UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO WAGNER RAMOS CAMPOS OS GRIÔS APORTAM NA ESCOLA: por uma abordagem metodológica da literatura infantil negra nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental NATAL-RN 2016 Wagner Ramos Campos OS GRIÔS APORTAM NA ESCOLA: por uma abordagem metodológica da literatura infantil negra nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Marly Amarilha NATAL-RN 2016 WAGNER RAMOS CAMPOS OS GRIÔS APORTAM NA ESCOLA: por uma abordagem metodológica da literatura infantil negra nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, do Centro de Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Educação. Aprovada em 29 de junho de 2016. ____________________________________ Profª. Drª. Marly Amarilha - orientadora Universidade Federal do Rio Grande do Norte ____________________________________ Profª. Drª. Eliana Yunes - examinadora externa Pontíficia Universidade Católica do Rio de Janeiro ____________________________________ Profª. Drª. Alessandra Cardozo de Freitas - examinadora interna Universidade Federal do Rio Grande do Norte ____________________________________ Prof. Dr. José Hélder Pinheiro Alves – suplente externo Universidade Federal de Campina Grande _______________________________________ Prof.ª Drª. Maria Inês Sucupira Stamatto - suplente interno Universidade Federal do Rio Grande do Norte                                         Divisão de Serviços Técnicos. Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do NEPSA / CCSA   Campos, Wagner Ramos. Os griôs aportam na escola: por uma abordagem metodológica da literatura infantil negra nos anos iniciais do ensino fundamental / Wagner Ramos Campos. - Natal, RN, 2016. 328f. : il. Orientador: Profa. Dra. Marly Amarilha. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Educação. Programa de Pós- graduação em Educação. 1. Ensino - Literatura Infantil negra - Dissertação 2. Ensino fundamental - Anos iniciais - Dissertação. 3. Relações étnico- raciais - Dissertação. 4. Mediação pedagógica - Dissertação. I. Amarilha, Marly. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/BS CDU 373.3:087.5 A Oriana e Pedro Gil, meus amores e minha vida. A Paulo Roberto de Oliveira, Anderson de Oliveira Pereira, Marcelo Cândido de Jesus, Valdevino Miguel de Almeida, "Gambazinho", Leandro Santos da Conceição, Paulo José da Silva, Marcos Antônio Alves da Silva, jamais serão esquecidos. AGRADECIMENTOS A minha esposa Oriana e a meu filho Pedro Gil, pela vivência cotidiana do amor. A todos os meus familiares, especialmente a minha mãe, Jandira e a meu tio Jaciaro, por todo o amor e dedicação com que me educaram, sempre incentivando-me a acreditar e persistir nos estudos. Aos amigos e amigas de todos os tempos e lugares (cuja lista de nomes seria longa demais para citar aqui), pelos caminhos e sentimentos partilhados, que, certamente, inspiraram- me na realização deste trabalho. A toda a comunidade da escola onde esta pesquisa foi realizada, principalmente à Professora e aos jovens estudantes da turma do 3º ano, pelo magnífico acolhimento e colaboração. A minha orientadora, Prof.ª Dra. Marly Amarilha, pela generosidade de seus ensinamentos, apoio e confiança ao longo deste mestrado. À Prof.ª Dra. Alessandra Cardozo de Freitas, pelas lições valorosas e por ter-me desvelado o universo das ciências da educação. À Prof.ª Drª. Maria Inês Sucupira Stamatto, pelos ensinamentos na área de história da educação e pela importante colaboração no capítulo 2. À Profª. Drª. Eliana Yunes, pela leitura generosa do trabalho e pelas críticas construtivas com as quais contribuiu para o resultado final. Ao MSc. Ricardo Riso, por introduzir-me na perspectiva da literatura negro-brasileira, com valiosas discussões e indicações bibliográficas. Às colegas do grupo de pesquisa Ensino e Linguagem, pela alegria do trabalho compartilhado. Mais um negro Sou um negro, mais um, destes que não aceitam, como adjetivo a alma branca Sou um negro, mais um, consciente da nossa história, que não se ilude com os heróis que me forçam a aceitar. Sou um negro, mais um, meio louco, meio torto esperando muitos outros para engrossar o cordão, e horrorizar de espanto, este engodo imbecil, a tal convencionada, Democracia Racial. (José Carlos Limeira, 1983) RESUMO Estuda o processo pedagógico de mediação de leitura de literatura infantil negra no contexto da formação do leitor e da educação das relações étnico-raciais nos Anos Inicias do Ensino Fundamental, em abordagem qualitativa. Conceitua-se literatura infantil negra como o conjunto de obras literárias produzidas para a infância que representa como tema central aspectos das histórias e das culturas dos povos negros, na diáspora ou no continente africano. A expressão literatura negra sistematizou-se com a coletânea Cadernos Negros, cujos autores ligaram-na diretamente ao histórico de lutas dos movimentos negros brasileiros pela liberdade, igualdade e contra a discriminação racial. Justifica-se pelo fato de, após 13 anos da promulgação da Lei 10.639/2003, que obriga o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, pesquisas apontarem para seu baixo nível de implementação. No ensino de literatura infantil, a escola corre o risco de promover o primeiro contato dos aprendizes com representações distorcidas de si e de seu legado étnico-cultural, contribuindo com a alienação cultural, que sedimenta o domínio de umas etnias sobre outras. Objetiva investigar possibilidade de trabalho com obras de literatura infantil negra para a construção afirmativa das identidades negras e o combate ao racismo nos AIEF. Parte do pressuposto teórico de que a mediação de leitura literária nos moldes da andaimagem, em uma lógica de formação leitora que privilegie a experiência estética literária, pode influenciar os processos de recepção leitora, dentre eles, a identificação com personagens de ficção, que participa da formação das identidades culturais (HALL, 2000). Recorre a um referencial teórico formado pela interseção dos seguintes eixos: mediação pedagógica (VYGOTSKY, 1999), literatura (SOUZA, 2009; AMARILHA, 2012; YUNES, 2015) literatura infantil (CADEMARTORI, 1991; OLIVEIRA, 2010), literatura infantil negra (SILVA, 2012; CUTI, 2010; ALVES, 2012), leitura de ficção e formação do leitor (AMARILHA, 2012, 2013; ISER, 1999; FREITAS, 2005), formação da identidade negra e educação das relações étnico-raciais (HALL, 2000, 2006; CANDAU, 2008). Implementou-se uma pesquisa-ação, através da observação participante com intervenção pedagógica junto a uma turma do 3º ano dos AIEF de uma escola estadual de Natal/RN, Brasil, que incluiu uma etapa de formação junto à professora e o planejamento e implementação conjuntas de 13 sessões de leitura de 6 obras: Um safári na Tanzânia (KREBS, CAIRNS, 2007), O presente de Ossanha (SANTOS, VENEZA, 2006), Kofi e o menino de fogo (LOPES, MOREAU, 2008), Bruna e a galinha d'Angola (ALMEIDA, SARAIVA, 2011), As panquecas de Mama Panya (CHAMBERLIN, CAIRNS, 2005) e Anansi, o velho sábio (KALEKI, GÖTTING, 2007). Para a coleta de dados, foram utilizados o registro em áudio e vídeo, a entrevista semiestruturada e o diário de campo. O corpus foi composto de 17 sujeitos, com faixa etária entre 7 e 9 anos. Os resultados das análises apontam para a diversidade de resposta dos sujeitos devido à complexidade do problema da identidade étnica, imerso em processos histórico-sociais e psicológicos que atualizam o racismo, o que representa grande desafio aos mediadores, que, por sua vez, têm na literatura campo promissor para seu enfrentamento, conforme indica esta pesquisa. Palavras-chave: Ensino de Literatura Infantil Negra, Mediação, Relações étnico-raciais. Anos Inicias do Ensino Fundamental. ABSTRACT Studies black children literature mediation pedagogic process in the context of the reader formation and the ethnic-racial relations in the initial series of Primary School in a qualitative approach. Conceptualizes black children literature as a set of literary works produced for childhood that presents as central theme aspects of the History and Cultures of black people, in the Diaspora or in the African continent. The expression black literature was systematized since the end of the 1970 by the Collection Cadernos Negros, whose authors linked it directly to the historical fight of the Brazilian black movements for freedom, equality and against racial discrimination. It is justified by the fact that, after 13 years of the promulgation of the Law 10.639/2003, that obliges the teaching of History and Afro-Brazilian Culture in high and primary school, research pinpoint for the low level of its implementation. In the teaching of Children’s Literature, the school takes the risk of promoting the pupils’ first contact with distorted representations about themselves and their ethnic-cultural legacy, contributing to a cultural alienation, that sediment the domination of some ethnicities over others. Objectives to investigate possible work with Black Children’s Literature for an affirmative construction of black’s identity and the combat to racism in the primary school. It   is  based  on  the  theoretical  assumption   that   literary   reading   mediation   in   a   scaffolding   attitude,   in   a   logic   of  reader's   formation   that   favors   the   literary   aesthetic   experience,   can   influence  reader's   reception   processes,   including   the   identification   with   fictional   characters  that   participates   in   the   formation   of   cultural   identities   (Hall,   2000).   Uses   a  theoretical  framework  formed  by  the  intersection  of  the  following  axes: pedagogical  mediation   (VYGOTSKY,   1999),   literature   (SOUZA,   2009;   AMARILHA,   2012;   YUNES,  2015)   Children's   Literature   (CADEMARTORI,   1991;   OLIVEIRA,   2010),   Black  Children's  Literature   (SILVA,  2012;  CUTI,  2010;  ALVES,  2012)   ,   fiction  reading  and  reader  training  (AMARILHA,  2012,  2013,  ISER,  1999;  FREITAS,  2005),   formation  of  black  identity  and  education  of  ethnic-­‐racial  relations  (HALL,  2000,  2006;  CANDAU,  2008)..An action research was implemented with participating observation and pedagogic intervention in a 3d year class from a public state school of Natal-RN, Brazil. It included a formation for the class teacher and the planning and conjunct implementation of 13 reading sessions of 6 books: Um safári na Tanzânia (KREBS, CAIRNS, 2007), O presente de Ossanha (SANTOS, VENEZA, 2006), Kofi e o menino de fogo (LOPES, MOREAU, 2008), Bruna e a galinha d'Angola (ALMEIDA, SARAIVA, 2011), As panquecas de Mama Panya (CHAMBERLIN, CAIRNS, 2005) e Anansi, o velho sábio (KALEKI, GÖTTING, 2007). For data collecting it were used audio and video register, field journal and semi-structured interview. The corpus was composed of 17 subjects, aged between 7 and 9 years. The results of the analyses point to a diversity of the subjects’ response due to the complexity of the ethnic identity problem, immerse in historic-social and psychological processes that actualize racism, which represents great challenge to the mediators, that, on their turn, have in literature a promising field for facing it, as this research indicates. Key-words: Black Children’s Literature teaching, Mediation, Ethnic-racial relations. Early Primary school. LISTA DE IMAGENS Figura 1 – Capela no centro do pátio da escola. ................................................................ 92 Figura 2 – Espaço usado como refeitório. ......................................................................... 93 Figura 3 - Sala de aula usada pela turma dos sujeitos da pesquisa. ................................... 93 Figura 4 - Biblioteca. ......................................................................................................... 94 Figura 5 - Biblioteca. ......................................................................................................... 95 Figura 6 - Estante com livros de Literatura. ...................................................................... 96 Figura 7 - Livros de literatura infantil negra disponíveis no acervo da biblioteca. ........... 96 Figura 8 - Caixa contendo livros didáticos e um livro de literatura infantil negra. ........... 97 Figura 9 - Disposição do Cantinho da Leitura na sala de aula do 4º ano. ......................... 98 Figura 10 - Cartaz sobre as diferenças feito por um estudante do 4º ano. ......................... 99 Figura 11 - Um Safária na Tanzânia (Julia Cairns). ........................................................ 113 Figura 12 - O presente de Ossanha (Maurício Veneza). .................................................. 117 Figura 13 - Kofi e o menino de fogo (Hélène Moreau). .................................................. 124 Figura 14 - Kofi e o menino de fogo (Hélène Moreau). .................................................. 126 Figura 15 - Kofi e o menino de fogo (Hélène Moreau). .................................................. 126 Figura 16 - Kofi e o menino de fogo (Hélène Moreau). .................................................. 129 Figura 17 - Bruna e a galinha d’Angola (Valéria Saraiva). ............................................. 132 Figura 18 - As panquecas de Mama Panya (Julia Cairns). .............................................. 139 Figura 19 - A mbira. ........................................................................................................ 143 Figura 20 - Anansi, o velho sábio (Jean-Claude Götting). .............................................. 147 Figura 21 - Anansi, o velho sábio (Jean-Claude Götting). .............................................. 153 Figura 22 - A bonequinha. ............................................................................................... 154 LISTA DE ABREVIATURAS E SINAIS UTILIZADOS NAS TRANSCRIÇÕES PP - Professor Pesquisador S.I. - Segmento Ininteligível CFMT - Crianças Falam ao Mesmo Tempo (( )) - Comentários do professor-pesquisador ::: - Alongamento de vogal ... - Pausa longa / - Truncamento " " - Citações ou leitura de textos LISTA DE SIGLAS UTILIZADAS NO TEXTO CNE/CP – Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno DCN-ER - Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana AIEF – Anos Iniciais do Ensino Fudamental LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional MEC - Ministério da Educação NEABs - Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros PPGEd – Programa de Pós-Graduação em Educação PNLD - Programa Nacional do Livro Didático SECADI - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura UNIAFRO - Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Educação Superior LISTA DE QUADROS Quadro 1: Etapas da mediação de leitura por andaimes.....................................................80 Quadro 2: Cronograma das sessões de leitura..................................................................110 Quadro 3: Respostas de Zalira à entrevista.......................................................................157 LISTA DE TABELAS Tabela 1: Quantidade de alunos que preferiu cada obra...................................................174 Tabela 2: Quantidade de alunos que rejeitou cada obra...................................................174 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 16   1.1 Justificativas  ....................................................................................................................................  19   1.2 Parâmetros do estudo  ....................................................................................................................  22   1.2.1 Problema  ..................................................................................................................................  22   1.2.2 Objetivos  ..................................................................................................................................  26   1.2.3 Locus e sujeitos  ......................................................................................................................  27   1.3 Levantamento Bibliográfico  .......................................................................................................  28   1.4 Guia de leitura da dissertação  ....................................................................................................  34   2. A ESCOLA E AS IDENTIDADES NEGRAS: uma história de mundos em choque ........................................................................................................................................... 35   2.1 A luta dos negros por uma educação que respeite suas histórias e suas culturas  .....  37   2.2 Atual configuração das relações étnico-raciais nos AIEF  ................................................  41   3. FUNDAMENTOS TEÓRICOS .................................................................................. 44   3.1 Mediação pedagógica  ...................................................................................................................  47   3.2 Literatura Infantil Negra  ..............................................................................................................  49   3.2.1 Que Literatura?  ......................................................................................................................  49   3.2.2 - Literatura Infantil  ...............................................................................................................  53   3.2.3 Literatura Infantil Negra: conceituando o termo  .......................................................  55   3.3 Leitura de ficção e a formação do leitor  .................................................................................  59   3.4 Literatura, multiculturalismo e a formação das identidades negras  ..............................  69   3.5 Andaimagem  ...................................................................................................................................  78   4 - METODOLOGIA ...................................................................................................... 86   4.1 Desenho da pesquisa  ....................................................................................................................  86   4.2 Enquadramento metodológico  ...................................................................................................  87   4.3 Escolha da escola, primeiro contato e negociações  ............................................................  88   4.4 Observação inicial  .........................................................................................................................  90   4.5 Formação com a professora  .....................................................................................................  100   4.6 Planejamento das sessões / escolha do repertório  ............................................................  102   4.7 Execução das sessões de leitura  ............................................................................................  109   4.8 Entrevistas  .....................................................................................................................................  111   5 DADOS E ANÁLISES ................................................................................................ 112   5.1 DANDO VIDA À LITERATURA: as sessões de leitura  .............................................  112   5.1.1 Um Safári na Tanzânia  .....................................................................................................  113   5.1.2 O presente de Ossanha  ......................................................................................................  117   5.1.3 Kofi e o menino de fogo  ..................................................................................................  124   5.1.4 Bruna e a Galinha d'Angola  ............................................................................................  132   5.1.5 As panquecas de Mama Panya  .......................................................................................  139   5.1.6 Anansi, o velho sábio  ........................................................................................................  147   5.2 Identidades em construção  .....................................................................................................  156   5.2.1 Eu sou igual a eles  ..............................................................................................................  157   5.2.2 - Eu sou diferente deles  ....................................................................................................  160   5.2.2.1 O preconceito racial  .......................................................................................................  161   5.2.2.2 O preconceito religioso  .................................................................................................  163   5.2.2.3 O preconceito socioeconômico  ..................................................................................  168   5.3 Avaliação geral da pesquisa  ....................................................................................................  171   5.3.1 Avaliação das sessões de leitura  ....................................................................................  171   5.3.2 Respostas dos estudantes  .................................................................................................  173   5.3.3 Respostas da professora e da gestora  ...........................................................................  175   CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 183   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 190   APÊNDICES .................................................................................................................. 199 16     1 INTRODUÇÃO Em um artigo intitulado Uma janela sobre a pesquisa em ensino de literatura, Amarilha (2007, p. 340) propõe considerações epistemológicas importantes acerca do objeto de pesquisa “ensino de literatura”. A autora aponta para um objeto “mal comportado”, que, assim como os elétrons (que embaraçam os físicos por mudar de comportamento, dependendo de como são observados), também exige diferentes abordagens e instrumentais metodológicos para revelar-se de forma mais nítida. Desta consideração, emerge a alusão à metáfora da construção do conhecimento acerca do ensino de literatura segundo uma rede de significados: Nesse percurso, apresenta-se a heterogeneidade, pois o objeto é uma situação e, portanto, inclui a diversidade de atores e eventos. Por outro lado, na busca de fazer face às questões, procura-se uma atitude de acentralidade em que, a cada passo, se seleciona um aspecto relevante, entendendo que o foco de hoje, poderá não sê-lo amanhã (AMARILHA, 2007, p. 342). Se nos apropriássemos da metáfora, poderíamos afirmar que, até o momento, uma das costuras mais firmes da rede, confeccionada com a linha de pesquisa Educação, Linguagem e Formação do Leitor do PPGEd/UFRN punha, em uma ponta o professor, na outra, o aprendiz, entre ambos, o texto literário, como possibilitador de uma pluralidade de interrelacionamentos. O que nos propomos com este estudo, é entrelaçar mais uma linhagem de significados nessa rede, de modo a aumentar o número de nós e, assim, a sua capacidade de reter fenômenos outros, que pudessem escapar-lhe. Essa nova linha é a que traz as questões relacionadas às relações étnico-raciais na educação e já é, em si mesma, complexamente trançada. Ela puxa consigo vozes antes submersas no silêncio, mas que, como fruto de sua própria luta, hoje vêm conseguindo ecoar com mais e mais força. São vozes vindas do mar e de muito além dele: África, a mãe; os brasileiros, os seus filhos. São as vozes, os corpos e as vidas dos descendentes dos(as) primeiros(as) negros(as)1 que para cá foram trazidos(as) contra a sua vontade, mas                                                                                                                1 Deste ponto do texto em diante, para facilitar a leitura, empregaremos simplesmente os vocábulos negro/negros quando quisermos nos referir às formas negro(a)/negros(as), respectivamente.       17     que hoje, mais do que nunca, exigem que a sua vontade de serem livres seja levada em conta pela nação. Portanto, o nosso interesse é fazer dialogar as vozes citadas com aquelas já consolidadas nos discursos sobre a formação do leitor. Desse modo, recorreremos a uma polifonia teórico-metodológica para fazer convergir os saberes pedagógicos e literários com aqueles relativos às questões étnico-raciais, segundo a perspectiva dos negros. Isso não significa que ignoremos a importância e os direitos de todas as outras etnias que formam o povo brasileiro. Tal recorte, simplesmente, reflete uma dentre as muitas escolhas de pesquisa, através das quais o pesquisador vê-se obrigado a posicionar-se, revelando uma certa ética, uma política e uma estratégia. Particularmente, acreditamos que a defesa dos direitos de um grupo específico, dentre os que foram historicamente oprimidos, não enfraquece a luta pela democracia universal, mas, ao contrário, dinamiza- a, oferecendo contornos reais a ideias que, de outro modo, seriam frias abstrações. Assim, ainda que tenhamos sempre em mente o horizonte da construção de uma efetiva democracia étnico-racial em nosso país, para todos(as), tomaremos o caso dos negros na educação brasileira como emblema, como identidade e como estratégia de ação. É de posse dessa rede que nos lançamos ao mar, visando o reencontro com nosso futuro: tornarmo-nos africanos, nossa “comunidade de destino” (SILVA, P. B. G., 2005, p.27). Efetivamente, propomos um estudo de cunho qualitativo que investiga a formação leitora em articulação com a formação das identidades culturais, focalizando os processos de identificação de aprendizes dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental (AIEF) com personagens ficcionais na leitura de literatura infantil negra. Para tanto, recorremos a uma pesquisa qualitativa com intervenção junto a uma turma do 3º ano dos AIEF de uma escola estadual da área urbana de Natal/RN, que incluiu uma etapa de formação teórico- prática junto à professora e o planejamento e implementação conjunta de 13 sessões de leitura de 6 obras de literatura infantil negra. Recorremos ainda à entrevista semiestruturada com os alunos, a professora e uma gestora da escola, como instrumento capaz de subsidiar análises comparativas entre a situação do campo de pesquisa nos momentos de entrada e saída do pesquisador. Conforme veremos de forma mais aprofundada no levantamento bibliográfico, algumas pesquisas têm apontado para a relevância do mediador de leitura no trabalho com a literatura infantil negra, para se alcançar os objetivos centrais de valorização da diversidade étnico-racial e afirmação do pluralismo identitário (BARREIROS e VIEIRA, 2011; SOUZA, 2013; CARDOSO, 2011). No entanto, apesar de apontarem para a 18     necessidade de uma metodologia de abordagem adequada desses textos, tais estudos não aprofundam a discussão sobre procedimentos pedagógicos de mediação específicos e bem definidos. No sentido contrário, há diversos trabalhos que investigam em profundidade os aspectos literários e socioculturais de obras de literatura infantil negra, discutindo suas origens, seu desenvolvimento e hibridização, sua estrutura e as implicações culturais que trazem (SILVA, 2012; DEBUS e VASQUES, 2009; BUENDGENS e CARVALHO, 2016). Tais estudos baseiam-se em um referencial teórico multifacetado, que envolve teoria literária, estudos culturais e antropologia. Contudo, em geral, não tratam ou não aprofundam a dimensão pedagógica do trabalho de formação do leitor com obras com essas características. Por outro lado, pesquisas como as de Freitas (2005) e Souza (2009) têm mostrado como a atividade de leitura do texto literário em sala de aula - mediada por uma abordagem sistemática, tais como a ação argumentativa (PERELMAN e TYTECA, 2000) e a andaimagem (GRAVES; GRAVES, 1995) – potencializam os processos de formação do leitor, sejam estes cognitivos, afetivos ou sociais. Particularmente, o trabalho de SOUZA (2009) oferece-nos condições de pressupor que sessões de leitura de textos literários, organizadas nos moldes da andaimagem, podem proporcionar, por um lado, subsídios para a construção de uma identidade afirmativa por parte do leitor, através de um processo catártico de leitura; por outro, a valorização da alteridade num grupo de leitores com marcas identitárias heterogêneas. Portanto, a importância deste estudo reside na proposição da seguinte relação teórico-metodológica: a metodologia da andaimagem e o trabalho dos professores da educação básica com os livros de literatura infantil negra, visando uma formação leitora multicultural e crítica. Nomeadamente, pretendemos subsidiar o trabalho do professor dos AIEF, propondo uma sistemática metodológica bem documentada para a abordagem desse tipo de texto literário. A andaimagem, por suas qualidades de apoio ao desenvolvimento não só cognitivo e linguístico, como social e afetivo em uma comunidade de leitores, pode representar uma alternativa viável, como meio de cultivar a formação leitora como formação múltipla do sujeito, contemplando, inclusive, os objetivos expressos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCN- ER) que apontam no sentido da democratização das relações étnico-raciais na escola. 19     1.1 Justificativas Por parecer-nos um cais, a princípio, mais seguro, partiremos de uma perspectiva legal, enfocando uma lei que se tornou a metáfora do momento histórico dos negros na educação brasileira. Infelizmente, metáfora não por aquilo que logrou, mas pela enorme distância entre o muito que representava enquanto potência e o pouco que, até agora, foi traduzido em ato. Partiremos, portanto, da Lei 10.639/2003, que modifica a Lei Federal 9.394/1996 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), acrescentando os artigos 26A e 79B, que estabelecem a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na Educação Básica. (Posteriormente, houve nova alteração de redação dada pela Lei 11.645/2008, com a inclusão da história e cultura da população indígena, estando válidas ambas as alterações atualmente.) Eis a redação: Art. 26 a) Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste Artigo, incluirá o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras (BRASIL, Lei 10.639/2003). Segundo o Ministério da Educação, a alteração visa: cumprir o estabelecido na Constituição Federal nos seus Art. 5º, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79 B na Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros (BRASIL, 2004, p. 9). Durante os 13 anos transcorridos desde a alteração da LDB, outras medidas foram adotadas na forma de políticas públicas para a educação, no intuito de garantir o cumprimento da referida lei. Destaca-se o Parecer do CNE/CP 03/2004, que aprovou as DCN-ER (BRASIL, 2004), e a Resolução CNE/CP 01/2004, que detalha os direitos e as obrigações dos entes federados com a implementação da lei. 20     Esse conjunto legal faz parte do contexto de adoção dos conceitos de reparação, reconhecimento e ações afirmativas no âmago das políticas públicas brasileiras. Tais conceitos, por sua vez, nascem em consonância com a necessidade de se fazer cumprir outras bases de sustentação legal e acordos internacionais firmados pelo Brasil, notadamente: a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Xenofobia e Discriminações Correlatas (Declaração de Durban, firmada por mais de 170 nações em 2001); o Programa Nacional de direitos Humanos do Ministério da Justiça (1996); a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 3º, inciso iv (repúdio ao preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); a Convenção da UNESCO de 1960; e, por fim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (direito à igualdade e proibição da discriminação racial). No entanto, pesquisas têm apontado para seu baixo grau de institucionalização (BRASIL, 2012), bem como para inúmeras formas de resistência sistemática à sua implementação (BRASIL, 2012). Dentre os vários fatores elencados nas pesquisas que contribuem para esse quadro, um deles é estrutural e tem a ver com a relação entre os entes federativos e com as características de complementariedade dos papéis dos diversos atores responsáveis pela adequação do sistema nacional de ensino às exigências legais (BRASIL, 2008). Isto é, existe uma patente necessidade de trabalho harmônico entre os diversos sujeitos envolvidos nesse processo para que as ações reverberem positivamente em todo o conjunto do sistema nacional de ensino. Portanto, Isso significa incluir a temática no Projeto Político Pedagógico da Escola, ação que depende de uma série de outras, como, por exemplo, o domínio conceitual do que está expresso nas DCNs da Educação para as Relações Etnicorraciais, a regulamentação da Lei pelo respectivo Conselho de Educação, as ações de pesquisa, formação de professores, profissionais da educação e equipes pedagógicas, aquisição e produção de material didático pelas Secretarias de Educação, participação social da gestão escolar, entre outras (BRASIL, 2008, p. 26, grifo nosso). Some-se a esta dificuldade conjuntural, uma outra relatada em algumas pesquisas (BARREIROS, 2009; BARREIROS E VIEIRA, 2011; CARDOSO, 2011; MARIOSA e REIS, 2011; SILVA, FERREIRA e FARIA, 2011), qual seja, a da falta de preparo da maioria dos professores da educação básica para trabalhar com as temáticas da história e da cultura africana e afro-brasileira. Ponderando sobre tal entrave, Ana Maria de Souza (2013), em sua dissertação de mestrado intitulada A Lei 10.639/2003 e a literatura luso- africana e afro-brasileira na escola, questiona: “Mas como ensinar o que não se 21     conhece?”, apontando para o nosso “esquecimento” em estudar o continente africano. Em seguida, a autora cita outros questionamentos ainda mais inquietantes: Quantos de nós estudamos a África quando transitávamos pelos bancos das escolas? Quantos tiveram a disciplina História da África nos cursos de História? Quantos livros, ou textos leu sobre a questão? Tirando as breves incursões pelos programas do NationalGeographic ou Discovery Channel, ou ainda pelas imagens chocantes de um mundo africano em agonia, da AIDS que se alastra, da fome que esmaga, das etnias que se enfrentam com grande violência ou dos safáris e animais exóticos, o que sabemos sobre a África? Paremos por aqui. Ou melhor, iniciemos tudo aqui. (OLIVA apud SOUZA, 2013, p. 24). O estudo dos antigos egípcios nas aulas de história dos AIEF constitui uma sôfrega exceção, já que eles, de maneira geral, são apresentados de forma desconectada do resto do continente. De fato, o Egito é visto como um caso excepcional, digno de atenção, a despeito de todas as outras grandes civilizações do continente africano. Chegamos assim à compreensão da importância em se desenvolver ações que subsidiem as práticas pedagógicas dos professores da educação básica no trabalho com a história e cultura africana. Aqui, as universidades ocupam um papel fundamental, não só na formação inicial, como também na proposição de projetos de pesquisa e extensão que possam cumprir esse papel. De fato, até 2012, 32 instituições públicas de ensino superior no país já haviam constituído Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros - NEABs, que têm desenvolvido ações articuladas com as Secretarias de Educação, com impacto significativo em várias comunidades escolares (BRASIL, 2012). Porém, o quadro ainda é irregular, visto que várias outras instituições ainda possuem uma produção acadêmica pouco significativa nessa área. Um dos trabalhos mais consistentes a respeito da implementação da Lei 10.63/2003 foi publicado nas vésperas de seu aniversário de 10 anos. Trata-se da já citada pesquisa Práticas Pedagógicas de Trabalho com Relações Étnico-Raciais na Escola na Perspectiva da Lei n.º 10.639/03 (BRASIL, 2012). Um dos dados mais relevantes para a nossa discussão (dentre vários outros sobre a persistência de desigualdades significativas entre negros e brancos no acesso à educação) é a constatação de que a maior dificuldade de implementação da lei alegada pelos sujeitos consultados foi a “resistência da comunidade escolar” (BRASIL, 2012, p. 68). O documento indica, então, os processos de formação continuada de professores da educação básica na temática étnico-racial como medida crucial para o cumprimento da lei. 22     Enxergamos todo esse arcabouço legal como uma grande conquista dos movimentos negros organizados, cujo processo histórico de luta será abordado mais adiante. Esses documentos alteram preceitos básicos da própria função do sistema educacional. Sua efetiva implementação representaria um marco divisor na história da educação brasileira, justamente por representar uma oportunidade de reconstrução das identidades negras, formando cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico, o que, por sua vez, seria um dos primeiros e mais importantes passos em direção à democratização das relações étnico-raciais no nosso país. Destarte, o planejamento desta pesquisa respondeu ao anseio de colaborar com os sujeitos que empreendem esforços para que a Lei 10.639/2003 e as DCN-ER deixem de ser consideradas letra-morta e adentrem viva e corajosamente o cotidiano das escolas brasileiras, transformando-as em espaços de educação antirracista e radicalmente democrática. Assim, optamos por implementar uma pesquisa participante que tivesse o professor dos AIEF como interlocutor privilegiado e pudesse, por um lado, funcionar como uma ação de formação continuada determinante no desenvolvimento pessoal e profissional desse professor (AMARILHA, 2007, p. 341); por outro lado, propiciar aos aprendizes o contato com representações positivas dos negros e de sua cultura que pudessem ajudá-los a superar os estereótipos consolidados na cultura nacional hegemônica. 1.2 Parâmetros do estudo 1.2.1 Problema Entrecruzando os eixos norteadores do trabalho de mediação de leitura de literatura, da problemática da recepção estética, dos processos de formação identitária em sociedades multiculturais e da educação das relações étnico-culturais, consideram-se as seguintes questões: ● De que formas a literatura infantil pode influenciar no processo de formação da identidade cultural de crianças no início da vida escolar? ● Que contribuições o estudo das teorias sobre leitura e literatura, por parte do professor, pode trazer para o trabalho de leitura mediada de literatura em sala de aula? 23     ● Como o trabalho com textos de literatura infantil negra, em atitude de andaimagem, pode contribuir para a construção afirmativa das identidades negras e para o combate ao racismo nos AIEF? Diante de tais questionamentos, propomos nosso objeto de estudo nos seguintes termos: o processo pedagógico de mediação de leitura de literatura infantil negra através do método da andaimagem, no contexto da educação das relações étnico-raciais nos AIEF. Tendo em mente esta definição, precisamos considerar as suas implicações para a condução da pesquisa. Inicialmente, é preciso explicitar que a expressão “educação das relações étnico- raciais” arrasta consigo toda a história da luta dos negros pela sua inserção e de sua cultura nos sistemas formais de ensino no nosso país, e que só em 2003 foi conquistada como instrumento legal. Tal expressão foi assim proposta no próprio título das DCN-ER, previstas na Lei 10.639/2003 e materializadas pelo Parecer do CNE/CP 03/2004. Da leitura deste documento, pode-se ter bastante clareza sobre o que se pretende alcançar quando se propõe a educação das relações étnico-raciais. Particularmente, as DCN-ER propõem: A divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada (BRASIL, 2004, p. 10). Temos, portanto, como imposição legal a produção de conhecimentos e a adoção de posturas na área de educação que, no lugar de adotar um silêncio generalizante, - que acaba por universalizar representações e valores do modelo eurocêntrico adotado nos discursos da classe dominante - leve em conta o pertencimento étnico-racial dos aprendizes-cidadãos com quem dialogam. Para tanto, é indispensável que se busque especificamente: desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros (BRASIL, 2004, p. 12). 24     É a partir destas considerações que pode-se compreender a razão de o objeto de estudo delimitar o trabalho de mediação especificamente com obras de literatura infantil negra. Em primeiro lugar, consideremos as consequências do efeito catártico de identificação da criança com as personagens de ficção, já que “a catarse constitui a experiência comunicativa básica da arte, pois através dela o processo de identificação se torna explícito” (ZILBERMAN, 1989, p. 57). Ponderemos ainda sobre os vários estudos acerca da literatura infantil brasileira que mostram como boa parte das obras possuem a tendência a representar a raça branca como condição humana “natural”, como representante da espécie (ROSEMBERG, 1985; NEGRÃO E PINTO, 1990; NEGRÃO 1988; BAZILLI, 1999; FILHO, 2004; PESTANA, 2008; FERREIRA, 2008; ARBOLEYA e ERES, 2008; DIAS, 2008; ARAÚJO, 2010 apud OLIVEIRA, 2010, p. 47). Sendo assim, compreendemos que o processo catártico citado tenderá a levar a criança não branca a assumir uma identidade cultural diferente da sua raiz histórica, criando já na infância as condições ideais para o desenvolvimento de um indivíduo alienado, que, segundo Freire (1987), é aquele que hospeda o opressor dentro de si. Em segundo lugar, há a proposição teórica de que a recepção estética das obras de literatura infantil negra por parte dos aprendizes não negros tende a fomentar uma maior valorização da diversidade. Nesse sentido, Barreiros (2009), postula que essa literatura, pelo seu caráter simbólico, pode contribuir para reflexões que rompam com uma visão construída sob o fundamento da desigualdade étnico-racial e que se construa uma visão sob uma base de valorização da diversidade (BARREIROS, 2009, p. 4). Finalmente, com relação à importância da mediação de leitura e sua relevância para o estudo que se propõe, resta-nos duas considerações a fazer. A primeira trata do papel da discussão de histórias (FREITAS, 2005), na fase de pós-leitura implicada nesse método. Baseados no trabalho de Freitas (2005), temos razões para crer que a atividade de discussão do tipo específico de obra com a qual nos propomos a trabalhar tem o potencial de promover a valorização da diversidade étnico- racial, num grupo heterogêneo de aprendizes. Isso porque tal atividade, feita na socialização com o mediador e com os pares, implica não só em desenvolvimento linguístico e cognitivo, mas também ético e socioafetivo. Corroboram para isso os resultados da pesquisa feita por Souza (2009), na qual foi considerado o potencial inclusivo do trabalho com o texto literário em atitude de andaimagem. Sobre a fase de discussão, a autora verificou que essa: 25     além de confrontar o aluno com o texto, o confronta com o outro que lhe indaga e com o que compartilha os mesmos questionamentos, aspecto esse que se constitui como uma via de desenvolvimento intra - e interpessoal (SOUZA, 2009, p. 207) Souza, ao refletir sobre possíveis conclusões oriundas de sua experiência, assevera a natureza inclusiva do texto literário, mas não só por aquilo que ocorre dentro do texto, mas também nos desdobramentos do que ocorre fora dele: No exercício da alteridade, na abertura para o outro e para as diferenças, no compartilhamento das subjetividades, sensações e sentimentos, no estabelecimento de relações sociais e afetivas e no constante aprendizado sobre si, sobre o outro e sobre a humanidade (SOUZA, 2009, p. 276). A segunda consideração a ser feita diz respeito à centralidade da oralidade na metodologia de mediação por andaimagem e, ao mesmo tempo, ao lugar privilegiado que a transmissão oral de textos ocupa nas culturas africanas. Eis aqui uma relação-chave para compreender o trabalho proposto. Senão, vejamos. Amarilha (2006, p. 28), ao tratar da necessidade de que a voz do mediador de leitura seja claramente audível para que ocorra a construção de sentido a partir do ouvido, faz um breve resgate histórico da importância da voz do contador de histórias. Segundo a autora: Na atividade de contar história, a voz do contador define limites acústicos e comunitários. A voz envolve e delimita uma comunidade de ouvintes pela sua extensão. A experiência de pertencimento, de membro daquele grupo, define- se, então, por aqueles que podem ouvir o que se narra. Esse momento, transitório e único, tece laços de solidariedade, cumplicidade; atrai os indivíduos a se tornarem membros daquela comunidade (ao contrário do que se tem na multidão envolvida por sons indefinidos) e esse limite acústico os une, historicamente, pela voz narrante (AMARILHA, 2013, p.36). Ora, estamos diante da recriação, em ambiente escolar, de uma atividade milenar, presente em todas as culturas e marca identitária da cultura afro-brasileira, que sobreviveu graças às várias bocas que pronunciaram palavras mágicas ao longo dos séculos, resgatando e reinventando o universo, definido pelo discurso. É, pois, notório o ponto de contato, estabelecido pela contação de histórias, entre o ensino de literatura pelo método da andaimagem e a forte tradição oral das culturas africanas. De fato, a transmissão da literatura, história, provérbios, preces, canções e mitos através da oralidade continua viva em África na figura dos griôs (Finnegan, 1970). 26     Essa figura lendária acumula as funções de professor, conselheiro, diplomata, orador, intérprete, tradutor, músico, compositor, dentre outras (Finnegan, 1970). Na verdade, foi devido ao fato de terem ouvido muitas vezes as vozes dos griôs, que os africanos trazidos para a América foram capazes de manter vivo o seu universo cultural, mesmo sem terem podido trazer objetos materiais. É por reconhecer a importância dessa figura, que as DCN-ER recomendam explicitamente que, nas aulas de literatura, o professor promova a “valorização da oralidade […] ao lado da escrita e da leitura” (BRASIL, 2004, p. 20). E, mais à frente, orientam que sejam tratados os temas do “papel dos anciãos e dos griots como guardiões da memória histórica” (BRASIL, 2004, p. 21). Como se percebe, ao contar oralmente a literatura infantil negra, o professor atualiza a ancestralidade desse ato. Porém, por encontrar-se incrustrada no seio do caos sonoro da pós-modernidade, onde a tirania do instante vai devorando os resquícios de memória, tal atitude figura, a um só tempo, como resistência e inovação e possibilita a recriação de mundos perdidos. Aqui, o professor transfigura-se em griô. 1.2.2 Objetivos A esta altura, temos já subsídios para delimitar com mais exatidão as metas que se almejam alcançar com a realização deste trabalho: a) Objetivo Geral ● Subsidiar o trabalho do professor mediador de leitura com obras de literatura infantil negra, propondo uma metodologia sistemática de abordagem de tais obras, que vise a construção afirmativa das identidades negras e a valorização da diversidade nos AIEF. b) Objetivos Específicos ● Verificar se o processo de mediação de leitura pelo método da andaimagem mostra-se eficiente no cultivo de valores ético-morais antirracistas. ● Implementar uma pesquisa-ação participativa que ofereça uma possibilidade de formação continuada aos professores, construindo conhecimentos dentro da comunidade escolar sobre a presença da literatura infantil negra na formação 27     identitária dos aprendizes. 1.2.3 Locus e sujeitos A etapa de intervenção realizou-se em uma escola pública estadual, situada em Natal-RN, que atende exclusivamente ao público dos AIEF. A escolha do locus deu-se pela adesão ao projeto de pesquisa por parte da direção e de uma professora, que já havia colaborado com o grupo em outra pesquisa, e por a escola possuir a estrutura física mínima necessária para a realização do projeto, com biblioteca, sala de leitura e sala de vídeo. Trata-se de uma escola de pequeno porte, que possui duas peculiaridades em sua estrutura: estar localizada no interior de um quartel militar e ter uma capela católica, sem portas, no meio do pátio interno. Durante a realização da pesquisa, a escola funcionou nos turnos matutino e vespertino e atendeu, no ano de 2014, a 180 alunos e, no ano de 2015, a 164 alunos. Sua estrutura física é composta de cinco salas de aulas, das quais quatro são usadas regularmente, uma pequena biblioteca que também funciona como sala de leitura, uma sala que funciona como laboratório de informática e sala de vídeo, uma sala multifuncional (que, na prática, funciona como almoxarifado) uma sala para secretaria e direção, uma cozinha e um pequeno pátio interno, parcialmente coberto, que também funciona como refeitório, além de um pátio externo, contíguo à entrada. Há dois banheiros para os estudantes (masculino e feminino) e um para o corpo docente e administrativo. A sala de aula ocupada pela turma pesquisada mede 3,60m de largura por 7,20m de comprimento e apresenta razoável arejamento, dispondo de janelas grandes e ventiladores de parede. O mobiliário da sala é composto de um armário de aço, um quadro branco e uma mesa com cadeira para a professora, além de 20 carteiras individuais. O espaço reduzido dificulta a movimentação em sala, mas isso não compromete o andamento das atividades. A equipe de funcionários da escola, durante o período de realização da pesquisa, era composta por 20 profissionais da educação: 8 docentes, 8 administrativos, além de 4 funcionários terceirizados. Em geral, a higiene e a manutenção das dependências e equipamentos da escola são feitas com zelo. Além disso, a equipe expressa uma preocupação constante com a disciplina e o respeito aos valores assumidos pela escola. 28     Frequentamos regularmente a escola durante os períodos letivos de efetivo funcionamento correspondidos entre os meses de setembro de 2014 e junho de 2015. Durante esse período, houve troca da direção, o que gerou mudanças na equipe e trouxe consequências (que serão abordadas mais adiante) também para a condução da pesquisa. A escola abriga em suas atividades o projeto Mais Educação, que corresponde a uma estratégia do MEC para induzir a ampliação da jornada escolar e a organização curricular na perspectiva da educação integral. As atividades desenvolvidas por esse projeto são feitas no contraturno. Desse modo, uma parte dos alunos da turma pesquisada passava os dois turnos diários na escola. O corpus pesquisado foi composto de 17 estudantes, sendo 5 meninas e 11 meninos, com faixa etária entre 7 e 9 anos. Em sua maioria, são habitantes do bairro Vila de Ponta Negra, um bairro com um perfil populacional composto majoritariamente por famílias de baixa renda. A maioria é filha de pais que exercem profissões de pouco prestígio social, como “do lar”, diarista, encanador, porteiro, etc. O outro sujeito que focalizaremos será a professora da turma. Ela é de extrema relevância para a pesquisa, pois participa dela enquanto investigada e investigadora a um só tempo. Trata-se de uma professora que já lecionou em escolas de diferentes estados brasileiros e que possui em torno de 30 anos de experiência de magistério, dentre os quais, conta 8 anos de atuação como coordenadora pedagógica. Esboçaremos em mais detalhes seu perfil docente e sua atuação na pesquisa nos capítulos 4 e 5. 1.3 Levantamento Bibliográfico Após a promulgação da Lei 10.639/2003, o tema do ensino de literatura infantil negra vem passando por um incremento notável na quantidade de pesquisas empreendidas. Tal fato deve-se, entre outras razões, à visão sistêmica de partilha de responsabilidades na implementação da lei entre os entes que compõem os sistemas nacionais de ensino, apresentada nas DCN-ER. O documento atribui explicitamente que: os sistemas de ensino e os estabelecimentos de Educação Básica, nos níveis de Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, Educação Superior, precisarão providenciar: […] Apoio sistemático aos professores para elaboração de planos, projetos, seleção de conteúdos e métodos de ensino, cujo foco seja a História e Cultura Afro- Brasileira e Africana e a Educação das Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2004, p. 23). 29     No tocante à pesquisa, particularmente, as DCN-ER estabelecem a necessidade de: Incentivo, pelos sistemas de ensino, às pesquisas sobre processos educativos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros e indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação brasileira (BRASIL, 2004, p. 24). Tais exigências, aliadas às articulações dos movimentos sociais e associações comprometidas com a causa da democracia racial junto aos gestores dos sistemas de ensino, conduziram a ações significativas, como a criação de vários NEABs e, em 2008, do Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Educação Superior (UNIAFRO), do MEC, que aproxima as instituições de ensino superior e as escolas da educação básica. O resultado foi o referido incremento na produção acadêmica dentro dos campos do saber relacionados aos eixos temáticos presentes nas DCN-ER, incluindo-se aqui o tema do ensino de literatura infantil negra. Não obstante, a maioria dos trabalhos que vêm sido produzidos concentra-se na análise das obras literárias e dos livros didáticos utilizados na educação básica. Em particular, poucas produções investigam as práticas pedagógicas de formação leitora no trabalho escolarizado com a literatura infantil negra. Aquelas que o fazem, ou concentram-se em estudos de caso - sem sistematizarem conclusões metodológicas mais objetivas - ou apontam abstratamente para posturas ideais a serem adotadas pelo professor. Propomos agora uma classificação das temáticas mais comuns presentes nessas pesquisas. Uma perspectiva muito difundida é a da análise estética e discursiva das obras de literatura infanto-juvenil e dos livros didáticos que vêm sendo utilizados na educação básica (DEBUS e VASQUES, 2009; BARREIROS e VIEIRA, 2011; SOUZA, 2013; BARREIROS, 2009, 2010; MARIOSA e REIS, 2011; OLIVEIRA, 2010; VASQUES, 2011; SILVA, FERREIRA e FARIA, 2011). Esses estudos servem como orientações para os professores na escolha das obras a serem trabalhadas, tecem considerações a respeito dos modos de representação das identidades negras na literatura infantil e apontam para as implicações do trabalho com essas obras para a formação leitora. Alguns prestam-se sobretudo a dar visibilidade a obras consideradas adequadas para o trabalho de educação das relações étnico-raciais (DEBUS e VASQUES, 2009; BARREIROS e VIEIRA, 2011; BARREIROS, 2010; VASQUES, 2011), enquanto outros enfatizam a crítica à ideologia 30     presente em alguns títulos, que tende a universalizar visões de mundo típicas das etnias brancas, representando as demais etnias como desviantes (SOUZA, 2013; MARIOSA e REIS, 2011). Outro foco de análise manifesto em vários estudos é o papel da escola e do professor na formação leitora, vistos no contexto da educação das relações étnico-raciais (LUIZ e AMÉRICO, 2011; CARDOSO, 2011; BARREIROS, 2009; BARREIROS e VIEIRA, 2011; SOUZA, 2013; MARIOSA e REIS, 2011; VASQUES, 2011; SILVA, FERREIRA e FARIA, 2011). Invariavelmente, estes trabalhos apontam para a necessidade de formação continuada dos professores da educação básica para um trabalho adequado com as questões étnico-raciais implicadas nas obras literárias e nos livros didáticos. Três dentre eles (BARREIROS e VIEIRA, 2011; SOUZA, 2013; CARDOSO, 2011) trazem considerações a respeito da centralidade do papel do mediador, argumentando que o trabalho de mediação de leitura supera em importância a escolha das obras. Assim, descrevem posturas desejáveis por parte dos professores para o alcance dos objetivos propostos nas DCN-ER. No entanto, nenhum dos textos entra em detalhes sobre as técnicas e métodos que podem subsidiar o trabalho destes mediadores. Aquele que melhor descreve um modo de condução da atividade de leitura é o estudo de Souza (2013): Através de atividades simples, que valorizem os conhecimentos prévios e as atribuições de sentido dos alunos e os instiguem a se posicionarem diante das leituras, pode-se efetuar um trabalho produtivo para a erradicação do preconceito racial. Nesse sentido, os princípios da Estética da Recepção podem orientar o planejamento das práticas de leitura em sala de aula, considerando as reações dos alunos aos textos e às questões africanas (SOUZA, 2013, p. 95). A autora indica, neste trecho, um tipo de mediação que não difere dos eixos norteadores do trabalho com a metodologia da andaimagem. Seria, então, oportuno submeter essa prescrição a respeito da postura ideal do mediador ao crivo de um estudo sistemático in loco, que busque verificar a amplitude de seu impacto em uma comunidade particular de sujeitos. Por fim, um outro eixo de análise observado é aquele centrado nos processos de formação identitária, à luz dos Estudos Culturais (FERREIRA, 2011; BARREIROS, 2010; BARREIROS e VIEIRA, 2011; MARIOSA e REIS, 2011). A preocupação central desta abordagem é analisar como o diálogo do leitor com as representações identitárias 31     presentes nas obras literárias podem ou não conduzir a uma formação identitária afirmativa dos elementos característicos da cultura de sua etnia. Feita esta classificação preliminar, debruçamo-nos agora mais detalhadamente sobre os trabalhos mais significativos, com os quais a nossa pesquisa deverá forçosamente dialogar. O estudo mais completo acerca da literatura infantil negra de que temos conhecimento até o momento é a tese de doutorado de Silva (2012), intitulada Bô sukuta! Kada kin ku su manera: as junbai tradicionais africanas recriadas na literatura infantojuvenil brasileira, eué! Trata-se de uma análise eminentemente literária, que dialoga com outros conhecimentos históricos e culturais. Em seu percurso analítico, o autor parte da discussão das características das junbai, os contos tradicionais africanos de transmissão oral, cujos principais responsáveis pela propagação são os griôs - denominação cambiante de acordo com a região, que designa uma figura de alto relevo social, responsável pela conservação e propagação dos bens culturais fixados na oralidade, que têm suas funções analisadas. Em seguida, Silva (2012) rastreia os percursos histórico-geográficos dessas narrativas após a diáspora africana, fazendo um levantamento das áreas onde se fixaram os principais grupos étnicos africanos no território brasileiro. Finalmente, a pesquisa sistematiza os principais estudos acerca dos contos populares de tradição africana que se desenvolveram no Brasil, retomando desde as obras dos primeiros folcloristas e chegando até à migração dessa herança para os livros de literatura infantil, consumada através do processo de transculturação narrativa denominado reconto. Além disso, o estudo traz análises literárias de algumas obras e de alguns autores de maior destaque. Apesar de sua ampla abrangência, essa pesquisa não adentra o campo das investigações pedagógicas e, portanto, não tece nenhuma consideração acerca do trabalho de formação do leitor a partir da corrente literária pesquisada. O artigo denominado Literatura infantil para uma formação leitora multicultural, de autoria de Barreiros e Vieira (2011), propõe-se a analisar a estrutura composicional de duas obras e suas implicações na formação leitora nos AIEF. O estudo parte da hipótese de que o trabalho com a literatura infantil negra é capaz de promover a formação leitora proficiente, conhecimentos acerca da cultura africana e promoção do respeito às diferenças. Para fundamentar tal argumento, as autoras recorrem a categorias conceituais dos Estudos Culturais, asseverando que sua relevância repousa no fato de que os autores deste campo teórico: 32     problematizam as noções de diversidade e ressaltam a importância de se analisarem as relações de poder entre iguais e diferentes (identidade/diferença), com especial atenção à cultura e à linguagem que é capaz de situar o nós/eles, bem como as normas e os regimes de verdade que apregoam o que é normal ou desviante. Para promover tais reflexões, a literatura infantil de temática afro- brasileira configura-se em um recurso profícuo, tanto para os estudos de leitura como da multiculturalidade, no espaço escolar (BARREIROS e VIEIRA, 2011, p. 336). As conclusões advindas da análise da obra “África, meu pequeno Chaka” dialogam harmonicamente com a nossa perspectiva teórica. Nelas, afirma-se que os leitores em formação dos AIEF não teriam condições de, sozinhos, realizarem uma leitura proficiente dos elementos da obra, mas que, sob a intervenção de um mediador competente, essa leitura poderia propiciar importantes progressos para a formação daqueles leitores (BARREIROS e VIEIRA, 2011, p. 341). Outro trabalho que subsidia nossas reflexões é a dissertação de mestrado de Souza (2013). Trata-se de uma análise das coleções de livros didáticos, do então denominado Ensino Fundamental II, que aponta para a persistência de inadequações às exigências legais nessas obras, principalmente, “quanto à concepção de ensino voltada para a desmistificação do continente africano em sua apresentação didática” (SOUZA, 2013, p. 7). No caminho trilhado, o estudo traz uma retrospectiva histórica das relações raciais desiguais e da resistência negra no Brasil, inclui considerações sobre a Estética da Recepção, investiga as dificuldades de implementação da Lei 10.639/2003, sugere vários títulos e autores e aponta para posturas consideradas modelares a serem adotadas pelos professores. Pela sua vasta abrangência e clareza metodológica no tratamento do tema, trata-se de um estudo de leitura obrigatória para pesquisadores e professores que queiram avançar nas discussões sobre o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Nas palavras da autora: O que se pode observar nesta pesquisa é que os livros didáticos usados nas escolas, no período de 2011 a 2013, nas poucas vezes em que falam dos negros, desconsideram suas diferentes origens assim como a história de suas civilizações. Os livros analisados mostram a quase exclusão da figura afro- brasileira, tanto como autores de textos, quanto como personagens das histórias, sejam elas contos, romances, fábulas, poemas, novelas, ou histórias em quadrinhos. (SOUZA, 2013, p.88) Dentre as conclusões advindas da pesquisa, Souza (2013, p.92) aponta para um ato falho na tentativa irrefletida, por parte de editoras e educadores, em adequar-se às 33     exigências da Lei 10.639/2003. Isto é, ao procurarem abordar uma temática com a qual não têm familiaridade, estes sujeitos acabam por reforçar visões estereotipadas e simplistas da África e dos povos africanos. O trabalho com a literatura africana é então recomendado como meio de complexificar o tratamento didático dado ao tema: O texto literário permite desconstruir a imagem negativa do africano como povo bárbaro, primitivo e sem cultura, como ainda costuma ser visto por tantos aqui no Brasil. Dessa forma, pode-se afirmar a identidade étnica dos alunos, resguardando a convivência igualitária, promovendo a autoestima e o relacionamento saudável e harmonioso entre a diversidade étnica. (SOUZA, 2013, p.94) Por último, mas não menos importante, um trabalho que relaciona-se com o nosso estudo é a dissertação de mestrado Educação das relações étnico-raciais e estratégias ideológicas no acervo do PNBE 2008 para a Educação infantil, de autoria de Oliveira (2010), que analisa um total de vinte obras daquele programa. O trabalho empreende uma vasta revisão bibliográfica acerca dos temas: literatura infanto-juvenil em geral e, particularmente, as relações raciais nos livros de literatura infanto-juvenil; desigualdade racial sistêmica no Brasil e, nomeadamente, o racismo dentro da escola. A centralidade do trabalho está na análise das estratégias ideológicas no acervo do PNBE 2008 para a Educação Infantil, através do método da Hermenêutica da Profundidade. As conclusões apontam que as representações positivas dos negros são poucas e que a supremacia das representações de brancos serve para a manutenção do seu grupo como norma social (OLIVEIRA, 2010, p. 144). Trata-se de um estudo extremamente questionador de vários lugares-comuns historicamente construídos em torno da literatura infantil, que, embasado em um sólido rigor científico, descobre os mecanismos de transmissão ideológica perpetrados na Educação Infantil. A autora dialoga com uma grande variedade de estudos que apontam para conclusões análogas e procura relacioná-los com as mudanças na atual Lei de Diretrizes e Bases: Vários(as) pesquisadores(as) no campo da literatura e das relações raciais buscaram de alguma maneira denunciar situações de desigualdades criadas no plano simbólico, a fim de que fossem percebidas e modificadas. Por essa razão, leis foram criadas com o intuito de romper com tendências racistas presente nas obras de literatura infantil. (OLIVEIRA, 2010, p.45) 34     1.4 Guia de leitura da dissertação Os interlocutores privilegiados desta dissertação são os professores dos AIEF, uma vez que ela foi concebida para funcionar como um subsídio para o trabalho desses professores com a mediação de leitura de literatura infantil negra na formação do leitor aprendiz desse período escolar. Assim sendo, a organização do discurso preza pela inteligibilidade e procura abarcar uma gama de conhecimentos básicos que possam colaborar para o sucesso da atividade de mediação leitora com esse tipo de texto. Tendo isso em mente, estruturamos esta dissertação em cinco capítulos, contando com esta introdução. No capítulo 2, situamos historicamente o problema da inserção do negro nos sistemas de ensino formalmente constituídos no Brasil, no intuito de refletir sobre o contexto atual como consequência de um longo processo, cujas raízes remontam à época da chegada dos primeiros africanos escravizados. No terceiro capítulo, delineamos as fundamentações teórico-metodológicas que subsidiam nossa reflexão. A explicitação das escolhas metodológicas, com o relato geral da condução da pesquisa e a descrição do campo de investigação, com seus sujeitos e dinâmicas constituem o foco do capítulo 4. Em seguida, no quinto capítulo, abordamos o processo de construção e os excertos mais relevantes do corpus, procedemos às análises dos dados à luz das teorias elencadas e propomos uma avaliação interpretativa das respostas da comunidade escolar à intervenção realizada. Por fim, delineamos algumas considerações finais, abordando tanto os resultados que podem ser tidos como conclusivos quanto os que permanecem como questões abertas, enquanto convite a futuras reflexões. De modo geral, estas reflexões inserem-se como um pequeno braço das muitas ramificações científicas da luta internacional contra todas as formas de discriminação racial. A leitura de literatura serve-nos então, não para um fim alheio a si própria, mas por seu caráter intrínseco de atividade humanizadora (AMARILHA, 2012), que traz em si o potencial de incluir diferentes tipos de diferenças (SOUZA, 2009). Em particular, elegemos os negros e os valores afrocêntricos não como mero tema de pesquisa, mas como foco de identificação (HALL, 2000) que nos convida a desvelar o “mundo africano” (SILVA, P. B. G., 2005, p.31), a partir do lugar periférico que lhe foi legado pela história, no intuito de contribuir para “enegrecer e africanizar” (SILVA, P. B. G., 2005, p.31) não só a ciência da educação - cuja história é tão marcadamente eurocêntrica (CAMBI, 1999) - mas como oportunidade de os sujeitos “tornarem-se negros” (SOUZA, 1983), incluso o pesquisador e, quiçá, o próprio leitor. 35     2 A ESCOLA E AS IDENTIDADES NEGRAS: uma história de mundos em choque O teórico dos Estudos Culturais com o qual dialogaremos bastante neste texto é Stuart Hall, que inicia o ensaio “Que 'negro' é esse na cultura negra?” não respondendo a essa pergunta, mas propondo outra: “que tipo de momento é este para se colocar a questão da cultura popular negra?” (HALL, 2006, p.317). Ainda que sua resposta seja, em vários aspectos, válida aqui e agora, ele falava a partir da perspectiva de um imigrante jamaicano na Inglaterra, na segunda metade do século XX. Caber-nos-ia, então, esboçar uma atualização da resposta para a realidade brasileira atual, mas, limitando-nos ao contexto escolar. Com isso, pretende-se refletir, ainda que de forma breve, sobre a configuração atual das relações étnico-raciais nas escolas brasileiras e sobre as raízes históricas do momento presente. De fato, há uma série de fatores que nos compelem a adotar a contextualização histórica como metodologia de pesquisa. Em primeiro lugar, a necessidade deste levantamento vem do reconhecimento, por parte do pesquisador, do quanto seu próprio conhecimento é restrito, frente à amplidão do tema tratado. Não só o pesquisador, mas também entre os professores da Educação Básica, há um premente desconhecimento sobre a África e as culturas negras (BRASIL, 2012). Corroboram essa afirmação também alguns dados recolhidos nesta pesquisa, que serão abordados nos capítulos 5 e 6. Isso porque, ao longo de nossa vida escolar, boa parte de nós brasileiros, tivemos um contato reduzido com tudo aquilo que caracteriza o universo dos negros e sua experiência humana. Além disso, a história oficial que nos foi contada, em muitos casos, vinha carregada de representações deturpadas dos negros e de seu papel na edificação da nação. Silva, A. C. (2005, p. 21) confirma tal afirmação ao sistematizar dados de várias pesquisas acerca dos livros didáticos e asseverar que: No livro didático a humanidade e a cidadania, na maioria das vezes, são representadas pelo homem branco e de classe média. A mulher, o negro, os povos indígenas, entre outros, são descritos pela cor da pele ou pelo gênero, para registrar sua existência. Assim, esta etapa da pesquisa pode ser vista como um esforço no sentido de preencher minimamente essa lacuna, fruto de uma inabilidade das nossas escolas em lidar 36     com a diversidade cultural, e contrapor determinadas visões estereotipadas aprendidas ao longo da vida escolar. Em segundo lugar, como estamos trabalhando com uma temática ligada às diferenças e aos preconceitos presentes na sociedade brasileira e observados no campo de pesquisa, é importante considerar a historicidade da relação entre esses dois fenômenos para contrastar uma visão que naturaliza tal relação. Isso significa enxergar os preconceitos como um constructo sociocultural historicamente determinado, em consonância com Buendgens e Carvalho (2016), que esclarecem que "não são as diferenças que produzem por si mesmas os preconceitos, enquanto a expressão do preconceito está sempre em correspondência com o modo de produção da vida." ( p. 598). Deste modo, através da contextualização histórica, estamos contextualizando também as categorias de análise que se baseiam nas expressões de preconceitos, buscando desnaturalizar essas expressões ao sublinhar o processo sócio-histórico de sua gestação e disseminação, no qual a escola teve participação ativa. No entanto, devido às contingências deste estudo, não nos propomos a aprofundar esta discussão histórica e somos os primeiros a reconhecer seu modesto alcance. Focalizaremos alguns aspectos da história da educação dos negros no Brasil, buscando evidenciar, por um lado, as consequências do racismo institucional da escola para o desenvolvimento identitário dos aprendizes negros e, por outro lado, as formas de resistência cultural - com a recorrência à afirmação identitária como forma de luta política - que os afrodescendentes opuseram à práxis segregante e que têm repercutido em mudanças significativas nas políticas públicas para a educação. Pretendemos, portanto, somente apontar caminhos de análises possíveis e indicar referências importantes, que poderão ajudar o leitor a alargar a perspectiva aqui delineada. Entendemos que, para discutir o papel da escola na construção afirmativa das identidades negras é preciso, em linhas gerais, problematizar a história da educação dos negros no Brasil, repensando - dentre outras coisas - sua condição enquanto sujeitos desse processo, para que essas identidades possam ser definidas em confronto com referenciais próprios. É nesse sentido, que Lopes (2011, p. 211) pensa a reconstrução da identidade negra, quando conclui que: Na hora, então, em que o Brasil afrodescendente procurar recompor os elos que o unem à sua ancestralidade, em busca da recuperação de toda uma identidade perdida, cabe às lideranças procurarem levar o povo negro a desenvolver sua consciência, para que conheça adequadamente sua realidade passada e presente, 37     pois só isso o levará à reconquista de sua identidade e sua autoestima para ser finalmente produtivo e feliz. Consideramos que a escola reúne condições para atuar como uma dessas lideranças e que pode, assim, desempenhar um papel fundamental nessa (re)conquista da identidade negro-brasileira. No entanto, conforme apontam alguns estudos apresentados na próxima sessão, em muitos casos, a própria escola é uma das promotoras dos primeiros contatos dos aprendizes com representações distorcidas de si e de seu legado étnico- cultural. Daí advém a necessidade de toda a comunidade escolar ressignificar suas práticas, repensando o lugar da cultura popular negra e indígena dentro da escola, tanto nos conteúdos quanto na relação diária com a cultura dos próprios aprendizes, de modo que os não brancos (que, segundo o último Censo, realizado em 2010 pelo IBGE, correspondem à maioria da população brasileira) também possam ver-se representados e representar-se. Um dos primeiros passos para tanto é considerar historicamente a relação dos negros e de suas culturas com a cultura escolarizada no Brasil, buscando reconhecer as raízes de atitudes pedagógicas que atualizam a homogeneização, através do apagamento e/ou da distorção das diferenças. 2.1 A luta dos negros por uma educação que respeite suas histórias e suas culturas As principais manifestações culturais negras que se desenvolveram e permanecem, até hoje, no Brasil podem ser relacionadas a algumas culturas de civilizações milenares que floresceram na África desde muito antes da chegada dos primeiros navegantes oriundos de povos de outros continentes (primeiro os árabes, depois os europeus) e que foram se modificando através do contato com esses povos. O que garantiu esse lastro de permanência foram poderosos mecanismos de transmissão cultural que, em última análise, podem ser identificados como processos educativos, através dos quais as gerações seguintes ficavam conhecendo o modo como seus antepassados viviam e pensavam. O conhecimento dessas origens e desses processos é fundamental para os educadores que pretendem, hoje, promover a construção de identidades negras afirmativas por parte de seus educandos, já que, para isso, é necessário que os negros representem-se e vejam-se representados como sujeitos de suas histórias. 38     Contudo, conforme foi dito anteriormente, devido ao limitado escopo deste trabalho, não temos condições de discutir acerca das origens das identidades afro- brasileiras e dos processos educativos que as mantiveram vivas até os nossos dias. No entanto, existe um sem número de trabalhos, facilmente acessíveis, que exploram em profundidade esses temas e que constituem-se como rica fonte de pesquisa para os professores do ensino básico. Assim, para o conhecimento das origens geográficas e culturais dos povos africanos que formaram o Brasil e de suas contribuições nesse processo, recomendamos a leitura da obra Bantos, malês e identidade negra (LOPES, 2006). Dentre suas contribuições para os educadores, podemos citar: a evidenciação da enorme diversidade étnica que os povos africanos guardam entre si, através do estudo detalhado das principais etnias atingidas pelo tráfico negreiro, de suas histórias e de seus locais de fixação em terras brasileiras, feito através de cuidadosa análise historiográfica; a descrição de inúmeras formas de resistência negra, com o resgate da história dos principais quilombos brasileiros e dos movimentos revoltosos na Bahia; o esclarecimento acerca do equívoco quanto à parcela da contribuição dos povos bantos para a formação da cultura brasileira, em comparação com os malês; e o estabelecimento de novos parâmetros acerca das relações entre o Islã e as culturas negras. Uma vez em terras brasileiras, esses povos vivenciaram o grande desafio de conseguir reproduzir as suas culturas em ambiente novo e hostil às suas representações. Desta forma, os modos de transmissão dessas culturas podem ser vistos como mecanismos de defesa, através dos quais os sujeitos resistem aos ataques, afirmando sua existência através da preservação dos conhecimentos e dos modos de vida de seus ancestrais. Dentre esses modos de transmissão, as expressões religiosas africanas e as histórias da tradição oral podem ser consideradas formas de resistência contra a dominação do colonizador e acabaram configurando-se como fios condutores que possibilitaram a preservação do legado cultural negro-brasileiro. Nas formas individuais e coletivas, em senzalas, quilombos, terreiros, irmandades, a identidade do povo negro foi assegurada como patrimônio da educação dos afro-brasileiros. Apesar das precárias condições de sobrevivência que a população negra enfrentou e ainda enfrenta, a relação com a ancestralidade e a religiosidade africanas e com os valores nelas representados, assim como a reprodução de um senso de coletividade, por exemplo, possibilitaram a dinamicidade da cultura e do processo de resistência das diversas comunidades afro-brasileiras. (BRASIL, 2006, p. 16) 39     Silva (2012), por sua vez, apesar de sublinhar a enorme diversidade das jumbai africanas, traça um esquema geral para a estrutura dessas narrativas, que nos esclarece acerca da forte presença da religiosidade nos contos tradicionais africanos trazidos para o Brasil pelas populações escravizadas. De modo que as histórias da tradição oral, enquanto memória cultural sistematizada coletivamente, revelam em sua configuração uma preocupação em manter viva uma visão particular do mundo: no topo está Deus, o supremo criador e sede de todos os poderes para todos, seja qual for o grupo étnico. Na base estão a magia, as mezinhas e as forças menores. Nas laterais desse triângulo estão os poderes subordinados, que são os outros deuses e os antepassados. E, no meio do triângulo, com a função de equilibrar todas as forças que afetam a vida, a família, o trabalho, estão os seres humanos. (SILVA, 2012, p. 148) No tocante à educação formal, durante séculos, a maioria da população negra teve seu acesso aos sistemas de ensino sistematicamente negado pelas diversas políticas públicas adotadas no Brasil, seja por legislações expressamente proibitivas, ou por restrições de ordem prática (SILVA e ARAÚJO, 2005). No caso, por exemplo, da província do Rio Grande do Norte, já em 1837 proibia-se a entrada de pessoas ‘não livres’ nas aulas públicas pelo Projeto n. 20, datado de 4 de novembro deste ano, acompanhado da sanção do presidente da província (RIO GRANDE DO NORTE, 1837, manuscrito). Dessa forma, as populações indígenas e negras escravizadas ficavam fora da escola. Essa interdição ocorria em outras províncias do país como atesta o artigo 39 das disposições gerais da Lei Provincial n.8 da província de Mato Grosso: “Somente as pessoas livres podem frequentar as Escolas Públicas, ficando sujeitas aos seus regulamentos”. Esta proibição foi mantida até pelo menos 1878, período ao longo do qual o Regulamento da Instrução Pública explicitamente interditava aos escravizados a matrícula na instrução primária da província em seu artigo 119 (SÁ e SIQUEIRA, 2000). Também na província do Maranhão houve legislação nesse sentido, como explicita o artigo 41 do Regulamento da Instrução Pública de 1854: “Não poderão ser admitidos à matrícula: §4º os escravos” (CASTRO, 2009). Desejamos, com esses exemplos, sugerir o quanto essa proibição foi abrangente no período imperial brasileiro. É importante notar porém, que, apesar de todo tipo de interdição, a educação sempre foi almejada como um direito prioritário na luta dos negros por melhores condições de vida e que, por isso, desde o início, eles buscaram inserir-se em processos 40     educativos formais e não formais, enfrentando corajosamente os inúmeros entraves. A esse respeito, Cruz (2005, p.29) afirma que: A luta das camadas negras pela sua inclusão no processo de escolarização oficial evidencia que mesmo à margem da cidadania os negros acompanharam os processos de compactação da nação brasileira e nele exerceram influência. Os mecanismos do Estado brasileiro que impediram o acesso à instrução pública dos negros durante o Império deram-se em nível legislativo, quando se proibiu o escravo, e em alguns casos o próprio negro liberto, de frequentar a escola pública, e em nível prático quando, mesmo garantindo o direito dos livres de estudar, não houve condições materiais para a realização plena do direito. Enquanto a historiografia tradicional brasileira construiu a imagem do negro- vítima (SANTOS, 2012), no momento atual, a tendência tem sido a de busca por fontes enjeitadas no passado, na tentativa de enriquecer o debate e reconstruir outras histórias possíveis da entrada dos afrodescendentes nas escolas brasileiras, almejando superar a “incompatibilidade intrínseca entre as fontes oficiais e a história do oprimido” (SILVA e ARAÚJO, 2005, p.67). Desse modo, No que se refere propriamente à escolarização dos negros, segundo os modelos oficiais, percebe-se que eles sempre estiveram em contraponto a afirmações que alegam sua incapacidade para a vivência bem sucedida de experiências escolares e sociais. Tal fato pode ser comprovado pela ascensão de uma intelectualidade negra desde o período republicano que, via domínio da escrita, atingiu espaços sociais dos quais os brancos pareciam detentores absolutos. (CRUZ, 2005, p.29) Contudo, apesar da retórica democrática das reformas republicanas, o nascente sistema educacional brasileiro não teve outra prioridade além da manutenção dos privilégios estabelecidos. É somente com o primeiro surto industrializante que, em inícios do século XX, assistimos a abertura de uma oportunidade concreta de escolarização para os negros: o ensino profissionalizante. Os egressos deste ensino formam uma nova classe social, cuja mobilização: configurou-se como um mecanismo de autoproteção e resistência, servindo de base para a (re)organização das primeiras reivindicações sociais negras no pós- abolição e o surgimento dos movimentos negros. (SILVA e ARAÚJO, 2005, p.73) Já na década de 1920, a luta dos movimentos negros recém reorganizados alcança destaque na vida política e social do país. Eles reivindicavam a valorização do negro através do respeito às idiossincrasias dos descendentes dos povos africanos e da garantia 41     de iguais oportunidades de ascensão social, dando grande ênfase à educação. Organizam- se então iniciativas próprias de experiências educacionais de e para afrodescendentes, respeitando seu legado histórico-cultural, como as escolas da Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro, com ênfase na alfabetização de adultos (SILVA e ARAÚJO, 2005). A partir daí, a atuação de conscientização daqueles movimentos, inspirada nas marchas dos negros estadunidenses por direitos civis e aliada aos crescentes fluxos migratórios em direção à região sudeste, constituíram-se em fator de forte pressão social por cidadania e direitos. No entanto, a democratização efetiva do acesso ao ensino, estendendo-o a grandes contingentes de população oriunda das classes populares, começou a tomar corpo somente a partir da década de 1960 (COSTA e OLIVEIRA, 2009). Não obstante, o modelo de escola no qual foram inseridos os filhos das camadas populares pouco modificou-se em relação à configuração elitista e eurocêntrica que esta instituição mantinha desde seus primórdios. Notadamente, a história e a cultura dos afrodescendentes não chegam a adentrar os currículos escolares e, quando, porventura, são abordadas, são apresentadas sob o olhar do atraso e da “coisificação”. Conforme aponta Garcia (2007, p.46): Constata-se uma pretensão de esquecimento, negação e silenciamento sobre algumas temáticas que têm um cunho estratégico, que precisa ser analisado. Tal atitude integra uma construção simbólica e ideológica advinda de uma dada cultura hegemônica europeia, que legitima o discurso racista da superioridade do branco em relação ao negro. 2.2 Atual configuração das relações étnico-raciais nos AIEF Com base no exposto na sessão anterior, propomos a caracterização dos diversos sistemas de ensino formais constituídos no Brasil enquanto palcos históricos de um choque de culturas entre a institucional – da ideologia branca dominante, embasada no darwinismo social, associado a ideais eugênicos e higienistas (SKIDMORE, 1976) - e a dos aprendizes de descendência africana e indígena, que era, em muitos casos, oriunda de sociedades tradicionais de culturas de transmissão oral, baseadas no respeito à ancestralidade (SILVA, 2012; LOPES, 2011). 42     Seja pelos currículos oficiais – propalando representações estereotipadas e depreciativas de sua história e cultura (SANTANA e MORAES, 2009) -, seja pelas práticas cotidianas, esse embate resultou em significativo prejuízo para o desenvolvimento dos aprendizes de etnias não brancas. Este prejuízo, no entanto, encontrou explicação comodamente assentada no mito da democracia racial brasileira (SKIDMORE, 1976), que o justificava não pela inadequação do ensino, mas através de teorias racistas como a da natural indolência e ignorância da raça negra. Com a abertura democrática dos anos de 1980, as demandas históricas dos movimentos negros ganham ainda mais visibilidade na opinião pública (SANTOS, 2005). No entanto, a Lei nº 9.394, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, não contempla as demandas pela inserção da cultura negra nos currículos escolares. Somente na década de 2000, com a subida de um partido de centro-esquerda ao poder, o país começa a adotar políticas públicas compensatórias, dentre as quais, as cotas de acesso ao ensino superior são o exemplo mais vistoso, tanto pelo debate gerado quanto pelo sucesso alcançado. É neste contexto que surge a Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da História e Cultura Africanas na educação básica e, como consequência dessa, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Tais legislações, por alterarem preceitos básicos da própria função do sistema educacional, avultam potencialmente como um verdadeiro marco divisor na história da educação brasileira. Porém, importa fazer a ressalva de que, no quadro das intensas disputas travadas em torno das recentes políticas educacionais compensatórias, passados treze anos da implementação da Lei 10.639/2003, várias pesquisas apontam para seu baixo nível de implementação, persistindo, ainda hoje, boa parte dos problemas históricos descritos acima (BRASIL, 2012). Dentre as dificuldades enfrentadas, sobressaem a inadequação da formação docente e a resistência da comunidade escolar (BRASIL, 2012, p.68). Portanto, no momento atual, os esforços dos educadores e atores sociais comprometidos com a causa da igualdade racial é no sentido de construir os meios que resultem na implementação efetiva da legislação. Vale destacar, nesse âmbito, ações como a construção, em 2008, por parte de um grupo de trabalho interministerial, do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que define claramente as atribuições dos vários entes formadores dos sistemas de ensino. 