espaço Acadêmico. Dossiê – Rastros Urbanos: encontros, experiências e narrativas. Organização Cristina Maria da Silva, n. 132, p. 21-29, maio, 2012. Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2013. SCHÖPKE, Regina. Deleuze e o mundo dos simulacros. Disponível em: . Acesso em: 21 out. 2013. SILVA, Sandra Aparecida. Um Aleph: Borges segundo o livro das Mil e uma Noites. Um estudo comparativo da poética árabe como elemento de construção da poética narrativa de Jorge Luis Borges. Tese (Doutorado em Literatura) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 257f. Disponível em: . Acesso em: 11 mar. 2014. SIMBOLISMO em Mircea Elíade. Colaboração de Márcia Naida. Disponível em: . Acesso em: 04 abr. 2014. SOUZA, Daniel Paulo de. Percurso da criação. Disponível em: . Acesso em: 09 mar. 2014. SPERANDIO, Natália Elvira. O modelo cognitivo idealizado no processo metafórico. 2010. 99f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de 273 São João Del-Rei, 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2013. TEIXEIRA, Heurisgleides Sousa. Concepções de tempo e memória em Jorge Luis Borges: uma análise dos contos “Funes, el memorioso” e “La Biblioteca de Babel”. 2010. 108f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Vitória da Conquista, 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2014. TEIXEIRA, José. Mecanismos metafóricos e mecanismos cognitivos: provérbios e publicidade. In: Actas del VI Congresso de Linguística General. Madrid: Arco Libros publicidade, 2007. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2013. TERRITORIALIZAÇÃO urbana. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2012. VASCONCELLOS, Jorge. A ontologia do devir de Gilles Deleuze. Kalagatos – Revista de Filosofia do Mestrado Acadêmico em Filosofia da UECE. Fortaleza, v. 2, n. 4, p. 137-167, verão 2005. Disponível em: . Acesso em: 09 maio 2014. VEREZA, Solange Coelho. Metáfora e argumentação: uma abordagem cognitivo- discursiva. Linguagem em (Dis)curso – LemD, v. 7, n. 3, p. 487-506, set./dez., 2007. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2013. ______. O lócus da metáfora: linguagem, pensamento e discurso. Cadernos de Letras da UFF. Dossiê: Letras e cognição. n. 41, p. 199-212, 2010. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2013. VILLA, Lucas. Nietzsche, o eterno retorno e a ética do discuido de si. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2013. ZILL, Rüdiger. No titubear da metáfora: a nova escritura da realidade na filosofia. Tradução de Ina Emmel. Consultoria técnica de Roberta Pires de Oliveira. Working Papers em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, n. 2, jul./dez., 1998. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2013. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução de André Telles. Disponibilização da versão eletrônica: Centro Interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2012.