43     Também é importante salientar a atuação do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD - que vem sistematicamente retirando dos Guias para a adoção de coleções no Ensino Básico, obras que veiculem estereótipos e preconceitos de condição social, regional, étnico-racial, de gênero, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos. Ressalta-se ainda o grande número de pesquisas que vêm sendo editadas e distribuídas gratuitamente pelo MEC, através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECADI –, os quais funcionam como indutores de um incremento qualitativo e quantitativo dos estudos nesta área. Finalmente, tem sido crucial para a aproximação entre os pesquisadores e os profissionais da educação básica a atuação dos NEABs e do programa UNIAFRO. Dessa forma, consideramos que ainda são necessárias ações positivas em prol da causa da igualdade racial, tendo em vista a conscientização social para o efetivo atendimento às demandas históricas da luta dos povos afrodescendentes pela superação do racismo e de suas nefastas consequências. Nesse processo, torna-se fundamental reconhecer as conquistas alcançadas, que são vitórias históricas dos movimentos de resistência negra. Porém, é essencial também fazer uma leitura adequada das estatísticas oficiais de acesso aos bens educacionais, como em Garcia (2007), e reconhecer que, ainda hoje, no Brasil, a cor da pele constitui fator relevante para o sucesso ou insucesso escolar. 44     3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS A passagem histórica do saber pedagógico das especulações filosóficas às ciências da educação foi completamente consolidada na segunda metade do século passado. Tal consolidação só foi possível porque aquele saber posicionou-se problematicamente no cruzamento de vários eixos do fazer científico, abrindo-se ideológica e metodologicamente. No entanto, com a emergência dos questionamentos trazidos pela pós-modernidade, novos problemas educativos são gerados, reclamando respostas conceituais das ciências da educação. A esse respeito, Franco Cambi assevera que: A pedagogia deve aparelhar-se para compreender as culturas “outras” (em relação à ocidental, greco-cristã-burguesa) […]. Trata-se então de colocar en question o etnocentrismo da pedagogia e desmascarar suas características de “racismo” e de intolerância, para favorecer a centralidade de princípios não etnocêntricos, antirracistas etc., para depois identificar também as vias para torná-los operativos – e o mais depressa possível – na sociedade, […] (CAMBI, 1999, p. 640, grifos do autor). Assim, consideramos que, para buscar essa compreensão, a pedagogia precisa voltar-se para o outro, o diferente, aquele que ela não conhece, e aprender com ele, ouvindo suas histórias e conhecendo seu modo de viver e de pensar, para poder ser com ele, ambos enriquecidos com essa cooperação. Portanto, faz-se necessária uma mudança radical no próprio modo de construção do conhecimento nas ciências da educação, enquanto discursos que pretendem uma objetividade e uma universalidade que mascaram o contexto cultural e político no qual foram produzidos, sendo, nesse caso, o contexto da sociedade capitalista ocidental. Não propomos com isso a invalidade de todas as teorias científicas construídas, nesse contexto, ao longo dos séculos de mentalidades colonialistas. Propomos, sim, uma necessidade de hibridização desses conhecimentos com outros, construídos a partir de epistemologias outras, desenvolvidas segundo códigos culturais e intenções políticas próprias. Nessa perspectiva, Santos e Meneses (2010) trabalham com o conceito de Epistemologias do Sul, para designar a diversidade epistemológica do mundo. O Sul é aqui concebido metaforicamente como um campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo. [...] o colonialismo, para 45     além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e/ou nações colonizados. (SANTOS e MENESES, 2010, p. 19) Assim, as epistemologias do Sul procuram valorizar os saberes que sobreviveram e buscam construir uma ecologia de saberes, que se estabelece através de um diálogo horizontal entre as diferentes epistemologias. No caso da pedagogia brasileira, a ecologia de saberes exige o diálogo com as epistemologias negras e indígenas e com aquelas resultantes da miscigenação cultural, atentando para seus processos de ensino- aprendizagem, ou seja, o modo como o conhecimento é compartilhado e transmitido numa determinada organização social. O conhecimento daí resultante é que pode impactar nas práticas sociais, pois será o conhecimento útil para empoderar as classes subalternizadas pelas consequências do colonialismo. Daí podem nascer novas narrativas da nação, fruto do reequilíbrio das forças que definem quem pode contar sua própria história. No contexto brasileiro, e não só, o papel primordial da educação poderia ser definido como a gênese da transformação que permitirá ao subalterno afirmar sua voz e, a partir do lugar marginal que lhe foi relegado, deslocar os centros de poder, conquistando autonomia para participar efetivamente das decisões que definem os rumos do país. O caminho para tal fim passa pela implementação de propostas pedagógicas radicalmente democráticas e libertárias, que partam dos interesses dos próprios educandos, respeitando sua condição de sujeito na construção de seus conhecimentos e valores. Há diversas propostas que implicam uma educação com essas características, dentre elas, aquelas direcionadas à construção de relações étnico-raciais mais horizontais, contudo, um dos educadores mais influentes no nosso país continua sendo Paulo Freire. Suas ideias têm sido reapropriadas, dando-lhes novos direcionamentos mais urgentes no contexto contemporâneo. Os conceitos que definem as bases da educação dialógica com vistas à autonomia dos sujeitos envolvidos, como definidos em Freire (1987) continuam válidos e talvez nunca tenham sido tão urgentes. O autor trabalha seu discurso baseado em oposições como opressor e oprimido, educador e educando, ser mais e ser menos, educação bancária e educação libertadora, etc. Como potencialidade capaz de gerar a síntese de todas as dicotomias, Freire (1987) propõe o diálogo como ato de amor e fundador do mundo. Ele opõe, então, a pedagogia dialógica, baseada na colaboração, união, organização e síntese 46     cultural à pedagogia antidialógica, sustentada pela conquista, dominação, manipulação e invasão cultural. Portanto, a prática educativa que desconsidera as vozes dos aprendizes seria uma forma de aliená-los em nome de um saber enciclopédico que não guarda nenhuma relação com a experiência concreta dos homens em ação conjunta. Dessa forma, a educação dialógica deve trabalhar com temáticas significativas para os educandos, os chamados temas geradores, que são os temas pertinentes aos modos de determinada comunidade ser no mundo, isto é, à sua cultura. O objetivo da pedagogia do oprimido seria então, não a libertação dos educandos por parte dos educadores – o que, por si só, configuraria já uma nova hierarquia, mas a instauração da condição de revolução permanente, na qual todos os envolvidos no processo educativo libertam-se em comunhão. Tais propostas são muito relevantes para o fazer pedagógico de cunho antirracista que visa construir as condições necessárias para que as comunidades descendentes de etnias não brancas possam libertar-se do jugo opressor engendrado pelo capitalismo e pelo colonialismo. Levando em conta tais exigências, acreditamos ser a pluralidade conceitual - além da pluralidade metodológica de pesquisa - o embasamento adequado para a construção do conhecimento em educação. Por isso, para estudar o trabalho de formação do leitor na perspectiva das relações étnico-raciais, a pesquisa procura posicionar-se problematicamente na encruzilhada de vários caminhos teóricos: mediação pedagógica (VYGOTSKY, 1999), literatura (SOUZA, 2009; AMARILHA, 2012; YUNES, 2010, 2015) literatura infantil (CADEMARTORI, 1991; OLIVEIRA, 2010), literatura infantil negra (SILVA, 2012; CUTI, 2010; ALVES, 2012), leitura de ficção e a formação do leitor (AMARILHA, 2012, 2013; ISER, 1999; JAUSS, 2002; FREITAS, 2005; SMITH, 1991; ZILBERMAN, 1989), formação da identidade negra e relações étnico-raciais no Brasil como um todo e, especificamente, na escola (HALL, 2000, 2006; CAPUTO, 2008; CANEN, 2007; CANDAU, 2008) e metodologia da andaimagem (GRAVES; GRAVES, 1995; BRUNER, 1995). O pressuposto fundamental de nossa argumentação teórica é que o trabalho de formação do leitor nos AIEF, levado a cabo através da mediação de leitura com obras de literatura infantil negra pode impulsionar o processo de construção afirmativa das identidades negras pelos aprendizes, dentre vários outros estímulos ao seu desenvolvimento. Tal assertiva avança uma série de conceitos que serão abordados em mais detalhes neste capítulo. Esclarecemos que, devido à amplitude do referencial teórico com o qual 47     necessitamos dialogar para fundamentar nossas escolhas metodológicas, e dadas as limitações inerentes ao estudo, não temos condições de aprofundar algumas das questões levantadas, que se relacionam a uma rede complexa de conceitos antropológicos e sociológicos. Desse modo, concentraremos nossa discussão acerca da formação das identidades negras no conceito que dá título à obra A identidade cultural na pós- modernidade (HALL, 2000), associado a um ferramental teórico correlato que nos ajude a discutir a questão racial na perspectiva dos negros, mas sempre focando nas implicações para o processo pedagógico de formação do leitor a partir de obras de literatura infantil negra. Mormente, interessa-nos explorar os postulados teóricos que ajudem a compreender a estruturação da metodologia de mediação de leitura por andaimes, justificando as opções de atividades de cada uma de suas etapas. O objetivo do quadro teórico assim construído é o de compor uma rede de significados, onde constem as definições mais relevantes que permitam construir sentidos possíveis para a atividade de mediação de leitura literária e suas implicações, servindo, assim, como subsídio ao trabalho dos mediadores. Como se trata de uma perspectiva dilatada, teremos o cuidado de apontar as principais referências cuja leitura permita o aprofundamento das discussões sobre cada um dos temas tratados. 3.1 Mediação pedagógica Fixemo-nos, neste ponto, nas questões empíricas do fazer pedagógico que, neste trabalho derivam, em grande medida, do pensamento de Vygotsky, que confere centralidade aos aspectos socioculturais do desenvolvimento humano. Assim, ele sugere que as funções psicológicas superiores, como a imaginação, a atenção voluntária, a memória lógica e a gênese dos conceitos, não são inatas aos sujeitos, mas desenvolvem-se a partir da mediação semiótica, ou seja, do contato com os signos produzidos pela cultura em que estão inseridos (Vygotsky, 1999). Esse contato, por sua vez, é proporcionado pela interação com membros mais experientes dessa cultura. Com isso, o valor da interação social para o aprendizado é redimensionado, já que são os estímulos externos da atividade social que o impulsionam. Destarte, para Vygotsky, todas as relações que os sujeitos estabelecem com a realidade dão-se de forma mediada, sendo que o instrumento intermediário primordial é a própria linguagem, que permite a internalização da atitude reflexiva face aos objetos e, 48     recursivamente, face à própria linguagem. Portanto, a mediação pedagógica é a atividade que permite ao educando um contato mais profícuo com os códigos culturais da sociedade onde está inserido, sendo o mediador o responsável por facilitar esse contato, ajudando-o na decodificação e na reflexão, visando o estabelecimento da comunicação que, por sua vez, promove o aprendizado. Freitas (2005, p. 28) conceitua a mediação como sendo "o processo de intervenção de um elo intermediário numa dada relação, cumprindo uma função específica: suscitar uma nova relação". Contudo, a autora esclarece que esse elo intermediário não corresponde à mediação em si, já que ela subentende a iniciativa própria do sujeito e as condições objetivas do contexto no qual se dá a interação. Desse modo, a autora entende mediação como uma "totalidade de processos sociais articulados" (FREITAS, 2005, p. 29) que interferem na experiência pessoal dos sujeitos, que, por sua vez, emergem do processo em um grau diverso de desenvolvimento real. Para que possamos esclarecer melhor o conceito de mediação, dentre as diversas construções conceituais de Vygotsky acerca do aprendizado, destacamos a de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) (Vygotsky, 1999). Trata-se de um dos conceitos mais produtivos nos estudos psicológicos do aprendizado e significativos para a nossa pesquisa. Em termos simplificados, a ZDP pode ser definida como a diferença entre o que um aprendiz consegue fazer sozinho e aquilo que pode realizar com a ajuda de um mediador mais experiente. Logo, tal definição pressupõe a existência de níveis distintos de desenvolvimento: o real e o proximal. O desenvolvimento real expressa o grau constituído de autonomia dos aprendizes, enquanto o proximal revela as aspirações dessa autonomia, ou seja, suas potencialidades, sendo as intervenções do mediador estímulos à estruturação de ZDPs. Portanto, o papel do mediador seria, primeiro, conhecer a zona de desenvolvimento real do aprendiz, depois, ao planejar sua intervenção, estimar até onde essa zona pode estender-se e, por fim, criar ZDPs, através da exploração conjunta dos símbolos construídos culturalmente. Numa analogia à construção de um edifício, tais intervenções seriam como os andaimes que garantem a sustentação do sistema, durante sua fase de instabilidade, sendo a permanência dos andaimes aquilo que possibilitará ao sistema chegar a uma condição mais estável, na qual as partes acomodam-se e formam a estrutura final. Dessa metáfora deriva o nome da metodologia de mediação de leitura por andaimes, ou andaimagem, que será o método empregado na parte prática da pesquisa. Relacionando, pois, essas teorias com a leitura de literatura, a formação do leitor, e a construção afirmativa das identidades negras chegamos ao entendimento do elemento 49     central de nossa fundamentação teórica, qual seja, o de que a leitura de literatura é uma atividade formativa numa perspectiva de formação integral do sujeito, pois estimula seu desenvolvimento cognitivo, linguístico, estético e afetivo, ao mesmo tempo em que promove sua socialização e amplia seu horizonte de experiências. Isso significa que podemos enxergar o trabalho do mediador de leitura literária como uma atividade com função humanizadora. Consequentemente, defendemos que a escola tem a obrigação de promover o contato sistemático dos aprendizes com os textos literários. No caso particular de leitores principiantes, por vezes, esse contato só se dá de forma adequada pelo trabalho de um mediador de leitura que possa apoiar o aprendiz em sua exploração de objetos culturais de complexidade mais elevada que sua maturidade permite desvendar. Esse fato explica nosso interesse em construir conhecimentos que subsidiem o trabalho desse ator – o mediador. 3.2 Literatura Infantil Negra O símbolo cultural em que baseamos nossa mediação pedagógica é a literatura infantil negra. Tentaremos conceituar agora o que queremos designar com essa expressão, dividindo a explanação em três momentos. Primeiro, avançaremos uma discussão preliminar que nos permita distinguir, em linhas gerais, as características típicas de alguns textos que nos permitem classificá-los como literários. Depois, enquadraremos os aspectos mais relevantes para nosso estudo acerca da literatura infantil, ponderando sobre algumas implicações dessa delimitação. Por fim, acrescentaremos a segunda delimitação à matéria original, esclarecendo novamente as consequências e também as justificativas para o emprego deste outro adjetivo. 3.2.1 Que Literatura? O conceito acerca do que é literatura é uma tarefa extremamente árdua e que pode fadar-se ao fracasso, à partida, caso persiga-se uma designação totalizante desse fenômeno. Na verdade, essa é uma discussão histórica, que envolve uma extensa gama de reflexões e que tem conduzido os teóricos a conclusões distintas, dependendo do enfoque metodológico a partir do qual pensam a literatura: sua função, suas características distintivas, seus efeitos, etc. É nessa perspectiva que Lajolo (1982) afirma que a teoria 50     literária, tanto quanto a literatura em si, é um objeto social que varia no tempo e no espaço, de acordo com os esquemas culturais e políticos das sociedades que a produzem e utilizam. Um exemplo original de exploração da teoria literária segundo um enfoque político específico é oferecido por Souza (2009), que elucida a construção histórica da teoria literária segundo autores que a articulam com a perspectiva da inclusão social. Com esse procedimento, a autora discute, a partir das funções atribuídas à literatura em diferentes períodos históricos, sobre como o potencial inclusivo da literatura foi explorado ao longo dos séculos. Assim, a princípio, a autora aponta as proibições relacionadas à literatura adotadas por sociedades altamente hierarquizadas (como o regime feudal da Europa, durante a Idade Média) como uma evidência de seu caráter libertador da opressão e, portanto, inclusivo. Em seguida, enfocando o processo de leitura literária, marcado por sua função social, Souza (2009, p. 142) argumenta acerca da permanência de práticas leitoras excludentes na atualidade. Mais adiante, ao centrar-se no conceito de literatura enquanto, acima de tudo, arte, a autora sublinha suas qualidades estéticas e comunicacionais, que implicam o diálogo, como fortes indícios de sua capacidade de incluir. Por fim, a falta de interesse da escola em lidar com construções culturais que, como a arte, têm um fim em si mesma é analisada enquanto parte de uma estratégia de poder que acaba por manter as classes mais pobres em situação de marginalização. Nesse sentido, a universalização do acesso à literatura é defendida enquanto caminho possível para a inclusão social (SOUZA, 2009, p. 152). A autora finaliza seu enfoque teórico alertando para o perigo da deturpação da perspectiva inclusiva da literatura em uma asserção utilitarista. Souza (2009, p. 156) conclui então que: o que garante o potencial inclusivo do texto literário não é a abordagem explícita e pragmática de questões referentes à inclusão social, como a diferença, o preconceito e a diversidade étnica [...], mas sim a profundidade de seu conteúdo, a experiência, os sentimentos e as reflexões que promove em torno de todo e qualquer absurdo do mundo. Na expansão da lógica que enxerga na literatura um meio de enfrentamento das adversidades do mundo, Yunes (2010) afirma que: O esforço por manter-se inteiro (íntegro, no latim) depende do tornar-se pessoa e do desejo para criar uma capacidade de resistência a este sorvedouro das identidades e das singularidades, que é o mundo contemporâneo: aqui nos transformamos em meros receptores passivos e atordoados. É preciso desejar outra coisa, que corresponda à serenidade de encontrar satisfação fora do 51     circuito programado alienante, para responder à contingência dos tempos. (p.58) Adentrando, assim, nesse universo de alta complexidade, limitar-nos-emos a discutir as características do texto literário que servirão de base para as análises que avançaremos, acerca das observações recolhidas durante as sessões de mediação oral de leitura de literatura infantil negra. Visando tal fim, focalizaremos três aspectos fundamentais: a plurissignificação, a ludicidade e o caráter comunicativo da literatura. A questão primária na caracterização da literatura é a da literariedade, que pode ser definida como a particularidade que distingue os textos literários dos não literários. Dentre o rol dos atributos que conferem literariedade a um texto, interessa-nos aquele que distingue o texto literário enquanto plurissignificativo. Essa distinção reside na impossibilidade de se atribuir ao texto literário um significado imediato e unívoco, já que a estrutura da obra mantém sua significação em aberto, sendo necessário um papel ativo do leitor, no sentido de preencher as lacunas de acordo com sua própria subjetividade (BORDINI e AGUIAR, 1993, p. 15). Interessa-nos ressaltar a plurissignificação pelo fato de ela ligar-se diretamente a um aspecto da recepção do texto literário presente em postulados teóricos diversos (ZILBERMAN, 1989; ISER, 2002), e observado na pesquisa de campo: a diversidade na recepção textual dos aprendizes. Trata-se das duas pontas de um fenômeno comum. Em seguida, como estamos lidando com o universo infantil, que é uma etapa da vida na qual a brincadeira tem presença marcante, devemos considerar a atração que o caráter lúdico da literatura exerce sobre a atenção da criança. Em primeiro lugar, podemos identificar o lúdico na linguagem literária em si, que subentende o brincar com palavras, em dois sentidos: o jogo com a materialidade dos signos linguísticos, como sua sonoridade ou sua aparência visual; e o jogo com os significados desautomatizados, que convidam o leitor a explorar várias possibilidades interpretativas. Sublinhamos, portanto, a brincadeira análoga às advinhas, presente no desafio que o texto literário lança ao seu leitor: "decifra-me!" Esse traço liga-se à plurissignificação e pode ser fonte de grande prazer para o leitor que, frente ao estranhamento e à quebra de suas expectativas, explora as possibilidades de significação e consegue montar o quebra-cabeças, sentindo-se elogiado em sua inteligência (AMARILHA, 2012). Outra dimensão do lúdico na literatura fundamental para a nossa argumentação teórica é o jogo de vestir as máscaras do texto, no caso específico dos gêneros narrativos. 52     Apesar de as regras desse jogo serem em grande medida ditadas pelo autor, ele está mais próximo ao ato da leitura. Por essa razão, discutiremos esse tópico mais adiante, quando abordarmos o trabalho do leitor de literatura ao interagir com o texto. A atividade lúdica proporciona o contato com o simbólico. Por isso, a relação entre o jogo e o desenvolvimento humano é um dos elementos fundantes de diversas teorias pedagógicas. A esse respeito, Vygotsky (1999) traz uma definição de brincadeira intrinsecamente relacionada ao aparecimento da imaginação, enquanto processo psicológico pelo qual a criança busca superar suas tensões, realizando na fantasia seus desejos que não podem ser imediatamente satisfeitos. Contudo, não se trata, segundo ele, de um processo inteiramente imprevisível, mas baseado em regras que modelam os conteúdos imaginários. Desse modo, a brincadeira implica sempre o convívio entre imaginação e regras, e esse convívio constitui-se num impulsionador do desenvolvimento da criança, pois permite-lhe exercitar o pensamento abstrato e vivenciar determinados papéis sociais, antecipando o futuro. Podemos refletir então sobre a leitura de literatura como promotora do desenvolvimento, já que é uma brincadeira que permite à criança adentrar o mundo ficcional, exercendo sua imaginação segundo as regras estabelecidas pelo texto. Assim, se levarmos em conta que, quando a criança veste as máscaras, ela antecipa aspectos de sua vida adulta, podemos perceber que o lúdico na literatura funciona como um ensaio para os papéis sociais. Por fim, ressaltamos os atributos da literatura que nos permitem classificá-la como um veículo comunicacional. Após a década de 1960, sob influência da multiplicação das teorias da comunicação, os estudos literários experimentaram uma transição no seu eixo de interesse, deixando de enfocar prioritariamente a estrutura da obra em si - conforme uma longa tradição que chega até os meados do séc. XX - para debruçar-se mais sobre seu caráter comunicativo. Como qualquer processo comunicacional pressupõe a existência de um interlocutor, com essa transição, o leitor passou a ocupar um lugar de destaque na teoria literária. Particularmente, os autores da Escola de Constança, que desenvolveram a teoria que ficou conhecida como Estética da Recepção, sublinharam a necessidade de participação do leitor para a concretização da criação literária, negando que sua análise seja possível sem o estudo das relações entre autor-obra-público. Tais relações serão abordadas mais adiante neste capítulo. Por ora, importa-nos especificar o caráter comunicativo da literatura, corroborando com a visão de Iser (1999). Segundo o autor, ainda que o texto literário seja uma construção ficcional, aquilo que ele comunica ao leitor diz respeito ao mundo real. Podemos conjugar esse fato com os conceitos de mímese e 53     verossimilhança, já que a literatura, para discutir a realidade, perpetra a sua recriação, inaugurando um ponto de vista inédito sobre as coisas. Assim, para que a comunicação seja possível, pressupõe-se a interação entre o texto literário e o leitor, e não só, mas também o diálogo dentro de uma comunidade de leitores, o que admite a análise da leitura enquanto fato social, conforme veremos mais adiante. Como instrumento plurissignificativo e comunicacional, que depende da reflexão subjetiva do leitor para consumar-se, a literatura tem, pois, a incrível possibilidade de comunicar ao leitor algo sobre si próprio, que, quiçá, ele ignorava ou negava-se a aceitar. Essa é considerada como uma das funções básicas da arte, que é a de promover a catarse (ZILBERMAN, 1989). Jauss (2002) define a katharsis (conforme a grafia adotada pelo autor) como o processo através do qual o leitor, pelo prazer de encontrar-se a si próprio no texto, libera sua psiquê, podendo, ao mesmo tempo, transformar suas convicções. Essa função da arte literária relaciona-se estreitamente com um aspecto da recepção leitora que explicitaremos na seção 3.5 e com o qual dialogaremos ao longo deste trabalho: a identificação com personagens ficcionais, através da qual o leitor projeta sua biografia sobre determinado personagem e passa a viver suas aventuras em seu lugar. Trata-se, portanto, de duas características que se complementam e conferem à atividade de leitura literária o viés de autoconhecimento, através das experiências vivenciadas na ficção. 3.2.2 - Literatura Infantil A literatura infantil como conhecida tradicionalmente no Ocidente, nasce no contexto histórico europeu do pós Revolução Francesa, a partir da necessidade de escolarização das classes burguesas e populares e é herdeira de uma pedagogia para a infância cujo maior objetivo é a superação da própria infância, sem que sejam levadas em conta as suas necessidades. Isto é, essa literatura nasce baseada em uma correlação de forças extremamente desigual: não somente pelo fato de adultos escreverem para crianças, mas porque o fazem segundo uma lógica de imposição de valores. É nesse sentido que Cademartori (1991) problematiza as consequências da adjetivação do termo literatura, quando o adjetivo implica um público-alvo determinado (como é o caso de literatura infantil) e/ou uma concepção utilitarista para a literatura assim rotulada. Destarte, a autora argumenta sobre o caráter segregacionista dessa rotulagem, pois ela tenderia a criar formatos fechados como: 54     literatura para negro, literatura para homossexual e, assim por diante, selecionando-se e circunscrevendo-se o que os dependentes e/ou segregados da grande sociedade adulta masculina e branca devem ler.” (CADEMARTORI, 1991, p. 9). Argumentaremos na seção seguinte que esse não é o caso do adjetivo "negra" que acrescentamos ao termo já adjetivado literatura infantil. No Brasil, a literatura infantil aparece tardiamente, após a proclamação da república, quando aumentam as preocupações com a instrução pública. No eixo de sua ancestral europeia, essa literatura apresenta, inicialmente, um discurso institucional e moralizante, visando o endoutrinamento e a submissão da criança ao adulto. É somente nas primeiras décadas do século XX, com o surgimento de nomes como os dos escritores Monteiro Lobato (1882-1948) e Cecília Meireles (1901-1964), que a criança passa a ser valorizada em sua especificidade, adquirindo pensamento e voz próprios. Dialeticamente, mais tarde, o nacionalismo e a censura dos anos de ditadura militar impulsionaram o desenvolvimento da literatura infantil brasileira, já que vários autores, como Joel Rufino dos Santos (1941-2015) e Ruth Rocha (1931-), usaram-na como estratégia para fugir à censura. Todavia, no tocante às relações étnico-raciais, existem diversos estudos que denunciam na literatura infantil uma tendência à naturalização de relações raciais hierarquizantes, que acabam por transmitir ideias preconceituosas acerca dos negros e universalizar perspectivas eurocêntricas. Dentre as características mais relevantes em que se apoiam tais denúncias, Oliveira (2010, p. 140-142), comparando seus resultados com uma ampla gama de estudos relacionados ao tema, aponta a sub-representação de personagens negros em textos e ilustrações, menor complexidade constitutiva dos personagens negros, estereotipia na ilustração de personagens negros, correlação de personagens negros com profissões socialmente desvalorizadas, naturalização da condição do ser branco e o alijamento do cotidiano e da experiência da criança negra na concepção dos personagens. A autora conclui então que: A literatura infantil apresenta-se como um campo fértil de afirmações de padrões culturais, inclusive de autoafirmação étnica. (ARBOLEYA e ERES, 2008). Nesse aspecto a literatura infantil converge, principalmente, a afirmações de padrões culturais brancos. (OLIVEIRA, 2010, p.141) Tais características não constituem um problema apenas para as crianças negras, 55     mas para todas as crianças, pois perpetuam uma visão distorcida acerca da diversidade humana, dificultando a valorização das diferenças, que é um dos pressupostos básicos para a convivência democrática e harmônica entre as diversas etnias. Podemos afirmar que tais características configuram-se como um entrave para a construção da cidadania plena, por perpetuar a divisão da sociedade em classes distintas de cidadãos. Nesse sentido, os formadores de leitores devem escolher com muita atenção as obras que compõem seu repertório de leitura, inserindo obras que, ao contrário das que apresentam as características levantadas, representem adequadamente a diversidade étnico-cultural, dando a conhecer aspectos específicos de suas histórias e culturas, tirando as etnias não brancas de sua condição de exceção. 3.2.3 Literatura Infantil Negra: conceituando o termo Neste ponto, estamos aptos a esboçar uma conceituação do termo literatura infantil negra e justificar seu emprego. Em primeiro lugar, devemos enfatizar o entendimento de que, todas as vezes que utilizamos a palavra negro(a) neste texto, estamos designando um fenômeno eminentemente sociocultural e não biológico. De fato, seja na discussão dos aspectos teóricos, seja na condução da intervenção, procuramos nos afastar de qualquer classificação de cunho biológico. Mesmo porque esse tipo de argumentação baseada na biologia, dentro das ciências sociais aplicadas, configura a base do próprio racismo que combatemos nesta pesquisa. Entendemos, pois, como literatura infantil negra o conjunto de obras literárias produzidas para a infância que representa como tema central aspectos das histórias e das culturas dos povos negros, seja na diáspora ou no continente africano. Conforme alertamos anteriormente, essa denominação nada tem a ver com a cor da pele de quem escreve ou de quem lê, mas surge através de uma analogia com o termo "literatura negra", que, dentre suas especificidades, destacamos o tratamento dominante de temáticas da vida dos negros em sociedade a partir de um ponto de vista próprio de um eu enunciador negro, que recorre ao conjunto de representações do imaginário que os negros têm de si próprios para operar uma paulatina construção identitária (BERND, 2011, p. 21). Atualmente, no Brasil, a maioria das pesquisas prefere empregar a expressão literatura afro-brasileira, ainda que sejam poucas as que justifiquem essa escolha. A própria Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório “o ensino sobre História e Cultura Afro- 56     Brasileira”, adotou essa nomenclatura. Contudo, esse uso não é consensual. Há uma corrente de autores que vem travando um aceso debate, defendendo o uso do termo literatura negra, que se sistematizou desde finais da década de 1970 (ALVES, 2012). Segundo essa tendência, o termo se liga diretamente ao histórico de lutas dos movimentos negros brasileiros pela liberdade, igualdade e contra a discriminação racial. Além disso, denunciam o racismo epistêmico, perpetrado, dentre outras formas, pelo apagamento da palavra negro do âmbito acadêmico (CUTI, 2010), como se seu uso fosse vergonhoso, pela carga semântica que a história lhe impôs. Conforme argumenta Cuti (2010), o aumento verificado nos últimos anos no emprego do termo "afro" em várias esferas sociais brasileiras tira do centro da discussão o combate ao racismo, já que este se constituiu historicamente com base nas diferenças fenotípicas entre as pessoas. Com essa escolha, tende-se a veicular uma pretensa imagem de harmonia racial no país, evitando o enfrentamento da questão da discriminação racial. Portanto, conforme argumenta o autor através de um exemplo histórico, tal escolha não seria fortuita: No ano de 1978 foi lançado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial. Por que seus organizadores não deram o nome de Movimento Afro-...? Não se trata de mera escolha gratuita de palavra. As palavras trazem conteúdo, têm suas histórias no idioma, seus significados e suas morfologias não são para sempre. É por isso que elas são escolhidas ou rejeitadas. Naquele momento (e ainda hoje) foi escolhida a palavra "negro" porque ela é a única do léxico que, ao ser empregada para caracterizar organização humana, não isenta o racismo. (CUTI, 2010, p. 4) Alves (2012), por sua vez, defende a importância da autodenominação da vertente literária assumida pelos negros, como resposta a Bernd (2011), que substituiu no título de sua antologia de poesia a expressão “negra brasileira” por “afro-brasileira”, mesmo tendo admitido anteriormente ser "nefasto ficar alheio às reivindicações do autor. Isto é, quando o desejo de um rótulo provém dos próprios autores." (BERND, 1988 apud ALVES, 2012, p.231). Conforme dissemos, o uso do termo literatura negra foi consolidado no Brasil através do trabalho próprio de um grupo de escritores negros, sobretudo através da coletânea Cadernos Negros, que surgiu em 1978 (ALVES, 2012, p. 221). Através dessa iniciativa, os autores buscavam despertar uma tomada de consciência e uma consequente postura autoafirmativa das populações negras no Brasil, empreitada na qual experimentaram certo sucesso, visto as repercussões geradas pelas coletâneas e a sua publicação ininterrupta até os dias atuais. Contudo, é no fogo cruzado da crítica literária que se constitui face à insurgente literatura negra que tal denominação acaba sendo posta 57     em cheque, devido ao desejo de alguns especialistas de classificá-la, explicá-la, legitimá- la e, finalmente, renomeá-la, segundo seus entendimentos próprios. Assim, Alves (2012, p. 233) conclui que: Os "legitimadores", impregnados de padrões eurocentristas que, na verdade, anulam as singularidades e os autoagenciamentos, na tentativa de renomear e no afã da descoberta, cometem grandes equívocos. Um deles é desconsiderar a agudeza da autodenominação "literatura negra", sugerindo outras [...]. Em particular, nos estudos sobre literatura infantil, é extremamente raro encontrarmos a designação literatura infantil negra. Acreditamos que tal opção ajuda a compreender o posicionamento político do autor, já que pressupõe diferenças discursivas, pragmáticas e histórico-sociais. Procuramos, neste estudo, contribuir com o esforço de ressignificação das palavras “negro” e “negra”, buscando subverter a carga semântica depreciativa que lhe foi atribuída por uma de autoafirmação e orgulho do pertencimento étnico, numa postura semelhante à da artista peruana Victoria Eugenia Santa Cruz, em sua célebre interpretação do poema de sua autoria Me gritaron negra (HERNÁNDEZ, 2012). Contudo, há uma característica que diferencia fundamentalmente a literatura negra da literatura infantil negra: a presença das ilustrações. De fato, o livro de literatura infantil recorre a modos semióticos distintos de representação, que afetam a recepção leitora, que, na luta pelo sentido, integra a informação escrita e a pictórica em seu processamento cognitivo. Trata-se da presença da multimodalidade na recepção leitora (AMARILHA, 2011), que será abordada na seção seguinte. No caso particular das obras de literatura infantil negra, as ilustrações adquirem uma relevância ainda maior, uma vez que, em sua recepção multimodal, os leitores mirins considerarão as representações imagéticas dos negros como parte integrante das narrativas. Portanto, as ilustrações podem influenciar toda a gama de aspectos da recepção nas quais estamos interessados, sobretudo a identificação com personagens ficcionais. Nesse sentido, na escolha do repertório, devemos atentar não somente para os modos como os negros são representados na narrativa e para a hierarquia de seu papel no enredo, mas também para a forma como são retratados nas ilustrações. A respeito da representação, uma das consequências da Lei 10.639/03 mais evidente, até o momento, é sentida no mercado editorial de livros de literatura infantil. O fato de o MEC passar a comprar obras de literatura infantil negra em grandes quantidades levou a uma corrida das editoras para publicar esse tipo de obras, o que aumentou muito o 58     número de obras publicadas sobre essa temática, nos últimos anos. Hoje, por meio do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD - e do Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE, a maioria das escolas públicas recebeu esses livros comprados pelo MEC. No entanto, como os resultados deste estudo apontam, somente a presença dessas obras na biblioteca escolar nem sempre garante o cumprimento da lei. Além disso, com a acirrada disputa mercadológica pelo novo jargão editorial, houve, nesse período, a publicação de inúmeras obras em que o caráter utilitarista acabou por suplantar o literário. Ou seja, no intuito de criar livros para atender à demanda específica de tematizar as relações étnico- raciais, acabou-se por editar livros didáticos ao invés de literários, já que, conforme argumentamos anteriormente, o fim último da literatura deve sempre ser a própria literatura. Assim como a literatura infantil de origens europeias, a literatura infantil negra, obviamente, também tem sua história, que em muito se diferencia da história daquela. Apesar de que, em seus primórdios, ambas convergem em um ponto: surgiram a partir de narrativas orais que, originalmente, não eram destinadas à infância, mas à sociedade como um todo. A grande diferença é que, no caso da literatura infantil negra, esses primórdios remontam a algumas regiões da África onde a preservação e transmissão da cultura amparava-se na oralidade. Essa tarefa era de responsabilidade dos guardiões da cultura oral, muito comuns até hoje, sobretudo na África Ocidental, onde são conhecidos mais comumente por griôs ou djélis (SILVA, 2012, p. 70). Conforme mencionamos no capítulo 1, Silva (2012) traça o percurso que se inicia nas junbai (histórias) africanas e chega até os livros de literatura infantil negra brasileira. Nesse percurso de inúmeras intempéries, ocorrem uma série de transformações nas narrativas originais, seja pela adaptação à linguagem e ao território diaspórico, através da qual as junbai foram incorporadas pela literatura oral brasileira, seja pela transculturação narrativa operada pelo reconto. É através da análise das obras para a infância dos autores Joel Rufino dos Santos, Rogério de Andrade Barbosa e Reginaldo Prandi que Silva (2012) descreve as características do reconto, enquanto gênero literário que transfigura as narrativas orais, no afã de fixá-las em texto escrito. No entanto, Silva (2011, p. 167) esclarece que "o escritor, ao contrário do contador, não é um repetidor da tradição." Assim, no seu processo de fixação pelo reconto, os contos tradicionais são recriados a partir da cultura e da inventividade próprias do escritor, afastando-se de seu antepassado tradicional para tornar-se um híbrido multicultural. O autor procura analisar esse processo recorrendo a conceitos diversos como: heranças e interações culturais, multiculturalismo, 59     descolonização, mestiçagem, heterogeneidade, transculturação narrativa e hibridismo. Não obstante, apesar de todas essas transformações, Silva (2012) busca reconhecer traços de continuidade que unem as junbai africanas e os livros de literatura infantil negra brasileira. Esses traços são reconhecidos nas reminiscências da performance oral dos griôs ou dos contadores de histórias nas características da linguagem escrita dos recontos literários. Aproveitando mesmo a concepção de Ungaretti (1992), que dizia que somente a voz fixaria o texto, afirmamos que a escrita de um conto popular traz em si essa necessidade premente que o texto tem de ser vocalizado, de ser narrado oralmente para ser completado. Esses textos oriundos da tradição oral são textos escritos com vistas à performance. A linguagem usada pelo escritor já informa essa intenção. Portanto, os escritores do reconto [...] já visam esse "conto sonoro", que tem forma própria e só está completo quando retorna para a oralidade, via leitura em voz alta ou narração oral, na qual funcionaria como um script. (SILVA, 2012, p. 167-168, grifo do autor) O autor encontra, portanto, na oralidade e na performance, o elo que une as duas pontas da travessia geográfica e cultural África-Brasil. Assim, entrecruzando esse entendimento com a relevância da oralidade na metodologia da andaimagem (que será abordada ao final deste capítulo), pode-se compreender o caráter central conferido à leitura oral nesta pesquisa. De modo que, para nós, o trabalho meticuloso do mediador com a prosódia na leitura oral de literatura infantil negra visa a recriação na escola da performance do griô ao contar, cantar e encenar suas junbai. Obviamente, reconhecemos o abismo que separa as duas atividades, mas, ao mesmo tempo, reconhecemos a importância dessa analogia como um ato de resistência cultural e reinvenção da tradição. 3.3 Leitura de ficção e a formação do leitor Feitos estes esclarecimentos, podemos avançar a discussão, procurando construir um embasamento teórico que, por um lado, elucide as principais propriedades da leitura literária, que é a atividade base de todas as nossas escolhas metodológicas, e, por outro, avalie suas implicações para a formação de leitores. Nesta seção, usaremos como apoio alguns conceitos formulados pelos autores da Estética da Recepção. Conforme dissemos anteriormente, os autores da teoria do efeito estético foram os responsáveis por elaborar uma ampla crítica ao estado da arte dos estudos literários na 60     década de 1960, dominados pelas perspectivas estruturalista e marxista que, de modo geral, subestimavam o papel do leitor para a efetivação e análise do fenômeno literário (ZILBERMAN, 1989). Dentre os principais autores responsáveis por essa ruptura intelectual, apoiar-nos-emos em Jauss, Iser e Stierle. Em primeiro lugar, enfatizamos alguns aspectos da natureza da recepção do leitor de ficção. De acordo com Stierle (2002, p. 135-136), “a recepção abrange cada uma das atividades que se desencadeiam no receptor por meio do texto, desde a simples compreensão até a diversidade de reações por ela provocadas”. Iser (2002) vai além e postula o leitor implícito, isto é, afirma que o leitor já faz parte da estrutura do texto, pois o autor leva-o em consideração ao criar sua obra. Portanto, através da ênfase nas relações autor-livro-leitor, enxergamos a leitura como um fato social. Nessa perspectiva, concordamos com Amarilha (2003, p. 12), que afirma que a diversidade é intrínseca ao ato de ler, assim como é intrínseca aos fenômenos sociais em geral: "Se educação é mudança e quem lê também muda, então, ler e educar significam mudar de foco continuamente." Assim, adaptando a célebre frase que o escritor Guimarães Rosa pôs na boca de seu personagem Riobaldo, poderíamos afirmar que “ler é negócio muito perigoso”. Perigo de não mais conseguirmos pensar, ser e agir como fazíamos antes da leitura. Isto é, quando iniciamos a travessia de um livro, nunca sabemos em que condições sairemos dela. A Estética da Recepção valoriza a experiência de ser leitor, dotando-o de criatividade e autonomia. Para Iser (1999), o leitor interage com o texto preenchendo espaços vazios e realiza sínteses derivadas de sua experiência com o mundo real. O autor enfatiza a diferença entre a experiência estética daquela cotidiana. Importa, ainda, ressaltar que, quando lemos, fazemo-lo com algum objetivo, mais ou menos consciente. Tal objetivo age como um determinante que influenciará o desenrolar de todo o processo de leitura. Uma das razões que podem impelir alguém a ler um texto literário é o prazer que se pode experimentar ao fazê-lo. De fato, pelas características próprias desse tipo de texto, o contato com esse material simbólico é capaz de despertar uma ampla gama de sensações, já que ele é concebido segundo uma lógica linguística que apela à sensibilidade do leitor. Portanto, para cultivar o gosto pela leitura, o prazer em ler deve ser um dos objetivos dos mediadores. Ao buscar o prazer na leitura, é preciso atentar para a afirmação de Barthes (1996), de que o prazer em ler é limitado pelo texto tagarela, que diz tudo, mesmo aquilo que o leitor poderia esforçar-se por imaginar sozinho. Esse tipo de texto imprime forte apelo à moral da história. Isso diminui o prazer advindo da 61     curiosidade e da descoberta, que Jauss (2002) chama de prazer cognoscente ou compreensão prazerosa. Chegamos assim à divisão proposta por Jauss (2002, p. 102), das três funções distintas que integralizam o prazer estético na atividade de leitura literária: poiesis, aisthesis e katharsis. A poiesis é a identificação pessoal com o texto. A aesthesis é a amplificação do horizonte de conhecimento e a katharsis é a projeção na direção do conflito, que Aristóteles relacionava à ideia de cura e Freud à de projeção. Um outro aspecto da leitura que nos interessa sublinhar é a sua dependência em relação aos conhecimentos prévios do leitor, já que é baseado neles que o leitor será ou não capaz interagir com o texto. De acordo com Smith (1991), a leitura depende, basicamente, de três elementos: informação visual, informação não visual (conhecimentos prévios) e interação entre texto e leitor. De fato, a ausência ou a precariedade dos conhecimentos prévios relacionados à temática de uma determinada obra literária pode impossibilitar o diálogo do leitor com o texto, limitando a eficácia do ato comunicativo que é a leitura. Por outro lado, o domínio prévio acerca dos conteúdos tratados pelo livro pode significar o aumento do interesse pela leitura, devido a uma maior consciência, por parte do leitor, a respeito do que ele espera alcançar através de seu ato de ler. Abordando a leitura sob um prisma psicolinguístico, Smith (1991) vincula essa atividade intelectual a uma explicação geral sobre a dinâmica da estrutura cognitiva baseada nos movimentos de previsão (perguntas) e compreensão (respostas). O autor distingue três fases dessa dinâmica. Primeiro, a fase de previsão, fruto da curiosidade epistemológica, na qual formulamos hipóteses sobre o futuro a partir do que aprendemos no passado. Em seguida, a etapa de seleção, que é quando focalizamos nossa atenção, eliminando ambiguidades e hipóteses improváveis. Por último, a verificação, na qual procuramos comprovar as hipóteses validadas. Esse esquema é importante por ser um embasamento teórico capaz de justificar a estratégia de mediação leitora adotada na nossa etapa de intervenção. Esquemas teóricos generalizantes como esse ajudam-nos a embasar nossa reflexão acerca da atividade de leitura literária. No entanto, devemos lembrar que essa é uma atividade altamente subjetiva - como todas aquelas que implicam um alto grau de abstração - e que, portanto, a recepção é, também, uma função da personalidade e da história de cada indivíduo. Nesse sentido, Amarilha (2012, p. 87), ao afirmar que a leitura depende do contexto subjetivo do leitor, define esse contexto como sendo o seu “momento psicológico”. Realça-se, assim, o caráter processual e provisório da recepção, 62     bem como a relevância dos eventos que ocorrem na vida do leitor para as respostas que ele formula ao texto. De fato, o caráter autobiográfico da leitura literária está diretamente relacionado ao conceito de horizonte de expectativas, em confronto com o horizonte literário. Enquanto o horizonte literário designa aspectos intrínsecos à estrutura textual, o horizonte de expectativas depende do que definimos acima como momento psicológico do leitor, pois nele subentendem-se os desejos, as necessidades e a integração de todas as experiências prévias do leitor, que funcionam como um mapa que aponta o quê e como procurar aquilo que se espera encontrar em um livro (ZILBERMAN, 1989). Isto quer dizer que projetamos muito do que somos sobre a obra literária, em nossa busca por aquilo em que queremos nos transformar. Portanto, a recepção varia não somente de um leitor para outro, mas também de acordo com as fases da vida de um mesmo leitor, o que explica o fato de, ao relermos um livro em momentos distintos da vida, expressarmos respostas bastante diferentes para o mesmo texto. Destarte, entre o leitor aprendiz e a ficção, tece-se uma teia complexa de relações, dentre as quais, queremos agora assinalar o jogo de vestir as máscaras do texto como um dos fatores que possibilitam que o potencial comunicativo da literatura se realize. Assim, os efeitos catárticos de identificação com personagens ficcionais são vistos como expedientes dos quais o leitor lança mão para poder adentrar o processo comunicativo iniciado pela narrativa, respondendo ativamente a ele. Com isso, chegamos ao mecanismo cognitivo de aproximação do texto ficcional de maior relevância para nosso embasamento teórico: a identificação com personagens de ficção. Amarilha (2013, p. 67) define esse mecanismo como "o processo pelo qual o leitor atribui para si e vive, temporariamente, a vida do personagem." A mesma autora afirma que a identificação com personagens funciona para o leitor aprendiz como etapa de capacitação para lidar com os códigos culturais. Desse modo, participar do jogo literário seria como “adentrar um teatro no qual se é, a um só tempo, ator e espectador” (AMARILHA, 2012, p. 55). Destacamos, portanto, a subjetividade dessa atividade, na qual a criança vive experiências psicológicas guiadas pelo livro, mas sem a supervisão do adulto. Contudo, como dissemos, a criança é capaz de enxergar-se enquanto lê e vivencia conflitos internos, comparando os eventos literários com os reais. Portanto, trata-se de um processo intelectual de exercício no simbólico de alto refinamento, cujos progressos estimulam o desenvolvimento da autoestima e das identidades em construção na criança. Amarilha (2013) identifica, então, dois modos opostos de identificação com 63     personagens: por espelhamento, que é o modo pelo qual o leitor identifica-se com o que é semelhante a si, e por alteridade, que ocorre quando o leitor aproxima-se daquilo que lhe é diferente. Contudo, alguns dados elencados (AMARILHA, 2013, p. 70) apontam para a complexidade que envolve o processo de identificação, que pode desdobrar-se em vários eixos, que admitem, inclusive, identificações contraditórias entre si em uma mesma leitura. A autora recorre então ao conceito de subjetividade variável (ZILBERMAN, 1989, p. 33) para qualificar o leitor de literatura em seu oscilante caminhar entre o real e o ficcional. Ao identificar-se com um personagem de ficção, o leitor entra em sintonia com os valores, ideias e formas da comunidade em que o personagem se situa. Ao mesmo tempo em que o processo catártico ocorre, o leitor responde, em contrapartida, com os seus valores e os seus sentimentos, naquele momento, a todo o conjunto de valores sociais representados pelo personagem, pela história, pelo narrador da ficção. Percebe-se, portanto, a intrínseca relação entre o lúdico manifestado na identificação do leitor e o texto e a ação interativa resultante - que é um ato comunicativo. (AMARILHA, 2012, p. 85) Assim, tudo depende de uma aceitação prévia do leitor das regras do jogo do texto. Caso ela exista, o leitor poderá vestir as mais variadas máscaras, ainda aquelas sejam bem diferentes dele próprio, como em uma brincadeira coletiva de faz de conta, com a diferença que, ao invés dos seus pares, aqui, é o texto quem define as relações de seu papel individual com o papel coletivo. É esse papel ativo que o leitor assume, voluntariamente, que o permite comunicar-se de fato com o texto, isto é, situá-lo em relação à sua própria vida, expandindo os horizontes da leitura para além do texto em si, em direção à realidade. Desse modo, podemos argumentar que a representação literária somente influenciará os processos de formação da identidade cultural se o leitor aceitar adentrar no teatro da leitura. Lá, ele encena enquanto assiste a si próprio encenando, já que, ao pôr-se no lugar do personagem, o leitor não dispõe de mais nada além da sua própria biografia para investir, tecer comparações e apropriar-se dos sentidos nascidos do diálogo entre seu eu e o outro do texto. Complementando essa discussão, atentamos ainda para o fato de que nem sempre os leitores têm consciência acerca da verdadeira natureza dos personagens ficcionais com os quais interagem. Nesse sentido, pesquisa relatada em Amarilha (2012, p. 59-67) mostra que leitores imaturos, por vezes, não distinguem bem as noções de personagem e de pessoa. Tal observação sugere não só a capacidade da literatura de interagir com a 64     realidade, mas também que o encontro com os primeiros personagens de ficção diferencia-se menos do que imaginamos dos encontros com pessoas reais. Desse modo, a verossimilhança coloca-se como um enigma para o leitor inexperiente. Nas palavras de Amarilha (2012, p. 65), "o encontro com a bruxa é interpretado pela criança como possibilidade plausível que apenas ainda não ocorreu, e os traços de caráter da personagem apenas reforçam o quanto ela é real." Portanto, a percepção da natureza distinta de personagens e pessoas figura como um desafio para o formador de leitores, que poderá encontrar no trabalho sistemático e longitudinal com a literatura um meio de enfrentá-lo, uma vez que o aprendizado dessa distinção representa um pré-requisito para a aquisição de uma postura crítica e autônoma frente ao texto literário. Nessa lógica, argumentamos, portanto, que a vida de cada leitor interfere naquilo que ele percebe da vida narrada dos personagens literários com os quais estabelece contato. No entanto, postulamos também a veracidade da via de retorno desse argumento, isto é, que o contato com as narrativas de ficção impacta na vida real. Tal afirmação pode ser melhor compreendida ao refletirmos sobre a identificação com personagens enquanto uma experiência vicária proporcionada pela leitura de ficção (Amarilha, 2012). Apoiando- se na experiência catártica, ao projetar-se em um personagem, o leitor é capaz de viver suas aventuras em seu lugar, ampliando assim seu repertório sobre o que a experiência de ser humano pode significar, não só do ponto de vista cognitivo, mas também do emotivo. Logo, há uma infinidade de eventos passíveis de serem vividos pela literatura, incluso aqueles ambientados em contextos sócio-históricos bastante diferentes dos nossos, o que amplia enormemente os limites das experiências possíveis dentro de uma única existência física. Sendo aquelas experiências fonte de conhecimento e inspiração que tendem a enriquecer essa existência restrita a um único corpo. Com isso, chegamos à conclusão de que a experiência de leitura literária é capaz de promover um diálogo entre o passado, o presente e as expectativas de futuro. Nesse sentido, Amarilha (2012, p. 88) assevera que: A criança, ao relacionar-se com o texto ficcional, relaciona-se implicitamente com o passado coletivo que constitui os valores, as ideias as formas expressas no texto; organiza seu presente através das informações, experiências, identificações que o texto propõe, e projeta seu futuro transformando as matérias da vivência coletiva e individual através da fantasia, das possibilidades vivenciadas na interação com o texto. Essa discussão permite-nos antever a dificuldade que representa para um leitor 65     iniciante promover a distinção entre realidade e ficção. A saber, não apenas ele, mas também leitores maduros experimentam, uns mais, outros menos conscientemente, a sobreposição entre o mundo dos eventos físicos e o dos eventos literários. Isso porque, em um nível mais profundo de análise linguística, o mundo dito objetivo não é outra coisa senão o entrelaçamento de uma profusão de discursos com diferentes graus de subjetividade baseados na experiência sensível. Para entendermos a abrangência da interferência das narrativas nos modos como a mente humana percebe a realidade, focalizamos o trabalho de Bruner (1998), que defende a existência de dois modos independentes de funcionamento cognitivo da mente, o pensamento paradigmático (lógico-científico) e o narrativo, que atuam para construir a realidade particular dos sujeitos, ordenando suas experiências, cada um a seu modo, numa relação de complementariedade. Assim, o papel das narrativas, em comparação à lógica operativa, na estruturação da consciência mesma é redimensionado, passando as histórias a serem consideradas meios pelos quais os indivíduos conhecem-se a si e aos outros, funcionando como base de sua atuação social. Dentro desse complexo modo de refletir acerca da relação entre ficção e realidade, consideramos o texto literário como fruto do trabalho do autor com a imaginação e a memória das experiências do mundo empírico. Trata-se de um processo mimético que, apesar de singular, possui vários pontos de ancoragem na realidade. Assim, o texto narra experiências vividas por personagens imaginários, mas que, por sua verossimilhança, o leitor aproxima de suas próprias experiências. Não obstante, na outra ponta do fenômeno literário, o leitor dá continuidade ao processo imaginativo desencadeado pelo autor, exercendo uma ação imaginativa relevante para a atribuição de sentidos e, logo, para a realização da natureza comunicativa da literatura. Portanto, para leitores pertencentes ao estágio de desenvolvimento com o qual trabalharemos, ler literatura pode ser um meio profícuo de exercitar a criatividade imaginativa, que, de acordo com a proposição apresentada por Vygotsky (1999), ainda é um fenômeno recente para eles, mas cuja evolução será um dos principais motores do seu crescimento cognitivo. Em suma, queremos enfatizar em nossa análise a atividade de leitura de ficção enquanto um fato social, o qual pode configurar uma vantagem para o leitor em termos de inserção e participação nos debates fundantes da cultura na qual se insere. Isso porque, conforme afirmamos, o leitor, ao entrar na narrativa, dialoga com personagens enraizados na vida, seja no modo mimético ou fantástico, e procura compreendê-los estabelecendo comparações com sua própria biografia. Ao fazê-lo, ele é compelido a posicionar-se 66     frente à polifonia de vozes do texto e, concomitantemente, frente aos valores sociais implicados nos discursos. No caso da nossa pesquisa, dentre os constructos socioculturais com os quais os jovens leitores terão a oportunidade de interagir, sublinhamos aqueles em torno da diversidade étnico-racial e o relacionamento entre os descendentes de grupos étnicos africanos e os demais. Trata-se de um debate prioritário no atual momento histórico brasileiro e mundial, que é de luta por novas formas de participação social e pela efetiva democratização das relações étnico-raciais, com a inserção dos povos negros, indígenas e outros povos não brancos nas tomadas de decisões nacionais. Portanto, quanto mais cedo as crianças tiverem a oportunidade de se colocarem a par dessa discussão, maiores serão as suas chances de interferir criticamente nela, apontando novas soluções para velhos problemas. O próprio caráter lúdico da literatura permite à criança vestir as máscaras dos personagens para entrar no texto e, mais tarde, retornar à realidade e estabelecer comparações entre os dois mundos. Isto é, como qualquer brincadeira, a leitura de ficção subentende alternâncias entre períodos de atividade lúdica imaginativa e de retorno ao ordinário do cotidiano. Esse trânsito ajuda os aprendizes a aprenderem a habilidade de discernir entre ficção e realidade, que é um dos pressupostos para a conquista da autonomia leitora. Ora, se a leitura de ficção é um fato social, não podemos limitar-nos aos aspectos da recepção individual, mas devemos ressaltar também a reação do conjunto dos leitores de determinada obra, autor, gênero, período, etc., que formam uma comunidade interpretativa que pode ter dimensões que variam de uma escala restrita a um contexto local até uma comunidade global de leitores, como nos casos dos grandes bestsellers do mercado literário globalizado. Enveredando por esse viés e vislumbrando o conflito como relação estruturante da atividade social, podemos abordar os mesmos fenômenos que vimos discutindo acima sob o ponto de vista dos conflitos sociocognitivos advindos não só da leitura, mas, particularmente, da leitura compartilhada de literatura, mediada por um par mais experiente. Deveras, a narrativa de ficção já traz em sua própria estrutura a raiz dos conflitos que se desencadeiam com a leitura. Assim como postulam Adam e Revaz (1997), identificamos dois macromovimentos complementares no enredo ficcional: um que parte da situação de equilíbrio inicial e chega até o desencadeamento do conflito e outro que, a partir desse, processa a sua resolução, levando a ação a um novo estado de equilíbrio 67     final. Quando essa estrutura é explorada coletivamente é que emergem, pois, os conflitos sociocognitivos. Freitas (2005) faz uma análise aprofundada acerca desses conflitos, adotando, devido a seu enfoque de cunho social, a seguinte classificação de Almasi (apud FREITAS, 2005, p. 174-175): a) conflito consigo mesmo: indica uma reação metacognitiva do aluno sobre algum aspecto do texto ou acerca de uma interpretação fornecida por um colega que lhe causa confusão, desacordo; b) conflito com os outros: surgem quando os membros do grupo dividem suas interpretações durante as discussões; c) conflito com o texto: surge durante a discussão, quando os estudantes respondem ou expressam suas interpretações sobre uma determinada passagem do texto. A percepção desse tipo de conflito ocorre quando o professor ou o aluno alerta a um estudante que sua resposta não está na linha de raciocínio do que está escrito. Essa classificação pode ser muito útil para analisarmos a atividade de discussão de histórias, levada a cabo após a leitura de um texto literário junto a um grupo de leitores. No nosso caso, essa será, depois da leitura em si, a atividade central sobre a qual nos apoiaremos para refletir acerca da recepção dos alunos às obras que serão abordadas durante a etapa interventiva. Novamente, assim como Freitas (2005), focalizaremos nossa atenção na ação argumentativa do mediador de leitura, que pode funcionar, a um só tempo, como promotora da formulação oral dos conflitos sociocognitivos de qualquer um dos tipos por parte dos estudantes e também da sua resolução. Por estar mais ligada à atividade argumentativa alicerçante do método de mediação de leitura por andaimes, voltaremos a considerar as questões ligadas à emergência e resolução dos conflitos sociocognitivos ao final deste capítulo, quando abordarmos a andaimagem em si. Nas ações argumentativas analisadas em Freitas (2005), verificamos em vários momentos das discussões a recorrência às ilustrações como estratégia argumentativa (FREITAS, 2005, p. 65) usada tanto pela mediadora quanto pelos leitores aprendizes. Esse recurso sugere que os sujeitos integraram as ilustrações do livro de literatura infantil na sua recepção da história. Sobre esse fenômeno, Amarilha (2011) chama a atenção para a multimodalidade na recepção dos livros de literatura infantil, referindo-se à relação de complementariedade dos diferentes modos semióticos implicados naqueles sofisticados produtos culturais. De modo que à linguagem multimodal própria do livro, composta de texto escrito e imagens, somam-se a leitura oral da mediadora e os sentidos construídos pelo próprio aprendiz, em sua ação imaginativa, que é a sua resposta intelectual ao conjunto dos apelos sensoriais e simbólicos do livro. 68     A experiência de mediação oral de leitura baseada no suporte do livro de literatura infantil pode ser vista, então, como uma eficiente escolha pedagógica quando se visa pôr em prática um currículo escolar que se preocupe com a educação da sensibilidade. Assim, não só o contato com a multiplicidade semiótica como também as emoções experimentadas durante a leitura funcionam como estruturantes dos sentidos construídos pelos aprendizes. A multimodalidade é mais um aspecto que nos permite refletir acerca da pluralidade que envolve o trabalho escolarizado com a literatura. Aqui, falamos em pluralidade em vários sentidos, desde a diversidade das representações literárias em si, até a multiplicidade de métodos e enfoques a partir dos quais se pode promover a escolarização da literatura. Em nossa pesquisa, partindo da perspectiva de que a literatura pode promover a formação integral do ser humano, pretendemos desenvolver um trabalho multifocal, que, apesar de ter sua centralidade na leitura multimodal do livro, não se esgota aí, mas explora as possibilidades de diálogo com uma gama diversificada de conhecimentos, numa abordagem transdisciplinar oportunizada pelo próprio livro de literatura infantil. Segundo D'Ambrosio (1997), a transdisciplinaridade não anula as disciplinas, pelo contrário, fortalece-as, pois amplia seu nível de alcance, tornando possível a efetivação da metáfora da rede, ao deslocar a tônica da primazia dos conteúdos para a das conexões, da heterogeneidade e da acentralidade. Assim, o periférico passa a ter sua importância redimensionada. O essencial na transdisciplinaridade reside numa postura de reconhecimento que não há espaço e tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar, como mais correto ou mais certo ou mais verdadeiro, complexos de explicação e convivência com a realidade que nos cerca. Ao reconhecer que não se pode atingir um conhecimento final e, portanto, dever estar em permanente evolução, a transdisciplinaridade repousa sobre uma atitude aberta, de respeito mútuo e, mesmo, humildade, com relação a mitos, religiões e sistemas de explicações e conhecimentos, rejeitando qualquer tipo de arrogância e prepotência. (D'AMBROSIO, 2009, p. 11) Por sua vez, Ferreira (2007) investiga possibilidades de trabalho com a literatura, tratando-a como objeto transdisciplinar, em uma perspectiva metodológica semelhante à nossa. Nessa pesquisa, a proposta transdisciplinar funcionou como um caso particular de andaime, que ofereceu apoio os aprendizes em seu processo de atribuição de sentidos ao texto. Portanto, entendemos a transdisciplinaridade como uma proposta pedagógica que aproxima-se daquela que defendemos, em que os saberes se complementam e colaboram entre si, tendo como objetivo último, no nosso caso, o enriquecimento da recepção 69     estética dos aprendizes. 3.4 Literatura, multiculturalismo e a formação das identidades negras Tentaremos, nesta seção, relacionar os conhecimentos acerca da leitura literária e da formação do leitor tratados acima com as questões relacionadas à formação das identidades negras numa perspectiva afirmativa. Procuraremos, neste momento, responder a uma das questões de investigação formuladas na introdução, qual seja: como o trabalho com textos de literatura infantil negra, em atitude de andaimagem, pode contribuir para a construção afirmativa das identidades negras e para o combate ao racismo nos AIEF? Logicamente, para lograrmos êxito nessa tarefa, deveremos atentar para uma série de indagações correlatas, que nos permitam esclarecer os principais aspectos acerca da formação das identidades étnicas no contexto escolar da educação das relações étnico- raciais no Brasil. Tais questões são abarcadas pelos Estudos Culturais, que são uma área de estudos transdisciplinar, nascida na Inglaterra no final dos anos 1950, principalmente pelo trabalho do sociólogo jamaicano Stuart Hall. Trata-se de uma área muito produtiva ultimamente, sobretudo nas ciências da educação, na qual várias categorias vêm sendo criadas e outras ressignificadas, como multiculturalismo, interculturalismo, transculturalismo, diferenças, identidades culturais, raça, racismo, etnicidade, negritude, tradição, dentre outras. Cabe-nos, então, em primeiro lugar, estabelecer o conceito de identidade cultural na pós-modernidade (HALL, 2000). Comecemos por conceituar “pós-modernidade”. O termo é usado para indicar aquilo que é fruto da Idade Moderna, mas que já lhe é diferente. Assim, Hall (2000) mostra os sucessivos descentramentos que o pensamento sociológico tradicional foi sofrendo ao longo do século passado, que acabaram por modificar completamente a noção de sujeito e a questão da identidade. De modo que, apesar das diferentes óticas de análise, a sociologia pós-moderna é consensual ao empregar as ideias de descontinuidade, fragmentação, ruptura e deslocamento para conceituar a pós-modernidade (HALL, 2000, p.18). Já a noção de identidade é bem mais complexa do que nos é possível discutir aqui. Hall (2000, p.8) tenta condensar a discussão sobre a identidade cultural referindo-se a “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso 'pertencimento' a culturas 70     étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais.” Contudo, essa identidade, hoje, mostra-se provisória e fragmentária, uma vez que o colapso da paisagem social trazido pela globalização conduziu a uma fluidez muito maior nos processos de identificação, que faz com que a estrutura da identidade permaneça aberta às diferenças, as quais poderão ser incorporadas quando for conveniente. De modo que o sujeito não é mais o resultado coerente de uma única identidade, mas é composto de várias identidades, nem sempre com contornos bem definidos e, às vezes, contraditórias. As “narrativas do eu” são constantemente reformuladas, através do deslocamento contínuo das identificações. Ou seja, não há sentido em se falar de identidade como uma essência, mas como uma situação, um posicionamento provisório assumido como resposta a certos contextos (HALL, 2006). Neste ponto, destacamos a importância das representações culturais para as identificações, já que os sujeitos negociam o tempo todo com diferentes tipos de diferenças, como as de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Em particular, a cultura nacional, enquanto comunidade simbólica, é vista como um sistema discursivo que atua duplamente: como sistema de representação e foco de identificação. Dentre as manifestações que interferem na narrativa da nação, inclui-se a literatura nacional, a mídia e a cultura popular. Portanto, vale à pena questionar sobre o papel da escola na propagação das diversas narrativas de nação. A própria Lei 10.639/2003 nos ajuda a responder à questão, já que, combinada às DCN-ER, procura garantir que as histórias e as culturas dos negros brasileiros sejam incluídas de forma adequada na narrativa de nação propalada pela escola. Se, por um lado, a escola é o reflexo da sociedade que a forjou, ela atua dialeticamente na formação dos indivíduos que compõem essa sociedade. De modo que ela não é a única, mas uma das instituições responsáveis pela reprodução da cultura nacional, ou – o que, para nós, é o que importa – pela sua transformação. O trabalho com a literatura infantil negra pode ajudar a deslocar as narrativas hegemônicas em favor de narrativas marginalizadas, incluindo vozes silenciadas e promovendo o contato dos aprendizes com focos de identificação alternativos ao da grande indústria cultural. Dentro dessa perspectiva e baseados nos conteúdos abordados na contextualização histórica, consideramos a escola como herdeira da identidade nacional hierarquicamente dominante desde as fundações da nação: a de homem branco, adulto, heterossexual e cristão. Na verdade, não há nada de errado nesses traços identitários, a priori. O problema 71     decorre da insistência em se representar tal identidade como homogênea e universal, legando a real diversidade do povo brasileiro a um status marginal. Isso cria uma condição potencialmente alienante para os cidadãos cujas identidades não se encaixam nessas categorias. De modo que, a escola, na tensão que se projeta sobre ela entre lugar social de reprodução ou de transformação cultural, deve posicionar-se corajosamente em favor da construção de uma nova identidade nacional. Para tanto, não é necessário destruir-se tudo o que foi edificado em termos de cultura nacional até hoje. Faz-se sim, urgente, o estímulo à criação de espaços de contestação possíveis, através do descentramento das narrativas homogeneizantes, deslocando os focos de identificação em direção à margem (HALL, 2006, p. 319). Com o intuito de observar os efeitos do choque cultural vivido na escola na formação da identidade da criança negra, exploraremos o conceito de identidade cultural na pós-modernidade, conforme definido acima, relacionando-o às representações do negro presentes na literatura infantil adotada atualmente nas escolas. Para tanto, consideramos os efeitos catárticos de identificação como um dos fatores decisivos para a construção das identidades culturais. Porém, por tratar-se de um tema complexo e delicado, que se debruça sobre o modo como as pessoas vêm-se e projetam-se no mundo, devemos, a todo custo, evitar reducionismos e fórmulas prontas. Por isso, é importante reiterar que o conceito de identidade em si “é demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova.” (HALL, 2006, p.8) A identidade nacional aparece, portanto, não como fruto exato e unívoco da história institucional do país, mas passa a ser enxergada como “um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (HALL, 2006, p.50). Assim, a nação é uma comunidade simbólica que funciona como foco de identificação e cujos sentidos não estão dados a priori, mas se encontram em permanente estado de disputa e redefinição. É no nível dos sistemas de representação que ocorrem as disputas discursivas e ideológicas em torno da narrativa da nação “tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular.” (HALL, 2006, p.52). Assim, nossa preocupação central é analisar como o diálogo do leitor com as representações identitárias presentes nas obras literárias podem ou não conduzir a uma formação identitária afirmativa dos elementos característicos da cultura de sua etnia. 72     Pesquisas como as de Oliveira (2010) mostram como o contato com livros de literatura infantil nem sempre oportuniza aos aprendizes a construção afirmativa das identidades negras, já que as estratégias ideológicas presentes em alguns textos difundem valores hierarquizantes entre as etnias, colocando os povos brancos como norma identitária e os demais como desviantes. Dessa maneira, ao entrar em contato com representações deturpadas de sua etnia, os aprendizes negros sofrem um processo de negação daquele foco de identificação cultural e passam a identificar-se com os referenciais hegemônicos, numa tentativa de valorizar-se. É este o processo que Fanon (1983) descreve em detalhes, com nuances autobiográficos, classificando-o como psicopatologia da alienação cultural. O autor destaca o processo catártico de identificação com os vencedores: As histórias de Tarzan, dos exploradores de doze anos, de Mickey e todos os jornais ilustrados tendem a um verdadeiro desafogo da agressividade coletiva. São jornais escritos pelos brancos, destinados às crianças brancas. Ora, o drama está justamente aí. Nas Antilhas – e podemos pensar que a situação é análoga nas outras colônias – os mesmos periódicos ilustrados são devorados pelos jovens nativos. E o Lobo, o Diabo, o Gênio do Mal, o Mal, o Selvagem, são sempre representados por um preto ou um índio, e como sempre há identificação com o vencedor, o menino preto torna-se explorador, aventureiro, missionário “que corre o risco de ser comido pelos pretos malvados”, tão facilmente quanto o menino branco. (FANON, 1983, p.131) Ainda na perspectiva do trabalho com a literatura infantil, mas em sentido oposto, consideramos como a escola pode contribuir para a construção de identidades afirmativas, a um tempo orgulhosas de seus pertencimentos étnicos e enriquecidas pela valorização da alteridade. Barreiros e Vieira (2011) apontam para a possibilidade de desconstrução de preconceitos a partir de um trabalho adequado com as obras analisadas. Entretanto, destacam que boa parte do sucesso desta empresa depende do papel desempenhado pelo mediador de leitura, no sentido de estimular o exercício coletivo de construção de sentidos, confrontando o entendimento do eu em relação ao outro (BARREIROS e VIEIRA, 2011, p.345). A esse respeito, Mariosa e Reis (2011, p.47), reiteram a responsabilidade da escola na escolha do acervo de sua biblioteca, procurando sempre: optar por livros que contribuam para a formação de uma identidade positiva do negro e, simultaneamente, proporcionar aos alunos não negros o contato com a diversidade e as especificidades da cultura africana, deixando, assim, para trás, uma visão estereotipada e preconceituosa das idiossincrasias dos referenciais afrodescendentes. 73     Alertamos, pois, para esta tremenda responsabilidade de todos os sujeitos que atuam na comunidade escolar, qual seja, o fato de que a escola enfrenta constantemente o risco de promover o primeiro contato do indivíduo com uma representação distorcida de si e de seu passado étnico. Ou, visto de outra forma, a oportunidade da escola, constantemente renovada, de ressignificar suas práticas, no afã de priorizar uma formação multicultural, de respeito e valorização das diversidades. E é exatamente para estes aspectos que apontamos quando propomos que a instituição escolar brasileira promoveu e ainda promove uma deformação homogeneizante, ao priorizar o ensino de elementos culturais das etnias brancas. De modo análogo, o conjunto de instituições do Estado brasileiro, ao forjar a cultura nacional, difundindo uma dentre as possíveis narrativas da nação, fê-lo procurando legitimar o domínio dos povos brancos sobre os demais (SKIDMORE, 1976). No caso brasileiro, historicamente, os discursos inferiorizantes com relação aos afrodescendentes foram revestidos pelas instituições com o status de discurso oficial e o ideal de branqueamento da nação foi elevado ao posto de política estatal. Todavia, estas práticas discursivas não se sustentam por si, mas contam com o suporte de todo um conjunto de representações culturais espalhado pelas mais diversas esferas da vida social. Se convivemos na atualidade com uma postura oficial do Estado brasileiro com relação aos povos afrodescendentes bem diferente, é em outras esferas de representação que iremos encontrar os resquícios do mito da superioridade da raça branca. E aqui chegamos à compreensão da instituição escolar como herdeira da mitologia nacional, onde, quer nos currículos oficiais e ocultos, quer nas práticas arraigadas na cultura escolar, sobrevivem representações deturpadoras da cultura e da história do negro, ou senão, em alguns casos, sobrevive, sob a forma de tabu, somente a indiferença silenciosa. Já com relação aos discursos sobre as identidades africanas, todos nós educadores precisamos redobrar a atenção, pois, devido à falta de conhecimento sobre a África e mesmo sobre aquilo que os afrodescendentes reivindicam para si daquelas identidades, incorremos constantemente no risco de folclorização, através da cristalização de uma identidade africana tradicional, que, além de não passar de um mito, coincide justamente com as representações deturpadas que devem ser combatidas. Assim sendo, o foco a ser perseguido não está nas identidades originárias, mas nos híbridos culturais, como possibilidades inéditas que entrecruzam, atualizam e transformam as identidades. A esse respeito, é bastante elucidativa a concepção de Gilroy 74     (2002), de Atlântico Negro, que é fruto de um movimento de radicalização teórica que, no intuito de confrontar a ideia de culturas africanas autênticas, das quais as culturas negras diaspóricas alimentar-se-iam, propõe a existência de uma estrutura identitária de proporções descomunais e assimétricas que se desenvolve como construção política e histórica que envolveria todas as culturas negras de ambos os lados do Atlântico. Nessa megaestrutura cultural, os fluxos seriam multidirecionais e mutáveis, segundo os contextos políticos de cada momento histórico da diáspora negra. De modo que, dentro do Atlântico Negro, não faz sentido procurar a autenticidade de determinada manifestação, pois mesmo as raízes culturais africanas tornaram-se formas híbridas através do contato com os contrafluxos vindos dos territórios diaspóricos em direção ao continente africano. Dentre as manifestações culturais que integram esses fluxos intercambiantes, destacamos a produção intelectual de escritores negros pós-modernos e os gêneros de música popular como o reggae e o rap que têm influenciado de modo decisivo as construções identitárias dos jovens africanos na atualidade. É importante notarmos, porém o distanciamento que ainda vigora entre essa perspectiva acadêmica e as concepções arraigadas no senso comum dos brasileiros em geral. De modo que, o primeiro passo para a construção de uma educação antirracista é o reconhecimento de que ainda somos, em muitos aspectos, uma sociedade racista. A partir desse reconhecimento, podemos pôr em discussão as práticas discriminatórias cotidianas e pensar estratégias conjuntas para combatê-las. Partimos, portanto do esclarecimento acerca das diferenças semânticas entre os termos racismo, preconceito e discriminação racial. Para tanto, recorreremos ao glossário de termos e expressões antirracistas contido na obra Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2006), que adota definições de autores influentes nesse campo de estudos. O termo racismo “remete a um conjunto de teorias, crenças e práticas, que estabelece uma hierarquia entre as raças, consideradas como fenômenos biológicos” (MUNANGA, 2004 apud BRASIL, 2006, p. 222). Portanto, racismo diz respeito a um complexo sistêmico que subentende uma doutrina que legitima um conjunto de práticas. Segundo Santos (1980, p. 13) o racismo assenta “numa falsidade científica, o que torna fácil a qualquer colegial bem informado desmontá-lo.” Já o preconceito é definido em termos de uma opinião que emite um juízo antecipatório acerca de pessoas ou comunidades baseado em um conhecimento escasso e deturpado dessas. Contudo, tal opinião não é individual, mas nasce da repetição irrefletida desses prejulgamentos até um ponto em que passam a ser aceitos como verdade. (BRASIL, 2006, p. 221). A 75     discriminação racial, por sua vez, “acontece quando o racista externaliza seu racismo ou preconceito e age de alguma forma que prejudica uma pessoa ou grupo” (MULLER, 2005 apud BRASIL, 2006, p. 217). Portanto, a discriminação racial é o ato de distinguir, excluir ou restringir, baseado em uma visão preconceituosa acerca da diversidade étnico- racial, que procura atualizar o sistema racista de pensamento e organização social. Conforme argumentamos na seção 3.2.2, o preconceito está presente também no tratamento destinado às diferenças na literatura infantil. No tocante a essa temática, Buendgens e Carvalho (2016) traçam um amplo panorama, que parte da identificação de uma relação intrínseca entre o preconceito e os meios desiguais de produção da vida. De modo que, em uma sociedade hierarquizada, os preconceitos são produzidos principalmente pelas classes dominantes e servem para manter a estrutura desigual que os favorece. O preconceito decorre, então, da cristalização de formas ultrageneralizadas a respeito dos múltiplos aspectos da vida cotidiana, trazendo como resultado a alienação da vida cotidiana mesma e a manutenção das estruturas de poder consolidadas. Refletindo com base nesse posicionamento teórico acerca do modo como as diferenças são representadas na literatura infantil, as autoras analisam o conjunto das obras de literatura infantil ofertadas pelo PNLD do ano de 2013. Dentre os resultados, destacamos que somente uma obra da amostra analisada abordou a temática das diferenças e do preconceito relacionando-a às condições sociais desiguais. Portanto, as autoras concluem que, por centrar o foco nas diferenças, a maioria das obras analisadas acaba por encobrir as desigualdades construídas socialmente. Portanto, vemos que a representação da diversidade étnico-racial nos livros de literatura infantil por si só não garante a superação da condição alienada da vida cotidiana, sendo difícil, pois, a eliminação da discriminação decorrente do preconceito, que, por sua vez, é fruto da desigualdade e não das diferenças em si (BUENDGENS e CARVALHO, 2016, p.602). Os conceitos que envolvem as questões de identidade e diferença têm sido abordados na perspectiva do multiculturalismo, que é um campo de estudos bastante produtivo para a área da educação, que procura estudar os modos de relacionamentos entre diversas culturas em sociedades complexas. Contudo, conforme alerta Canen (2007, p. 92), além do recurso a denominações distintas como interculturalismo, tem-se atribuído ao termo multiculturalismo uma diversidade de significados e abordagens, tendo algumas dentre elas sido extremamente criticadas, por exaltarem a diversidade cultural nas sociedades modernas, mas se omitirem sobre as desigualdades entre os indivíduos representantes de cada cultura nessas sociedades. Assim, a autora apresenta então a 76     perspectiva que ela própria denomina como multiculturalismo crítico ou perspectiva intercultural crítica, que seria aquela que "busca articular as visões folclóricas a discussões sobre as relações desiguais de poder entre as culturas diversas, questionando a construção histórica dos preconceitos, das discriminações, da hierarquização cultural." (CANEN, 2007, p. 93) Todavia, esse simples questionamento não garante o rompimento com as posturas colonialistas de essencialização das identidades. É necessário ir além e considerar os processos discursivos através dos quais são forjadas as identidades e as diferenças, numa tentativa de descolonização dos discursos. É essa a vertente do multiculturalismo crítico pós-modernizado ou pós-colonial, defendida pela autora como alternativa teórica que pode orientar processos escolarizados de ensino-aprendizagem, no intuito de problematizar os discursos preconceituosos que circulam socialmente e construir outros em seu lugar, que valorizem as identidades sem congelá-las em essências acabadas. As perguntas que se colocam aos educadores, então, são: quais são as implicações das teorias multiculturalistas para a prática pedagógica? Como equacionar multiculturalismo e educação das relações étnico-raciais? Pode o embasamento teórico multiculturalista ser útil na construção de uma escola mais democrática? São perguntas complexas, que, dificilmente encontrariam solução em respostas breves. Contudo, cabe fazermos algumas considerações relativas a esses questionamentos que possam ser significativas para a reflexão dos educadores sobre sua prática. Recorremos a Candau (2008), que analisa as relações entre educação e cultura, assinalando as consequências para os processos educacionais no seio de sociedades multiculturais. A autora parte da ideia central de que “não há educação que não esteja imersa nos processos culturais do contexto em que se situa.” (CANDAU, 2008, p. 13). A seu ver, a escola é, atualmente, uma instituição em crise, que precisa ser reinventada, para que consiga oferecer respostas mais adequadas às dinâmicas sociais, políticas e culturais em que vivem os jovens de hoje. Parte dessa crise seria devida ao insucesso da escola em dialogar com as diferenças identitárias dos educandos, insistindo em práticas homogeneizantes e monoculturais. Após analisar as diversas propostas multiculturais em discussão na educação, Candau (2008, p. 22) situa-se em uma interpretação: que propõe um multiculturalismo aberto e interativo, que acentua a interculturalidade por considerá-la mais adequada para a construção de sociedades democráticas, pluralistas e inclusivas, que articulem políticas de igualdade com políticas de identidade. (grifo nosso) 77     É com base nessa proposição teórica que a autora aponta algumas propostas para a prática pedagógica escolar cotidiana. Tais propostas (CANDAU, 2008, p. 25) envolvem o reconhecimento dos sujeitos de suas próprias identidades culturais, tendo consciência do entrecruzamento dessas identidades com outras e de sua condição processual e aberta; a problematização dos discursos que definem o nós e o eles, buscando questionar tais limites e as representações estereotipadas das diferenças, e a concepção da prática pedagógica como um processo de negociação cultural, que implica em não esconder, mas debater sobre os contextos socioculturais e históricos nos quais os conteúdos abordados foram construídos. Além disso, buscar exercitar continuamente na escola não só a crítica coletiva dos diversos produtos culturais, mas, também, sua apropriação, transformação e hibridização, no intuito de produzir resultantes culturais inéditos. Pensando-se no cotidiano dos professores e profissionais da educação, trata-se de um conjunto de propostas extremamente desafiadoras e questionadoras de práticas obsoletas enraizadas na cultura institucional da escola tradicional brasileira. Torná-las viáveis envolve, além de esforços em se conseguir mais e melhores recursos didáticos para as escolas, a inovação e a criatividade no uso dos recursos e estruturas já disponíveis e a formação dos professores para esses desafios, num esforço de reinventar a escola, a partir das necessidades e interesses da comunidade que a faz. Diante das teorias e desafios levantados, propomos, uma vez mais, que o trabalho sistemático de formação de leitores de literatura em uma perspectiva multicultural crítica, aberta e interativa oferece uma perspectiva promissora para a construção coletiva da crítica e da produção cultural na escola. Esse trabalho pode ser realizado, primeiro, pela escolha criteriosa das obras a serem lidas, que devem dialogar com os conhecimentos prévios dos sujeitos e trazer representações positivas, proporcionais e não hierarquizadas da diversidade étnico-racial e cultural. Mas, além da escolha, é necessário o planejamento adequado dos métodos a serem adotados para a realização da leitura literária, procurando inserir atividades correlatas que potencializem os ganhos advindos dessa leitura, porém, mantendo-a como atividade central. Nessa metodologia, para que a pluralidade venha à tona, é necessário que todos os sujeitos tenham voz, num processo conjunto e democrático de construção de conhecimentos, nos quais cada sujeito é capaz de imprimir suas marcas identitárias. Esse tipo de trabalho pode ser realizado inserindo-se no repertório uma seleção de obras de literatura infantil negra, além das que abordam as histórias e as 78     culturas indígenas e de outras etnias ainda, que se encontram disponíveis em grande parte das escolas brasileiras. Nessa seleção, é importante considerar não só a presença ou ausência de personagens negros ou de outras etnias, mas deve-se atentar também para os aspectos discutidos nas seções anteriores deste capítulo, que abordam algumas problemáticas a respeito da representação da diversidade étnico-racial e cultural em obras de literatura infantil. Portanto, na escolha do caminho pedagógico a ser trilhado para abordarmos a literatura infantil negra, partimos da asserção de que as representações culturais dos negros em uma sociedade etnicamente hierarquizada são sobredeterminadas pela indústria cultural (HALL, 2006). Assim, é desejável que o contato com as representações literárias seja introduzido a partir de arquétipos que os aprendizes possam ligar a outras representações que conhecem, dialogando com o seu horizonte de expectativas. A partir disso, deveremos promover a problematização das representações identitárias essencializadas e complexificar a própria noção de identidade. Nesse sentido, o propósito central da mediação deve ser a construção da diferença dentro das diferenças. Não obstante, já que as coordenadas sociais estão imersas em paisagens culturais fragmentadas (HALL, 2000), não pretendemos trabalhar com as questões étnicas isoladamente, mas, sim, procurar captar o modo como a etnia emerge no cruzamento com outros fenômenos ligados à recepção literária. Dentro desse quadro, a atividade de discussão aparece então como um frutífero mecanismo para confrontar os diferentes sentidos construídos individualmente, fazendo aflorar coletivamente novos sentidos, que não coincidem com os individuais, mas que brotam da heterogeneidade interpessoal e transdisciplinar. 3.5 Andaimagem As conclusões de um dos primeiros estudos conduzidos pelo grupo de pesquisa Ensino e Linguagem em escolas públicas de Natal-RN apontaram para uma notória assistematicidade nos processos que envolvem a escolarização da literatura e a formação do leitor literário (AMARILHA, 1991). Como reação contra essa tendência, desde então, o grupo tem priorizado em suas pesquisas a sistematicidade. Assim, no lugar da leitura de literatura improvisada, usada como meio de controlar os estudantes, preconiza-se o cultivo da leitura literária como uma experiência lúdica de caráter formativo (FREITAS, 79     2005, p. 47). Logo, o planejamento da leitura, a escolha criteriosa de obras com qualidade literária e o método de mediação leitora assumem uma importância redobrada nos trabalhos do grupo. No nosso caso, como em outros, para auxiliar-nos no planejamento e execução das sessões de leitura, recorremos, conforme já mencionamos, à estratégia de mediação de leitura por andaimes, que é um procedimento consistente em “uma série de atividades especificamente desenhadas para assistir um grupo particular de estudantes a ler com sucesso, entender, apreender, e apreciar uma seleção particular de textos” (GRAVES; GRAVES, 1995, p.2, tradução nossa). Tal procedimento está em consonância com os preceitos teóricos de Vygotsky (1999) acerca da mediação pedagógica apresentados no início do capítulo, mas deriva diretamente dos estudos de Bruner (1995), que investigou o processo de aquisição da linguagem por bebês em interação com a mãe e demais membros da família. Esse pesquisador utilizou o termo andaime para designar as ajudas transitórias oferecidas por adultos para apoiar a criança em seu processo de aprendizagem da fala. Um exemplo é quando a mãe remete uma pergunta ao bebê e, em seguida, responde em seu lugar, preenchendo seu turno de fala. Assim, à medida que a criança conquista sua autonomia na fala, essa ajuda vai sendo suprimida, até que a criança logre participar da conversação por conta própria, prescindindo totalmente do andaime. No entanto, quem procedeu à sistematização do método da andaimagem para a mediação de leitura foram Graves e Graves (1995), que estipularam as etapas às quais o processo de leitura deveria obedecer, além das atividades prototípicas a serem desenvolvidas em cada etapa. Primeiramente, foram postuladas duas fases mais amplas: a do planejamento e a da implementação, tendo sido conferidas importâncias compatíveis a ambas para o sucesso na leitura. Assim, durante o planejamento, o mediador de leitura deve levar em conta os sujeitos com os quais irá interagir, os suportes materiais que deverá empregar, além de estabelecer objetivos para a leitura a realizar-se. Já a etapa de implementação, por sua vez, é segmentada em três momentos: pré-leitura, leitura e pós- leitura. Para cada um deles, os autores sugerem os tipos de atividades mais adequadas a serem levadas a cabo pelo mediador, configurando, assim, o conjunto dos andaimes que auxiliarão os leitores aprendizes em sua recepção do texto lido. Tais procedimentos permitem uma exploração completa das operações de antecipação, hipotetização e verificação, que estão de acordo com as conjecturas acerca do ato de ler elaboradas por Smith (1991). Compilamos no quadro abaixo a natureza das atividades às quais recorremos durante a etapa de intervenção em cada fase da andaimagem. Em seguida, 80     explicitaremos as justificativas teóricas e as implicações destas escolhas. Quadro 1: Etapas da mediação de leitura por andaimes Fase Atividades Pré-leitura Discussão de pré-leitura: previsões e motivação. Pré-ensino de conceitos. Vocabulário. Leitura Com ou sem interrupções. Com ou sem releitura. Pós-leitura Discussão de pós-leitura: confirmação/refutação das previsões, argumentação acerca da recepção da história. Atividade lúdica. Fonte: autoria própria A fase de pré-leitura privilegia a ativação e o compartilhamento dos conhecimentos prévios, assim como a motivação e a contextualização do tema. Através da atividade de discussão presente nesta etapa, pode-se canalizar a atenção dos estudantes para o livro a ser lido, despertando neles o interesse que lhes permitirá manter a concentração, sem a qual não é possível efetivar o aprendizado. Como, em geral, no caso de jovens leitores inexperientes a concentração ainda é um exercício dificultoso, é imprescindível o despertar da curiosidade que conduz ao esforço por aprender. Entendemos por curiosidade espontânea, a inquietação própria do ser humano diante do desconhecido, o sentimento que o implusiona a lançar previsões. Quanto à curiosidade epistemológica, compreendemos que esta procede da espontânea, mas que se mantém em função da ação planejada e consciente do homem na busca pelo conhecimento. Nesta, mais do que na primeira, recorremos às funções psicológicas superiores, como a atenção, necessária aos interlocutores da ação argumentativa. (FREITAS, 2005, p. 87) A etapa de previsões serviria, então, para despertar a curiosidade epistemológica, através da intervenção argumentativa do mediador, que estimula o exercício compartilhado da dúvida. Esse exercício ajuda os aprendizes a refletirem acerca de suas hipóteses iniciais, primeiro pelo seu próprio trabalho de formulação oral dessas hipóteses e, em seguida, pelo confronto com as previsões diversas, defendidas pelos pares. No momento da leitura, trabalhamos com a modalidade específica da leitura mediada oralmente por um leitor mais experiente, ainda que com a presença do suporte físico, composto por escrita e imagens. Isso por entendermos que, para leitores iniciantes, sobretudo aqueles em processo de alfabetização, a voz da mediadora e o livro, em sua multimodalidade de texto verbal e imagético, representam importantes andaimes que os 81     auxiliam na luta pelos sentidos do texto. Na verdade, no seu apego à escrita, enquanto expressão linguística diferenciada que confere distinção social àqueles que a dominam, a sociedade capitalista ocidental acabou por subestimar a importância da palavra falada para a vida humana em geral. Yunes (2015) oferece uma perspectiva bastante esclarecedora a respeito dessa importância. Relembrando que a palavra falada é a nossa expressividade primordial, na qual os sujeitos empregam seu sopro de vida no afã de interpretar o mundo, Yunes (2015) promove o resgate da oralidade, argumentando, em oposição, sobre a maior debilidade do discurso escrito com relação ao sentido. Assim, a palavra falada teria um poder ‘mágico’ que nos permitiria compartilhar nossos mundos, de maneira que, aqueles que se autodistanciam da fala tenderiam a assumir uma condição de alienação. Desse modo, ao entrecruzar literatura e oralidade, a autora afirma que muito do potencial da literatura deriva desse poder da fala e sublinha algumas características do ato de recitação oral de um texto literário, enquanto evento da palavra em performance, no qual o contador, baseado em uma interpretação prévia do texto, agrega sentidos que não estão no texto, mas na expressividade de sua voz. Como consequência desse entendimento para a prática pedagógica do professor de literatura, Yunes (2015, p. 201) defende que: [...] em vez de ser dissecador de textos e estilos, ele deve oferecer uma ponte de compreensão que torne humanamente significativas as narrativas de ontem e hoje, ou as ressignifique no horizonte da vida urbana da contemporaneidade. Devido, portanto, à importância da oralidade no nosso contexto, devemos promover um minucioso planejamento prosódico. O cuidado com a prosódia envolve a modulação das diversas qualidades sonoras da voz, como timbre, altura, intensidade, entonação, duração e ritmo, pautada pelas condições do texto, isto é, mantendo a coesão e coerência e obedecendo à hierarquia textual. Esse trabalho com a voz ajuda o leitor aprendiz não só a criar a significação do texto, mas também a manter a concentração, pois o impele a adotar a atitude de escuta pensante, que é a postura na qual o ouvinte mobiliza- se para decifrar os signos sonoros e, a partir daí, dispara todo o cabedal de processos compreendidos pela recepção leitora (AMARILHA, 2000). Dentre as ações desenvolvidas pelo ouvinte de uma história, destacamos as de pensar, participar, criar e regozijar. Ressaltamos, dessa forma, assim como em outros estudos (FREITAS, 2010; SOUZA, 2009), a natureza inclusiva da atividade de mediação oral de leitura literária. De fato, recorrendo a um tratamento adequado da prosódia o mediador pode não só estender a 82     sensação do prazer em ler a leitores não alfabetizados, como amplificá-la nos demais. Visto isso, e, em consonância à centralidade conferida em nossa abordagem teórica ao deleite da leitura literária, devemos admitir então que a voz do mediador pode atuar como catalisadora do ato comunicativo, cuja efetivação constitui parte do prazer desse jogo, que pode ser alcançado por todos. Vale a pena notar ainda que, em geral, nossa sociedade, altamente dependente da linguagem escrita, trata a oralidade e a escuta como algo secundário. Essa tendência é contrária a dos grupos sociais que tradicionalmente confiaram na oralidade enquanto veículo transmissor de seus bens culturais, como é o caso de vários grupos étnicos negros, tanto africanos como brasileiros. Em geral, nesses grupos, apesar de nos tempos atuais a escrita ser de domínio público, há uma grande valorização da oralidade como fonte do saber, que emana dos mais velhos e dos iniciados nas suas histórias. Conforme discutimos na introdução, há aqui um paralelo entre o mediador de leitura e a figura dos griôs, já que as vozes de ambos definem o pertencimento a uma comunidade estética que brinca com os símbolos de sua cultura, atualizando seus significados na efemeridade do momento enunciativo. A última fase é a da pós-leitura, que pode se iniciar com a verificação das previsões formuladas, fechando o ciclo do movimento cognitivo básico da leitura que foi discutido acima e que envolve a previsão, a seleção e a verificação. Em seguida, entra-se na etapa de discussão da história, durante a qual as crianças poderão exercitar suas habilidades de argumentação oral, esclarecendo suas ideias inclusive para si próprios através de sua formulação em palavras. Para o mediador de leitura, esse é um momento que possibilita conhecer diversos aspectos acerca da recepção dos estudantes. Seu papel é o de criar estímulos (andaimes) para que os aprendizes expressem seus argumentos e gerenciar a discussão, mas sem centralizá-la, já que estruturas de participação descentralizadas aumentam a complexidade da discussão, com a tendência a enriquecê-la (ALMASI, 1995 apud FREITAS, 2005, p. 24) Para o grupo como um todo, por sua vez, trata-se de uma experiência inclusiva, na qual cada um é convidado a compartilhar aquilo que pensa e sente através da sua fala. À medida que os argumentos vão sendo ditos, a teia dos sentidos vai sendo tecida coletivamente. Do ponto de vista pedagógico, a importância primordial da etapa de discussão de pós-leitura reside no fato de que, para os aprendizes, falar a respeito da sua experiência de leitura ajuda-os a ordenar a construção dos sentidos e as emoções advindas dessa vivência. Na verdade, devemos distinguir entre dois momentos distintos, conforme 83     destacados por Amarilha (2003, p. 35): "No primeiro momento, o leitor sofre o efeito estético, em seguida, quando fala dessa experiência, ele já não está mais vivendo o estético, mas sim, verbalizando e racionalizando suas sensações." Trata-se de uma atividade metalinguística, que prioriza não a reflexão sobre a história em si, mas sobre a própria recepção da história. Esse tipo de atividade reflexiva acerca do próprio processo de pensamento exige um grau de abstração maior do que as crianças no início da vida escolar estão habituadas a lidar. Se lembrarmo-nos, porém, do conceito de ZDP (VYGOTSKY, 1999), compreenderemos que, pela intervenção de um mediador, o desenvolvimento proximal do aprendiz pode se concretizar, ainda que as exigências da tarefa estejam além de sua maturidade real. Por isso, o mediador deve, através de intervenções orais, apoiar os alunos para que consigam elaborar oralmente seus argumentos. O conjunto dessas intervenções pressupõe uma série de estratégias e configuram o que Freitas (2005) chama de ação argumentativa. Por outro lado, do ponto de vista da pesquisa em ensino e da pesquisa em literatura, a etapa de discussão de pós-leitura representa um método eficaz para a coleta de dados acerca da recepção leitora dos aprendizes, isto é, do seu modo de responder cognitiva e afetivamente ao texto lido, o que temos chamado de efeito estético (ISER, 1999). Assim, o mediador poderá avaliar uma série de efeitos diversos provocados pela obra no leitor, dentre os quais, destacamos o processo de identificação com personagens, a adesão ou não à perspectiva da obra e a irrupção de emoções. Cazden (1991) considera vários estudos sobre o discurso oral em sala de aula em diferentes contextos e identifica suas duas funções principais: a construção do conhecimento e o controle social por parte do professor. Cazden observa que a interação prioritária dá-se entre professora e aluno, seguindo, via de regra, uma sequência que obedece a uma estrutura fechada de interação: iniciação (professor), resposta (aluno) e avaliação (novamente, o professor). Nesse esquema, a maioria dos professores tende a incentivar a máxima generalização possível, desencorajando falas de caráter pessoal e situacional, prescrevendo uma forma ideal (cientificista) às falas. A autora pontua que o modelo de interação oral entre professor e alunos influencia a construção do conhecimento por esses últimos e defende a necessidade da valorização da conversação entre iguais. O papel do professor seria, assim, o de gerenciar e oportunizar a participação de todos, cada qual exercendo o papel que lhe é mais espontâneo. Nesse sentido, ela argumenta que a postura inclusiva do professor torna-se referência para todos os pares, transformando o tempo da aula em tempo compartilhado, que é muito mais flexível que a 84     estrutura fechada, mas não coincide com a conversação cotidiana, por ter objetivos pedagógicos bem definidos. Por esse raciocínio, a discussão da história pode ser classificada como uma atividade que instaura uma democratização pedagógica. Isso porque, nessa experiência, o processo de atribuição de sentidos ao texto literário tem um caráter coletivo, pois os posicionamentos individuais sofrem influência daqueles dos seus pares. Podemos afirmar, então, que as falas dos pares constituem-se também em andaimes para a argumentação de cada estudante. Portanto, tem-se a subversão do modo de funcionamento tradicional do discurso oral nas salas de aula, instaurando-se em seu lugar uma dinâmica inclusiva, onde o que interessa não são conteúdos informacionais objetivos, mas a perspectiva pessoal das impressões, dos sentimentos e dos entendimentos. Assim, para argumentarmos acerca das implicações da atividade de discussão de histórias para a recepção leitora, partimos do pressuposto de Iser (1999) de que o leitor faz-se presente na estrutura da obra durante a leitura literária, dialogando com o texto por meio de seu horizonte de memórias e expectativas, que é constantemente transformado à medida que os desdobramentos do texto vão sendo assimilados. Nessa complexa dinâmica, o ponto de vista do leitor mantém-se em constante movimento, à medida que ele busca sintetizar todos esses dados, atribuindo sentido ao texto. Na atividade de discussão, esse processo complexifica-se ainda mais, pois, ao diálogo do sujeito com o texto, soma-se uma polifonia de vozes, cada qual impregnada de memórias, expectativas e pontos de vista alheios. É nesse movimento de interlocução que se efetiva a compreensão leitora, que, nesse caso, nasce da relação entre o sujeito, o texto, a professora, os pares e o ponto de vista em movimento (FREITAS, 2005, p. 101). No nosso caso específico, cremos que a discussão de histórias baseada na leitura das obras de literatura infantil negra configura um momento de ruptura com a pedagogia do silêncio, que tradicionalmente manteve as temáticas étnico-raciais cuidadosamente afastadas do ambiente escolar. Essa ditadura do silêncio conspira com as representações deturpadas da grande mídia e com os preconceitos cristalizados no senso comum para a manutenção do status quo. Contudo, no momento em que se propõe uma construção argumentativa coletiva e aberta acerca de histórias vividas por negros, uma multiplicidade de constatações, sentimentos e opiniões represadas pode vir à tona. Dentre as possibilidades, citamos os testemunhos acerca das identificações vividas, que podem servir como autoafirmação do ser negro, ou, opostamente, a manifestação de ideias preconceituosas que desvalorizem o ser negro. O mediador deve, no lugar de repreender o 85     autor, promover o questionamento de qualquer concepção racista expressa pelos alunos. Isso porque a força da ética do grupo como um todo é capaz de demonstrar a ilogicidade inerente a todo e qualquer juízo preconceituoso. Por fim, com base em toda a discussão empreendida, entendemos que a leitura de literatura abre um canal cognitivo, linguístico, social e afetivo, promovendo a inserção cultural do indivíduo, não uma inserção consensual, mas crítica. Assim, acreditamos que o trabalho pedagógico sistemático com a literatura representa uma alternativa viável na materialização da renovada esperança de que somos capazes de pôr em prática a educação dialógica (FREIRE, 1987), discutida no início do capítulo, através da qual os oprimidos poderão se libertar a si mesmos em comunidade. 86     4 METODOLOGIA 4.1 Desenho da pesquisa Conforme mencionamos na introdução, o estudo desenvolveu-se em uma turma do 3º ano dos AIEF de uma escola estadual localizada na região metropolitana de Natal-RN. Foi selecionada uma professora desta escola para atuar como colaboradora da pesquisa. Em primeiro lugar, foram conduzidas junto à professora colaboradora 10 encontros de formação, baseados na leitura de textos teóricos sobre a literatura infantil, relacionada à formação da identidade étnica e à mediação de leitura literária por andaimes. A cada sessão, a professora foi instigada a tecer reflexões sobre os estudos realizados, tendo sido coletados dados através da gravação em áudio e registro em diário de campo. O objetivo dessa formação foi, em primeiro lugar, apropriar-nos da rede de sentidos trançada na obra Estão mortas as fadas? Literatura Infantil e prática pedagógica (AMARILHA, 2012), que é uma obra estruturada para funcionar como um conjunto de conhecimentos básicos acerca da literatura infantil e da formação do leitor com os quais é desejável que os professores da educação básica tenham contato, sobretudo os dos AIEF. Ela é fruto de várias experiências de pesquisa sobre o ensino de literatura nas escolas do estado do Rio Grande do Norte, e avança análises sobre o contexto local baseadas em conceitos advindos de diversas áreas, como estudos sobre mediação pedagógica, aspectos psicológicos da leitura, história da literatura infantil e de seus usos e a Estética da Recepção. Em seguida, buscamos relacionar esses conhecimentos com estudos que conjugam a formação das identidades negras com a formação do leitor de ficção. Ao longo dessa formação, foi feito o planejamento da intervenção pedagógica. Primeiramente, fez-se a escolha das obras e, em seguida, cada sessão de leitura foi planejada segundo os pressupostos teóricos estudados, as exigências das DCN-ER e as particularidades da obra em questão. Por fim, realizaram-se as sessões de leitura planejadas, sendo a mediadora privilegiada a professora. No entanto, segundo os moldes da pesquisa-ação, o pesquisador também teve o direito de intervir, no sentido de auxiliar a professora a realizar aquilo que foi planejado e a explorar até o máximo proveito as situações que forem surgindo. As sessões de leitura foram registradas na íntegra em vídeo. Durante esta fase, foram feitas diversas modificações no planejamento, segundo as constatações advindas das sessões já realizadas. As mudanças foram propostas tanto pela professora quanto pelo pesquisador, 87     democratizando o processo de construção do conhecimento. Após o término das sessões, propôs-se uma etapa de entrevistas semiestruturadas com professores e alunos, com o intuito de colher impressões pessoais sobre o processo e as eventuais mudanças decorridas dele. A utilidade desta etapa foi a de oferecer mais subsídios para a descrição dos fenômenos observados, em consonância com as exigências da pesquisa qualitativa, visto que: a abordagem qualitativa de pesquisa enfatiza a descrição, a indução, a teoria fundamentada, o estudo das percepções pessoais, e a questão de pesquisa tem o objetivo de investigar um fenômeno em seu contexto ecológico natural e buscar sua compreensão a partir das perspectivas dos sujeitos (BOGDAN e BIKLEN apud MARTUCCI, 2001, p.3). A última fase da pesquisa consistiu da análise do corpus construído, à luz dos elementos teóricos propostos e tendo sempre em vista os objetivos da investigação, apontando-se possíveis soluções para os eventuais problemas observados. Ao final, os dados interpretados serão sistematicamente devolvidos à comunidade escolar pesquisada, com vistas à socialização do conhecimento produzido e a oferecer propostas de melhoria dos processos observados. 4.2 Enquadramento metodológico Em consonância com o que foi exposto até aqui, a pesquisa enquadra-se no âmbito das abordagens qualitativas (LÜDKE; ANDRÉ, 1986), nos moldes da pesquisa-ação participante, visando à intervenção direta no meio investigado. Tal estratégia vislumbra a prática da pesquisa segundo um regime de colaboração em que “pesquisadores e pesquisados são sujeitos de um mesmo trabalho comum, ainda que com situações e tarefas diferentes” (BRANDÃO, 2006, p. 11). Essa escolha reflete uma postura teórico- metodológica que vislumbra uma convivência possível entre o engajamento político- social e o fazer acadêmico-científico. Nesse direcionamento, abdica-se de uma pretensa objetividade absoluta em favor da solidariedade com as lutas dos povos negros por direitos e cidadania. Refletindo acerca dessa problemática, Silva, P. B. G. (2005, p. 29) conclui que: pesquisas se constituem em possibilidade de luta quando, de um lado, levam em conta os objetivos e prioridades de um grupo social marginalizado pela 88     sociedade - no presente caso, o povo negro, as suas comunidades; de outro, quando são desenvolvidas com a intenção de oferecer suporte para a solução de problemas das comunidades negras, como acesso à educação e sucesso acadêmico [...]. Para a implementação da pesquisa, conforme comentamos na introdução, procuramos obedecer ao princípio do pluralismo metodológico. Tal princípio é recomendado por alguns autores para as pesquisas qualitativas em geral (BAUER e GASKELL, 2004), e há também autores que reforçam sua necessidade para a construção do conhecimento acerca do ensino de literatura (AMARILHA, 2007). Desse modo, alertando para a complexidade da tarefa de pesquisar esse fenômeno, Amarilha (2007, p. 341) afirma que: a produção do conhecimento sobre o "ensino de literatura" traz uma dificuldade inerente. Não se trata de uma criatura, não é um objeto, mas sim uma situação. Daí que é possível estabelecer focos, por necessidade operacional; entretanto, não se pode perder de vista que, sendo o objeto múltiplo e dinâmico, o pluralismo metodológico é uma necessidade. (grifo do autor) Julgamos ser esta proposta metodológica o modo mais adequado para atingirmos os objetivos de pesquisa expostos na introdução. Pois, se quisermos subsidiar o trabalho do professor mediador de leitura com obras de literatura infantil negra, é preciso proceder à construção do conhecimento de forma coletiva, compartilhando saberes e experiências significativas. Corroboramos assim com a visão expressa por Boaventura de Sousa Santos: Enquanto pela forma hegemônica do conhecimento, conhecemos criando ordem, a epistemologia da visão levanta a questão sobre se é possível conhecer criando solidariedade. A solidariedade como forma de conhecimento é o reconhecimento do outro como igual, sempre que a diferença lhe acarrete inferioridade, e como diferente, sempre que a igualdade lhe ponha em risco a identidade (SANTOS, 2000, p. 246). 4.3 Escolha da escola, primeiro contato e negociações O primeiro contato entre os sujeitos é de grande importância, pois as impressões iniciais de empatia ou antipatia podem influenciar o processo investigativo. Nesse sentido, buscou-se escolher uma professora que valorizasse a literatura infantil negra e que não demonstrasse nenhum antagonismo com relação à cultura negra. Isso porque, conforme expõem Gewirtz e Cribb (2011, p. 101), é inevitável que os valores éticos dos 89     pesquisadores estejam imbricados nos resultados de suas pesquisas. Por isso acreditamos que tal proposição é extensível ao professor-colaborador, visto a relevância do seu papel para os resultados desta pesquisa em particular. Na escolha do locus, procuramos dar preferência a uma escola que já tivesse relações com o nosso grupo de pesquisa, a qual assumisse o compromisso de propiciar as condições necessárias ao desenvolvimento do estudo, do início ao fim. Nesse sentido, convidamos informalmente uma professora que já havia participado de um estudo de dois anos de duração, conduzido pelos colaboradores do grupo de pesquisa Ensino e Linguagem, coordenado pela professora Marly Amarilha, em uma escola de fácil acesso, devido a sua localização na cidade. Essa professora já havia demonstrado uma atitude profissional de comprometimento com o trabalho do grupo e, por isso, representava uma possibilidade mais segura de o trabalho ser realizado até o fim. Ela inteirou-se das características da pesquisa e concordou em participar. Em seguida, agendamos uma visita à escola para formalizar o convite e abrir para outros professores a possibilidade de participarem da formação inicial planejada. Ainda que as sessões de leitura fossem ser realizadas em uma única turma, acreditávamos que seria muito produtivo se outros professores participassem da formação; tanto para enriquecer as discussões que seriam levantadas, como para que lográssemos uma participação mais sistêmica da escola no projeto. A primeira visita do pesquisador à escola deu-se no dia 28/08/2014, quando uma pequena reunião foi realizada entre a diretora, a orientadora do projeto e o pesquisador. Na ocasião, foram entregues uma carta de apresentação do pesquisador e uma cópia impressa do projeto de pesquisa e, baseado nos princípios da pesquisa-ação participante, os objetivos foram esclarecidos e as formas de participação, livremente negociadas. A atitude da diretora foi bastante receptiva, tendo ela sublinhado a necessidade de as universidades desenvolverem projetos de pesquisa conjuntamente com as escolas. O pesquisador foi convidado pela diretora a apresentar o projeto para os professores da escola na reunião pedagógica seguinte. A segunda visita ocorreu no dia 01/09/2014, quando se realizou a reunião pedagógica, com a presença da diretora, da professora colaboradora e de boa parte do quadro de professoras da escola, todas mulheres. Logo no início da reunião, o pesquisador foi formalmente introduzido pela diretora e pôde apresentar as principais características do projeto, comentar sobre a Lei 10.639/2003, além de efetivar o convite a todas para participarem da etapa de formação de mediadores de leitura para o trabalho com obras de 90     literatura infantil negra. A resposta foi, a princípio, lacônica, ao que a diretora respondeu reforçando a importância de todas participarem, devido à relevância da temática e da exigência legal que a envolvia. Como as professoras continuassem reticentes, a diretora pressionou-as a participar, argumentando que elas dispunham do horário de planejamento justamente para o desenvolvimento de atividades como aquela. As professoras, então, contra-argumentaram, apontando uma série de dificuldades no cotidiano de trabalho e alegando que já eram pressionadas o suficiente com as atividades que desenvolviam, não tendo nem obrigação nem tempo de comprometerem-se com atividades extras. Somente uma das professoras acenou vagamente com a possibilidade de sua participação, o que, mais tarde, acabou não se confirmando. Trata-se, de fato, de um entrave significativo para a eficácia do processo de formação do leitor, uma vez que ele exige um trabalho contínuo e sistemático com a literatura, que deve ser pensado e planejado coletivamente pela comunidade escolar. Sem isso, os esforços individuais de cada professor podem refletir-se em progressos por parte dos aprendizes, mas serão casos isolados, não favorecendo o desenvolvimento de uma cultura leitora ao longo do tempo. 4.4 Observação inicial Iniciamos a parte prática da pesquisa com a etapa de observação in loco. Orientamos nossa prática segundo os princípios da observação participante e suas ferramentas de recolha de dados. Sobre as características dessa prática, Martucci (2001, p. 4) aponta que: A observação participante exige a interação constante entre o pesquisador e a situação pesquisada, as entrevistas são utilizadas com a finalidade de esclarecer ou aprofundar aspectos da situação observada, e os documentos são usados no sentido de contextualizar o fenômeno, explicitar suas vinculações mais profundas e completar as informações coletadas através de outras fontes. O escopo das observações iniciais foi fazer a ecologia do ambiente escolar como um todo, com seus espaços, sujeitos e dinâmicas, convivendo o máximo de tempo com a comunidade, no intuito de conhecê-la e ser aceito por ela. Contudo, o foco incidiu sobre o quadro do ensino de literatura infantil negra, objeto desta pesquisa e os procedimentos realizados derivaram dos objetivos estabelecidos na introdução. Durante essa fase, 91     furtamo-nos a realizar manipulações ou direcionamentos, de modo a aumentar a confiabilidade dos dados recolhidos. Contudo, conforme André (2000, p. 28), "a observação é chamada de participante porque parte do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo afetado por ela." Então, já que o observador tornou-se um participante do grupo, tanto a sua identidade quanto os objetivos de pesquisa foram revelados. A primeira característica que chama a atenção de qualquer visitante à escola é o fato de ela se situar dentro de um quartel do exército brasileiro. Isso restringe relativamente o acesso à escola, já que, para se percorrer o caminho de aproximadamente 400m entre o portão do quartel e o da escola, é preciso passar por duas guardas militares que, em várias ocasiões, não permitiram o acesso até a frente da escola em automóvel, exigindo que o caminho fosse feito à pé. Assim o fazem diariamente as crianças, ao chegarem até o portão de entrada do quartel, trazidas, a maioria, pelo ônibus escolar, mas algumas pelos seus responsáveis. Dali, cada professora forma uma fila com a sua turma e assim caminham até a escola. Essa dinâmica faz com que os sujeitos se familiarizem com a presença de soldados em suas atividades cotidianas, que incluem o manejo de armas e de outros equipamentos militares no entorno da escola. Mas a influência do contexto militar faz-se sentir também dentro da escola, a começar pelos muros, onde há desenhos de personagens da Turma da Mônica em representações em que exaltam a pátria e seus símbolos. Na biblioteca, há livros acomodados em caixas de madeira feitas para estocar munição, doadas pelo quartel. Observou-se a presença de soldados em serviço nas dependências da escola, pois a manutenção e melhoria de suas instalações físicas cabem ao exército. Além disso, diariamente, a comunidade escolar observa o rito de entrar em forma diante da bandeira nacional, hasteada em um grande mastro logo após o portão de entrada, para cantar o hino nacional. Ainda sobre o espaço, é relevante também a presença de uma pequena capela católica, sem portas, bem no meio do pátio central, com uma cruz no topo e a imagem de uma santa sobre o altar. Contudo, não foi observado o uso desse espaço para a sua função original, a de oração. Os únicos a serem observados adentrando o pequeno espaço da capela foram os alunos, durante suas brincadeiras na hora do recreio. Essa presença deve ser levada em conta no estudo da formação identitária dos alunos, já que as representações identitárias com que a própria escola se caracteriza podem influenciar aquela formação. 92     Figura 1 – Capela no centro do pátio da escola. A identidade escolar, por sua vez, constrói-se no diálogo entre as identidades locais e a identidade cultural nacional, que é o lugar de disputa entre as várias narrativas de nação propaladas pelos diferentes atores sociais, na qual o Estado exerce um papel preponderante. Tais narrativas constituem, conforme foi dito no capítulo teórico, sistemas de representação cultural e, ao mesmo tempo, focos de identificação (HALL, 2005, p. 52). Portanto, ao ostentar símbolos consagrados na cultura nacional hierárquica e ignorar outros símbolos, a escola silencia sobre a diversificação das narrativas de nação, como seria desejável para uma instituição na qual a sociedade deposita boa parte de seus anseios por mudanças sociais. Os espaços da escola parecem, em geral, suficientes e adequados às práticas diárias, com exceção do refeitório, que não existe. Para que os alunos possam alimentar- se, são dispostas mesas e cadeiras plásticas no corredor central, o que restringe a movimentação. As dependências disponíveis são: 4 salas de aula, uma biblioteca que também funciona como sala de leitura, um laboratório de informática que é também a sala de vídeo, a sala dos professores e da direção, uma cozinha e um almoxarifado, além do pátio central com a capela e de um espaço contíguo ao portão de entrada que também era usado como pátio. Para além do uso desses espaços, também foi observada a realização de atividades físicas na quadra do exército que fica em frente à escola. 93     Figura 2 – Espaço usado como refeitório. Figura 3 - Sala de aula usada pela turma dos sujeitos da pesquisa. O espaço destinado à leitura é uma pequena biblioteca, que acomoda, com dificuldade, uma turma de cerca de 25 alunos, por vez, e que se encontrava quase sempre aberta durante o período da intervenção. O mobiliário desse espaço conta com duas mesas redondas, com 4 cadeiras cada, almofadas, bancos pequenos e colchonetes para a 94     realização de rodas de leitura, além de duas estantes grandes, onde encontram-se livros didáticos e outros materiais aos quais os alunos não têm acesso e de duas estantes menores, onde ficam expostos os livros de literatura infantil, os quais a professora permitia aos alunos explorarem sempre que a atividade em curso incluía a leitura individual. Contudo, foram observados vários outros livros literários acondicionados em caixas que os alunos nunca acessavam. Uma das caixas é uma espécie de mala de leitura, improvisada a partir de uma caixa para munições, a outra, uma grande caixa preta com muitos livros, em sua maioria didáticos, mas também algumas obras literárias. Na caixa preta, encontramos uma obra de literatura negra representando justamente o personagem Anansi, tema de uma das obras do nosso repertório, que foi a preferida pela maior parte dos alunos. Figura 4 - Biblioteca. 95     Figura 5 - Biblioteca. Na prática, esse espaço era usado esporadicamente como sala de leitura pelas turmas acompanhadas de suas professoras, uma vez que não há bibliotecário. Ao invés disso, a responsável pela biblioteca é uma funcionária proveniente de outra escola, que fora deslocada, por motivo ignorado, da função original do cargo para o qual prestou concurso público, são os chamados professores readaptados. Assim, sua atuação cotidiana na biblioteca guarda pouca relação com as funções de um bibliotecário. Trata-se de uma situação oficializada na rede pública do Rio Grande do Norte, em que os profissionais que de alguma forma não estão em condições de assumir uma sala de aula são alocados na biblioteca, sem o devido preparo. O acervo da biblioteca conta com muitos e variados títulos, em geral, em bom estado de conservação, dentre os quais, identificamos 24 títulos de literatura infantil negra e alguns sobre a temática indígena, incluindo alguns premiados nacional e internacionalmente. Proporcionalmente à quantidade total de livros, o número dessas obras era reduzido, mas, numa rápida procura na estante, era possível deparar-se com uma delas. Boa parte dos livros trazia a identificação do Programa Nacional Biblioteca na Escola - PNBE - e, portanto, sabe-se que passaram por uma seleção criteriosa de especialistas, o que assegura o controle das qualidades artísticas das obras. Esse acervo está disposto de forma caótica, sobretudo nas duas estantes menores e na mala de leitura 96     descrita anteriormente. Mesmo sem bibliotecário, na turma pesquisada, foram observadas diversas ocasiões em que a professora encorajou os alunos a tomarem livros emprestados do acervo para lerem em casa, ainda que sem nenhum controle por escrito desses empréstimos. Figura 6 - Estante com livros de Literatura. Figura 7 - Livros de literatura infantil negra disponíveis no acervo da biblioteca. 97     Figura 8 - Caixa contendo livros didáticos e um livro de literatura infantil negra. Já nas salas de aula, os espaços destinados exclusivamente à leitura e à acomodação de livros de literatura eram bastante restritos. De fato, somente uma das salas (a do 1º ano) contava com um "cantinho da leitura". Porém, não foram observadas nesse espaço obras de literatura infantil negra, mas sim, em sua maioria, livros de contos de fadas consagrados e de animais, alguns frutos de edições de qualidade duvidosa, mas nenhum com personagens negros representados. A propósito das representações dos negros na escola, nessa mesma sala, havia um cartaz confeccionado por um aluno colado na porta com desenhos e dizeres que procuravam conscientizar sobre a importância do combate ao bullying e da valorização das diferenças. Contudo, todas as figuras desenhadas representam nitidamente pessoas brancas, a não ser por uma que apresentava uma tímida tonalidade morena como cor da pele, ficando mais em evidência os formatos 98     dos corpos como diferentes, ao invés das origens étnico-raciais. Tampouco fora incluída como diferente a representação de uma pessoa com deficiência, mesmo havendo alunos com deficiência na escola. Vemos, portanto, que o discurso que exalta as diferenças nem sempre inclui todas as diferenças, interpondo limites à formação, de fato, do conceito sobre diferenças. A respeito de tal conceito, Abramowicz e Levcovitz (2005, p. 84) esclarecem que "se se quer produzir diferença é porque ela está ali e precisa fazer valer sua potência política, precisa ser retirada do lugar do estranho, do horrível e da aberração." Para discutirem o trabalho com as diferenças na educação, essas autoras exploram as oposições entre os conceitos de povo e de multidão, alegando que é o segundo que pode abarcar a abertura identitária característica da pós-modernidade, "onde não se sabe exatamente quem é quem e o que é o quê [...]" (ABRAMOWICZ; LEVCOVITZ, 2005, p. 84) Portanto, romper com a ideia de povo na educação é abandonar a busca pela homogeneização, ao passo que acolher a ideia de multidão significa incluir e valorizar todas as diferenças e, mais ainda, enxergá-las como processos ou devires que rompem definitivamente com as essencializações, definindo-se, antes, pelo nomadismo e pelas mutações. Figura 9 - Disposição do Cantinho da Leitura na sala de aula do 1º ano. 99     Figura 10 - Cartaz sobre as diferenças feito por um estudante do 4º ano. Com relação ao quadro do ensino de literatura na turma pesquisada, baseado nas observações de algumas aulas e em conversas informais com a professora, podemos dizer, por um lado, que o trabalho desenvolvido por ela apresentava alguma sistematização, uma vez que obedecia a uma periodicidade regular - em geral, duas vezes por semana – e contava com um exíguo planejamento prévio de leitura: a seleção e leitura antecipada das obras por parte da professora. No seu planejamento anual, havia um tempo destinado exclusivamente à leitura e produção textual. Ela escolhia, semanalmente, uma obra para ler com os alunos e, às vezes, solicitava a eles que escolhessem outra. Algumas das obras escolhidas por ela levavam em conta o calendário escolar, acompanhando datas comemorativas, por exemplo. Além disso, conforme foi dito, ela incentivava os alunos a tomarem livros emprestados na biblioteca para lerem em casa e, dias depois, solicitava que alguns deles recontassem a história oralmente para os demais colegas. Por outro lado, em vários sentidos, o trabalho de formação do leitor na turma pode ser classificado como assistemático (AMARILHA, 1993). Em primeiro lugar, não verificamos a existência de um planejamento coletivo da escola, voltado para a formação de leitores de literatura. Em segundo lugar, a simples leitura prévia da obra não garante que a mediação de leitura terá êxito em fazer com que os aprendizes reconstruam os sentidos vinculados ao texto. Além disso, a mediação de leitura consistia somente na 100     leitura oral da obra, sem vincular nenhuma atividade prévia de contextualização ou motivação, tampouco posterior, como uma discussão para confrontar os pontos de vista dos alunos. Quanto ao contexto de ensino-aprendizagem de literatura infantil negra, a professora, desde os primeiros contatos, já reconhecera que sabia da existência da Lei 10.639/2003, mas que não tinha o costume de abordar tal literatura em sala. Relatou que seu desconhecimento das questões relacionadas aos negros e à África fez com que ela nunca tivesse ponderado sobre a sua importância. É interessante notar que, conforme foi relatado, ainda que não fosse difícil deparar-se com um livro com um personagem negro representado na capa por entre as obras de literatura dispostas nas estantes da biblioteca, nenhuma dessas obras tinha sido escolhida para as leituras habituais, nem pela professora, nem pelos alunos. Esta recusa viria a ser observada novamente, por parte dos alunos, no decorrer de uma das sessões de leitura, conforme explicitaremos no próximo capítulo. Corrobora-se, portanto, as conclusões de pesquisas (SOUZA, 2013; SANTOS, 2005) que apontam que somente mudanças de cunho legal e editorial não são capazes de garantir a efetiva existência de práticas de ensino-aprendizagem que abordem a cultura e a história africana e afro-brasileira na educação básica de modo adequado. No nosso caso, os negros eram, em grande medida, invisibilizados pela escola, a não ser pelos personagens negros que aguardavam ansiosamente para serem conhecidos nas prateleiras. 4.5 Formação com a professora Chegamos, então, à fase de pesquisa da formação teórico-prática junto à professora colaboradora. Essa etapa constituiu-se de 11 encontros, de duas horas cada, somando um total de 22 horas de formação. Esses encontros transcorreram entre os dias 25/09/2014 e 27/03/2015, caracterizando-se como a fase mais longa da etapa interventiva da pesquisa. Os dez primeiros encontros foram divididos em dois momentos: o primeiro, de aproximadamente uma hora e meia de duração, consistia em discussões baseadas em um dos 10 textos teóricos e metodológicos escolhidos pelo pesquisador, acerca do ensino de literatura e de suas implicações para as relações étnico-raciais. Já o segundo momento, de duração aproximada de 30 minutos, consistia na leitura de literatura infantil negra, que objetivava, a um só tempo, a formação de repertório e o exercício da prosódia na leitura 101     oral. O último encontro serviu para sintetizar o conteúdo visto ao longo da formação, avaliar o desenvolvimento da pesquisa até aquele momento e traçar perspectivas para as próximas etapas. O programa completo da formação encontra-se no Apêndice A. Além disso, paralelamente a esses encontros, a professora praticava com sua turma os métodos estudados, planejando e executando sessões de leitura e, no encontro seguinte, relatava os resultados ao pesquisador. Esperávamos que a professora pudesse refletir sobre sua própria prática pedagógica de formação de leitores e se capacitasse a auxiliar no planejamento e condução das sessões de leitura a serem implementadas. Na prática, essa formação funcionou também como uma etapa inicial de preparação das sessões de leitura, já que os conceitos teóricos e as obras literárias abordadas eram constantemente relacionados às fases subsequentes da pesquisa. Todos os encontros foram registrados em áudio, porém, devido a problemas técnicos, algumas gravações foram perdidas. Com relação à seleção de textos teóricos, os quatro primeiros textos abordados encontram-se em Amarilha (2012) e abordam os principais conhecimentos com os quais é desejável que os mediadores de leitura de literatura infantil tenham contato, uma vez que tratam de aspectos diretamente relacionados à sua prática pedagógica e ao desenvolvimento do leitor aprendiz. Além disso, tais conhecimentos compilam informações relevantes de pesquisas sobre a realidade do ensino-aprendizagem de literatura em escolas potiguares. Os textos adotados no quinto (SOUZA, 2013, p. 92 - 99) e no sétimo (OLIVEIRA, 2010, p. 38 - 53) encontros articulam a formação do leitor mirim com questões relativas às africanidades e às relações étnico-raciais na escola. Já os textos do sexto (FREITAS; LOPES, 2012) e do oitavo (GRAVES; GRAVES, 1995) encontros de formação focalizam práticas de mediação de leitura e argumentam sobre as atitudes do mediador que tendem a enriquecer a formação leitora. Por fim, os dois últimos textos (FREITAS, 2010; AMARILHA, 2010) aproximam literatura e oralidade, sublinhando a relevância dessa última para a formação de leitores em fase de alfabetização, além de apontarem caminhos para um trabalho inclusivo com os textos literários. Sobre a leitura de obras literárias, consideramos que as premissas pedagógicas que defendemos, segundo as quais essa é uma atividade formadora em um sentido amplo (AMARILHA, 2006, 2012), são aplicáveis não só aos leitores em formação, mas também aos formadores de leitores. Não por acaso, a leitura de literatura é uma atividade corriqueira em todos os espaços de formação de mediadores de leitura organizados pelo grupo de pesquisa Ensino e Linguagem. No caso da nossa pesquisa, essas leituras 102     visavam, em primeiro lugar, a formação de repertório, face ao escasso contato com obras de literatura infantil negra relatado pela professora. Pensando a literatura enquanto uma experiência vicária (AMARILHA, 2006), as vivências de leitura desses textos poderiam familiarizar a professora com referências culturais negras, ampliando seus conhecimentos acerca das histórias dos povos negros e promovendo o questionamento de visões estereotipadas e preconceituosas com as quais ela possa ter tido contato. Quanto ao cronograma inicialmente planejado, houve a necessidade de diversas adaptações devido a imprevistos pessoais de ambas as partes e, principalmente, a flutuações no calendário letivo. Tais flutuações eram fruto dos mais diversos revezes, que não eram incomuns na rotina da escola e iam desde paralisações, falta d'água, desabastecimento de gêneros alimentícios, problemas mecânicos no ônibus que fazia o transporte escolar, até celebrações militares que alteravam a rotina da escola. Contudo, a mudança ocorrida na escola durante a fase de formação que mais impactou na nossa pesquisa foi a troca da direção. Esse fato trouxe uma instabilidade temporária aos processos da escola, notadamente, ao planejamento do ano letivo seguinte. Desse modo, ficamos momentaneamente sem saber se a professora iria continuar com uma turma do 5º ano e sequer se iria continuar naquela escola. Somente já próximos ao fim da formação é que ficamos sabendo com certeza de que a professora ficaria com uma turma de 3º ano no seguinte ano letivo, o que impactou profundamente no planejamento das sessões de leitura, que será discutido na próxima seção. Tais eventos levam a uma atualização, revalidando as constatações feitas nas primeiras pesquisas do grupo (AMARILHA, 1993) acerca da instabilidade a qual estão sujeitos vários processos relacionados à educação e ao ensino de literatura, em particular, nas escolas públicas de Natal/RN. Essa instabilidade dificulta o trabalho escolar com a literatura, uma vez que prejudica o desenvolvimento de um projeto de formação de leitores longitudinal, sistemático e contínuo, o que seria pedagogicamente mais consistente. 4.6 Planejamento das sessões / escolha do repertório Conforme foi dito na seção anterior, diversos aspectos do planejamento das sessões de leitura já tinham sido abordados durante a formação com a professora, fato que já era esperado. Por exemplo, ao lermos uma obra literária, ponderávamos se ela era apropriada aos seus alunos e se deveria ou não figurar no repertório de leitura. Ou senão, 103     ao estudarmos a técnica de mediação de leitura por andaimes, refletíamos em seguida sobre quais atividades poderiam ser adotadas em cada fase para a mediação com uma obra que pretendíamos abordar. Assim, podemos dizer que a construção do plano de leitura foi um processo contínuo e compartilhado. É fato que houve maior esforço do pesquisador no sentido de procurar ter contato com um grande número de obras e fazer uma pré-seleção das obras que deveriam ser apresentadas à professora. Contudo, esses papeis foram invertidos em ocasiões em que a professora apresentou, ao pesquisador, obras com as quais teve contato. Uma delas, que o pesquisador desconhecia, acabou compondo o repertório final e foi uma das preferidas pelos aprendizes. Trata-se de As Panquecas de Mama Panya (CHAMBERLIN, CAIRNS, 2005). Essa escolha representou um sucesso no sentido de efetivar a proposta metodológica de diminuir a distância entre pesquisador e colaboradora. Destarte, entre o primeiro plano traçado e aquilo que foi, de fato, executado há significativas diferenças. Diferenças que são fruto tanto das instabilidades referidas acima – como as mudanças no cronograma inicial – quanto de reavaliações frente ao que ia sendo executado, conforme permite a pesquisa qualitativa participativa. Assim, ao aproximarmo-nos do fim da formação, já tínhamos uma proposta de quais obras ler e dos possíveis meios de fazê-lo. Contudo, conforme comentário anterior, a mudança na turma da professora do 5º para o 3º ano trouxe algumas incertezas, já que deveríamos passar a lidar com leitores menos experientes, incluindo alguns ainda não alfabetizados. Em geral, nossa resposta a tal mudança foi a priorização de obras menos complexas em relação às que considerávamos adequadas para o 5º ano e a atribuição de maior ênfase às atividades de pré-leitura, como o pré-ensino de conceitos. Além disso, inserimos a releitura como método fundamental de trabalho. Esperávamos, com isso, propiciar condições para que esses leitores pudessem interagir como as obras de maneira a conquistarem competência recepcional mais proficiente. Essa aposta no sucesso dos aprendizes em construir coletivamente sentidos a partir da mediação de leitura baseia-se, por um lado, no próprio conceito de ZDP (VYGOTSKY, 1999). Isso porque, já que nos propusemos a realizar a leitura mediada, poderíamos exigir mais do que o desenvolvimento cognitivo dos alunos lhes permitiria realizar sozinhos. Por outro, essa aposta é encorajada em trabalhos, como o de Amarilha (2012), que mostram que alguns professores dos AIEF subestimam as habilidades leitoras de seus alunos e, com isso, acabam afastando-os do convívio profícuo com o texto 104     literário mais complexo e, por isso, desafiador. Por fim, levamos em conta ainda outros estudos que mostram o robusto potencial do método da andaimagem no trabalho com leitores inexperientes (FREITAS, 2005; SOUZA, 2009). O trabalho de escolha do repertório e de construção do plano de leitura intensificou-se com o fim da formação com a professora. Durante o mês decorrido entre o dia do último encontro da formação, 27/03/2015, e aquele da primeira sessão de leitura, 27/04/2015, as idas do pesquisador à escola foram mais frequentes e foram realizados 3 encontros com a professora com o intuito de finalizarmos o plano inicial. A esta altura, já havíamos sido apresentados aos sujeitos da nova turma de 3º ano da professora e traváramos contato informal com eles, sendo bem acolhidos desde o início. Contudo, tivéramos de retomar as atividades de observação, de modo a conhecê-los melhor, como forma de subsidiar o planejamento das sessões. Nossos focos de observação naquele momento foram: o contexto em que se davam os processos de ensino-aprendizagem na turma; o nível de desenvolvimento cognitivo dos aprendizes, sobretudo com relação às habilidades linguísticas; o modo como se davam as relações étnico-raciais no contexto da turma e seus conhecimentos prévios sobre a África e as culturas negras. Observamos a turma durante um dia de aula – em que não houve leitura literária – e durante duas sessões de leitura de literatura. Houve ainda, por uma iniciativa da professora, uma sessão com a obra Menina Bonita do Laço de Fita (MACHADO, 2011), na qual o pesquisador não estava presente e que foi registrada em áudio pela própria professora. Fizemos também, com o consentimento da direção, uma consulta aos registros oficiais contidos nos dossiês desses alunos. Além dessas observações, os relatos da professora também foram muito importantes para traçarmos o perfil da turma, já que ela estava em contato diário com eles desde o dia 02/03/2015, quando se iniciou o ano letivo. As descrições expressas nos relatos da professora, aqui apresentados com nomes fictícios, enfatizavam o desenvolvimento cognitivo e, sobretudo, o aspecto disciplinar da turma. Segundo ela, a maioria já era alfabetizada, mas alguns ainda estavam em processo de alfabetização. Ela classificou a turma como participativa e disse que em sua maioria eram calmos e disciplinados, mas, havia uma minoria que lhe causava constante preocupação. Um deles era Suhuba, uma criança cujas habilidades linguísticas e matemáticas estariam abaixo da média da turma e, segundo ela, talvez por não conseguir acompanhar as aulas, comportava-se por repetidas vezes de forma inadequada, encorajando, por vezes, outros colegas a repetirem esses comportamentos. Mas, suas 105     maiores preocupações centravam-se em dois alunos que apresentavam distúrbios comportamentais: Jéremie, diagnosticado com retardo mental leve e Watende, que representava a maior fonte de preocupação para a professora e cujo diagnóstico médico era de transtorno desafiador opositivo e hiperatividade. Segundo seus relatos, Jéremie chorava em várias ocasiões durante as aulas, enquanto Watende apresentava um comportamento irrequieto, procurando chamar a atenção para si durante boa parte do tempo, além de tornar-se, por vezes, agressivo, chegando a ameaçar alguns colegas. Os mais elogiados em seus relatos foram Arusha e Bodru, seja por seus desenvolvimentos cognitivos que estariam à frente da média da turma, ou por sua participação nas aulas que, em geral, enriqueceriam as discussões. A leitura dos dossiês mostrou-nos que a grande maioria da turma contava 9 anos na época de realização da pesquisa. Dentre as 17 crianças, 8 moravam na Vila de Ponta Negra, um bairro situado a aproximadamente 10Km da escola, de maioria de famílias de baixa renda, formado sobretudo a partir de remanescentes de uma comunidade de pescadores e caracterizado em grande medida pela mídia local como violento. Havia 4 alunos que moravam em bairros nas imediações da escola e o restante em bairros mais afastados. Dentre os registros de profissões das mães, constam: do lar, diarista, doméstica, passadeira, artesã, vendedora e estudante, dentre outras. Já os dos pais apontam: pedreiro, porteiro, auxiliar de serviços gerais, encanador, motorista, gari e policial, dentre outras. Por fim, havia nos dossiês o registro da cidade de nascimento dos alunos e, ainda um campo para ser preenchida a raça. No entanto, esse campo estava em branco para todos os alunos. Por mais que possamos nos perguntar qual seria o meio empregado para preencher tal campo, o fato de ele existir e estar em branco ilustra uma postura ambígua da escola quanto à categoria raça. Pode-se imaginar a hipótese de que talvez o dossiê seja padronizado pela Secretaria Estadual de Educação e, ao chegar à escola, o responsável pelo seu preenchimento hesite quanto à maneira certa de preencher aquele campo. Seja como for, essa ausência vem ao encontro de estudos que apontam que a escola tende a silenciar sobre questões ligadas a raça e etnia. Por exemplo, Nicodemos e Oliveiras (2014, p. 80), ao refletirem sobre o currículo e o cotidiano escolar brasileiro na perspectiva da educação das relações étnico-raciais, apontam para as dificuldades apresentadas por professores da educação básica para debater sobre práticas racistas no âmbito escolar, "as quais comumente são silenciadas, negadas ou escamoteadas no imaginário social brasileiro, por meio do discurso do mito da democracia racial [...]." 106     De nossa parte, como defendemos que raça é uma categoria cultural, acreditamos no direito individual de autodeclaração da identidade. Portanto, abstemo-nos de impor classificações às crianças, mantendo a atenção nas maneiras com que eles classificavam a si próprios e entre si. Podemos afirmar apenas que havia uma grande diversidade fenotípica na turma, com a presença de traços físicos característicos de várias etnias presentes na constituição do povo brasileiro, inclusas as etnias negras. Contudo, vale a pena repetir, isso não nos dá o direito de, a priori, afirmar que havia alunos negros na sala. Um fato ocorrido durante a consulta aos dossiês, que nos cabe registrar, foi um comentário feito por uma funcionária ligada à secretaria da escola que, ao ver-nos manipulando as fichas, questionou sobre os motivos da consulta. Ao ser informada de que tínhamos interesse em saber, dentre outras coisas, as profissões dos pais, esta funcionária respondeu em um tom sarcástico que poder-se-ia escrever que os pais eram “traficantes” e que as mães eram “sustentadas pelo bolsa-família”. Esse discurso indica a presença de generalizações e preconceitos no ambiente escolar que repercutem a maneira como os estudantes são vistos por alguns membros do corpo administrativo. Essa forma de preconceito foi observada também em algumas falas dos alunos durante as sessões de leitura e será discutida em detalhes no capítulo de análises. Durante as observações da turma em aula com a professora, inicialmente, tivemos a impressão de que não havia uma aula única em curso, mas a quantidade de intervenções orais dos alunos e o modo diverso como respondiam às intervenções da professora exigiam que ela mediasse simultaneamente processos distintos respondendo a necessidades educativas distintas. Verificamos que, não só aqueles alunos que a professora havia citado, mas vários outros, rompiam com os acordos disciplinares feitos. A partir dessas observações, pudemos compreender porque a professora abordava repetidas vezes os aspectos disciplinares em suas falas, queixando-se da dificuldade que tinha em manter sozinha um ambiente propício à aprendizagem em sala de aula. Observamos várias ocasiões em que algum aluno da turma queixava-se à professora a respeito do comportamento do Watende. Essas queixas repetiam-se nos relatos da professora ao pesquisador. Ela temia não estar preparada para lidar com a situação e criticava a obrigatoriedade das escolas aceitarem matrículas de alunos com algum tipo de deficiência sem oferecerem as condições para trabalhar com esses alunos, como professores auxiliares, cursos de formação e infraestrutura física. Como resposta ao desafio, ela, por vezes, adotava uma postura disciplinadora perante os alunos, 107     interrompendo a aula inúmeras vezes para reprimir comportamentos indesejáveis, procurando certificar-se de que conseguia manter o controle da situação. O conjunto dessas interrupções consumia uma parte considerável do tempo de aula. Além da postura, ela mantinha, ao final de cada aula, um sistema que usava o código de cores do semáforo para a autoavaliação da turma a respeito dos comportamentos individuais. Os maus comportados amargavam a permanência do pregador com seu nome na bola vermelha durante dias seguidos. Em uma das sessões de leitura que acompanhamos, a professora realizou a leitura oral da obra Marcelo, marmelo, martelo, de Ruth Rocha. A sessão teve lugar na biblioteca e durou aproximadamente 10 minutos, tendo a professora usado o esquema de andaimagem. Na pré-leitura, ela solicitou previsões sobre a história a partir da capa do livro, que ela fazia ver em suas mãos e era o único exemplar. Vários alunos manifestaram- se, muitas vezes sobrepondo os turnos de fala, que a professora procurava administrar. Durante a leitura, a professora manteve um bom controle da prosódia, variando entonações e fazendo pausas, e exibiu o livro várias vezes para que os alunos vissem as ilustrações. Vários dentre eles riram alto em alguns momentos da história e alguns interromperam a leitura em outros momentos. Em um certo ponto, ela interrompeu sua leitura para solicitar aos aprendizes que reavaliassem as previsões feitas e fizessem novas. Na fase de pós-leitura, ela conduziu uma breve discussão, retomando novamente as previsões. Após essas observações, recorremos a uma entrevista coletiva com a turma, pedindo que eles relatassem, um por vez, o que os fazia lembrar as palavras: “África”, “africanos” e “descendentes”. De início, eles se lembraram somente dos animais das savanas e do deserto. A palavra “africanos” lembrou-lhes que há gente em África, a quem logo associaram os adjetivos “selvagens” e “pobres”, e ninguém conhecia a palavra “descendentes”, cujo significado lhes foi exposto. Percebemos que, o conhecimento prévio da turma sobre a África coincide com as representações estereotipadas e, em sua maioria, negativas que a grande mídia veicula (SOUZA, 2013, p. 24). De modo que, a escola que silencia sobre a temática, corrobora com a perpetuação dessas representações. Após essa nova recolha de dados, pudemos finalizar a construção do repertório de leitura. Os critérios de seleção das obras levaram em conta: os pressupostos teóricos acerca da literatura infantil, da formação das identidades culturais e das representações da África e dos negros; e as constatações advindas das observações, notadamente, acerca dos conhecimentos prévios dos aprendizes sobre a temática e de suas habilidades leitoras. De 108     modo geral, procuramos formar um amplo mural representativo da experiência histórica negra. Além disso, procuramos partir de uma representação mais próxima ao conhecimento prévio dos aprendizes, para, gradualmente, ir complexificando as noções sobre a África, os africanos e sobre a história dos negros brasileiros, procurando assinalar a diferença dentro da diferença, de modo a nos afastarmos das noções essencialistas e homogeneizantes. As 6 obras escolhidas, na ordem em que foram lidas, são: Um safári na Tanzânia (KREBS, CAIRNS, 2007), O presente de Ossanha (SANTOS, VENEZA, 2006), Kofi e o menino de fogo (LOPES, MOREAU, 2008), Bruna e a galinha d'Angola (ALMEIDA, SARAIVA, 2011), As panquecas de Mama Panya (CHAMBERLIN, CAIRNS, 2005) e Anansi, o velho sábio (KALEKI, GÖTTING, 2007). Foram planejadas 12 sessões de leitura, mas, ao final, realizamos 13 sessões, de duração aproximada de 50 minutos cada, sendo duas para cada obra, com a exceção de Bruna e a galinha d’Angola, que teve 3 sessões. Para cada obra, foi traçado um plano de leitura detalhado, conforme o Apêndice B, com os objetivos de leitura, características da obra, obstáculos e facilitadores, o conhecimento prévio dos aprendizes e os conhecimentos possíveis de serem construídos, além do vocabulário. Para cada uma das etapas da mediação de leitura por andaimes fixou-se uma mesma estrutura de atividades para todas as obras, como se segue: ● PRÉ-LEITURA: previsões, motivação, pré-ensino de conceitos, vocabulário. ● LEITURA: silenciosa ou oral, com ou sem interrupções, com ou sem releitura. ● PÓS-LEITURA: confirmação/refutação das previsões, discussão, atividade lúdica. Na construção do plano, ficou evidente a natureza transdisciplinar (D’AMBROSIO, 1997) da proposta, já que, como atividade de pré-leitura, optou-se por contextualizar os aspectos geográficos, históricos e culturais relacionados ao texto a ser lido com a turma, esse procedimento corresponde ao pré-ensino, conforme os moldes da mediação por andaime. Essa perspectiva será mais explorada no próximo capítulo. Outro cuidado central no detalhamento dos métodos a serem empregados na mediação foi o investimento no caráter lúdico próprio à leitura literária (AMARILHA, 2012; ZILBERMAN, 1989), de modo que as atividades resultassem prazerosas para os aprendizes. Essa aposta vem do reconhecimento do brincar como forma de aprender própria da psicologia infantil (VYGOTSKY, 1999). De fato, a leitura literária pelo 109     simples prazer que esse jogo proporciona, deve ser um dos principais objetivos do trabalho de formação de leitores, já que ela é um dos fatores que proporcionam o alcance da autonomia leitora (AMARILHA, 2012; ZUBERMAN, 2005). Assim, procuramos, durante a leitura, brincar com o som das palavras escritas, realçando a ludicidade intrínseca a essa atividade e, antes e depois da leitura, propor jogos que, agregados à leitura, conferissem um caráter geral de brincadeira às sessões. Não só por isso, mas também pelo lugar de destaque que a oralidade assume nesse estudo, além do planejamento sistêmico, fizemos o planejamento prosódico, que consistiu basicamente na leitura oral dos textos repetidas vezes, de modo a desvendar suas potencialidades acústicas, descobrindo sonoridades que realçassem os dramas representados nas narrativas. Trata-se de uma atividade análoga ao estudo de partituras por parte de músicos, buscando a interpretação que melhor impressione os ouvidos da audiência, tornando-se o músico um mediador que possibilita o estabelecimento da comunicação entre o autor da partitura e o público. Resta ressaltar que uma das fontes de pesquisa para a escolha das atividades com cada obra foi a internet. Com efeito, há uma grande quantidade de trabalhos disponíveis online com orientações para o trabalho de mediação de leitura com livros de literatura infantil negra. Trata-se de experiências compartilhadas por escolas e por professores individualmente, projetos de promoção da igualdade racial, artigos de especialistas, etc. Esses trabalhos podem ser de grande ajuda para professores com pouca experiência com a temática, já que apontam possibilidades a serem exploradas como um passo inicial. Assim, por exemplo, na leitura de O Presente de Ossanha, inspiramo-nos em um vídeo dos livros animados, que são parte do projeto A Cor da Cultura, realizado por uma parceria entre entidades governamentais e civis, em que são feitas as brincadeiras de mestre-e-escravo antes da leitura e, após, a de amigo-oculto. Também consultamos uma série de relatos de experiências didáticas com a obra Bruna e a Galinha d'Angola, nas quais foram adotadas atividades artísticas após a leitura. 4.7 Execução das sessões de leitura Finalmente, procedemos às sessões de leitura. É importante ressaltar que o início das sessões não significou o fim da etapa de planejamento. Isso porque o cronograma inicial, a ordem de leitura das obras e a quantidade de sessões para cada uma delas 110     sofreram alterações à medida que as sessões foram-se desenvolvendo, buscando adaptar o planejamento às respostas dos aprendizes às leituras. Esses procedimentos de reorientação são pertinentes à flexibilidade que a pesquisa qualitativa autoriza. Por exemplo, a leitura do livro Kofi e o menino de fogo foi antecipada para a 5ª sessão (3ª obra), para que se pudesse, a partir dela, discutir o tema do preconceito racial, que já havia aparecido em algumas falas dos aprendizes, logo nas primeiras sessões. Também a obra Bruna e a Galinha d'Angola ganhou uma sessão a mais, devido ao sucesso das duas primeiras e ao grande número de alunos ausentes. Ao fim e ao cabo, foram realizadas 13 sessões de leitura, durante um intervalo de 20 dias, distribuídas da seguinte forma: Quadro 2 – Cronograma das sessões de leitura. Data / Livro Um Safári na Tanzânia O Presente de Ossanha Kofi e o Menino de Fogo Bruna e a Galinha d'Angola As Panquecas de Mama Panya Anansi, o Velho Sábio 27/04/2015 X 28/04/2015 X 12/05/2015 X 15/05/2015 X 20/05/2015 X 21/05/2015 X 26/05/2015 X 27/05/2015 X 28/05/2015 X 09/06/2015 X 11/06/2015 X 12/06/2015 X 16/06/2015 X Fonte: autoria própria 111     Chamou-nos a atenção, ao longo do período de realização das sessões, as altas taxas de alunos faltosos. Devido a isso, havia uma grande alternância entre os presentes em cada sessão, de modo que nenhuma sessão teve o mesmo público de outra. Via de regra, as sessões trouxeram grande excitação à turma, demandando um grande esforço por parte da professora em manter os acordos disciplinares. O pesquisador procurou adotar uma postura de mero observador, tendo planejado intervir apenas na primeira e na última sessão, ainda que tenha sido compelido a intervir em algumas ocasiões. Todos os encontros foram registrados em vídeo e transcritos, ainda que, em alguns deles, tenha havido problemas técnicos, tendo-se perdido parte da imagem ou do áudio. As transcrições das sessões de leitura encontram-se no Apêndice C. 4.8 Entrevistas Após o término das sessões, propusemos uma etapa de entrevistas individuais semiestruturadas com o intuito de colher impressões pessoais sobre o processo e as eventuais mudanças decorridas dele. A utilidade dessa etapa é a de oferecer mais subsídios para a descrição dos fenômenos observados, em consonância com as exigências da pesquisa qualitativa, visto que: a abordagem qualitativa de pesquisa enfatiza a descrição, a indução, a teoria fundamentada, o estudo das percepções pessoais, e a questão de pesquisa tem o objetivo de investigar um fenômeno em seu contexto ecológico natural e buscar sua compreensão a partir das perspectivas dos sujeitos (BOGDAN; BIKLEN apud MARTUCCI, 2001, p.3). Foram entrevistados todos os alunos, com exceção de Jéremie, que deixou de frequentar a escola durante a realização das sessões de leitura; além da professora e de uma gestora. Todas as entrevistas foram registradas em áudio e transcritas. Os roteiros das entrevistas, juntamente com as transcrições das respostas, estão disponíveis no Apêndice D. Por serem compostas de perguntas que dialogam com a recepção dos alunos aos livros lidos, analisaremos as respostas mais relevantes das entrevistas ao final do próximo capítulo. 112     5 DADOS E ANÁLISES Chegamos, assim, ao capítulo que evidencia o que aconteceu na escola durante as sessões de leitura de literatura infantil negra e as repercussões desse processo. Procuraremos descrever os aspectos mais relevantes da complexa dinâmica de eventos suscitados pela prática de intervenção no ambiente escolar, apresentaremos recortes de dados do corpus e procederemos à análise desses dados, segundo as categorias elencadas, baseadas, por sua vez, na discussão teórica empreendida anteriormente. Na seção 5.1, abordaremos a prática interventiva central deste trabalho, as sessões de leitura, descrevendo os procedimentos e analisando os aspectos que mais sobressaíram em cada uma das leituras empreendidas. Na seção 5.2, analisaremos as características mais significativas da recepção dos sujeitos para a reflexão acerca da formação das identidades culturais na leitura de literatura infantil negra. Finalmente, na seção 5.3, delinearemos uma avaliação da implementação do projeto no campo de pesquisa, refletindo sobre as respostas dos diversos sujeitos da comunidade escolar à prática investigativa. Nessa avaliação, levaremos em conta não só os dados recolhidos durante as sessões de leitura, como também aqueles provenientes das entrevistas com os sujeitos. 5.1 DANDO VIDA À LITERATURA: as sessões de leitura Nesta etapa, descreveremos, passo a passo, a metodologia das sessões de leitura e sua dinâmica de realização, e avançaremos algumas análises sobre os pontos mais relevantes para o trabalho de mediação de leitura de literatura infantil negra. Os focos recaem sobre as opções metodológicas, a recepção das obras por parte dos aprendizes e outros fatos observados durante a realização das sessões, que sejam significativos para a discussão sobre a mediação leitora e a formação para a democratização das relações étnico-raciais. Conforme foi explicitado na introdução, nosso objeto de pesquisa é uma situação (AMARILHA, 2007), por isso, não nos interessa analisar só o professor, nem só o aluno, nem só o livro, mas sim, a convergência dos três, que se dá nas sessões de leitura. Assim, estaremos interessados principalmente em observar a dinâmica das relações entre as características das obras, a metodologia da andaimagem (GRAVES; GRAVES, 1995) e o ponto de vista dos sujeitos em movimento (FREITAS, 2005). Contudo, devido à sua 113     importância, algumas das características das repostas das crianças aos textos terão uma análise sistematizada em categorias mais gerais, que serão explanadas no próximo capítulo. O que não podemos perder de vista, porém, é que há várias distinções entre os objetivos do pesquisador, ao observar as sessões de leitura e os objetivos da leitura em si. Assim, enfatizamos que o objetivo maior de toda sessão de leitura de literatura é a leitura de literatura em si mesma. Todos os cuidados tomados são, pois, para propiciar um contato mais íntimo com o livro de literatura infantil negra. Os demais objetivos expressos ao longo deste capítulo são decorrências daquele contato, de acordo com as previsões e direcionamentos planejados pelos mediadores. 5.1.1 Um Safári na Tanzânia Figura 11 - Um Safári na Tanzânia (Laurie Krebs; Julia Cairns). Com base nas respostas dos aprendizes à entrevista inicial, pudemos perceber que o conhecimento deles sobre África era bastante escasso. Tal conhecimento, conforme comentamos antes, aproxima-se das representações estereotipadas vinculadas pela grande mídia, que insiste nas representações de paisagens, animais e sociedades tribais na maioria das vezes em que fala de África. E, quando foge desse esquema, costuma ser para 114     noticiar tragédias humanas, como guerras, epidemias, fome e miséria, com algumas exceções. A partir dessa constatação, achamos conveniente iniciar as sessões com uma obra que dialogasse com o conhecimento prévio deles sobre o assunto, mas que, ao mesmo tempo, representasse os africanos de maneira positiva e alargasse seus conhecimentos. Foram esses os fatores que nos levaram a optar pela obra Um Safári na Tanzânia (KREBS, CAIRNS, 2007). A estrutura da obra é baseada em um clichê recorrente em livros de literatura infantil, no qual, à medida que a criança vira as páginas, ela acompanha uma contagem de objetos, de animais ou de motivos diversos. Contudo, aqui, há elementos novos, uma vez que a contagem é realizada por crianças do povo Massai, uma etnia que vive entre a Tanzânia e o Quênia. Baseados nesse mote, os autores inserem na história nomes comuns dessa etnia, as palavras no idioma kiswahili para os números e os animais, além de informações sobre a Tanzânia e sobre os Massai. Para reforçar esses elementos novos, o pesquisador produziu cartazes com os números, os nomes das crianças e dos animais escritos em letras grandes em kiswahili e colou-os nas paredes da sala onde a sessão foi realizada. As ilustrações do livro, de Julia Cairns, também colaboram para realçar as novidades desse primeiro contato com uma civilização tradicional africana. Primeiro, todas as figuras humanas - na maioria crianças - são pintadas com tons de pele que vão do marrom escuro ao preto, fato que já se configura como uma novidade, se compararmos com os livros que eles liam habitualmente. Além disso, os detalhes dos desenhos retratam tipos físicos, ações, gestos, posturas, vestimentas, enfeites e objetos. Por fim, as atitudes das figuras podem ajudar a construir uma imagem simpática e afetuosa dos Massai, pois expressam alegria e união. Nessa obra, as ilustrações substituem com vivacidade e detalhes a descrição verbal, que praticamente não se faz presente no texto literário, de maneira que, como meio de introduzir uma outra cultura, essa articulação entre imagens e palavras é bastante relevante. Assim, o objetivo de leitura foi propor uma introdução lúdica à África e a seus povos através de temas caros às crianças e presentes em seu universo (como animais, por exemplo) e de um livro de leitura fácil e agradável, incentivando-os a construir uma imagem positiva do povo Massai. Como dispúnhamos somente de 50 minutos de sessão de leitura e como tratava-se de um dos primeiros contatos deles com conteúdos escolarizados sobre a África, decidimos iniciar a etapa de pré-leitura na aula anterior, na qual foi feito o pré-ensino de noções de geografia africana, como a localização do continente e as características marcantes de suas regiões. 115     A sessão contou com a presença de 14 sujeitos e foi realizada na sala de vídeo da escola. Somente a professora tinha o livro em mãos. Os aprendizes acompanhavam através da projeção na parede das páginas do livro digitalizadas e editadas com o programa flipalbum, que simula a manipulação de um livro impresso, através de efeitos de movimento e som similares. De modo que, quando eles adentravam a sala, deparavam-se com a capa do livro projetada na parede e com a câmera ligada ao fundo, já estando eles cientes de que seriam filmados. Tais fatos, por si só, causaram alguma excitação na turma, pois eles associaram o contexto às atividades de exibição de vídeos que a professora costumava propor e, ao que parece, lhes agradava, visto que alguns perguntaram a que horas começaria o filme durante a pré-leitura. Somando-se a presença em sala do pesquisador com a câmera, com a qual eles ainda não estavam completamente habituados, esse conjunto contribuiu para uma agitação no comportamento da turma em geral. Ao que parece, a agitação foi sentida além do contexto da turma, já que, no início da sessão, a vice-diretora entrou na sala e ajudou a professora a organizar as crianças sentadas em círculo no chão. Já no início, Suhuba fizera uma observação sobre a ilustração da capa, sublinhando a ausência de olhos em uma das crianças representadas. Ao ver a segunda ilustração, ele exclamou: “Ele está nu!” Como resposta, a professora atribuiu a ausência de olhos à má qualidade da projeção (de fato, tratava-se de uma estilização das pinturas) e negou que eles estivessem nus, mas, sim, suas roupas que seriam diferentes. Após revistos os combinados disciplinares, o pesquisador deu início à sessão, apresentando rapidamente o projeto de leitura de livros de literatura infantil negra que havia preparado em parceria com a professora. A seguir, a professora iniciou a fase de pré-leitura, com as previsões e o vocabulário, que foi parcialmente realizado, devido ao interesse de muitos em intervir oralmente, o que demandava tempo com a organização dos turnos de fala e com as falas em si. Ainda foram apresentados os tópicos constantes das páginas ao final do livro, com informações sobre a Tanzânia e o povo Massai. Durante a leitura oral do livro, a professora apresentou uma boa prosódia. Como se tratava do único texto poético adotado, foram programadas três leituras seguidas, sendo solicitada para as duas últimas a participação dos aprendizes, divididos em grupos, no intuito de brincar com as sonoridades do texto, maximizando o prazer em ler (ZUBERMAN, 2005), pelo pleno exercício da poiesis (JAUSS, 2002). Contudo, essas leituras fluíram de modo bem diferente do planejado. A professora percebeu que Leléu destacava-se na leitura e centrou nele a função de leitor colaborador. 116     A etapa de pós-leitura realizou-se com a professora sentada no chão, na roda com as crianças, através da atividade de discussão da história, que foi feita lançando perguntas abertas que possibilitassem aos sujeitos argumentar acerca da sua recepção da obra. As perguntas feitas foram: 1 - Vocês gostaram do livro? Por quê? 2 - O que vocês sentiram quando lemos a história? 3 - Você gostaria de ser uma criança Massai na savana? Praticamente todos os alunos afirmaram terem gostado do livro, mas a maioria referiu-se aos animais como justificativa. Essa tendência na recepção dos sujeitos fora prevista, assim, a terceira pergunta focou os personagens humanos, para tentar captar a visão deles sobre aquelas representações. Como reposta a essa pergunta, em conjunto, eles afirmam que sim. Porém, ao serem questionados individualmente, mudam suas respostas. Leléu responde afirmativamente, justificando com o fato de eles ficarem pelados. Kojo envergonha-se e o repreende: “Por que você disse isso?”, respondendo negativamente, o que faz com que Leléu volte atrás e também negue. A seguir, a maioria responde que não, usando a nudez como justificativa. Entretanto, Bodru justifica sua resposta negativa dizendo que não gostava de ficar perto de muita gente preta. Ao ser questionado sobre o motivo, ele o atribui à falta de costume. Como veremos a seguir, nas outras sessões também houve falas de cunho preconceituoso. Por sua relevância, analisaremos esses episódios em categorias à parte, na seção 5.2.2.1. Realizou-se, então, uma atividade final de cunho lúdico: a competição do pulo, imitando uma cerimônia Massai em que os homens saltam e as mulheres decidem quem são os melhores com base na altura dos saltos. A notícia da atividade foi recebida com grande algazarra e a atividade acabou sendo interrompida antes do fim, devido ao excesso de barulho. A professora se propôs a realizar uma nova sessão no dia seguinte, focando mais na leitura do livro em si, mesmo sem a presença do pesquisador. Esse episódio fez-nos perceber a insuficiência de uma única sessão para abordar os livros do modo como pretendíamos. Isso acarretou mudanças no plano, tendo sido inseridas, no mínimo, uma sessão a mais por livro, para que pudéssemos realizar as atividades programadas em dias diferentes, evitando que a demora excessiva para a leitura do texto criasse inquietação e frustração na turma. De tal sorte que, de modo geral, um dos destaques dessas duas primeiras sessões foram seus insucessos, que fizeram com que corrigíssemos os pontos falhos do planejamento, conforme permite a pesquisa qualitativa. 117     Na atividade de discussão do livro, ficou evidente a complexidade da formação do ponto de vista dos aprendizes, que se movimenta constantemente durante a aula de leitura (ISER, 1999; FREITAS, 2005), pois é influenciado pelas interações com os pares, com a mediadora, o texto em si e com o próprio ambiente da sala. Com efeito, observamos uma clara influência das primeiras intervenções nas demais. Assim, a partir da plurissignificação própria do texto literário (LAJOLO, 1982), os leitores, a partir de suas diferentes subjetividades, procuram cumprir o papel ativo que lhes cabe, imprimindo a marca de sua presença no texto pela estruturação de significados que derivam de seu horizonte de expectativas (ZILBERMAN, 1989); mas, além disso, essa presença acaba por se manifestar também nos processos análogos vividos pelos pares de leitura. 5.1.2 O presente de Ossanha Figura 12 - O presente de Ossanha (Joel Rufino dos Santos; Maurício Veneza). Após essa introdução lúdica à África e o contato preliminar com representações dos povos africanos, decidimos intervir visando promover a problematização e o avanço das ideias prévias dos aprendizes sobre os povos negros. Intentávamos aprofundar os discursos, através de representações mais complexas. Assim, conforme já mencionado, a segunda obra abordada foi O presente de Ossanha (SANTOS, VENEZA, 2006). 118     Julgamos adequado que já a segunda obra representasse aspectos da cultura e da história dos negros brasileiros, começando do início, isto é, pela chegada dos primeiros africanos, trazidos à força na condição de escravizados. Segundo a professora, a turma ainda não havia travado contato com conteúdos didáticos sobre a escravidão, de modo que deveríamos ter bastante atenção ao modo de abordagem. Assim, o conto escolhido reúne uma série de qualidades literárias que o tornam pertinente para esse primeiro contato com a história e a cultura negro-brasileira. Em primeiro lugar, O presente de Ossanha não é uma história sobre escravidão, mas sobre o valor supremo da amizade. Um moleque sem nome comprado como escravo para brincar com o filho do senhor é o herói da trama. Apesar da posição inferior que ocupa na hierarquia social, seus atos põem em dúvida se seu senhor realmente lograra sua intenção de escravizá-lo. Assim, a tônica do enredo não está nos sofrimentos advindos da escravidão, mas sim na amizade entre as duas crianças, na resistência e na força de vontade do menino. Essa força está representada na obra também pelo contato com a cultura ancestral africana, que se personifica na aparição do orixá Ossanha, deus das folhas e ervas medicinais em certas religiões africanas e em quase todas as religiões afro- brasileiras. O presente de Ossanha intervém decisivamente no destino do herói. Há ainda, intercalado na narrativa maior, o reconto baseado em uma lenda envolvendo esse e outros orixás. O fim da história reserva uma surpresa que mostra toda a grandeza do caráter do moleque. A obra baseia-se em um conto de José Lins do Rêgo e apresenta linguagem mítica, mas, ao mesmo tempo, simples, direta e informal, contrastando com a complexidade dos temas tratados, o que a torna adequada a um público de alargada faixa etária. As ilustrações de Maurício Veneza, com seu traço simples e expressivo, estão em harmonia com o estilo narrativo. Ao contrário das ilustrações da primeira obra, Um safári na Tanzânia, elas representam personagens brancos e negros, guiando os primeiros olhares dos aprendizes sobre a história das relações étnico-raciais no Brasil. As ilustrações encontram seu ponto alto de dramaticidade nas representações dos deuses do panteão africano, contribuindo para o envolvimento do leitor no enredo da obra, já que, conforme argumentamos no capítulo teórico, a recepção do livro infantil é multimodal (AMARILHA, 2011). Os objetivos de leitura, além daqueles já expressos, envolvem propiciar a identificação dos leitores com um herói que é um menino negro forte, versado em sua cultura, corajoso, leal, dentre outras qualidades que fazem dele um arquétipo de conduta 119     exemplar. Acreditamos que a identificação com um protagonista com essas características está no cerne desse trabalho, pois pode contribuir para a construção afirmativa das identidades negras e para a problematização de representações negativas dos negros. Além disso, a obra responde a outro objetivo que é o de ampliar os conhecimentos dos aprendizes sobre as religiões afro-brasileiras como o candomblé, a umbanda, a quimbanda, o batuque, o xangô, dentre várias outras. Tais religiões são frutos de sincretismos entre cultos africanos, indígenas e portugueses e contam com milhões de seguidores no Brasil e, como todas as outras, pregam o amor, a justiça e o culto ao sagrado que, aqui, guarda um profundo laço com a natureza e com os ancestrais. Trata-se, portanto, de uma ótima oportunidade de romper com uma postura, historicamente, hostil e silenciadora da escola para com a religiosidade afro-brasileira, para que seja possível forjar uma nova ética escolar perante a diversidade das manifestações religiosas de seus alunos. Nesse sentido, a obra intitulada Orientação e ações para a educação das relações étnico-raciais, defende que: Considerando que o próprio sentido da religião é o de promover a paz, entendemos que as atividades pedagógicas também devem se voltar para esta perspectiva e favorecer a possibilidade do diálogo, do respeito e da valorização das diferentes culturas que compõem a formação da sociedade brasileira. (BRASIL, 2006, p. 45) Novamente iniciamos a fase de pré-leitura em uma aula anterior à da sessão de leitura propriamente dita, com a atividade de pré-ensino de conceitos. Nesse caso, a transdisciplinaridade configurou-se na discussão de aspectos da história da chegada dos primeiros africanos ao Brasil. Assim, a professora tratou em linhas gerais, do início (captura e navios negreiros) ao fim (resultado da luta de muitos anos pela liberdade), a história da escravização de contingentes de populações africanas trazidos para o Brasil, dando mais ênfase às formas de resistência que eles opuseram a esse processo, como fuga, quilombos, rebeliões, estudo, dentre outras. Discutiu-se brevemente sobre a fé trazida por esses povos para cá, que constituiu-se no grande fio condutor que permitiu a resiliência da cultura negra na diáspora (BRASIL, 2006; BAPTISTA e FORTUNATO, 2013), descrevendo alguns dos deuses dessas religiões e enfatizando que eles são cultuados ainda hoje, por muitas religiões brasileiras. Visamos com esse preâmbulo a contextualização da história, de modo que, aqui, o andaime fornecido para uma profícua recepção do texto por parte dos aprendizes foram os conhecimentos histórico-culturais que estão representados no texto. Levamos em conta 120     que, através de um processo mimético, o escritor recria a realidade, contando, não o que ocorreu, mas criando uma fantasia sobre o que poderia ter ocorrido. Tal capacidade de “lembrar-se” do que não aconteceu, mas poderia ter acontecido, é própria da literatura, sendo uma característica marcante do conto histórico. O trabalho com esse gênero pode configurar uma ótima oportunidade para o professor ir além das grandes narrativas historiográficas, estabelecendo contato direto entre o aluno e um personagem verossímil no contexto da época. Contudo, para que o leitor consiga construir sentidos mais profundos, esse contexto histórico deve integrar seu repertório de conhecimentos prévios (SMITH, 1991). Desta vez, o suporte material da leitura foi o livro impresso, sendo distribuído um exemplar por sujeito. Assim, o pesquisador sugeriu o bosque defronte à escola como ambiente das atividades. Essa escolha trouxe vantagens, como o prazer do contato com a natureza e a liberdade para fazer brincadeiras que implicassem alguma algazarra. Isso fez com que os aprendizes estivessem visivelmente mais cômodos e mais relaxados, contribuindo para melhorar a concentração da turma durante a sessão. Porém, o fato de termos apoiado a câmera sobre um tripé e operado o equipamento evidenciou mais sua presença, inibindo a expressão oral de alguns aprendizes. A etapa de pré-leitura da primeira sessão durou aproximadamente 15 minutos. Primeiro, revisou-se a contextualização histórica feita na aula anterior. Arusha destacou- se, demonstrando que se recordava bem do que a professora dissera sobre a escravidão e acrescentando outras informações. Na revisão do conteúdo sobre as divindades africanas, houve intenso debate, tendo Bodru expressado ideias imbuídas de preconceito religioso e Zalira e Arusha feito a defesa da liberdade religiosa. A professora conseguiu mediar o debate de modo eficaz, isto é, sem impor a sua visão, mas encorajando-os a problematizar as falas preconceituosas. Esse episódio será analisado em mais detalhes na seção 5.2.2. Encerrou-se essa etapa com a apresentação do livro, seguida de uma rodada de previsões a partir do título e da capa, além de se realizar o pré-ensino do vocabulário. Na sequência, foi feita a entrega dos livros. A professora orientou-os a realizarem, primeiro uma leitura das ilustrações e, em seguida, tentarem ler as palavras do conto. As atitudes de cada um, ao receber o livro em mãos, diferem muito entre si. Watende, assim que recebera o livro, levantou-se e recomeçou sua perambulação pelo perímetro da roda. Alguns como Bodru, Mosi, Zalira e Arusha assumiram imediatamente uma postura de leitura concentrada, enquanto outros como Bina e Doto permaneceram um longo tempo com o livro fechado em mãos, mais preocupados em encontrar uma posição confortável 121     para estar. Destacamos a atitude de Bibiana que, não tendo conseguido ler o texto, começou a inventar sua própria narrativa com base nas ilustrações, logo envolvendo outros sujeitos não alfabetizados na atividade. Após ter retomado o combinado sobre a necessidade de silêncio total durante a leitura, a professora solicitou-os que a acompanhassem página a página e iniciou sua leitura oral. Naquele momento, a maioria dos sujeitos estava deitada, com o livro aberto em mãos, mas, com o desenrolar do texto, muitos não conseguiram seguir a leitura na página correta, sendo que alguns acabaram por fechar o livro. Ao final da história, 3 sujeitos pareciam cochilar. Esses comportamentos revelam que a capacidade de concentração é um aprendizado e faz parte da formação do leitor. A atividade de discussão desta sessão foi breve, tendo sido questionado somente se eles haviam gostado da história e o porquê da resposta e sobre o que sentiram durante a leitura. Isso porque programáramos deixar a discussão mais aprofundada para a segunda sessão. Para finalizar, realizamos a brincadeira de senhor-e-escravo, desta vez sim, com uma livre e alegre algazarra. A segunda sessão realizou-se na biblioteca, com os sujeitos sentados em roda sobre o tatame. Nessa sessão, contávamos com um número menor de sujeitos; dentre os ausentes, estavam Watende, que estava na escola, mas que pediu à professora para não participar e Bodru, que faltara. No entanto, estava presente um novo sujeito, Jéremie, transferido de outra turma e que fora diagnosticado com um quadro de retardo mental leve. A professora já havia expressado preocupação sobre como conseguir integrá-lo às sessões de leitura, já que, segundo ela, era difícil mantê-lo em sala e, quando conseguia, ele costumava chorar. Considerávamos muito importante incluir esse novo sujeito, adaptando-nos às suas necessidades, nas atividades de leitura literária, que, por si só, é uma atividade inclusiva (FREITAS, 2010). Jéremie acompanhou boa parte das atividades e interessou-se muito pela câmera. Durante o ensino do vocabulário, levantou-se e dirigiu- se para o lugar ao lado do pesquisador, que estava fora da roda e ali permaneceu até o fim da sessão. Ele questionou sobre o significado da palavra visgo e esse foi o mote que os aproximou, quando ele sugeriu que saíssem para procurar visgo. O pesquisador pediu-o que permanecesse até o fim da leitura, acenando vagamente com a possibilidade de irem procurar visgo em outra ocasião. Ele acabou acompanhando as atividades até o fim, tendo o pesquisador auxiliado na mediação de sua leitura. Seguimos o mesmo plano da sessão anterior, com poucas modificações. Durante o pré-ensino do vocabulário, ao tratar de nomes de orixás, a professora, por iniciativa própria, exibiu papéis recortados com ilustrações de vários dentre eles, explicitando a que 122     elemento da natureza cada um estava ligado. Kojo, que costumava intervir pouco, demonstrou muito interesse em mencionar os personagens de desenhos animados com poderes da natureza que conhecia. Na atividade de pós-leitura, foi feita uma discussão mais aprofundada sobre a obra. Observamos nessa atividade que a professora fez uma síntese das perguntas que haviam sido planejadas, numa tentativa de respeitar os direcionamentos que os sujeitos iam imprimindo à discussão e flexibilizando a execução do planejamento. Dentre as estratégias usadas na ação argumentativa da professora, visando oferecer andaime à argumentação dos sujeitos, referimos o enfoque nos sentimentos despertados pelo contato com determinado personagem, como na questão “O que vocês sentiram em relação ao moleque?” Em outras, o enfoque recaía sobre alguns elementos-chave do enredo, como, por exemplo, em: “Qual foi o presente que Ossanha deu? Para quem? Esse presente mudou alguma coisa na vida do moleque?” A terceira estratégia foi o questionamento acerca dos motivos que levaram um personagem a tomar determinada atitude: “Por que o moleque não quis vender o pássaro, mesmo sabendo que com o dinheiro ele poderia comprar a sua liberdade? Por que Ricardo diz que “o escravo sou eu”? Por que, no final, o moleque deu o pássaro de presente para Ricardo?” A turma demonstrou, em geral, boa compreensão dos elementos da narrativa, tendo referido em seus argumentos conexões lógicas entre a sequência de eventos. As respostas enfatizaram, sobretudo, a amizade entre os dois meninos. Arusha classificou a atitude final do moleque como “uma boa ação” e Ambaye argumentou que ele deixara o pássaro por ter percebido a tristeza de Ricardo. No final, Arusha e Mosi compartilham algumas memórias de amizades que eles vivenciaram ou acompanharam. Ao final, como atividade lúdica, realizamos um amigo-oculto somente com livros. Primeiro, realizamos o sorteio dos nomes, depois, o pesquisador dispôs os livros sobre o tatame e cada um, na ordem estabelecida, teve de escolher o livro que achasse que mais agradaria seu amigo. Dentre os 17 livros apresentados, 3 traziam personagens negros na capa, e todos estariam entre os 6 que sobraram se a professora não tivesse escolhido um deles, ao final, no lugar de Jéremie. Essa observação pode estar relacionada à falta de contato frequente com livros com a representação de personagens negros, anteriormente à realização da pesquisa. Esse fato pode os ter levado a optar por aqueles livros com motivos mais familiares. Isso sugere que o gosto por determinado padrão estético também é fruto do processo de formação dos leitores e depende do repertório de leitura com o qual estão familiarizados. 123     Desse modo, a ausência dos livros de literatura infantil negra na formação do leitor, tende a mantê-lo distanciado da estética negra, dificultando o desenvolvimento do prazer ao contato com essa estética. Isso, em última análise, não só impossibilita o processo de tornar-se negro, como impele o sujeito negro a buscar construir uma identidade branca para si, gerando o que Sousa (1983) chama de psicopatia do negro brasileiro em ascensão social, que designa a negação da própria cor e das próprias tradições na tentativa de parecer-se com as figuras mais valorizadas pela sociedade. Essas duas sessões sugeriram que o fato de cada estudante ter um livro em mãos configura uma boa oportunidade para a observação cuidadosa do modo como esse objeto é manipulado, que pode servir como indício da maturidade leitora dos aprendizes. Considerando que a habilidade de manipular adequadamente o objeto livro também é fruto de um processo de ensino-aprendizagem, apontamos para o proveito que pode representar a inserção dessas atividades na rotina da formação de leitores. Notadamente, para leitores em processo de alfabetização, as imagens e a voz da mediadora funcionam como um andaime para a decodificação dos sinais da escrita, podendo auxiliar naquele processo. Isso reforça nosso argumento de que a mediação de leitura literária, conforme praticada na etapa interventiva desta pesquisa é uma atividade de caráter inclusivo (SOUZA, 2009; FREITAS, 2010). Incluir, nesse caso, não significa conformar, uma vez que a atividade proporciona a todos os sujeitos do grupo desfrutar da experiência estética, integrando-os em uma comunidade de leitores que explora não só as possibilidades significativas do texto, como as subjetividades individuais, que se conjugam para tecer uma leitura particular da obra, específica daquele grupo, sendo fruto da sua intersubjetividade. Essa construção conjunta pode ser um lugar acolhedor das diferenças ou hostil a elas; o que definirá esse caráter será a postura adotada pelo mediador de leitura, de acordo com sua concepção mais ou menos democrática do fazer educativo. Por fim, destacamos a observação, advinda do trabalho com ilustrações de orixás junto com os elementos naturais que controlam, de que alguns aprendizes traziam conhecimentos prévios sobre o tema, apesar de não saberem que se tratavam de divindades africanas. Mesmo os que desconheciam completamente os orixás foram capazes de dialogar com aquelas representações. Em particular, a associação feita por Kojo, entre orixás e super-heróis já é explorada, principalmente por autores de revistas em quadrinhos de várias partes do mundo, que representam os orixás e suas lendas dentro de uma estética análoga à dos mangás. Um exemplo brasileiro é a revista Orixás: do Orum ao Aye, produzida por Alex Mir (roteiro), Caio Majado (arte) e Omar Viñole (cores) e 124     publicada em 2011 pela editora Marco Zero. Essa intertextualidade com gêneros de ficção não escolarizados caros aos aprendizes pode ser explorada pelos mediadores, funcionando, por exemplo, como motivadora para o despertar do interesse inicial. 5.1.3 Kofi e o menino de fogo Figura 13 - Kofi e o menino de fogo (Nei Lopes; Hélène Moreau). Com a reincidência de manifestações preconceituosas, sentimos a necessidade de adiantar a leitura da obra Kofi e o menino de fogo (LOPES, MOREAU, 2008), que fora programada como a 5ª a ser abordada, dentro de uma lógica de alternância do gênero do protagonista. Assim, devido à emergência de refletirmos sobre a diversidade humana e sobre como as relações étnico-raciais se construíram historicamente, decidimos que daríamos continuidade ao trabalho com essa obra, uma vez que ela oferece subsídios para a discussão aberta acerca do preconceito racial. Novamente, estamos diante de um conto histórico. Kofi e o menino de fogo é inspirado num episódio vivido pelo sábio malinês Amadou Hampâte. Mas, ao contrário do conto anterior, que fora inserido num tempo mítico e num espaço indefinido, nesse caso, o autor optou por identificar precisamente o local e o ano de ambientação da 125     narrativa: Gana, 1950, na época em que o país ainda era uma colônia britânica e era conhecido como Costa do Ouro. Assim como o conto anterior, ele focaliza uma curta sequência narrativa, envolvendo o drama do primeiro encontro entre duas civilizações distintas, que está inserida em um contexto muito mais amplo, deixando entrever aspectos da vida naquele contexto, como a hierarquização racial historicamente construída desde os primeiros contatos e a vontade dos africanos de se libertarem. O conto faz várias referências a esse contexto, desde fatos corriqueiros do cotidiano das pessoas a grandes períodos históricos, como o imperialismo britânico, passando por alusões a alguns aspectos da cultura local e ao futebol brasileiro e ganês. Nesse sentido, a obra assume contornos mais verossímeis, quando comparada à anterior. Contudo, há um diálogo com o fantástico, expresso no título e nas fantasias de Kofi sobre os brancos, antes do encontro, que as ilustrações amplificam. Kofi é um menino negro que vive em uma pequena aldeia africana, de onde nunca saiu. Por isso, nunca teve contato com pessoas de pele branca, apesar de já ter ouvido falar sobre sua existência e alimentar fantasias absurdas baseadas nas histórias distorcidas que lhe contavam sobre essas pessoas. Até que um dia, num imenso barco, chegam estranhos visitantes, como nunca antes vistos naquela região. O que acontecerá nesse tão dramático primeiro contato? Seja lá o que for, aquele momento mudaria a vida de Kofi para sempre. As ilustrações de Hélène Moreau representam um andaime fundamental para a recuperação dos sentidos implicados na narrativa por parte de leitores pouco experientes como os da turma investigada. Essa importância é acentuada pelo fato de o texto ser relativamente mais longo do que os anteriores e estar escrito em letras menores, o que dificulta a leitura de leitores em alfabetização. As ilustrações funcionam então como uma moldura geral que ajuda a entender o que se está narrando, mas vão além disso, enriquecendo em detalhes as cenas. De fato, os desenhos que representam as imagens mentais de Kofi sobre as pessoas brancas são tão eloquentes quanto o texto escrito. 126     Figura 14 -: Kofi e o menino de fogo (Hélène Moreau). Figura 15 -: Kofi e o menino de fogo (Hélène Moreau). Partimos do princípio de que a leitura desse texto permite ao leitor vivenciar o encontro de povos de etnias diversas segundo a ótica de um menino negro africano, sendo instigado a questionar seus próprios preconceitos e a reconhecer e valorizar as diferenças. 127     Nesse sentido, um dos objetivos de leitura era comparar os modos de pensar de Kofi, antes e depois do encontro com o menino branco, possibilitando aos estudantes perceberem que o preconceito não provém das diferenças em si, mas pode vir do desconhecimento do outro, associado ao contato com representações distorcidas desse outro. As duas sessões de leitura desse livro ambientaram-se na sala de vídeo, pois utilizamos novamente a projeção do livro digitalizado e editado com o programa flipalbum. Porém, também entregamos uma folha com o texto impresso em letras grandes, uma vez que o projetor da sala de vídeo fora instalado em uma posição mais longe do que o máximo possível para que se consiga focar perfeitamente a imagem e, como as fontes do livro já eram pequenas, a projeção do texto resultou praticamente ilegível, ao passo que a das ilustrações não foi tão prejudicada. A primeira sessão teve a presença de 15 alunos e a segunda de 13. Uma vez mais, recorremos à aula anterior à da primeira sessão para realizar a primeira parte da pré-leitura, que, também nessa ocasião, lançou mão da estratégia de pré- ensino de aspectos históricos e geográficos relacionados à obra. Com a diferença de que, nesse caso, o próprio texto literário já aborda dimensões da geografia e da história de Gana. Contamos com o auxílio da projeção de mapas com o programa Google Earth, que permite variar a aproximação do mapa com relação ao observador. O intuito foi localizar os cinco continentes e, em seguida, aproximar cada vez mais o foco, passando pela identificação da África e de suas regiões, até a localização de Gana e de seus vizinhos dentro do continente. O mesmo programa foi utilizado para explicar, em linhas gerais, como funcionava o colonialismo, apontando no mapa algumas das rotas dos navios que saíam da Europa para a África para carregarem-se de riquezas e de pessoas capturadas e, depois, rumarem para a América para vendê-las. Ao final, foi enfatizada a luta contra os invasores, que conduziram esses países à independência. Na primeira sessão, após algumas dificuldades iniciais para organizar a roda de leitura e conseguir silêncio, a professora retomou, um a um, os combinados disciplinares. Mesmo assim, ela precisou, por diversas vezes, chamar a atenção aos que se posicionavam mal ou que se levantavam, ou que não respeitavam os turnos de fala. De modo que 8 minutos se passaram desde o início da sessão até que ela finalmente sentasse no chão e iniciasse a revisão dos conteúdos vistos na aula anterior, dos quais a maioria se lembrava bem. Durante a etapa de previsões, Arusha perguntou se a história seria sobre escravos, confirmando o interesse que aquela história lhe despertara, mas, ao mesmo 128     tempo, atestando a necessidade de avançarmos, abordando outros aspectos da história dos negros, para evitar a relação direta e unívoca entre os negros e a escravidão. A professora redirecionou a pergunta de Arusha para toda a turma e eles, na maioria, discordaram, expressando previsões distintas, que refletiram o clima de tensão presente na ilustração da capa. Leléu assinalou as expressões de olhos arregalados e as previsões giraram em torno do motivo do espanto dos personagens. Durante o pré-ensino do vocabulário, os alunos demonstram novamente muito interesse em participar, inclusive Jéremie. Já nessa etapa, alguns alunos associaram, em um curto espaço de tempo e em poucas falas, os vocábulos preto, sujo e pobre. Deixaremos a análise dessas falas para o próximo capítulo. É exigido silêncio total para que se inicie a leitura oral, o que ocorre aos 25 minutos da sessão. A professora mediadora lê em voz alta o livro que tem em mãos, enquanto os alunos acompanham, alguns olhando para a folha, outros para a projeção, e outros que não olham para nenhum dos dois. Já ao final da leitura das primeiras duas páginas, Jéremie levanta-se, dizendo “Eu vou lá fora pegar visgo!”. A professora permite sua saída e tenta retomar, mas logo um outro aluno abre a porta e relata que Jéremie quer sair da escola. Ela lhe pede o favor de solicitar a intervenção da vice-diretora, e retoma novamente a leitura, sendo acompanhada com alguma dispersão e algumas falas paralelas. Na altura em que a história toca no tema da escravidão, Bodru atira ao chão a cópia que tinha em mãos, tendo, mais tarde, recolhido-a e pousado-a sobre a cadeira. Jéremie retorna e, em seguida, a leitura é interrompida propositalmente na página 25. Vários demonstram desprazer com a interrupção e, antes de serem solicitados, já traçam suas previsões. A maioria concorda com Arusha, que previu que Kofi e o menino de fogo tornar-se-iam amigos, exceto Lia, que acha que o menino branco vai virar negro. Alguns alunos insistem para que a professora vire a página do livro enquanto ela se senta no chão para realizar a pós-leitura. O recurso à interrupção, com a consequente retomada posterior é uma técnica de mediação de leitura conhecida como the story so far que, embora não explicitada na metodologia da andaimagem conforme modelada por Graves e Graves (1995), guarda com essa a afinidade de acompanhar passo a passo a previsão do leitor como forma de manter a curiosidade epistemológica no acercamento ao texto. Esse modelo de abordagem tem ancestral ilustre, Sherazade, que sobreviveu a seu destino de morte mantendo a curiosidade do seu algoz ao interromper em pontos cruciais as histórias que estão narradas em As mil e uma noites. Decidimos pela adoção dessa abordagem para viabilizar a leitura de textos mais longos com uma turma de leitores principiantes, que ainda se encontravam 129     em processo de aquisição de algumas habilidades cognitivas básicas, como a concentração, por exemplo. Durante a atividade de discussão da história, a professora se esforçou para garantir os turnos de fala de todos, principalmente dos que haviam participado pouco, o que demandou um tempo considerável de retomada dos aspectos disciplinares. Arusha revela ter sentido medo. Mais de três sujeitos recorrem às ilustrações que representam as pessoas brancas na imaginação de Kofi para expressarem os sentimentos provocados pela leitura. A professora percebe que os sentidos que os sujeitos, com a exceção de Arusha, atribuem às figuras não coincidem com aqueles presentes na história e, para aproximar esses sentidos, propõe-se a reler o trecho em que as palavras esclarecem sobre o que as imagens representam, reiterando a necessidade da atenção. A seguir, Leléu levanta-se e faz notar o efeito de complementariedade entre as ilustrações das páginas 24 e 25, em que a posição simétrica entre os braços de um personagem negro e um branco cria a ilusão de que se trata de um mesmo braço com duas cores, que surpreende a muitos que não haviam notado, incluso a professora. Figura 16 -: Kofi e o menino de fogo (Nei Lopes; Hélène Moreau). Os sujeitos que mais intervieram oralmente nessa sessão, assim como em outras, foram Leléu, Arusha, Mosi, Bodru e Lia. Os que nada disseram nessa e em outras sessões foram Doto, Mwambe, Bina e Kojo. Após o fim da sessão, Jéremie continua pedindo ao pesquisador que o acompanhe para procurarem visgo para pegar passarinho. O pesquisador, finalmente, cumpre sua vaga promessa e vai com ele até o bosque em frente à escola, que, por sorte, era de eucaliptos, que, deveras, liberam uma resina viscosa de 130     seus troncos que foi aceita por Jéremie como visgo. Essa interferência da história na realidade é comum na recepção leitora de qualquer tipo de leitor, mas é flagrante entre os menos experientes, que ainda não têm maturidade intelectual para lidar com a intrincada teia de relações entre ficção e realidade. É importante que os professores não reprimam esse tipo de interpretação, uma vez que o imaginar a realidade a partir de uma narrativa faz parte dos processos envolvidos na recepção de textos literários (AMARILHA, 2012). É através desses experimentos imaginários que os leitores em formação aprendem sobre a natureza da ficção e sobre suas relações com o real. A segunda sessão de leitura de Kofi e o menino de fogo se iniciou com a retomada dos principais acontecimentos da primeira parte da história, lida no dia anterior, com o auxílio das projeções das páginas do livro. Muitos alunos recordam-se de trechos da história e demonstram curiosidade em descobrir como será o seu fim, o que faz com que, em geral, envolvam-se mais com a atividade. Leléu repete seu comentário do dia anterior sobre a mudança de cor de um braço, afirmando que aquele personagem estaria doente e, uma vez mais, a professora explica que são braços de pessoas distintas, unidos por um efeito criado pela ilustradora. No momento em que a professora exige silêncio total, inclusive de Jéremie, ele começa a chorar, afirmando que quer ir para casa, mas ela argumenta e consegue convencê-lo a ficar. Finalmente, aos 9 minutos de sessão, a professora vira a página que eles tanto ansiavam ver, para retomar a leitura. Muitos demonstram animação com a vista do desenho dos meninos que se tocam. É feita a leitura somente das duas páginas que estavam projetadas e interrompe-se novamente, solicitando novas previsões. Alguns dizem que eles vão ficar amigos. Arusha acha que eles perceberiam as diferenças conhecendo-se. A professora segue, então, com a leitura até o fim, sendo interrompida por Jéremie, que pedia ao pesquisador para ir com ele pegar passarinhos e por Leléu, que se levantou para apontar algum detalhe da ilustração. No trecho final, que cita nomes de jogadores ganeses, Bodru lê em voz alta os nomes, afirmando que já os conhecia. Ao perceberem que era a última página, alguns alunos exprimem exclamações de lamento. Na fase de discussão, duas perguntas recorreram às cenas que representavam os pensamentos de Kofi a respeito dos brancos, antes e depois do encontro com o menino que, afinal, não era de fogo. Questionados sobre o que motivara a mudança, a maioria identificou a causa no fato de eles terem se tocado. Uma das perguntas enfocou a comparação das características dos dois meninos: “Em que Kofi e o menino, eram diferentes e em que eram iguais?” Foram listados como diferenças: a cor da pele, as 131     roupas e o cabelo; e, como semelhanças: as unhas, os fatos de ambos jogarem futebol, terem muitos amigos e serem meninos. A professora insistiu na pergunta até que, quase simultaneamente, Arusha disse que ambos eram pessoas e Leléu disse humanos, então, praticamente todos os alunos repetiram a palavra “humanos”. Eles concluíram então que, entre os meninos, havia mais semelhanças que diferenças. A pergunta seguinte solicitou- lhes também que elencassem diferenças e semelhanças, mas desta vez entre os integrantes da turma: “E nós, em que somos diferentes e em que somos iguais?” Como diferenças, foram citados o cabelo e a cor da pele, tendo eles identificado os mais parecidos entre si com respeito a esses dois traços. Como semelhanças foi apontado o fato de que todos eles queriam estudar. A professora então, retoma uma fala de Arusha no dia anterior, na qual ela mencionara que havia pessoas que tinham preconceitos, questionando-lhes se todos sabiam o que isso significava. Por fim, ela questiona como Kofi pôde livrar-se de seus preconceitos. As respostas a essas perguntas serão analisadas no item 5.2.1. Como atividade final, o pesquisador havia sugerido a reescrita do conto, que depois poderia ser mostrada aos pais, para que as crianças conversassem sobre a história com eles. Contudo, a professora argumentou que a maioria dos alunos precisaria de mais tempo do que aquele reservado para a pós-leitura para recontar a história por escrito. Com isso, chegamos a uma solução intermediária que foi o envio de uma solicitação aos responsáveis, que já haviam autorizado a participação dos alunos no projeto, para que conversassem com eles acerca do preconceito racial, baseados em três perguntas constantes do documento, que se encontra no Apêndice E: “O que é o preconceito racial? Existe preconceito racial no Brasil? O que nós podemos fazer para ajudar a acabar com o preconceito racial?” Faremos a análise dessa atividade também na seção 5.2.2.1. Um dos aspectos mais marcantes dessas duas sessões foi a conveniência para o nosso contexto do procedimento the story so far. A curiosidade decorrente dessa estratégia promoveu melhora na atenção da turma da primeira para a segunda sessão. Essa melhora pode ser identificada como um dos motivos que levaram à maior convergência, na segunda sessão, entre os significados construídos pelos aprendizes e aqueles possíveis expressos na obra. Destacamos também as repetidas recorrências dos sujeitos às ilustrações para dialogar com a obra e com os pares. De fato, há sujeitos como Arusha, que recorrem muito mais à linguagem verbal, e outros como Leléu, que, mesmo sendo um dos sujeitos com mais habilidades leitoras, demonstra preocupação constante com as imagens. Tais 132     observações trazem mais uma evidência que aponta para a multimodalidade na recepção dos livros de literatura infantil (AMARILHA, 2011), conforme já mencionado. Por fim, destacamos o grande cuidado demonstrado pela professora com a prosódia. Ao contrário das outras vezes, ela mudou ligeiramente a voz nas falas dos diferentes personagens. Além disso, adotou um ritmo e um tom de voz dramáticos para realçar certos trechos. Conforme já dissemos, esse tipo de mediação leitora oferece um andaime muito superior ao da leitura monótona, uma vez que as qualidades da voz, como tom, altura e ritmo, também são significativas. 5.1.4 Bruna e a Galinha d'Angola Figura 17 - Bruna e a galinha d’Angola (Gercilga de Almeida; Valéria Saraiva). A esta altura da pesquisa, tínhamos interesse em trabalhar com um livro cujo protagonista fosse um personagem do gênero feminino, visando propiciar o contato dos sujeitos com focos de identificação de ambos os gêneros. Esta escolha, também se relaciona a estudos que revelam a predominância de personagens masculinos na literatura infantil, em geral, e também na literatura infantil negra especificamente (OLIVEIRA, 2010; KAECHER, 2006 apud OLIVEIRA, 2010, p. 124-125). De fato, observou-se uma 133     nova tendência editorial, após a promulgação da Lei 10.639/2003, de publicações de obras que trazem meninas negras como protagonistas, dentre obras primas e algumas de qualidade duvidosa. Acabamos optando por uma obra lançada pela primeira vez em 2000, num período em que as disputas pelos filões editoriais não envolviam esse tipo de obra. Trata-se do conhecido livro Bruna e a Galinha d'Angola (ALMEIDA, SARAIVA, 2011), que consideramos como o mais adequado por vários motivos. Primeiro, pelas suas qualidades literárias, como a conotação, a plurissignificação e a relevância do plano da expressão. Segundo porque, apesar de o narrador não precisar o tempo e o espaço onde a história se passa, ele os liga diretamente à África, deixando evidente que se trata de um dos países de destino da diáspora africana que poderíamos imaginar perfeitamente como sendo o Brasil, como sugere a dedicatória: “Este livro é uma homenagem às raízes negras do Brasil.” (ALMEIDA, SARAIVA, 2011, p.5). De fato, desde o início do planejamento, preocupamo-nos em alternar histórias ambientadas na África com outras cujo cenário fosse o Brasil, ou, como no caso da história de Bruna, algum lugar identificável como tal. Destacamos ainda o fato de o livro referir-se aos orixás – que, a esta altura, já faziam parte do repertório de conhecimentos prévios dos sujeitos – e trazer uma outra lenda africana sobre a criação do mundo, além da que eles já haviam conhecido em O Presente de Ossanha (SANTOS, VENEZA, 2006). Tal referência amplia a relação dos aprendizes com a cosmogonia africana, oferecendo-lhes uma ideia de seu pluralismo. As ilustrações de Valéria Saraiva são o resultado da conjugação de técnicas gráficas variadas e, por isso, ricas em texturas. Elas representam como personagens somente meninas negras, além de alguns animais. O diálogo entre texto e imagem enriquece a obra, pois o texto em si é imagético, descrevendo desde imagens de sonhos a tecidos pintados, segundo a estética africana, que ganham vida nas ilustrações. No princípio, Bruna, assim como Oxum, era uma menina que se sentia só, mas que tinha prazer em ouvir as histórias que sua avó Nanã contava sobre sua terra natal. A avó, que nascera em uma aldeia africana, representa a ancestralidade de Bruna. Por meio desse contato, surgem outros, do mundo real ou do mundo imaginário, onde as histórias ganham vida. Assim como ganhou vida a galinha d'Angola igualzinha à da história de Oxum. A galinha d'Angola, curiosa, de tanto procurar, encontra um segredo enterrado pelo tempo, pois, se ela ajudou na criação do mundo espalhando a terra, ela sabe como descobrir histórias que a terra esconde. Iniciada nos segredos da avó, a menina vivencia um processo de autovalorização, que faz com que ela se transforme na protagonista de seu 134     próprio destino, construindo relações de amizade e coletividade com as meninas de sua aldeia. Essas relações são como o ovo chocado com cuidado, de onde nascerá a novidade: o empoderamento da comunidade, representado pelo embelezamento da aldeia, pelo sucesso de suas pinturas, mas, sobretudo pela vivificação de sua identidade negra. Destaca-se, na narrativa, a predominância de personagens femininos, e não só. A obra constrói um universo feminino, de transmissão da cultura e do axé, a força vital, em linha matriarcal, começando de Oxum, uma das mais femininas dentre os orixás. A avó Nanã encarna a liderança negra feminina, que teve e tem um papel fundamental na (re)construção de uma identidade negra brasileira. No candomblé, por exemplo, as mães- de-santo são atrizes fundamentais na preservação e transmissão dos saberes negros. Suas lideranças extrapolam o escopo religioso, influenciando toda a vida cultural e social da comunidade (JOAQUIM, 2001). Já Bruna representa a menina negra em situação de marginalização, que conta somente consigo própria e com sua comunidade para sobreviver. Trata-se do entrecruzamento dos três segmentos populacionais com menos acesso à cidadania no Brasil: mulher, negra e criança. Contudo, é aquela que sabe aprender e compartilhar, tornando-se uma referência entre seu povo. O encontro entre a avó e a neta é a metáfora do encontro do passado com o futuro. Sem esse encontro, ambas pereceriam. Visávamos com essa leitura que a identificação dos aprendizes com Bruna pudesse contribuir para que também eles refletissem sobre si próprios e seu contato com sua ancestralidade e sobre a importância do conhecimento de suas raízes histórico-culturais. Em última análise, conforme discutimos no capítulo teórico, consideramos que esse processo de identificação possa contribuir para a construção afirmativa das identidades negras. Além disso, o livro oferece uma ótima oportunidade para o ensino transdisciplinar sobre Angola, sua história, geografia, cultura, crenças e tradições, além de suas relações com o Brasil. Esta foi a única obra com três sessões, sendo a primeira realizada na sala de vídeo e as outras na biblioteca, tendo a projeção como suporte material. A primeira sessão contou com a presença de 14 alunos e teve somente atividades de pré-leitura. Iniciou-se novamente com o pré-ensino de conceitos, com o uso da projeção de mapas, desta vez sobre aspectos geográficos e históricos de Angola. Em primeiro lugar, a professora mencionou o título do livro que seria estudado no dia seguinte e revelou que esta história teria personagens que teriam nascido em um país chamado Angola, que é também de onde vem a galinha. Então, propôs-se procurar o caminho no mapa, por meio do aplicativo 135     Google Earth, de Natal-RN à África e, dentro da África, procurou-se Angola. Lola associou prontamente o nome do país à galinha d'Angola. A professora aproveitou para questionar sobre a localização de países africanos abordados anteriormente, comparando suas dimensões, e fez-lhes notar características da vegetação pelas cores das fotos de satélite. Em seguida, a professora solicitou que encontrassem Portugal e relembrassem as rotas das caravelas da metrópole às colônias – conceitos que alguns confundiram. Assim, introduziram-se aspectos da história de Angola, relacionando-os com a história do Brasil. Após essa etapa, foram distribuídos papéis com palavras do português brasileiro originárias do idioma quimbundo, uma das línguas nacionais de Angola, solicitando-os que as lessem. Causou-lhes surpresa o fato de vários vocábulos conhecidos por eles serem de origem angolana. Após o pré-ensino, foi retomada a última atividade da sessão anterior, que fora a discussão acerca do preconceito racial com os pais ou responsáveis, que será abordada mais adiante. Para encerrar a sessão, foi exibido um videoclipe com a canção da galinha d'Angola, composta por Vinícius de Moraes e cantada por Ivete Sangalo e pelo grupo angolano Buraka Som Sistema (VEVO, 2014). O vídeo é composto por desenhos animados representando a galinha e também por letras animadas, em fontes grandes, com as palavras da canção. Os alunos foram convidados a porem-se de pé e dançarem ao som da música, a exemplo do que fez a professora. No entanto, somente Bibiana levantou-se, tendo os outros dançado sentados, um tanto tímidos. Tratou-se de uma atividade de cunho lúdico e motivacional, que se relaciona à preocupação de introduzir nas sessões de leitura práticas envolvendo o corpo e o movimento. Essa orientação está contida nas DCN-ER, que, atentando para a estreita relação entre conhecimento, corpo, movimento e ritmo nas culturas africanas, recomenda esse tipo de prática pedagógica no trabalho escolar com essas culturas, incentivando a “valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo, como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura” (BRASIL, 2004, p. 20). A segunda sessão contou com a presença de 15 sujeitos e foi realizada na biblioteca, devido à maior adequação daquele espaço, por proporcionar maior conforto aos aprendizes durante a leitura. Recorreu-se novamente ao programa flipalbum para a produção do livro digital. Os sujeitos sentaram-se em círculo sobre o tatame, junto com a professora, com exceção de Jéremie, que se sentou na cadeira, ao lado do pesquisador. Iniciou-se com a revisão dos conteúdos vistos na sessão anterior e, em seguida, deu-se uma etapa de motivação e contextualização, lançando perguntas a respeito dos ancestrais 136     das crianças, procurando recolher relatos acerca das histórias contadas por seus avós e bisavós. A própria professora deu seu depoimento acerca de sua avó, que era descendente de alemães e lhe contava muitas histórias oralmente, sem a ajuda de livros. Os alunos demonstraram muito interesse em falar sobre seus avós, tendo sido a primeira vez em que Mwambe interveio oralmente sem ser diretamente interpelado. Isso demandou o esforço da professora para garantir o respeito aos turnos de fala. Dois alunos relataram um contato próximo com avós de cujas mortes eles se recordavam. A professora reforçou o vocabulário já estudado, esclarecendo que esses eram seus ancestrais e que eles eram descendentes de seus avós. O livro é introduzido, dizendo-se que, naquela história, Bruna tinha uma avó que lhe contava muitas histórias da terra de onde viera. Assumimos como fato que Bruna era uma menina brasileira e que sua avó viera de Angola. Na discussão acerca do vocabulário, a professora esclarece que há a palavra Oxum, que se relaciona a outra, já vista anteriormente: orixás. Ao serem questionados sobre o seu significado, Bodru responde prontamente: “Macumba!” Contudo, após os questionamentos da professora e das falas dos seus pares, é ele próprio quem exprime a resposta mais correta: “São deuses!” A análise desse tipo de episódio será feita na seção 5.2.2.2. Para a realização da leitura, os sujeitos foram orientados a posicionarem-se como preferissem, da maneira que se sentissem mais confortáveis. A maioria deitou-se sobre os colchonetes e almofadas, virados para a projeção na parede e a professora retomou cautelosamente os combinados, afirmando que, caso não os seguissem, deveriam sentar-se novamente em roda. Para este livro, optamos pela leitura ininterrupta, ficando o pesquisador responsável pela mudança das páginas projetadas. As posições acabaram sendo mantidas até o fim da leitura, mesmo com algumas pequenas interrupções. Destacamos a leitura do único trecho em versos do livro, que, segundo a história, seria a letra de uma canção cantada por Bruna. Conforme programado, a professora cantou a estrofe três vezes seguidas, como um refrão, com uma melodia inventada por ela. Ao fim da leitura, a professora elogia o comportamento deles, e permite que continuem nas suas posições para a etapa de discussão da história. Durante a discussão deste dia, as perguntas visaram estritamente a recolha de suas impressões e sentimentos advindos da leitura. Todos os que intervieram afirmaram terem gostado da história. Lola afirmou que se sentira muito feliz com a cena final, enquanto Bina e Zalira referiram-se à ilustração da capa para designar a cena que as fez mais felizes. Verificamos que somente meninas intervieram por iniciativa própria, tendo a 137     professora solicitado a intervenção de alguns meninos e conseguido que Doto interviesse pela primeira vez. À terceira sessão, compareceram 11 sujeitos, que, desde o início, posicionaram-se comodamente, a exemplo da sessão anterior, à qual todos os presentes haviam comparecido. A primeira atividade do dia foi a releitura ininterrupta do livro. Na fase de discussão, as perguntas enfocaram o estado emocional de Bruna na situação inicial e final do conto e, ainda, quais fatos ocorridos no desenvolvimento da sequência narrativa poderiam justificar a mudança no comportamento da menina. Todos concordaram que Bruna estava triste no início e identificaram a solidão como causa. Lia queixou-se, pela segunda vez durante as sessões, de sua solidão em casa, tendo reafirmado preferir brincar sozinha que com amigos. Essa confissão oferece uma amostra da diversidade de sentimentos que os leitores vivenciam durante a leitura de histórias e que podem vir à tona com a atividade de discussão, que encoraja os sujeitos a falarem acerca de seus sentimentos e de suas memórias pessoais. Portanto, a ação argumentativa da professora durante a atividade de discussão de histórias pode ser uma alternativa para se implementar na escola práticas pedagógicas que visem à educação da sensibilidade (AMARILHA, 2012). Quanto à situação final, a turma foi unânime a respeito da felicidade de Bruna, tendo a maioria dos que intervieram identificado a galinha como causa da sua felicidade. A professora interveio, solicitando respostas mais refletidas e foi Zalira, que demonstrou muito interesse em intervir nesta sessão, quem conseguiu desenvolver melhor esse argumento, identificando a felicidade de Bruna não só com a galinha, mas com o fato de Bruna ter conseguido fazer amigas com a ajuda dela. Essa resposta foi sublinhada e reforçada pela professora. Após isso, a professora procurou retomar a questão da ancestralidade, focalizando a relação de Bruna com sua avó Nanã e perguntou se eles achavam importante ouvir os mais velhos, solicitando-os que justificassem suas respostas. Kojo contou que seu avô fazia brinquedos de lata quando criança e Mosi recontou em mais detalhes o evento da morte do avô. A última pergunta evidenciou a história da criação do mundo contada pela avó de Bruna, questionando-os se acreditavam na sua veracidade. Bodru afirmou prontamente que não e Kojo disse que o mundo havia sido criado por Deus. A professora perguntou então se alguém conhecia alguma outra história sobre a criação do mundo, tendo Bodru afirmado: “Mas só Deus sabe quem criou ele.” Lola e Suhuba contaram versões da história de Adão e Eva e a professora expôs a narrativa científica do Big Bang, a qual eles 138     desconheciam e argumentou que, visto a multiplicidade de versões, o mais importante seria respeitar aquilo em que cada um acredita. Ela interpelou, então, diretamente Bodru, perguntando-o se concordava com o que dissera. Ele afirmou que não devia acreditar nas versões dos outros e que devia respeitá-las “às vezes.” O pesquisador interferiu na discussão, narrando uma história indígena sobre a criação do mundo e enfatizando que cada povo tem deuses próprios que teriam criado o mundo e que não havia meios de comprovar qual história seria a que mais se aproximaria da verdade. A professora terminou sublinhando a necessidade de respeito às diversas crenças que existem. A última atividade do dia foi a pintura de tecidos, inspirada nas ilustrações do livro e em tecidos com estampas africanas levados pelo pesquisador. Após secarem, os tecidos ficaram expostos da sala da turma, tendo inserido um pouco da estética africana no espaço onde conviviam diariamente. Sobre as argumentações dos aprendizes durante as três sessões com base no livro Bruna e a galinha d'Angola, importa ressaltar, em primeiro lugar, que eles vêm, gradativamente, observando mais a necessidade de respeitarem os turnos de fala. Essa sistematização é benéfica, pois, além de possibilitar que a mediadora gerencie a divisão justa dos turnos de fala, ela os encoraja a fazerem intervenções mais refletidas. Observou- se também que, na discussão final, a professora precisou oferecer mais andaimes para a argumentação, na forma de falas que buscavam dar corpo à discussão. Talvez a ausência de sujeitos com habilidades argumentativas mais desenvolvidas, como Arusha e Leléu tenha trazido mais dificuldades à turma para a construção da argumentação oral. Isso sugere que essa construção é um processo coletivo, no qual os pares mais experientes também oferecem andaimes aos demais, ajudando-os a refinar seus pontos de vista. Corroboramos assim posições teóricas que enxergam a mediação de leitura literária por andaimes como uma atividade inclusiva (SOUZA, 2009; FREITAS, 2010). A expressão dos relatos sobre os avós foi um dos momentos mais comoventes das sessões. Mesmo os relatos sobre o contato com avós já falecidos expressavam alegremente as memórias desse contato. Levando-se em consideração o caráter autobiográfico da atividade de leitura literária (AMARILHA, 2012), pode-se argumentar que o envolvimento emocional nesses relatos pode ter contribuído para uma relação mais profunda com a obra. Identificamos um erro no planejamento de leitura dessa obra, uma vez que não deveríamos, antes da leitura, ter fechado a questão a respeito dos países onde nasceram Bruna e sua avó Nanã. Fazendo isso, acabamos limitando as possibilidades interpretativas 139     do texto literário, que é plurissignificativo e aberto à participação do leitor (ISER, 1996). Deveríamos ter respeitado a opção literária da autora de não fazer nenhuma correspondência entre o espaço ficcional onde se passa a história e os espaços reais, com seus diversos nomes de países. Fazendo isso, teríamos a possibilidade de, ao final, questioná-los a esse respeito, recolhendo observações acerca de suas soluções para esse problema e permitindo o seu protagonismo como coautores da obra. 5.1.5 As panquecas de Mama Panya Figura 18 - As panquecas de Mama Panya (Mary e Rich Chamberlin; Julia Cairns). Continuamos seguindo a lógica de alternância de livros ambientados na África e no Brasil. A esta altura do trabalho, o relativo avanço dos conhecimentos prévios dos aprendizes sobre a África e os africanos permitia-nos trabalhar com representações mais complexas, deslocando o foco para a África contemporânea. Desde o início, sentíamos a necessidade de trabalhar com uma história que retratasse povos africanos cujo modo de vida dialogasse mais com aqueles dos aprendizes, com pessoas como eles, que vivessem em uma família ao invés de em uma tribo, que não fossem escravizados nem colonizados, mas que tivessem necessidades similares às das pessoas da nossa sociedade. 140     Optamos pelo livro As Panquecas de Mama Panya (CHAMBERLIN, CAIRNS, 2005), que, conforme já mencionado, fora encontrado na biblioteca da escola pela professora colaboradora. O livro trazia na capa o selo que indica que havia sido comprado com recursos do Programa Nacional do Livro Didático - PNLD, o que significa que passara por uma análise de especialistas. Seus personagens e o ambiente em que viviam não eram urbanos como os dos sujeitos, mas guardavam uma série de semelhanças, representando um menino em uma cena corriqueira nas vidas de muitos deles: ir ao mercado (ou à feira) com a mãe para comprar os ingredientes para cozinhar o jantar. Além desse, o livro trazia outros elementos constantes dos conhecimentos prévios dos alunos. Um deles é que a história passa-se no Quênia, país vizinho à Tanzânia, onde o kisswahili também é um dos idiomas nacionais. Além disso, julgávamos que panquecas também fariam parte dos conhecimentos prévios, o que revelou-se uma suposição parcialmente verdadeira, pois, apesar de conhecerem a palavra nenhum deles havia experimentado panquecas. Mas, um dos fatos mais relevantes para a adoção do livro, é que a história traz uma representação positiva de personagens pobres, mostrando que a pobreza não tira a sua humanidade e não os impede de viverem bem. Acreditávamos que tal representação poderia ajudar na problematização de falas anteriores que apresentavam a África sob o estigma da miséria. De fato, na entrevista inicial, a pobreza foi a última fronteira a que os aprendizes recorreram para diferenciar os africanos de si próprios, já que, afinal, existiam e não eram selvagens. Portanto, enxergamos esse estigma como mais uma barreira a ser rompida para promover a identificação dos aprendizes com personagens africanos. A obra faz parte da coleção Cantos do Mundo, da SM editora, assim como Um Safári na Tanzânia (KREBS, CAIRNS, 2007), tendo ambas a mesma ilustradora: Julia Cairns. Juntamente com Kofi e o menino de fogo (LOPES, MOREAU, 2008), trata-se de uma das mais verossímeis obras trabalhadas, mas, ao contrário daquela, que apela à imaginação fantástica, nessa, tudo é realista, caracterizando uma representação bem próxima à vida cotidiana no Quênia contemporâneo, com sua culinária, hábitos e valores. Como característica editorial da coleção, o livro traz, após o fim do texto literário, uma grande quantidade de informações extras, que, nesse caso, mostram dados relevantes sobre o Quênia, seus habitantes, fauna e flora. Considerando as habilidades leitoras da turma, esse foi o livro com o equilíbrio mais adequado entre texto e imagem. Deveras, há um cuidado detalhado com a diagramação dos elementos que compõem as páginas, de modo que os blocos de texto são harmonizados com as ilustrações, com o uso de fontes 141     grandes em molduras bem localizadas, que os incorporam à página. Além disso, a linguagem é dialogal e o roteiro baseado em uma cena que se repete, variando-se os atores coadjuvantes e o cenário, o que confere à narrativa uma dinâmica dramática que a torna adequada para nosso público. Mama Panya queria fazer uma surpresa para seu filho Adika, mas, o menino é tão esperto, que é sempre ele a surpreendê-la. Tendo deduzido que a mãe faria panquecas para o jantar e que o levaria ao mercado para comprar os ingredientes, ele assume o controle da jornada, convidando vários amigos que encontra pelo caminho para virem jantar com eles. Mas, e se o dinheiro não der? É a partir dessa tensão que a narrativa se desenvolve. Trata-se de um conto de estrutura simples, mas que encanta pelo seu tom otimista, encorajando o leitor a refletir sobre a solidariedade como estratégia eficaz na superação das dificuldades impostas pela pobreza. De fato, lendo as informações ao final do livro, descobrimos que o lema nacional do Quênia é Harambee, que significa "ação conjunta". Esse lema dialoga com uma filosofia da África do Sul, conhecida como Ubuntu e com outros modos de pensar africanos, onde o elemento que mais se sobressai é a coletividade da existência humana. Portanto, os autores conseguem traduzir essa profunda sabedoria africana em uma narrativa simples, capaz de ser entendida e apreciada por pessoas de faixas etárias diversas. Em última análise, achamos que o livro pode ser um foco de identificação eficaz, pois a ênfase nos valores éticos de solidariedade e coletividade é um meio de inspirar a admiração do leitor pelos personagens da obra, uma vez que esses são valores universalizantes que compõem a base da ação humana. As ilustrações de Julia Cairns, cujo estilo os sujeitos já conheciam, adquirem nesse livro coloridos ainda mais vibrantes e vão muito além do texto. A riqueza de detalhes representados, como tipos físicos, vestimentas, paisagens, fauna e flora, libera o texto da obrigação de descrever, permitindo ao escritor centrar a narrativa nas ações, enquanto as ilustrações dão conta de todo o cenário e das características dos personagens. Na verdade, as ilustrações excedem a narrativa textual, contando uma história paralela, do cachorro que segue a família até o mercado, interagindo com vários animais no caminho. As duas sessões com base nesse livro realizaram-se na biblioteca, tendo cada sujeito um exemplar do livro em mãos. Compareceram à primeira sessão 13 alunos e à segunda, 12. Dentre os presentes em ambas, estava Watende, que voltou a frequentar as sessões após ausentar-se desde a segunda sessão de O Presente de Ossanha. Em linhas gerais, seguimos a mesma estrutura dos planos de leitura descritos para as sessões anteriores, com algumas modificações. A primeira foi que, desta vez, o pré- 142     ensino foi feito com o próprio livro que os alunos tinham em mãos. Iniciamos pela última página, explorando o mapa do Quênia, pedindo-os que tentassem deduzir o tipo de vegetação a partir das cores. Ressaltamos o fato de o povo Massai, visto no primeiro livro, viver também no Quênia. Esclarecemos que os personagens daquele livro viviam nas zonas rurais do interior do país, mas que no Quênia também havia cidades muito maiores que Natal-RN, por exemplo, como a capital Nairobi. Em seguida, foi feita a leitura dos trechos mais relevantes das duas páginas subsequentes ao fim da história, com o título O dia a dia em uma aldeia no Quênia, como o fato de que as crianças quenianas também vão à escola, ajudam suas mães e brincam com os amigos, por exemplo, de jogar futebol. A professora informou-os que uma das línguas nacionais é o kiswahili e perguntou que outro país visto anteriormente também falava essa língua, tendo sido Bodru o único a responder corretamente. A professora convidou Watende a ajudar na leitura da página “falando kiswahili”. Enquanto ele lia as expressões nessa língua, a turma tentava repetir. A experiência de contato com outra língua já foi objeto de reflexão em pesquisa anterior realizada pelo grupo “Ensino e Linguagem”, em que, a partir da leitura do livro bilíngue “Quando chove a cântaros”/“Cuando llueve a cántaros” (2005) de Gloria Kirinus se concluiu: A propósito, podemos afirmar que a presença em sala de aula de outras línguas, de outras sonoridades, quando introduzidas de maneira pedagogicamente relevante, propicia a consciência sobre diferentes culturas e desenvolve no sujeito abertura para as possibilidades de aprendizados, o que julgamos pertinente considerando o contexto de diversidade cultural a que estamos expostos na sociedade. Há, portanto, um ponto axiológico, sobre o valor da língua em diferentes manifestações, que a leitura de literatura em outra língua propicia e que é potencial a ser explorado, pois sedimenta a percepção de que a sonoridade é determinante na compreensão poética e carrega indicadores de territorialidade. Ao ler um mesmo texto em diferentes línguas, o sujeito amplia sua visão de mundo e, seja por comparação, seja por espelhamento, conhece e constrói sua identidade linguística e cultural. Do ponto de vista da multimodalidade, a experiência permite evidenciar a importância das modalidades escrita e oral e suas realizações em cada língua. Esse aprendizado torna o sujeito-leitor participante de uma comunidade maior e colabora na formação e no desenvolvimento de sua identidade em face de outras culturas, de maneira valorativa e sensível. Assim, ao mesmo tempo em que fortalece raízes, abre-se para outras experiências, para o outro. (AMARILHA, FREITAS, 2016, prelo). Ao receber o livro em mãos, novamente os sujeitos foram deixados à vontade e assumiram posturas diversas, com a diferença de que, desta vez, compartilharam mais suas primeiras impressões entre si, sublinhando em seus comentários, principalmente, as ilustrações. Logo depois, eles tiveram aproximadamente 5 minutos para a leitura 143     silenciosa. Depois desse tempo, procedeu-se à leitura em voz alta ininterrupta da mediadora, relembrando-os sobre a importância de tentarem acompanhar a leitura na página certa. A professora interrompeu a leitura no momento em que apareceu a palavra mbira, que não fora definida no vocabulário inicial, informando que se tratava do nome do instrumento que estava nas mãos do pesquisador, que tocou para demonstrar um pouco da sonoridade desse instrumento. No momento em que a história referiu que o personagem Mzee Odolo cantou uma canção, com o intuito de sublinhar o aspecto teatral do livro, o pesquisador interveio, cantando o refrão de uma antiga canção em yorubá, presente na tradição oral brasileira, conhecida como Moro Omim Ma. Demos início, então, à fase de discussão simplificada, buscando recolher relatos sobre as impressões e sentimentos, e os elementos que mais lhes chamaram a atenção. Mosi foi o primeiro a falar, apontando para a ilustração das páginas 33 e 34, que representam o momento do banquete, para se referir à sua parte preferida da história e justificando pelo fato de a menina ter tocado a mbira. Watende afirmou ter preferido a parte em que Adika convidou seus amigos, enquanto Lia referiu-se ao canto do pesquisador para indicar a parte da história de que mais gostara. As outras falas repetem essas tendências, com a exceção de Leléu, que destaca a ilustração do pequeno lagarto colorido chamado agama. Ao final da discussão, sem ser diretamente interpelado, Ambaye afirmou que gostaria de estar ali com eles, para comer panquecas também, levando vários outros sujeitos a afirmarem que também gostariam. Ao final da sessão, o pesquisador e a professora ensaiaram mais algumas notas na mbira, passando-a depois para que os alunos, um a um, também pudessem tocar. Figura 19 - A mbira. 144     A 2ª sessão se iniciou com a distribuição dos livros. A professora ressaltou que, ao contrário de Mama Panya e Adika, muitos quenianos viviam em grandes centros urbanos, e mostrou uma foto impressa da paisagem urbana da cidade de Nairobi, causando reações de surpresa, tendo Bodru rapidamente encontrado sua localização no mapa ao final do livro. Iniciamos explorando as páginas 37 e 38, intituladas A caminho do mercado e que informam sobre os seres da flora e da fauna queniana que cruzam o caminho de Mama Panya e Adika, trazendo suas representações imagéticas e seus nomes em português e em kiswahili. A professora fez a leitura, solicitando-os que repetissem os nomes dos animais e plantas em kiswahili. As crianças riram bastante da inexatidão de suas próprias pronúncias e das várias anedotas que foram referidas, motivadas pela presença de uma cabra no livro, a respeito de episódios cômicos nos quais elas interagiram com as cabras criadas no quartel. A professora informou-lhes então que começaria a leitura e pediu que estivessem atentos às ilustrações, pois todos aqueles animais e plantas apareceriam representados na história. A leitura durou aproximadamente 10 minutos. Mais uma vez, o pesquisador deu voz ao canto de Mzee Odolo e, desta vez, as crianças aplaudiram. As perguntas novamente focalizaram algumas cenas, questionando sobre os motivos que levaram determinado personagem a agir daquela maneira. Primeiro eles foram questionados a respeito das razões de Adika para convidar todos os amigos que encontrou. Kojo disse que era porque ele queria dividir sua comida com seus amigos e Leléu acompanhou-o, dizendo que ele tinha muita comida. A professora chamou atenção para o fato de que, no início, eles não sabiam que haveria tanta comida no jantar, pois Mama Panya possuía apenas duas moedas. Bodru então responde: “Porque ele queria ter mais amigos, foi um gesto de amizade.” Ao serem questionados se Adika sabia de antemão que os amigos levariam mais comida, a turma mostra-se dividida, contudo, a segurança na intervenção de Bodru, afirmando que ele não sabia, acabou influenciando o consenso a esse respeito. Também houve uma divisão de opiniões sobre os motivos de os amigos terem levado comida, já que isso não fora exigido. Uns associaram isso ao fato de eles só terem duas moedas, alegando que os amigos sabiam desse pormenor, enquanto outros defenderam que foi um gesto de ajuda espontâneo. Bina sintetizou, argumentando que os amigos: “Queriam ajudar ela, mesmo sem saber se não tinha dinheiro.” Muitos sujeitos participaram ativamente da discussão, fazendo com que a professora recorresse ao livro, por duas vezes, pedindo-os que fizessem o mesmo, para mediar o confronto de argumentos. 145     Na pergunta seguinte, a professora sublinhou um fato da situação inicial (a escassez de dinheiro) e a cena final, solicitando encadeamentos dos fatos que permitissem compreender como foi possível chegar à situação final: Profª: Mesmo não tendo muito dinheiro, os personagens da história comeram um grande banquete e se divertiram muito. Como isso foi possível? Bodru: Porque dinheiro também não é vida. Profª: Será que ter muito dinheiro é a única forma de as pessoas serem ricas? ((Alguns sujeitos respondem que não)) Arusha: Dinheiro não tem vida. Prof.ª: Dinheiro não tem vida. A gente pode ser rico sem ter dinheiro? Bodru: Pode! Prof.ª: Como? Bodru: Com amizade, amor, paz... Prof.ª: Amizade, amor. Então riqueza não tá só ligada a dinheiro tá? Por exemplo, quem tem muita alegria, é rico em sentimentos. Quem tem muitos amigos? Será que um menino, por exemplo, uma criança que é cheia de dinheiro e tem um monte de brinquedo, mas não tem um amigo pra brincar e a outra que não tem tanto dinheiro assim, mas que ela tem um monte de amigos pra brincar de pegar, pra brincar de correr, pra brincar de ler. Pra ler com um colega. Quem será que é mais feliz? Lola: Eu!” (Transcrição do autor. 11ª sessão de leitura. Apêndice C) Observa-se nesse trecho, um exemplo do esquema de interações mais frequente entre os sujeitos da turma durante as discussões, no qual a mediação da professora normalmente privilegiava, no início, a semeadura dos vários argumentos, para, em seguida, recolhê-los e expandi-los, com suas próprias estratégias argumentativas. Essa atitude vai ao encontro do princípio defendido por Cazden (1991), segundo o qual, no uso do discurso oral em sala de aula, o professor deve valorizar a conversação entre os pares, cujas ações argumentativas influenciam-se mutuamente. Assim, ao distribuir os turnos de fala proporcionalmente entre os sujeitos, a mediadora permitiu que cada um exercesse sua função mais espontânea no interior do grupo, descentralizando a estrutura de participação da discussão, o que estimula uma exploração mais complexa e multifacetada das possibilidades abertas pela leitura do livro. Podemos refletir ainda, segundo essa mesma 146     lógica, sobre a resposta de Arusha, que é uma paráfrase da resposta de Bodru à pergunta anterior. Também em outras oportunidades, durante as sessões de leitura, os sujeitos adotaram essa estratégia para a construção de sua argumentação, evidenciando que os argumentos mais bem formulados serviam-lhes como modelo. A última pergunta solicitou-os que definissem, em poucas palavras, qual era o tema principal da história. Alguns alunos disseram amizade, Ambaye disse amor e outros disseram felicidade. A professora encerrou a etapa de discussão introduzindo o vocábulo solidariedade, utilizando os eventos da história para esclarecer seu significado. Enfim, também nós tivemos o nosso banquete, com as frutas que as crianças levaram e as panquecas que o pesquisador preparara a partir da receita que se encontra na penúltima página do livro. Durante o trabalho com essa obra, podemos notar uma mudança no processo de identificação dos aprendizes, com relação à negativa expressa na discussão da 1ª sessão de Um Safári na Tanzânia, quando foram questionados se gostariam de estar no universo criado pelo livro. Aqui, esse desejo foi expresso espontaneamente por Ambaye. Podemos relacionar essa mudança ao fato de essa ser a terceira sociedade africana abordada nas sessões, o que pode ter diminuído a influência das impressões prévias manifestadas no primeiro contato com a literatura infantil negra, se considerarmos a influência do conhecimento prévio como determinante na recepção (SMITH, 1991). Mas, é relevante também o fato de as características dessa sociedade serem mais próximas da realidade dos alunos, aproximando-os do foco de identificação por espelhamento (AMARILHA, 2013). Também o aluno Bodru relacionou-se de modo diverso com essa obra. Ele demonstrou significativa compreensão da história e, de acordo com suas intervenções, percebe-se que os valores expressos neste conto estavam em harmonia com os seus. Assim, ele não vivenciou o intenso conflito sociocognitivo com o texto (FREITAS, 2005) observado na leitura de outras obras. Além da mediação da leitura oral do texto, houve a mediação da leitura de imagens e a inserção da música, nos momentos em que a obra abria essa possibilidade. Essa atitude demonstra um cuidado com o aspecto não verbal da formação de leitores. De fato, visando à educação para a sensibilidade, precisamos potencializar nossa prática de ensino para uma abordagem semiótica do texto literário, sobretudo, em se tratando da literatura infantil, e assim abordar a multimodalidade de linguagens que estão no texto e no livro, de maneira a explorar todas as possibilidades de apelo aos sentidos dos leitores que se apresentam na obra. Com essa lógica, fizemos convergir o conceito de arte total em 147     que se fundamenta a tradição do griô, metáfora inicial deste estudo. Tanto as referências culturais apresentadas no texto (como a presença da mbira, que possibilitou a introdução da música na mediação da leitura) como o projeto editorial da obra participam do processo de recepção, como ficou evidenciado nesta pesquisa. 5.1.6 Anansi, o velho sábio Figura 20 - Anansi, o velho sábio (Kaleki; Jean-Claude Götting). Como último livro, tínhamos o interesse de, em primeiro lugar, trabalhar novamente com temas caros aos sujeitos, investindo bastante na ludicidade, procurando fazer com que o prazer na leitura do último livro reforçasse as lembranças positivas a respeito do projeto, consolidando a memória de experiências que ligassem leitura e diversão. Pelas suas respostas às obras anteriores, pudemos comprovar o fascínio que o fantástico e o suspense exerciam sobre eles. Por outro lado, a presença de animais também foi bem recebida em todos os casos. Foi a partir dessas necessidades que 148     escolhemos o livro Anansi, o velho sábio (KALEKI, GÖTTING, 2007) para encerrar os trabalhos. Sua posição como última obra a ser lida advém das dificuldades que o texto apresenta: para os aprendizes, pela extensão do conto e pelo estilo um pouco mais erudito da linguagem; para a professora, por demandar um trabalho cuidadoso com a prosódia - já que há longos trechos que correspondem ao discurso direto de uma multiplicidade de personagens - que funcione como andaime para que os sujeitos superem as possíveis dificuldades de compreensão. Desse modo, a leitura da obra viria a preencher três ausências que permaneciam até aquele momento no projeto: primeiro, a de uma obra escrita por um autor africano, segundo, a de um livro de caráter predominantemente fantástico e, terceiro, a simples menção aos griôs na introdução do trabalho feita na primeira sessão, sem que se tivesse abordado uma representação literária dessa figura. Anansi, o velho sábio (KALEKI, GÖTTING, 2007) respondeu perfeitamente a essas necessidades, pelos motivos que passamos a expor. Trata-se de um conto etiológico repleto de aventuras, que propõe-se a esclarecer o segredo contido no mote que abre o livro: “Como as histórias apareceram na terra...” (KALEKI, GÖTTING, 2007, p. 4). A resposta: “Foi há muito tempo, na África, meu filho, no tempo da primeira aranha, Kwaku Anansi” (KALEKI, GÖTTING, 2007, p. 4), ancora somente o ambiente da narrativa no mundo real, mas faz emergir um tempo de faz de conta. Nessa lógica, um homem pode perfeitamente ser também uma aranha e conversar livremente com deuses, animais e fadas. Assim, podemos entrever o potencial da obra em dialogar com o conhecimento prévio dos aprendizes, através de personagens folclóricos, como animais meio reais, meio míticos, e, sobretudo, por ser um conto de aventura, um gênero com o qual os sujeitos demonstraram ter contato frequente, principalmente por meio da ficção não escolarizada, como filmes, séries e desenhos animados. Por outro lado, a obra apresenta essas estruturas familiares segundo um prisma completamente novo, que é o do conto tradicional africano de transmissão oral. Apesar disso, devemos lembrar que estamos trabalhando com a fixação desta narrativa em texto escrito e ilustrações, o que implica em muitas diferenças. Na verdade, estamos diante de um reconto escrito para a infância baseado em um conto etiológico (direcionado não só à infância) do povo Axanti, que formou um poderoso reino durante os séculos XVII e XVIII e vive, hoje, na região Axanti, em Gana. A origem do personagem da região do Oeste Africano chamado Anansi é milenar, e suas aventuras, assim como muitas outras narrativas africanas de transmissão oral, espalharam-se, após a diáspora, por inúmeros territórios americanos, ainda que recontadas 149     segundo os contextos culturais locais (SOUZA, 2011, p. 36). Esse fato demonstra a forte presença do personagem na mitologia desses povos, presença que precisou ser reafirmada muitas vezes, por muitas vozes, para que perdurasse. Dentre essas, destacamos a voz do griô, que, de acordo com as informações extras do próprio livro Anansi, o velho sábio, “é um personagem central da sociedade africana. Ele ensina a história de seu povo. Diverte e instrui ao mesmo tempo. [...] É o guardião da memória e conhece todos os cantos sacros.” (KALEKI, GÖTTING, 2007, p. 29) Assim, há contos populares que evoluíram a partir das histórias de Anansi até hoje no Brasil, em Cuba, nos Estados Unidos e em outros países da América (SOUZA, 2011, p. 44). Coincidentemente, um dos episódios relatados neste conto traz o motivo do fetiche coberto de resina pegajosa, com algum alimento ao seu lado, usado com o intuito de prender aquele que o tenta agredir, que também é encontrado em histórias da literatura oral brasileira, como no conto O macaco e a velha (CASCUDO, 2012). No texto do livro, o narrador teatraliza sua narrativa, evocando o leitor, chamando- o de “meu filho” e alternando falas de diversos personagens, em um roteiro análogo ao do texto anterior, com um esquema de cena que se repete. Isso simula a presença do contador de histórias, que evoca o cenário e põe em ação nele os personagens saídos de sua voz, e representa uma chave para o trabalho do mediador, que pode tentar assumir esse papel, teatralizando sua leitura, através de um trabalho adequado com a oralidade. Não se trata de postular que o professor deva ter as mesmas habilidades performáticas que um contador de histórias. Uma simples mudança de tonalidade entre a voz do narrador e a dos personagens já pode servir de andaime para que os aprendizes acompanhem a dinâmica dos diálogos do texto, potencializando o interesse e, em cadeia, a concentração e a aprendizagem (VYGOTSKY, 1999). No tempo de Anansi, não havia histórias na terra. Nyame, o deus do céu, guardava todas em seu baú e exigia em troca dele um preço tão alto que nem os mais fortes seres terrenos foram capazes de pagá-lo: "quatro criaturas assustadoras e intangíveis" (KALEKI, GÖTTING, 2007, p. 7). E eis que chega a vez de uma frágil aranha, que mais parecia um velho sábio, fazer sua tentativa. Será possível que Anansi tinha mesmo alguma chance de conseguir? É a pergunta que se mantém fixa na mente do leitor do início ao fim. Quem sabe, a sabedoria dos conselhos de sua mulher, Aso, possa ajudá-lo? Só há uma arma que pode ser mais eficaz que a força: a astúcia. A aventura promete fortes emoções, e Anansi precisará de muita coragem e sorte se quiser mesmo apoderar-se das histórias. Assim, o suspense é um dos principais ingredientes que conferem um 150     magnetismo tão forte a essa narrativa. Além disso, o conto também explora o medo de sua audiência, na figura das quatro criaturas ferozes, que podem atacar a qualquer momento. Tais elementos, conforme já mencionado, configuram uma estrutura narrativa à qual as crianças estão afeitas, contribuindo para o despertar de seu interesse. As ilustrações de Jean-Claude Götting auxiliam na criação dessa atmosfera de suspense, desde a capa, pois representam os animais em posturas ameaçadoras. Anansi é representado de maneira ambígua, ora como homem, hora como aranha, ora como um híbrido, o que alimenta a dúvida a respeito de sua verdadeira natureza. Além disso, todos os personagens humanos (ou semi-humanos) representados são negros, o que, conforme dito anteriormente, é uma característica minoritária na literatura infantil. Os desenhos de traçado espesso e geométrico exibem ainda paisagens africanas e são relativamente mais escassos, considerando os outros livros trabalhados. Ambas as sessões de leitura foram realizadas na biblioteca. Como suporte material de leitura, foi usado o livro impresso, tendo cada estudante um exemplar em mãos. Na primeira sessão de leitura, contamos com a presença de 7 sujeitos e, na segunda, foram 13 os presentes. Na primeira, além do desfalque numérico, a turma ainda não contava com o ânimo contagiante de Arusha, que estava presente, mas encontrava-se adoentada e recolhida, tendo, inclusive, que ausentar-se antes do início da leitura. De modo que, o início do registro, mostra uma roda de alunos cabisbaixos e silenciosos. Assim que a professora lança a pergunta: "Quem aqui conhece o homem-aranha?", houve como que um despertar súbito, com vários "Eu!" simultâneos. Seguiram-se então algumas falas detalhistas sobre o homem-aranha, com o confronto de diferentes versões, de Leléu, Lola e Watende, baseadas em filmes. Em seguida, a professora pergunta se eles conhecem algum outro homem-aranha, diferente daquele, ao que Mosi levanta a possibilidade de o Tarzan ser um homem-aranha, devido a sua habilidade de transitar entre as árvores por meio de cipós, opinião que ganhou a adesão de outros. A professora explica que vai contar uma história de um homem-aranha africano, diferente dos que aparecem nos filmes e apresenta o livro, que desperta muito a curiosidade de Watende, que pede para folheá-lo. A professora esclarece sobre a antiguidade do conto e sobre seu modo de transmissão oral, afirmando que ninguém sabe dizer quem inventou o conto original. Ela refere-se a personagens do folclore, como o saci pererê, para exemplificar contos de transmissão oral brasileiros. Na atividade de previsão, Lola afirma ter visto uma onça de nome “dente de sabre”, que seria parecida com a ilustração da capa. Alguns comentam sobre os cabelos de Anansi. A maioria prevê que o "tigre" atacará Anansi, que lutará contra ele, ao passo que 151     Watende afirma o contrário, argumentando que vira no computador uma história em que os africanos eram amigos dos animais. Algumas falas identificam a figura humana na capa com o título do livro, mas Watende discorda novamente, afirmando que Anansi seria aquele da imagem da contracapa. Percebemos claramente durante as previsões o compartilhamento de conhecimentos prévios para a construção coletiva de narrativas hipotéticas. Watende destacou-se nessa construção por sua tendência a defender pontos de vista alternativos ao consenso que se vinha delineando na turma. Esses pontos de vista desviantes podem enriquecer as previsões, obrigando os demais a refletirem sobre o que disseram sob uma ótica diversa. O próprio Watende, então, auxilia na distribuição dos livros, que todos, com a exceção de Lia, começam a folhear assim que os recebem. Muitos comentam com a professora sobre algumas ilustrações, de modo que essa primeira leitura, não foi silenciosa conforme programada, mas compartilhada. Durante o pré-ensino do vocabulário, enquanto a professora questionava-os sobre o significado da expressão "membros filiformes", Watende, desviou o assunto, afirmando: "Os africanos, eles são pobres. Mas quase... não todos, por causa do país" (Transcrição do autor. 12ª sessão de leitura. Apêndice C), ao que a professora respondeu dizendo que eles haviam discutido sobre isso na sessão anterior, à qual ele faltara, mas que depois ela o faria ver a foto de Nairóbi que havia na sala. É feita então uma contextualização a respeito da figura dos griôs, aos quais o pesquisador referiu-se na introdução do projeto, feita na primeira sessão, mas ninguém consegue recordar-se do significado da palavra. A explanação baseia-se na exploração conjunta dos elementos extras das páginas 28, 29, 30 e 31 do livro, que trazem informações sobre o conto africano, os griôs, o povo Axanti e o personagem Anansi. O pesquisador senta-se no círculo e a professora inicia a leitura oral. Nos trechos indicados como falas do deus do céu, Nyame, o pesquisador lê, contrastando a voz da professora com uma tonalidade bastante grave. Leléu é o único que se deita com o livro sobre o rosto, enquanto os outros acompanham a leitura, página a página. Devido à extensão da história, empregamos novamente a técnica the story so far, com a interrupção da leitura no ápice dramático da história, que, nesse caso, corresponde à página 20. Novamente, os sujeitos respondem com manifestações de desprazer a essa parada e Mosi pergunta se poderia levar o livro para sua casa. 152     A professora inicia a discussão de pós-leitura sobre a parte lida retomando as previsões e, em seguida, questionando-os sobre suas primeiras impressões sobre a história. Professora: O que vocês sentiram durante a leitura da história? Leléu: Eu não senti nada aqui na minha barriga. Watende: Eu senti meu coração. Bodru: Eu senti suspense. (...) Professora: Por quê? Bodru: (Por causa de) você e o professor. (...) Lola: Susto, por causa que o professor Wagner tava com a voz grave. Watende: Eu senti que meu coração ficou tremendo. (Transcrição do autor. 12ª sessão de leitura. Apêndice C) A partir dessas falas, confirmamos a suposição de que uma leitura feita a duas vozes poderia sublinhar o efeito dramático, levando os alunos a envolverem-se mais no suspense da narrativa. Confirmamos ainda a capacidade da obra de provocar o medo. É interessante notar que, antes desse diálogo, esses mesmos sujeitos afirmaram terem gostado da leitura. Tal fato aponta para a complexidade da recepção literária (ZILBERMAN, 1989), já que ela integra no prazer de ler as sensações despertadas pelo contato com a obra que, a princípio, seriam fonte de desconforto, como o medo. Quando questionados sobre o que mais lhes chamou a atenção, a maioria refere-se aos animais, com a exceção de Leléu, que refere o contraste entre as cores preto e branco na ilustração de uma aranha na página 5, para apontar a semelhança com as cores dos desenhos de Anansi, argumentando ser esse um indício de que aquela aranha seria, de fato, Anansi. Tratava-se de mais uma evidência do caráter imagético de sua recepção, estando ele atento aos mínimos detalhes das ilustrações e justificando seus pontos de vista a partir deles. A segunda sessão, conta com uma presença bem mais expressiva dos aprendizes, mas a professora havia mediado a leitura novamente com a turma, uma aula antes, fato que a leva a iniciar solicitando-os que resumam a primeira parte da história. A professora medeia esse reconto, ajudando-os a lembrar dos detalhes. Em seguida, retoma a leitura a 153     partir da página 19, a anterior à qual havíamos interrompido. Quase todos tentam seguir a leitura da professora, com a exceção de Suhuba, que logo fecha o livro e, interrompendo a leitura, afirma que não queria ler, pois não sabia ler e devolve o livro ao pesquisador. A professora pede-lhe que retome o livro, escute a história e tente fazer uma leitura das imagens. No momento apropriado, o pesquisador lê novamente as falas do deus do céu. Até o final da leitura, mais 3 alunos deixam de olhar para o livro e concentram-se somente na leitura oral. Antes da etapa de discussão, o pesquisador exibe uma bonequinha de madeira muito parecida com aquela representada no livro, afirmando que ela vinha da África, também tendo sido esculpida por africanos. Figura 21 - Anansi, o velho sábio (Jean-Claude Götting). 154     Figura 22 - A bonequinha. A professora inicia a discussão esclarecendo que os contos africanos costumam trazer algum ensinamento e pergunta qual a mensagem trazida pelo conto de Anansi. Bodru, novamente, assume uma postura preconceituosa, tendo a professora solicitado a ajuda do pesquisador para contra-argumentar. Também esse episódio será analisado adiante. A pergunta é retomada e as respostas continuam vagas, como "amizade" ou "amor". A professora tenta guiar a argumentação, sublinhando a dificuldade da tarefa de Anansi, e acaba encaminhando a pergunta seguinte, que questionava sobre o que tornou possível para Anansi alcançar seu objetivo. Foram elencadas qualidades de Anansi, como esperteza, coragem e inteligência, tendo sido Zalira a única a atribuir seu sucesso à ajuda da mulher, levando a professora a reforçar sua fala e avançar a pergunta seguinte, que questionava se Aso fora importante na história. Alguns disseram que sim, o que Leléu relativizou: "Nem tanto!" Mosi disse que ela ajudou dizendo onde estavam as coisas, mas, foi Zalira quem melhor explicou, afirmando que ela ensinara-o a preparar as armadilhas. A professora ressalta a eficácia da esperteza contra a força e tenta então encaminhar a 155     última pergunta sobre a importância de se ouvir os mais velhos, mas, visto a dispersão na turma e a agitação de alguns, notadamente, de Suhuba, ela encerra a discussão. A notícia de que a atividade seguinte seria a dramatização da história foi recebida com manifestações de alegria. A organização da atividade demandou bastante empenho de todos. Inicialmente, tentamos fazer no pátio interno, mas, devido ao barulho, resolvemos ir para o bosque fora da escola. A professora usava o livro para roteirizar as atuações e pedia-os que adaptassem as falas. Os alunos que mais se destacaram na dramatização foram Suhuba, Mosi, Leléu e Zalira, com destaque para Suhuba que ficara sem um personagem definido inicialmente, mas que, por sua desenvoltura, acabou assumindo o papel de Anansi, no lugar de Mosi. Surpreendeu-nos esse desempenho de Suhuba na dramatização, pois ele demonstrara prestar pouca atenção à narrativa durante a leitura, mas, ao final, conseguiu realizar a melhor atuação, lembrando da sequência dos eventos e até mesmo das falas dos personagens. Tal observação sugere que não há uma maneira única de concentrar-se para ouvir uma história, ou seja, que o fato de um sujeito movimentar-se muito e não olhar fixamente para o livro ou para a mediadora durante a escuta da história, não significa que ele não esteja ouvindo e compreendendo o que ouve. De fato, observamos outros sujeitos que pareciam cochilar durante a leitura, mas que, depois, demonstraram ter compreendido a história, como Leléu nas duas últimas sessões. Tal observação alerta o mediador para a existência de uma diversidade de respostas dos aprendizes à leitura oral de livros de literatura infantil, que inclui posturas corporais diferentes no momento da leitura. Percebemos que a mediação de leitura com essa obra dialogou bastante com os conhecimentos prévios dos aprendizes, mas de um modo completamente diferente de Um Safári na Tanzânia. De fato, foram mediações que adotaram estratégias bem diferentes para relacionar os livros ao universo dos aprendizes. Enquanto na primeira esses conhecimentos prévios foram explorados, mas não avançaram muito com a leitura da obra, na segunda, foi o conhecimento da estrutura narrativa do conto de aventura que possibilitou o diálogo com uma série de elementos novos. Notamos ainda a eficácia de termos invocado o homem-aranha como fator motivacional para a leitura. De fato, esse recurso despertou a curiosidade em relação à história, facilitando a ativação dos conhecimentos relacionados ao tema. Isso foi benéfico, principalmente, para a etapa de previsões, durante a qual, mesmo tendo sido aquela a sessão com o menor número de sujeitos presentes, foi avançada uma multiplicidade de argumentos. Observamos que essa referência a um tema caro aos estudantes não está, 156     necessariamente, implicado na obra, mas pode depender da criatividade do mediador ao planejar os modos para o estabelecimento desse diálogo. 5.2 Identidades em construção Passamos, agora, à análise de um recorte do corpus, em que centraremos a atenção nos processos vivenciados pelos aprendizes que se relacionem a algumas consequências do efeito catártico de identificação com personagens de ficção. Nomeadamente, estaremos interessados em analisar como essa experiência de identificação pode influenciar nos processos de formação da identidade étnica dos aprendizes. Destarte, com base nas discussões teóricas apresentadas, serão analisados casos particulares de aprendizes, separados em duas categorias. Primeiro, a identificação com personagens por espelhamento em relação ao referente literário, que, no nosso caso, representa um indício de que a recepção das obras contribuiu para a construção afirmativa da identidade negra. Nessa categoria, centrar-nos-emos em aspectos da recepção de Zalira. Segundo, a identificação por afastamento do referente, o que, em uma lógica inversa à anterior, sugere uma negação daquela identidade. Nesse caso, fixar-nos-emos nas respostas de Bodru ao trabalho desenvolvido. Antes de mais, é importante ressaltar que, em nenhum momento da intervenção, buscou-se classificar os aprendizes em categorias raciais. No entanto, em algumas ocasiões, eles próprios o fizeram, negociando entre si suas diferenças e similaridades. Hall (2000, p.37) analisa a importância dessa questão para a formação identitária do ponto de vista psicanalítico, argumentando que a criança só consegue ver a si própria através do espelho do olhar do outro. Sendo assim, sublinhamos mais uma vez a importância da etapa de discussão da história para essa análise. Com efeito, a maior parte das respostas sobre as quais se apoiam as reflexões a seguir foi recolhida durante a etapa de discussão, uma vez que era nessa fase que as duas tendências contrárias, aqui elencadas, eram contrapostas. Percebemos, entretanto, que não se trata de duas posições estanques, mas, sim, de dois fluxos oscilantes que, inseridos no processo maior de construção compartilhada dos pontos de vista, ora sobrepõem-se, ora repelem-se, mas dialogam constantemente. 157     5.2.1 Eu sou igual a eles Zalira é uma menina sorridente e introvertida, tendo sido uma das que não costumava intervir em todas as sessões. Porém, sua postura durante as sessões demonstrou que ela estava atenta às atividades e, sempre que sentiu necessidade, não hesitou em expressar-se para defender seus pontos de vista. Zalira é uma menina negra. Tal certeza não deriva da observação de seus traços fenotípicos, mas da sua maneira de se relacionar com as leituras e da íntima relação entre como ela se vê e como os colegas a veem. Elegemos Zalira para designar os casos em que as representações apresentadas geraram uma identificação por espelhamento, interferindo no modo como os aprendizes representavam e imaginavam a si próprios. O personagem com o qual ela mais se identificou foi a menina Bruna, que encarna o poder transformador de uma voz triplamente marginal em relação ao mainstream cultural: negra, feminina e infante. Compilamos no Quadro 2, as respostas mais relevantes de Zalira às perguntas da entrevista. Quadro 3: Respostas de Zalira à entrevista. Perguntas Respostas de Zalira Qual foi o livro de que você mais gostou? Bruna e a galinha d'Angola. Por quê? Por causa da galinha e porque a Bruna ficou feliz. E porque Bruna é o nome da minha prima. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Não, gostei de todos! Você se identificou com algum personagem? Sim, com a Bruna. O quê nesse personagem tem a ver com você? O cabelo... A pele... Qual foi a discussão que lhe chamou mais atenção? Bruna e a galinha d'Angola. Por quê? Porque ela é diferente e eu tenho uma galinha igual a essa... Minha vó fez uma e eu pedi pra ela me dar, aí ela me deu! 158     Fonte: Autoria própria (informação verbal). Entrevista individual para o pesquisador. Mesmo antes da entrevista final, durante a 8ª sessão de leitura, em que discutimos a história, a identificação de Zalira com Bruna foi notória. Muito atenta, Zalira foi uma das que mais interveio nas discussões dessa sessão. Contudo, foi somente com a entrevista que pudemos recolher detalhes mais precisos acerca de sua recepção ao livro. Evidencia- se, nas respostas, a menção aos traços físicos “o cabelo... a pele...”, como motivadores da identificação, o que nos leva a reafirmar a centralidade de ilustrações que representem os traços característicos dos negros de forma positiva para que se possa dar a identificação por espelhamento. Deveras, um dos fatos observados na pesquisa foi o modo integrado como os aprendizes processaram as palavras e as ilustrações em sua recepção dos livros, sendo ambos igualmente relevantes para a sua compreensão leitora. Conforme já foi ressaltado, verificamos mais uma vez a multimodalidade na recepção, expressa na referência às ilustrações para responder às perguntas. Corrobora essa posição o fato de Zalira ter se referido à imagem da capa do livro para mostrar o que mais lhe chamara a atenção na história. De modo que as imagens representando Bruna funcionaram como uma chave, entendida por Zalira (e por outras) como evidência de que aquela leitura dizia respeito a ela. Conforme foi dito acima, esse engajamento é fulcral para a construção de sentidos por parte dos aprendizes, o que pode ajudar a explicar o modo profícuo como Zalira relacionou-se com essa obra, se pensarmos que sua identificação potencializou seu interesse e, por conseguinte, seu aprendizado. Já, a última resposta, compilada no Quadro 2, permite-nos concluir que Zalira, assim como a personagem Bruna, sente-se diferente dos outros. De modo que, a possibilidade de interagir com alguém igual a ela atua como fonte de satisfação e estimula sua imaginação. Esse sentimento pode estar relacionado à predominância de representações brancas observadas no ambiente escolar e relatada no capítulo 4. Porém, para além do corpus desta pesquisa, podemos relacionar a resposta de Zalira a dados de outras pesquisas, que relatam a predominância de personagens brancos nos livros de literatura infantil brasileira (ROSEMBERG, 1985, BAZILLI, 1999, LIMA, 1999, GOUVÊA, 2004, 2005, KAERCHER, 2006, PESTANA, 2008, FERREIRA, 2008, ARBOLEYA e ERES, 2008, ARBOLEYA, 2009, VENÂNCIO, 2009, MONTEIRO, 2010, DEBUS, 2010, apud OLIVEIRA, 2010, p. 140) e nos livros didáticos adotados na educação básica (SILVA, A. C., 2005; SILVA, 2011, SOUZA, 2013). 159     O problema é que, conforme discutimos no capítulo 2, a herança social do ideal de branqueamento da nação tende a naturalizar a predominância de brancos nos livros, que foi elevada à categoria de status quo. As análises que empreendemos, nesta pesquisa, permitem apontar o trabalho sistemático de formação de leitores que inclua a mediação de leitura de literatura infantil negra como uma proposição consistente para o enfrentamento do problema, uma vez que os livros estão disponíveis em grande parte das escolas do ensino fundamental. Obviamente, há muitas outras alternativas para se opor à supremacia de representações brancas na escola. O filme Vista a minha pele (HUGO, 2011), por exemplo, recorre a uma estratégia interessante para conscientizar os espectadores acerca do problema da desigualdade étnico-racial na vida escolar cotidiana. Nesse filme, vemos, pelos olhos de uma menina branca, um espelho invertido da nossa realidade, isto é, uma escola onde a grande maioria dos alunos e professores é negra, assim como os personagens dos livros e da mídia. O impacto causado por essa inversão configura um irresistível convite à reflexão acerca dos motivos pelos quais nossa sociedade está organizada em uma determinada forma, em detrimento de outra. Conforme vimos anteriormente, a projeção da biografia do leitor sobre o foco de identificação faz com que a leitura seja uma experiência vicária (AMARILHA, 2012). Desse modo, as experiências de Bruna e de Zalira se condensam e ela passa a viver o que Bruna viveu. Isso é possível devido à verossimilhança do texto literário que, no diálogo com leitores inexperientes, faz com que o ficcional, o real e o imaginário sejam integrados em uma experiência única. Reafirmamos, então, a importância desse fenômeno como a etapa do desenvolvimento do leitor que o possibilita adentrar no jogo literário e vivenciar experiências que o ajudarão a compreender a realidade e a sua relação com o ficcional (AMARILHA, 2012, p.84). Refletindo acerca da importância desse contato íntimo com personagens negros, Debus e Vasques (2009, p. 143) concluem que "um dos caminhos para o entendimento e a consciência acerca da pluralidade cultural está, também, na apropriação da leitura literária produtora de identidade e inclusão social." Gostaríamos de destacar, ainda, outro dado observado durante as sessões de leitura de Anansi, o velho sábio (KALEKI, GÖTTING, 2007), que pode nos auxiliar a refletir acerca dos processos de identificação vividos por Zalira. Durante as discussões, foi ela quem mais advogou sobre a centralidade do papel de Aso, esposa de Anansi, na narrativa, frisando que, sem a ajuda da mulher, ele não teria conseguido capturar as criaturas exigidas pelo deus do céu em troca de suas histórias. Essa fala levou a professora a indicar-lhe para o papel de Aso na dramatização, que ela aceitou e representou com 160     empenho. Tais fatos levam-nos a ponderar acerca da relevância do gênero dos personagens para a identificação, que também se expressa no fato de que apenas meninas intervieram espontaneamente durante a discussão final de Bruna e a galinha d’Angola. Afinal, Zalira identificou-se com Bruna porque ela era negra ou porque era menina, ou ambos? Segundo Hall (2006, p.328), na pós-modernidade, há o deslocamento cruzado de uma identidade por outra, e nós, em nossas constantes negociações de diferentes diferenças, assumimos posições diversas, que entrecruzam várias identidades, a depender da situação. De modo que, no trato com a literatura infantil negra, mais do que a preocupação em se trabalhar com uma representação “genuína” da identidade negra, importa-nos entrecruzar esse com outros referenciais identitários, de modo a expandir o leque de focos de possíveis identificações, já que essas vêm sempre amalgamadas. A promoção da identificação de meninas negras com heroínas e princesas parecidas com elas pode contribuir para o desabrochar do orgulho, a um só tempo, de ser menina e de ser negra. Portanto, leituras como essa podem alavancar o empoderamento de meninas negras, ajudando-as a contrapor os construtos sócio-históricos que, até hoje, buscam submeter a mulher negra, reservando a ela trabalhos desvalorizados, preconceito e solidão. Sobre essa temática, Pacheco (2013) faz um resgate histórico de relatos de vida de heroínas negras, analisando a trajetória social-afetiva de cada uma delas através de um referencial teórico que integra as categorias de raça, gênero e relações afetivo-sexuais. A autora conclui que a solidão está presente em todas as trajetórias analisadas, ainda que os sentidos atribuídos à própria solidão por mulheres negras de posições sociais distintas variem consideravelmente. 5.2.2 - Eu sou diferente deles Serão analisados, nesta seção, os casos que sugerem uma identificação por afastamento do referente, através da delimitação de fronteiras identitárias com as quais os sujeitos reforçaram suas diferenças quanto ao referencial negro, marcando-o como alteridade. Relatamos acima vários exemplos de eventos observados, em que essa alteridade é caracterizada a partir de estereótipos preconceituosos. Devido à reincidência desses eventos e dada a relevância do tema para o nosso trabalho, ele será dividido em três categorias de preconceito: racial, religioso e socioeconômico. Não por coincidência, 161     tais categorias correspondem às formas arraigadas no pensamento sócio-histórico brasileiro que atualizam o racismo em nosso país. Trata-se de três vertentes da mesma mentalidade hegemônica e preconceituosa, construída historicamente, que legitima a exclusão social de grandes parcelas da população brasileira. Visto à luz das discussões teóricas empreendidas acerca do preconceito (BUENDGENS e CARVALHO, 2016; SANTOS, 1980), tal recorte possibilita-nos enxergar a escola como um microcosmo que reflete a práxis social de onde está inserida. Bodru é um aluno obediente, esforçado e um dos mais avançados da turma em termos de habilidades linguísticas, tendo demonstrado um ótimo nível de compreensão das leituras em suas respostas, influenciando, por vezes, a opinião da turma em geral. Bodru não é negro, nem quer ser. Novamente, não por seus traços físicos, mas porque, no seu caso, a recepção de obras de literatura infantil negra configura-o como o sujeito que mais se afastou do foco de identificação apresentado, tendo ele justificado sua reação, por diversas vezes, com asserções de cunho preconceituoso. Suas respostas serão o principal eixo de análise das seções que se seguem, juntamente com outros casos relevantes em que houve manifestações preconceituosas. 5.2.2.1 O preconceito racial Já na primeira sessão de leitura, perguntamos se eles gostariam de ser uma criança Massai, que estivesse junto com aquelas outras, fazendo um safári. A resposta de Bodru foi “Não! Nem um pouquinho! Não gostaria de ficar perto de muita gente negra. É porque eu não estou acostumado.” Percebemos aqui que a marca que diferencia o “eu” do “outro”, determinando a identificação por afastamento do referente, é a cor da pele. Tal fala, segundo Santos (1980, p.76), insere-se na terceira modalidade do racismo brasileiro, qual seja, “a ideia negativa que fazemos das pessoas de cor” e nos dá uma chocante noção do quão cedo esse tipo de ideia é internalizada a partir do pensamento social marcado pela herança do ideal de branquitude. Episódios como esse não devem passar despercebidos, mas devem ser confrontados imediatamente pelos professores, já que são uma oportunidade para se discutir abertamente sobre o racismo que, não sendo defensável por argumentos lógicos, acabará por ter sua ilogicidade desmascarada. Nas palavras de Santos (2001, p.106): 162     A discriminação racial não é um problema da criança negra, mas uma oportunidade de crianças negras e não negras se conhecerem, discutirem e instaurarem novas formas de relação, que tenham impacto em suas vidas e na sociedade como um todo. É importante notar que Bodru justifica seu desprazer alegando falta de costume de estar com pessoas negras. Devemos estar atentos para não relacionar essa falta de costume à falácia presente no senso comum de que há um contingente inexpressivo de negros no estado do Rio Grande do Norte. Antes, trata-se de um problema não da ausência física de pessoas negras, mas da ausência das vozes dessas pessoas e de discursos positivos sobre elas. Nesse sentido, a pesquisa feita por Cavignac (2003) refaz o percurso da historiografia oficial do RN, mostrando como as marcas étnicas de povos não brancos foram sistematicamente apagadas, sendo englobadas em categorias genéricas, construídas historicamente, que desterritorializaram as comunidades negras e indígenas potiguares, tornando muito mais difícil o trabalho etnográfico de reconstrução de suas histórias. Desse modo, poderíamos acrescentar à categoria do racismo à brasileira referida por Santos (1980, p. 79), o "preconceito de não ter preconceito", uma outra característica do racismo presente no RN e em outros estados brasileiros que seria o preconceito de que, nesses lugares, não há preconceito contra os negros, pois eles sequer existiriam ali. Portanto, entendemos que a justificativa usada por Bodru para sua manifestação de estranhamento inicial provém mais da sua falta de costume de falar sobre negros do que de estar com negros, com quem ele convivia diariamente na escola. Acreditamos que a escola, enquanto lugar de produção de conhecimento, deve promover o questionamento desses conteúdos, no lugar de reproduzi-los. É esse o silêncio histórico com o qual a escola deve romper, começando por enxergar a diversidade étnica de seus alunos e de todo o corpo docente e administrativo, comentar sobre ela, problematizá-la e celebrá-la. Nesse sentido, uma das nossas atitudes durante a pesquisa para promover a ruptura do silêncio foi, após a leitura de Kofi e o menino de fogo, conversar abertamente a respeito do preconceito racial com os sujeitos e, a seguir, pedir-lhes que conversassem com seus pais ou responsáveis em casa sobre o tema. Com esse procedimento, tínhamos o interesse de suscitar a discussão sobre o preconceito racial em um âmbito mais alargado do que a sala de aula, demonstrando sua importância aos sujeitos e encorajando os familiares a conversarem com os filhos sobre o preconceito racial, que é ainda é um assunto que assume status de tabu na sociedade brasileira (SANTOS, 1980). 163     5.2.2.2 O preconceito religioso Os casos em que aspectos ligados à religião foram fatores determinantes para a construção de pontos de vista depreciativos em relação à identidade negra configuraram a maioria das manifestações preconceituosas observadas durante a pesquisa. Todos eles foram protagonizados por Bodru que, em alguns casos, sustentou sozinho um posicionamento contrário aos argumentos da turma em geral. Como na 1ª sessão de leitura de O presente de Ossanha, na qual, ao serem questionados sobre a religiosidade dos africanos escravizados trazidos para o Brasil, Bodru afirmou que eles eram “o anticristo”, por acreditarem em muitos deuses e que seria essa a razão pela qual “Deus” não lhes daria água nem comida. Aqui, o preconceito apresenta-se com outra roupagem, mirando a religião, mas sempre tendo como alvo os negros. Mais do que negar a alteridade, sua atitude foi a de demonizar o outro. Essa demonização representa um afastamento absoluto que, nesse caso, inviabilizou a sensibilização para com as privações advindas da escravidão, corrompendo os valores humanos relacionados à empatia com o sofrimento alheio. Demonizar é não só distorcer a imagem do outro até que se inviabilize todas as possibilidades de identificação, mas subentende uma necessidade de aniquilamento da alteridade, já que ela passa a encarnar o mal, que deve, por princípio ético, ser combatido. Infelizmente, essa é uma das formas de preconceito que a escola menos rechaça. Pelo contrário, pesquisas como a de Caputo (2008, p.171) mostram que muitas crianças praticantes de religiões de matriz africana, que, em suas vidas privadas, demonstram-se orgulhosas de todos os saberes que aprendem e ensinam nos terreiros, dizem, ou já disseram, alguma vez na escola, que são católicas para escapar de preconceitos. De fato, ao analisar as práticas docentes no Ensino Religioso confessional, a autora verifica que a escola ensina, sobretudo, o cristianismo, sendo as religiões de matriz africana silenciadas ou abertamente combatidas. Eis as falas de uma das crianças entrevistadas, identificada na pesquisa como Joyce, de 13 anos: "Sou do candomblé, mas na escola não entro com meus colares e guias, digo que sou católica porque na escola sinto vergonha. Também só vou pra escola de camisa de manga comprida para esconder as curas". Para ela, o preconceito religioso está associado ao preconceito racial. "Porque na rua já me disseram: é negra! Só podia ser macumbeira." (CAPUTO, 2008, p. 172, grifos da autora) 164     Portanto, é preciso que a escola rompa com essa lógica, acolhendo as diversas manifestações religiosas brasileiras como tema de estudo e confrontando prontamente posturas hostis por parte dos alunos. Foi o que aconteceu no prosseguimento da discussão relatada, quando a atitude atenta e questionadora da professora na mediação dos argumentos levou a um aceso debate sobre se devemos ou não respeitar todas as manifestações religiosas, em que as falas dos próprios colegas levaram Bodru a reconsiderar sua posição, num movimento de concessão argumentativa: “Se tem que ter respeito, tem que respeitar.” Mostrando a capacidade de influência do grupo para a mudança do seu ponto de vista. Contudo, essa posição foi momentânea, pois, em ocasiões posteriores, ele retornaria ao seu argumento inicial, mostrando que, de fato, havia um conflito entre a sua opinião e a do grupo. Na verdade, percebe-se claramente que Bodru não poderia ter criado sozinho opiniões tão afeitas aos preconceitos historicamente difundidos no Brasil, mas que aquilo era fruto de processos de ensino-aprendizagem não escolarizados, em que o preconceito religioso foi-lhe ensinado como sendo o modo certo de se pensar. Portanto, ao que parece, antes de experimentar o conflito com os seus pares, Bodru vivenciava conflitos entre seus valores e os de alguns textos lidos. Isso porque tais textos faziam a apologia de algo que ele internalizou como sendo mau. Então, sendo cognitivamente imaturo para relativizar suas verdades prévias, Bodru sofria com essas leituras, combatendo com irritação as falas que insistiam em ver positivamente aquilo que haviam lhe ensinado como sendo ruim. Identificamos, portanto, um caso em que o sujeito vivenciou na atividade de leitura literária um conflito sociocognitivo consigo mesmo (FREITAS, 2005), uma vez que as ideias e valores expressos no texto estavam em desacordo com os seus. A atividade de discussão demonstrou-se, então, adequada por vários motivos: para Bodru, porque serviu como meio de expressar seu conflito interno, compartilhando sua angústia com o grupo; para a mediadora e o pesquisador, pela recolha de dados importantes acerca de aspectos intrapessoais da recepção dos sujeitos; e para o grupo como um todo, pela oportunidade de refletir conjuntamente acerca de pontos de vista diversos e construir um novo ponto de vista interpessoal, fruto do processo argumentativo. De fato, durante a 3ª sessão de leitura de Bruna e a galinha d'Angola, reparamos que Bodru não interferiu, nem mesmo quando solicitado individualmente. Porém, foi o bastante tocar no tema da cosmogonia africana para que ele se manifestasse prontamente, defendendo com intransigência até o final da discussão que nem sempre devemos 165     respeitar as crenças dos outros, que divirjam das nossas. Já durante a leitura de As Panquecas de Mama Panya, que não tocava em assuntos religiosos em nenhum momento, seus comentários tiveram um cunho muito mais positivo, tendo sido ele um dos que mais argumentou, influenciando a opinião de colegas ao defender valores como amizade, amor e paz. Porém, logo a seguir, durante a discussão de Anansi, o velho sábio, Bodru oscila novamente e retoma sua reação hostil à representação trabalhada. Nessa obra, a única referência religiosa é a menção ao nome do deus do céu como sendo "Nyame". Como não se trata de uma característica central da história, a discussão girou muito mais em torno dos feitos de Anansi junto aos animais. Contudo, observamos que a recepção de Bodru novamente envolvera certo incômodo, o qual ele encontrou uma oportunidade de expressar em uma pergunta da professora que, a princípio, não teria relação direta com a religiosidade: Prof.ª: Olhe só, todas as histórias africanas que nós ouvimos até agora elas sempre têm assim, elas passam uma mensagem não é? Como? Bodru: Subliminar! Prof.ª: O que você entende por isso? (...) Profª: Você entende alguma coisa dessa palavra? Bodru: Sim... O diabo. Prof.ª: O Diabo?! Subliminar?! Bodru: Subliminar, sim, é mensagem do diabo. Prof.ª: Não, não é isso não... Bodru: É... Foi o que eu escutei. Profª: É assim, é mais ou menos... Eu não sei se eu vou saber explicar para você, mas depois eu vou procurar direitinho para explicar melhor. Mas, às vezes, existem mensagens que não estão bem claras numa história que a gente conta. Só quem presta muita atenção é que, às vezes, compreende o que aquela história quer dizer, não é mais ou menos isso, professor? Você pode me ajudar? PP: É... mensagem subliminar é uma coisa que tá na história escondida, mas não tá dita, mas as pessoas entendem. 166     Prof.ª: Mas as pessoas têm a percepção, prestam atenção, mas não tem nada a ver com o diabo. A não ser que a pessoa leia uma história que esteja falando do diabo. PP: Pode ser uma mensagem subliminar de qualquer coisa. De qualquer coisa... (Transcrição do autor. 13ª sessão de leitura. Apêndice C) Como se vê, Bodru manteve sua hostilidade viva até a última sessão de leitura, reafirmando a atitude de demonização da alteridade, já comentada. Sua postura é tão firme que a professora solicita uma intervenção do pesquisador, no sentido de ajudá-la a promover uma reflexão mais aprofundada acerca de sua fala. No entanto, durante a entrevista, Bodru retomou não só essa, como outras falas preconceituosas, suas e de outros colegas: Pesquisador: - Houve algum livro de que você não tenha gostado? Bodru: - O presente de Ossanha. Pesquisador: - Por quê? Bodru: - É meio chatinho. Porque só tinha uma criança e... Um só pensa em brincar, mas não é legal, só brincar. O outro... O ruim é que o outro ficava sozinho. Não sei se ele toma banho ou não... Não tomava banho com xampu nem nada. Por isso que ele é sujo. É porque... na África não tinha nada. Só tinha floresta, areia e bichos. Pra mim não tinha deuses. Os deuses não ficam no Brasil. Pra mim é só na África. Só existe um Deus. (Entrevista final ao pesquisador. Apêndice D). Percebe-se que Bodru reafirma, dentre outras posições que nos esforçamos por desconstruir ao longo das sessões, a primeira visão de África expressa na entrevista inicial, que negava a existência de qualquer coisa nesse continente além de animais e paisagens. Contudo, pela compreensão demonstrada por ele em várias ocasiões, entendemos que essa volta ao início não significa a nulidade de seu aprendizado, mas uma negação sistemática de parte daquilo que aprendera. Portanto, essa sua fala final coroa o afastamento como característica principal de sua recepção. Nesse caso, não só a identificação por afastamento dos personagens fictícios, mas um afastamento deliberado 167     de todo o projeto, inclusive dos conteúdos internalizados por ele próprio, como se esses fossem frutos espúrios de um trabalho que ousara atentar contra o equilíbrio cognitivo advindo de suas verdades prévias, ou seja, de seus preconceitos. O caso de Bodru evidencia o quanto o leitor apresenta uma subjetividade variável. O contato com as histórias promove uma experiência de descentramento (HALL, 2006) que o desequilibra, e assim, o retorno à crença anterior parece ser uma alternativa confortável, enquanto não se consolida um processo em contexto mais favorável à admissão e inclusão de uma outra identidade – a de negro. Nesse percurso, reconhecemos a difícil tarefa em se recontar a história da nação brasileira, que é multirracial. O conflito vivenciado por Bodru e sua forte resistência à mudança, desde tão precoce idade (9 anos), são evidências do enorme desafio que é construir uma nova narrativa de sociedade. A leitura de literatura se apresenta, então, como um território de provocação ao reconhecimento do outro que é diferente e à “redefinição identitária”, conforme expressão de Hall (2006). Tal fato leva-nos a reconhecer a limitação de projetos de proporções restritas como este e a ponderar sobre a necessidade da sistematização das práticas de leitura de literatura infantil negra e da continuidade, a longo prazo, da educação que se pretende antirracista, uma vez que os mecanismos reprodutores do racismo encontram-se consolidados na nossa sociedade, sendo constantemente renovados. Daí advém a inadequação de propostas que trabalham as histórias e as culturas negras em períodos restritos do calendário escolar. Tais propostas não combatem o problema, mas carnavalizam-no, numa postura acrítica de celebração de tudo, até da injustiça. É esse tipo de subversão da atitude de denúncia pelo silêncio festivo que perpetua “a quarta modalidade do racismo brasileiro: a ideia de que não somos racistas” (SANTOS, 1980, p.78). Contudo, com base na teoria apresentada, acreditamos que o contato com narrativas marginais gera um “descentramento de antigas hierarquias e de grandes narrativas, [...] e abre caminho para novos espaços de contestação” (HALL, 2006, p.319). Portanto, quanto mais frequente for esse contato, maiores serão os espaços de contestação. No caso das histórias ligadas às religiões ancestrais africanas, esse contato requer um cuidado minucioso da parte do mediador. Primeiro porque, conforme indicam nossas observações, trata-se de uma das marcas mais evidentes no imaginário coletivo dos preconceitos construídos historicamente contra os negros. Em segundo lugar, a ênfase nessas narrativas deriva do fato de elas terem sido um dos principais modos de resistência 168     cultural negra ao longo da história (JOAQUIM, 2001, p. 24; BAPTISTA e FORTUNATO, 2013, p. 289). Assim, a escola não deve ignorá-las, muito menos hostilizá-las, se pretende promover o ensino de cultura afro-brasileira e a democratização das relações raciais. Tratar a cultura negra amputada dos elementos religiosos representa uma transposição didática alienante para os aprendizes, já que lhes apresenta uma realidade censurada, com base nos mesmos preconceitos que mantêm vivo o racismo institucional. Nesse sentido, é válido lembrar que, no nosso caso, a própria escola, ao ostentar exclusivamente símbolos católicos, contribui com a manutenção do status quo da ideologia social, reforçando a unilateralidade de pensamento imposta pela história ao invés do pluralismo que nossa sociedade, de fato, encarna. 5.2.2.3 O preconceito socioeconômico Por fim, ressaltamos os casos em que a associação a uma condição de pobreza foi o fator determinante para o afastamento do referencial negro apresentado. Tais casos ficaram mais evidentes nas falas de Watende, antes, durante e depois da realização das sessões de leitura. Conforme relatado no capítulo 4, na entrevista inicial com os sujeitos, a pobreza foi a última barreira mencionada para diferenciar os africanos de si próprios. A certeza absoluta de que não há pessoas ricas na África, provavelmente, provém do contato com representações não escolarizadas estereotipadas, que generalizam a condição de pobreza como característica de todos os africanos, com uma tendência a naturalizá-la, ao invés de investigar as causas desse suposto estado de pobreza geral. A grande mídia é uma das maiores responsáveis pela propalação desse estereótipo preconceituoso, que costuma associar a imagem dos africanos a grandes tragédias humanas, como fome, miséria, epidemias e guerras (ALAKIJA, 2012). Portanto, caso a escola não desenvolva nenhum trabalho de relativização da imagem midiática preconceituosa, esta será a história única e inevitável dos africanos que chegará até os alunos. A esse respeito, há uma palestra disponível na internet que se tornou muito famosa, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, intitulada O perigo de uma história única (ADICHIE, 2009), na qual ela discorre acerca das distorções na percepção da realidade em pessoas que têm contato com uma narrativa singular e imutável acerca dessa realidade. A palestrante se refere a um conto de 169     sua vida pessoal justamente sobre os efeitos da pobreza como narrativa unitária e insistente acerca de um grupo de pessoas: Então, quando eu fiz 8 anos, arranjamos um novo menino para a casa. Seu nome era Fide. A única coisa que minha mãe nos disse sobre ele foi que sua família era muito pobre. Minha mãe enviava inhames, arroz e nossas roupas usadas para sua família. E quando eu não comia tudo no jantar, minha mãe dizia: "Termine sua comida! Você não sabe que pessoas como a família de Fide não têm nada?". Eu sentia uma enorme pena da família de Fide. Então, um sábado, nós fomos visitar a sua aldeia e sua mãe nos mostrou um cesto com um padrão lindo, feito de ráfia seca por seu irmão. Eu fiquei atônita! Nunca havia pensado que alguém em sua família pudesse realmente criar alguma coisa. Tudo que eu tinha ouvido sobre eles era como eram pobres, assim havia se tornado impossível pra mim vê-los como alguma coisa além de pobres. Sua pobreza era minha história única sobre eles. (ADICHIE, 2009). De fato, tal associação pode chegar a ser tão óbvia para alguns aprendizes, que essa pode vir a tornar-se a questão mais relevante a ser comentada a respeito dos africanos, mesmo quando a discussão conduzida pela mediadora visa analisar temáticas divergentes. Foi o caso de Leléu e Mosi que, durante a etapa de pré-ensino do vocabulário, na primeira sessão de Kofi e o menino de fogo, fugiram completamente ao tema da discussão para reafirmar suas certezas preconcebidas a respeito dos africanos. Nessa ocasião, enquanto os sujeitos observavam a ilustração da capa do livro, a professora perguntou o porquê de a palavra maracanã ter aparecido no vocabulário de uma história que se passava em Gana: Mosi: É porque eles são pretos. Professora: Mas, qual a relação existente entre a palavra “maracanã” e a cor dos homens que estão na capa do livro. Leléu: É porque eles são sujos. Professora: E a pessoa ser preta tem a ver com sujeira? (Alguns sujeitos respondem que não e a professora destina a pergunta a Mosi.) Mosi: (S.I.) Professora: Leléu, quem disse para você que as pessoas negras não tomam banho? Lia: Eles tomam banho sim. Professora: Por que vocês acham que os negros não tomam banho? Mosi: É porque eles vivem no lixo. Professora: Mas, são só os negros que vivem no lixo? (CFMT) 170     Bodru: É porque os negros não têm boa moradia, por isso eles vivem no lixo. Professora: E são só os negros que não têm boa moradia? Bodru: Não. Arusha: Tem muitas pessoas que têm preconceito contra os negros. Professora: E o que você entende por preconceito. Arusha: Tem a ver com os xingamentos, que algumas pessoas xingam outras por preconceito. (Como exemplo, diz que assistiu a uma reportagem em que uma mulher negra não foi atendida por uma manicure por ser negra). (Transcrição do autor. 5ª sessão de leitura. Apêndice C) Chamou muito a atenção o curto lapso de tempo necessário para que os sujeitos em seu diálogo saíssem de "preto", passassem por "pobre" e chegassem a "sujo". Como a discussão encaminhava-se alheia a esses pontos levantados, podemos admitir que a associação deu-se no diálogo com a ilustração da capa do livro. Contudo, a única afirmação que é confirmada pela capa é acerca da cor preta da pele dos personagens. As transições seguintes, com o automatismo sugerido pelo curto tempo de conexão entre as ideias, não se encontram no desenho, mas em rótulos previamente internalizados pelos sujeitos. O trabalho com a obra As Panquecas de Mama Panya serviu tanto para problematizar a generalização da pobreza para todos os africanos quanto para conhecer estratégias do bem viver mesmo em condições de limitação econômica. De fato, após essa leitura, o único sujeito que insistiu em realçar a pobreza, mesmo à revelia do tema central da discussão, foi Watende (conforme relatado na descrição e análise da primeira sessão de Anansi, o velho sábio), que não havia comparecido a nenhuma das sessões com aquela obra. Assim, devido à sua baixa frequência às sessões, ainda durante a entrevista, essa ideia se fazia presente de forma muito evidente nas noções externadas por Watende acerca dos africanos: PP: Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África: Watende: ... Que:::... Eles eram pobres. PP: Africanos: Watende: ... Que eles não têm comida. PP: Descendentes: 171     Watende: … Nada. (Entrevista final ao pesquisador. Apêndice D) Através do contraste com as demais entrevistas, verificamos que ninguém além dele manteve-se focado na questão da pobreza, o que evidencia uma diferença significativa entre o seu aprendizado e o daqueles que tiveram uma frequência mais assídua às sessões. Tal fato sugere que o trabalho teve alguma eficácia, no combate a essa categoria de preconceito, para os sujeitos que participaram de todas as sessões. 5.3 Avaliação geral da pesquisa 5.3.1 Avaliação das sessões de leitura A principal pergunta sobre a execução das sessões de leitura a ser respondida é: o procedimento de mediação de leitura adotado - baseado nos princípios da andaimagem - revelou-se adequado para o trabalho com as obras de literatura infantil negra na perspectiva que foi planejada? Para respondê-la, devemos avaliar a eficácia das estratégias adotadas em cada uma das etapas da andaimagem, uma vez que elas apresentam objetivos específicos. A fase de planejamento foi fundamental para a condução de todo o processo. Através dos esforços concentrados nessa fase, fomos capazes de prever algumas características da recepção dos sujeitos, planejando antecipadamente as reações da mediadora a elas. De fato, essa fase teve duração longitudinal na condução da pesquisa, tendo sido construída por etapas, desde os objetivos gerais do trabalho às metas traçadas para cada sessão de leitura, passando pela escolha das obras e do exercício de leitura oral delas, até chegar-se a uma prosódia fluida e com o colorido da voz que é capaz de ressaltar determinados elementos do texto. Nesse percurso, destacamos a auto- reflexividade da atividade de planejamento, que nos conduziu a diversas mudanças no plano, de acordo com os resultados preliminares obtidos. Dentre as escolhas metodológicas da etapa de pré-leitura, destacamos o pré-ensino de conceitos como uma estratégia que visou à introdução e à complementação dos 172     conhecimentos prévios dos sujeitos, para assegurar que todos teriam ciência das informações básicas acerca do mundo real que permitissem um contato mais profícuo com o universo ficcional. Esse procedimento demonstra a necessidade de bagagem de mundo para a qualificação da leitura de literatura. Por um lado, essa escolha teve sucesso no alcance desse objetivo, uma vez que possibilitou a construção de conhecimentos de modo transdisciplinar. O diálogo estabelecido entre literatura e ciências sociais contribuiu ainda para o aprendizado acerca das relações entre o real e o ficcional, pelo entrelaçamento dos dois tipos de narrativas. No entanto, houve um preço a ser pago por termos incorrido no perigo das análises históricas generalizantes e apressadas. Tal preço está relacionado às lacunas deixadas nessas análises, que acabam por tornarem-se significativas, quando são preenchidas pelos sujeitos com base naquilo que já sabiam e no que passaram a saber. Assim, por exemplo, o fato de termos deixado de mencionar a escravidão em outros povos, em outras épocas e lugares da história da humanidade pode levar os sujeitos a percebê-la como um problema exclusivamente africano. Nesse sentido, o mais adequado seria que o ensino transdisciplinar fosse levado a cabo a longo prazo, o que traria a oportunidade de aprofundar os conhecimentos dessas áreas correlatas em paralelo, cada uma preenchendo as lacunas deixadas pela outra. De acordo com as concepções teóricas assumidas, os objetivos metodológicos estabelecidos e as reações dos sujeitos observadas, as diversas estratégias de leitura adotadas obtiveram, em geral, êxito em promover a consumação do processo comunicacional que a leitura literária promove. Verificou-se a importância do planejamento prosódico, que fez com que a expressividade sonora da voz da professora melhorasse a cada sessão e, assim, conseguisse maior adesão dos sujeitos ao momento da leitura e repercutisse favoravelmente na compreensão da obra. Na leitura de algumas obras, foram introduzidos elementos musicais e diálogos dramatizados. Com isso, pretendíamos não imitar, mas fazer uma referência à figura do contador de histórias no Brasil, que, por sua vez, é também herdeiro da tradição legada pelos griôs africanos. Fizemos essa referência com base no entendimento de Silva (2012), segundo o qual, o trabalho do griô converge para o conceito de arte total e o lastro de seu espetáculo pode ser observado - ainda que recriado conforme o contexto local (SOUZA, 2011) - no fazer do contador de histórias e, como fruto de um processo de transculturação narrativa, nos próprios registros escritos baseados nos contos da tradição oral. Reafirmamos que o professor não é obrigado a dispor de habilidades musicais ou teatrais, mas é positivo que tenha em mente esse lastro comentado anteriormente, ao 173     mediar a leitura de literatura infantil negra. Assim, é adequado que o mediador procure empregar suas habilidades em favor do enriquecimento dessa experiência, em termos estéticos. Isso pode significar o simples domínio sobre a própria voz, que deve perseguir a variabilidade justa, segundo as possibilidades do texto. Assim, observamos no decorrer das sessões que a professora teve de vencer uma dificuldade inicial em brincar com a própria voz, imprimindo-lhe um colorido de timbres, tonalidades, intensidades, ritmos, etc. As observações iniciais, descritas no capítulo 4, permitem-nos relacionar essa dificuldade aos limites que separam a brincadeira em sala de aula e a autoridade docente. De fato, pode-se argumentar que tanto a professora quanto os sujeitos tiveram nesse trabalho uma oportunidade de aprender acerca desses limites, verificando que, por vezes, ele parece, na verdade, não existir. Trata-se de uma discussão interessante e complexa, que não temos condições de empreender neste trabalho. Pode-se, não obstante, relatar, em solidariedade às dificuldades encontradas pela professora em seu fazer docente cotidiano, que, nas poucas oportunidades em que o pesquisador viu-se obrigado e estar só com a turma, o ambiente tendeu rapidamente para uma manifestação caótica dos eventos, na qual seria difícil empreender as práticas de ensino-aprendizagem conforme planejadas. Na fase de pós-leitura, tivemos como principal atividade a discussão de histórias. Segundo os posicionamentos teóricos defendidos no capítulo 3, e de acordo com os dados expostos e com as análises empreendidas neste capítulo, consideramos que a ação argumentativa da professora durante a discussão de histórias obteve êxito em propiciar aos sujeitos expressarem múltiplos aspectos de sua recepção à obra, como sentimentos, memórias, interpretações, desejos, hipóteses, frustrações, valores, etc. Foi também, conforme já mencionado, um momento muito propício ao debate aberto e franco acerca da diversidade étnico-racial, no qual os sujeitos expressaram diversos argumentos, defendendo desde posicionamentos de respeito e valorização dessa diversidade a posturas abertamente racistas, calcadas em preconceitos cristalizados no senso comum brasileiro. 5.3.2 Respostas dos estudantes A respeito da recepção dos sujeitos, os aspectos mais significativos observados durante as sessões já foram discutidos neste capítulo. Resta-nos, no entanto, refletir acerca dos dados recolhidos durante a rodada de entrevistas individuais que apontam as 174     preferências e as rejeições da turma como um todo dentre as obras lidas. Para avaliar esse quesito, as duas primeiras perguntas que fizemos aos sujeitos foram: 1. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? 2. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? As respostas a esses questionamentos, sem as justificativas, foram organizadas nas tabelas abaixo. Acreditamos que essa análise quantitativa, ao ser contrastada com os discursos expressos nas justificativas, pode endereçar nossa compreensão acerca das identificações e dos afastamentos adotados como resposta ao contato com os personagens ficcionais. Tabela 1 – Quantidade de alunos que preferiu cada obra. Obra Preferida Quantidade de alunos que citaram-na Um safári na Tanzânia 4 O presente de Ossanha 1 Kofi e o menino de fogo 0 Bruna e a galinha d'Angola 5 As Panquecas de Mama Panya 0 Anansi, o velho sábio 6 (Fonte: Informação verbal) Tabela 2 – Quantidade de alunos que rejeitou cada obra Obra Rejeitada Quantidade de alunos que citaram-na Um safári na Tanzânia 0 O presente de Ossanha 1 Kofi e o menino de fogo 3 Bruna e a galinha d'Angola 0 As Panquecas de Mama Panya 0 Anansi, o velho sábio 1 (Fonte: Informação verbal) Percebemos que as preferências se polarizaram, principalmente entre Anansi, o velho sábio e Bruna e a Galinha d’Angola. É relevante sublinhar que todos os 6 sujeitos que elegeram a primeira obra eram meninos e, dos 5 que elegeram a segunda, 4 eram meninas. Além disso, a obra Anansi, o velho sábio foi rejeitada por Lola, que justificou sua posição alegando que o livro era “coisa de menino”. Conforme comentamos acima, esse aspecto de suas recepções havia sido previsto, uma vez que hipotetizamos que o trabalho com Bruna e a Galinha d’Angola funcionaria como um foco de identificação 175     mais significativo para as meninas. Portanto, tal fato nos permite argumentar sobre a importância de se atentar para as questões relativas ao gênero dos personagens, quando da seleção de repertório de leitura, no sentido de buscar-se uma oferta equilibrada entre os gêneros, de modo a favorecer as identificações que encontram na categoria gênero um de seus determinantes. Vale à pena destacar ainda alguns aspectos. Primeiro, que o único sujeito que preferiu O presente de Ossanha, uma das obras de maior complexidade do repertório adotado, foi Arusha, uma das que demonstraram uma compreensão mais aprofundada das histórias lidas, tendo desenvolvido argumentações consistentes para defender seus pontos de vista. Por outro lado, os que alegaram ter preferido Um safári na Tanzânia, que, ao contrário daquela outra, foi a obra lida de estrutura mais simples, foram, em geral, sujeitos que demonstraram uma maturidade leitora menos desenvolvida. Por último, interpretamos que a rejeição a Kofi e o menino de fogo pode estar relacionada à frustração derivada da promessa da presença de elementos fantásticos no título e na capa do conto, que, depois, acaba não se confirmando. Nesse sentido, havíamos comentado acima que essa era a obra mais verossímil dentre as escolhidas, tendo sido, inclusive, baseada em um relato real. Se compararmos com a preferência por Anansi, o velho sábio - a obra com mais elementos fantásticos do nosso repertório - podemos interpretar isso como um indicativo de que os sujeitos valorizaram mais as obras de caráter fantástico. 5.3.3 Respostas da professora e da gestora A professora, ao contrário da perplexidade com que reagiu ao comentário preconceituoso de Bodru na primeira sessão, a partir da terceira, quando a situação reiterou-se, mostrou outra atitude, de questionamento e estímulo ao debate, buscando que os próprios sujeitos expressassem soluções para os conflitos instaurados pela sua própria ação argumentativa. Conforme os relatos, o pesquisador decidiu intervir para auxiliar a professora em uma oportunidade e teve sua intervenção solicitada por ela em outra. Nessas ocasiões, houve dificuldades em se estabelecer uma possível solução para o conflito sociocognitivo instaurado, que, conforme dissemos confronta sujeito-sujeito- texto. Isso mostra a complexidade demandada pela ação argumentativa na discussão de histórias que pode incluir novos complicadores no trabalho com a literatura infantil negra, sobretudo por ser uma temática ainda pouco familiar ao ambiente escolar. Assim, mesmo 176     com a diversidade de estratégias planejadas, tendo em vista os objetivos pré- determinados, por vezes, as respostas inesperadas dos sujeitos exigiram a adoção de soluções diferentes do que fora previsto, obrigando a mediadora a ser flexível, criativa e ágil em suas ações argumentativas. Devido à centralização da pesquisa na figura da professora, é importante considerarmos alguns aspectos acerca do seu perfil e sobre sua avaliação do projeto evidenciada durante a entrevista final. Conforme foi apontado na introdução, a professora possui um perfil de muitos anos de experiência, além de demonstrar sinceridade no seu compromisso com o trabalho docente. Observamos que sua postura em sala de aula e seu modo de falar sobre a turma revelavam proximidade e envolvimento afetivo, de sua parte, com os aprendizes. Por outro lado, sua preocupação em realizar seu trabalho com sucesso levava-a a combater firmemente a indisciplina, inspirando o respeito dos aprendizes. O equilíbrio entre estes dois papéis: o de mestra afetuosa e de autoridade respeitável, foi a chave para a criação de um ambiente propício à aprendizagem ao longo da realização das sessões de leitura. De fato, a indisciplina foi um dos temas mais recorrentes em suas falas. Contudo, sua atitude não era aquela de perseguir a disciplina pela disciplina, mas sim, como uma condição sine qua non para a efetivação do aprendizado. Tanto que, quando questionada na entrevista a respeito do desempenho da turma no projeto, o primeiro fato que ela relacionou foi a melhora na capacidade dos alunos de se concentrarem para ouvir uma história. Além desse, em outros momentos, ela expressou seu contentamento com uma melhora no comportamento da turma. De modo geral, sua avaliação sobre o desempenho da turma foi muito positiva. Contudo, sua avaliação acerca do impacto na escola foi mais contida. PP: Como você avalia a importância deste trabalho no âmbito da escola? Professora: ... Diretamente na escola, por enquanto, eu não sei se teve algum resultado, mas... vai ter / a gente vai continuar, vai querer apresentar pros outros. No momento em que a gente começar a envolver as outras turmas, vai ter um bom resultado também pra escola... (Entrevista final ao pesquisador. Apêndice D) Percebemos, portanto, de um lado, o seu reconhecimento do impacto reduzido do trabalho no âmbito geral da escola, de outro, sua intenção de promover a continuidade e a expansão das atividades realizadas, ampliando os primeiros resultados até alcançar outros sujeitos. Esperamos positivamente que esse intento se cumpra, pois isso significaria um 177     enorme progresso: da capacitação de mediadores de leitura feita por um sujeito externo à escola para o compartilhamento e reconstrução autônoma do conhecimento por parte dos próprios membros da comunidade escolar. Efetivamente, a própria professora reconheceu que, sem os novos conhecimentos aprendidos durante a etapa de formação de mediadores, teria sido muito difícil para ela implementar adequadamente a mediação de leitura de literatura infantil negra nos moldes como foi feita. Ela apontou seu escasso conhecimento inicial sobre a África como empecilho e generalizou o alcance do problema para seus colegas professores. PP: Na sua opinião, quais foram as maiores dificuldades para a condução deste trabalho? Professora: Primeiro, por não conhecer tanto sobre a África. Isso foi um / por mais que a gente tenha estudado, eu acho que eu tenho que me aprofundar mais ainda. Eu / quando eu falo eu, são todos os professores. A gente conhece pouco e a gente tem muitas ideias erradas, que eu fui desconstruindo e isso me ajudou. (Entrevista final ao pesquisador. Apêndice D) Portanto, na ausência do pesquisador na escola, para que haja uma sistematização mais sólida desse tipo de trabalho, um dos poucos caminhos que restam é a auto- organização dos educadores, talvez com o apoio da secretaria de educação, no sentido de promover a capacitação dos demais sujeitos da escola. Poderíamos então dizer, em outras palavras, que, no contexto observado, o cumprimento de uma lei nacional, válida para toda a educação básica, depende basicamente do trabalho de uma professora, que é quem mais tem consciência da sua importância para os alunos e para a escola como um todo. Tal situação de precariedade na implementação da lei foi observada em outras pesquisas em escolas de todo o território nacional (BRASIL, 2012), onde o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira exigido por lei era fruto exclusivo do trabalho de uma ou de um grupo limitado de professoras mais sensíveis ao tema. De fato, trata-se de uma dificuldade análoga àquela enfrentada pela escola para cumprir a exigência de se incluir alunos com algum tipo de deficiência sem que sejam oferecidas em troca as condições propícias para tanto. Quer dizer, os professores são obrigados por lei a ensinar um conteúdo curricular sobre o qual têm poucos conhecimentos, devido a uma deficiência na sua própria formação, no que tange aos conteúdos relacionados aos negros e à África. 178     Essa situação havia sido prevista pelos legisladores, que incluíram no texto da lei encaminhado para o parecer do poder executivo o artigo 79-A, cujo conteúdo era o seguinte: Art. 79-A. Os cursos de capacitação para professores deverão contar com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das universidades e de outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria. (BRASIL, 2003) Contudo, esse artigo foi vetado pela presidência da república, após consulta ao MEC, que alegou a seguinte justificativa: Verifica-se que a Lei nº 9.394, de 1996, não disciplina e nem tampouco faz menção, em nenhum de seus artigos, a cursos de capacitação para professores. O art. 79-A, portanto, estaria a romper a unidade de conteúdo da citada lei e, consequentemente, estaria contrariando norma de interesse público da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, segundo a qual a lei não conterá matéria estranha a seu objeto (art. 7º, inciso II). (BRASIL, 2003) Portanto, vemos que o veto baseou-se em uma análise de cunho eminentemente burocrático sem que, todavia, fosse apontada qualquer solução alternativa para o problema que o artigo 79-A visava atacar, qual seja, a da formação deficitária dos professores da educação básica para que pudessem efetivamente cumprir a lei. Fato é que, posteriormente, as DCN-ER e a Resolução CNE/CP 01/2004, apontaram obrigações de outros atores dos sistemas de ensino brasileiros, no sentido de criar condições para um trabalho efetivo por parte dos professores. Mas, ainda assim, consideramos que o veto a esse artigo prejudicou o processo de implementação da Lei 10.639/2003, por suprimir a ênfase conferida inicialmente à necessidade de capacitação dos professores para atuarem na temática a que se refere a lei e deixar uma lacuna em seu lugar. Como indicam os dados recolhidos nesta pesquisa, passados 13 anos da sua publicação, tal lacuna ainda é um dos grandes entraves à implementação da lei. Por conseguinte, importa-nos fazer a ressalva de que o trabalho com as identidades étnicas só poderá ter sucesso na democratização das relações étnico-raciais na escola se o professor tiver consciência de como contextualizar as representações dos negros com o processo histórico-cultural que as produziram. Caso contrário, No momento em que o significante “negro” é arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em uma categoria racial biologicamente constituída, valorizamos, pela inversão, a própria base do racismo que estamos tentando desconstruir (HALL, 2006, p. 327). 179     Conforme veremos a seguir, uma vez mais, os dados apontam para o despreparo de professores e gestores para lidar com questões relativas às identidades étnicas, que os leva a resolver a questão folclorizando-as. Fazendo isso, os educadores subvertem a valorização da diversidade em essencialização da diferença, que acaba não fazendo diferença alguma: o negro celebrado no calendário escolar, no dia 20 de novembro, e invisível durante o resto do ano. Esse tipo de postura, em vez de incluir, reforça a segregação, ao demarcar, mais ou menos nitidamente, as fronteiras que separam as tradições “deles” em confronto com as “nossas”. Tais fronteiras coincidem com a dicotomia enraizada no pensamento social brasileiro, entre cultura letrada e cultura popular, que, de acordo com Sodré (2000, p. 19), faz com que a escola tradicional em nosso país nutra-se quase que exclusivamente da cultura oficial patrimonialista, de viés eurocêntrico. Trata-se de uma postura segregante, pois mantém fora da escola todas as manifestações culturais que não têm na escrita seu suporte principal e que não gozam do status de monumento cultural oficializado. Assim, a escola tenderia a ignorar todo o manancial de sabedoria popular oriundo das culturas brasileiras de transmissão oral. Sodré (2000, p. 27) classifica esses sistemas de conhecimento como saberes do território, uma vez que eles nascem das relações de produção cotidianas entre os indivíduos e a terra e são de extrema relevância para a sobrevivência das comunidades. Tratar essa sabedoria como saberes alheios, indignos de serem trabalhados pela escola, pode piorar o problema do desenraizamento comunitário, uma das consequências degradantes da alienação cultural (FANON, 1983), ou da alienação da vida cotidiana (BUENDGENS e CARVALHO, 2016), ou da condição de hospedeiro do opressor (FREIRE, 1987). Todavia, a obrigatoriedade da inserção de conteúdos curriculares oriundos das culturas populares nas escolas, sem que haja um investimento sólido de esforços na capacitação dos educadores e gestores da educação, pode redundar na reafirmação de estereótipos preconceituosos e, por conseguinte, da hierarquização dos saberes. Nesse sentido, durante a entrevista com um membro da equipe gestora da escola, recolhemos exemplos esclarecedores do quanto preconceito e desconhecimento podem se casar, reforçando, inadvertidamente, o status quo: Pesquisador: - Sua escola desenvolve alguma ação no sentido de tentar fazer cumprir a Lei 10.639/2003? 180     Gestora: - Não. [...] Eu até sugeri pras meninas de a gente ver um projeto da escola, mas não senti muito interesse em se fazer esse projeto. E, como a gente não tem alunos negros, a gente nem percebe muito isso, mas é uma necessidade, mesmo sem ter negros, porque eles convivem com outras pessoas, que têm que respeitar. A gente procura trabalhar no sentido da ética mesmo, de respeitar os outros. Mas, o conteúdo em si eu não sei como as meninas vêm trabalhando, não. Eu acho que elas continuam trabalhando como toda escola, dentro da história do Brasil, da época da escravatura, em que chegaram os negros e não sei o quê… Mas não se aprofundam muito não. Eu disse até outro dia… A gente tem que trabalhar... Essa nossa cultura - a gente tava trabalhando o folclore - que nós temos hoje, é descendente de onde? De negros e índios… E portugueses, depois. Então, se a gente aproveitar isso pra aprofundar, é um momento bom pra se trabalhar, né? Principalmente porque se trabalha mais nessa época, do folclore. (Entrevista final ao pesquisador. Apêndice D) Portanto, reafirmamos a necessidade de diversificação da experiência negra nas representações escolarizadas, retratando desde as sociedades tradicionais africanas ao cidadão urbano brasileiro de hoje. Trata-se de uma situação extremamente delicada para os educadores, pois, se por um lado, reconhecer traços de continuidade entre esses dois momentos pode fortalecer laços com as raízes históricas, por outro, pode reforçar estereótipos essencialistas. Essa foi uma das razões que nos levou a realizar a etapa de formação com a professora colaboradora e o planejamento conjunto e detalhado das estratégias de mediação, que, conforme vimos, possibilitaram aos alunos dos AIEF argumentarem, construindo coletivamente conhecimentos acerca dessas questões complexas. Reiteramos, assim, a necessidade de os professores e gestores da educação básica receberem formação específica que os capacitem a empreender o ensino de histórias e culturas negras e indígenas visando o empoderamento dessas comunidades étnicas para que elas exerçam papéis preponderantes na luta pela democratização das relações étnico-raciais no Brasil. Outro aspecto discutido amplamente neste trabalho e que não podemos deixar de ressaltar no discurso da gestora é a respeito de estratégias que possam promover o efetivo cumprimento da Lei 10.639/2003. Com efeito, quando a escola foi interpelada pelas autoridades que fiscalizam o cumprimento da lei, a gestão apontou o nosso projeto de intervenção como prova de que a exigência legal era cumprida e solicitou-nos que 181     enviássemos o projeto por e-mail (ainda que uma cópia impressa tivesse sido entregue à escola no dia da primeira visita do pesquisador), conforme o trecho da entrevista transcrito abaixo. PP: A Secretaria de Educação faz alguma cobrança em relação ao cumprimento dessa lei? Gestora: Cobram. Inclusive, eu até mandei, é::: / eles mandaram u:::m / o Ministério Público, na verdade é através do Ministério Público. Então, eles mandaram um e-mail pra escola, perguntando como era que se estava trabalhando a cultura afro e indígena dentro da escola. Aí, eu até relatei que você tava desenvolvendo um projeto dentro da escola pra o 3º ano e os demais trabalhavam dentro da disciplina de Estudos Sociais, né, de... / da disciplina normal, de Estudos Sociais com a História... / PP: Sim, foi daquela vez que você me pediu o projeto, né? Gestora: Foi. PP: Eu achei que fosse a secretaria de educação que tava pedindo. Gestora: É a secretaria que pede porque o Ministério Público pede, entendeu? Cobra. Mas não foi o Ministério Público que mandou o e-mail, foi a DIRED que mandou. Pra quê? Pra prestar contas pro Ministério Público, que tá cobrando da Secretaria. PP: Certo. Gestora: Aí, eu não mandei o projeto, porque era muito extenso e, quando eu fui ler, eu vi que o seu projeto era um projeto de pesquisa e não definia que tipo de conteúdo, como era que tava / definia a sua pesquisa. Aí, eu perguntei pra elas se elas queriam que eu anexasse. Aí disse: não, você diz só que / relata o que::: tá desenvolvendo, mas, se for preciso, a gente pede. Eu não imprimi. Porque era grande o projeto, né? Aí eles disseram: não, tudo bem. Eu disse: é porque o rapaz tá fazendo uma pesqui:::sa. Aí, tá trabalhando... né... trabalhando com a turma do 3º a:::no / a experiência / trabalha com vídeos, com livros, literaturas e tudo mais. Aí eu botei no relatório só isso. Mas a gente sabe que é uma defasagem mesmo, nas escolas, mas que tão, já começando a pegar no pé. (Entrevista final ao pesquisador. Apêndice D) 182     As respostas da gestora permitem entrever que não só a lei, mas nem mesmo o processo de fiscalização do cumprimento da lei é efetivo, reduzindo-se ao envio de um relatório que menciona um projeto, o qual, todavia, não necessita ser anexado. Desse modo, a quase ausência do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira observada inicialmente na escola transfigura-se facilmente numa presença imprecisa em um instrumento da burocracia escolar, que, ao que parece, bastou para convencer os órgãos fiscalizadores da observância das exigências legais. 183     CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa explorou as possibilidades de trabalho com obras de literatura infantil negra, como meio de cumprir objetivos de pesquisa alinhados com aqueles expressos nas DCN-ER (BRASIL, 2004), mas mantendo a centralidade na leitura do texto literário em si e no prazer que essa atividade proporciona. Para isso, recorremos ao modelo de pesquisa-ação participante com características de intervenção. Esse modelo revelou-se uma alternativa viável para a efetivação de um modo de construção compartilhada do conhecimento, no qual os sujeitos emergem da condição de pesquisados e assumem um papel ativo na produção do saber. De modo que, nos resultados obtidos, há as marcas do esforço individual dos diversos sujeitos envolvidos, que, ao longo de todo o processo, demonstraram interesse e boa disposição em colaborar com a pesquisa. Acreditamos que o processo de investigação científica com essas características podem colaborar para diminuir o distanciamento e a hierarquização entre os saberes construídos no âmbito acadêmico e no contexto escolar. De fato, o trabalho de conjugar o ensino de literatura e a educação das relações étnico-raciais constituiu um grande desafio em vários níveis, por isso, muitas vozes foram solicitadas para colaborar para o sucesso da empresa. No que tange ao embasamento teórico, tivemos a ousadia de entrelaçar outras linhas na intrincada urdidura de padrões da rede de sentidos implicados na formação do leitor literário. Dentre as novas linhas teóricas trançadas, sobressaem-se os conhecimentos advindos da antropologia, das ciências sociais e dos estudos culturais, aos quais recorremos para discutir as questões identitárias e étnico-culturais implicadas no trabalho pedagógico com a literatura infantil negra. Por um lado, essa amplitude alargada do escopo teórico permitiu a construção de um saber transdisciplinar, no qual as inúmeras facetas convergem para o enriquecimento da formação do leitor de literatura. Por outro lado, no intuito de considerar muitos pontos de vista acerca do fenômeno, talvez tenhamos tido dificuldades de aprofundar as discussões empreendidas. Admitimos que algumas das questões levantadas possam ter ficado em aberto, contudo, acreditamos ter conseguido montar um amplo painel que pode servir como ponto de partida para que os educadores consigam inteirar-se da complexidade envolvida nessa situação pedagógica e possam, posteriormente, aprofundar os aspectos que mais lhe interessem. Dentro do ferramental teórico utilizado para orientar o tratamento pedagógico da literatura infantil negra, ressaltamos a relevância do estudo das teorias do 184     multiculturalismo e de suas consequências para a educação. De fato, essas teorias tornaram-nos cônscios sobre as dificuldades envolvidas no tratamento pedagógico de conteúdos que envolvem as noções de identidade e diferença, alertando-nos sobre os riscos envolvidos nesse trabalho, como as armadilhas que podem levar à essencialização das identidades ou à celebração acrítica das diferenças. Dentre os pressupostos acerca da leitura de literatura, a teoria do efeito estético pôde orientar-nos acerca das vantagens advindas do contato íntimo com o texto literário e sobre a necessidade de se considerar, para além dos significados construídos, outras características das respostas dos sujeitos ao texto, como as sensações, emoções e afetos despertados pela atividade de leitura literária. Consequentemente, procuramos implementar uma prática de leitura que realçasse os apelos das obras literárias adotadas à sensibilidade do leitor, no intuito de reforçar o efeito estético fruto das qualidades artísticas próprias da obra. Nessa perspectiva, os estudos sobre mediação pedagógica possibilitaram-nos compreender a centralidade da mediação nos processos de desenvolvimento humano. Esse entendimento levou-nos a refletir sobre a importância do papel do mediador de leitura na exploração conjunta deste signo cultural altamente sofisticado que é o livro de literatura infantil. Assim, conjugando esse aspecto com o postulado teórico da natureza inclusiva da literatura, chegamos ao entendimento de que o mediador de leitura tem a função de possibilitar a entrada dos alunos no jogo literário, que o desafia e convida a incluir-se na brincadeira do faz de conta, que, no fim das contas, pode trazer sérias e duradouras consequências para seu desenvolvimento humano em geral. Assim, conforme mencionamos, o método de mediação de leitura por andaimes, no que lhe concerne, demonstrou-se como uma eficaz ferramenta de mediação, potencializando o apelo das obras à sensibilidade leitora, a atribuição de sentidos aos textos, a identificação com personagens ficcionais, dentre outras propriedades da leitura de literatura. Na construção da etapa interventiva, base da nossa metodologia, ressaltamos as vantagens advindas do foco na fase de planejamento e no emprego das etapas de discussão antes e depois da leitura. O cuidado com o planejamento proporcionou, além da escolha criteriosa das obras literárias, a antecipação de determinadas características das respostas dos sujeitos a elas, dentre outros ganhos. As etapas de discussão enriqueceram sobremaneira o trabalho, pois, através delas, estabeleceu-se o compartilhamento multidirecional de conhecimentos, memórias, emoções e interpretações, no qual os sujeitos deixaram de ser infantes (sem voz), ao terem sua expressão encorajada e 185     valorizada. Na mediação dessas etapas, a ação argumentativa da professora ofereceu condições para que os sujeitos desenvolvessem argumentos mais complexos. Na diversidade de suas respostas está a chave para a construção coletiva e democrática do conhecimento, onde todos têm a possibilidade de defender seus pontos de vista. Chamamos a atenção para o fato de que, de acordo com as observações realizadas, o contato sistemático com a literatura infantil negra e a discussão de questões ligadas à diversidade étnico-racial que daí emergem configuraram, para muitos sujeitos, um caso inédito em sua vida escolar. Esse fato realçou ainda mais a diversidade de respostas, já que, na ausência de conhecimentos escolarizados comuns sobre o tema, cada sujeito mobilizou suas memórias de experiências não escolarizadas para construir seus pontos de vista. Dentre as reações, classificamos, por um lado, aquelas de estranhamento e afastamento, com a reafirmação de preconceitos difundidos socialmente; por outro lado, as de identificação, seja por espelhamento ou por alteridade, que permitiram aos sujeitos vestir a pele negra dos personagens ficcionais, vivendo experiências diversas pela sua ótica. De modo que, na atividade de discussão de histórias, os sujeitos puseram em confronto esses diferentes posicionamentos através de argumentos que visavam solucionar as problemáticas instauradas pelos questionamentos da mediadora. Portanto, afirmamos que esse tipo de atividade configura um passo importante para a democratização das relações étnico-raciais na escola, por romper com o silêncio da escola tradicional acerca da diversidade étnico-racial, das histórias e das culturas negras e do racismo, do preconceito e da discriminação racial. Assim, verificamos que, através da leitura mediada de literatura infantil negra nos moldes da andaimagem, os sujeitos tiveram a oportunidade inédita de construir um aprendizado significativo e transdisciplinar acerca dos negros, de suas culturas e sobre a construção histórica das desigualdades que originaram sistemas racistas de hierarquia, dos quais nascem as restrições discriminatórias e o preconceito contra os negros. Todavia, como sabíamos a priori acerca da insuficiência de uma proposta pedagógica efêmera como a que foi implementada para a efetiva democratização das relações étnico-raciais na escola onde se realizou a pesquisa, uma das primeiras preocupações subsequentes à saída do pesquisador do campo foi sobre as possibilidades de continuidade do trabalho desenvolvido. Deveras, pelo fato de somente uma professora ter participado do curso de formação, os efeitos advindos do projeto ficaram bastante restritos ao universo da turma pesquisada. De modo que a continuidade e a expansão do trabalho de formação de leitores com a literatura infantil negra dependem, naquela escola, 186     sobremaneira, da atuação futura da professora colaboradora. Por mais que, de certo modo, o alcance centrado somente em uma professora possa ser considerado limitado, isso não impede que ela se articule com outros sujeitos para implementar ações que levem à institucionalização do ensino de literatura infantil negra na escola. Então, tendo em vista o conjunto das reflexões teóricas, dos relatos de pesquisa e das análises empreendidas, chegamos ao final com muitas incertezas, advindas da tomada de consciência da própria ignorância frente ao universo negro, aos sistemas de conhecimento afrocêntricos, às culturas negras brasileiras, aos meios adequados que possam levar-nos, finalmente a superar a hierarquização racial da sociedade embasada nas estruturas de pensamento colonizadas; enfim, frente ao manancial de saberes úteis à autoafirmação do negro que nos foi sistematicamente negado na história da educação brasileira. Não podemos negar, porém, que os educadores comprometidos com a causa da inserção adequada das culturas e histórias negras no currículo escolar vêm construindo de forma colaborativa respostas criativas que apontam caminhos promissores para o enfrentamento desse desafio. Mesmo assim, podemos afirmar que estamos ainda em uma fase tão embrionária do processo, que talvez seja mais útil procurar fazer as perguntas certas do que apressar-se em encontrar fórmulas prontas. Portanto, esta pesquisa não se coloca como modelo, mas como uma possibilidade de diálogo com outras experiências distintas que visam reinventar a escola, para que ela se torne o lugar, por excelência, do convívio cidadão e igualitário, onde as diferenças possam prosperar a partir de condições igualitárias. Dessa maneira, defendemos que, enquanto não forem criadas as condições para uma radical mudança nas mentalidades e nas práticas coroadas pelo senso-comum escolar (imbuídas da herança histórica do racismo institucional), o olhar neutralizador das diferenças, que conduz ao tratamento homogeneizante (leia-se branqueador) conferido aos alunos, continuará fazendo parte das rotinas diárias dos aprendizes, dificultando a afirmação e a valorização de identidades étnicas não brancas - que permanecem na invisibilidade - mas sendo facilmente escamoteadas perante o frouxo controle exercido pelo poder público. Apesar disso, a luta pela igualdade racial, honrando todos os heróis do passado que combateram por essa causa, mantém-se firme, sobretudo na práxis diária daqueles que conhecem o verdadeiro valor da cultura negra na formação da nação brasileira e, a exemplo do moleque de O Presente de Ossanha, extraem desse conhecimento a coragem para enfrentar estruturas de ação e pensamento consolidadas, pautando a necessidade de 187     se corrigir a distorção histórica criada pelo ideal de branqueamento, que orientou diversas políticas públicas, inclusive para a educação (CRUZ, 2005; GARCIA, 2007). Do ponto de vista do Movimento Negro, essa correção deve ser feita através do enegrecimento dos sistemas de ensino do país (SILVA, 2010, p. 41), que passa também pela introdução dos modos de pensar negros na cultura institucional da escola. Isso lhes permitiria construir livremente suas identidades e significaria, para os não negros, a possibilidade de compreender sistemas de pensamento distintos dos seus, em um processo onde todos ganhariam em cidadania. Conforme apontam os documentos oficiais da educação mencionados (BRASIL, 2004, 2006, 2008), as responsabilidades são múltiplas e de vários atores, mas os professores, por sua vez, precisam buscar ativamente os conhecimentos, através da pesquisa - que é uma atividade própria do seu ofício - e da exploração dos recursos de que a escola dispõe que possam ser usados para pôr em prática o ensino de cultura e história africana e afro-brasileira, em que a literatura é sólida contribuinte. Aqui entra a importância da biblioteca, da leitura, da literatura e dos livros de literatura infantil negra em particular, que estão na maioria das bibliotecas das nossas escolas públicas e precisam ser lidos por toda a comunidade escolar. Pela experiência que vivenciamos com esta pesquisa, podemos afirmar que as dificuldades encontradas no caminho serão muitas. Por isso, torna-se fundamental que essa não seja uma tarefa solitária, mas que procure inserir- se nas redes colaborativas já constituídas desde as escalas locais à global, com vistas à reflexão conjunta e descentralizada para a gênese de estratégias de transformação da realidade. Portanto, é somente desse fazer compartilhado, desse Harambee (CHAMBERLIN, CAIRNS, 2005) ou dessa dança de roda que pode nascer a pedagogia radicalmente democrática e libertária, que possibilitará aos negros libertarem-se a si próprios através da educação e afirmarem uma nova identidade nacional, nascida do contato com velhas identidades que já aqui estão há muito tempo. As histórias-sementes foram mais uma vez lançadas sobre uma terra onde outras tantas já brotaram e que esconde camadas sobrepostas de raízes mais e mais antigas das majestosas histórias-árvores que aqui cresceram e ramificaram-se. Cumpre-nos aprender juntos a arte do cultivo de histórias, cultivando-as. Assim sendo, uma vez que as narrativas também são estruturantes do pensamento (BRUNER, 1998) propomo-nos a encerrar o trabalho com uma história recontada a partir da tradição oral, retirada do livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, que explica o surgimento da agricultura. 188     Orixá Ocô cria a agricultura com ajuda de Ogum No princípio, havia um homem que se chamava Ocô. Mas Ocô não fazia nada o dia todo, não havia o que fazer, simplesmente. Quando os alimentos na Terra escassearam, Olorum encarregou Ocô de fazer plantações. Que plantassem inhame, pimenta, feijão e tudo mais que os homens comem. Ocô gostou de sua missão, ficou todo orgulhoso, mas não tinha a menor ideia de como executá-la. Até que viu, debaixo de uma palmeira, um rapaz que brincava na terra. Com um graveto ele revolvia a terra e cavava mais fundo. Ocô quis saber o que fazia o rapaz. "Preparando a terra para plantar, para plantar as sementes que darão as plantas", explicou o rapaz de pele reluzente. "Que sementes, se nem plantas ainda há?", perguntou, incrédulo, Ocô. "Nada é impossível para Olodumare", foi a resposta. Começaram então a cavar juntos a terra. O graveto que usavam como ferramenta quebrou-se e passaram então a usar lascas de pedra. O trabalho, entretanto, não rendia e Ocô saiu a procura de alguma maneira mais prática. Outro dia, quando Ocô voltou sem solução, o rapaz tinha feito fogo, protegendo-o com lascas de pedra. Viram então que a pedra se derretia no fogo. A pedra líquida escorria em filetes que se solidificavam. "Que ótimo instrumento para cavar!", descobriu efusivamente o inventivo rapaz. Ele pôde então usar o fogo e fazer lâminas daquela pedra, e modelar objetos cortantes e ferramentas pontiagudas. Ele fez a enxada, a foice, e fez a faca e a espada e tudo o mais que desde então o homem faz de ferro para transformar a natureza e sobreviver. O rapaz era Ogum, o orixá do ferro. Juntos revolveram a terra e plantaram e os alimentos foram abundantes. E a humanidade aprendeu a plantar com eles. Cada família fez a sua plantação, sua fazenda, e na Terra não mais se padeceu de fome. E Ocô foi festejando como Orixá Ocô, o Orixá da Fazenda, da plantação, pois fazenda é o significado do nome Ocô. E Ogum e Orixá Ocô foram homenageados e receberam sacrifícios como os patronos da agricultura, pois eles ensinaram o homem a plantar e assim superar a escassez de alimentos e derrotar a fome. (PRANDI, 2001, p. 174-175, grifos do autor) 189     Tal narrativa pode ser vista como uma parábola que ilustra bem nossa argumentação final. Nós, professores, formadores de leitores e educadores em geral, sentimo-nos honrados com a tarefa de cultivar histórias para saciar a fome literária, advinda da escassez de histórias negras no país, mas não sabemos como cumpri-la. Contudo, devemos lembrar que as gerações mais jovens, com sua fé renovada, sua curiosidade e sua inventividade podem ajudar-nos. Dessa união é que pode nascer o conhecimento útil, que fará a terra dar mostras de sua fertilidade, saciando a fome de todos com o desabotoar de mais e mais histórias negras. Os frutos dessa lavoura literária coletiva ninguém conhece ao certo, mas podem ser o despertar da consciência que combate intransigentemente a injustiça social, já que a literatura inspira os homens e mulheres a imaginarem novas formas do viver e, em particular, a literatura infantil negra pode convencer os jovens cidadãos de que a convivência igualitária e harmônica entre as diversas formas de sermos humanos é perfeitamente possível e está em suas mãos torná-la realidade. 190     REFERÊNCIAS ABRAMOWICZ, A.; LEVCOVITZ, D. Tal infância. Qual criança? In: ABRAMOWICZ, A.; SILVÉRIO, V. R. (Orgs.). Afirmando as diferenças: montando o quebra-cabeça da diversidade na escola. Campinas: Papirus, 2005. ADAM, J. M.; REVAZ, F. A análise da narrativa. Lisboa: Gradiva, 1997. ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. 2009. Disponível em: Acesso em 13 mai. 2016. AGUIAR, V. T. de; BORDINI, M. da G. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto,1993. 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Natal, 2005. 199     APÊNDICES APÊNDICE A – PLANO DO CURSO DE FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE LEITURA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE EDUCAÇÃO – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE LEITURA PARA OS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL PROF.º WAGNER RAMOS CAMPOS PLANO DE CURSO DADOS DA FORMAÇÃO Horário/Local: Quinta-feira – tarde – 12:45h – 14:45h Ementa: ARGUMENTAÇÃO E ANDAIMAGEM NA AULA DE LITERATURA Estuda os processos de argumentação e andaimagem em contexto de mediação de ensino de literatura. LITERATURA INFANTIL E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA ESCOLA Investiga as correlações entre o trabalho de mediação de leitura de literatura infantil negra e as relações étnico-raciais na escola fundamental. Objetivo: Promover a capacitação de mediadores de leitura para o trabalho de mediação de leitura oral de literatura infantil negra em uma lógica de formação leitora que privilegie a experiência estética literária, visando a promoção da construção afirmativa das identidades negras e o combate ao racismo. CRONOGRAMA DE AULAS 25/09/2014 – AMARILHA, M. Silêncio: a hora da narrativa na escola 02/10/2014 – AMARILHA, M. Literatura infantil e prática pedagógica 16/10/2014 - AMARILHA, M. Literatura infantil: por uma pedagogia do imaginário 23/10/2014 - AMARILHA, M. A criança e a ficção 30/10/2014 – SOUZA, M. S. Sugestões para estudos africanos na área de literatura 06/11/2014 – FREITAS, A. C.; LOPES, M. F. L. Você concorda com o personagem? Vamos discutir? Relações interativas em discussões de histórias mediadas pelo professor 200     13/11/2014 – OLIVEIRA, V. C. S. Literatura infantil, relações raciais e ideologia 20/11/2014 - GRAVES, M. F.; GRAVES, B. B. The scaffolding reading experience: a flexible framework for helping students get the most out of text 27/11/2014 – FREITAS, A. C. Leitura, literatura, inclusão: caminhos possíveis 04/12/2014 - AMARILHA, M. Literatura e oralidade: escrita e escuta 11/12/2014 – Síntese e perspectivas REFERÊNCIAS AMARILHA, M. Estão mortas as fadas? Literatura infantil e prática pedagógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. AMARILHA, M. Literatura e Oralidade: escrita e escuta. In: DAUSTER, T; FERREIRA, L. (orgs.). Por que ler? Perspectivas culturais do ensino de leitura. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010. FREITAS, A. C. Leitura, literatura, inclusão: caminhos possíveis. In: AMARILHA, M. (org.). Educação e Leitura: redes de sentidos. Brasília: Liber Livro, 2010. p. 101 – 111. FREITAS, A. C.; LOPES, M. F. L. Você concorda com o personagem? Vamos discutir? Relações interativas em discussões de histórias mediadas pelo professor. In: AMARILHA, M. (org.). Educação e Leitura: novas linguagens, novos leitores. Campinas: Mercado de Letras, 2012. p. 119 – 129. GRAVES, M. F.; GRAVES, B. B. The scaffolding reading experience: a flexible framework for helping students get the most out of text. In: Reading, April. 1995. OLIVEIRA, V. C. de S. Literatura infantil, relações raciais e ideologia. In: ______. Educação das relações étnico-raciais e estratégias ideológicas no acervo do PNBE 2008 para a Educação Infantil. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. p. 38 – 53. SOUZA, A. M. de. Sugestões para estudos africanos na área de literatura. In: ______. A Lei 10.639/2003 e a literatura luso-africana e afro-brasileira na escola. 2013. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2013. p. 92 – 100. APÊNDICE B – PLANO DE LEITURA DAS OBRAS LITERÁRIAS 1º LIVRO: UM SAFÁRI NA TANZÂNIA 1ª FALA (Professor Pesquisador): Contextualização das sessões de leitura Temas: África do Leste (Tanzânia), Povo Massai, Animais da savana em seu habitat. Tópicos: Nomes (de pessoas e de animais) e números em kiswahili (língua de origem Bantu, assim como as de Angola, que acabaram influenciando o português do Brasil). 201     Vocabulário: em jejum, orvalhadas, cratera (de vulcão), manadas, sol a pino, Serengeti, afoito, tropéis, savanas. Conhecimento prévio: Animais, safári, meio ambiente africano, “Hakuna Matata” (língua kiswahili), Madagascar (África do Leste). Ilustrações: Personagens negros representados como protagonistas, dos quais a maioria é de crianças. A estética do povo Massai (tipos físicos, ações, gestos, posturas, vestimentas, enfeites, objetos). Ressaltar a alegria, as habilidades e a união dos Massai, aproveitando as ilustrações para ajudá-los a construir uma imagem simpática e afetuosa deles. Obstáculos: pronúncia de fonemas pouco conhecidos do idioma kiswahili. Facilitadores: repetição de chaves de leitura, realidades africanas com as quais os aprendizes já tiveram contato através da mídia ou da escola (África selvagem, dos safáris e das tribos). Objetivos de leitura: Cativar a simpatia dos leitores aprendizes por um povo do continente africano. Através de temas caros às crianças e presentes em seu universo (como animais, p. ex.) e de um livro de leitura fácil e agradável, propõe-se uma introdução lúdica à África e a seus povos, que serão tema de todas as seguintes sessões de leitura. O que o estudante ganha com a leitura: Conhecer melhor, de forma lúdica, um povo africano e o meio ambiente que o cerca, que são bem diferentes de suas realidades. O conhecimento de outras culturas ajuda a construir um diálogo a favor da valorização das diferenças e contra os preconceitos. PRÉ-LEITURA: I. Por tratar-se do primeiro dia, é importante apresentar algumas noções de Geografia: Localizar a África no globo, partindo do Brasil. Com um lápis, traçar uma linha vertical, dividindo a África em leste e oeste, depois traçar uma horizontal, dividindo em norte e sul. Assim, revisa-se os pontos cardeais e pode-se nomear alguns países e/ou paisagens que eles conhecem em cada uma das regiões formadas, iniciando a desconstruir a ideia de África una e homogênea. Focalizar na África do Leste: Madagascar – desenho, Moçambique – idioma português, Quênia - palco da outra história, Tanzânia – palco da história do dia. Falar do Parque Nacional do Serengeti, onde moram alguns Massai, comparar com o Parque das Dunas (Área de Preservação Ambiental). II. Motivação: Vamos conhecer o povo Massai! Falar da cerimônia do pulo, para retomá-la ao final da pós-leitura. III. Vocabulário: pré-ensinar o vocabulário. IV. Ativação do conhecimento prévio: Da última palavra (savana) perguntar se, a partir da leitura da capa, eles conseguem dizer os nomes de animais que vivem na savana. V. Motivação: Questionar se eles sabem o que é um safári e convidá-los a fazer um, na companhia das crianças do povo Massai. 202     VI. Motivação: Além disso, ainda aprenderemos a dizer alguns nomes e números no idioma kiswahili! LEITURA: • Leitura em voz alta da mediadora. (Pode-se combinar estratégias de leitura coletiva com os alunos.) • Fazer a 2ª leitura a 4 vozes, um para cada verso: ◦ 1º – Grande grupo ◦ 2º – Grupo A ◦ 3º – Grupo B ◦ 4º Mediadora (podendo ser que ela leia o número em swahili). • Leitura oral da última página (dos números em swahili), primeiro da mediadora, depois do grande grupo. • Escolher 10 crianças para fazerem a 3ª leitura, cada um de uma página, sendo que os números serão ditos pelo grande grupo em kiswahili. PÓS-LEITURA: • Explorar os elementos sobre os animais que há no livro (não sei se vale a pena ler todo o texto). Repetir com as crianças os nomes dos animais em kiswahili. • Explorar os elementos sobre o povo Massai que há no livro (não sei se vale a pena ler todo o texto). • Explorar os elementos sobre os nomes que há no livro. Mostrar os escudos e ler os significados. • Explorar os elementos sobre a Tanzânia que há no livro (não sei se vale a pena ler todo o texto). • Perguntas: ◦ 1- O que vocês sentiram quando lemos a história? ◦ 2- Você gostaria de ser como uma criança Massai na savana? ◦ 3- De que animais vocês mais gostaram? • Leitura guiada pela mediadora das ilustrações. 2º LIVRO: O PRESENTE DE OSSANHA Temas: Amizade, Escravidão vs Resistência e Liberdade,. Tópicos: Os Orixás e suas histórias, presentes. 203     Vocabulário: engenho de açúcar, visgo, [onça-gomes, quibungo, ipupiara, joão-do-mato], [Ossanha, Xangô, Olorum, Iansã], horto, cora. Conhecimento prévio: brincadeiras, amizade, presentes, personagens folclóricos, passarinhos. Ilustrações: Desenhos de traços simples que facilitam muito a compreensão das cenas, representações dos Orixás. Obstáculos: Muitos elementos novos. A leitura exige maior grau de abstração, por se passar num tempo remoto, de costumes diferentes dos de hoje. Facilitadores: A linguagem simples e direta, assim como as ilustrações. Objetivos de leitura: Conhecer, através da história de um menino, aspectos da realidade dos primeiros africanos vindos para o Brasil, valorizando sua história. Ao mesmo tempo, conhecer um pouco sobre estórias das divindades africanas, trazidas para cá com eles. O que o estudante ganha com a leitura: A história promove a identificação dos leitores com um herói que é um menino negro, levando-os a admirar suas atitudes e solidarizar-se com ele. Isso pode contribuir para a valorização dos negros e para a erradicação de preconceitos. PRÉ-LEITURA: I. Um dia antes: ◦ Informá-los de que na próxima sessão de leitura cada um terá um livro em mãos. Fazer acordos sobre o lugar onde será lido, o comportamento esperado e o cuidado com os livros. ◦ Como os primeiros africanos chegaram ao Brasil? Abordar em linhas gerais, do início (captura e navios negreiros) ao fim (resultado da luta de muitos anos pela liberdade), a história da escravização dos africanos, dando mais ênfase às formas de resistência que eles opuseram a esse processo (fuga, quilombos – Zumbi dos Palmares, rebeliões, estudo – Luiz Gama, dentre outras). ◦ Esses primeiros africanos acreditavam em Deus? Sim, em muitos deuses na verdade. Os seus deuses eram os Orixás. Assim, há um Orixá que cuida dos ventos, outro do mar, outro dos rios, outro das florestas, etc. E até hoje há no Brasil muitas pessoas que adoram esses Orixás como seus deuses. Elas são de religiões como a Umbanda e o Candomblé. II. No dia: ◦ Brincadeira de “Bento que bento é o frade” (senhor e escravo). ◦ Vocabulário. ◦ Previsões. ◦ Recebem os livros em mãos. 204     LEITURA: (Devido às dificuldades apontadas, deveremos fazer todos os esforços para que nesse momento a concentração seja máxima.) • Leitura silenciosa. • Leitura em voz alta ininterrupta da mediadora. PÓS-LEITURA: • Confirmações/refutações das previsões. • Discussão: (Depois da leitura em si, esse é nosso maior foco.) ◦ 1ª pergunta: O que vocês sentiram quando lemos essa história? (É importante colocar assim a pergunta, para ir além do “Vocês gostaram da história?”) ◦ 2ª pergunta: O que vocês sentiram em relação ao moleque? ◦ Em seguida, fazer perguntas e explorar as várias interpretações que surgirem. Para isso, deve-se tocar nos pontos cruciais. Ressaltar a importância dessas perguntas e que eles podem consultar o livro que têm em mãos para responder. Exemplos: ▪ A amizade entre o moleque e Ricardo era uma amizade normal, ou tinha algo de diferente? ▪ A história se chama “O presente de Ossanha”. Qual foi o presente que Ossanha deu? Para quem? ▪ Esse presente mudou alguma coisa na vida do moleque? ▪ Por que o moleque não quis vender o pássaro, mesmo sabendo que com o dinheiro ele poderia comprar a sua liberdade? ▪ Por que Ricardo diz que “o escravo sou eu”? (Após as respostas, pedir para alguma criança reler a fala de Ricardo, na página 12.) ▪ Por que, no final, o moleque deu o pássaro de presente para Ricardo? ▪ Se um escravo é aquele que faz tudo o que lhe mandam, será que o moleque era mesmo um escravo? • Brincadeira que envolva a ideia de amizade, como um amigo-oculto por exemplo. 3º LIVRO: KOFI E O MENINO DE FOGO Temas: • Igualdade vs preconceito racial; • Diversidade étnica; • Gana, os ganenses e seus modos de vida. Tópicos: • Colonialismo vs independência; 205     • Futebol. Vocabulário: • Forja, ferreiro, juba, plumas, estrangeiros. Conhecimento prévio: • Diversidade de povos, futebol, animais e plantas. Ilustrações: • Riqueza da técnica de pintura à óleo; • Representação dos estereótipos preconceituosos concebidos por Kofi acerca dos brancos. Obstáculos: • Pouco conhecimento prévio da geografia e história da África. Facilitadores: • Simplicidade da linguagem e do enredo da história; • Visão do mundo centrada na ótica de uma criança; • Menções ao futebol. Objetivos de leitura: • Comparando os modos de pensar de Kofi, antes e depois do encontro com o menino branco, os estudantes deverão perceber que o preconceito provém do desconhecimento do outro. O que o estudante ganha com a leitura: • Vivenciando o primeiro encontro entre povos diferentes do ponto de vista de um menino negro (que alimentava fantasias absurdas acerca dos brancos), os estudantes são instigados a questionar seus próprios preconceitos e a valorizar as diferenças. PRÉ-LEITURA I. Previsões a partir da leitura da capa do livro. II. Motivação: ◦ Vocês conseguem imaginar o que pensa um menino negro que nunca viu nenhuma pessoa branca na vida? ◦ Vocês conhecem o país africano chamado Gana? (Lembrar que Gana jogou em Natal na última copa.) ◦ Vocês gostam de futebol? 206     ◦ Hoje vamos conhecer a história de Kofi, um menino negro que nasceu em Gana no ano de 1950, que adorava futebol e que nunca tinha encontrado uma pessoa branca na vida. ◦ Essa história foi escrita por Nei Lopes, que nasceu no Rio de Janeiro, é avô de 2 netos e também é cantor e compositor. E foi ilustrada por Hélène Moreau, uma pintora francesa, sendo esse o primeiro livro que ela ilustra no Brasil. ◦ Mas antes de lermos, vamos aprender um pouco sobre o país de Kofi? III. Pré-ensino de conceitos de Geografia: ◦ Utilizando o projetor, mostrar com o Google Earth o mapa mundi inteiro, apontando os 5 continentes. Em seguida, focalizar a África inteira, apontando a África do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste. A seguir, focalizar a África do Oeste e pedir-lhes que localizem Gana. Apontar também os países vizinhos citados no livro: Togo, Costa do Marfim, Burquina Fasso, Benim, Nigéria e Camarões. Por fim, focalizar só Gana e informar-lhes de que o país é um pouco maior que o estado de São Paulo e que a capital é Acra. IV. Pré-ensino de conceitos de História: ◦ Voltar o zoom do Google Earth para o mundo inteiro e explicar em linhas gerais como funcionava o colonialismo: ▪ Alguns países europeus como Portugal, Espanha, Holanda e Inglaterra, usando grandes navios e armas de fogo, conseguiram dominar muitos povos por todo o mundo. ▪ Eles roubavam ou compravam muito barato as riquezas desses povos e as vendiam caro em outros lugares. Dentre essas riquezas estava o ouro, a prata, o marfim e as pessoas, que eram vendidas como escravos. ◦ Apontar no mapa uma das rotas dos navios, saindo da Europa para a África para carregar as riquezas e, depois, rumando para a América para vendê-las. ◦ Aprendemos com a história do Presente de Ossanha que foi assim que os primeiros negros chegaram ao Brasil. ◦ Terminar dizendo que depois de muitos anos de luta contra os invasores, esses povos conseguiram expulsá-los e se tornaram independentes. V. Vocabulário. LEITURA Leitura em voz alta da mediadora: • Ler ininterruptamente até a página 25, que é o clímax de tensão da história. • Interromper a leitura e solicitar que os estudantes façam previsões sobre o que acontecerá em seguida. • Retomar a leitura até a página 27. • Interromper novamente e solicitar novas previsões. • Retomar a leitura até o fim. PÓS-LEITURA I. Confirmações/refutações das previsões. 207     II. Discussão: ◦ O que vocês sentiram quando lemos essa história? ◦ O que mais chamou a atenção de vocês? ◦ Como Kofi imaginava as pessoas que não eram negras como ele, antes de conhecê-las? ◦ E depois de ter encontrado o menino e outras pessoas brancas, ele continuou pensando da mesma forma? ◦ Em que Kofi e o menino, eram diferentes e em que eram iguais? (Procurar relativizar as noções de igual e diferente.) ◦ E nós, em que somos diferentes e em que somos iguais? ◦ Algumas pessoas têm preconceitos contra todos os que não são iguais a eles. Vocês sabem o que quer dizer a palavra “preconceito”? ▪ Preconceito era aquilo que o Kofi tinha antes de encontrar o menino… (Estimulá- los a chegar juntos a uma definição de preconceito.) ▪ Como foi que o Kofi conseguiu se livrar dos seus preconceitos? III. Escrever: ◦ Dividir a turma em grupos, separando os alunos alfabetizados de forma a inserir um em cada grupo. Em seguida, pedir que recontem a história por escrito. 4º LIVRO: BRUNA E A GALINHA D’ANGOLA Temas: • Ancestralidade africana; • Cosmogonia africana; • Coletividade. Tópicos: • África; • Amizade; • Autoestima; • Autoconhecimento; • Orixás; • Sonhos. Vocabulário: panô, Oxun [Orixá das águas doces (comentar sobre a grafia diferente na hora da leitura)], oleiro, ciscar. Conhecimento prévio: 208     • Orixás; • Raízes africanas do Brasil; • Artesanato / trabalhos artísticos. Ilustrações: • Representações de uma menina negra como protagonista (desde a capa); • Arte africana; • Unicamente crianças negras e alguns animais representados. Obstáculos: • Somente personagens femininas, mais difícil cativar os meninos. Facilitadores: • Ludicidade da linguagem; • Animal como personagem; • Curiosidade despertada pela estética africana; • Refletir sobre as barreiras entre os gêneros (caso sejam levantados problemas). Objetivos de leitura: • Vivenciar através da leitura o processo de autovalorização por que passa Bruna, revalorizando a cultura, a história e a estética negra. O que o estudante ganha com a leitura: • Poder refletir, a partir da ótica africana, sobre as origens do mundo e de sua genealogia, ganhando em conhecimento do mundo e em autoconhecimento. PRÉ-LEITURA I. Pré-ensino de conceitos de Geografia e História: ◦ A nossa próxima história se passa no Brasil. Porém, existem personagens que vieram de um país africano chamado Angola. Vocês já ouviram falar desse país? ◦ Utilizando o projetor, mostrar com o Google Earth o mapa mundi inteiro, relembrando os 5 continentes. Em seguida, focalizar a África inteira, relembrando a África do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste. A seguir, focalizar a África do sudoeste e pedir-lhes que localizem Angola. Fazer-lhes notar que Angola é bem maior que Gana e também maior que a Tanzânia. Focalizar só Angola e fazer-lhes ver, pela cor (quase tudo verde), que é um país de muitas florestas, mas também de grandes cidades. Na capital, Luanda, por exemplo, moram mais ou menos 7 vezes mais pessoas do que em Natal. ◦ Voltar o zoom do Google Earth para o mundo inteiro e explicar que, assim como o Brasil, Angola também foi colônia de Portugal. Por isso, eles falam a mesma língua que nós: a Língua Portuguesa. 209     ◦ Durante o tempo do colonialismo, quase a metade dos africanos trazidos para o Brasil como escravos veio de Angola. ◦ Por isso, podemos dizer que os ancestrais de muitos e muitos brasileiros vieram de Angola. ◦ Eles trouxeram muitas coisas da cultura deles, que estão vivas na nossa cultura brasileira até hoje. Exemplos: ▪ Ritmos musicais: samba, coco, maracatu, pagode, etc.; ▪ Instrumentos musicais: berimbau e cuíca. ▪ Luta/esporte: capoeira; ▪ Palavras: moleque, farofa, munguzá, catinga, cafuné, cochilo, ginga, marimbondo, minhoca, calango, quilombo e muitas outras. ▪ Comidas: jiló, melancia, maxixe, quiabo, azeite de dendê, etc. ▪ O r mais suave – o sotaque lusitano carrega no r . (Talvez isso seja difícil de explicar). II. Atividade lúdica motivacional: (vídeo) ◦ Vocês já viram uma galinha d'Angola? ◦ Pra quem não viu, vamos assistir ao vídeo da música da Galinha d'Angola, de Vinícius de Moraes, interpretada por Ivete Sangalo junto com o grupo angolano Buraka Som Sistema. (LINK: https://www.youtube.com/watch?v=r16KLm0A8IY) FIM DAS ATIVIDADES DO 1º DIA III. Previsões a partir da leitura da capa do livro. IV. Motivação: Ancestralidade ◦ Quais de vocês ainda têm ou conheceram seus avós? ◦ Vocês sabem onde seus avós nasceram? ◦ Os avós de vocês contavam histórias de um tempo antigo, das coisas que eles viveram, das brincadeiras de que gostavam? ◦ Nós já aprendemos o que significa a palavra “descendentes”. Alguém lembra? ◦ E agora, vocês sabem o que significa a palavra “ancestrais”? ◦ Nossos pais são nossos primeiros ancestrais, depois vêm nossos avós, bisavós, tataravós… ◦ Alguém conheceu seus bisavós? E seus tataravós? ◦ Pois é, mesmo que a gente não os conheça pessoalmente, podemos pesquisar e tentar descobrir quem eram os nossos ancestrais que viveram muito antes de nós. ◦ Vocês sabiam que muitos dos nossos ancestrais vieram de um lugar da África que hoje se chama Angola? ◦ Por exemplo, a menina Bruna da nossa história de hoje é brasileira, mas tem uma avó que veio da África, provavelmente de Angola. Foi do mesmo lugar de onde vieram os ancestrais da galinha d'Angola. Por isso ela tem esse nome. ◦ Na história de hoje, vamos conhecer Bruna e saber como as histórias africanas contadas por sua avó mudaram a sua vida e de toda a sua aldeia. 210     V. Vocabulário. LEITURA Leitura em voz alta da mediadora: • O livro foi escrito por Gercilga de Almeida e ilustrado por Valéria Saraiva. • Ler ininterruptamente todo o livro. PÓS-LEITURA I. Confirmações/refutações das previsões. II. Discussão: ◦ O que vocês sentiram quando lemos essa história? ◦ O que mais chamou a atenção de vocês? FIM DAS ATIVIDADES DO 2º DIA RELEITURA Leitura em voz alta da mediadora PÓS-LEITURA I. Discussão: ◦ Por que será que Bruna estava triste no início da história? ◦ E como é que Bruna se sentia no final da história? ◦ O que aconteceu com Bruna, que mudou a sua vida? ◦ Vocês acham que é importante ouvir as histórias que os mais velhos contam? Por quê? ◦ Vovó Nanã contou a história que ela conhecia sobre a criação do mundo, pela conquém, o pombo e o lagarto. Vocês acreditam que foi assim mesmo que o mundo foi criado? Por quê? ◦ Não só Bruna, mas toda a sua aldeia tornou-se mais feliz. Vocês acham que Bruna teria conseguido mudar a sua vida sozinha? Por quê? II. Atividade artística: ◦ Mostrar tecidos de estampas africanas. ◦ Dividir a turma em grupos, para que pintem “panôs”, procurando reproduzir a estética africana apresentada no livro e nos tecidos. 211     5º LIVRO: AS PANQUECAS DE MAMA PANYA Temas: • Solidariedade; • Coletividade. Tópicos: • Modos de vida do Quênia (culinária, hábitos e valores) Vocabulário: baobá, cajado, surpreender, tocar o gado, ofegante, suspirar, cardamomo, mbira (kalimba), banquete [ler página “Cumprimentos e tratamentos em kiswahili”, informando-os que as pessoas do Quênia falam a mesma língua que é falada na Tanzânia]. Conhecimento prévio: • Culinária; • Mercado; • Tanzânia e algumas expressões em kiswahili. Ilustrações: • Tipos físicos; • Vestimentas; • Amplas paisagens; • Fauna e flora. Obstáculos: • Várias expressões em kiswahili Facilitadores: • Repetição de chaves de leitura; • Enredo repetitivo e cumulativo. Objetivos de leitura: Refletir sobre a solidariedade como estratégia eficaz na superação das dificuldades impostas pela pobreza. O que o estudante ganha com a leitura: Vivenciando esta história, os estudantes têm a oportunidade de ressignificar os discursos que estigmatizam os africanos como dignos de pena devido à pobreza em que vive boa parte da população. Assim, eles poderão construir uma imagem positiva dos africanos, prezando seus valores éticos de solidariedade e coletividade. 212     PRÉ-LEITURA I. Previsões a partir da capa II. Leitura silenciosa: Os estudantes recebem os livros em mãos. II. Vocabulário III. Pré-ensino de conceitos de Geografia: • Nossa história de hoje se passa no Quênia, um país do oeste africano, vizinho à Tanzânia. Explorar o mapa na penúltima página do livro. • Olhando para o mapa, explicar um pouco da vegetação do Quênia: [Regiões cobertas de florestas: faixa litorânea e o perímetro do Lago Vitória a sudoeste; Regiões montanhosas e de savanas: centro e norte; Região semi-desértica: extremo nordeste, vizinho à Somália]. Destacar a reserva natural Massai Mara, que se junta exatamente ao Parque do Serengeti, na Tanzânia. É nessas reservas que mora o povo Massai. • Além de muita natureza preservada, o Quênia também tem cidades muito grandes, como a capital Nairobi. Mostrar-lhes uma foto da paisagem urbana de Nairobi. • Muitas pessoas no Quênia moram fora da cidade, no interior, em pequenos vilarejos. É num desses vilarejos que moram Mama Panya e seu filho Adika, os personagens da nossa história de hoje. Explorar as duas páginas ao final da história, com o título “O dia a dia em uma aldeia no Quênia”. LEITURA • Leitura em voz alta ininterrupta da mediadora. Relembrar a importância de eles tentarem acompanhar a leitura na página certa. PÓS-LEITURA • Confirmação/refutação das previsões. • O que vocês sentiram durante a leitura dessa história? • O que lhes chamou mais atenção? Fim das atividades do 1º dia. PRÉ-LEITURA • Explorar as duas páginas intituladas “A caminho do mercado”, solicitando-os que repitam os nomes dos animais e plantas em kiswahili. 213     • Pedir-lhes que estejam atentos às ilustrações, pois todos esses seres aparecerão representados na história. RELEITURA • Os estudantes recebem novamente os livros em mãos e têm um tempo para a releitura silenciosa. • Releitura em voz alta ininterrupta da mediadora. PÓS-LEITURA I. Discussão: 1. Por que será que Adika convidou todos os seus amigos para virem comer panquecas com ele e com sua mãe? 2. E por que Mama Panya se preocupava a cada vez que Adika convidava uma nova pessoa? 3. Eles sabiam que os amigos iam levar mais comidas para dividir? 4. Então, por que todos os amigos levaram mais comidas? 5. Mesmo não tendo muito dinheiro, os personagens da história comeram um grande banquete e se divertiram muito. Como isso foi possível? 6. Será que ter muito dinheiro é a única forma de as pessoas serem ricas? II. Atividade lúdica: • Pedir para que cada estudante leve uma fruta para organizarmos um mercado. 6ª LIVRO: ANANSI, O VELHO SÁBIO Temas: • Contos africanos (conto etnológico); • Personagens do folclore africano. Tópicos: • A astúcia contra a força; • Superação das dificuldades. 214     Vocabulário do dia 1: membros filiformes, exigir, intangíveis, píton, sabre, enxame de zangões, pululam, rastros, cuia, borrifou, refugiem-se. Vocabulário do dia 2: talhou, resina, purê de inhame, corte (de um rei), êxito, astúcia. Conhecimento prévio: • Animais; • Personagens folclóricos; • Homem-aranha; • Contos de aventura. Ilustrações: • Animais; • Todos os personagens negros; • Paisagens; • Relativamente escassa em relação aos outros livros. Obstáculos: • Livro de mais alto nível de dificuldade, devido à linguagem e à extensão da história. Facilitadores: • Repetição de chaves de leitura; • Enredo repetitivo. Objetivos de leitura: Conhecer um exemplo de conto africano tradicional, transmitido oralmente e refletir sobre os ensinamentos contidos na narrativa. O que o estudante ganha com a leitura: Através da hitória de uma frágil aranha que, junto com sua esposa, consegue vencer criaturas poderosas, os estudantes podem refletir acerca da prevalência da astúcia sobre a força e ainda acerca da importância de se ouvir a voz feminina. PRÉ-LEITURA I. Motivação: • Algum de vocês já ouviu falar do homem-aranha? • E do homem-aranha africano, alguém já ouviu falar? 215     • Há muito tempo atrás, antes que os europeus tivessem chegado à África, o povo que vivia em Gana já contava muitas histórias de Anansi: um velho sábio que era ao mesmo tempo homem e aranha. • Vocês querem ouvir a primeira história do homem-aranha africano? II. Previsões a partir da capa III. Leitura silenciosa: Os estudantes recebem os livros em mãos. IV. Vocabulário V. Contextualização: • O povo do antigo Egito foi um dos primeiros povos a inventar a escrita. Porém, vários povos africanos não conheciam a escrita até a chegada dos primeiros europeus. • Nesses povos, toda a cultura e o saber eram ensinados oralmente, principalmente pelos GRIÔS – os contadores de histórias. (Pedir que eles abram o livro na página 29.) • Um griô pertence a uma família de contadores de histórias, e aprende tudo com os mais velhos da família. O respeito aos mais velhos é muito importante na África. (Ler a última frase da pág. 29.) • Explorar os elementos sobre os griôs nas páginas 30 e 31. LEITURA • Leitura em voz alta ininterrupta da mediadora. Até a página 19. PÓS-LEITURA • Confirmação/refutação das previsões. • O que vocês sentiram durante a leitura dessa história? • O que lhes chamou mais atenção? Fim das atividades do 1º dia. PRÉ-LEITURA • Os estudantes recebem novamente os livros em mãos e têm um tempo para a releitura silenciosa. • Relembrar os pontos mais importantes da leitura anterior. 216     RELEITURA • Releitura em voz alta ininterrupta da mediadora. PÓS-LEITURA I. Discussão: 1. Cada conto africano tem um ensinamento importante. O que vocês aprenderam com o conto de Anansi? 2. Como foi que Anansi, uma pequenina aranha, conseguiu derrotar criaturas tão fortes e atender a todos os desejos do Deus do céu? 3. Vocês acham que Aso, a mulher de Anansi, teve uma participação importante na história? Por quê? 4. Vocês acham importante saber escutar o que dizem os mais velhos? Por quê? II. Atividade de dramatização: • Distribuir os papéis de cada um, ensaiar e apresentar a história. APÊNDICE C – TRANSCRIÇÕES DAS SESSÕES DE LEITURA 4ª SESSÃO DE LEITURA O Presente de Ossanha 2ª sessão - 15/05/2015 1º vídeo. ((A professora pede calma aos alunos para que possam começar a discutir a história.)) (1) Professora: Suhuba, o que que você sentiu quando você escutou essa história toda? Seus colegas já tinham... eles já deram a opinião deles sobre isso. (2) Arusha: Foi lá no bosque. (3) Professora: Deixa ele pensar. Naquela hora ele não tinha imaginado nada, agora ele vai sentar assim, que assim a gente consegue se concentrar melhor. E agora, o que você sentiu quando escutou essa história? (4) Arusha: Ele tá com preguiça. Parece que tá com sono. (5) Professora: É! Parece. (6) Suhuba: Sei de nada não... 217     (7) Professora: Não! Não sabe de nada não, sabe sim. O que você sentiu? Vamos ficar assim pra você pensar um pouquinho. Quando você escutou a história que que você sentiu. Heim Suhuba? (8) ((A professora pede que Bibiana respeite a vez de Suhuba falar e pede silêncio a todos os alunos, para que possam escutar Suhuba.)) (9) Suhuba: Eu só sei que ele pegou o pássaro e não queria vender. (10) Professora: Quem pegou o pássaro e não queria vender? (11) Suhuba: Ele! (12) Professora: Ele quem? Ricardo ou o moleque? (13) Suhuba: O moleque. (14) Professora: Ah, o moleque. E o que que você sentiu pelo moleque? (15) ((A professora repreende Ambaye e Arusha por estarem brincando com o livro a ponto de danificá-lo.)) (16) Professora: Que que você sentiu pelo moleque? (17) Suhuba: Nada. (18) Professora: Nada? O que que você achou dele na história? (19) Suhuba: Legal. (20) Professora: Legal por quê? Porque que você achou o moleque legal? Quem mais? Tem pessoas que não falaram, quem quer falar um pouquinho mais do moleque? Vamos, a Bibiana. (21) Bibiana: Tia, eu gostei da parte do passarinho... (22) Professora: Gostou da parte do passarinho. Mas qual parte, a do final ou a no meio da história? (23) Bibiana: Do final da história. (24) Professora: Então você gostou do final, porquê? (25) Bibiana: Porque ele ficou feliz. (26) Professora: Quem ficou feliz? (27) Bibiana: O menino. (28) Professora: Qual? Ricardo ou o moleque? (29) Bibiana: O moleque. (30) Professora: O meleque ficou feliz por quê? Porque ele deixou... presta atenção aí. (31) Bibiana: Porque ele abriu a janela... (32) Professora: Mas quem abriu a janela foi o moleque? (33) Bibiana: Não! (34) Professora: Foi quem? (35) Bibiana: O passarinho. (36) ((Todos os alunos riem da confusão de Bibiana.)) (37) Bibiana: Não! Foi o Ricardo. (38) Professora: Foi o Ricardo. Então quem que ficou feliz quando viu o passarinho? Ricardo. (39) Professora: Mas vem cá, agora vou fazer uma pergunta. O Ricardo ficou feliz, e vocês acham que o moleque ficou feliz porque deixou o passarinho pro Ricardo? 218     (40) Arusha: Sim! (41) Lia: Por causa que fez Ricardo se lembrar do moleque. (42) Professora: E porquê? Vocês acham que... Sobre a amizade deles, quem quer falar alguma coisa? Que que vocês acham da amizade? Mesmo ele sendo escravo vocês acham que eles se tornaram amigos de verdade? Quem quer falar? O Mosi. (43) ((Arusha protesta, pois havia levantado a mão primeiro. A professora explica que ela já falou bastante e o Mosi ainda não)). (44) Professora: Sobre o que eu perguntei, Mosi, você acha que o moleque e o Ricardo, eles se tornaram amigos? (45) ((Mosi acena que sim.)) Professora: Mesmo o moleque sendo escravo? Aí eu perguntei pra ela: você acha que quando ele deu o passarinho pro Ricardo, você acha que ele também se sentiu feliz ao fazer isso? (46) ((Mosi responde que sim com um aceno de cabeça.)) (47) Professora: Quem mais quer falar? A Lia queria falar. (48) Arusha: Eu levantei primeiro. (49) Professora: Então pode falar. (50) Arusha: É... perguntou o quê? (51) Professora: Eu perguntei sobre o menino, sobre se vocês acham se ele ficou feliz também. O menino não, o moleque, ao deixar... (52) Arusha: Ele fez uma boa ação. (53) Professora: E vocês acham que o moleque gostava do Ricardo? (54) ((Alguns alunos respondem que sim.)) (55) Professora: Então vamos pegar o livro e colocar lá na página numa parte que diz assim... Na página 12. Tem uma parte lá na história, na página 12... (56) ((Os alunos continuam perguntando à professora sobre as imagens. Ela responde e depois lê um trecho da página 12, de uma fala de Ricardo, pedindo que não vendesse o moleque.)) (57) Professora: O que que vocês entenderam quando o menino falou isso? O que que vocês acham? (58) Ambaye: Ele ficou triste. (59) Professora: Mas porque que ele disse isso? Que o escravo era ele? (60) Arusha: Porque ele gostava muito do moleque. (61) Professora: Alguém mais quer falar alguma coisa sobre isso? (62) ((Bina e Lia levantam o braço. A professora passa a palavra para Bina.)) (63) Professora: Por que que você acha que o menino falou, que na verdade o escravo era ele e não o moleque? (64) Bina: Porque o Ricardo gostava do moleque. (65) Professora: Gostava do moleque. Porque que ele gostava do moleque? (66) Bina: Porque os dois eram muito feliz juntos. (67) Professora: Ah, eram muito felizes juntos. Quem mais quer complementar? Lia. (68) Lia: Eu acho que o Ricardo não queria que o pai dele vendesse o moleque por causa que ele não... sabia brincar sem ele, por causa que ele gostava muito dele. (69) Professora: Ah! Ele não sabia mais brincar sem ele e gostava muito dele. Mosi. 219     (70) Mosi: E... onde é que o moleque dormia? (71) Professora: Onde é que o moleque dormia? (72) Arusha: Na cama né?! (73) Professora: Não, aqui não falam de moleque dormir, mas geralmente os escravos dormiam, moravam, num lugar fora da casa, que chamava senzala. Aqui na história não fala onde o moleque dormia. Provavelmente na hora de dormir ele ia pra senzala, que era um lugar onde só os negros dormiam. Sem conforto nenhum, nem cama tinha, era no chão. As vezes tinha uma palha. Agora sim, Bibiana. (74) Bibiana: Tia, eu quero saber porque que ele ficou aqui... (75) Professora: Porque que ele ficou aqui? Eu que lhe pergunto, porque que ele ficou aí com o pai? Se ouviu a história você vai saber. (76) Lola: Eu (S.I.) Orixá. (77) Professora: Sim, mas antes de você falar no Orixá, qual Orixá você gostou, eu quero saber do moleque. (78) Lola: (S.I.) (79) Professora: Não, o Orixá ou o menino? (80) Lola: O Orixá. (81) Professora: Agora tem uma coisa, o nome do livro é “O presente de Ossanha”. (82) Lola: O presente de Ossanha? (83) Professora: É. Quem era Ossanha mesmo? (84) Arusha: O deus das plantas. (85) Professora: Sim, o deus das plantas. Qual foi o presente de Ossanha e pra quem? (86) Suhuba: O pássaro? (87) Professora: O pássaro. E pra quem? (88) Suhuba: Pro moleque. (89) Professora: Ah, então você prestou atenção na história, tá vendo?! (90) ((Fim do vídeo)). 2º vídeo. (1) Professora: Não... Co:::?! (2) Ambaye: Cora! (3) Professora: Cora! Muito bem! (4) Arusha: Professora, não, essa história (S.I.) (5) Professora: Ah, curiosidade... Depois. Eu vou fazer outra pergunta pra vocês. Porque que vocês acham... Eu já perguntei, mas tem alguns que não responderam. Que que vocês acham: por que que o moleque deixou o pássaro com Ricardo? (6) Lia: Pra ele se lembrar do... Pra Ricardo se lembrar do moleque. (7) Professora: Muito bem... todo mundo acha que foi por isso? (8) ((Todos os alunos respondem que sim.)) (9) Professora: Mas e porque será, só porque... (10) Lia: Por causa que o... 220     (11) Mosi: Ele gostava muito do moleque. (12) Professora: Gostava muito do moleque. (13) Lia: Do moleque e também por causa que o pássaro era muito importante para o moleque. (14) Professora: Mas se era importante para o moleque... olhe só, muito bem. O pássaro era importante para o moleque, mas mesmo assim ele deixou o pássaro, que era importante pra ele, que ele ganhou de presente, por quê? (15) Arusha: Porque gostava do menino. (16) Lia: Por causa que ele gostava dele e também por causa que ele deixou pra que Ricardo lembrasse do menino. (17) Professora: Então, mesmo sendo importante ele deixou, num foi?! Vamos todo mundo voltar aqui, se concentrar um pouquinho. Aí, olhe bem, o Watende vai recolher os livros e todo mundo vai sentar assim. Só ela vai ficar aqui comigo porque ela quer explicar pra você, Bibiana, porque que o menino tá grudado no pai, que você perguntou. (18) Bina: Bibiana, sabe porque que ele tá grudado no pai? (19) Professora: Peraí, peraí! Deixa todo mundo voltar a se concentrar. (20) ((Enquanto Kojo pega os livros e as crianças voltam para seus lugares, a professora vai tirando dúvidas que alguns possuem sobre alguns orixás.)) (21) Bina: Bibiana, sabe porque ele tá segurando o pai? (22) Bibiana: Não. (23) Bina: Porque tá pedindo ao pai, porque não é pra deixar o moleque ir simbora. (24) Professora: É isso? (25) Lia: É! (26) Professora: É né?! Porque ele não queria vender. Porque eles ficaram... Afinal, eles ficaram amigos ou não? (27) ((Alguns alunos respondem que sim.)) (28) Professora: Então todo mundo concorda que os dois, mesmo um sendo escravo e o outro dono, eles ficaram amigos? (29) ((Alguns alunos respondem que sim.)) (30) Professora: Sim? Então tá. Sabe o que a gente vai fazer agora? Nós vamos fazer... Já que falou sobre amizade e uma das coisas da amizade é a gente querer bem ao outro/. Por exemplo, ele no final deixou uma coisa tão importante pra ele, não foi Mosi? Que era o pássaro. Ele abriu mão disso, que ele conseguiu como presente do orixá e mesmo assim (S.I.) pra ele, ele deixou pro Ricardo. Quer prova maior de amizade que essa? Então, agora, nós vamos fazer uma atividade que vai ser mais ou menos isso. Nós vamos presentear alguém, que colega também pode ser amigo né?! Todo mundo aqui é colega, mas pode ser que alguém aqui se torne amigo. Eu tenho amigo que eu conheci quando eu era criança, quando eu estudava. Era meu colega, mas se transformou em um amigo. (31) Arusha: Minha mãe gosta tanto, gosta tanto de uma menina que era... que ela conheceu na época que a gente... que ela é colega da minha mãe desde (S.I.) (32) Professora: É? Desde criança. Quem sabe aqui não vai ter pessoas que vão se tornar depois grandes amigos? (33) Mosi: (S.I.) Lá no CAS, aí, ele estudou no CAS. Aí, quando eu troquei de escola, ele trocou também. Ficava me seguindo direto na escola. 221     (34) ((A professora passa a organizar a brincadeira que prometeu fazer no fim da aula. O professor-pesquisador começa a pedir que os alunos peguem um papel dentro de um recipiente para iniciar a brincadeira de amigo oculto.)) 5ª SESSÃO DE LEITURA Kofi e o Menino de Fogo 1ª sessão - 20/05/2015 (1) ((O professor-pesquisador chega à sala, aos poucos os alunos também e, por último, a professora. Esta, ao chegar, organiza os alunos em círculo e chama a atenção de alguns alunos, como o Leléu, Mosi, Zalira e Bina, a fim de que estes mudem de postura, e sentem de acordo com as recomendações da professora.)) (2) ((A professora inicia mencionando o mapa que foi mostrado na aula passada, mas é interrompida pelo professor-pesquisador, que solicita a ela uma cópia da história e entrega-a a Jéremie.)) (3) ((A professora, então, retoma a discussão, perguntando aos alunos se eles lembram qual será o país da África estudado na aula e os alunos, prontamente, respondem que é Gana. A professora fala da aula passada, relembrando com os alunos os continentes estudados e localizados por eles no mapa. Ela fala, então, dos países que ficam ao redor de Gana.)) (4) ((A aluna Arusha pergunta à professora se a história que eles estudarão é sobre escravos.)) (5) ((A professora, então, começa falando do título do livro, sobre o autor e o ilustrador. Além disso, acrescenta que atrás do livro sempre tem uma sinopse e pergunta aos alunos em que consiste a sinopse (que ela já havia explicado). Lia responde que a sinopse é “sobre o que tem na história”.)) (6) ((A professora, então, retoma a pergunta de Arusha e mostra a ilustração da capa, perguntando aos alunos se eles acham que o livro é sobre escravos. Mosi diz que acha que a história fala sobre umas pessoas que estão fugindo de uma pessoa. Lia diz que essas pessoas estão fugindo do menino do fogo. (7) ((Bibiana se levanta e vai até a projeção da capa do livro e mostra quem ela acha que é o Kofi. Leléu também se levanta e chama a atenção para o fato de um dos meninos estar com os olhos arregalados. A professora pergunta por que aquele menino está com os olhos arregalados. A aluna Arusha, agitadamente, levanta a mão e diz que o menino que está com os olhos arregalados tem inveja. Porém, a professora chama a atenção para o fato de que não é só aquele menino que está com os olhos arregalados, mas os outros também.)) (8) ((A professora pergunta novamente se eles sabem por que os meninos da capa do livro estão com os olhos arregalados. Alguns alunos dizem que é porque eles têm medo de fogo. A professora, então, faz um resumo do que eles falaram e pergunta se alguém tem alguma ideia diferente sobre o que viria a ser a história do livro. Arusha, então, levanta a mão e diz que acha que o menino que está na frente com a palma da mão aberta é o menino de fogo e, por isso, os outros meninos têm medo dele.)) (9) ((A professora, então, pergunta se alguém pensa diferente. Lia fala que, pela capa, acha que é sobre o menino com a palma da mão aberta, que está fugindo do outro menino que está atrás dele com uma vestimenta azul. Alguns alunos concordam.)) 222     (10) ((A professora, apontando para a capa do livro, pergunta aos alunos onde eles acham que se passa a história. Os alunos, prontamente, respondem que é na África, em Gana. E um aluno diz que parece que eles estão na areia.)) (11) ((A professora inicia então a etapa do vocabulário. Ela pergunta se eles já ouviram falar da palavra “maracanã” e o que ela significa. Alguns alunos levantam a mão e Bodru diz que o Maracanã é um estádio que fica no Rio de Janeiro.)) (12) ((A professora pergunta se, além de Arusha e Bodru, todos já tinham ouvido falar no Maracanã. E todos acenam com a cabeça e respondem que sim. Vários alunos falam ao mesmo tempo. A professora, então, retoma a discussão dizendo que o Maracanã, de fato, é o estádio oficial do Rio de Janeiro e um dos estádios mais importantes e conhecidos do Brasil.)) (13) ((A professora pergunta por que eles acham que aparece a palavra “maracanã” no livro. Ela pergunta qual a relação entre as característica de Gana, aprendidas na aula anterior, e a palavra “maracanã”. Arusha responde que é porque o povo de Gana joga muito bem futebol. Mosi diz que é porque eles são pretos. A professora, então, pergunta qual a relação existente entre a palavra “maracanã” e a cor dos meninos que estão na capa do livro. Leléu responde que é porque eles são sujos. A professora, então, pergunta “se a pessoa ser preta tem a ver com sujeira”. Alguns alunos respondem que não e a professora destina a pergunta a Mosi. Este responde algo ininteligível e a professora repete que não. A professora, então, pergunta-lhe quem disse para ele que as pessoas negras não tomam banho. Lia refuta dizendo que eles tomam banho sim. A professora questiona novamente por que eles acham que os negros não tomam banho, até que Leléu responde que é porque eles vivem no lixo. A professora questiona, então, se são só os negros que vivem no lixo. Vários alunos começam a falar junto e a professora tenta controlar a situação organizando as falas de cada aluno. Bodru responde que é porque os negros não têm boa moradia, por isso eles vivem no lixo. A professora questiona se são só os negros que não têm boa moradia. Bodru responde que não. Arusha chama a atenção para o fato de que muitas pessoas têm preconceito contra os negros. A professora pergunta a Arusha o que ela entende por preconceito. Arusha diz que tem a ver com os xingamento, que algumas pessoas xingam outras por preconceito. Ela relata que viu uma reportagem que mostrava que uma mulher negra não foi atendida por um manicure porque era negra. Arusha diz que o sentido da palavra “maracanã” tem a ver com um pássaro que havia ali antes de construírem o estádio. (14) A professora encerra a discussão sobre a palavra “maracanã”, dizendo que não sabe o significado da palavra, mas que vai pesquisar e trazer. Porém, enfatiza que a palavra nada tem a ver com o fato de as pessoas serem negras. Lia, antes de encerrar a discussão sobre a citada palavra, diz que acha que os negros tomam banho sim, porque o menino que está atrás do outro, na capa do livro, está com uma toalha. A professora, então, pergunta aos alunos se todas as pessoas que vivem na rua, das quais muitas não têm como tomar banho, são negras. Vários alunos respondem que não. (15) A professora pergunta aos alunos se eles já ouviram falar na palavra “juba”. Bodru diz que sabe, pois o leão tem uma juba. A professora, então, chama a atenção para o fato de que o leão é considerado o rei da selva justamente porque ele possui aquela juba. (16) A professora pergunta se eles já ouviram falar na palavra “plumas”. Arusha levanta a mão e outra aluna associa “pluma” com os pássaros e, depois, com as penas dos pássaros. A professora, então, diz que é parecido com penas. Arusha diz que parece com penas, mas que no meio das plumas tem algo escrito. A professora, sem entender, questiona. Outro aluno diz que não tem. Um aluno interrompe e diz – apontando o dedo para um colega - que o rei dos animais é o elefante. A professora questiona-o, tentando mostrar a ele que 223     não se deve colocar apelido nos colegas, pois, se alguém colocasse nele, ele também não iria gostar. Ela diz que se deve haver respeito entre os colegas. (17) A professora pergunta se eles já ouviram falar em “forja de ferreiro”. Arusha diz que já, pois assistira a um filme em que o nome de um dos personagens era Ferreiro e que também se tratava de um sobrenome de família, o “Ferreira”. A professora diz que, nesse caso, não se trata de um sobrenome e passa a explicar que forja é onde o ferreiro faz muitas espadas, facas, facões. Ela explica que a forja é o lugar onde tem uma fornalha e um instrumento chamado bigorna, cuja função é dar a forma às ferragens. O aluno Mosi acrescenta que tem um jogo de computador no qual há bigornas. (18) A professora apresenta a palavra “imigrante” que se refere a pessoas que saem de um país para morar em outro. Ela diz também que “estrangeiro” teria o mesmo significado, já que, por definição, estrangeiro é aquela pessoa que não está em seu país de origem. (19) Após discutir a respeito do vocabulário, a professora pede aos alunos que se organizem e peguem a cópia da história a fim de que possam acompanhar a leitura. Antes de iniciar a leitura, a professora mostra, apontando para o livro, outro elemento que geralmente faz parte da estrutura de um livro, que é a dedicatória e explica brevemente do que se trata. (20) A professora realiza, então, a leitura da história até a página 25. (21) Professora: E então, o que vocês sentiram ao ouvir essa história até essa parte? (22) Mosi: Mostra a outra página, tia? (23) Professora: Nã:::o! Não vou mostrar não! (24) Vários alunos: Põ:::e, tia:::! (25) Professora: Só um minuto! Peraí! É... cada um... eu quero saber o que vocês sentiram até agora ao ouvir essa história. Primeiro combinado... mão levantada. Quem quer falar? ((Vários alunos levantam a mão)) (26) Professora: Bibiana, o que você sentiu? (27) Bibiana: Deixa (S.I.) ser primeiro? (28) Professora: Pode falar! Cê levantou a mão. (29) Bibiana: (S.I.) ((Alguns alunos conversam paralelamente e a professora chama-lhes a atenção.)) (30) Professora: Peraí, só um minutinho. Eu não tô conseguindo, porque toda hora que alguém fala ainda tem gente interrompendo. E agora eu vou ouvir só a Bibiana, porque ela tá falando baixo e eu quero escutar. Pode falar. (31) Bibiana: Eu percebi que (S.I.). (32) Professora: Ah! Que vão ser amigos. Daí por isso que você gostou? (33) Bibiana: Eles estão ajudando as pessoas. (34) Professora: Ah! Ajudando as pessoas. Arusha? ((Aponta o dedo para Arusha.)) Vamos seguir assim, que ela levantou. Vamos seguir assim. Vai, Arusha! Que que cê sentiu da história? (35) Arusha: Essa página da primeira até a penúltima, eu acho, eu senti alegria. (36) Professora: Sentiu aleg/ (37) Arusha: Aí eu senti medo por causa que eu tinha medo porque tinha esse estrangeiro, aí a gente sabe que eles iam matar (S.I.). (38) Professora: A:::h pronto! Cê ficou com medo porque você ficou achando que esses estrangeiros iam matar e/eles... o povo de Gana. (39) Arusha: E o nome do rei George é nome do meu irmão. (40) Professora: É? O nome do seu irmão é George? (41) Arusha e Ambaye: George Mateus! (42) Professora: Ah, muito bem! É... Ambaye, o que que você sentiu? (43) Ambaye: (S.I.) ((Ambaye fala muito baixo)) 224     (44) Professora: O que que você gostou? ((Aponta para Bibiana.)) Bibiana, agora é a vez dele. Agora que eu falei/ que eu te defendi, agora você já está conversando com sua colega. (45) Ambaye: Eles vão virar amigos. (46) Professora: Você gostou por isso? Você acha que eles vão virar amigos? (47) Lola: Eu gostei mais daquele menino de cabelo ((faz o gesto com as mãos sobre a cabeça)), aquele menino de florzinha aqui na cabeça. (48) Professora: Aquilo quando o Kofi imaginou? (49) Lola: É. (50) Professora: É? Aí você gostou dessa parte. Gostou/ achou engraçado? E Bodru? Não quer falar? Lia? Que que cê sentiu até agora? Quem mais quer falar o que sentiu até agora? (51) Mwambe: Eu só gostei daquele (S.I.) (52) Professora: Uma das figuras que most/ que ele/ que o Kofi imagina que é um branco? ((Aponta para a ilustração.)) Essas aqui, é? (53) Mwambe: É um que tá com um monte de pena. É esse aí! ((Aponta o dedo para a ilustração.)) (54) (CFMT) (55) Professora: Agora... só um minuto! Vai! É o Leléu. Que que sentiu, Leléu? (56) Leléu: (S.I.) ((Enquanto Leléu fala, outros alunos falam também.)) (57) Professora: Tá o quê? Só um minutinho! Só um minutinho! Nós estamos com o ar- condicionado ligado e tem gente usando a folha como se fosse um leque. Eu queria entender por quê. Bibiana, faz um favor. Venha sentar aqui! ((Aponta para um lugar ao lado dela.)) Agora! Eu acho que vocês atrapalham bastante aí. Você não tá tendo respeito pelos seus colegas e eles tiveram por você na hora que você falou. E é toda vez assim. (58) Aluno: Posso beber água, professora? (59) Professora: Ninguém vai beber água agora não. Eu vou esperar todo mundo se concentrar um pouquinho, porque já começou a (S.I.). (60) Jéremie ((saindo da sala)): (S.I.). (61) Professora: Isso. Será que não dá pra ouvir o colega uma vez, gente? Agora, toda vez eu tenho que conversar isso com vocês? Sabe que esse momento não é um momento de tá pedindo água, não é Lia? Nossa! É sempre as mesmas coisas. Eu termino de falar e todo mundo me ouviu. Mas aí agora que o outro vai falar, eu não preciso ficar quieta, porque eu já falei. Isso tá certo? (62) Aluno: Não. (63) Professora: Mas tem quem ainda não entendeu isso. Eu não entendi, Leléu. O que que cê sentiu ao ouvir a história? Porque me atrapalharam. (64) Leléu: É que eu que eu acho que aquele é menino de fogo, que tá com a pena ((coloca a mão na cabeça para ilustrar)), que tá com aquele cabelo amarelo, que tá com (S.I.) aqui. (65) Professora: Sim, mas eu quero ver se vocês entenderam uma coisa. Esses personagens que apareceram ali... são o quê? (66) Leléu: Eu acho que são os irmãos deles que estão perdidos. (67) Professora: Esses aqui? ((Aponta para os rostos de pessoas no livro.)) (68) Leléu: ((Acena com a cabeça que sim.)) (69) Lia: Eu acho que eles são alguns personagens (S.I.) ((CFMT)) (70) Professora: Peraí! Fala, Ambaye! (71) Ambaye: Eles são irmãos. (72) Professora: É? E você? ((Aponta para Arusha.)) 225     (73) Arusha: Eu acho que eles são... como é o nome daquele negócio que protegia os negros? (74) Professora: Orixás? (75) Arusha: É! (76) Professora: Então eu vou ler uma parte de novo aqui. (77) Mwambe: Eu acho que eles... ((O aluno e a professora falam ao mesmo tempo.)) (78) Professora: Olha, escutem o que eu vou ler, de novo. (79) Arusha: Mas isso foi o que ele imaginou. (80) Professora: Hã? ((Aponta o dedo para Arusha.)) (81) Arusha: Mas isso foi o que ele imaginou. (82) Professora: Pronto! Olha o que ela falou. Isso aqui, esses quatro personagens que apareceram ((mostra os personagens no livro)), ela falou que foi o que ele imaginou. Então, vamos ver se ela tá certa. Olhe só. (83) Professora: “Kofi sabia que muito longe de seu vilarejo existiam pessoas diferentes. Pessoas que não eram pretas como a gente de seu povo e de sua aldeia. Ouvia falar que eram meninos e meninas de cabelos amarelos, como a juba de Giata, o leão.” (84) Professora: Então, isso aqui são personagens, ou é coisas que ele imaginava que era assim? (85) Arusha: Imaginou. (86) Outros alunos: Imaginou. (87) Professora: Ele imaginou. (88) Mwambe: A:::h! (89) Professora: Entendeu? Por isso que quanto a gente/ que pra ouvir uma história a gente tem que tá prestando atenção. Porque se a gente perder u:::m detalhe, às vezes muda a história toda. (90) Lia: Aquele menina com a espiga na cabeça tá parecendo aquela espiga (S.I.) do sítio do pica pau. (91) Professora: Porque ele imaginava assim. E agora? Quando ele viu o menino, o que que será? Aí todo mundo fica pensando depois. O que que será que agora ele pensou? A maioria aqui acha que eles vão virar amigos. (92) Bibiana: Eu acho. (93) Mateus: Eu acho. (94) Arusha: Eu também acho. (95) Professora: E o que que será que o menino... o outro menino que chegou, o branco, o que que será/ como é que será que ele pensava sobre o Kofi? (96) Arusha: Acho que ele tinha medo por ser diferente. (97) Professora: Você ah/ então peraí... Então você acha que o menino branco também tinha medo, igual o Kofi tinha? (98) Arusha: É! (99) Professora: Alguém mais acha igual a ela ou acha diferente? ((Leléu se levanta, vai até a projeção e chama a atenção para o fato de a cor da mão do braço de um personagem estar diferente da cor do restante do braço. A professora refuta dizendo que tal fato é resultado do escaneamento. Porém, o professor-pesquisador diz que são dois braços diferentes. A professora, então, ao olhar nas ilustrações do livro percebe que são dois braços diferentes e lança um elogio a Leléu, chamando-o de “observador”. A professora, então, explica que de um lado é o povo do Kofi e do outro lado são os brancos)). (100) Professora: Então, olhe só... nós vamos continuar amanhã, né, Wagner? Amanhã vai continuar, só que todo mundo/ vou guardar esse livro aqui secretamente. Sim, só antes de 226     a gente terminar/ Arusha falou o seguinte/ eu quero ver se alguém tem uma outra coisa pra falar sobre isso. Ela falou que acha que o menino branco, o estrangeiro que chegou lá no povo de Kofi, ele também tinha medo do que ele ia encontrar. Ele também tinha medo de como eram os negros... porque ele não conhecia. Quem acha que ele também tinha medo? ((Kojo levanta a mão)) Kojo que não falou ainda. Você acha que os brancos que chegaram à aldeia também tinham esse me/o menino, aquele branco, também ficava pensando/ também tinha medo? Fala um pouquinho, Kojo? O que você acha? (101) Watende: Eu acho que ele também tinha medo. (102) Professora: Também? Porque ele não conhecia, né? Por isso? Quem mais quer falar alguma coisa sobre isso? ((Lia levanta a mão.)) (103) Professora: Fala, Lia! (104) Lia: Eu acho que depois que ele chegou/ o menino... é::: vai ser amigo dele e::: e ele vai virar negro. (105) Professora: O menino vai virar negro? (106) Lia: Aquele menino branco. (107) Professora: Cê acha que ele vai virar negro? Em que sentido? (108) Watende: A gente vai descobrir amanhã. (109) Lia: Eu não sei. (110) Professora: É. Então, pronto! (111) Watende: A gente vai descobrir amanhã. (112) Professora: A gente vai descobrir amanhã. É... Oh... o papel. A Lola, que é ajudante, vai recolher. (113) PP: Não! Pode ficar pra eles. (114) Professora: Pode? (115) PP: Pode levar pra casa. (116) Professora: Mas então traga amanhã, né? (117) PP: É porque era só a primeira parte, amanhã eu trago o resto, entendeu? (118) Professora: A:::h, pro:::nto! Beleza! ((Os alunos começam a se levantar e a professora pede a eles que voltem a se sentar.)) 6ª SESSÃO DE LEITURA Kofi e o Menino de Fogo 2ª sessão - 21/05/2015 (1) ((Os alunos já estão organizados em círculo. A professora entra na sala.)) (2) ((A professora inicia, convidando os alunos a relembrarem o que foi visto na aula passada, perguntando quem está curioso para saber o que vai acontecer, se eles refletiram sobre a história e se mudaram de ideia sobre suas impressões iniciais. A professora relembra que a maioria dos alunos acha que os personagens da história vão ficar amigos e que o menino branco também estava assustado.)) (3) ((A professora vai em direção à projeção e pergunta qual é o título da história. Um aluno responde “O menino de fogo”, e em seguida, outros alunos respondem “Kofi e o menino de fogo”. Nesse momento, o aluno Jéremie entra na sala e procura um lugar para sentar.)) (4) ((A professora, então, retoma a discussão, perguntando aos alunos se eles recordam o motivo de o nome do menino ser Kofi. Alguns alunos, prontamente, respondem que seu 227     nome significa “sexta-feira”. A professora complementa que todos os nomes nesse lugar têm sempre um significado. )) (5) ((A professora questiona onde o personagem morava e alguns alunos respondem “Na África.” e outros complementam "No país de Gana." É lembrada também a profissão de ferreiro do pai do personagem principal e da mãe, que trabalhava em casa cuidando dos filhos e cultivando. Mosi levanta, vai até a projeção e aponta onde está a mãe. Leléu também se levanta para apontar onde está localizado o pai de Kofi, assim como Lia, que mostra onde aparece o outro irmão do personagem principal.)) (6) ((A professora, então, continua relembrando o que foi visto na sessão anterior, mostrando na projeção como Kofi imaginava que seria um menino branco.)) (7) ((A professora pergunta se os alunos lembram o que são estrangeiros e Arusha responde que “são pessoas que vêm de um país para o outro”. Em seguida, a professora mostra a chegada dos estrangeiros e pergunta como ficou o Kofi com isso. Um aluno responde que ele ficou assustado. Leléu diz que a mulher está doente, pois a metade de sua pele está negra e a outra metade está branca. A professora, então, explica que a imagem representa a família de Kofi de um lado e os brancos recém-chegados do outro. Ela sublinha a possibilidade de o ilustrador ter feito isso de propósito.)) (8) ((A professora chama a atenção de Jéremie para não atrapalhar o prosseguimento da leitura. Ele chora e diz que quer ir para casa, mas ela consola-o e convence-o a ficar.)) (9) ((O professor-pesquisador recorda que trouxe as cópias com a segunda parte do texto do livro impressa e Arusha se prontifica a ajudar na distribuição.)) (10) ((A professora faz a leitura somente das páginas 26 e 27.)) (11) Professora: E agora? O que vocês acham que vai acontecer? (12) Mosi: Acho que eles vão virar amigos. (13) Arusha: Acho que eles vão perceber as diferenças (S.I.). (14) Professora: Vão perceber as... (15) Arusha: Diferenças. (16) Professora: Ah, e como é que eles estão fazendo para perceber essa diferença? Eles fizeram o que? (17) Mosi: Se tocando. (18) (CFMT) (19) Professora: Se... Se tocaram... Hã? (20) Aluno: (S.I.). (21) Professora: Eles... Que que é? Não entendi, (S.I.). (22) Aluno: (S.I.). (23) Professora: Hã? (24)Aluno: (S.I.). (25) Professora: Só um minutinho. Hã? (26) Aluno: Vão dar a mão. (27) Professora: Vão dar a mão. Mas então ali eles estão fazendo o que mesmo, eles estão se conhecendo como ela falou, não é? ((Aponta para Arusha.)) (28) Aluno: É. (29) Aluno: (S.I.). (30) Professora: Alguém mais quer falar? ((Lia levanta a mão.)) (31) Professora: Fale, Lia. (32) Lia: Eu acho que eles vão virar amigos. (33) Professora: Pronto. ((Vários alunos concordam com a colocação de Lia.)) 228     (34) Professora: Mas para isso, antes eles estavam fazendo uma coisa que ela/ que a/ que a Arusha falou. (35) Aluno: Eu sei! Eles estão se conhecendo! (36) Professora: Estão se conhecendo, não é? Vamos lá. (37) (CFMT) (38) ((A professora, então, lê as páginas 28 e 29.)) (39) Professora: Quem falou que/? (40) Arusha: Eu adivinhei. (41) Professora: A:::h. Então os dois sorriram um para o outro e apertaram as mãos. ((Leléu levanta e vai até a projeção apontar algo.)) (42) Kojo: Lá vai, lá vai. (43) Leléu: É a chinela (S.I.) ((Aponta para o desenho da sandália do menino de fogo.)) (44) Professora: É. (45) (CFMT) ((Jéremie levanta e faz um gesto para o professor-pesquisador)) (46) Jéremie: Vamos aqui. Vamos. Vamos lá fora pegar visgo, porque lá tem um passarinho. (47) Professora: Vamos sentar, Jéremie? Olha... Enquanto eu estiver lendo, tem que prestar atenção. (48) ((A professora continua a leitura da história.)) (49) Professora: quem já sabe ler bem, aí, é só acompanhar ali. Tá vendo? (50) Kojo: De quatro em quatro anos. (51) Professora: “Que conta”/ Quem? Como? (52) Lia: De quatro em quatro anos. (53) Professora: De quatro em quatro anos. Muito bem. (54) Professora: “Que conta com jogadores como”/ Pode falar. (( O aluno Bodru lê os nomes dos jogadores ganeses citados no livro.)) (55) Professora: Você já ouviu falar deles? (56) Bodru: Aham. (57) Aluno: A (S.I.) eu já ouvi. Agora (S.I.) (58) Professora: E ele leu muito bem, não é? Os nomes. Eu estava até me atrapalhando para falar esse, esse (S.I.)/ (59) Kojo: Tia, tia, tia, tia. ((Jéremie anda em direção à porta.)) (60) Professora: Não sai. (61) ((Todos falam, enquanto Jéremie sai da sala.)) (62) Professora: Então, olha, depois eu pergunto (S.I.). Vamos continuar. Agora fiquei curiosa que ele está por dentro aí dos jogadores. (63) ((A professora finaliza a leitura da história.)) ((Jéremie retorna a sala de aula em 00:15:45.)) (64) Kojo: O que vem agora? ((No momento em que a professora passa o último slide, vários alunos expressam tristeza pela história ter chegado ao fim.)) (65) Professora: Isso que vem agora, eu vou mostrar outro dia. ((Referindo-se às informações extras contidas no livro.)) ((Vários alunos expressam tristeza.)) (66) Professora: Não, olha. Numa outra hora, sabe por que? Isso aí vai falar um pouquinho/ Quem lê? ((Bodru e Arusha levantam a mão.)) (67) Professora: Pode ler. Peraí. O Jéremie, O::: Bodru levantou a mão/ 229     (68) Aluno: (S.I.). (69) Professora: Pode ler. Então deixa ele ler você, pode deixar ele ler que ele levantou a mão. Pode ler para mim, por favor. ((Bodru lê o título da página de informações extras.)) (70) Professora: No país de? (71) ((Jéremie soletra e tenta ler o título da página de informações extras.)) (72) Professora: (S.I.), muito bem. (73.) Professora: Certo? Então, vamos voltar. Porque agora a gente já viu a história toda. (74) Jéremie: Ficou como? ((Questionando ao pesquisador sobre o resultado de sua leitura.)) (75) Professora: Ontem eu perguntei, aí, vou perguntar de novo. (76) ((Ouve-se a voz de Jéremie, que conversa com o professor-pesquisador.)) (77) Professora: Lembra que ontem cada um já falou, o que é que sentiu quando ouviu a história? (78) Jéremie: (S.I.). (79) Professora: Hã? (80) Jéremie: Ficou "saiba"? (81) Professora: Isso. "Saiba". Para você saber mais, aprender mais... Conhecer mais... entendeu? A gente, lembra que a gente já viu onde fica Gana no mapa? (82) Jéremie: Já. (83) Professora: Então agente vai ler e depois a gente vai descobrir mais sobre Gana. (84) (CFMT) (85) Professora: Então, olhe só. Não, vamos agora, eu vou sentar aqui para voltar as perguntas. Bom, ontem eu perguntei o que vocês tinham achado até então e agora eu queria saber uma coisa. É::: Como Kofi imaginava as pessoas que não eram negras antes de conhecê-las? ... Quem quer falar levanta a mão. ((Mosi, Arusha e Lia levantam a mão)) (86) Professora: Aqui. ((Aponta para Mosi.)) (87) Professora: Só um minutinho que eu vou, (S.I.) ainda não entendeu o sentido de resp/ Lembre-se que o respeito não é só ouvir. É olhar para a pessoa para prestar atenção, (S.I.). E ela fi/ levantou a mão. Pode falar. (88) Mosi: Eu acho que ele teve muito medo porque pensava que ele era de fogo. (89) Professora: Muito medo porque imaginava que ele era de fogo. Quem mais levantou a mão? Lola quer falar? Então pode levantar a mão quando você quiser falar. O que é que (S.I.)/ Como é que ele imaginou as pessoas que não eram negras? (90) Lola: (S.I.). (91) Professora: Mas por que que ele estava com medo antes de conhecer? O que é que ele imaginava? (92) Lola: (S.I.). (93) Professora: Que podiam queimar a pele dele, não é? Ah tá. É, Lia e, é... Arusha... Peraí só um minutinho. Vamos parar com/ vamos deixar a folha aqui ((A professora coloca a folha no chão.)) (94) Professora: Sabe por quê? Porque, se a gente balança a folha, eu não consigo ouvir o que o colega fala e eu quero ouvir a pessoa... Tá certo:::, Dindi? A folha aqui onde eu coloquei é minha. Pode falar agora, que agora eu vou conseguir te escutar. (95) Arusha: Eu acho que (S.I.) que as pessoas, é, branca (S.I.), a pele dela (S.I.) queimar. (96) Professora: Sim, elas (S.I.), não é? Quem mais quer falar? ((Kojo e Lia levantam a mão.)) (97) Professora: Pod/ Vamos na ordem? ((A professora aponta para o aluno Kojo)). Vá. (98) Kojo: Eu (S.I.) imaginando porque, é:::/ 230     (99) Professora: Como Kofi imaginava (S.I.). Como que ele imaginava? Você levantou a mão, você queria falar. (100) Kojo: Ele imaginava que tinha umas coisas aqui ((Leva a mão à cabeça)). (101) Lia: Eu sei. (102) Professora: Como se fossem penas. A:::h, certo. Lia. (103) Lia: Eu acho que ele achava:::a que:::e os brancos, eles, quando tocava na pessoa, é:::, a pessoa:::a queimava. (104) Professora: Aí você acha que esse é um dos motivos que ele tinha medo? (105) Lia: Medo. (106) Professora: Certo. Mais alguém quer falar sobre isso? Sobre como ele imaginava? Sim, aí depois de ele ter encontrado o menino e outras pessoas brancas, ele continuou pensando do mesmo jeito? ((Leléu levanta a mão e sai da sala de aula.)) (107) Professora: Sim, depois, então, Kofi conheceu o bran/ o::: o::: menino branco e, não só o menino branco, como outras pessoas, e aí, ele continuou pensando do mesmo jeito? (108) Alunos: Não. (109) Professora: Não. Por quê? O que é que ele fez para descobrir que essas pessoas não eram como ele imaginava? (110) Aluno: Ele tocou. (111) Professora: Ele tocou. O que mais que ele fez? (112) Aluno: Tocou para ver se (S.I.)/ (113) Mosi: Ô, tia. (114) Professora: E aí, o que mais? Aí ele viu que não queimava. O que mais que ele fez? (115) Mosi: Tia. (116) Professora: Oi. (117) Mosi: Eu pensava que ia aparece um menino de fogo. (118) Professora: Você pensou que ia aparecer um menino de fogo? (119) Mosi: Sim. (120) Kojo: Eu também. (S.I.). (121) Professora: Sim, mas eu quero saber assim; o Kofi foi lá e viu, tocou. O que mais? O que ele foi descobrindo? Ele mudou de opinião depois que ele viu ou ele continuou achando que o/ que as pessoas brancas eram como fogo, tinham a/ o cabelo tipo espiga de milho? Ambaye, você que estava falando. (122) Ambaye: Agora (S.I.). (123) Professora: Arusha. (124) Aluno: Esqueceu. (125) Professora: Pode falar. (126) (CFMT) (127) Professora: Quem mais quer falar um pouquinho? Mudou então, não é? Mudou de opinião. E em que Kofi e o menino eram diferentes? (128) Arusha: Na cor e também porque/ (129) Leléu: E na roupa. (130) Professora: Vamos lá. Na cor/ (131) Alunos: E na roupa. (132) Professora: E na roupa. (133) Mosi: E na cueca. (134) Arusha: E a cor do cabelo. (135) Professora: A cor do cabelo, no caso, não é? (136) (CFMT) (137) Mosi: E a pele, tia. 231     (138) Professora: Sim, a pele é a cor. E o que é que eles tinham de parecidos? Ou de iguais? (139) (CFMT) (140) Leléu: A unha. (141) Professora: Sim, unha que todo mundo tem. O que mais? Hã. Uma coisa que ela falou aí. ((Aponta para Arusha.)) (142) Arusha: Sabiam jogar futebol. (143) Professora: Sabiam jogar futebol/ (144) Dindi: O cabelo. (145) Professora: Não. O que é que eles tinham de parecido. O cabelo deles eram parecidos? (146) ((Vários alunos respondem que não)). (147) Professora: Do Kofi e do/ (148) Aluno: Não. (149) Professora: Primeiro eles falaram assim, oh. Eu perguntei o que é que eles tinham de diferentes. Aí vocês falaram que era a cor da pele, o cabelo, o que mais? Falaram mais alguma coisa/ (150) Aluno: A roupa. (151) Professora: As roupas. Pronto. (152) (CFMT) (153) Professora: Hã? (154) Leléu: A cor. (155) Professora: Não, vocês já falaram que é a cor da pele. (156) Leléu: (S.I.). (157) Professora: Não, isso, agora vocês têm que ouvir. Primeiro o que eles tinham de igual/ de diferente. Agora perguntei o que é que eles tinham de igual. Aí você falou “a unha” é igual, o que mais? Eles jogavam futebol. (Fala apontando para Arusha). (158) Arusha: E tinham muitos amigos. (159) Professora: Tinham muitos amigos. Ali, no caso, o Kofi tinha uns amigos e apresentou para esse outro. (160) Arusha: É. (161) Professora: O outro menino que chegou. (162) Professora: O que mais que eles tinham de parecido? (163) Aluno: Viraram amigos. (164) Professora: Sim, viraram amigos. O que mais? O que é que eles eram? (165) (CFMT) (166) Professora: Hã? (167) Lia: Meninos. (168) Professora: Meninos. Isso é igual, não é? Não eram iguais (S.I.). (169) Arusha: Humanos. (170) Professora: Ah, eles eram hu/ (171) ((Vários alunos respondem: “ma:::nos”)) (172) Professora. Humanos. Olha/ (173) PP: Jéremie também falou humanos. (174) Professora: Então você prestou atenção. Então ele, bem. Eles tinham mais coisas parecidas ou mais coisas diferentes? (175) (Vários alunos respondem: “parecidas”). (176) Professora: Muitas coisas parecidas, não é? E poucas coisas diferentes. Uma coisa que quase ninguém falou. Eles, eles eram de lugares diferentes, não é? Um morava em Gana e o outro morava na/ 232     (177) Aluno: África. (178) Arusha: África não, é::: (179) Aluno: É na cidade. (180) Aluno: Brasil. (181) Professora: Que cidade era que eles chegaram/ Aquele barco com/ (182) Kojo: Inglat/ (183) Professora: Hã? (184) Kojo: Inglaterra. (185) Professora: Inglaterra. Lembra que a gente viu no mapa também, que eu mostrei para vocês a Inglaterra, Portugal, e o trajeto que eles fizeram? (186) Aluno: E Madagascar. (187) (CFMT) (188) Professora: E agora eu queria perguntar para vocês uma coisa. Oh, nós, nós aqui, oh... ((Professora e alunos falam ao mesmo tempo.)) (189) (CFMT) (190) Professora: Nós. Todos. O que é que nós temos de diferente e o que é que nós temos de, igual? (191) (CFMT) (192) Professora: O que é que nós temos de igual. Não, primeiro de diferente. (193) Aluno: Jéremie. (194) Professora: Vocês. Vamos, vamos/ (195) Aluno: O cabelo. (196) (CFMT) (197) Professora: Tá, mas eu queria assim, oh: que a gente olhasse aqui, pra gente agora. Aqui. O que a gente tem, assim, de parecido, de diferente. (198) (CFMT) (199) Professora: Peraí. Peraí. Só um minuto. Tem que falar um de cada vez. Levantar a mão. O::: Fala aqui o que nós temos, que você falou de diferente. (200) Mosi: Foi, é, a cor da pele/ (201) Professora: A cor da pele. A noss/ Todo mundo tem a cor da pele igual? (202) Alunos: Nã:::o. (203) Professora: Não, né? Qual é a diferença da nossa cor da pele? (204) (CFMT) (205) Professora: Hã? (206) Kojo: Umas é branca e (S.I.)/ (207) Professora: E outras são? (208) Kojo: Negras. (209) Professora: Negras. E mesmo assim um pouco diferente uma da outra também, não é? ... O que mais? Ela falou que você e quem? Você e Zalira tem a cor parecida? ((A professora aponta para Zalira e Bina.)) (210) Professora: Quem mais? (211) (CMFT) (212) Arusha: Ambaye. (213) Ambaye: Eu não. Eu (S.I.). (213) Professora: Ambaye, você acha que a sua cor não é parecida com a delas? ((A professora aponta para Zalira e Bina e Ambaye acena que não com a cabeça.)) (214) Professora: E a sua é parecida com a de quem? ((Ambaye aponta para Dindi.)) (215) Professora: Com a de? ... Dindi. E a sua, Dindi? É parecida com a de quem? Você acha que a sua cor é só parecida com a dela, com a dele? 233     ((O aluno Dindi aponta para Zalira e Bina.)) (216) Professora: Com mais quem? Com as duas também. (217) Ambaye: Com a dele e com a dela. ((Aponta para Dindi e Bina.)) (218) (CFMT) ((Jéremie foi até o notebook e alterou o slide.)) (219) Professora: Não, não pode mexer aí. (220) (CFMT) (221) Professora: Pronto. Aí a noss/ Alguém falou também que tem um cabelo parecido com alguém aí. (222) (CFMT) (223) Professora: Você e Zalira. ((A professora aponta para Lia.)) (224) (CFMT) (225) Professora: Hã? Olha, o Mosi tem o cabelo parecido com? (226) Ambaye: De Jéremie. (227) Professora: E de? (228) Aluno: E de Bodru. (229) Professora: Quem faltou hoje que tem o cabelo quase igual ao dele? (230) Lia: Suhuba. (231) Professora: Ah, Suhuba é igual o dele? (232) Arusha: Bibiana. (233) Professora: Bibiana. O Suhuba tem o cabelo parecido com o de quem? (234) Kojo: Arusha. (235) Professora: Arusha. (236) (CFMT) (237) Professora: E quem mais tem a cor aí parecida? (238) (CFMT) (239) Professora: E parecido? O que é que todo mundo é? Bom, vocês falaram aquela hora/ (240) Arusha: E parecido que todo mundo quer estudar. (241) Professora: Todo mundo quer estudar? (242) Arusha: É. (243) Professora: É? ((A professora aplaude a resposta da aluna.)) ((A discussão é interrompida em 00:26:58, com a chegada da merendeira e retomada em 00:27:24)) (244) Professora: Peraí/ (245) Lia: (S.I.) (246) Professora: Tá, olha, ela repetiu. O que nós temos de muito parecidos? Todos somos? (247) Lia: Humanos. (248) Arusha: Professora, é diferente a cor do olho também. (249) Professora: A cor do olho é diferente. (250) (CFMT) (251) Professora: A Bina, que não falou ainda. (252) Bina: (S.I.) verde e azul. (253) Professora: Então, vamos lá. Então, voltando, voltando. Então... Vamos sentar aqui? Eu quero fazer uma pergunta para vocês. Fala, (S.I.). (254) Mwambe: (S.I.). (255) Professor: Hã? (256) Mwambe: (S.I.). (257) Professora: Não estou ouvindo. 234     (258) Mwambe: Eu sou primo dele. ((Aponta para Leléu.)) (259) Professora: Você é primo dele? (260) Mwambe: Aham. (261) Professora: É mesmo? Vocês nunca me contaram isso. (262) (CFMT) (263) Professora: É, Leléu, vamos sentar assim, senão você acaba batendo nos seus colegas. Lembra por que a gente senta assim? ((A professora faz um gesto para o aluno sentar.)) (264) Professora: Olha, hoje tem alguém que está de parabéns. Depois eu vou dizer. (265) (CFMT) (266) Professora: Olhe só, agora eu queria fazer uma pergunta. Ontem a Arusha falou uma palavra aqui, ela disse “preconceito”. E ela explicou. Eu gostaria que ela explicasse essa palavra. Você lembra que você falou. O que é que você, para você, o que é que é preconceito? (267) (CFMT) ((Nesse momento, Jéremie levanta e começa a andar no meio do círculo de alunos.)) (268) Professora: Peraí, só um minutinho. Não. Bodru/ É::: Jéremie, você está atrapalhando. ((Jéremie volta a sentar, rindo.)) (269) Professora: Não. Oh, ninguém está gostando, não... Sim, deixa agora, agora vamos ouvir a Arusha. (S.I.) silêncio total para ouvir. O papel era aonde? (270) Aluno: No chão. (271) Professora: Então, vamos. Pode falar. (272) Arusha: (S.I.) (273) Professora: Mais alto. (274) Arusha: Uma pessoa branca (S.I.) uma pessoa negra é::: (S.I.), a pessoa negra é negra (S.I.). E também quando ele (S.I.), parece que, uma pessoa xinga a outra vai presa. (275) Professora: Hum. Porque ela também teve um preconceito com aquela pessoa, não é? Quem sabe explicar, sabe o que é preconceito ou quer com, falar alguma coisa que ela disse, quer complementar o que ela disse? Mais alguém tem uma ideia do que que é preconceito? Vocês acham que é isso que ela disse, mais ou menos isso? (276) Aluno: É. (277) Professora: Mais ou menos. Olhem só. Pode falar. ((A professora aponta para Bodru, que levantou a mão/)) (278) Bodru: Antigamente::: os pretos não (S.I.). (279) Professora: Como é que é? (280) Bodru: Antigamente não podiam namorar. (281) Professora: Não podiam namorar. E você acha que isso é uma forma de preconceito. (282) Leléu: É. (283) Professora: É? Não, peraí. Deixa só eu ouvir porque foi ele que falou. Depois eu vou perg/ Depois você fala, tá, Leléu? Você acha que isso é um preconceito ou não, para você tem que ser assim mesmo? Você a/ (284) Bodru: Preconceito. (285) Professora: É um preconceito, não é? Você acha certo esse tipo de coisa, esse preconceito? (286) Bodru: Não, não acho. (287) Professora: Não acha certo. Tá. Então olhe só. Preconc/ ((Leléu levanta a mão)) (288) Professora: Pode falar. (289) Leléu: (S.I.) não tem preconceito. 235     (290) Professora: Não tem preconceito. Ela é negra e seu irmão é branco. Também a gente fala assim/ porque cor não tem só negro e branco, não é? A gente, é/ mistura o (S.I.) as pessoas falam pardo. É quando tem essa mistura. (291) (CFMT) (292) Professora: Oi? ((A professora aponta para Lola)) (293) Lola: (S.I.) (294) (CFMT) (295) Professora: Peraí. Oh, oh/ Lola. (296) Lola: (S.I.) (297) Professora: Diferença o quê? A cor da pele? (298) Lola: É. (299) Professora: Mas ela é sua irmã. Não deixou de ser sua irmã, não é isso? Mesmo uma sendo bem diferente da outra, não é? (300) Lola: É. (301) Professora. Muito bem. Então, olhe só. O preconceito, Leléu, era o que Kofi tinha antes de conhecer o menino. Ele nem conhecia o menino e ele já começou a imaginar, a formular um monte de coisas na cabeça dele, achando que ele tinha:::, é::: é:::, cor, é, era, pele de fogo, cabelo parecendo pena. Mesmo sem conhecer, ele já formou uma opinião sobre o menino branco, ficou com medo. Porque a gente, a gente sempre não tem medo daquilo que a gente não conhece, não é, Ambaye? Fica com um pouco de medo. E o que o menino tinha em relação ao Kofi? Será que era preconceito também? Heim? (302) Kojo: Eu não sei. (303) Professora: Sim ou não? Porque ele também achava que se passasse a mão, o dedo no menino, ia sair a tinta. Isso é um preconceito? ((Vários alunos respondem “sim”)) (304) Professora: A gente já/ (305) Arusha: Não é tinta, é cor. (306) Professora: Então, mas ele, ele achava que se ele passasse, aí ia sair a cor. Mas ele comparava a uma tinta. Como se fosse uma tinta que ia sair. Aí depois que eles se encontraram, cada um tinha lá o seu preconceito em relação ao outro, ou seja, ideias diferentes de como eles eram, mesmo sem conhecer. A gente faz isso muitas vezes. Por exemplo, lembra que eu falei para vocês que alguns, alguns falaram aí (S.I.) que a mãe falou em casa que era mais uma coisa para o mal e eu falei que eu também pensava assim. Acho que foi você, não é Watende? Sua mãe falou/ que eu também pensava assim antes, não que era do mal, mas eu não conhecia. Então as pessoas falavam para mim e eu ficava, faz/ tendo preconceitos. E agora que eu conheci, que eu fui ler, eu já mudei. O preconceito é o seguinte: tem esse preconceito antes de conhecer, depois que conhece a gente pode mudar de opinião, e ver realmente o que é. Tem pessoas que têm preconceito contra religiões. Ah, n/ nem conhece aquela religião e diz “(S.I.) mal”. “Ah, aquela religião eu não vou porque (S.I.)”. Isso é preconceito. Não é, Lia? O que mais? Você pode me dizer alguma coisa que você acha que, você já viu alguém ter preconceito, não em relação a outra pessoa, mas alguma coisa. Por exemplo, eu falei outra, religião. Alguém sabe me dizer uma forma de preconceito? ((Arusha levanta a mão.)) (307) Professora: Quem que responder ? Fora a Arusha? (308) Ambaye: Ela. ((Aponta para Arusha.)) (309) Professora: Arusha, então. (310) Arusha: Minha mãe não (S.I.). Aí ela disse para mim não fica:::r falando dessas coisas de Orixás. 236     (311) Professora: Sim, aí depois tu, você chegou em casa e falou para ela da história que a gente aprendeu aqui? (312) Arusha: Aí ela mudou. (313) Professora: Foi? Você contou mesmo? Vocês podem estar sempre contando isso em casa, inclusive/ inclusive hoje, uma das atividades que vocês vão levar para casa, para fazer, vai ser isso. Olhe só. Uma coisa que eu falei lá na sala, que às vezes vocês não prestam atenção. Eu pedi que isso ficasse parado não é? ((A professora aponta para o papel)). Lia, Dindi, e não tá. O meu já está aqui. (314) PP: Ajudante? Quem é o ajudante? (315) Professora: Ajudante. (316) PP: Ajudante? ((Arusha levanta para pegar os papéis com o professor-pesquisador.)) (317) Professora: Esse papel que vocês vão levar para casa, vocês vão (S.I.)/ (318) Ambaye: De novo? (319) Professora: De novo? Olha. Peraí. Ele agora já teve um preconceito porque ele nem sabe o que é e já disse “de novo”... Você já sabe o que é? (320) Ambaye: Não. (321) Professora: Então você já está julgando sem saber. Preconceito é isso, a gente julga sem saber, sem conhecer. Pode entregar. ((A professora aponta para Arusha distribuir o material entregue pelo professor-pesquisador.)) (322) (CFMT) (323) Professora: Isso aí, não é para amassar nenhum desses papéis. Só se dobrar assim, tudo bem, mas, me dê um, por favor? (324) (CFMT) (325) Professora: Esse, olhe só. A Bina fez uma coisa legal. Ela levou para casa a primeira, o pai dela leu. Aí agora ela vai levar a segunda parte, o pai dela vai saber o final da história. (326) (CFMT) (327) Professora: Lembra que eu falei que (a gente aprendeu a) ouvir primeiro? (S.I.). Eu já expliquei isso aqui? (328) Arusha: Não. (329) Professora: Então por que é que já tem gente perguntando se eu não expliquei? ... A paciência... Vamos exercitar a paciência, vou colocar essa palavra lá, porque quase ninguém está conseguindo. Pode falar. (330) Mosi: Eu estou só ouvindo hoje. (331) Professora: Você está bem, mas não é só para ouvir, é para falar/ 2º vídeo (1) Professora: Então, vou fazer uma pergunta para você, antes de eu falar aqui. A gente falou de preconceito, agora vou perguntar. Depois que eles se conheceram, o que cê achou? O que aconteceu com ele/ Eles continuaram com esses preconceitos? (2) Aluno: Não. (3) Professora: (S.I.). Depois que se tocaram, que eles começaram a brincar, eles continuaram com o preconceito, de achar que não tinha/ (4) Aluno: Não. (5) ((A professora, então, começa a leitura de um comunicado, que deverá ser entregue aos pais, no qual é solicitada a colaboração deles para conversarem com seus filhos sobre as questões: “O que é preconceito racial?”, “Existe preconceito racial no Brasil?” e “O que nós podemos fazer para ajudar a acabar com o preconceito racial?”.)) 237     (6) Professora: Então, quem já sabe ler, vai chegar e vai ler, vai mostrar para o pai e depois junto, vão responder essas perguntas. Discutindo. (7) (CFMT) (8) Professora: Discutindo/ Por que cê/ só um minuto. O que que é discutir para você? (9) (CFMT) (10) Professora: Não, peraí. Ela, ela, ela, fa/ fez assim quando falou “discutir”. Eu quero saber, o que que é discutir para vocês? ... Discutir é o que? O que que é discutir para vocês? (11) (CFMT) (12) Professora: Hã? (13) Leléu: Meio que brigar. (14) Professora: Meio que brigar? Quem tem/ (15) Ambaye: Falando, assim. Falando assim, com o outro. (16) Professora: Peraí, só um minutinho. Falando com o outro? Peraí:::. Fala, Bodru. ... Oh. Ele falou “conversando”, aí ele falou meio que brigando. (17) Professora: Discutir não quer dizer que vai brigar, não. É assim: é o que a gente está fazendo aqui. Fala, é::: ((A professora aponta Lia)) (18) Lia: Eu acho que é::: quando a pessoa (S.I.) e eu respondo. (19) Professora: É, mais ou menos isso. Discutir é assim, é o que a gente/ Hã? (20) Bodru: Batendo papo. (21) Professora: Batendo papo. É, mas não é batendo um papo assim , sob qualquer coisa. Geralmen/ Quando a gente está discutindo, eu falo uma opinião, você dá a sua, e a gente junto vai formando um conceito. Tá certo? Então, não é brigar. Vocês vão chegar em casa, vão bater um pap/ Vão bater um papo com o pai de vocês, mas numa discussão não pode só ouvir. Um fala e o outro dá opinião. Então, tem o momento da leitura e aqui sempre tem o momento da discussão, em que todo mundo participa, tá certo? Então olhe só. Essa folha a gente vai ter que guardar com cuidado. Quem dobrou uma vez não vai dobrar mais, vai guardar dentro do livro e eu vou colocar na agenda. (22) PP: Tem um detalhe. Igual a Bina fez, né? Quem quiser mostrar pro pai a história, (S.I.) vai ficar curioso de conhecer a história, pode mostrar. ((Os alunos começam a se levantar e a professora pede a eles que voltem a se sentar.)) (23) Professora: O que ele falou, eu quero reforçar. Todo mundo ganhou uma folhinha ontem e ganhou uma folhinha hoje. A primeira parte da história e a segunda. De preferência, quando vocês forem/ foi bom até lembrar disso/ discutir isso aqui com o pai de vocês ou com a mãe ou com a avó ou com a tia, com alguém da família, ou com o irmão, leiam ou peçam para o pai ou a mãe, ler a história. Porque aí eles vão conseguir entender melhor. Certo? Certo ou não? ((Os alunos respondem “certo”)) (24) Então pronto. Segura aqui. Esse é seu? Quem são esses que eu tava aqui na mão? ... Leléu, agora, voc/ agora que você deixou eu terminar de falar, você pode fazer a pergunta. Você levantou daí para fazer a pergunta. (25) Leléu: Ah, sim. Pode dobrar (S.I.)? (26) Professora: Dobrar como ela fez, pode. (27) Professora: Não pode amassar. Isso. Assim tá ótimo. ((A professora aponta para Kojo.)) (28) (CFMT) (29) A professora pede palmas para Mosi e, em seguida, todos levantam. 7ª SESSÃO DE LEITURA 238     Bruna e a Galinha d’Angola 1ª sessão - 26/05/2015 (1) ((A professora ajusta o posicionamento das crianças, organizando-os todos sentados em círculo. Em seguida, solicita que o ajudante conte a quantidade de alunos ali presentes, havendo uma pequena confusão entre os alunos quanto a quem deveria ser o ajudante, resolvida rapidamente. O ajudante, Dindi, chegou a conclusão de que 14 alunos estavam presentes. )) (2) ((A professora adverte Ambaye, e pede para que o Doto fique entre Ambaye e Leléu.)) 00:08 - 00:12 - Pré-Leitura (3) ((Os alunos estão organizados em círculo, em frente à projeção de um mapa-mundi, que é utilizado pela professora para testar os conhecimentos prévios dos alunos a respeito da localização do Rio Grande do Norte, da cidade do Natal, do continente africano, etc. Os estudantes se levantam e vão até a projeção para apontar a localização dos países e continentes mencionados pela professora.)) (4) ((A professora afirma que eles estudariam o país de nome Angola. Lola associou prontamente o nome à “Galinha de Angola”, surpreendendo a docente, que acabou por revelar à turma que iriam estudar o conto “Bruna e a Galinha de Angola”.)) (5) ((A professora relembra os continentes com os alunos, estimulando-os a lembrarem dos conteúdos anteriormente estudados, como, por exemplo, quando foi indagado se eles se recordavam do país (apontando para Portugal) que colonizou o Brasil e Angola. Neste contexto, a professora pergunta “o que era colonizar?”, bem como qual a diferença entre uma metrópole e uma colônia.)) (6) ((Bibiana é chamada atenção pela professora, que a muda de lugar, mesma estratégia utilizada com o Ambaye e o Leléu.)) (7) ((Arusha levanta a mão para responder, mas a professora repete o questionamento para o restante da turma: “alguém além da Arusha sabe o que metrópole e o que é colônia?”)) (8) ((Como ninguém responde, a professora autoriza Arusha a responder, quando ela diz: “colonizar é quando um país controla o outro”.)) (9) Professora: “Quem mais tem o que acrescentar, por exemplo, a metrópole é país que controle ou é controlado?” (10) Alunos: “Que é controlado!” (11) Professora:“Metrópole é o país que é controlado, é? E a colônia é quem manda? (12) Doto: É! (13) Arusha: Não! (14) Professora: Não... É o contrário. A metrópole, oh/ (aponta para o mapa, sinalizando o caminho de Portugal para a África) vem para cá, chegou aqui e colonizou aqui, ou seja, começou a mandar, a governar este lugar aqui, e daqui também começou a retirar algumas coisas daqui. Por exemplo, daqui foram retirados muitos escravos. (15) ((Mosi pergunta: “tia, eles [os colonizadores] fizeram essa volta toda?” A professora chama Mosi para ir ao quadro, ele se levanta e sinaliza a ida dos colonizadores da África para a América do Sul.)) 239     (16) Professora: (apontando para a América do Sul) Pronto ... ficaram aqui, descobriram aqui, e depois alguns portugueses (aponta para a África) vinham pra cá buscar outros escravos aqui, mas não foi só isso que eles buscavam não, tem outras coisas que eu vou mostrar pra vocês aqui. (17) Arusha: Professora deixa eu ver o livro? (18) Professora: Não, hoje vocês não vão ver o livro não, hoje eu vou aproximar aqui ... quero que vocês observem uma coisa aqui. ((A professora se volta para o computador para organizar o mapa.)) (19) Arusha: Eu tenho uma dúvida: Wagner virou enfermeiro? (20) PP: Não, tô gripado. (21) Arusha: Marcelo também tá. (22) Aluno: Eu também tô. (23) Professora: Agora todo mundo vai tá gripado. (24) PP: A máscara é pra num passar gripe pra vocês. (25) Bibiana: Eu tô também tô gripada. (26) Professora: Pronto, aqui, vamos achar aqui, cadê a Angola? Acharam? (27) Ambaye: (apontando para o mapa) Ango:::la. (28) Arusha: Achei:::. (29) Professora: E quem acha Gana? (30) ((Dindi se levanta e vai em direção ao mapa.)) (31) Mosi: Ali, lá em cima. (32) Lia: Ali! (33) ((Muitos alunos apontam para o mapa e dizem ali. Arusha se levanta e põe a mão para assinalar.)) (34) Professora: Acho que todo mundo já achou a Angola aí ... Isso/ tá bem grande, oh/ aqui a Angola. Vocês acham que aqui (apontando novamente para o mapa) tem mais floresta ou parte seca? (35) ((Os alunos respondem quase em coro “mais floresta”.)) (36) Professora: “Como vocês sabem disso?” (37) ((Os alunos respondem de maneira desordenada: “Porque tem verde”, “Porque tá todo verde”.)) (38) Professora: Vocês sabiam que Angola é maior que esses países que a gente já viu, do que a Tanzânia e maior que Gana? 39) Professora: Vocês sabiam que quem chegou lá [em Angola] e colonizou foram os portugueses? Que língua eles falam lá? ((Os alunos respondem: “português!”)) (40) Professora: Vocês sabiam que tem algumas palavrinhas que a gente fala que são de origem angolana, que veio de lá? ((Em seguida, a professora distribuiu para os alunos pequenos papéis com algumas palavras do português brasileiro de origem angolana, algumas das quais são reconhecidas pelos alunos, tais como: “cochilo”, “minhoca”, “berimbau”, “maracatu”, “jiló”, “quiabo”, “melancia”, “quilombo”, “mungunzá”, “pagode”, “azeite de dendê”, “moleque”, “cafuné”, “farofa”, “cuíca”. )) 240     (41) ((A professora retoma o tema da conversa que os alunos deveriam ter tido com os pais sobre o preconceito racial.)) (42) Bibiana: A minha mãe é branca e eu sou morena, e a minha mãe gosta da minha cor assim mesmo. (43) Lola: A minha mãe disse que eu sou morena. Todo mundo pode ser diferente. (44) Ambaye: A cor da minha irmã é igual a dela, a de Bina. ((A professora interrompe a sessão de leitura e dá início a uma outra atividade envolvendo vídeo. Ao fim do vídeo, a professora convida a turma a dançar, acompanhando o videoclip da canção A Galinha de Angola, de Vinícius de Moraes, no site Youtube.)) 8ª SESSÃO DE LEITURA Bruna e a Galinha d'Angola 2ª sessão – 27/05/2015 00:00 – 00:23 (1) ((Os alunos encontram-se sentados comodamente sobre colchões, na biblioteca, de frente para a projeção do livro na parede. A professora começa a aula questionando se os alunos lembravam qual o nome do país que iria ser estudado naquele dia. Os alunos respondem “Angola!”, prontamente.)) (2) ((A professora explica sobre a avó de Bruna, personagem do conto em questão, destacando o tema da ancestralidade/descendência relacionada aos familiares, como avô e avó, bisavô e bisavó. Neste âmbito, a professora incentiva a fala dos alunos sobre seus avôs e avós.)) (3) Kojo: Eu moro com minha avó e meu avô. Eles conversam também, falou coisas de quando ele era pequeno. (4) ((A professora apresenta o autor e o ilustrador do livro, bem como algumas palavras que apareceriam na história, algumas das quais já haviam sido estudadas anteriormente, dentre elas a palavra “orixá”. “Alguém lembra o que é orixá”, preguntou a docente. “Macumba!”, respondeu Bodru. A professora insiste na pergunta: “O que são os orixás africanos?”)) (5) ((Lia respondeu que “são pessoas importantes da África”. A professora afirma que eram os deuses dos africanos, sendo um dos orixás “Oxum”, a orixá das águas, que iria aparecer naquela história.)) 00:26 – 00:35 (6) ((A professora realiza a leitura oral do livro, ininterruptamente.)) 00:36 – 00:41 (7) Lola: Eu gostei muito da galinha de Angola porque ela foi botando ovo e todas as meninas ganharam uma galinha de Angola. (8) Suhuba: Gostei quando ela achou a galinha de Angola. 241     (9) ((A professora orienta os alunos a colocarem almofadas e outras coisas usadas durante a contação em seus devidos lugares.)) 9ª SESSÃO DE LEITURA Bruna e a Galinha d'Angola 3ª sessão – 28/05/2015 (1) ((A professora inicia a sessão de leitura solicitando que os alunos posicionem-se comodamente sobre os colchonetes e almofadas da biblioteca para a leitura da história.)) (2) ((A professora realiza a leitura oral do livro, ininterruptamente.)) 00:15 – 00:18 (3) ((A professora indaga por que Bruna era tão triste no começo da história.)) (4) Kojo: Porque ela não tinha com quem brincar. (5) Bodru: Porque não tinha amigos. (6) Suhuba: Porque ela estava sozinha. (7) Professora: O que vocês acham disso, de estar sozinho e não ter ninguém para brincar? (8) Zalira: Tristeza. (9) Lia: Solidão! Irajúnior só fica no facebook. (10) Professora: Tem alguém aqui que prefere brincar sozinho do quê com amigo? (11) Lia: Eu. ((A professora pergunta o porquê.)) Porque já sou acostumada. (12) ((A professora questiona a causa da Lia não gostar de brincar com os seus amigos(as) e ela responde que era porque ela queria brincar de uma coisa e os outros amigos não queriam.)) (13) Professora: Como resolver esse problema da Lia? (14) Zalira: Primeiro fazer uma brincadeira que ela quer e depois fazer uma que eles querem. (15) ((A professora reúne os alunos em círculo e solicita que eles expressem suas impressões acerca de como Bruna se sentia ao final da história.)) (16) ((A opinião dos alunos era unânime quanto a felicidade que Bruna sentira. Em seguida, a professora instiga-os a pensar sobre o que fizera de Bruna uma menina feliz.)) (17) Lia: Por causa da galinha! (18) Professora: Mas só por causa da galinha? Quem quer falar mais alguma coisa? (19) Zalira: A galinha fez ela fazer novos amigos. (20) ((A professora questiona-os sobre a importância de conversar com os avós.)) (21) Lia: É bom saber das histórias de quando eles eram pequenos. (22) Ambaye: Meu avô já contou quando era pequeno. (23) Kojo: É... ele disse que fazia carrinho de lata também, porque não tinha brinquedo como hoje, era meu avô que fazia. (24) Mosi: Quando a gente foi para o posto de saúde, ele já tinha morrido. (25) Mwambe: Eu brinco com o meu avô no almoço de corrida... pra não deixar nada. (26) (27) ((A professora pergunta se eles acreditavam na história da criação do mundo contada pela avó de Bruna e se conhecem outra história sobre a criação do mundo.)) 242     (28) Bodru: Não! O mundo foi criado por Deus. (29) Bodru: Só Deus sabe quem criou ele. (30) ((Mosi é afastado do círculo pela professora, como uma medida disciplinadora.)) (31) Lola: “Quando Deus criou o mundo, o mundo não era nada”. (32) ((A professora argumenta que eles estavam se referindo exclusivamente à versão da bíblia e informa-os que há muitas outras versões contadas sobre a origem do mundo, inclusive uma história sobre uma grande explosão que foi o Big Bang.)) (33) ((A professora tenta relativizar a verdade absoluta de cada uma das versões e 10ª SESSÃO DE LEITURA As Panquecas de Mama Panya 1ª sessão – 09/06/2015 ((A professora organiza os alunos em círculo na biblioteca.)) (1) Professora: Antes de eu mostra a capa, vou falar algumas palavrinhas. Algumas palavrinhas que vão aparecer pra ver se vocês sabem. Então, vamos lá. Quem já ouviu falar em baobá? Alguém já ouviu falar nessa palavra? "Baobá"? Vocês acham que é um animal ou uma planta? (2) Ambaye: Uma planta! (3) Mosi: Um animal! (4) Professora: É uma árvore e aqui em Nísia Floresta ela é bem conhecida, o baobá. Ela fica bem no meio da praça. (5) ((Um aluno diz algo sobre um cajueiro. A professora explica que o maior cajueiro do mundo provavelmente é o cajueiro de Pirangi, e esclarece que o baobá é uma planta diferente.)) (6) Professora: O professor Wagner está chamando atenção pra mim que essa árvore é a árvore símbolo da África e ela veio da África pra cá. É isso, Wagner? Então lá na África, com certeza, vai ter muito baobá. Uma árvore bonita, que dá sombra. E cajado? Alguém sabe o que é? (7) Aluno: Cajado de pau! (8) Lola: É casado com... (9) Professora: Cajado! Não é casado não. (10) (CFMT) (11) Professora: Nunca ouviram a palavra cajado? (12) Mosi: É um bicho... 243     (13) Professora: É um animal ou um objeto? (14) Mosi: É um objeto. Um bicho de andar. (15) Professora: Olha aqui, ele falou que era um bicho de andar. Não é que é de andar, ele ajuda né?! Pode auxiliar a pessoa a andar também. É parecido com uma bengala. (16) ((A aula é interrompida, pois um dos alunos acusa Watende de jogar objetos nele. A professora conversa com a turma sobre acusações contra um aluno.)) (17) Professora: Certo gente, eu li também que esse cajado também é usado por pastores. Pastores são aqueles que levam as ovelhas. (18) Ambaye: Tia, é tipo um pau? (19) Professora: É tipo uma bengala. Que a pessoa usa. Pode usar pra se apoiar, porque ela é arredondada assim ((faz gestos com a mão para mostrar aos alunos como é uma bengala)) ela é tipo um gancho. E o pastor, ele usa para duas coisas. O gancho/ aquela parte que é tipo um gancho ele usa pra puxar as ovelhas que estão saindo do rebanho, e a ponta as vezes ele usa pra usar assim ((a professora gesticula de forma a mostrar aos alunos que a ponta de um cajado também é utilizado pelo pastor para juntar o rebanho)). (20) Ambaye: Meu tio tem um negócio parecido. (21) Lia: Eu já vi! Porque eu assisti (S.I.) na TV e já vi. (22) Lola: Eu também! Eu também! Eu vi um (S.I.) de um homem. É o cajado de Jesus. (23) Professora: É isso mesmo, nas história bíblicas aparece bastante. É::: outra coisa, alguém sabe o que quer dizer surpreender. (24) Ambaye: Não! (25) Lola: Surpreender é uma surpresa. (26) Professora: Isso, surpreender é causar uma surpresa em alguém, espantar alguém. Surpreendi vocês com uma brincadeira. (27) Lia: Eu dei um susto na minha mãe! (28) Professora: Mas não é bem um susto, é surpreender . Não precisa ser necessariamente um susto. (29) Lola: Surpreender alguém no aniversário, não é tia? (30) Professora: Isso, pode ser surpreender alguém. Por exemplo, a pessoa chega em casa, não sabe que vai ter a festa, aí a mãe surpreende com uma festa. 244     (31) ((Por um breve momento, a aula foi interrompida com a chegada de Arusha na sala de aula.)) (32) Lia: Um dia, no aniversário da minha avó, minhas tias, minha mãe e meus irmão foram tudo pro apartamento dela. Até tia Fátima. Quando ela foi com minha prima Larissa e minha tia Fátima, aí a gente ficou tudo dentro de casa. Aí quando ela chegou e abriu a porta a gente: “Surpresa:::” . (33) Professora: É. É causar uma surpresa . (34) Mosi: Um dia eu tava lá na casa da minha tia, aí tinha uma (S.I.) pra casa da minha avó, aí a gente subiu lá pra (S.I.). Aí minha avó/ aí meu avô saiu e já foi pegando as coisas pra da pra minha tia, aí quando ela chegou a gente deu e fez surpresa pra ela. (35) Professora: Pronto. Então, olhem bem, ninguém mais vai falar de alguém que surpreendeu alguém. Todo mundo, eu sei, que vai ter um exemplo de alguma coisa que surpreendeu. O que importa é que entendeu o que é a palavra surpreendeu. Olhe só, ofegante, alguém já ouviu falar e sabe o que que é uma pessoa ofegante? (36) Bodru: Afogado! (37) Professora: Não. Afogada não, mas.. (38) Ambaye: Afobada! (39) Professora: Afobada? Mais ou menos. Mais ou menos afobada. Uma pessoa que tá respirando e que está assim ((a professora faz uma respiração ofegante)). (40) Ambaye: Cansada! Cansada! (41) Professora: Não... Por exemplo, vocês correram muito, aí vocês chegam na sala ofegantes, assim, respirando rápido. Não tem a ver com correr, oh, Kojo, a pessoa pode tá com frio e também estar ofegante, respirando rápido. (42) Lola: É, cansada. (43) Professora: É. As vezes ela tá ofegante não porque tá cansada, mas porque tá querendo descobrir alguma coisa. (44) ((A aula é interrompida mais uma vez. Desta vez, Leléu reclama que Mosi está jogando objetos nele. A professora logo resolve e volta à aula.)) (45) Professora: Agora, outra coisa. Quem já ouviu falar em cardamomo? Cardamomo? Alguém já ouviu falar em cardamomo? (46) ((Alguns alunos respondem que não.)) 245     (47) Professora: É um tempero. É um tempero usado na África. E aí eu lembrei de uma outra palavra que vai aparecer aí, que se chama especiarias. Alguém sabe o que é especiarias? Você sabe Mosi? (48) Watende: Sei. Eu sei. (49) Professora: É o que? (50) ((Watende a olha com um sorriso discreto e abaixa a cabeça.)) (51) Professora: Especiarias também são temperos, mas elas são voltadas assim pra ervas, pra ... (52) ((Novamente a aula é interrompida com acusações entre os alunos sobre jogar objetos uns nos outros.)) (53) Professora: Certo. Então, também as especiarias, tinha na África e eles usavam essas especiarias. São algumas ervas, certo? Algumas sementes que servem também com tempero. Outra coisa aqui, quem já ouviu falar em banquete? (54) ((Alguns alunos respondem que são comidas, outros complementam que são muitas comidas, e outras que são deliciosas)). (55) Professora: Só um minutinho. Vamos manter o “levantar a mão”. Quem vai falar sobre o banquete? Bina. (56) Bina: O banquete é um bocado de comida em cima da mesa. (57) Professora: Pronto, aí o banquete... Porque assim, nem todo... (58) ((Novamente os alunos se distraem jogando objetos uns nos outros e a aula é paralisada mais uma vez. A professora repreende esse comportamento e pede atenção para a aula e não para um grafite no meio da sala.)) (59) Professora: Bina, você falou que era um monte de comida em cima da mesa. Só que, assim, um banquete/ não é qualquer mesa com comida que é um banquete. Um baquete é quando as pessoas se reúnem, preparam algo diferente, especial e com bastante quantidade. E diferentes/ quer dizer, fazer comidas diferentes. Então fazer banquete pra esperar o... Em alguns lugares, antigamente, que tinha rei e rainha, faziam banquete pra esperar o rei e a rainha. (60) Bina: É e também eles faziam (S.I.) acontecer. (61) Professora: Exatamente. ((Alguns alunos continuam dispersos, Watende começa a se deitar no chão, mas a professora manda ele se sentar novamente em seu lugar)). (62) Lia: Minha tia faz um banquete no Natal. (63) Professora: No Natal (S.I.). Watende. 246     (64) Watende: (S.I.) minha mãe faz comida só pra mim. (65) Professora: Só pra você? No Natal? Geralmente o Natal é pra comemorar junto com a família. Pronto, aí outra coisa que vai aparecer aqui no banquete... Eu vou falar aqui algumas palavrinhas que vão aparecer aqui... (66) ((Watende se oferece para ler, junto com a professora, as palavras. Ela consente e começam a leitura.)) (67) Professora: Eles falam kiswahili. Quem é que lembra do kiswahili? Quem é que falava também kiswahili? Quem é que lembra? Qual é o povo? (68) Bodru: A África! (69) Professora: Sim, mas qual é o povo, da África? (70) Bodru: Batiuana? (71) Professora: Não. (72) Bodru: Tanzânia. (73) Professora: Tanzânia. Viu?! Eles falam também. É a mesma língua falada na Tanzânia. Então eu e/ o Watende vai, junto comigo, agora/ e vai tentar ler aqui e vou falar o significado. Vamos ver se você consegue. ((Watende lê a primeira palavra em kiswahili.)) (74) Professora: Asante sana! Muito obrigado. Então, quando vocês quiserem falar muito obrigado, vocês podem falar para o pai de vocês: Asante sana. Quer dizer muito obrigado. (75) ((Assim, a professora, juntamente com Watende, continua lendo palavras na língua kiswahili e apresentando seus significados em língua portuguesa, explicando cada uma delas com exemplos. Algumas palavras são repetidas pelos alunos, divertidamente.)) (76) ((Após apresentar as palavras, a professora mostra a capa do livro, identificando os autores e o ilustrador. Em seguida, inicia uma rodada de perguntas sobre a história, perguntando o que os alunos acham que a história conta. Baseados nas imagens da capa do livro e no título, os alunos falam o que acham sobre a história.)) 2º vídeo ((Os livros são distribuídos aos alunos que, em círculo, começam a folheá-los. Curiosos, olham as figuras e mostram aos colegas as que acham mais interessante. 247     Alguns já iniciam a leitura. Após cinco minutos de leitura silenciosa, a professora chama os alunos para reorganizarem melhor o círculo.)) (1) Professora: Então, hoje, vamos aproveitar ir lá pra página que mostra/ olhe só, eu quero todo mundo assim de novo viu?! Assim como eu tô. (2) Professora: Então, a história que eu vou contar pra vocês, ela se passa no Quênia. O Quênia é o país. Olhando pra cá, oh. Vocês podem acompanhar no livro de vocês oh, tá aqui. (3) ((A professora mostra aos alunos o livro aberto com o mapa do Quênia e pede que eles a acompanhem no livro que têm em mãos.)) (4) Professora: Todo mundo abre o livro. Doto, lá onde aparece o mapa . (5) Lola: Tia! Tia! (6) Professora: Olhe só, hoje o país que a gente vai conhecer é o Quênia. Ele é vizinho à Tanzânia. Inclusive, se vocês observarem aqui oh... Lembra da reserva Masai, que a gente viu naquele livro do safári na Tanzânia? Oh, ela pega um pedaço também do Quênia. (7) ((Leléu e Watende voltam do banheiro, interrompendo a aula. Leléu reclama que Watende saiu para o banheiro apenas para brigar com ele. A professora, após repreender os dois alunos, retoma a aula.)) (8) Professora: O que que você ia falar, Wagner? (9) PP: Sim, que essa reserva que você falou, a gente viu na Tanzânia. O nome dela é Serengueti. Quem lembra do Serengueti? É que no Quênia ela muda de nome, mas é a mesma reserva. (10) Professora: É a mesma reserva. Se a gente tivesse com o mapa lá a gente conseguiria ver isso né?! No computador. (11) PP: É. (12) Professora: Então vamos lá, aqui perto do rio, desse lado, do lago das vitórias, que é o lago Arusha, e perto do oceano é o lado que tem mais vegetação. Certo, oh. É que aqui não dá pra ver tão bem como da pra visualizar lá, como tá no computador. E mais aqui em cima oh, é a parte mais deserta do Quênia. E aqui oh, aqui é onde tem montanhas. Bem no meio aqui, tá vendo que tá mais marrom aqui. E alguém já viu ali um rio, Mosi viu um rio. (13) Mosi: Rio Tana. (14) Professora: Agora, olha só, apesar de no Quênia ter muitas lugares... eu vou esperar alguém deixar eu falar. Agora é o meu momento (( As crianças 248     continuam agitadas, algumas olham para os livros outras conversam e outras se levantam enquanto a professora fala. Após alguns momentos, a professora retoma a explicação)). (15) Professora: O Quênia tem muita vegetação, mas também tem muitas cidades grandes. O nome de uma dessas cidades que tem aqui oh, se chama Nairóbi. Lembra que eu falei pra vocês. Vou ver se uma hora eu mostro cidades grandes, desenvolvidas, como se fosse Natal, São Paulo. Com muitos edifícios, lojas, com shoppings. Agora, quase todas as história que a gente viu ... (16) Watende: Tia, o que é um shopping? (17) Professora: Você sabe o que é um shopping. (18) Watende: Não sei... (19) Professora: Agora, muitas pessoas moram fora dessas cidades e hoje vamos falar de algumas dessas pessoas, que é a Mama Panya e veremos o que mais agora que vou começar. Então vamos fazer o seguinte. Agora é oh, só ouvir, acompanhando. (20) 12:16 - 22:00 ((A professora inicia a leitura da história enquanto os alunos acompanham a leitura pelo livro. Watende continua agitado, mas a professora consegue fazê-lo se concentrar na aula, levando-o a ler o livro. Alguns outros alunos, como Ambaye e Leléu , também não acompanham e a professora chama- lhes a atenção. Após essas interrupções, a leitura prossegue mais tranquilamente. Uma palavra que ainda não havia sido explicada pela professora aparece, então ela interrompe a leitura alguns instantes para explicar seu significado.)) (21) Professora: Hum:: Mbira eu esqueci de dizer o que é, então eu vou falar agora. É um instrumento que tá ali na mão do professor. ((O professor-pesquisador começa a tocar a mbira e todos os alunos olham com curiosidade para o instrumento.)) (22) PP: É uma mbira. (23) Professora: Então oh, além de ele trazer sal, ela trouxe mbira, pra alegrar o almoço. (24) 22:49 – 24:45 ((A professora retoma a leitura após uma funcionária passar na sala para saber quantos alunos ficariam para almoçar na escola. Na altura em que o livro menciona que um dos personagens cantou, o professor-pesquisador canta uma canção em yorubá para representar aquele canto e os alunos olham com curiosidade ele. Em seguida, a professora continua com a leitura até o fim.)) 249     (25) Professora: Amanhã nós vamos continuar a história, mas antes eu queria saber, primeiro, quem imaginou a historia antes de ouvir e se acha que tava perto do que pensou e o que cada um sentiu ao ouvir essa história (S.I.) hoje. Quem quer falar levanta a mão. Mosi, você achava que a história era sobre isso? Na hora que você viu o livro? E o que você sentiu quando ouviu essa história? O que te chamou mais atenção? Vamos ouvir o Mosi. (26) Mosi: Essa parte aqui... ((Ele mostra a ilustração da página que representa o momento do banquete.)) (27) Professora: Porque a menina tocou? (28) Mosi: É. (29) Professora: Só por isso ou você sentiu outra coisa quando você viu todo mundo junto? (30) Mosi: (S. I.) (31) Professora: (S. I.) Quem mais quer falar? (32) Watende: Eu! (33) Professora: Ah, Watende. Vai Watende, o que que vocês sentiu? O que vocês mais gostou? Vem pra cá, não precisa ficar no meio da roda não. Vem. (34) ((Enquanto Watende volta para seu lugar na roda de leitura, Ambaye mostra uma imagem de um galinha dAngola no livro. A professora diz que depois da fala de Watende eles conversam sobre este animal.)) (35) Watende: Eu gostei da parte de quando ele convidou os amigos dele. (36) Professora: Por que que você gostou O que vocês sentiu? Você ficou feliz porque ficou todo mundo junto, é? Os amigos? (37) ((Watende faz um sinal positivo com a cabeça.)) (38) Professora: Quem mais quer falar? (39) Lia: Eu gostei da parte que o professor cantou. Eu achei tão engraçado quando ele falou “fecha boca se não engole mosca!”. (40) Professora: E fora a parte que o professor cantou. Também adorei, ficou bonito. Quem mais, que você sentiu quando ouviu essa história? Quando a gente fala em sentiu a gente pode sentir tristeza, alegria, felicidade, paz/ (41) ((Um aluno relata que sentiu alegria quando a personagem principal da história convidou seus colegas.)) (42) Lola: Eu gostei quando o professor tocou isso aqui. (43) ((Lola aponta para uma ilustração do livro.)) 250     (44) Professora: Como é o nome disso aqui, quem lembra? (45) ((Os alunos fazem várias tentativas de acertar o nome do instrumento até que o professor-pesquisador lembra-os.)) (46) Professora: Mais alguém quer falar o que sentiu? Mwambe gostaria de falar alguma coisa? Eu gostaria de saber o que você sentiu, Mwambe. ((Mwambe folheia o livro enquanto pensa em uma resposta.)) (47) Leléu: Sim, tia, eu gostei desse lagarto aqui, oh! ((Mostra uma ilustração no livro.)) (48) Professora: Sim, mas da história? Que que você gostou na história? (49) ((Mwambe ainda continua pensativo, enquanto Ambaye apresenta interesse em falar sobre a história.)) (50) Professora: Que que você gostou da história? (51) Ambaye: Dessa parte aqui. (52) Professora: Por que que vocês gostou dessa parte? (53) Ambaye: Porque era bom. (54) Professora: Por que que era bom? (55) Ambaye: Porque todo mundo tava comendo panquecas. (56) Professora: Você achou que eles estavam felizes? (57) ((O aluno faz um gesto positivo com a cabeça e a professora se volta novamente para Mwambe.)) (58) Mwambe: Gostei dessa parte ((Aponta para uma ilustração.)) (59) Professora: Por que que você gostou dessa parte? (60) Mwambe: Porque tava comendo uma panqueca. (61) PP: O Professora, quem foi que falou “Eu queria tá aqui pra comer panqueca!”? (62) ((Alguns alunos apontam para Ambaye. Este, envergonhado, levanta a mão, confirmando que fora ele.)) (63) Professora: Você gosta de panqueca, Ambaye? (64) ((Ambaye e todos os alunos afirmam que gostam ou adoram panquecas. A professora pergunta quem já comeu panquecas com recheio doce. Alguns respondem que sim, outros que não e listam seus sabores favoritos.)) (65) Lola: Eu já comi panquecas com calda de boldo. (66) Professora: Calda de bolo? (67) Lola: É, num tem chá de boldo? 251     (68) Professora: Você já comeu panqueca com calda de boldo? (69) Kojo: É calda, tipo chocolate. (70) Professora: Ah, tá. Você hoje tá quieta, que que você tem? ((Falando com Arusha, que está sentada ao seu lado.)) (71) PP: Tá com sono. (72) Professora: Olhe só, o ajudante vai recolher os livros. (73) ((O professor-pesquisador pede que todos os alunos se sentem para que ele possa mostrar a cada um o instrumento musical chamado mbira. Ele avisa que não sabe tocar muito bem o instrumento, mas faz uma pequena demonstração de como ele pode ser tocado. As crianças olham-no com curiosidade, todas sentadas. Em seguida, o professor-pesquisador passa o instrumento para a professora, que ensaia algumas notas e depois passa de aluno para aluno.)) (74) PP: No Brasil tem outro nome. Aqui se chama kalimba. (75) ((Os alunos continuam passando a mbira um para o outro e tocando o instrumento com curiosidade.))   11ª SESSÃO DE LEITURA As Panquecas de Mama Panya 2ª sessão – 11/06/2015 ((A professora e o professor-pesquisador começam a aula organizando os alunos em círculo. O ajudante da turma nesta aula é Leléu e ele é quem distribui os livros para os demais. O professor-pesquisador entrega à professora uma imagem de Nairóbi e ela inicia a aula mostrando essa imagem.)) (1) 2:29 - Professora: Oh, lembra que a gente falou pra vocês, eu falei também, o Wagner falou também, quando a gente tava conversando, que existem cidades grandes, com uma população igual a São Paulo, Natal, Rio de Janeiro? Oh, aqui é Nairóbi. É a capital? (2) PP: É a capital do Quênia. (3) Professora: É a capital do Quênia. Brasil/ a capital do Brasil não é Brasília? A capital do Quênia é Nairóbi. Olha como ela é grande. 252     (4) ((Os alunos olham com curiosidade e fazem expressão de surpresa ao ver a imagem de Nairóbi, apresentada pela professora.)) (5) Professora: Oh como ela é grande, cheia de edifícios. À noite, como é linda, fica bem iluminada. Olha uma praça aqui. Parece ser arborizada também. (6) ((A aula é interrompida por um momento, pois Bina, implica com um dos meninos da turma. Após resolvida a situação, a professora levanta a imagem de Nairóbi mais uma vez para os alunos verem e combina que vai pendurá-la no mural da sala. Lola levanta o braço pedindo a palavra.)) (7) Lola: Quando eu fui com a minha mãe e com o meu pai, assim, eu e minha mãe encontramos uma árvore bem gigante! (8) Professora: Você viu uma árvore gigante? Aonde? (9) Lola: É! No (S.I) bem perto daqui. (10) Professora: Perto daqui da escola? (11) Lola: É. (12) Professora: Então vamos fazer o seguinte. Eu acho que até onde você olhou/ Vamos mostrar ali/ ele tá com um mapa ali, oh. Bodru achou Nairóbi já. Tá ali com um pontinho. Quase todas as capitais, elas vem marcadas no mapa. (13) ((Os alunos reparam que alguns detalhes do mapa não existem em alguns livros, pois são de edições diferentes.)) (14) Professora: Deixa eu ler só uma parte que fala aqui, oh. Aliás, Leléu, leia aqui pra mim por favor, essa parte/ esse parágrafo primeiro aqui, sobre o Quênia. (15) ((Leléu faz a leitura do parágrafo.)) (16) Professora: Depois nós vamos olhar lá no mapa. Aí então, Minas Gerais é um dos estados brasileiros. É um estado que a gente não fala muito, mas ele ainda é maior. Muito bem. Vamos/ vamos olhar lá a página do caminho do mercado. Que vocês já até olharam. Eu vi muita gente interessada quando vocês pegaram o livro. (17) ((A professora mostra a página do livro que foi citada e explora-a junto com os alunos.)) (18) Professora: Vai ter a palavra em português/ olha ali, oh/ e a palavra na língua do Quênia, o kiswahili, a mesma que fala na Tanzânia. Agama. Esse agama, primeiro que tá ali, parece com que animal que a gente tem aqui? (19) ((Várias crianças respondem camaleão, lagarto, iguana.)) 253     (20) Professora: Agora, como é que se fala, oh/ eu me atrapalho um pouco também, porque esse m... eu me atrapalho um pouco. A gente não fala muito o m, fica assim mjusi. É mjusi? (21) PP: É, você finge que vai falar o m, mas não fala. Mjusi. (22) Professora: Mjusi. O s também tem o som de z né?! Agora, acácia é uma árvore. E aquela árvore que tá ali/ aí a gente vai falar é mwati. Aqui o m tem som, porque vem antes de uma vogal. Baobá, que a gente já viu que aparece, é a árvore. Aí, vamos tentar falar o m daquele jeito: acha que vai falar, mas não fala. E a borboleta, como é que é? Kipepeo. (23) PP: Repete gente, vamos lá! (24) ((As crianças repetem a palavra.)) (25) Professora: Ah, eu ia falar uma coisa antes de você chegar. Eu ia combinar com eles e esqueci. A gente ia falar pra você/ que ele chegou/ depois a gente fala. Vamos ver como é que é a cabra, todo mundo conhece cabra? (26) ((Os alunos respondem em coro que sim.)) (27) Professora: De novo, vamos ver quem consegue falara aqui: mbuzi. Cabra todo mundo conhece? Aqui tem cabra! (28) Lola: Sim! (29) Kojo: Tia, até no desenho tem. (30) Professora: Sim, mas aqui tem. Aqui no quartel a gente já viu. (31) Kojo: Ah foi, foi, foi mesmo! (32) Leléu: Tia, ah, pois (S. I.) uma cabra invadiu lá a quadra e...e... (33) Professora: Todo mundo saiu correndo. (34) Leléu: Foi (35) Lola: Ah, lembrei, lembrei! (36) Professora: Calma, calma, vamos ouvir ali a Lola que está desesperada! ((A professora acalma os demais alunos que estavam falando ao mesmo tempo sobre o episódio da cabra que Leléu contou.)) (37) Lola: Tia, quando a gente tava no segundo ano eu vi uma cabra lá no, lá bem perto. E vi também uma, uma bolsa da colega da gente. (38) Professora: Certo. Fala Bina. (39) Bina: No segundo ano a gente foi pra quadra, de tarde, que a gente ficava no mais educação, eu Zalira e Cleo. Aí a cabra mijou na bolsa de Lola. (40) ((Todos os alunos riem com a história.)) 254     (41) Professora: Olha, a Zalira vai falar sobre a cabra e a gente vai passar pro próximo animal, senão vamos ficar aqui até amanhã falando dessa cabra. (42) Zalira: Na quadra, no ano passado (S.I.) aí/ aí a menina (S.I.) uma reunião, invadiu a reunião. (43) Professora: Que cabra danada. Gente, deixa eu falar uma coisa pra vocês, se todo mundo for falar da cabra nós não vamos sair... Tá, só os dois que levantaram a mão. (44) Mosi: Quando terminou a (S.I) e abriu o portão, a cabra entrou. (45) Professora: Aqui na escola? (46) Mosi: Aí tinha uma gradinha ali e a gente subiu, eu e Leléu subiu e um monte de pessoas. (47) Professora: Com medo da cabra? (48) Leléu: Patrício foi mexer com a bicha, mas ela chifrou ele. (49) Professora: Tá vendo? É igual a formiga, ninguém (S.I) tem que ficar quieto. Vai! Peraí, é o Kojo que não falou ainda e já deu. (50) Kojo: O tia, quando a gente saiu, eu e Leléu, a gente tava lá na quadra, aí a gente viu a cabra. (51) Professora: Pronto, chegou. Agora ali, gado masai. Masai... Como é que é? (52) Mosi: Masai ngombe. (53) PP: Falou certo, masai ngombe. (54) Professora: Aí o n, do mesmo jeito, ngombe. Ngombe. É o gado, parece com o boi. Agora, ali embaixo. Oh::: esse aqui, mangusto, manguriro, nguchiro... (55) ((Enquanto a professora pronuncia a palavra, alguns alunos fazem tentativas de pronuncias e se divertem com os erros e acertos uns dos outros. Depois, os alunos começam a ficar dispersos demais e a professora chama-lhes a atenção.)) (56) Professora: Agora, palmeira, vamos ver quem consegue falar o nome da palmeira. (57) ((A professora, junto com os alunos fazem tentativas de leitura da palavra palmeira em kiswahili: nvumo.)) (58) Professora: Palmeira também todo mundo conhece né?! Já falamos o mangusto, que é nguchiro. E a tilápia também, que é um peixe, que todo mundo conhece é o ngege. Porque/ olhe bem, as vezes na outra língua o som é um pouco 255     diferente das letras. Nem sempre as letras têm o mesmo som em todas as línguas, por isso que as vezes a gente fica na dúvida. (59) PP: Professora, o mangusto eles devem conhecer. Será que eles conhece o Timão e Pumba? (60) ((Alguns crianças afirmam que conhecem os personagens.)) (61) PP: O mangusto é o Timão. (62) Professora: Quem já viu o Rei Leão, Timão e Pumba? (63) ((Todas os alunos levantam o braço e gritam, animados, afirmando que já viram o filme e afirmam que o Timão é um “suricato”.)) (64) PP: O mangusto é tipo o primo do suricate, eles são bem parecidos. (65) Lola: Ô tia, o leão e o Pumba são do mato, mas são diferentes. (66) Professora: Me digam uma coisa: por que será que esses animais estão aqui, nessa página do livro? Ô Ambaye, eu estou fazendo uma pergunta. Por que será que esses animais e essas plantas estão aqui, separados, nessas páginas do livro? Fala Bina. (67) Bina: Porque apareceu também nessas páginas. (68) Professora: Porque apareceu do/ em todas as páginas apareceu um deles. Vamos observar agora, quando a gente fizer a releitura, quando eles vão aparecer. Sim, o que eu queria era que a gente também/ amanhã a gente combina. Que era pra, quando o professor chegar, falar um desses cumprimentos pra ele. (69) ((O professor-pesquisador lembra à professora que haviam combinado de ler a página do livro que trata da escola e da população do Quênia, antes da leitura da história. E a professora então faz a leitura dessa página.)) (70) 18:08 ((Em seguida, a professora inicia a leitura da história. Os alunos estão um pouco agitados e a professora pede que eles se sentem e se acalmem para se concentrarem na leitura.)) (71) ((Novamente, o professor-pesquisador cantou no momento em que a história faz menção ao canto de um dos personagens e os alunos aplaudiram. Logo, a história terminou e a professora iniciou a etapa de discussão de pós- leitura.)) 28:12 (72) Professora: Olhe só, eu queria saber de vocês por que que vocês acham que Adika convidou todos os amigos dele para virem comer panquecas com ele e com sua mãe. (73) Kojo: Porque ele queria dividir com os amigos dele. 256     (74) Professora: Porque ele queria dividir com os amigos dele. Você. ((Aponta um aluno que repete a resposta de Kojo.)) (75) Professora: Leléu. (76) Leléu: Muita comida e... (77) Professora: Mas, antes, ele não tinha feito nada. Ele tinha um pouquinho só e tinha poucas moedas. Por que sem ele saber que ele ia ter tanta coisa para fazer, mesmo assim, com pouco, ele convidou? (78) Leléu: Porque... (S.I.) (79) Professora: É?! Mas antes ele não sabia. Ele foi convidando. E aí? Por que você acha que ele convidou mesmo sem saber? Eles disseram ((aponta para Kojo)) que era porque ele queria fazer as coisas junto com os amigos, né?! (80) Professora: Vocês também acham isso? (81) Bodru: Porque ele queria ter mais amigos, foi um gesto de amizade. (82) Professora: Foi um gesto de amizade. Você. (83) Mosi: Gostei da parte que.. (84) Professora: Sim, depois você vai falar da parte que você gostou, mas porque que ele quis chamar os amigos? (85) Mosi: É... por causa da amizade. (86) Professora: Mas por que que... ((Um aluno levanta o braço.)) Quer falar sobre isso ainda? Pode falar, Ambaye. Por que você acha que ele saiu convidando todo mundo? Todo mundo não, os amigos. (87) Ambaye: Por causa daquela música que o professor cantou. E que ele convidou (S.I.) (88) Professora: Tá. Agora, por que que cada vez que ele convidava um amigo a Mama Panya ficava assim... preocupada? (89) Arusha: Porque... (S.I.) (90) Professora: Ela achou que ia ser pouca panqueca pra tanta gente. (91) Bodru: Porque... porque... (92) Professora: Só um minutinho. Peraí! Olhe só, só vai falar quem tem a palavra e quem tem a palavra é quem levantar a mão. E agora quem tem a palavra é o Bodru. (93) Bodru: Porque... ela tinha pouco dinheiro, aí não tinha (S.I) as panquecas. (94) Professora: Isso mesmo. É a mesma coisa/ quer complementar? (95) Mosi: Olha... é... Eu gostei da parte que o professor cantou... 257     (96) Kojo: Eu também gostei. (97) Professora: Tá, tudo bem. É que naquele dia você não prestou atenção/ todo mundo falou da parte que mais gostou, mas tudo bem. Quem mais quer falar alguma coisa? Por que que a Mama Panya estava preocupada? (98) Zalira: Porque ela só tinha duas moedas. (99) Professora: Só tinha duas moedas. Bina. (100) Bina: Ela tava preocupada porque a... por causa da farinha, que tinha pouca. (101) Professora: Pouca Farinha. O Ambaye, que levantou aquela hora e não falou e agora ele levantou de novo. (102) Ambaye: Levantei não... (103) Kojo: Porque ela percebeu que não ia dar pra todo mundo a panqueca. (104) Professora: Eu ia ficar apavorada também. Cada hora que ele voltava ele chamava mais um. (105) Ambaye: Sim! Isso aqui é o Baobá, é?! (106) Professora: É. Quando ele convidou, vocês acham que ele e a Mama Panya sabiam que os amigos iam levar outras coisas? (107) ((Alguns alunos respondem que não.)) (108) Kojo: Eu pensei nisso! Eu pensei nisso! (109) Professora: Levanta a mão. O que vocês acham? Vocês acham que ele sabia? Vocês acham que toda vez que ele ia lá, ele tava esperando que o amigo fosse levar ou não. (110) Bodru: Porque, é::: eles não sabiam que os amigos deles iam levar, porque a (S.I.) eles chegarem eles ficaram arrasados. (111) Professora: Arrasados? Arrasados ou surpresos? (112) Bodru: Surpresos. (113) ((Bodru continua sua fala e Ambaye fala ao mesmo tempo que ele.)) (114) PP: Ambaye, tá na hora de ouvir Ambaye. (115) Professora: Vocês estão atrapalhando o colega aqui e ele tá se atrapalhando no pensamento dele, porque vocês não estão parando pra ouvir. Sim, mas você acha que toda vez que ele convidou, ele tava esperando que eles fossem levar alguma coisa ou ele convidou sem/ (116) Bodru: Não. Não tava. 258     (117) Professora: Ele tava pensando assim “Ah, vou convidar ele, porque...”/ “Eu vou convidar o Mzee Odolo, porque ele vai levar alguma coisa.” Será que ele tava pensando assim ou não? Ou ele convidou porque ele queria os amigos? (118) Kojo: Porque queria a amizade deles. (119) Professora: Ele não pensou no que que ele ia querer, ele só queria a amizade. Lola. (120) Lola: (S.I.) (121) Professora: Sim, mas você acha que, quando ele convidou, sabia que as pessoas iam levar alguma coisa? (122) Lola: Sim. (123) Professora: Por quê? (124) Lola: Porque, quando convidou (S.I.) (125) ((Novamente a professora chama a atenção dos alunos que mantêm conversas paralelas, atrapalhando o andamento da aula. O professor-pesquisador pede permissão para fechar a porta da sala, pois há muito barulho nos corredores, o que também atrapalha um pouco a aula.)) (126) Professora: Ele convidou sem saber que eles iam levar alguma coisa, é isso? (127) ((Lola responde que sim com um aceno de cabeça e a professora passa a palavra para Leléu.)) (128) Leléu: Ele/ quer dizer, ela, quando convidou/ (129) PP: Não, foi ele. (130) Professora: Olhe só, vamos voltar lá pra história/ (131) Leléu: Tô falando dela... (132) Professora: Ah, a Mama Panya. (133) Leléu: Ela convidou Mzee Odolo, porque ele levou o peixe que tava faltando. (134) Professora: E os outros? (135) PP: Mas nem foi ela quem convidou. Quem convidou foi o Adika. (136) Professora: Todas as pessoas foram convidadas por Adika. (137) Bina: Mas foi ela quem chamou o que tava pescando. (138) Professora: Não... o que tava pescando foi ele quem chamou também. A Mama Panya, quando chegou, ela cumprimentou ele, mas ela não convidou, quer ver?! Vamos voltar lá para tirar a dúvida. 259     (139) ((A professora relê o trecho do livro em que Adika convida Mzee Odolo para comer panquecas.)) (140) Professora: Bom, já que vocês/ que a maioria aqui falou que ele não tinha essa intenção, ele não sabia. Mas então, por que que todos os amigos dele levaram alguma coisa? (141) Kojo: Porque... Ah, agora me esqueci. (142) Zalira: Porque (S.I.) (143) Professora: Mas por que que eles levaram se o Adika não pediu? (144) Aluna: Tava com pouco dinheiro para comprar panqueca, aí pegaram uma (S.I.) para levar. (145) Kojo: Tia, é porque eles levaram pra botar na panqueca também e (S.I) também pra pôr na panqueca. (146) Professora: Tudo pra ajudar né?! (147) Kojo: É, pra ajudar. (148) Professora: Então vocês acham que o que ela falou tá certo? Que é porque eles viram que eles estavam com pouco dinheiro, pouca farinha? (149) ((Alguns alunos responderam que sim.)) (150) Zalira: (S.I.) (151) Professora: Mesmo? Mas muitos nem viram isso, né?! Mas, também tem isso. Muitos/ ah, mas uma coisa: todos viram/ todos os amigos deles viram que ele estava apenas com duas moedas? Será que viram? Observem bem lá na história. (152) ((A professora explora uma das ilustrações do livro, tentando mostrar que Mama Panya não deixa os amigos perceberem que ela tinha apenas duas moedas na mão.)) (153) Professora: Sim, mas vocês não entenderam. Toda vez que ele chamava alguém, como é que eles sabiam que eles estavam com pouco dinheiro? (154) Aluna: Eu acho que, quando eles foram pro mercado, que a/ (155) Kojo: Eles não têm muito dinheiro! (156) Professora: Quem não tem muito dinheiro? (157) Kojo: A Mama Panya. (158) Professora: Ou vocês acham que é assim: que lá no lugar, a maioria das pessoas, às vezes/ Só eles não tinham muito dinheiro nessa aldeia ou/ Bina! (159) Bina: Queriam ajudar ela, mesmo sem saber se não tinha dinheiro. 260     (160) Professora: Então vou fazer outra pergunta: mesmo não tendo muito dinheiro, os personagens da história comeram um grande banquete e se divertiram muito! Como vocês acham que isso foi possível? Eles, mesmo sem muito dinheiro, eles conseguiram fazer um banquete. Como foi que eles conseguiram fazer esse banquete? (161) Bodru: Porque dinheiro também não é vida. (162) Professora: O que eles trouxeram para o banquete? Trouxeram dinheiro? (163) Bodru: Não, trouxeram comida. (164) Professora: Trouxeram comida que eles tinham aonde? (165) Bodru: No mar, na natureza. (166) Professora: Na natureza. E os que trouxeram outra coisa, a farinha por exemplo? Eles tinham uma... (167) ((Alguns alunos respondem supermercado.)) (168) Professora: Aonde é que/ Será que todos tinham supermercado? Aonde a gente tem as comidas? (169) Kojo: Da::: que vem das árvores. (170) Professora: Tá, tudo bem, mas depois que as pessoas tiram a comida das árvores e compram no mercado elas levam pra onde? (171) Kojo: Pra casa! (172) Professora: Pra casa! Então, de onde vocês acham que eles trouxeram essas comidas deles? (173) ((Vários alunos respondem que eles levaram comida da casa deles.)) (174) Professora: Da casa deles. Muitos trouxeram/ tiraram lá do que eles tinha na casa deles e levaram para colaborar. (175) Zalira: O peixe (S.I.) ele tirou do rio pra levar. (S. I.) E o leite ele tirou da vaca pra levar. (176) Professora: Sim, ele tirou, mas era lá de onde ele morava, da casa dele. Então, cada um trouxe aquilo que tinha. Quem pescava, trouxe o peixe. Quem trabalhava com tempero, tirou o tempero e ao invés de vender, ele disse “Não, esse não vou vender, eu vou levar.” Cada um teve a boa vontade de trazer uma coisa. Às vezes, quando a gente é convidado pra ir num lugar, às vezes, a mãe de vocês não leva uma coisa? (177) Bodru: É::: às vezes vai almoçar na minha tia e leva (S.I.) 261     (178) Professora: Olha o que ele tá falando. Eu fiz uma pergunta. Às vezes, quando a gente faz um almoço, todo mundo junto, na casa da vovó, na casa da tia, cada um leva alguma coisa. Porque sabe, assim: será que essa pessoa vai ter o suficiente pra todo mundo? Aí, cada um colabora com um pouquinho. Fala Kojo. (179) Kojo: Porque ele convidou todo mundo e que eles levavam alguma coisa pra comer panqueca. (180) Professora: Pra colaborar, num foi? (181) Kojo: É! Pra dividir com os amigos e com as amigas. (182) Professora: Eu tinha uma pergunta pra fazer aqui, mas eu acho até que ele respondeu. Que é assim oh: será que ter muito dinheiro é a única forma de as pessoa serem ricas? (183) ((Alguns alunos respondem que não.)) (184) Arusha: Dinheiro não tem vida. (185) Professora: Dinheiro não tem vida. A gente pode ser rico sem ter dinheiro? (186) Bodru: Pode! (187) Professora: Como? (188) Bodru: Com amizade, amor... (189) Professora: Amizade, amor. Então riqueza não tá só ligada a dinheiro, tá? Por exemplo, quem tem muita alegria, é rico em sentimentos. Quem tem muitos amigos? Será que um menino, por exemplo, uma criança que é cheia de dinheiro e tem um monte de brinquedo, mas não tem um amigo pra brincar e a outra que não tem tanto dinheiro assim, mas que ela tem um monte de amigo pra brincar de pegar, pra brincar de correr, pra brincar de ler, pra ler com um colega. Quem será que é mais feliz. (190) Lola: Eu! (191) ((A resposta de Lola fez muitos alunos e os professores rirem.)) (192) Professora: Quem bom! Eu também sou feliz, tenho amigos, tenho família. (193) ((Lola abaixa a cabeça um pouco chateada.)) (194) Professora: Não, não tem problema não. Eles estão rindo, mas não é porque eles acham/ As pessoas às vezes riem da gente, mas a gente tem que gostar. Oh, deixa eu te falar uma coisa Lola, eu às vezes falo uma coisa também que as pessoas ficam rindo de mim. (195) PP: Foi engraçado Lola. (196) Professora: Você é feliz, que bom. Por que que você é feliz? 262     (197) Lola: É, assim, é que eu::: Também é que eu queria muito que os outros brincassem comigo, mas eles não querem. (198) Professora: Sim, mas você disse que era feliz, me diz por que você é feliz. (199) Lola: É que eu tenho uma melhor amiga. (200) Professora; Ah! Então você gosta/ porque você tem amiga e se sente feliz. Sim, mas quem vai me responder. Quem seria mais feliz, o menino que tá cheio de coisa na casa dele, mas que não tem um amigo, ou aquele que/ (201) ((Lola, Ambaye e João Watende respondem que é o menino que tem mais brinquedos.)) (202) Professora: Tá. E se você não tivesse amigo e só brinquedo, será que você conseguiria ser feliz? Você queria não ter ninguém pra conversar? (203) Ambaye: Sim, só minha irmã. (204) Professora: Mas, olhe bem. Você, quando tá aqui na escola, você tá sempre com um monte de amigo em volta. Você é feliz quando tá com seus amigos? (205) ((Ambaye responde que sim com um aceno de cabeça.)) (206) Professora: Tá, e se você não tivesse isso? Só tivesse jogo? Será que em nenhum momento você ia enjoar de ficar jogando e brincando sozinho? (207) ((Ambaye responde que não com um aceno de cabeça.)) (208) Professora: Você acha que não? Você acha que a gente não precisa de amigos? (209) Ambaye: Precisa. (210) Professora: Precisa, né?! (211) Kojo: Tia, as vezes, aí/ quando meu irmão tá em casa, eu fico jogando o dia todo. (212) Professora: Mas, sozinho ou com ele? (213) Kojo: Sozinho. Eu fico sozinho. (214) Professora: Mas você não sente falta de seus amigos? (215) João Watende: O meu amigo não pode ir na minha casa. (216) Professora: Tá, agora olhe só, o que a história quer passar pra gente é o queê? Qual foi o::: assim, o tema da história? O que que essa história quis passar pra gente? O tema dessa história foi qual? O principal? Dessas pessoas, desse lugar aí. O que vocês acharam de importante , heim?! (217) ((Os alunos ficam inquietos, entregando aos poucos os livros à professora e se mexendo em sues lugares. Até que um deles responde que foi a amizade.)) 263     (218) Professora: A amizade? (219) ((Todos respondem que sim.)) (220) Professora: Tem uma outra palavra que a gente pode falar. (221) Ambaye: Amor. (222) Professora: Amor. Mas tem outra. (223) ((Alguns alunos falam felicidade.)) (224) Professora: Solidariedade. Porque toda vez/ todas as pessoas, sem saber se Mama Panya teria ou não comida suficiente, eles foram solidários e levaram alguma coisa. E aí até ele me falou que isso acontecesse também na família dele, na minha também. Toda vez que a gente se reúne, cada um leva uma coisa. (225) Aluno: Minha mãe leva mouse de chocolate. (226) Professora: Certo? Agora, devagar, nós vamos agora para a parte da panqueca! 12ª SESSÃO DE LEITURA Anansi, o velho sábio 1º Sessão – 12/06/2015 (1) ((00:16)) Professora: Gente, olhe só, o livro que a gente vai/ Quem já ouviu falar no Homem-Aranha? ((As crianças se manifestam levantando o dedo e dizendo “eu”.)) (2) Suhuba: Aquele negócio de que solta a teia é falso. Ele tem um bichinho aqui ((aponta para o pulso)). (3) Lola: Não é não, tia! Não é não! ((Balança o dedo indicador em movimento de negação.)) (4) Professora: Não! Não! Espera aí, levanta a mão. Vai, você. ((Aponta o dedo para Lola.)) (5) Lola: Olha só, o Homem-Aranha era só um menino, não era um homem. Quando ele era menino foi mordido por uma aranha e transformou ele no Homem-Aranha. Foi por isso que ele é o Homem-Aranha. (6) Professora.: Isso foi no filme né, que você viu? 264     (7) Lola: Foi. (8) Professora: Ah, muito bem. Quem mais sabe alguma coisa do Homem-Aranha? (9) Watende: Eu! (10) Professora: Fala. (11) Watende: E também quando ele foi/ ele tinha/ aí, ele foi pra escola, aí tinha uma menina e encontrou/ aí quando a menina é::: a menina foi e ia caindo numa coisa e derrubou um/ ele foi, aí ficou soltando teia, aí foi e bateu num amigo dela a teia. (12) Professora: Você tá por dentro viu? Exatamente o que aconteceu no filme. (13) Watende: E também tem um erro no filme, porque o Peter, ele enche o quarto dele todo cheio de teia. Ele pega o abajur puxa e quebra. Ele vai falar com a vó dele. Aí, quando ele volta, o abajur tá no canto. (14) Professora: Menino, você é fiscal! Olha só! Isso aí é um... (15) Bodru: Erro de gravação. (16) Professora: Pronto, é isso aí que eu ia falar. Isso são erros de gravação. ((Watende levanta a mão pedindo a palavra.)) Só um minuto. É porque eles gravam uma coisa e aí depois no outro dia eles retomam e, às vezes, eles esquecem desses detalhes como você falou. ((As crianças se agitam com a entrada de uma abelha na sala de aula, mas logo a professora orienta para que os alunos se acalmem que a abelha vai sair pela janela, como logo ocorre.)) (17) Watende: E também teve um erro no filme que ele foi falar pro/ ((inquieto, Mosi interrompe, mas a professora o adverte para respeitar a fala do colega)) ele foi falar com os tios dele, aí foi dizer que ele ia pra biblioteca, mas ele foi e deu uma carona, ele foi e deu uma carona::: Ele lutou com um homem. (18) Professora: Você decorou o filme todo. Mas tudo bem, não vamos mais falar do Homem-Aranha do filme não. Porque eu queria saber se vocês conhecem algum outro Homem-Aranha. Já ouviram falar em outro Homem-Aranha, sem ser o Homem-Aranha do filme? (19) Suhuba: É::: No filme, eu botei pra assistir o Homem-Aranha, mas quando fui ver as imagens não era o Homem-Aranha de verdade, era outro personagem. (20) Professora: Mas era o mesmo filme do Homem-Aranha? ((Suhuba balança a cabeça positivamente.)) 265     (21) Professora: Tá, então, vamos esquecer Hollywood e o filme do Homem- Aranha. Alguém já ouviu falar em outro Homem-Aranha? ((As crianças ficam pensativas e não lembram de nenhum outro Homem-Aranha, mas levantam a possibilidade de o Tarzan ser um Homem-Aranha, devido a sua habilidade em transitar entre as árvores por meio de cipós.)) ((A professora explica que vai contar um história de um outro Homem-Aranha, diferente dos que aparecem nos filmes e que este se encontra na África. Apresenta o livro às crianças, mostrando sua capa, lendo e explicando o título e o subtítulo “Anansi, o velho sábio”.)) (22) ((As crianças ficam curiosas pelo livro. Watende pede para folheá-lo, mas a professora apenas mostra a todos a capa do livro.)) (23) ((O professor-pesquisador comenta que não se conhece o autor original da história de Anansi, por ser um conto de tradição oral.)) (24) Professora: É mais ou menos quando a gente ouve contos daqui também. Aí tem “contos folclóricos”, não diz quem contou. Vai passando, né?! De geração em geração. (25) PP: Por exemplo, a história do Saci Pererê. Quem foi que inventou? Ninguém sabe! (26) ((A professora continua explorando a capa do livro e percebe que Mosi está agitado e pede pra ele se acalmar e permite que Lola inicie uma fala.)) (27) Lola: Essa onça é um pouco diferente. Eu já vi uma dessas, só que há muito tempo atrás. O nome dele é onça-dente-de-sabre. É um tipo de onça, é um tigre. (28) Professora: É uma onça ou um tigre? (29) PP: Ou um Leopardo? (30) ((Watende e Lola se manifestam afirmando que é uma onça, enquanto os outros alunos olham para a imagem da capa do livro que a professora segura.)) (31) Professora: Sobre o que vocês acham que é essa história? (32) Lia: Eu acho que ele é um (SI) o cabelo parece umas perninhas ((coloca as duas mãos sobre a cabeça e balança-as como se fosse o cabelo do personagem)). (33) ((Lola e Suhuba manifestam-se apoiando a hipótese de Lia. A professora percebe que Arusha está muito quieta e sonolenta e tenta inseri-la na conversa, sem resultados. Então, pede para que ela vá ao banheiro e lave o rosto para despertar e se envolver na aula.)) 266     (34) Professora: Lia, você acha que essa história é sobre o quê? Olhando pra cá. ((A professora levanta o livro novamente de modo que todos possam ver a capa.)) (35) Lia: Acho que a onça vai pegar esse homem... (36) Watende: Eu sei! (37) Professora: Você acha que é sobre o que? (38) Watende: Que a onça na verdade não pegar esse homem porque ele pode ser amigo da onça, e também eu vi que/ uma vez eu vi, no (S.I.) que era quase igual essa história, mas era uns meninos, tinha uns africanos/ eles são amigos dos animais. (39) Professora: A onça não vai pegar ele? Você acha que tá acontecendo o que aqui? (40) Lola: Olha só, acho que a onça, sabe, ela é feroz, sabe? É feroz na colheita, no mato. Todas as onças são ferozes e é por isso! Acho que tem um filhote em todo lugar, e ela quer proteger. (41) Professora: Mas aqui? Quem será esse aqui? ((As crianças respondem o que acham: Lola acredita ser um velho sábio; Ambaye se levanta e aponta na capa do livro quem seria Anansi; Lia chama-o de o velho sábio)). (42) Professora: Mosi, você acha que essa história é sobre o quê? Não quer falar não? ((Ele balança a cabeça negativamente.)) (43) Watende: Esse daqui, olha, que eu vi na capa, é o Homem-Aranha. ((Watende aponta para uma imagem na contracapa e diz que ele é o Homem- Aranha da África. A professora alerta que a imagem da contracapa não é a mesma da capa e Watende afirma que acha que o homem desenhado na capa do livro que é o Homem-Aranha.)) (44) ((Neste momento o professor-pesquisador entrega os livros a Watende para que ele possa distribuir para os demais colegas. Assim que recebem os livros, as crianças começam a folheá-los, alguns começam as ler e outros mostram as ilustrações aos colegas. Lola mostra uma das ilustrações à professora e afirma que aquela é a onça.)) (45) Lola: Da para ela se camuflar. É um tipo de esconde-esconde, mas isso de se camuflar é parecido com uma cobra (S.I.). Se a onça tiver uma pele bem marrom, e assim camuflar com um/ (46) Professora: Parecido com a árvore para ninguém ver. (47) Lola: É, aí ela fica escondida. 267     (48) ((A professora solicita que eles iniciem a leitura silenciosa, mas nem todos mostram interesse pelo livro. Em seguida, a professora começa a etapa do vocabulário, mas percebe que Arusha está se sentindo mal e retira-a de sala para atendimento mais específico. As crianças interagem com o professor-pesquisador até o momento em que a professora retorna à sala de aula, continuando com a apresentação do vocabulário.)) (49) Professora: Então, membros. A gente tem os nossos membros superiores, que são os nossos braços, os membros inferiores, que são as nossas pernas. Aqui eles vão falar de membros filiformes, que é como se fossem fios, como, por exemplo, a aranha. A aranha num tem aquelas patinhas? (50) ((A professora chama novamente a atenção de Mosi, que continua disperso.)) (51) Watende: Os africanos, eles são pobres. Mas quase/ não todos, por causa do país. (52) Professora: Você não estava aqui, no último que a gente fez/ lá na sala/ tá colado na sala, uma cidade da África. Como é o nome? O nome daquela cidade? (53) ((CFMT)) (54) Professora: Nairóbi. Aí você vai ver como lá é bem bonito, bem cheio de edifício, bem rica a cidade. Outra coisa, quem sabe o que que é exigir alguma coisa? O que é exigir? (55) ((A professora pede que os alunos deixem os livros fechados e explica o sentido do verbo “exigir”.)) (56) Professora: Alguém já ouviu falar em píton? (57) Bodru: É uma cobra. (58) Professora: Uma cobra, muito bem. E sabre? Ela falou dente-de-sabre ((aponta para Lola)). E por que que esse dente é chamado dente-de-sabre? (59) Lola: Um tigre-dente-de-sabre é um (S.I.) tipo de onça que pode (S.I.) pegar tudo com esse dente aqui ((aponta para a ilustração da capa do livro)). (60) Professora: Com esse dente aí. Esse dente nao parece uma espada? Não é afiado? Parece, não parece? (61) ((As crianças concordam com a professora apontando para diferentes ilustrações no livro.)) (62) Professora: E quem sabe o que é enxame? (63) Bodru: Quando tá pegando fogo, um enxame de abelhas. 268     (64) Professora: Um enxame de abelhas, mas não é pegando fogo, é muitas abelhas...? ((Faz um gesto com as duas mãos, aproximando-as.)) (65) Lola: Juntas! (66) Professora: Juntas. É um coletivo, lembra que a gente viu o coletivo de abelhas? Então também pode ser um de zangões. (67) Lola: E se tem muitas abelhas, pode dar uma picada né? (68) Professora: Muitas juntas, já pensou? E se a pessoa tiver alergia pode até morrer. Quem já ouviu a palavra pululam? (69) Bodru: Parece um pulão. (70) Professora: Pulão? Um pulo grande? (71) Bodru: É. (72) Professora: Quem acha que é outra coisa? Pululam? (73) Leléu: Uma lula! (74) Lia: Um tipo de aranha! (75) Professora: Olha só, eu achava que era/ que tinha a ver com o que ele falou também, que tinha a ver com pulo, mas não tem a ver com pulo. É quando uma coisa se multiplica, pululam. Por exemplo, as abelhas se multiplicam, em grande quantidade. Alguma coisa começa a acontecer rapidamente. Por exemplo, as abelhas se multiplicam. De repente começa a aparecer um monte de abelha. E quem já ouviu falar em rastro? (76) Leléu: Rastro é quando a pessoa pisa assim e fica a pegada ((Levanta-se e caminha um pouco pela sala para fazer a demonstração enquanto fala.)) (77) Professora: Agora, rastro não precisa ser só pegadas, são alguns vestígios que ficam, que a gente sabe que alguém teve naquele lugar... (78) Lola: Rastro de cobra né? (79) Professora: É, pode ser. Não precisa ser só pegada não. (80) Professora: E quem sabe o que é cuia? (81) Lia: Banho de cuia. (82) Professora: O que é cuia? (83) Lia: É tomar banho de balde. (84) Professora: Então cuia é tipo balde? (85) ((Os alunos se manifestam dizendo que não.)) (86) Professora: Cuia é uma coisinha assim pra colocar água ((faz um gesto com a mão imitando uma cuia)). 269     (87) PP: Tigela! (88) Lola: Tomar banho de cachoeira! (89) Professora: Não, nós estamos falando de cuia. Cuia é uma coisinha assim oh ((mas um gesto com a mão)), é feita de barro, de.. (90) Leléu: De coco! (91) Lola: De cerâmica. (92) Professora: De coco é perfeito, porque é fácil de achar na natureza e transformar em cuia. E quem sabe o que é borrifar. (93) ((As crianças fazem o som de borrifo e sinais com a mão como se estivessem borrifando.)) (94) Professora: Quem sabe o que é uma coisa intangível? (95) Mosi: É pra pegar caju? (96) Professora: Não, é algo que é difícil de se atingir. Que é quase impossível alcançar. Quase impossível pegar. Quase... impossível conquistar. Você acha que pegar uma manga é inatingível? Não né? É fácil. Pense numa coisa que seria difícil de pegar. (97) Bodru: Um rubi! (98) Professora: Por que é difícil pegar um rubi? (99) Bodru: É impossível! (100) 30:10 ((A professora faz a leitura de um trecho de uma das páginas com informações extras ao final do livro, sobre a transmissão de histórias pela oralidade, chamando atenção para o significado de “griô”, explicando a importância de um griô para uma sociedade. A professora aponta, em uma ilustração do livro, a figura de um griô e pede para as crianças se posicionarem de forma confortável para escutarem a história. A professora inicia a leitura e, aos poucos, os alunos demonstram mais e mais interesse em acompanhar a história. Mosi continua impaciente. Escuta a história distraído, sem olhar para o livro, mas para o professor-pesquisador, que lê as falas atribuídas na história ao deus do céu, chamado Nyame.)) (101) ((Mosi e Leléu deitam-se no chão e colocam o livro sobre suas cabeças. Já próximo ao fim, os dois sentam-se e observam o livro. A professora interrompe propositalmente a leitura na altura em que Anansi captura a terceira criatura, ficando faltando apenas uma.)) (102) ((39:44)) Watende: Terminou? 270     (103) Professora: Não terminou! Mas quantos ele já conseguiu pegar? (104) Lola: A abelha... (105) Professora: As abelhas, que ele chama de zangões. O leopardo... (106) Lola: E a cobra. (107) Professora: Pegou três! Falta uma! (108) ((A professora anuncia que lerá o resto só na aula seguinte, ao que as crianças começam a se dispersar e ela chama-os a atenção para sentarem-se novamente. Com todos sentados, ela inicia a fase de pós-leitura.)) (109) Professora: De acordo com o que vocês falaram sobre o livro, quem acha que acertou o que aconteceu no livro? Falaram que não era nem uma onça nem um tigre, era um leopardo que ia comer esse que tava aqui ((aponta para a capa do livro)). (110) ((Leléu e Mosi voltam a se deitar no chão e a professora chama a atenção deles para que sentem-se direito.)) (111) Professora: Alguém esperava que a história fosse sobre isso? (112) Lola: Não. (113) ((A professora novamente pede que Leléu se sente. Pergunta aos alunos se alguém quer fazer a voz do deus do céu na próxima leitura, ao que Watende se oferece e eles combinam de ensaiar a leitura.)) (114) Professora: Gente, o que vocês sentiram quando leram essa história? Heim? O que você sentiu, Watende, quando escutou a história? (115) Leléu: Eu não senti nada, tia. (116) Professora: Nada? Ninguém sentiu nada? Ninguém sentiu medo? Alegria? Suspense? (117) Bodru: Eu senti susto, suspense. (118) Professora: Por quê? (119) Bodru: Por causa de você e do professor. (120) Lola: Susto, porque o professor tava com a voz grave. (121) PP: Ficou Assustada? A ideia era essa mesmo. (122) Watende: Tia, eu senti/ meu coração ficou tremendo. (123) Professora: Você sentiu medo na hora da história? (124) Watende: Não... (125) Professora: Você, Mosi, sentiu o quê? Nada? Leléu? 271     (126) PP: Leléu eu acho que ficou com sono. Eu vi que na hora da história ele tava dormindo. (127) Professora: Você gostou da história? ((Leléu responde que sim com um aceno de cabeça.)) Se você gostou da história então você sentiu alguma coisa. O que que você sentiu? Você sentiu alegria ao ouvir a história? ((Leléu faz um aceno positivo com a cabeça.)) Se sentiu triste? ((Leléu responde, com outro aceno, que não.)) Sentiu o que mais? Sentiu medo? ((Leléu acena que não.)) Teve curiosidade par saber mais? ((Ele balança a cabeça com rapidez afirmando que sim.)) Quem tá curioso pra saber o final? (128) ((Mosi e Leléu levantam instantaneamente o braço e depois os demais alunos fazem o mesmo.)) (129) Professora: O que chamou mais atenção de vocês na história? Ninguém me falou. (130) Bodru: Leopardo (131) Mosi: A aranha. (132) Professora: Lola, o que mais chamou sua atenção na história? (133) Lola: Foi o leopardo-dente-de-sabre. (134) Watende: Tia, eu/ é::: a cobra. (135) Professora: O que mais te chamou atenção foi a cobra? (136) Watende: E as abelhas. (137) Professora: E você Leléu, já falou? Você ainda não falou o que te chamou atenção. (138) Leléu: O cara com o cabelo de aranha e aqui o cabelo que (S.I.) ele viu... (139) Professora: O quê? O sábio te chamou a atenção? (140) Leléu: E a camisa dele branca, forma que nem uma roupa assim, mas... (141) Professora: Isso aqui que você tá falando? ((Aponta para a capa do livro.)) (142) Leléu: Aham. É isso aqui oh. (( Leléu folheia o livro e mostra uma ilustração de uma teia grande com a aranha no centro.)) (143) Professora: Pode ser ele, mas em forma de aranha? (144) Leléu: É! (145) PP: É porque ele é as duas coisas. Ele é homem e também é aranha. Ele é as duas coisas. (146) Watende: É? (147) Lia: É que nem no filme. 272     (148) Professora: Isso. Como (S.I.) todas as pessoas lá, nas suas teias. (149) Leléu: É! 13ª SESSÃO DE LEITURA Anansi, o velho sábio 2ª Sessão - 16/06/2015 (1) ((As crianças chegam na sala de aula, a professora entrega os livros e diz que cada um tem direito a pegar um colchonete e uma almofada e sentar como for melhor para eles. Depois dos alunos acomodados, cada um com o livro, a professora inicia a aula relembra algumas palavras vistas na última aula.)) (2) Professora: Quem lembra o que é pululam? (3) ((As crianças falam aleatoriamente palavras que se aproximam, na grafia, de pululam, como pular, pulando, pulo.)) (4) Professora: Não! Pulula é o que eu falei que acontecia com os enxames de zangões. Pululam é quando uma coisa se multiplica, ou seja, de repente... (5) ((As crianças continuam dispersas e a professora inicia uma contagem esperando que elas se organizem.)) (6) Watende: O dobro. (7) Professora: Isso... não precisa ser necessariamente o dobro, mas aumenta de quantidade. Então, de repente eram poucos zangões e, de repente, ficaram muitos. Muitos zangões! (8) ((A professora pede que os alunos se acalmem e façam a leitura silenciosa. Alguns alunos dizem que não vieram a nenhuma das aulas em que a professora leu a história e pedem que fale um pouco mais sobre ela. A professora então pede que algum dos alunos faça um resumo para os colegas. Zalira se oferece e logo inicia.)) (9) Zalira: (S.I.) (10) Professora: Mas, peraí, antes de você chegar nessa parte, o que que Anansi foi pedir ao deus? (11) Zalira: Pra contar a história dele. 273     (12) Professora: Par poder contar as história para as outras pessoas, não é isso? Então Anansi, que é esse aqui oh ((mostra a capa do livro)), foi pedir pro deus, porque naquele tempo o deus guardava todas aquelas história para ele. Aí ele foi lá pedir. Só que o deus deu quatro condições pra poder dar essas histórias pra ele. Ele tinha que fazer quatro tarefas. (13) Zalira: Achar a fada que ninguém vê. (14) Professora: Isso, pegar a fada que ninguém vê e::: quem? Quem era o outro que tinha que capturar? (15) Aluno: Um enxame de zangões! (16) Aluno: A cobra! (17) Aluno: Um leopardo! (18) Professora: Um leopardo de dentes de? (19) ((Boa parte dos alunos responde “sabre”.)) (20) Professora: Até agora quantas coisas/ quem o Anansi conseguiu pegar? Primeiro o píton, segundo o Leopardo, terceiro o enxame, falta quem então? (21) ((Os alunos respondem conjuntamente “A fada”.)) (22) PP: Será que ele vai conseguir pegar a fada? (23) 06:28 ((A professora retoma a leitura do livro, a partir da mesma página onde interrompera. Alguns deitados e outros sentados, os alunos acompanham a leitura pelos livros que têm em mãos. Suhuba e Ambaye parecem distraídos, principalmente Suhuba, que presta bastante atenção na câmera. Ao ser perguntado pela professora se está acompanhando a leitura, ele afirma que não sabe ler e devolve o livro ao professor-pesquisador. A professora convence-o a acomodar-se e acompanhar a leitura pelas figuras do livro. Suhuba obedece.)) (24) 11:23 ((A professora finaliza a história e mostra uma ilustração, perguntando quem lembra o nome daquela representação.)) (25) Professora: Quem é mesmo esse aqui? Como a gente chama ele? Que conta história lá. Que eu falei que, quem nasce numa família/ (26) Leléu: Griô! (27) Professora: Griô, Leléu, muito bem. Quem nasce em uma família de griô tem que ser um griô também. Tem que ser um contador de histórias. (28) PP: Deixa eu mostrar uma coisa pra eles. Vocês já viram uma coisa parecida com essa aqui, oh? 274     (29) ((O professor-pesquisador mostra uma bonequinha de madeira para os alunos, que logo se agitam e dizem que é a mesma que está no livro. Em seguida, recorrem ao livro, em busca da ilustração da boneca de madeira feita por Anansi.)) (30) PP: É a bonequinha que o Anansi fez para pegar a Mmoatia. Parece uma menininha não é? (31) ((Lola e Suhuba levantam-se, curiosos, querendo ver a boneca. O professor-pesquisador pede que os alunos se sentem e se acomodem novamente para ele passar a boneca para eles observarem-na melhor. (32) PP: Essa bonequinha veio da África mesmo, tá?! Foram africanos que fizeram ela. (33) Suhuba: De madeira? (34) PP: De madeira. (35) Professora: É esculpida, oh! Eles vão talhar, eles talham com um/ tipo uma faquinha, mas não é uma faquinha, e aí, vai fazendo essa forma. Tá vendo, oh?! Uma coisa que a gente tem também e que aprendeu com a cultura africana. Muitas pessoas fazem esse tipo de obra. (36) Leléu: Professor, o senhor já foi na África? (37) PP: Já. (38) ((Enquanto a boneca passa pelos alunos, alguns olham para seus livros e outros conversam sobre a boneca. Suhuba não consegue parar de olhar para a câmera e parece não prestar atenção na aula. Após todos os alunos tocarem a boneca, a professora chama a atenção da turma, fazendo uma contagem, até que todos se reorganizem em seus lugares.)) (39) Professora: Olhe só, todas as história africanas que nós ouvimos até agora, elas sempre têm, assim/ elas passam uma mensagem, não é? Como? (40) Bodru: Subliminar. (41) Professora: O que você entende por isso? (42) Bodru: Sim, subliminar, o diabo. (43) Professora: O Diabo?! Subliminar?! (44) Bodru: Mensagem subliminar, sim, é mensagem do diabo. (45) Professora: Não, não é isso não... (46) Bodru: É... Foi o que eu escutei. (47) Professora: É assim, é mais ou menos/ eu não se eu vou saber explicar para você, mas depois eu vou procurar direitinho para explicar melhor. Mas, às vezes, 275     existem mensagens que não estão bem claras numa história que a gente conta. Só quem presta muita atenção é que, às vezes, compreende o que aquela história quer dizer, não é mais ou menos isso, professor? Você pode me ajudar? (48) PP: É::: mensagem subliminar é uma coisa que tá na história escondia, mas não tá dita, mas as pessoas entendem. (49) Professora: Mas as pessoas têm a percepção, prestam atenção, mas não tem nada a ver com o diabo. A não ser que a pessoa leia uma história que esteja falando do diabo. (50) PP: Pode ser uma mensagem subliminar de qualquer coisa. De qualquer coisa. (51) Professora: Olhe só, vamos voltar aqui. Lembra que a última história que a gente viu antes dessa foi Mama Panya? A mensagem principal foi sobre a amizade, sobre solidariedade. E essa história aqui, "Anansi, o velho sábio”, qual é a mensagem que ela passa pra gente? (52) Lia: Eu acho que... (53) ((Alguns alunos continuam dispersos e brincando com os livros. A professora pede para a ajudante do dia, Lia, recolher os livros. Antes de Lia iniciar, os alunos voltam a se calar e prestar atenção.)) (54) Professora: Então, vamos lá, fala Lia, que mensagem essa história de passou? (55) Lia: Amizade? (56) Professora: Essa história falou sobre amizade? Em que ponto você acha que falou da amizade? Prestem atenção no que eu vou falar. Pensem em tudo o que aconteceu na história, passo a passo e que mensagem essa história passou pra gente. (57) Aluno: Amor. (58) Professora: Amor? Pelo quê? (59) Aluna: Amor e carinho. (60) Professora: Em qual parte da história? (61) Lia: Felicidade no final, porque o homem conseguiu as histórias. (62) Professora: Isso é verdade. O velho ficou feliz porque conseguiu as histórias. Lola quer falar? Então levanta a mão. Qual mensagem essa história passou? (63) Lola: Alegre. 276     (64) Professora: Alegre por quê? (65) Lola: Porque ele conseguiu todas as histórias do deus. (66) ((A professora continua incentivando os alunos a falarem o que sentiram nessa história, perguntando qual a mensagem que ela passa. Alguns alunos continuam distraídos e ela explica mais uma vez a questão.)) (67) Professora: Olhe só, antes de eles chegarem a esse momento feliz, o que que aconteceu? Foi fácil? (68) Lia: Ele teve dificuldade. (69) Professora: Ah! É isso que eu quero que vocês comecem a pensar. Então a história teve o quê? Teve dificuldade, mas mesmo tendo dificuldade, o que que ele fez? (70) Lia: Ele... (S.I.) (71) Professora: Não, olha só Lia, as histórias que ele começou a contar foi no final. Eu quero saber até ele conseguir as histórias. O que que aconteceu pra ele conseguir as histórias? Ele simplesmente chegou e pediu ao deus e o deus deu pra ele? (72) ((Vários alunos respondem “não”.)) (73) Lia: Ele tinha que pegar o enxame de zangões. (74) Professora: Primeira coisa, o que ele foi? Ele foi o que? O que que ele foi para conseguir isso? (75) Aluno: Esperto. (76) Professora: Ele foi esperto. O que mais? (77) Aluno: Inteligente. (78) Aluna: Pediu ajuda. (79) Professora: Pediu ajuda. Isso, a gente pode dizer que ele foi humilde. Humilde por quê? Ele foi humilde porque ele pediu ajuda. Pedir ajuda, quando a gente precisa, a gente não tem que ter vergonha, tem que pedir. Outra coisa que ele foi muito? (80) Aluno: Ele foi corajoso! (81) Professora: Corajoso, valente. Olha quanta coisa, tá vendo? Até chegar na felicidade que ele conquistou. Ele conquistou essa felicidade, que todo mundo disse que ele ficou feliz porque ele conseguiu o que ele queria, mas ele lutou não foi? Aí ele falou ((aponta para um dos alunos)) que ele pediu ajuda para a mulher dele, a Aso. O que vocês acham de Aso nessa história, ela foi importante? 277     (82) ((Alguns alunos dizem que sim, outros que nem tanto.)) (83) Professora: Quem foi que disse que ela foi importante? (84) Aluno: Eu! Ela deu ajuda pra ele, dizendo aonde é que tava as coisas. (85) Professora: Mas foi só dizendo onde estavam as coisas ou ela ajudou de outra forma? (86) Aluno: Ela foi só dizendo onde tava as coisas. (87) ((Zalira lembra que Aso ajudou-o dizendo como fazer as armadilhas para pegar os animais.)) (88) Professora: Ah:: olhe só, ela não ajudou a dizer onde tá, mas ela ajudou a fazer as armadilhas. Que mais? (89) ((Alguns alunos falam alguns outros detalhes, mas não foi possível ouvir suas falas.)) (90) Professora: Acho que vocês já responderam, mas como foi que Anansi, uma pequena aranha, conseguiu derrotar criaturas tão fortes? (91) ((Alguns alunos respondem que Anansi conseguiu vencê-los por meio das armadilhas.)) (92) Professora: Mas então ele foi o quê? (93) ((Alguns alunos respondem que Anansi foi corajoso, esperto e inteligente.)) (94) Professora: Vocês acham que se ele fosse apenas corajoso e valente ele teria conseguido? Que que foi fundamental para ele conseguir? (95) Bina: Humilde! (96) Professora: Além de ser humilde? (97) Leléu: Ele foi esperto! (98) Professora: Se ele fosse corajoso e não fosse esperto, sem um plano, será que ele conseguira pegar as criaturas? (99) ((Parte das crianças responde que não.)) (100) ((Bibiana encontrava-se deitada no chão, calada. A professora incentiva-a a falar da história e ela responde que gostou, pois Anansi conseguiu o que queria e ficou alegre.)) (101) Professora: Olhe só, outra coisa que fala da história aqui é a importância que a maioria das tribos africanas, dos povos africanos, eles valorizam/ 278     (102) ((Nesse momento as crianças se dispersam um pouco. Aproveitando que uma delas vai ao banheiro, Suhuba e Leléu a seguem. A professora repreende-os e continua sua fala.)) (103) Professora: Os povos africanos, eles ouvem muito os mais velhos. Eles consideram o saber dos mais velhos, pois eles viveram mais, eles tem muito mais tempo de vida e de experiência. Eles tem muita coisa para contar pra gente. (104) ((Suhuba continua inquieto, querendo sair da sala, mas a professora o repreende. A professora percebe que Ambaye está muito quieto e que não participou ativamente da aula e pede para ele comentar um pouco sobre a história e ele diz apenas que gostou.)) (105) Mosi: Eu gostei da parte do professor. (106) Professora: Agora, olhe só, o que vamos fazer hoje: nós vamos fazer um teatro, vamos representar a história de Anansi. (107) ((As crianças animam-se com a notícia, levantam-se e começam a organizar-se para a representação: recolhem os livros, entregam à professora e começam a discutir sobre como será feita a dramatização da história.))   APÊNDICE D – TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS COM OS SUJEITOS DA COMUNIDADE ESCOLAR ENTREVISTA INICIAL COM TODA A TURMA PRESENTES: Professora, Ambaye, Dindi, Lia, Arusha, Bibiana, Bina, Lola, Watende, Mwambe, Leléu e Suhuba. LOCAL: Sala de Leitura Data: 24/04/2015 Registro original em vídeo Os alunos estão sentados em roda sobre o tatame da sala de leitura. A Professora sugere que os turnos de fala deveriam iniciar com o aluno à sua direita e, em seguida, girar em sentido anti-horário, mas só falaria quem quisesse. Leléu: Eu quero falar! Professora: Calma! Leléu: Do livro. Professora: Deixa ele fazer a pergunta. 279     PP: Eu vou falar 3 palavras. Vocês prestem atenção nas 3 palavras. E depois eu vou perguntar a vocês o quê que é cada uma dessas 3 palavras, tá bom? Alunos: Tá bom! PP: A primeira palavra é “África”. PP: O Ambaye sabe me dizer o que significa essa palavra: “África”? Ambaye: É um lugar que é cheio de animais e só tem areia e pedra. Leléu: (desrespeitando a ordem definida pela professora) E lá era um deserto! A pergunta é repetida para o Leléu. Leléu: Lá é tipo um deserto. E tem um/ (A gravação é interrompida por problemas técnicos.) 2ª Parte Registro original em áudio Mosi: … porque lá também tem raposa. Professora: Vamos passar pra segunda pergunta, então? Senão não dá tempo de eu contar minha história. PP: Vamos! A 2ª pergunta é: quem sabe o que significa a palavra “africanos”? (CFMT) Arusha: São as pessoas que moram na África! Professora: Um de cada vez. Ela já falou, mas Watende tinha levantado a mão primeiro. PP: Fala, Watende. (...) PP: O quê que você acha? (…) Professora: Então deixa ela falar e depois você fala. Fala o que você disse. Arusha: Africanos são as pessoas que moram na África. Professora: E aí, ela tá certa? PP: Todo mundo concorda com a Arusha? (Os alunos concordam em consenso.) PP: Então, quer dizer que tem pessoas na África, né? Alunos: Tem! PP: Que se chamam africanos, e são muitos, né? Não tem só animais. (Alguns alunos dizem que os africanos parecem índios.) Professora: Parece o que? Os alunos em conjunto respondem: Índios. PP: Parecem índios. Professora: Tem uma coisa que a Lia antes queria perguntar. Você falou que lá as pessoas são muito pobres. Lia: É! 280     Professora: nessa reportagem que você viu. Você acha que lá só tem essas pessoas pobres. Lia: E o que (S.I.) que eles usam assim ó?! Professora: Ah, que eles usam assim? Algumas tribos que tem? É um enfeite que eles usam. Aqui num tem pessoas que usam piercing? Aluna: Tem. Professora: Watende. PP: E será que na África não existe, assim, pessoas iguais a nós? Que vão pra escola, que comem na sua casa depois da escola? Que tem televisão? Que assitem a Pepa Pig? Será que não tem pessoas, assim, igual a gente na áfrica? Alguns alunos respondem que não. PP: Não tem né?! Aluna: As crianças vão pra escola. Professora: Ah, pera aí, as crianças então você acha que vão pra escola? Aluna: Sim. PP: Suhuba quer falar. Suhuba: Eles caçam para sobreviver, eles caçam animais pra comer. PP: Eles caçam animais pra comer. Eles não vão no supermercado comprar comida não? Alguns alunos respondem que não. PP: Vão pra selva pra caçar os animais? Professora: Lá não tem supermercado? Aluno: Ele arranca (?) e vai pescar peixe. PP: To entendendo. Olha, Lia... ((O professor para um momento para organizar o equipamento de gravação e depois retoma a conversa com os alunos)) PP: E a terceira pergunta que eu ia fazer era se vocês sabem o que significa a palavra descendentes. (Alguns alunos começam a esboçar algumas respostas.) Aluna: É uma pessoa sem dente? Aluno: Descendente é uma pessoa do menor pro maior. (A professora explica que estava discutindo com os alunos as noções de descendência e ascendência e por isso eles deveriam estar confundindo as palavras.) Aluna: É uma pessoa sem dente? PP: Não é uma pessoa sem dente. Aluna: É uma pessoa que (S.I) é descendente? PP: Não é bem isso. Professora: Vamos (S.I.) de repente pode ser que (S.I.) PP: Hum... É... (Alguns alunos continuam falando possíveis significados para a palavra descendentes.) PP: Descendentes dos trabalhadores? Das pessoas que trabalham? Não tem nada a ver com dente o descendente tá?! Aluno: Tá. 281     PP: Por exemplo, oh, vou dar um exemplo. Vocês conhecem alguma pessoa que tenha... que tenha os olhinhos assim puxados? Vários alunos respondem: Chinês! PP: Mas aqui, brasileiro? Aluna: Conheço! Aluno: Mosi! PP: Mosi! Mosi tem os olhinhos puxados? Alguns alunos respondem que sim. Professora: Tem um pouquinho. PP: Tem um pouquinho. Então, olha, é provável... Aluno: Chaolim! PP: Caholim? Aluno: Chaolim, o menino do 3º ano, ele também tem o olhinho puxado. PP: Ele também tem o olhinho puxado? Então é muito provável que ele... Watende: Ele é japonês. PP: É provavél que eles sejam descendentes de pessoas que vieram da Ásia. Vocês já viram a Ásia? Lá onde tem o Japão, a China? Aluna: (S.I.) PP: Não, na Ásia é onde as pessoas tem os olhinhos puxados. Aluna: Perto da China? PP: Fica perto do Japão. Os descendentes, eu vou explicar agora. Olha, os descendentes é o seguinte, imagina que tinham pessoas que saíram lá do Japão ou da China e há muito tempo atrás vieram aqui pro Brasil. Não sei porque, mas vieram. E aí, eles tiveram filhos, que tiveram netos, que tiveram bisnetos, que tiveram um monte de netos e aí chegou, por exemplo, no Mosi, que é um descendente dessas primeiras pessoas que vieram lá do Japão. Entendeu o que é descendente? É o neto, do neto, do neto, da pessoa que veio de outro país. Aí eu vou perguntar mais uma coisa rapidinho. Será que existem descendentes de africanos aqui no Brasil? Alguns alunos respondem que sim. PP: Vocês acham que existem descendentes de pessoas que vieram da África há muito tempo e que hoje são brasileiros, que moram aqui? Alguns alunos respondem que sim. PP: Sim? Existe? Todo mundo concorda? Grande parte dos alunos responde que sim. Professora: E aqui na sala? Vocês acham que tem algum descendente da África? (Os alunos se agitam e, animados, parte deles responde que sim e outros que não.) Lia: Eu estudei numa escola aqui perto. Aí tinha um menino na minha sala que ele tem um olhinho puxado, bem puxado. PP: Então é provável que ele seja descendente de alguma pessoa do Japão ou da China ou da Ásia. (Os alunos começam a especular de onde o menino veio ou de onde vieram os seus ascendentes.) 282     Professora: Tá, agora olhe só, agora vamos esquecer um pouquinho a Ásia e os olhinhos puxados. Ele fez uma outra pergunta. Ele agora perguntou se vocês acham que aqui no Brasil tem descendentes de africanos. E eu perguntei se aqui na escola tem. Alguém que seu avô, sua avó veio da África. (Alguns alunos continuam falando de Chaolim e outros respondem que há sim descendentes africanos e uma aluna diz que seu avô veio da África.) PP: Avô do seu avô, do seu avô, do seu avô. Ah então vou explicar pra vocês. Deixa o Leléu falar, Leléu tá pedindo a palavra. Leléu: É... um dia eu tava lá na praia com meu pai e tinha um chinês ou japonês tomando banho lá. PP: Entendi. Mas agora estamos falando de descendentes de africanos. Deixa eu explicar uma coisa. Na Ásia, onde fica o Japão e a China, todo mundo tem olhinho puxado né?! Então os descendentes que vieram pro Brasil também vão ter olhinho puxado, não é isso? E nos descendentes de africanos? Todos os africanos são de pele negra, quase todos tá?! Quase todos. A grande maioria dos africanos são de pele negra. Então, se a gente conhece ou já viu, ou tem um amigo que tenha a pele negra é muito provável que ele seja um descendente dos africanos que vieram pra cá há muito, muito tempo atrás. (Os alunos começam a citar nomes de colegas que poderiam ser considerados como descendentes de africanos.) Professora: Ah, então você acha que seu avô pode ser descendente de algum africano? Aluna: Ele não é negro, ele é um pouco... (S.I.). Professora: Então, você acha que ele pode ser um descendente de africanos? E você? Você acha? (Os alunos questionados respondem que sim e outros continuam com conversas paralelas, não é possível escutar uma das falas de Suhuba. Watende tenta falar e não consegue, a professora, então, passa a tentar organizar a sala de novo e fazer os alunos escutarem o colega.) Watende: Uma vez... uma vez eu ia a um lugar, aí... Aí no ônubus tinha uma mulher da África e (S.I.) a mulher era chinesa. Aluna: Como é que ela era da África e era chinesa? Watende: Porque ele era os dois juntos. Professora: Dos dois lugares? (Watende responde que sim.) Professora: Mas tem um lugar que ele nasceu. Foi na África ou na China? Watende: Na China. Professora: Ah! Mas ele era negro? PP: Tá, então só pra gente fechar e começar a história. Vou explicar só uma coisa. No Brasil, a gente tem descendentes de muitos países diferentes. O Brasil é um país que foi formado por descendentes que vieram da Europa, da África, da Ásia. Oh, vocês podem olhar aqui para o mapa, o globo. Vocês já viram o globo? (Alguns alunos afirmam que sim.) PP: Olha quantos países tem no globo. Quantos países. Vocês conseguem reconhecer alguns aqui, né?! Professora: Quem vai lembrar onde é a África, que a gente viu aqui. (Alguns alunos apontam para o globo em direção ao Brasil e outros em direção à África.) 283     PP: Aqui no Brasil oh, a gente tá aqui né?! Aqui no Brasil, há muito tempo atrás e até hoje chega gente de todo lugar do mundo. Chega gente daqui da África, chega gente daqui do Japão, chega gente daqui da Europa. Chega gente de todo lugar e vem aqui pro Brasil. Aluna: Até da China. PP: Até da China. Então, por isso que a gente vai ter gente de todo o jeito no Brasil. Vai ter gente de olho puxado, vai ter gente da pele escura, vai ter gente da pele clara, vai ter gente de cabelo enrolado, vai ter gente de cabelo loiro. Aqui no Brasil vai ter gente de todo jeito, porque tem descendentes de todos os lugares do mundo. Vocês acham que é bom ou que é ruim ter muitas pessoas diferentes no país? (Os alunos respondem que é bom.) PP: Porque que é bom? Aluna: É porque ... é... porque se todo mundo fosse igual ninguém ia saber (S.I). ENTREVISTAS INDIVIDUAIS FINAIS COM OS ESTUDANTES ESTUDANTE: LIA I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? Bruna e a galinha d'Angola. Porque ela encontrou a galinha d'Angola e o tesouro da avó dela. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Gostei de todos. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Legal. Bonitas. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Os desse (aponta para Anansi). Porque esses desenhos são muito difíceis de fazer. Nem eu sei. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Emoção. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Esse daqui (aponta para Adika), porque quando minha mãe vai ao mercado eu ajudo ela. E quando ela vai fazer comida eu ajudo também. E ela disse que nas férias eu vou fazer um monte de coisas com ela. 284     VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Dessa (aponta para Bruna e a galinha d'Angola), que a gente pintou os quadros da galinha d'Angola. Porque eu comecei a rir quando (S.I.). VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Sim. Porque faz a gente aprender mais sobre o mundo. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? Eu acho que foi esse (aponta para Safári). Porque todos falaram do safári e eu nunca fui no zoológico. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Tudo. PP: Mas, dê um exemplo. Como ser gentil com as pessoas. ((Ouve-se o som do Hino Nacional, que começava a ser executado no pátio da escola.)) XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. ... Safári; as pessoas que moram na África; ... não lembro. (PP relembra o significado de descendente) Eu considero uma palavra muito difícil pra mim. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? Não lembro. (PP relembra o significado de ancestrais.) Não. Acho que Arusha, porque Arusha eu lembro que ela já visitou vários países diferentes... (PP esclarece melhor o significado.) Não sei muito, pois meus bisavôs e tataravôs já morreram. PP: Mas, se você fosse adivinhar... Acho que não vieram (explica um pouco sobre os lugares de origem de seus avós). XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Sim, porque faz a gente saber as coisas da África e quando a gente crescer a gente vai estudar sobre os países e a gente já vai estar sabendo. PP: E sobre os negros aqui do Brasil mesmo, você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos? Sim, pra ver como eles são. 285     Tem mais alguma coisa que você queira acrescentar? Não. ESTUDANTE: BODRU I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? Um Safári na Tanzânia. Não sei não... Além de ser o primeiro, teve mais bichos e foi legal. ((Ouve-se vozes em coro dos soldados se exercitando ao redor da escola.)) II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Na verdade... Eu não gostei muito de O presente de Ossanha. Foi por causa que::: (...) Ele é meio chatinho. PP: Por que você achou essa história meio chatinha? Porque só tinha uma criança e... PP: Só tinha uma criança? Tinha duas. Um só pensa em brincar, mas não é legal, só brincar... O outro... O ruim é que o outro ficava sozinho. PP Qual ficava sozinho? Esse aqui? (Bodru aponta para o Moleque.) (S.I.) Não sei se ele toma banho ou não... Não tomava banho com xampu nem nada. Por isso que ele é sujo. PP: Por que você acha que o moleque é sujo? .. É por causa que::: ... na África não tinha nada. Só tinha floresta, areia e bichos. PP: Mas você lembra que essa história aqui não foi na África? E foi aonde? PP: Essa história foi aqui no Brasil. Pra mim não. Tinha deuses, e os deuses não ficam no Brasil. Pra mim é só na África. PP: Mas no Brasil também tem, sabia? Essa história foi no Brasil. Também tem esses deuses no Brasil. Foi disso que você não gostou? Foi. PP: E por que você não gostou dessa parte dos deuses africanos? Por causa que só existe um deus. PP: Você acha que só pode existir um Deus? Só. PP: E aí isso te fez não gostar dessa história? Foi. PP: Mais por isso, ou teve outra coisa também? Mais por isso. III. O que você achou das ilustrações dos livros? 286     Muito legal. PP: Por que você achou legal? (S.I.) A mais legal foi do Anansi. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Anansi, As Panquecas de Mama Panya e Um Safári na Tanzânia. PP: E o que foi que chamou sua atenção nesses desenhos? Esse aqui é o Safári, esse aqui é seis / quatro bichos e esse aqui são as panquecas. (PP reitera a pergunta.) ... Anansi... PP: E por que foi esse? Como eu tenho medo de aranha... V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? (Enquanto folheia os livros) ...Uma foi muito legal::: ...foi legal::: ... (S.I.) PP: Mas, você, Bodru, o que você mais lembra de ter sentido durante as histórias? Como é que você se sentia? Eu não senti nada. PP: Nada? Não se sentia emocionado, feliz, triste, alegre, com raiva, com medo? Medo desse aqui. (Aponta para Anansi.) VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? (PP esclarece o significado do verbo identificar.) ... Nã:::o... (S.I.) Parece um índio. PP: E ele tem alguma coisa a ver contigo? Você se identificou com ele? Na verdade não. PP: Tem algum outro com quem você tenha se identificado ou não tem nenhum? Nenhum. PP: OK, você não se identificou com nenhum. Você acha que nenhum desses personagens tem alguma coisa a ver contigo? Não. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? (Aponta para As Panquecas de Mama Panya). (S.I.) PP: Pode falar sem vergonha. ... Porque eu gosto de experimentar coisas. PP: Ah, porque a gente experimentou uma comida nova. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? 287     Gostei. ...É porque... Faça a pergunta de novo. (PP repete a pergunta.) Porque eu gosto muito de falar, senão não seria bom. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? Foi do Anansi. PP: E dessa discussão, você lembra o quê? Da aranha, da cobra, dos zangões, da fada e do leopardo. PP: Você gostou de discutir sobre esses personagens? E o que mais? ... PP: É isso então. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Não aprendi nada. PP: Nada, nada? Você acha que essas leituras não te fizeram aprender nada? Aprender o quê? Que isso é lenda? PP: Isso o quê? O Anansi, a fada e só isso aí. XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. Angola, Gana, Tanzânia e::: só me lembrei desses; pessoas que vêm da África; pessoas que saíram da África e veio para o país. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? Não. (PP relembra o significado de ancestrais.) Agora sim. (PP repete a pergunta.) Pra mim, não. PP: Por que você acha que não? Porque ninguém me disse isso. PP: Mas, se você tivesse que adivinhar, você diria que sim ou que não? Pra mim vieram de outros países. Da Europa, Ásia e da África / ih, da África não. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? ... É... Gostaria... Mais ou menos... PP: Por que mais ou menos? 288     A verdade é que... Como eu já disse que não gosto de muita gente negra perto de mim... Aí mais ou menos. PP: Então, você iria gostar mais ou menos. Mais ou menos ou você não ia gostar? Pode falar o que você acha. Mais ou menos, eu disse. Tem mais alguma coisa que você queira acrescentar? Não. ESTUDANTE: MWAMBE I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? Um Safári na Tanzânia. (S.I.) PP: Aí você gostou disso no livro da Tanzânia, porque eles ficavam contando os animais? Sim. PP: Teve mais alguma coisa dele que te chamou a atenção? Não. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Gostei de todos. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Bonitos. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? (Aponta para Anansi.) Porque a gente fez um ensaio, uma peça. PP: Mas, agora nós estamos pensando só nos desenhos. É porque tem esse tigre aqui, mas o homem é bem corajoso, aqui, olhando. PP: Você gostou da cena de coragem, de ele de frente pro tigre, né? É. PP: Foi por isso que você gostou mais dessa ilustração aqui? Foi. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Não sei. (PP reformula melhor a pergunta.) Nada. PP: Por que você não sentiu nada? Também não sei. PP: Assim, você não sentiu medo, não se sentiu feliz, não sentiu raiva? 289     Só me senti feliz. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? (Aponta para o moleque de O presente de Ossanha.) PP: Por quê? Porque é parecido com um menino que tem aqui. PP: Mas, e você, você acha que algum deles tem alguma coisa a ver com você? Não. PP: Por quê? É que eu gostei mais desses daqui oh: desse, desse, desse e desse. PP reitera a pergunta. (Acena que não com a cabeça.) VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Da galinha de Angola. Porque eu achei mais boa a da galinha quando achou o tesouro. PP reformula a pergunta. Pode ser de conta? Eu gosto mais de matemática e de português. PP explica detalhadamente a pergunta. Não me lembro não. PP relembra todas as atividades feitas. Ah, agora tô me lembrando. PP: Então, qual foi a que você mais gostou? Da galinha de Angola. Quando a gente pintou a mão. PP: Por quê? Porque quando a gente faz assim com a mão fica igual a ela. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? O que é isso? PP explica melhor a pergunta. Gostei. Porque aprende muito. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? Essa (aponta para As panquecas de Mama Panya). Porque é esse instrumento aqui. Não, não, é aquela parte que (S.I.) (fala enquanto folheia o livro). PP: Ah, com instrumento? A kalimba? É lá no final. Você gostou mais dessa discussão porque eu trouxe esse instrumento? Sim. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? ... Ouvir as histórias... Não sei mais não. 290     PP: Você aprendeu a ouvir:::. E escutar. PP: E o que mais? E quando a outra pessoa tiver falando tem que fazer silêncio. PP: Foi isso que você mais aprendeu? Sim. XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. ...Não sei. (PP encoraja-o a falar sem timidez.) Sei não. Africanos é as pessoas que são negras? (PP relembra o significado de descendentes.) São as pessoas que fica lá na África, eu acho. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? Não lembro. (PP relembra o significado de ancestrais.) Como os japoneses / um chinês (S.I.) (PP concorda com ele e reitera a segunda pergunta deste item.) Da África? Não. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Não sei. (PP reitera a pergunta.) Ia. PP: Por que você ia gostar? Eu me esqueci de tudo agora. (PP encoraja-o a responder.) Porque os japoneses (S.I.) pra cá. PP: Por quê? Porque eu tenho um amigo que é parecido com ele, que é do 3º ano A, do outro lado. Que ele fala quase (S.I.). PP: É parecido com quem ele? Com chinês, mas é parecido. (PP explica novamente a pergunta.) Não sei. ESTUDANTE: ZALIRA 291     I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? ...Galinha d'Angola. Por causa da galinha e porque a Bruna ficou feliz. E porque Bruna é o nome da minha prima. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Não. Gostei de todos. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Legal. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? (Aponta para As Panquecas de Mama Panya.) Porque ela tava com pouco dinheiro, e mesmo assim ela arrumou um bocado de amigos. PP: Sim, mas isso é da história. Eu tô dizendo dos desenhos, assim, das coisas que estão desenhadas. O que que te chamou a atenção nesses desenhos aqui da Mama Panya? Pode abrir pra você lembrar dos desenhos. Por que que você gostou desses desenhos? Porque (S.I.) borboletas, que eu achei bonito. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Animação. PP: E o que mais? Fiquei muito feliz porque os desenhos eram muito legais e as histórias também. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? (Aponta para Bruna.) O cabelo... PP: E o que mais? A pele. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Foi daquele que a gente fez um ensaio. PP: Anansi? Por quê? Porque achei legal e foi bonito. Porque ele pôde contar as histórias pra todas as crianças. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Gostei, e muito. Porque eu gostava de responder. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? 292     Da galinha da Angola. Porque ela é diferente e eu tenho uma galinha igual a essa. Minha avó fez uma e eu pedi pra ela me dar, aí ela me deu. Uma preta com bolinha branca. PP: Assim, com as pintinhas? A (S.I.) bem amarelinha, desse tipo assim. PP: E ela faz "Conquém, conquém, conquém"? Não, mas é parecido. PP: E o que que teve nessa conversa que você lembre? Eu me esqueci de tudo. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Várias coisas. PP: Tipo o quê? ... Aprendi que a Mama Panya, mesmo com pouco dinheiro, ela divide as coisas de:::la. (PP encoraja-a a falar mais.) ... Aprendi que ... Que ele /deu as histórias dele por quatro favores que ele fez pra ele. Deu as histórias pra ele ensaiar para as crianças. PP: Do Anansi, né? Hum hum. PP: E o que mais você aprendeu? ... Aprendi que ser escravo não é bom e não faz parte da vida. XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. ... Nada; também não me faz lembrar nada. (PP explica o significado de descendente e repete a pergunta.) Nada. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? (PP relembra o significado de ancestrais.) Nenhum. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Gostaria. PP: Por quê? Porque ia ser muito legal. PP: Por quê? Porque é bom de aprender. Tem mais alguma coisa que você queira acrescentar? Não. 293     ESTUDANTE: LELÉU I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? ... Anansi... (O aluno faz uma longa pausa, enquanto ouvem-se os gritos da hora do recreio do lado de fora.) Por causa do cabelo dele. PP: Só por isso? Só. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Gostei, mas nesse aqui eu não vim. PP: Mas, dos que você estava, você gostou de todos? Eu gostei desse aqui também. E dessa (S.I.). PP Reitera a pergunta. Ah, essa aqui é mais ou menos. PP: Por que a do Kofi mais ou menos? ... PP: Se não quiser falar, não precisa falar. É só dizer: não sei. (S.I.)... III. O que você achou das ilustrações dos livros? Bom. Bonito. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Esse aqui (aponta para Um Safári na Tanzânia) e (S.I.) do cabelo de aranha do Anansi. PP: Esse desenho aqui te chamou muito a atenção? Por quê? (Não se entende o que o aluno diz, devido ao ruído das vozes externas.) V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? (PP fecha a porta da sala para diminuir o ruído, volta e repete a pergunta.) Alegria, assim, u:::m, animação. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Não sei. PP agrupa os livros que o aluno conhecia e reitera a pergunta. Gosta de (S.I.), de conversar. 294     VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Daquele bichinho de tocar. PP: Do instrumento? Da kalimba? É. (Folheiam juntos o livro As Panquecas de Mama Panya, à procura da página onde aparecia o instrumento.) Porque pelo ritmo e pelo barulho que faz. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Muito legal. Porque eu falava, cada um falava e a professora falava. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? Dessa aqui (aponta para Kofi e o Menino de Fogo). Porque esse (S.I.), que tava nesse barco aqui. Aí eles viraram amigos. E esse achava que se tocasse nele ia queimar, e esse que ia soltar a tinta. (S.I.) X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Educação. Aprender a fazer alguma coisa. PP: Que coisa? (S.I.) PP: Você aprendeu a fazer coisas que eles fazem? Eles quem? É::: O Anansi e esse aqui. XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. ... Areia; Morenos; (S.I.) PP relembra o significado de descendentes. Me lembra um dente. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? Eu acho que sim. E aprenderam a falar português. Alguém ensinou. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Mais ou menos. Porque eu queria aprender coisas (S.I.). PP reitera a pergunta. Ia gostar. Eu ia saber mais coisas do que os africanos sabem fazer. ESTUDANTE: BIBIANA 295     I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? A Galinha de Angora. Porque, por causa dessa parte aqui, oh (aluna folheia o livro). Cadê aquela parte? PP: Qual parte? A parte que (S.I.) galinha. PP: A parte que cada criança teve uma galinha? Sim. PP: Foi essa a parte que você mais gostou? Foi. PP: Vamos achar essa parte aqui (folheiam o livro)... É porque não tá desenhado, só tá escrito. Ela botou um ovo, né? Aí começou a nascer galinha, aí cada criança ficou com uma galinha, não foi? Foi. Aí eu achei / Foi tão emocionante que eu fiquei muito feliz. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Foi esse daqui. (Aponta para Kofi e o Menino de Fogo.) Porque / oh / É que ele é muito chato. (S.I.) E o filho desses homens, como é que fica? O que que eles comem? Eles moram num tipo assim, oh / É um mundo muito / Eu não gostei dessa história. PP: É um mundo muito o quê? Muito chatinho, muito coisado, é uma floresta. Oh, nele o moço fica puxando (S.I.). PP: Só esse aqui que você gostou? Dele com os cabelos de fogo, de pena... É uma peruca? PP: Não, isso aqui é ele imaginando como seriam os brancos. Os brancos? Ah, esse aqui é moreno. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Achei bom. PP: Sabe o que são as ilustrações? Não. PP: São os desenhos. O que você achou dos desenhos? Achei muito bonito. A galinha de Angora colorida com bolinhas em cima. Os índios, assim, eles estão usando uma coisa, que é tipo, uma peruca, um pau (S.I.) PP: Os índios da Tanzânia? Professor, o que o senhor me amostrou aqui das galinhas? Foi da o:::nça, como que chama esse mesmo? PP: Avestruz. Avestruz, elefante, girafa, trigue, po po po po (risos). IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? 296     Foi esse daqui:::, foi esse / PP: De qualquer livro, quais foram os desenhos que mais lhe chamaram a atenção? Esse daqui do senho:::r, da galinha de Angora. Esse daqui:::. PP: Mama Panya também. Aqui já contou, esse livro daqui? PP: Contou. Você não tava, né? Conta pra mim? PP: Agora não dá tempo. Por quê? PP: Porque eu tenho que entrevistar todo mundo. Não dá tempo. Eu tenho que conversar com cada um deles. Por quê? PP: Mas depois eu juro que eu volto pra contar, tá bom. E depois você vai pecado. PP: Então não juro, eu volto. Então foram os desenhos da Galinha d’Angola os que mais lhe chamaram a atenção. Por quê? Porque todo mundo ficou com uma galinha. PP: Mas, dos desenhos? Dos desenhos, o que me chamou a atenção foi as galinhas. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Eu senti feliz e alegre. Porque... (S.I.) (fala em um tom de muita empolgação.) PP: Foi por isso que você se sentiu alegre? Sim, ela contou essa histó:::ria, (S.I.). PP: Não posso falar, é segredo. (risos) Fala, por favor. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Acho que não. Professor, mas me explica como a pessoa faz um livro. PP: Tem uma empresa que faz o livro. Eles têm uma impressora bem grande, onde eles imprimem, depois eles grampeiam, olha aqui. E aqui? PP: Esses desenhos aqui? Esses desenhos foram feitos com um tipo de material, que você vai cortando e fazendo as bonequinhas. Ah. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? ...Eu não gosto de matemática, nem de português, nem de nenhuma dessas daí que a Tia faz. 297     PP: Mas não é atividade de escrever, assim não. Ah:::. PP: É atividade de / (S.I.) PP: Qualquer coisa que a gente fez depois de ter lido. (Recordam juntos algumas das atividades.) Eu não me lembro de nenhuma. Me fala? (PP recorda, uma por uma, todas as atividades feitas.) Eu gostei também do pulo. PP: Ah, então você gostou da brincadeira do pulo, do Safári na Tanzânia. (A aluna pede mais explicações sobre as atividades que perdeu e narra suas experiências correlatas.) VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Sim. Porque elas são muito fáceis, antigas. (PP explica o significado do termo “discussões”.) (S.I.) Porque faz a pessoa se sentir feliz, porque a pessoa aprende... bem rápido. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? Eu não me lembro. PP: Tá bom, então eu vou te fazer outra pergunta. Nã:::o, deixa naquela pergunta. (PP tenta relembrar alguns pontos das discussões, mas a aluna reafirma que não lembra.) X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Eu aprendi nada. Porque eu não consegui / entendi nada. Mas, assim, da história eu entendi. Desse, desse, desse e desse. (PP reitera a pergunta, mas a aluna não consegue precisar aquilo que aprendeu.) XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. (S.I.) eles moravam nesse país, e vieram pro outro; (S.I.) (Watende entra na sala e interrompe a entrevista. PP explica que está gravando a entrevista e pede para que ele se retire.); (S.I.) (Ouve-se muito barulho vindo do lado de fora.) XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? Não lembro de nada. (PP explica o significado de ancestrais.) Professor, você sabe onde os índios tá / onde os índios mora? PP: Em tudo quanto é lugar tem índio / em muitos lugares. Até na cidade tem índio. Mas aqui não tem. 298     PP: Tem. No mato? (PP faz a pergunta sobre os supostos ancestrais da África.) Sim. Professor, eu::: ... PP: Esqueceu? Não! É que eu não quero falar. Tenho vergonha. (PP encoraja-a a falar.) (S.I.) que eu sou japonês. Mas eu não sou japonês. (S.I.) que eu sou japonês e índia. Eles dizem que eu tenho o olho puxado, que eu pareço igual eles. Mas eu não tenho olho puxado, né? Então porque eles falam, índia, índia? PP: Porque talvez os seus ancestrais foram índios, né? Não sei, quem sabe, né? Professor, eu queria morar na África. Lá eu acho que é muito melhor. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Sim! Porque foi muito bom falar sobre a África, sobre esses livros, sobre essas histórias. Eu gostei / eu gosto de história e sobre África. E eu não sabia que o senhor tinha mais livros sobre isso... PP: Eu tenho um monte. Eu vou trazer outros. Eu vou fazer mais leituras com você, tá bom? (S.I.) ESTUDANTE: SUHUBA I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? … (Aponta para Anansi.) Porque ele é massa. Porque tem co:::bra, e a pessoa aprende muita coisa. PP: E o que mais: Só. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? … (Demonstra-se inseguro quanto aos livros As Panquecas de Mama Panya e Kofi e o Menino de Fogo, os quais não conhecia.) PP: Mas, dos quatro que a gente leu você gostou de todos? Sim. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Legal. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? 299     (Aponta para Anansi, Um Safária na Tanzânia e Bruna e a Galinha d’Angola.) (S.I.) (PP reitera a pergunta, mas o aluno não justifica suas escolhas.) V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Nada. (PP encoraja-o a expressar-se.) Feliz. PP: E o que mais? Só isso. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? (Aponta para Anansi.) Porque ele caça tigre, caça cobra. Eu também caço (S.I.). PP: Por isso que você quis fazer o Anansi, no dia do teatro? Sim. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? (Aponta novamente para Anansi.) É ma:::ssa! PP: Qual foi a atividade que a gente fez depois do Anansi? A gente fez a caça a cobra, a caça a tigre, a caça a fada e o enxame. PP: Foi o teatro que a gente fez, né? E você gostou muito desse teatro. Por quê? O que teve nesse teatro que você gostou? Tudo. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Sim. Posso beber água? PP: Já, já você vai. É só a gente acabar aqui rapidinho. Tá quase acabando, tá? (PP reitera a pergunta.) Porque a pessoa apre:::nde, a pessoa sabe le:::r. Fica muito inteligente e vai pra uma faculdidade (S.I.). (risos) IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? (Aponta novamente para Anansi.) Teve caça ao tigre, a cobra, caçando a fada e... como é o nome daquele que Leléu fez? É o::: PP: Leopardo? Não, o que Leléu fez. PP: O Deus do céu? É. Aí ele pegou o livro. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? 300     Aprendi que tá certo ouvir a professo:::ra, saber a ler. XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. Safári na Tanzânia; ... Safári na Tanzânia também?; ... Sei nem lembrar mais. (PP explica o significado da palavra.) Nada. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? São 3 palavras, você fez 4. PP: Essa palavra você lembra, “ancestrais”? É que essa já é outra pergunta. Não. (PP explica o significado da palavra e faz a segunda pergunta deste item.) Pode. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? (PP assegurou-o que esta era a última pergunta, visto a sua ansiedade em sair.) Sim. Porque ia ser divertido. PP: Você se divertiu com esse trabalho? (Acena que sim com a cabeça.) Professor, vou beber água. ESTUDANTE: MOSI I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? Anansi. Porque ele pega um monte de bichos e ele tem muita sorte. Ele engana os bichos. É como a abelha, que ele enganou. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Gostei de todos. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Boas. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Foi esse (aponta para Anansi), esse (Um Safári na Tanzânia), esse (Kofi e o Menino de Fogo) e esse (O presente de Ossanha). (Evoca a sequência narrativa de Anansi, mas não é possível distinguir bem suas palavras, devido ao ruído externo.) V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? O que eu lembro mais desse (Anansi) foi medo. (S.I.) Esse eu fiquei com medo também (Kofi e o Menino de Fogo). (S.I.) (Evoca várias sequências narrativas de diferentes obras, mas não se percebe bem, devido ao ruído externo.) PP: Então você tava sempre pensando no que ia acontecer depois, né? 301     Eu ficava pensando direto. Teve um dia que eu nem consegui dormir. PP: Qual foi a história que você nem conseguiu dormir pensando? Essa aqui (O Presente de Ossanha), dessa (Anansi) e dessa (Kofi e o Menino de Fogo). (Relaciona eventos ocorridos em sua casa com as histórias, mas não é possível distinguir bem suas palavras.) PP: Você ficou muito curioso? Então, o que você mais sentiu foi curiosidade? Foi. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Anansi. Porque eu subo muito nas coisas. Tipo um dia que o portão fechou lá, aí o muro era muito alto. Eu peguei lá uma parte lá em cima e fui subindo até chegar lá em cima. (Narra outro episódio em que subiu em um muro.) PP: Entendi. E teve mais algum outro personagem que você se identificou? ... Esse cara também (aponta para um desenho do Kofi correndo), porque eu corro muito. Sempre quando eu chego em casa eu peço pro meu pai ir comigo dar uma andadinha de bicicleta e correr. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? (PP relembra as atividades.) Eu gostei mais de fazer o papel de Anansi, e pintar, do pulo e da panqueca. PP: Mas, qual foi a que você mais gostou? Foi a do teatro. PP: Por quê? Não sei. Foi engraçado. (S.I.) VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Gostei. Porque eu falava, os meninos falavam. Tinha vezes que respondiam/ falavam umas coisas engraçadas. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? O Anansi. Porque fez todo mundo pensar que ele/ não ia/ pensar que mais / pensar que o cabelo dele ia/ vai pegar os bichos. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Eu aprendi os animais... Ogro... Das panquecas, que pode comer pouca, dividir... (S.I.) Aprendi mais a correr. Que o ano agora eu tô treinando que só pra correr. (S.I.) Eu aprendi dos bichos (S.I.). E nesse aqui eu aprendi a pintar (Bruna e a Galinha d’Angola), nesse aqui eu aprendi a dividir (As Panquecas de Mama Panya), nesse aqui eu aprendi a pular (Um Safári na Tanzânia). XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. (S.I.) PP: Então, quando eu digo África, você lembra de Um Safári na Tanzânia? 302     É; São os homens que são africanos. As pessoas que são negras; Não sei. (PP explica o significado de descendentes.) (S.I.) O Kofi pensava que as pessoas eram assim. (S.I.). XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? (PP explica o significado de ancestrais.) (S.I.) PP: É? Isso são os escravos. Você tá confundindo. (PP reexplica o significado da palavra e propõe a pergunta.) ... Tem uma pessoa, que é o meu amigo. Ele é bem pretinho. (PP reexplica a pergunta.) Não. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Sim. Porque eu ia aprender os negros e da África. ESTUDANTE: KOJO I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? Desse (Anansi). Porque ele pegou todos os bichos pra ele conseguir a história pra ele. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Não. Gostei de todos. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Eu gostei dos desenhos. Bonitos. Eu gostei. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Esse daqui da cobra e esse daqui (capa do Anansi). Porque ele foi muito corajoso e enfrentou o dente de sabre. Ficou sentado aqui. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Eu senti que eu... esse livro aqui... (PP encoraja-o a expressar o que sentiu.) Alegria. Porque ele pegou todos os bichos, aí ele pegou a metade das histórias pra ele, aí... (S.I.) Bom, eu não sei explicar direito. PP: Eu quero saber o que você sentiu. (Repete a resposta.) 303     VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Não. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? ... (PP reelabora a pergunta e relembra as atividades.) Desse aqui (Anansi) e desse aqui (As Panquecas de Mama Panya) eu gostei. Porque aqui vi uns animais que eu gostei e aqui porque eles comeram panquecas e viveram um final feliz. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? (PP confunde-se e salta essa pergunta.) IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? Do Anansi. Porque ele/ ele (S.I.)... Eu gostei dessa história. (Relembram partes da história juntos, observando o livro.) X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? ... Amizade. Eu gostei de todas as histórias. XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. (Arquivo áudio com problemas. O som está ausente, deste ponto em diante.) ESTUDANTE: AMBAYE I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? (Aponta para Anansi). Porque o deus mandou ele capturar todos aqueles monstros pra ele conseguir pegar as histórias do deus. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Eu não gostei, foi desse daqui oh (aponta para Kofi e o Menino de Fogo). Porque eu não achei muito bom. PP: O que que tem nesse livro que você não achou muito bom? Pode pegar ele pra você ir lembrando. É porque todo mundo não era igual não. PP: Como assim? Ah, é que um era branco assim e o outro era preto / negro. (S.I.) PP: É, mas tem a parte que ele encontrou com o menino branco. (PP tenta fazê-lo esclarecer melhor, mas não se compreende bem a sua fala.) III. O que você achou das ilustrações dos livros? 304     Bons. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? (Aponta para Anansi.) Porque é muito selvagem. Eu assisti (S.I.). (Relembra os personagens do livro, enquanto folheia-o.) V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Amor. Felicidade. E eu gostei das Panquecas de Mama Panya. Eu senti muita coisa nessa história. PP: Tipo, o quê? (S.I.) VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? ... Não. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Aquela que a tia perguntou sobre os livros. (S.I.) PP: Aí você gostou de ter tocado nesses objetos? Na bonequinha, na mbira? (Acena que sim com a cabeça.) PP: Foi isso que você mais gostou? (Acena que sim com a cabeça.) PP: Porque que você gostou disso? Porque eu achei engraçado. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? PP saltou essa pergunta. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? Mama Panya e Anansi. Porque eu achei boa. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? ... Antes eu não sabia ler não, agora eu sei. (S.I.) PP: Você acha que aprendeu a ler melhor com essas leituras? (Acena que sim com a cabeça.) PP: Foi isso que você mais aprendeu? (Acena que sim com a cabeça.) PP: Teve alguma outra coisa que você tenha aprendido? (Acena que não com a cabeça.) PP: Você aprendeu a ler melhor, foi isso? E inteligência, né? 305     XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. ... Daquela história que o Sr. Contou. Não é essa não. (Evoca uma suposta história que teria sido contada primeiro, mas não sabe precisar qual.) Lembrança dessas histórias; (Aponta para os personagens dos livros.); (S.I.) Eu não lembro muito bem não. (PP reitera o significado de descendentes.) O Mosi é descendente da China. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? ... Eu estudei lá na sala... Era coleção de... coleção de... (PP relembra o significado da palavra.) Não. Vieram do interior. PP: Sim, mas os ancestrais mais antigos, que você não conheceu? Não tem como a gente saber, né? Mas, você acha, na sua cabeça, você acha que pode ter sido que algum deles tenha vindo da África? (S.I.) (PP reitera a pergunta.) Acho que não. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Sim. (S.I.) Porque é bom ler livro. Tem mais alguma coisa que você queira acrescentar? Não. ESTUDANTE: DINDI I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? (Aponta para Bruna e a Galinha d’Angola). Porque eu engosteio daquela parte que elas encontraram o baú. PP: Por que que você gostou daquela parte? Foi muito legal. PP: quem foi que encontrou o baú? Bruna e as amigas dela. E a galinha também. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? (Acena que não com a cabeça.) III. O que você achou das ilustrações dos livros? 306     Muito legais. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? (Aponta para Um Safári na Tanzânia, O Presente de Ossanha, Anansi e Kofi e o Menino de Fogo.) Esse aqui por causa do safári, esse aqui por causa do Ossanha, esse aqui por causa dos bichos, e esse aqui por causa que os dois viraram amigos. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Paixão, amizade e compaixão, na Bruna. PP: Isso tudo você sentiu na Bruna? Sim. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Sim. Eu acho que a Bruna tem a ver por amizade. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? ... Não era antes? PP: Antes também. A gente fazia uma coisa antes, depois a gente lia e depois que acabava a leitura / (S.I.) PP: A gente brincou, a gente fez um monte de coisas. Você lembra do que a gente fez? Foi a daquela que tem um chapéu e aí a pessoa fica falando, é:::... PP: Bento que bento é o frade. Frade. Na boca do forno. Forno. É a brincadeira de mestre e senhor, né? Você lembra em qual livro foi essa brincadeira? (Aponta para O Presente de Ossanha.) VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Sim. Porque eu achei muito legal. Porque eu sempre tava com a minha tia, todos os meus coleguinhas. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? É:::. Foi a da Bruna. Eu me lembro que a gente ficou conversando. A professora ficava falando, aí ela disse que ia fazer uma surpresa. PP: Mas isso foi hoje, não foi no dia da Bruna. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Muita coisa. PP: Tipo o quê, por exemplo? Le:::r, escreve:::r. Eu já até tô fazendo um livro. 307     PP: Sério? Como é o nome do seu livro? Já tem nome? Eu tô fazendo um livro de Bruna. PP: Puxa, que bacana! Caraca! Gostei de saber agora. Então, você já é um escritor? (Acena que sim com a cabeça.) PP: E você tá fazendo um livro com o nome da Bruna? Sim. Bruna e a galinha d’Angola. PP: Depois você vai mostrar pra mim o livro, quando tiver pronto? Sim. PP: Então as coisas que você mais aprendeu foi a ler e a escrever? Sim. E a observar com muita calma. XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. Animais, bichos e um monte de pessoas; as pessoas que vivem na África; acho que são as pessoas que vieram de outro país. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? Lembro. Nós somos os descendentes dos nossos pais, dos nossos avós e dos nossos bisavós. PP: E eles são os nossos ancestrais, né? Não só os bisavós, não para aí não, tem também muita gente que nasceu há muito tempo atrás, que a gente não conheceu. Eu acho que meu avô. Porque ele é preto, muito preto. PP: E você acha que ele pode ter vindo da África. Sim. PP: E ele ainda é vivo? Vivo. Tá vivo! Mas o meu bisavô morreu. O pai do meu avô. PP: Então você pode perguntar pro seu avô, se algum dos seus ancestrais veio da África. Não é isso que a gente aprendeu com a Bruna, que era importante ouvir os mais velhos? Sim. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Sim. Porque é muito legal. PP: Como assim, explica melhor um pouquinho. Porque eu ia ficar mais interessado e (S.I.). ESTUDANTE: LOLA 308     I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? Eu gostei da Tanzânia. Porque tem um montão de animais, e também tem o meu animal preferido. PP: Qual é o seu animal preferido? O guepardo! PP: Acho que esse aqui é o leopardo, o primo dele. Mas o guepardo é muito rápido. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Eu não gostei, sabe, do homem-aranha, porque é coisa de menino, sabe... PP: É? Você não gostou desse aqui não, do Anansi? A:::, eu (S.I.) e foi muito engraçado (S.I.) a píton. Acertei! PP: Mas você não gostou mesmo, ou gostou mais ou menos? Eu gostei mais ou menos, tá... (S.I.) III. O que você achou das ilustrações dos livros? Eu gostei mais dos do moleque, por causa que esses (S.I.) / esse aí (aponta para o desenho da capa de O Presente de Ossanha) parece com o saci. Porque ele só tem uma perna, como o saci. Mas o saci tem dois olhos. Quer dizer que ele é bem diferente do saci. PP: Um pouquinho diferente e um pouquinho igual. É, mas a cor parece igual. Mas a roupa não. (S.I.) PP: Então esse foi o desenho que você mais gostou? Por quê? Por causa do Ossanha? É. PP: Ou teve alguma outra coisa que te chamou a atenção nesse desenho? Ah, também (S.I.) o santo ficou fazendo assim para cima, pensando que é uma panqueca (S.I.) e da areia. E também / sabe de uma coisa? Eu nunca comi uma panqueca antes, mas eu já comi... agora, né? Professor Wagner, como pode fazer uma panqueca? PP: É muito fácil. É com leite e farinha. E com manteiga? PP: Pode botar um pouquinho de manteiga também. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? (Aponta para Um Safári na Tanzânia, O Presente de Ossanha, Anansi e Kofi e o Menino de Fogo.) Esse aqui por causa do safári, esse aqui por causa do Ossanha, esse aqui por causa dos bichos, e esse aqui por causa que os dois viraram amigos. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Ah, todo mundo sabe que eu gostei muito da Bruna, sabe, aquela da Galinha d’Angola. Eu já vi uma, (S.I.). (PP reitera a pergunta.) 309     Eu gostei muito. Mas eu gostei mais desse, quando você tava fazendo a voz do deus. PP: É? E você sentiu o quê? Medo. PP: Você sentiu medo na hora que eu fiz a voz do deus? É. Grave. (S.I.) VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Tem. Que todo mundo acha que tem uma pessoa que tem uma pele negra, como o Ambaye e também (S.I.) e também a minha irmã. E também Gabriel e:::... e também Marcos. E tem um menino que fica na sala dele. Eles são do 3º ano A e outro do 3º ano B. Eu não entendo (S.I.) Mas eu não entendo! Assim (S.I.) brincar sozinha. É que eu não tenho nenhum amigo pra brincar. (S.I.) Se todo mundo não for meu amigo? O que vai me acontecer? (S.I.) eu vou brincar sozinha. PP: Não. Não vai não. As pessoas vão ser suas amigas sim. É bom. (S.I.) (PP reitera a pergunta.) Bom... Não muito, porque (S.I.). Porque eles têm a pele escura. PP: E você acha que eles não são parecidos com você porque eles têm a ele escura? É. (S.I.) PP: Mas, apesar de eles terem a pele escura, eles não têm mais nada parecido com você? Não. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Gostei de fazer a peça (S.I.) e de fazer o deus. Pode ter dois deuses né? PP: sim. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Sim. Eu gostei mais da Tanzânia, porque a gente vi muitos animais. (PP reitera a pergunta.) Sim, a que os meus amigos estavam aqui, e você tava com a câmera? PP: Sim. (S.I.) Bibiana não gostou de filmar no telefone. Êpa! Desliguei sem querer! IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? (PP salta essa pergunta.) X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Bom, eu gostei de todas, mas, eu gostei mais do:::... 310     (PP reitera a pergunta.) (A Professora entra na sala e diz que depois quer tirar uma dúvida.) (PP reitera novamente a pergunta.) Eu aprendi que os desenhos são bem legais, mas (S.I.) PP: Você pode falar um pouquinho mais alto, Lola? É que eu não tô entendendo. Um pouquinho mais alto: o que que você aprendeu? É que:::. Sabe, eu nasci assim, com uma voz bem baixinha (S.I.) Eu aprendi que na Tanzânia tem muitos animais. E que tem (S.I.) e que a Mama Panya vai no vulcão, na montanha... e em qualquer (S.I.) Aquelas panquecas que a gente comeu eram da Mama Panya? PP: Foi. Mas, como ela chegou aqui? PP: Não, foi eu que fiz as panquecas. Foi igual a da Mama Panya, mas fui eu que fiz. Entendeu? É porque no final do livro tem a receita, oh. Tem esse livro aqui na escola. Você pode pegar, levar pra casa e pedir pra sua mãe fazer a receita. Tá! Brigado! XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. Tanzânia (S.I.), mas lá onde a Mama Panya mora também é a África; como alguns anim / algumas pessoas que ficam bem longe daqui que são os africanos/ os índios, né? São os índios?; Não sei. (PP explica o significado de descendentes, remetendo-se ao exemplo do Mosi.) Descendentes são as pessoas que vem de outros países, como o Mosi (A aluna continua falando por mais de um minuto, mas não se pode entender o registro). XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? Eu não sei. (PP explica o significado de ancestrais e insiste até que a aluna responda à pergunta.) Eu acho que não. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? É::: (S.I.) Eu ia gostar. (S.I.) ESTUDANTE: BINA I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? Foi da Galinha de Angola. Porque foi legal. Porque ela ficou com a galinha, ela achou e deu todas as galinhas para as amigas dela. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Gostei de todos. 311     PP: Você tava presente em todos os livros? Tava. PP: Que legal! Uma menina que sempre vem pra escola. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Eu gostei dos desenhos / tudo bonito! IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Mama Panya. Porque o desenho dela é que ela faz panqueca. E (S.I.) o filho dela e todos deram um pouquinho mais de comida pra ela fazer. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? O que eu senti /eu gostei de todas essas histórias e eu também gostei da cantoria que o Sr. Cantou. PP: É? E o que que você sentiu? Senti impressionada. PP: Foi? Como assim impressionada? Explica melhor? Fiquei impressionada porque é a sua cantoria e as histórias. PP: Foi? Foi mais com essa aqui então que você ficou impressionada? Com todas. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? ... A Mama Panya. Minha mãe sempre faz panqueca e a minha avó. E também a galinha d’Angola. PP: Você se identificou com quem nessa história da galinha d’Angola? Eu coisei com a menina, Bruna. PP: Você acha que a Bruna tem alguma coisa parecida contigo? Sim. PP: O que por exemplo? ... Ela é da minha cor. PP: E você gostou de ver a menina na história com a sua cor? Sim. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Eu gostei mais da atividade que a gente pode olhar os livros, ler. (PP esclarece melhor a pergunta.) ... (PP relembra as atividades feitas.) Então é essa (aponta para Kofi e o Menino de Fogo). Porque o Kofi, ele é muito legal. PP: Mas da parte da conversa, o que foi nessa conversa do Kofi, assim, que você gostou? 312     Foi que ele pode achar as pessoas brancas e ele ficou muito feliz. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? (PP saltou essa pergunta e a próxima, pois ela havia apontado como atividade preferida justamente uma na qual houve apenas discussão.) IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Eu aprendi tudo das leituras. Eu aprendi sobre a Mama Panya, a galinha de Angola, Kofri e... PP: Sim, mas aí você tá falando os nomes dos livros. Eu digo assim, com esses livros, o que que você aprendeu, você, Bina / Eu aprendi a ler. PP: E o que mais? Também aprendi a saber as histórias que o Sr. Contava, que a tia também. XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. África é:::... africanos; ... africanos vem também África; ...descendente é uma pessoa que sabe ler e sabe o que é descendente. (PP relembra o significado de descendentes.) Descendentes são as pessoas que moram muito longe. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? (PP explica o significado de ancestrais.) Ninguém veio da África, pelo menos do meu pai e da minha mãe, ninguém veio da África. (PP tenta explicar melhor a pergunta.) Não. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Ia gostar. Porque eu gosto de viver com as pessoas negras. Meu pai é negro, minha vó é negra, minha mãe, meu irmão. ESTUDANTE: DOTO I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? Eu goste:::i... esse (aponta para Anansi). Eu pensei (S.I.) junto com os bichos. (S.I.) Eu gostei dos dentes dele (do leopardo). 313     II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Eu gostei de todas. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Eu gostei esse e:::... PP: Não, calma, primeiro é de todos os livros. Pensa em todos os desenhos. O que você achou dos desenhos? Eu gostei. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Eu gostei só de::: isso (As Panquecas de Mama Panya). Eu gostei desse desenho (S.I.). Aí eu gostei esse livro. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Eu senti.../ eu senti muito. PP: Sentiu muito o quê? Eu li tudo isso, esse livro. PP: É? E o que que você sentiu? Assim, você se sentiu feliz, com medo, assustado, triste, animado, o que foi que você sentiu? Eu senti animado. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Hummm... Eu gostei esse livro e esse (Bruna e a galinha d’Angola.) PP: Você acha que a Bruna tem alguma coisa que tenha a ver contigo? Ti-tigo... aí... eu (S.I.) eu cantei. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Eu gostei... hummm... Eu vi livro eu li muito aí... eu vi livro eu li muito. (PP relembra as atividades.) Eu gostei esse (Um Safári na Tanzânia). Porque essa (S.I.). VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? ... PP: Não quer responder? Não lembra? (Acena que não com a cabeça.) IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? (PP salta essa pergunta.) 314     X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Eu aprendi, eu li, eu (S.I.). XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. ... PP: Nada? (Acena que não com a cabeça.); ... Eu sei. Eu li esse, esse, esse, esse. Poucos livros. (S.I.)...; Eu lembro... Aí... Aí... Não sei também não. (PP explica o significado de descendentes.) XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? (PP explica o significado de ancestrais.) (S.I.) XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? (Acena que sim com a cabeça.) (S.I.) ESTUDANTE: ARUSHA I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? É::: Acho que O Presente de Ossanha. Porque:::, sei lá, ele teve muita coisa. Ele fala sobre um assunto que eu nem sabia o que era e depois que eu li o livro e a história eu aprendi o que era e os textos. PP: E quais foram essas coisas que você aprendeu com esse livro? Eu aprendi o que era escravo, que eu já sabia um pouco. É::: Qual era o nome mesmo disso(aponta para o desenho de Ossanha, na capa do livro)? PP: Orixás? Orixá:::s. Mais / o passarinho... Sei lá, um monte de coisas. PP: Então você gostou do Ossanha porque você aprendeu coisas com ele? É. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Não. Gostei de todas. III. O que você achou das ilustrações dos livros? 315     Bem vivas! Parece real! IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Esse (O Presente de Ossanha), esse (Kofi e o Menino de Fogo) e esse (Bruna e a Galinha d’Angola). Porque eles são bem realistas, sabe. Parece que a gente tá dentro do livro (S.I.). V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Medo. PP: Por quê? Quais foram as histórias em que você sentiu medo? Em quase todas. PP: Isso é o que você mais lembra? Medo e alegria. VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Não. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? Aquela que a gente explicava logo o que era racismo (S.I.). PP: E qual era essa? Acho que foi depois desse livro (aponta para Kofi e o Menino de Fogo). Que a gente ficou falando e mandou até uma (S.I.) pra mãe. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? Sim. Porque eu gostei de ler (S.I.), saber qual era a reação (S.I.). IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? (PP salta essa pergunta.) X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Aprendi:::... (S.I.) PP: Oi? Eu não entendi. Fala mais alto. (Entre risos) O menino, ele tem mania de ficar me chamando de loira do banheiro, aí eu fico vermelha. Aí teve um dia que a gente teve que ir lá falar pra diretora. PP: Sim, mas você entendeu a pergunta? Entendi. PP: Mas você respondeu outra coisa. (PP reitera a pergunta.) ... Ah, aprendi que os escravos eram transportados da África pra cá. Eu pensava que eles eram daqui. E também o:::... deixa eu ver... (S.I.) e ele ia ser vendido e (S.I.) deixou o 316     passarinho pro Ricardo. (Faz uma descrição da cena final de O Presente de Ossanha, mas não se entende bem o que ela diz.) XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. Vem um país que sofre, com pessoas que são felizes. Elas não são do jeito que a gente é, tipo, que vai pra escola e essas coisas. Elas são diferentes. Elas falam outra língua e vivem (S.I.) estranhos, sei lá; Pessoas da África... Sei lá, que vêm da África; Quando uma pessoa vai pra algum canto aí o filho dela tem um filho, aí o filho do filho dela é / é / passa muito tempo, aí é descendente. XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? (PP explica o significado de ancestrais.) Provavelmente sim. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? (Acena que sim com a cabeça.) Porque eu gostei do trabalho que você fez. E também, cada dia, a gente tava fazendo uma coisa diferente. E eu gostei. ESTUDANTE: WATENDE I. Qual foi o livro de que você mais gostou? Por quê? (Ouve-se muito barulho de vozes vindas de fora da sala.) Um Safári na Tanzânia. Por causa dos animais. II. Houve algum livro de que você não tenha gostado? Por quê? Não. III. O que você achou das ilustrações dos livros? Legal. IV. Quais foram os desenhos que lhe chamaram mais a atenção? Por quê? Nenhum. V. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Bem. 317     VI. Você se identificou com algum personagem? O quê nesse personagem tem a ver com você? Não. VII. Das atividades que fizemos após as leituras, de qual você mais gostou? Por quê? De ler. (PP reitera a pergunta e relembra as atividades que foram feitas.) (Aponta para algum livro.) PP: E o que que você gostou de fazer nesse aqui? Nada. Não sei. VIII. Você gostou das discussões que fizemos depois das histórias? Por quê? (Acena que sim com a cabeça.) Não sei. IX. Qual foi a discussão que lhe chamou mais a atenção? Por quê? Todas. X. O que você aprendeu com as leituras que fizemos? Por enquanto nada. (PP incentiva-o a expressar-se.) Aprendi esse. (Aponta para Um Safári na Tanzânia.) PP: O que que você aprendeu com Um Safári na Tanzânia? Sobre os animais... PP: E o que mais? Nada. (Alguém pede licença e entra na sala para pegar algo.) XI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. ... Que:::... Eles eram pobres; ... Que eles não têm comida; ... Nada. (PP explica o significado de descendentes.) XII. Você lembra o que são “ancestrais”? Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? Não. (PP explica o significado de ancestrais.) 318     Não. XIII. Você gostaria de que a escola fizesse mais trabalhos que estudem os negros e a África? Não. PP: Por quê? ... Sei não. PP: Você não gostou desse trabalho que a gente fez? Gostei. PP: Você não queria mais trabalhos como esse? (Acena que sim com a cabeça.) PP: Então porque que você falou que não? Queria ou não queria? Queria. ENTREVISTA COM A PROFESSORA I. Como você avalia o desempenho individual de cada aluno durante as sessões de leitura. No geral, em todos eu vi um progresso. Primeiro na audição. PP: É. Essa seria a segunda pergunta, que eu ia falar da turma como um todo. Vamos inverter a ordem então. Então, primeiro na audição. Na concentração para ouvir a história. Todos foram progredindo. Alunos que não ficavam parados, na grande maioria todos começaram a se concentrar mais pra escutar a história. No início, eles não se ligaram muito no tema. Mas, conforme a gente foi contando as histórias, eles começaram a se ligar no tema: África. Mais na África do que no africano mesmo. Primeiro eles se ligaram na África, no lugar, depois eles começaram a pensar no povo. Eu vi uma grande mudança nesse sentido. E no interesse também. Todos começaram a ter mais interesse por ouvir histórias, pra levar histórias pra casa, vir na biblioteca e levar livro pra casa. Individualmente, alguns alunos já mostravam interesse, como Lia, a Arusha. Acho que essas duas e a Zalira eram as que mais se interessavam por leitura, antes. E aí elas acrescentaram muito, cada vez elas melhoravam mais a sua apresentação e as suas opiniões. Elas eram bem pensativas, sempre tinham coisas a acrescentar, que faziam com que os outros conseguissem enxergar alguma coisa que, às vezes, eles não percebiam. Então, elas já tinham um envolvimento e cresceram bastante. O Mwambe deu pra avaliar pouco. A não ser que ele era sempre muito observador, atento, mas falou pouco, participou pouquíssimo. Ele é assim, o normal dele. O Mwambe participa pouco. Só quando você chama ele mesmo, individualmente, que você pergunta, que você tem ideia do que que ele tá pensando. Ele é muito calado. Mosi, Suhuba e Leléu começaram com o mesmo tipo de comportamento: sem parar, sem ouvir. E Ambaye. Acho que seriam os quatro. Com o decorrer, o Leléu parou, começou a se concentrar mais e começou também a prestar atenção e a colaborar na pré-leitura. Na pós e na pré. E uma coisa que ficou notória é como ele é observador em relação ao visual. Tudo ele enxergava / 319     PP: As ilustrações, né? A ilustração pra ele chamava a atenção em tudo. E também ele começou a dar opinião mesmo. Pensando relacionado ao assunto. O Ambaye também começou a se acalmar e a prestar mais atenção. Só que eu acho que ele não contribuía tanto. E ele foi um que, no início, não se considerou negro. Depois, em alguns momentos de algumas conversas, ele já começou a se colocar como negro, que tinha gente da família negra. Também teve uma mudança no Ambaye nesse sentido. E o Suhuba e o Mosi, o que me surpreendeu foi que, mesmo não parando – às vezes tendo que sair pra a gente conversar, pedir que voltasse, se acalmasse – quando a gente fazia a pós-leitura, principalmente o Suhuba, naquela vez que a gente foi fazer o teatro, ele sabia tudo (S.I.) Então, é aquela coisa, tem criança que realmente não para, mas que tá atenta. Ele foi um desses. A Bibiana... Assim, ela entendia alguma coisa, mas eu acho que, por mais que ela prestasse atenção, ela não conseguia se aprofundar nos assuntos, não. Muito infantil, as respostas que ela dava, as interferências que ela fazia. Já a Lola, em todas as partes ela participava, só que daquele jeito bem lento, bem sonhador, sempre buscando outros assuntos, às vezes fora. A Bina, foi uma participação média. Ela tinha interesse, mas ela também não tem um conhecimento prévio. Já a Lola tem conhecimento prévio. Tinha coisas que a gente perguntava que ela sabia, porque ouviu um comentário, ou a mãe contou. Ela também sempre gostou de levar história pra casa, agora ela aumentou mais ainda. E a Bina não. Ela não tem conhecimento prévio, então a contribuição que ela dava não era tão interessante, às vezes, mas, mesmo assim, ela sempre participou, sempre deu opinião. Watende, quando participou, teve momento que ele participou bem, deu opinião inclusive, explorou o livro. Só que, quando ele tava naquele momento bom, foi ótima a participação dele, levando em consideração todos os problemas que ele tem. Das vezes que ele participou, que ele foi do início ao fim, eu achei ele excelente. Agora, quando ele tava com aquelas crises, aí foi / quando ele mudou de lugar – eu notei isso também – no dia que a gente fez lá fora, Watende não conseguiu ficar. Também ele teve essa mudança. Pro Bodru /pro Jéremie foi ótimo, porque ele adorou o momento, apesar de ele também não conseguir se concentrar mas ele gostou das / de você. Isso foi bom, porque ele ficou na sala, coisa que ele não fazia no início. Lembra que tinha vezes que ele saía, depois não precisou nem a gente fechar a porta mais, quando fomos pra biblioteca. E em alguns momentos ele até falou. Então, ele tava prestando atenção. A gente, inesperadamente viu ele participar. Eu achei que pra ele foi muito bom o projeto, mesmo ele não tendo aquela participação contínua, ajudou bastante. Bodru... Que foi, assim, um aluno que se desenvolveu durante todo o tempo. Como? Primeiro que ele sempre foi muito calado. Percebe tudo, observador, tem conhecimento prévio de algumas coisas, mas ele chamou a atenção porque a gente viu / ele foi a figura que a gente mais viu a discriminação. Ele deu um depoimento... bem claro mesmo, ele não tem vergonha. Ele falava pouco, mas, quando ele falava, era sempre bem perturbador o que ele falava. Eu ia pra casa, às vezes, pensando... naquilo que ele falou. Então, ele foi importantíssimo, eu acho. E... Tirando ele do projeto, ele melhorou muito. Acho que isso ajudou ele a começar a falar mais, fora do projeto, na sala de aula. Participar /ele era um aluno assim, no papel / tudo ele botava no papel / ele pega uma avaliação, um exercício, ele não te pergunta nada, ele lê e sabe exatamente o que vai fazer. Mas ele não participava oralmente, hoje ele participa melhor. Então eu acho que o projeto ajudou nesse sentido. E ajudou também ele a pensar esse preconceito que ele tinha e que eu observo que vem de família. Alguma coisa / ele vive muito com a vó, eu já procurei saber e / eu vi preconceitos religiosos foram os mais / que ficou resistente nos Orixás. Mas pra ele eu 320     acho que também foi... nossa, foi maravilhoso o projeto, que ajudou ele a crescer em várias coisas na sala de aula. Não sei se eu esqueci de alguém. PP: Kojo. Kojo... Ele bem calado também, ele não participa, mas ele mostrou interesse naqueles livros que tinham as coisas que ele gosta, por exemplo, coisas ligadas à natureza, a horta, a / Orixás, ele já gostou, porque ele pensou muito que / ele gosta muito / por exemplo / não que tenha a ver uma coisa com a outra, mas coisas mais / que talvez pra ele sejam mais misteriosas / ele adora dinossauro. Ele adora tudo que é ligado a essa coisa, assim, que já existiu, ou que ele não tem como explicar muito. Então ele gostou muito. Ele fala / hoje mesmo, quando falou no Anansi, ele gostou. Ele adorou o Anansi, porque tinha, tinha o... homem–aranha, que ele gostou, e todos aqueles passos que eles fizeram, chamou bastante a atenção dele. Ele contribui pouco. Ainda é / ele não é um aluno que tá / apesar de ele ser quieto, eu acho que Suhuba e Mosi contribuíram muito mais. Porque Suhuba e Mosi, quando eles falavam, eles falavam coisas que tinham a ver com a história. PP: E o Dindi? Sim, Dindi também / achei que a participação dele foi pouca. Mas, de alguma forma deve ter ajudado, porque ele deu um pulo em relação à leitura... e ao interesse. Então, eu acho assim, que ajudou a todos. Mas, no geral, acho que todos cresceram, né? E eu, nem se fala então. Mas / ótimo / e eu tô tentando manter. Não, é claro, com todos aqueles aspectos que a gente fazia, porque não dá, né? Mas, seguindo essa coisa da pré, da leitura e da pós. II. Como você avalia o desempenho da turma como um todo durante as sessões de leitura? (Pergunta já respondida na primeira fala da professora.) III. Como você avalia a importância deste trabalho no âmbito: a) da Escola ... Diretamente na escola, por enquanto, eu não sei se teve algum resultado, mas... vai ter / a gente vai continuar, vai querer apresentar pros outros. No momento em que a gente começar a envolver as outras turmas, vai ter um bom resultado também pra escola. Ter uma pessoa fora sempre é bom, uma pessoa de fora, aliás, dentro da escola fazendo esse trabalho só serve pra enriquecer. Porque esse alunos vão continuar na escola. Quando eles forem pro quarto ano, eles já vão com uma nova visão de leitura. Então vai ajudar. b) da educação nacional É uma gotinha, mas é muito importante. São 18 alunos que tão começando a se envolver com o tema da afrodescendência, conhecer a África de uma forma diferente daquela que a gente pensava... É... são crianças que hoje já conseguem enxergar o mundo de uma forma maior. Ele conseguem idealizar países já, continentes. Mesmo que eles não saibam identificar, mas sabem / uma coisa que ajudou muito: o mapa, pra eles, hoje, é uma coisa que eles já estão mais familiarizados / eles conseguem ter uma relação, e é aquela relação de diferença cultural. Então é uma turma que já, no âmbito nacional, já é diferente, né? Eu acredito que tenha uma diferença. IV. Na sua opinião, quais foram as maiores dificuldades para a condução deste trabalho? 321     Primeiro, por não conhecer tanto sobre a África. Isso foi um / por mais que a gente tenha estudado, eu acho que eu tenho que me aprofundar mais ainda. Eu / quando eu falo eu, são todos os professores. A gente conhece pouco e a gente tem muitas ideias erradas, que eu fui desconstruindo e isso me ajudou. Então, isso foi a primeira coisa que eu acho que me atrapalhou um pouco: eu tenho que conhecer mais. Outras vezes, o que eu vi foi / o espaço, né? O espaço pra você fazer uma leitura adequada. Às vezes o barulho. Isso tem que ser bem pensado sempre. E, em alguns momentos também / a falta de costume que / essa turma, no ano passado, eu acredito que eles não tiveram esse / todo esse costume de fazer esse processo de leitura, de ir pra biblioteca pra ouvir história. Então acho que isso também, no início foi / fazer com que eles soubessem ouvir. Eu até falei pra você. Saber ouvir. Acho que esse foi o pior de todos, talvez. E melhoraram, assim / saber ouvir e saber a hora de esperar. Acho que um empecilho grande foi o não saber ouvir. Aquilo sempre de interromper, interromper, não se concentrar. Eu acho que pegando a primeira filmagem e a última, a gente vê a mudança. V. Qual foi a principal contribuição desta pesquisa para o seu fazer docente? Ah! Aí vai demorar! (Risos). Primeiro, a sistematização, fazer as coisas bem sistematizadas. Eu sempre tive meu planejamento / assim, ele é todo sistematizado, todo detalhado. Mas, em relação à leitura, eu já fazia algum / sempre eu tenho um momento do projeto de leitura e produção textual, como eu mostrei pra você. Mas ele não era tão sistematizado e tão estudado como passou a ser agora. Você (S.I.) um livro, eu sempre sabia o livro que eu ia ler e sempre lia em casa, mas não dava importância, principalmente, às vezes, ao vocabulário. Algumas palavras (S.I.). Mas agora não, eu presto mais atenção nisso. E eu acho que eu não prestava tanto. E, além da leitura, da própria literatura, do trabalho com o livro, melhorou no geral na fala. Na hora que eu vou trabalhar qualquer assunto, eles já tão mais preparados pra ouvir e mais preparados pra dar a opinião deles, pra contribuir. As contribuições deles tão cada vez mais significativas. E isso ajudou, assim, muito. Eu faço uma pergunta e aí abro, aí um vem e fala uma coisa, aí um outro complementa, até chegar a uma resposta. Isso pra todas as outras matérias. Então o projeto de literatura, esse hábito de fazer isso (S.I.) me ajudou nas outras disciplinas também. Me ajudou no dia-a-dia. PP: Quer dizer, você achou que a argumentação oral melhorou? Melhorou! Nossa! Muito! Alunos que falavam pouco melhoraram, como eu já contei pra você, e alguns que não sabiam ouvir aprenderam a ouvir melhor. Ainda tem alguns que têm que melhorar, mas, nossa, me ajudou muito. Quando eu vou planejar agora, tem esse momento que eu já tinha, que era o momento da leitura, agora eu me dedico mais a ele, na preparação. Principalmente no estudo. Porque às vezes eu esquecia algumas palavras. E depois na hora eram dúvidas pra eles que atrapalhavam na leitura. Agora mesmo, tô fazendo contos de fada. Então, eu já vim pensando: o quê que eu vou perguntar. Mesmo sendo um livro pequeno, que eu achei o texto pobre, um livro que eu tenho aí, eu explorei mais. Por preparar, eu já pude antecipar algumas coisas e melhorar. VI. Você considera que os conceitos estudados durante a formação contribuíram para o seu desempenho como mediadora de leitura? De que forma? Ah, com certeza! Primeiro isso que eu já falei antes, da sistematização. E depois, na hora de contar. Você fez interferências que me ajudou: é::: a pontuar melhor o tom da voz, em tudo isso eu procurei melhorar. Até agora, o que eu não consegui, de fato, foi mudar a fala, a voz dos personagens. Mas até nisso, no finalzinho eu achei que eu melhorei. Então, me ajudou muito na oralidade, na hora de contar a história. Chamar a atenção do aluno, 322     sabe? Com certeza ajudou muito aquilo que a gente viu no estudo: como interferir, como não interferir. E::: em relação também à África, me ajudou o conhecimento da África. VII. Dentre os aspectos relativos ao repertório escolhido, o quê você destacaria como tendo sido de grande relevância para o trabalho desenvolvido? (PP saltou essa pergunta.) VIII. Qual foi a sessão de leitura de que você mais gostou? Por quê? Olha, teve uma que eles ficaram assim / foi um momento de / foi a da / tô tentando lembrar se foi a do Kofi / que eles ficaram por um momento, assim, todos / não, foi a da Bruna e a Galinha d’Angola. Eu achei a mais, assim, que eles / mesmo todo mundo deitado, ninguém ficou batendo em ninguém, assim, sabe, se mexendo, que eles ficam / eles ficaram realmente ouvindo a história. Foi a que eu mais gostei. Fiquei até emocionada nesse dia. Eu lembrei! PP: Eu lembro. Aí, tudo ficou assim, tranqui:::lo, todo mundo pensa:::ndo. Foi a que eu mais gostei, por isso, porque eu vi o envolvimento deles. Todos estavam, mesmo deitados, prestando atenção no que eu tava contando. IX. O que você mais lembra de ter sentido durante as leituras das histórias? Ai, mas cada uma eu senti uma coisa! Por exemplo, nessa (Bruna e a Galinha d’Angola) eu fiquei emocionada. Teve algumas que eu fiquei um pouco inquieta e irritada. Algumas, quando eles não conseguiam se concentrar, eu ficava assim: poxa, o que é que tá dando errado? Ficava inquieta, mas eu acho que, com o decorrer, na maioria das vezes eu senti, assim, é::: a emoção de ver eles conseguirem tá cada vez se envolvendo mais. Eu acho isso uma gratificação, né? O resultado. Não é gratificada, acho que não seria a palavra certa. É isso, de de repente ver que tava dando certo. Eu senti isso, me senti superfeliz. Quando terminava e eu dizia: poxa, deu tudo certo, eles participaram. Então acho que eu me senti assim, feliz e emocionada de uma vez. Assim, mesmo (S.I.) eu me senti feliz, pelo projeto como um todo. X. Você enxerga vantagens no uso do método da andaimagem para a condução das sessões de leitura? Por quê? Eu já expliquei. Com certeza, eu tenho pensado nisso até nas outras disciplinas, na hora que tem um texto. Um texto que eu vou trabalhar de história, eu já lembro na hora, vamos fazer aquilo ali: dar o título e ver o que é que eles sabem. Então, eu adorei e é uma coisa que eu vou usar direto agora. (Fim da primeira parte da entrevista.) XI. Como você avalia a contribuição das atividades de pré-leitura para a pesquisa? Pro aluno, eu acho que eu até já falei. (Retoma a sua fala anterior sobre a pré-leitura, citando a importância do vocabulário e da previsão.) E, com relação ao seu projeto, foi uma forma de você ver o que eles já tinham de concepção de leitura. Pra eles, um livro / se uma criança já tinha ideia de um título, de uma ilustração, tudo isso dá pra gente ver na pré-leitura. (Reafirma que usa essa técnica em outras atividades que não a literatura.) XII. Das atividades de pós-leitura, qual você considera que tenha sido mais produtiva? Por quê? Eu gosto das discussões, na hora que eles dão opinião sobre o que eles acharam da história. Uma que eu achei bem interessante foi a do Kofi e o Menino de Fogo. Eu achei aquela discussão bem interessante, das coisas que eles foram falando depois. E a gente fez em duas partes, né, o Kofi. Outra que foi muito interessante também foi a da galinha de 323     Angola, que aí já foi a pintura. Então, acho que todas são válidas. Aí, depende, assim, pra cada livro saber escolher uma pós-leitura mais interessante, que tenha mais a ver. E eu acho que nisso a gente foi feliz, porque a galinha de Angola agente escolheu bem, porque tinha bastante material artístico pra fazer. Essas mais importantes, assim, a discussão foi fundamental. A gente viu a opinião das crianças, conseguiu ver crianças que têm preconceito, e, quando não tem a discussão, fica difícil de a gente avaliar isso. Então, a discussão é importantíssima. E a dramatização também. Quando a gente fez o... a última, o::: Anansi, também, a gente escolheu certo. Aquela seria a ideal pra fazer a dramatização. XIII. Como você avalia a importância das discussões feitas? (Ambos concordam que a pergunta já foi contemplada nas respostas anteriores.) Mas, assim mesmo, eu queria complementar, que, eles estão tão falantes, que, tudo agora, você começa a falar uma coisa, e pronto, o dedo levantado, às vezes eles não querem deixar nem eu concluir e eles já querem dar opinião (risos). Eles começam a levantar a mãozinha e Lola mesmo, ela fica sacodindo o dedinho assim oh, sem parar. Aí eu digo: gente, peraí, baixa a mão que eu já sei quem quer falar, deixa eu terminar. Entao, pra tudo a discussão é importante, não só na literatura, em todas as atividades. Até em Matemática, quando você dá um assunto, às vezes, isso gera uma discussão. XIV. Na sua opinião, qual a principal importância do trabalho com narrativas de ficção? Eu acho que é porque mexe muito com o imaginário da criança. Além de trazer as experiências que ela já tem. Apesar de criança, às vezes, ter pouca experiência, mas ela sempre tem uma vivência. Então, traz esse imaginário dela, e a vivência. Eu acho ótimo! XV. Na sua opinião, este trabalho alcançou seu objetivo de contribuir para a melhoria das relações étnico-raciais dentro do grupo estudado? É::: Contribui. Assim, não foi o suficiente ainda. Eu vejo que ainda tem muito / hoje ainda surgem questionamentos na sala. Eles falam / hoje mesmo, um aluno, né, Ambaye, que, desde quando começou e até agora ele não se define como negro. Ele se define como, é:::, moreno. E ele não gosta quando alguém fala essa expressão negro, ele não gosta. Ele hoje / ele vai ser um personagem, na peça que a gente vai fazer, que ele vai ser o boi. Então, alguém falou assim: você vai ter que vir todo de preto. E ele falou, mas eu não sou negro, eu sou... moreno. Ou seja, eles ainda têm essa resistência. Mas foi já uma forma de começar a trabalhar, e eu tenho que dar continuidade. E eu vejo que, por ter trabalhado nisso, aparece sempre em alguns momentos, que a gente conta uma história, é, relata alguma coisa, eles puxam pra esse assunto: ah, lembra lá na África... lá no africano... é, lá tem negro. Foi o pontapé inicial, mas tem que continuar, e muito, porque eles ainda têm essa coisa assim, essa visão diferente, assim, do negro. O outro aluno, Bodru, ele também tem sempre essa resistência, assim, quando você vai falar em negro, ele meio que / eu vejo nas expressões dele que ele tem resistência. Então, serviu sim, mas ainda é só o começo. XVI. Diga o que te faz lembrar as seguintes palavras: África; africanos; descendentes. (risos) Agora, toda vez que fala África, eu lembro do projeto, de tudo o que a gente estudou. E eu tenho procurado, assim / esses dias eu tava vendo um documentário sobre a África... e tudo eu lembro: olha, isso a gente viu, isso a gente trabalhou. Então, hoje eu vejo a África, assim / a igualdade, assim / cidades que, também, eu tinha uma ideia diferente, achava que a maioria das cidades eram cidades mais pobres, que só tinha mais aldeia. Claro que eu sabia que tinham cidades desenvolvidas, mas não sabia nessa grandeza. E o que me lembra África, também, é o sentido de família. Hoje, assim, eu vejo que é uma cosa muito forte: de família, de tradição, que eles também respeitam muito. E 324     outra coisa que eu associo à África é o respeito à pessoa mais velha. O pouco que eu li, eu observei isso; É, essa eu meio que já respondi. (Reitera a importância da cultura e da família.) E uma coisa também é a solidariedade, a vida em grupo, que eu achei que destacou bastante. ... (risos) Ah, não sei... Seria um pouquinho de tudo o que a gente viu. No caso, nós somos descendentes, desses / de um / de africanos. Eu mesma. Eu não sei dizer também a descendência, então eu fico pensando: tem a do meu pai, que eu sei que é polonesa, mas a da minha mãe eu não sei, é uma mistura. Então, eu acho que descendente é uma palavra vaga pra mim. Eu não saberia definir muito bem. Pra mim, né, na minha vida. XVII. Você acha que algum dos seus ancestrais vieram da África? É o que eu falei (risos). Eu sei que a minha mãe nunca contava a história dela. Eu só sabia a da família do meu pai. Meu pai veio da Polônia, meu avô por parte de pai veio da Polônia e minha vó veio da Alemanha, por causa da guerra e tal. E da minha mãe, você perguntava... eu só sei assim, pelo que eu vejo da história da minha mãe, eu acho que ela é meio índia. Eu acho que, pela cor, o cabelo preto, meio escorrido. Mas, infelizmente, eu não tenho muita ideia dos meus ancestrais. PP: Mas, o que você acha? Porque a gente nunca tem certeza. Eu acho isso. Minha mãe seria descendente indígena. Meu pai eu conheço a história. Eu acho que eu não devo ter, então, africano. A não ser que / como eu não sei a história da minha mãe, eu não posso te dizer. Mas, às vezes, eu até acho que eu devo ter. Eu vejo assim, meu cabelo, que não é liso, é encaracolado. Não sei que mistura eu tenho. Inclusive, eu tenho vontade de saber, mas / minha mãe não é uma pessoa muito esclarecida, então ela / não sei se ela tinha vergonha, um pouco. Porque ela não sabia ler. Então, ela nunca teve essa coisa da oralidade. Já meu pai tinha, então por isso que eu só sei a parte dele. É uma pena, né? XVIII. Você pretende desenvolver nessa escola mais trabalhos que estudem os negros e a África? Sim. Inclusive eu já comecei a selecionar alguns livros. Mas, é, porque são tantas coisas que vão aparecendo, tantos livros diferentes, tantos temas que a gente tem que trabalhar, que às vezes eu fico um pouco perdida. Então eu tenho que / agora mesmo, eu tô trabalhando o folclore. É uma coisa evidente, que passa na televisão e tudo, e é uma coisa que eles adoram (S.I.) Eu vou acabar agora, aí, eu já trabalhei contos de fadas. Eles também gostaram. Então agora eu vou terminar. Quando eu terminar essa parte do folclore eu quero voltar à África e à indígena, que eu também nunca trabalhei ainda. Aí, eu quero selecionar novos livros, e continuar. ENTREVISTA COM A GESTORA I - Você conhece a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de cultura e história africana (e depois entrou a indígena também, em 2008). Você tem conhecimento dessas leis? (Ouve-se o som de um vozerio vindo da sala dos professores, que fica ao lado da sala da direção, onde estava sendo realizada a entrevista.) 325     Conheço. Eu já trabalhei essa disciplina no curso de pedagogia. Foram 3 coisas que entraram: educação especial - que tem uma lei nova também, que todo curso tem que ter - educação indígena e cultura afro. PP: Foi onde essa formação? Foi em Assu. PP: Em qual universidade? Na UVA (Universidade Estadual Vale do Acaraú). Eu já trabalhei essa disciplina lá. E a gente trabalhou essa lei, entendeu? Que a gente sabe que é uma obrigação da escola trabalhar, mas tem escola que continua trabalhando da mesma forma: trabalhando só aquela coisa dentro da disciplina normal, que já se trabalhava a história do negro, e pronto, aproveita pra dizer que tá trabalhando a cultura. Mas não é bem só isso, né? II - A escola, aqui, desenvolve alguma ação no sentido de tentar fazer cumprir essa lei? Não. É:::. Eu cheguei aqui na escola esse ano, então, eu observei assim que não tem muito projeto. Eu até sugeri pras meninas, de a gente ver, assim, um projeto da escola. Mas eu não senti muito interesse da turma em fazer esse projeto da escola em si. E, como a gente não tem alunos negros, assim, aí nem percebe muito isso. Mas, que é uma necessidade sem ter negros mesmo, por quê? Porque eles convivem com outras pessoas, que tem que respeitar, né? A gente procura aqui trabalhar mais no sentido da ética mesmo, de respeitar os outros, mas, o conteúdo em si, eu não sei como é que as meninas estão trabalhando, não. Eu acho que elas continuam trabalhando como toda escola, dentro do / da História, da História do Brasil, né? Que foi a época da escravatura, que chegaram os negros e não sei o quê, mas não se aprofunda muito não. Eu disse até outro dia / tava até comentando, né? A gente tem que pegar essa nossa cultura - a gente tava trabalhando o folclore - que nós temos hoje, é descendente de onde? De negros e índios… E portugueses, depois. Então, se a gente aproveitar isso pra aprofundar, é um momento bom pra se trabalhar, né? Principalmente porque se trabalha mais nessa época, do folclore. III - A Secretaria de Educação aqui de Natal, eles fazem alguma cobrança em relação ao cumprimento dessa lei? Cobram. Inclusive, eu até mandei, é::: / eles mandaram u:::m / o Ministério Público, na verdade é através do Ministério Público. Então, eles mandaram um e-mail pra escola, perguntando como era que se estava trabalhando a cultura afro e indígena dentro da escola. Aí, eu até relatei que você tava desenvolvendo um projeto dentro da escola pra o 3º ano e os demais trabalhavam dentro da disciplina de Estudos Sociais, né, de... / da disciplina normal, de Estudos Sociais com a História... / PP: Sim, foi daquela vez que você me pediu o projeto, né? Foi. PP: Eu achei que fosse a Secretaria de Educação que tava pedindo. É a Secretaria que pede porque o Ministério Público pede, entendeu? Cobra. Mas não foi o Ministério Público que mandou o e-mail, foi a DIRED que mandou. Pra quê? Pra prestar contas pro Ministério Público, que tá cobrando da Secretaria. PP: Certo. Aí, eu não mandei o projeto, porque era muito extenso e, quando eu fui ler, eu vi que o seu projeto era um projeto de pesquisa e não definia que tipo de conteúdo, como era que tava / definia a sua pesquisa. Aí, eu perguntei pra elas se elas queriam que eu anexasse. Aí disse: não, você diz só que / relata o que::: tá desenvolvendo, mas, se for preciso, a gente pede. Eu não imprimi. Porque era grande o projeto, né? Aí eles disseram: não, tudo bem. Eu disse: é porque o rapaz tá fazendo uma pesqui:::sa. Aí, tá trabalhando... né... 326     trabalhando com a turma do 3º a:::no / a experiência / trabalha com vídeos, com livros, literaturas e tudo mais. Aí eu botei no relatório só isso. Mas a gente sabe que é uma defasagem mesmo, nas escolas, mas que tão, já começando a pegar no pé. IV - É isso que eu ia perguntar. A escola tem alguma pretensão de começar a desenvolver um projeto da escola, ou de fazer alguma inserção no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola sobre essa questão afro-indígena? Eu tava até comentando com as meninas. A gente precisa reformular nosso PPP e colocar algumas coisas desse tipo, entendeu? Porque não tá / não tem clareza sobre isso, né? Isso cala no PPP. Então o PPP tá defasado. (S.I.) Inclusive, eu tenho que pegar o número da lei pra dizer que tá / que é amparado por essa lei (S.I.) é obrigatório. É como se fosse uma obrigação. A gente precisa fazer isso. PP: Então a escola tem essa ideia, de se adequar e começar a desenvolver os projetos nessa linha? Tem. E inclusive, assim, da::: / dos alunos especiais também, abordar alguma coisa dentro da escola. Trabalhar o que é cada coisa. Porque, às vezes, os alunos convivem com Síndrome de Down / mas os professores já estão fazendo essa parte, né? É::: trabalhando alguns vídeos, pra que os alunos se respeitem, porque às vezes o aluno não é / ele tem uma diferença / ele tem mais agressividade, mais coisa, então o coleguinha quer bater de frente (Continua comentando experiências dentro da escola com alunos com necessidades especiais.) V - Como é que você viu o projeto de pesquisa que a gente tá acabando de realizar agora? Como é que você viu, na dinâmica da escola? Você acha que impactou na dinâmica da escola ou foi uma coisa mais local, assim, só na realidade da turma? Como é que você viu o projeto dentro da escola? É... Eu considero que foi mais na realidade da turma, porque os demais não tiveram acesso, né? Não tiveram conhecimento do que você tava trabalhando. Viram os traba:::lhos, as exposições, mas isso não se explicou pra eles. Então, assim, o impacto foi dentro da turma. Talvez o seu projeto tivesse que ser mais, é:::, envolver a dinâmica toda da escola. Não é uma pesquisa que vai envolver, né? É os professores. Talvez fazendo um, é::: alguma formação, alguma orientação, os professores... PP: É que, na verdade, a ideia inicial era fazer uma formação com todos os professores. Antes de você chegar, a gente se reuniu com a antiga gestora e com as professoras pra conversar como seria o projeto. Aí, seria uma formação de 6 meses, que a gente fez. No caso, só a Professora participou, né? Mas, a gente abriu essa formação pra todo mundo da escola. Aí, pela questão dos horários, das atribuições, e tal, acabou que as professoras não puderam entrar. Aí, só / a formação foi só eu e Professora. Mas foi feita uma formação de 6 meses antes de a gente começar com as crianças, entendeu? Aí, por isso que acabou que as outras professoras não conseguiram se envolver pela questão do tempo. Elas não teriam como / igual a Professora fazia: ficava aqui no contraturno. Eu vinha sempre na hora do almoço e a gente fazia, ali, 2 horas, uma vez por semana, era sagrado, assim. Eu não sabia que tinha um extensivo pra os demais, porque, senão eu tinha incentivado, pra ver se eles participavam. PP: É, foi antes isso. Foi no ano passado. Quando você começou, Professora era do 5º ano, não era? PP: Isso. Aí, depois, já foi pro 3º. Já não foi mais a mesma clientela, né? 327     PP: É. Isso, inclusive, impactou um pouco. A gente teve que mudar um pouco os direcionamentos, porque a gente tava pensando no 5º. Mas eu percebi que / o envolvimento. Os alunos tavam ali, tudo envolvido, interessados. Inclusive, aquele aluno, o Jéremie, ele ficou encantado com a história da resina. PP: Do visgo? É, do visgo. Aquilo pra ele chamou muita atenção. Apesar de que ele não ficava muito nas formaç / nos momentos com você, ficava mais fora. Mas aquilo ali chamou muito a atenção dele. Eu vi que... PP: Ele participou sim de algumas leituras. A Professora gostou muito, assim, que ele conseguiu ficar. Geralmente ele não conseguia ficar na hora das leituras. Aí, teve um dia que ele não conseguiu, mas depois tiveram umas 2 ou 3 vezes que ele ficou o tempo todo. E esse dia do visgo foi incrível. Foi esse livro aqui (O Presente de Ossanha). Ele ficou com uma coisa. Ele pegou essa palavra: visgo e cismou com aquela palavra e ficou pensando naquilo o tempo todo. Foi. Queria sair pra ir pegar passarinho, fazer não sei o quê. PP: É. Eu fui lá fora com ele até pra a gente ver se arrumava um passarinho (risos). APÊNDICE E – COMUNICADO AOS PAIS E RESPONSÁVEIS COMUNICADO AOS SRS. PAIS DOS ESTUDANTES DO 3º ANO: Como os(as) Srs.(as) já devem saber, seu(sua) filho(a) está participando de um projeto de pesquisa ligado ao Centro de Educação da UFRN, em parceria com a Escola Estadual, que tem como objetivos o combate ao racismo e a valorização da cultura negra, através da leitura coletiva de livros de literatura. Na última leitura, tratamos do tema do preconceito racial, através da leitura de um livro chamado “Kofi e o menino de fogo” e de discussões sobre o assunto. Para enriquecer nosso debate, gostaríamos de contar com a colaboração dos(as) senhores(as), no sentido de conversarem um pouco com seu(sua) filho(a), sobre as seguintes questões: 1. O que é o preconceito racial? 2. Existe preconceito racial no Brasil? 3. O que nós podemos fazer para ajudar a acabar com o preconceito racial? Na sexta-feira, dia 22/05/2015, iremos continuar nosso debate acerca do tema e pedir para que os estudantes contem um pouco da conversa que tiveram em casa. 328     Muito obrigado pela sua colaboração. Atenciosamente, Professora: Pesquisador: Wagner Ramos Campos Natal, 21 de maio de 2015.